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RELAÇÕES DE GÊNERO NO CONTEXTO URBANO: UM OLHAR SOBRE AS MULHERES Márcia S Macedo Uma reflexão sobre relações sociais no contexto urbano nos leva, antes de mais nada, a pensar o entrelace de questões que se articulam contemporaneamente no cenário das cidades - certamente que muitas dessas questões repercutem fortemente também no campo -, formando uma grande teia de contrastes sociais nos quais se interconectam os personagens sociais que constroem cotidianamente o seu direito de “habitar”. A orquestração de mudanças no contexto da globalização mundial, articuladas pelo grande capital, vem lançando mão de novos processos de produção que fazem dos seres humanos meros apêndices de uma tecnologia que é utilizada cada vez menos em proveito do bem comum. O movimento de expansão do capital atinge todos aqueles que vivem do trabalho e inverte a lógica social fazendo com que passemos a falar em "massas sobrantes" quando deveríamos falar em "riquezas expropriadas", sob a conivência de um Estado "encolhido", cada vez mais cúmplice de um amplo processo gerador da exclusão social - que traz no seu bojo a fome, o desemprego, a violência institucionalizada e a crescente ausência de exercício de direitos sociais, como moradia, saúde, alimentação, segurança, educação, lazer e cultura. Esse processo de exclusão social vem ganhando contornos alarmantes na atualidade e define o retrato de um País predominantemente urbano e desigual - 80% da população brasileira vive em cidades, perfazendo algo em torno de 130 milhões de pessoas -, onde crescem os problemas "herdados" do passado associados às "novas questões" agudizadas pelo modelo econômico do presente. Baseadas numa lógica segregadora e discriminadora, as cidades vêm tendo como seu principal traço definidor a precariedade de acesso da maioria de seus habitantes a aspectos fundamentais da vida urbana, que vão desde a moradia e oferta de emprego até serviços coletivos, como saneamento básico, limpeza urbana, pavimentação de ruas, iluminação, transporte público e manutenção de áreas comuns, como praças e jardins, segurança pública. Assim, a cidade como espaço de contrastes articula uma pluralidade de lógicas que atinge de forma diferenciada seus diversos grupos sociais, variando segundo o recorte de classe, étnico/racial, idade/geração, gênero, origem urbano/rural, orientação sexual, religião, entre outros fatores. Essa diversidade também favorece a articulação de diferentes formas de luta por direitos, fazendo da cidade também um espaço social de construção de cidadania ou, como define Dias (2001: 12): o cenário essencial onde se multiplicam, com grande diversidade, dinamicidade e velocidade, movimentos institucionalizados ou não, lutas particularizadas ou não, que buscam compreender o urbano e reelaborá-lo no sentido de conquistas que vão desde a posse da terra até a afirmação dos direitos das maiorias sociais. Nesse contexto, pensar as múltiplas formas de opressão que aproximam e separam os sujeitos sociais permite o entendimento da existência de um conjunto de semelhanças e diferenças que se articulam gerando uma combinação de arranjos que não vão necessariamente na mesma direção. Assim, homens e mulheres, ainda que possam partilhar uma mesma situação de classe - como, por exemplo, por não terem acesso à moradia podem estar unidos na luta Professora da Escola de Serviço Social da Universidade Católica do Salvador

MACEDO, M - Relações de Gênero No Contexto Urbano Um Olhar Sobre as Mulheres (2001)

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MACEDO, M - Relações de Gênero No Contexto Urbano Um Olhar Sobre as Mulheres (2001)

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  • RELAES DE GNERO NO CONTEXTO URBANO: UM OLHAR SOBRE AS MULHERES

    Mrcia S Macedo

    Uma reflexo sobre relaes sociais no contexto urbano nos leva, antes de mais nada, a pensar o entrelace de questes que se articulam contemporaneamente no cenrio das cidades - certamente que muitas dessas questes repercutem fortemente tambm no campo -, formando uma grande teia de contrastes sociais nos quais se interconectam os personagens sociais que constroem cotidianamente o seu direito de habitar.

    A orquestrao de mudanas no contexto da globalizao mundial, articuladas pelo grande capital, vem lanando mo de novos processos de produo que fazem dos seres humanos meros apndices de uma tecnologia que utilizada cada vez menos em proveito do bem comum. O movimento de expanso do capital atinge todos aqueles que vivem do trabalho e inverte a lgica social fazendo com que passemos a falar em "massas sobrantes" quando deveramos falar em "riquezas expropriadas", sob a conivncia de um Estado "encolhido", cada vez mais cmplice de um amplo processo gerador da excluso social - que traz no seu bojo a fome, o desemprego, a violncia institucionalizada e a crescente ausncia de exerccio de direitos sociais, como moradia, sade, alimentao, segurana, educao, lazer e cultura.

    Esse processo de excluso social vem ganhando contornos alarmantes na atualidade e define o retrato de um Pas predominantemente urbano e desigual - 80% da populao brasileira vive em cidades, perfazendo algo em torno de 130 milhes de pessoas -, onde crescem os problemas "herdados" do passado associados s "novas questes" agudizadas pelo modelo econmico do presente. Baseadas numa lgica segregadora e discriminadora, as cidades vm tendo como seu principal trao definidor a precariedade de acesso da maioria de seus habitantes a aspectos fundamentais da vida urbana, que vo desde a moradia e oferta de emprego at servios coletivos, como saneamento bsico, limpeza urbana, pavimentao de ruas, iluminao, transporte pblico e manuteno de reas comuns, como praas e jardins, segurana pblica.

    Assim, a cidade como espao de contrastes articula uma pluralidade de lgicas que atinge de forma diferenciada seus diversos grupos sociais, variando segundo o recorte de classe, tnico/racial, idade/gerao, gnero, origem urbano/rural, orientao sexual, religio, entre outros fatores. Essa diversidade tambm favorece a articulao de diferentes formas de luta por direitos, fazendo da cidade tambm um espao social de construo de cidadania ou, como define Dias (2001: 12):

    o cenrio essencial onde se multiplicam, com grande diversidade, dinamicidade e velocidade, movimentos institucionalizados ou no, lutas particularizadas ou no, que buscam compreender o urbano e reelabor-lo no sentido de conquistas que vo desde a posse da terra at a afirmao dos direitos das maiorias sociais.

    Nesse contexto, pensar as mltiplas formas de opresso que aproximam e separam os sujeitos sociais permite o entendimento da existncia de um conjunto de semelhanas e diferenas que se articulam gerando uma combinao de arranjos que no vo necessariamente na mesma direo. Assim, homens e mulheres, ainda que possam partilhar uma mesma situao de classe - como, por exemplo, por no terem acesso moradia podem estar unidos na luta Professora da Escola de Servio Social da Universidade Catlica do Salvador

  • pela ocupao de uma determinada rea do espao urbano -, vivenciam diferencialmente fatos do seu cotidiano devido fora da dimenso que constitui aquilo que podemos chamar de experincia de gnero.

    A categoria gnero, como um dos principais elementos articuladores das relaes sociais no contexto urbano, nos permite entender como os sujeitos sociais esto sendo constitudos cotidianamente por um conjunto de significados impregnados de smbolos culturais, conceitos normativos, institucionalidades e subjetividades sexuadas (Scott, 1990) que atribuem a homens e mulheres um lugar diferenciado no mundo, sendo essa diferena atravessada por relaes de poder que conferem ao homem, historicamente, uma posio dominante.

    Logicamente discutir relaes de gnero requer um cuidado para que no se caia na armadilha das frmulas simplificadoras que convertem o masculino e o feminino em campos estanques e homogneos, como se homens e mulheres no apresentassem convergncias nas suas experincias e representaes ou como se entre homens e homens e mulheres e mulheres no existissem tambm divergncias (Sorj, 1993), afinal no podemos esquecer das chamadas identidades sobrenomeadas ("mulher negra", "mulher trabalhadora rural", etc.). Assim, pensar gnero implica entender que ele se constitui dentro do que Saffioti (1994) chama de universo conceitual relacional, isto , no apenas gnero no sinnimo de mulher, como preciso entender que ele regula para alm da relao homem-mulher, tambm a relao mulher-mulher e homem-homem.

    Portanto, refletir sobre relaes de gnero implica realizar uma releitura de todo o nosso entorno, o que significa, por exemplo, repensar a cultura, a linguagem, os meios de comunicao social, as instituies como a famlia ou a religio, os processos polticos como os movimentos sociais ou partidos polticos. A tarefa a que nos propomos neste texto a de buscar entender como gnero, ao construir uma teia de relaes sociais, nos permite lanar um olhar interessado e comprometido sobre os processos sociais construdos e constituintes dos sujeitos sociais no contexto urbano, onde se do as prticas polticas de diversas organizaes comprometidas com a construo de uma nova sociedade.

    (Des)construindo as relaes de gnero a partir do cotidiano

    A seguir, discutiremos alguns pontos que possibilitam uma leitura de como a adoo de um recorte transversal em torno das relaes de gnero funciona como uma lente que possibilita a visibilizao de uma srie de aspectos que a sociedade vem naturalizando e que vem assegurando a perpetuao de relaes assimtricas entre homens e mulheres. O que se percebe que as mulheres no dispem das mesmas condies que os homens para enfrentar os problemas da vida urbana, especialmente aquelas pertencentes ao contingente das classes trabalhadoras. Isso porque ainda h uma grande concentrao do poder e de recursos produtivos nas mos dos homens (meios de produo, como terra e capital, por exemplo), bem como tambm em termos do acesso diferenciado que estes tm ao conhecimento (domnio da tecnologia).

    Nesse sentido, partimos do referencial bsico de que, por conta dessas assimetrias, mulheres e homens vivem e pensam o mundo a partir de diferentes "lugares", tendo, dessa forma, necessidades diferenciadas. O desafio a que nos propomos, portanto, como diria Souza-Lobo (1991), a busca da compreenso dos vrios espaos e relaes em que o gnero se constri, como o mercado de trabalho, a famlia, as instituies, as polticas pblicas, os meios de comunicao, etc., que influenciam diretamente a construo das subjetividades de mulheres e homens.

  • O mercado de trabalho

    A princpio, precisamos entender que at um elemento aparentemente neutro, como o mercado de trabalho, comporta uma lgica que est atravessada por assimetrias em torno de aspectos como sexo/gnero, idade/gerao, raa/etnia ou mesmo diferenciao urbano/rural. No tocante dimenso de gnero, que nos interessa mais imediatamente, podemos perceber que h uma racionalidade que utiliza a fora de trabalho das mulheres em benefcio do processo de acumulao capitalista, sob diversos aspectos, desde o no reconhecimento do trabalho domstico como criador de valor (da prpria fora de trabalho), seja ele remunerado ou no, tornando-o uma responsabilidade da mulher (esposa, me, filha, empregada domstica, etc.); ou quando remunera diferencialmente homens e mulheres, considerando o rendimento gerado pelo trabalho feminino como suplementar ao oramento domstico ou ainda quando se utiliza de certas "habilidades especiais" das mulheres (que logicamente no so naturais, mas geradas pelo processo de socializao e educao diferenciadas) para servios rotineiros ou que exigem minuciosidade ou pacincia (como por exemplo a montagem de placas para equipamentos eletrnicos ou a realizao de atividades repetitivas em linhas de produo), produzindo os chamados guetos ocupacionais.

    Assim, quando comparadas aos homens, as mulheres no apenas esto nas profisses de menor prestgio e mais baixa remunerao como ainda apresentam taxas de desemprego mais altas; tambm esto mais presentes, proporcionalmente, no mercado informal, alm de terem menor acesso a uma mobilidade vertical positiva (promoes, cargos de chefia, etc.) quando empregadas, estando menos includas que os homens nas chamadas garantias trabalhistas como carteira assinada, previdncia social, etc.

    Quando comparadas fora de trabalho masculina, as mulheres tornam-se vtimas de uma perversa lgica que torna as articulaes de algumas de suas possveis caractersticas sociodemogrficas - como a idade, o estado civil e a condio de maternidade - fatores ainda mais limitantes para sua insero no mercado de trabalho, o que vai significar uma situao de maior vulnerabilidade para aquelas mulheres jovens que tenham filhos pequenos e que ainda estejam em fase reprodutiva. A presena de filhos (imaturos) entre as mulheres de baixa renda o elemento que mais interfere na participao da mulher no mercado de trabalho urbano, principalmente em funo da insuficincia de equipamentos coletivos urbanos, como creches e escolas em perodo integral. Essa dificuldade vem levando um grande contingente de mulheres com filhos a buscar a articulao de uma srie de atividades informais, com menor remunerao e sem garantias trabalhistas, mas que permitem a conciliao das atividades que desenvolve com aquelas em torno dos cuidados cotidianos com o seu grupo domstico.

    A mulher, a famlia e as mulheres chefes de famlia

    No tocante famlia, gnero um poderoso instrumento que nos ajuda a entender esta realidade. Em primeiro lugar, mostra que temos uma viso fortemente influenciada pelas ideologias familistas que terminam por produzir uma naturalizao desse agrupamento humano que chamamos de famlia. Isso significa dizer que tendemos a ter uma representao social comum do que uma famlia e desta como condio indispensvel para a produo/ reproduo dos seres humanos, o que implica a idealizao de um ambiente harmnico, repleto de condies necessrias ao desenvolvimento de indivduos saudveis, equilibrados e produtivos -. Em suma, implica pensar numa organizao social baseada na diviso social e sexual de papis, complementares e hierrquicos,

  • expressos na sociedade moderna na figura do pai/ chefe de famlia e seu par, a me de famlia/dona de casa, logicamente que acompanhados de seu complemento, a prole.

    Nesse ponto, impossvel no reconhecer que chegamos finalmente ao modelo clssico da famlia nuclear conjugal, profundamente imbricado s ideologias de gnero, que tende a considerar o "diferente" como "no-famlia" ou pelo menos famlia "incompleta" ou "desorganizada". Essa crtica famlia nuclear nos permite perceber que a dinmica existente no contexto familiar no pode ser comportada em um nico modelo de famlia. Ao contrrio, a depender do momento do chamado ciclo vital de um grupo familiar, podemos ter uma diversidade de posies, lugares e papis complementares que demarcam, de uma s vez, relaes de parentesco, gnero e gerao.

    Um segundo aspecto, que a crtica ao entrelace das ideologias familistas s de gnero nos permite ver, a noo de "chefe de famlia" predominantemente associada figura masculina, a quem se atribui o papel de provedor e responsvel legal pelo grupo familiar, sobre o qual este exerce uma indiscutvel autoridade. Essa anlise nos leva obrigatoriamente desconstruo desse modelo tradicional de famlia, possibilitando o entendimento da ocorrncia de um conjunto de transformaes nas estruturas familiares; entre elas, a identificao de outros modelos de convivncia e solidariedade entre pessoas, o que traz, particularmente, a percepo do crescimento das chamadas famlias chefiadas por mulheres.

    Na Amrica Latina, h estimativas de que mais de 30% das famlias so chefiadas atualmente por mulheres e, no Brasil, sabe-se que nas reas metropolitanas esse nmero bastante superior. Na verdade, no se trata de um fenmeno novo, pois h registros da sua ocorrncia em grupos populares desde o sculo XIX, mas, nas ltimas dcadas, nota-se sua ampliao entre as camadas mdias e populares. H uma multiplicidade de fatores contribuindo para a ampliao desse fenmeno e de sua visibilidade social, entre os quais se articulam fatores de ordem ideolgica e socioeconmica, fazendo com que, de um lado, o modelo ideolgico da famlia nuclear entre em choque com a "nova onda" de mulheres ss com seus filhos, em grande parte decorrente da entrada macia de mulheres no mercado de trabalho nas ltimas trs dcadas, o que vem lhes permitindo, particularmente quelas de camadas mdias, melhores condies de manuteno de sua famlia, independentemente da figura masculina; de outro lado, temos fatores de ordem mais propriamente econmica, ocasionados pelo crescimento do fenmeno entre as mulheres pertencentes s camadas mais pauperizadas da populao urbana -particularmente entre aquela situada abaixo da chamada linha de pobreza - em um contexto de crescente isolamento dos ncleos domsticos das redes de parentesco e solidariedade, aumentando assim o nmero de pessoas livres de vnculos de proteo social, em situao de pauperismo extremo, evidenciando a ausncia do Estado no atendimento s necessidades dessa populao e pressionando o delineamento de novas polticas pblicas.

    A esse respeito vale ainda considerar que as ideologias de gnero vm definindo um modelo de maternagem e paternagem assentado numa hipertrofia do primeiro ("o filho s da me") e numa atrofia do segundo ("quem pariu Mateus que o balance"), o que faz com que as mulheres se sintam excessivamente responsveis pelos cuidados com os filhos, transferindo a quase exclusividade da maternidade biolgica para a dimenso da maternidade social. Nesse contexto, as mulheres, independentemente de sua classe social, raa/etnia, idade ou

  • gerao, se tornam chefes de famlia por serem, antes de mais nada, mulheres.

    A dimenso de gnero , dessa forma, definidora de um modelo de maternidade/maternagem em que h uma grande centralidade dos filhos no projeto existencial dessas mulheres, levando-as a no pouparem esforos para garantir a reproduo do seu grupo domstico, independentemente da presena masculina. Observa-se que a identidade da mulher est muito relacionada identidade de me, ocorrendo uma representao da maternidade como algo sagrado, o que termina por provocar um deslocamento de um papel cultural como se fosse algo prprio da natureza da mulher (processo de culturalizao da natureza).

    Essa mesma ideologia de gnero contribui ainda para legitimar esse papel da mulher, fazendo com que estas se sintam muitas vezes responsveis exclusivas pelos "seus" filhos, o que termina por faz-las indivduos ainda mais dceis marginalizao, aceitando mais facilmente que os homens situaes de penria, subocupaes e trabalhos mais penosos em nome do sustento dos filhos. So as mulheres, dentro do grupo domstico, aquelas mais dispostas a sacrifcios, muitas vezes no medindo esforos, para que os filhos possam permanecer na escola e venham a conquistar nveis mais altos de escolarizao.

    Retomando a questo das mulheres chefes de famlia, a realidade emprica vem mostrando que h uma articulao de fatores como classe, raa e gnero que vem definindo um perfil predominante de mulheres-chefes em condio de extrema pobreza, composta em grande proporo por mulheres negras e com caractersticas desfavorveis sua entrada e permanncia no mercado de trabalho -como baixos nveis de escolaridade e prole em idade escolar. Assim, para que ocorra uma insero dessas mulheres no mercado de trabalho, muito comum a transferncia do papel de me e dona de casa para outros membros da famlia, geralmente para a filha mais velha, que na maioria dos casos ainda uma criana. Alguns estudos vm mostrando como a transformao das meninas em "mes substitutas" termina por perpetuar as desigualdades de gnero, pois penalizam as crianas do sexo feminino ao acelerarem um amadurecimento precoce destas em relao s de outras classes sociais, alm de dificultar seu processo de escolarizao, transmitindo em ltima instncia o mesmo padro desigual de diviso do trabalho entre os sexos - o que termina por poupar os indivduos do sexo masculino em detrimento da explorao da fora de trabalho das meninas e mulheres.

    Nas famlias chefiadas por mulheres, h uma tendncia a se analisar a sada do homem do grupo domstico em termos negativos, pois significa a supresso de um componente que tem uma cotao mais elevada no mercado de trabalho, o que levaria a uma situao de maior vulnerabilidade desses domiclios. Mas o que o contato com mulheres chefes de famlia vem revelando que a sada do homem pode no significar necessariamente prejuzo para os que ficaram, pois, muitas vezes, a presena do homem pode estar se constituindo em um problema para a famlia, j que em muitas circunstncias ela pode estar acarretando situaes de conflito, violncia domstica ou ainda desvio de recursos para fora do domiclio (bebida, jogos, outras mulheres, etc.).

    Associado a esses aspectos, outro fator que vem se evidenciando que h uma significativa diferena nas prioridades de alocao de recursos entre homens e mulheres, sendo a chefia feminina, nesse sentido, muitas vezes mais democrtica que a masculina. Outra questo que no podemos deixar de considerar que em algumas circunstncias a sada do homem do grupo domstico pode significar, na verdade, a sua "expulso", pois num contexto em

  • que as ideologias de gnero definem um modelo de homem "provedor", sua permanncia no grupo passa a ser problemtica quando essa condio deixa de existir - muito difcil a continuidade, na famlia, do homem em situao de desemprego, quando este se v, muitas vezes, sem a autoridade moral sobre o grupo e/ou sobre a mulher, confrontando-se com as expectativas de vivncia da masculinidade hegemnica em termos do no envolvimento na realizao de atividades domsticas e sim de uma participao ativa no mundo pblico atravs do trabalho, lazer e outras formas de sociabilidade.

    A mulher e o contexto urbano

    A centralidade da mulher na famlia um fator inquestionvel, conforme nos mostram as anlises de gnero, pois vm definindo o protagonismo da mulher na administrao da escassez nos grupos domsticos de baixa renda, orientando sua ao no sentido de planejamento e execuo de um conjunto de estratgias em torno de condies de subsistncia mais favorveis para sua famlia. No desempenho desse papel, as mulheres articulam redes de parentesco e apoio mais amplos, que significam no apenas a mobilizao de recursos materiais, mas, inclusive, a integrao dos membros da famlia a novas oportunidades de trabalho.

    Assim, as relaes de gnero tm perpetuado uma desigual distribuio dos esforos cotidianos em torno da reproduo das condies de subsistncia das famlias, especialmente daquelas relativas ao chamado mundo privado, o que faz com que as mulheres sejam, seno as nicas, as principais responsveis pelo trabalho domstico. Portanto, estas se tornam as maiores prejudicadas diante da precariedade dos servios pblicos voltados para a satisfao de necessidades como sade, educao, infra-estrutura urbana (escola, luz, gua, esgoto, coleta de lixo, etc.).

    O que pode ser questionado, nesse momento, so as razes da nossa nfase no tocante carncia desses servios relacionando-os s mulheres, visto que eles atingem diretamente todas as comunidades de baixa renda, o que, conseqentemente, inclui a parcela da populao pertencente ao sexo masculino. Em primeiro lugar devemos considerar, pelo motivo j apontado, que a diviso desigual do trabalho entre os sexos vem responsabilizando mais diretamente as mulheres pela satisfao das necessidades sociais mais ligadas ao campo da reproduo e, conseqentemente, "liberando" os homens desse papel. Em segundo lugar, em decorrncia desse primeiro motivo, impossvel ignorar que a existncia de uma infra-estrutura mnima teria efeitos positivos sobre o volume de trabalho realizado pelas mulheres, permitindo uma reduo dos esforos mobilizados por estas para o suprimento das necessidades de suas famlias - por exemplo: o fornecimento regular de gua encanada pode evitar grandes deslocamentos das mulheres, geralmente transportando vasilhames pesados, para suprir de gua sua residncia, ou ainda permitir-lhes um maior nmero de horas de sono, pois eliminaria as constantes "viglias" no aguardo da chegada de gua para encher reservatrios e vasilhames da casa.

    Essa anlise no pretende negar que preciso reverter as assimetrias existentes nas relaes de gnero no contexto da esfera privada, significando uma incluso dos homens -meninos, jovens, adultos e idosos - no mundo da reproduo cotidiana da vida das famlias. Por outro lado, mesmo que a multiplicao de equipamentos coletivos e a montagem de uma infra-estrutura bsica no tragam como resultado uma reverso desse quadro de separao das esferas pblicas e privadas, por conta do processo histrico e pelo fato de que essa transformao envolve uma pluralidade de fatores, acreditamos que essas mudanas permitem s mulheres das geraes do presente uma condio mais favorvel de

  • viabilizao de um cotidiano que, quer queiramos reconhecer ou no, ainda pesa excessivamente, e quase que exclusivamente, sobre os seus ombros.

    Outro aspecto que mobiliza profundamente as mulheres, chefes de famlia ou no, a conquista da moradia. Vrios estudos vm apontando a centralidade do projeto de aquisio da casa - segundo alguns, "um projeto que nunca se acaba" - entre a populao de baixa renda. A casa, para essa populao excluda de uma srie de direitos sociais, o lugar privilegiado para a realizao do cotidiano da famlia (expresso na clssica frase: "Quem casa quer ter casa"); como lembra Bilac (1995), a casa significa uma forma de proteo social, num contexto de adversidades (" o meu canto, de onde ningum me tira"), representando a materializao dos esforos de melhoria de vida, "uma garantia mnima numa vida cheia de incertezas".

    A construo da casa, nesse contexto, um processo longo e penoso, que comea, muitas vezes, com a ocupao dos terrenos em reas mais perifricas dos grandes centros urbanos, constituindo as chamadas invases. Nesse processo, as mulheres desempenham um papel estratgico, pois junto com as crianas compem a "linha de frente" que garante a ocupao ininterrupta do espao, evitando a destruio dos "barracos" e tambm enfrentando a violncia policial, fazendo elas prprias, a servio do seu grupo domstico, um uso das ideologias que apresentam a idia de fragilidade e desproteo de mulheres e crianas. Assim, a participao das mulheres na realizao do projeto da casa vital para a famlia, pois esta se amplia na gerao de renda para o processo de autoconstruo das casas, fazendo-se ela prpria, s vezes, de "pedreira", a despeito das ideologias de gnero que sexualizam determinadas atividades considerando-as como "femininas" ou "masculinas", como o caso da construo civil (2)

    Ainda refletindo acerca da participao das mulheres no contexto urbano,um dos aspectos que merecem destaque, refere-se fora das ideologias que apresentam os idosos, especialmente aqueles pertencentes s classes populares, como indivduos dependentes e que terminam por contribuir para a ampliao do leque de atividades a cargo das mulheres, exigindo destas uma srie de cuidados especiais. Estudos recentes realizados junto a "pessoas de mais idade" (Brito da Motta, 1999) vm questionando essa imagem estigmatizada do idoso doente e improdutivo e vm mostrando que tem sido verificado justamente o oposto: os idosos e, mais especificamente, as mulheres idosas, no contexto de empobrecimento das camadas mdias e de baixa renda, tornam-se cada vez mais importantes para a reproduo cotidiana das famlias, pois, livre de vnculos com o mercado de trabalho, assumem crescentemente, na ausncia dos adultos, grande parte do trabalho domstico, o que inclui o cuidado com as crianas e a "superviso" dos adolescentes em idade escolar. Um outro aspecto importante o fato de tornarem-se, em alguns casos, uma fonte regular de rendimentos para a constituio do oramento domstico, em decorrncia do recebimento de aposentadorias - em algumas famlias mais empobrecidas, inclusive, a aposentadoria do idoso, apesar de exgua, pode ser o nico provento fixo e regular entre os membros do grupo domstico.

    A violncia de gnero e as mulheres

    A violncia de gnero, mais precisamente a violncia contra a mulher, uma das formas de violncia mais aceitas como "normais" e de maior presena no cotidiano de nossa sociedade. Para melhor exemplificar, podemos citar alguns ditados populares que terminam por expressar a naturalidade com que esse tipo de violncia ainda encarado:

  • Mulher gosta de apanhar.Mulher que nem bife, pois quanto mais apanha melhor fica.Ele no sabe porque bate, mas ela sabe porque apanha. (Annimo)

    Os dados das pesquisas sobre a violncia de gnero no Brasil mostram a gravidade da situao: a) entre todos os casos de violncia ocorridos no final da dcada de 80, mais da metade tinha mulheres como vtimas; b) enquanto o homem vtima de violncia na rua, a maioria das mulheres agredidas sofre violncia dentro da prpria casa; c) grande parte dessa violncia sofrida pela mulher provocada por parentes e cnjuge.

    No Brasil, calculava-se, ainda no incio da dcada de 90, que a cada quatro minutos registrada na polcia uma queixa de agresso fsica contra uma mulher. Estudiosos do tema (Saffioti 1994) comentam que esse nmero alarmante, mas ainda no espelha a realidade, j que muitas mulheres vtimas de violncia no prestam queixa na polcia por vrias razes, como medo, dependncia financeira ou emocional, existncia de filhos pequenos, vergonha, desejo de que o marido mude de atitude, etc. ., o que leva concluso de que o nmero de mulheres agredidas bem maior do que o apresentado. Um outro dado que muitas dessas mulheres que chegam a registrar queixa, pelos motivos apontados, e at sob a ameaa do marido, voltam polcia para retirar sua queixa.

    muito importante a busca de informaes que ajudem a desfazer alguns mitos ligados a essa problemtica. O primeiro deles a idia de que a violncia domstica um fenmeno ligado pobreza; na verdade, ela ocorre em todas as classes sociais, mas acontece que entre as classes mdias e alta, muitas vezes, ela no chega a pblico por razes como o medo de um escndalo que venha a "manchar o nome da famlia", da buscam-se alternativas como terapeutas, advogados, etc. Outro equvoco a associao direta da violncia com a crise econmica, o desemprego e o alcoolismo - esses fatores podem ser o estopim de uma briga, pelo fato de aumentarem o estresse e diminurem o autocontrole, mas no podem ser considerados como causas da violncia.

    Um outro aspecto que d o que pensar o fato de que muitos homens que agridem suas esposas so descritos por estas como "pessoa amigvel", "homem trabalhador", "bom pai", etc., apesar de cometerem esse tipo de violncia. O que nos leva a perguntar: por que um homem considerado bom pai, trabalhador e pessoa amigvel o mesmo que espanca e at mesmo mata a sua esposa? O que faz um homem - aparentemente incapaz de cometer violncias - ferir, mutilar e at tirar a vida de sua companheira, muitas vezes por um motivo ftil como a queima da comida ou um atraso de dez minutos na volta do supermercado?

    Temos que buscar compreender esse fenmeno no campo das discusses das relaes de gnero, tentando articul-las s reflexes realizadas at aqui. Assim, a violncia contra as mulheres est diretamente relacionada s desigualdades existentes entre homens e mulheres e s ideologias de gnero, expressas nos pensamentos e nas prticas machistas, na educao diferenciada, na construo de uma noo assimtrica em relao ao valor e aos direitos de homens e mulheres, na noo equivocada da mulher enquanto objeto ou propriedade de seu parceiro. Nesse ltimo ponto, as estatsticas apontam que 70% dos homicdios de mulheres no Brasil so cometidos por ex-maridos e ex-namorados, na maioria das vezes, por estes no aceitarem o desejo das mulheres de ruptura do relacionamento amoroso (Saffioti, 1994).

    Logicamente que precisamos entender toda essa discusso de forma bastante ampla para no se criar uma noo equivocada dos homens como apenas

  • agressores e as mulheres como "pobres vtimas". A violncia de gnero uma realidade bastante complexa e envolve uma srie de questes que tm suas razes na sociedade, na omisso do Estado, sem falar em aspectos ligados s relaes interpessoais e trocas afetivas entre os seres humanos.

    Dessa forma, por ocorrer, principalmente, na vida privada (particularmente na famlia), a violncia de gnero esteve, por muito tempo, encoberta por uma certa invisibilidade social. A sociedade, o Estado e seus representantes tardaram por intervir nesse tipo de violncia e at hoje ainda resistem. Mesmo na atualidade, mantm-se com bastante fora o famoso ditado: "Em briga de marido e mulher ningum mete a colher", o que remete permanncia de uma idia de privacidade que deve ser respeitada e preservada em qualquer circunstncia. Essa noo precisa ser superada e a prpria Constituio Brasileira bastante clara a esse respeito quando, no captulo VII, referente famlia, diz que a violncia no interior da famlia deve ser coibida e que obrigao do Estado sua proteo (artigo 226, pargrafo 8).

    A sociedade como um todo e, em especial, as instncias mais diretamente envolvidas na preveno e punio da violncia precisam lanar um novo olhar para essa forma particular de violao dos direitos humanos. Os caminhos para a desnaturalizao da violncia contra a mulher passam pela retirada dessa problemtica da privacidade do lar e pela criao de espaos e formas de enfrentamento que vo desde a prontido da ao policial de socorro vitima de violncia e aprisionamento do agressor, ao atendimento digno mulher que se dirige Delegacia Especial para registrar uma queixa, passando por maior eficincia da Justia na punio dos agressores, at a criao de espaos de apoio s mulheres agredidas e sob ameaa de morte.

    Mulheres e polticas pblicas

    De uma forma geral, no campo das polticas pblicas, uma das questes que mais dificultam uma perspectiva que contribua para a eqidade de gnero o fato de que as mulheres so quase que invisveis para os gestores dessas polticas e, quando so vistas, o so apenas sob o ngulo de sua participao na esfera da reproduo e, ainda assim, de uma forma bastante restrita, pois no h uma compreenso de que h necessidades especficas das mulheres, que precisam ser reconhecidas e encaminhadas. H, muitas vezes, um conjunto de iniciativas voltadas para as mulheres que, inclusive, reforam esse papel tradicional da mulher, restrito reproduo. Como exemplo, temos os clssicos cursos/grupos de costura, artesanato, etc., que no podem ser descartados como recurso de mobilizao para reflexo e ao, se forem utilizados como uma atividade meio dentro de um processo que tem uma direo estratgica de construo de alternativas de ampliao da participao da mulher na sociedade.

    Um outro exemplo dessa invisibilidade est localizado na questo da dificuldade de acesso das mulheres posse e regularizao da documentao de propriedade das moradias no contexto urbano. O caso das mulheres chefes de famlia bastante elucidativo dessa omisso do Estado e de seus gestores sobre a situao e as necessidades das mulheres: estas sequer chegam a ser reconhecidas como mantenedoras de seus domiclios, particularmente quando no so oficialmente vivas ou divorciadas e esto na condio de solteiras, separadas ou com mltiplas parcerias temporrias, tornando-se quase que inelegveis para os programas de financiamento de habitao populares, de autoconstruo ou mesmo reforma e ampliao de moradias, o que agravado por fatores restritivos como a precariedade de vnculos com o mercado de trabalho e as baixas remuneraes que auferem nessas condies.

  • As mulheres precisam tornar-se beneficirias "oficiais" das polticas pblicas voltadas para o combate pobreza, visto serem estas, juntamente com as crianas, grande parte das chamadas populaes vulnerveis distribudas pelas reas mais pauperizadas do globo terrestre. Os homens e as mulheres gestores de polticas precisam adotar mecanismos que permitam traar um desenho da composio destas populaes, que permitam uma anlise de gnero e o delineamento de polticas a partir da participao das prprias beneficirias na definio de prioridades.

    Assim, fundamental que as mulheres possam ser instrumentalizadas para entrar na cena pblica como protagonistas e no meros objetos das polticas pblicas. Para isso, preciso que se evidencie a percepo de que sua participao, que muitas vezes se inicia no que podemos chamar de mbito comunitrio, precisa se ampliar para outros nveis da ao poltica, o que implica pensar alm do bairro e da circunvizinhana, indo na direo das lutas da cidade e de outras instncias de gesto da coisa pblica.

    As mulheres e as conseqncias do seu engajamento poltico

    claro que a "sada" da mulher do espao privado para a vida pblica no uma tarefa simples. As ltimas dcadas tm testemunhado um aumento significativo da participao das mulheres das classes populares nos movimentos sociais urbanos, mais especificamente naqueles movimentos em torno da melhoria das condies de vida dos bairros populares (gua, luz, saneamento, transporte, segurana, etc.), tendo como principal interlocutor e, muitas vezes, opositor, o Estado. Para as mulheres, o crescimento de seu protagonismo social tem possibilitado a construo de uma identidade que tem como referncia "outros lugares sociais", como mulher, militante, cidad, etc., ampliando suas metas para alm do universo privado onde se estruturam suas identidades tradicionais de me e esposa.

    Essa participao feminina nas lutas urbanas e nos movimentos diversos, ao permitirem o contato com o mundo "fora da casa", embora tenha sua atuao referendada no privado, significa tambm para muitas mulheres o enfrentamento de reaes contrrias no interior do ncleo familiar, principalmente por parte dos companheiros. Essa reao pode ser vista como expresso do receio masculino de que a sada da mulher do mundo domstico venha a "subverter" algumas regras estabelecidas, j que esses novos espaos de participao pressupem novos saberes, novas informaes que, por sua vez, redefinem as relaes de poder no nvel do privado (Pinto, 1992).

    Particularmente, no caso da relao conjugal, percebe-se que o homem, de certa forma, considera ameaado o controle que possui sobre a esposa. Assim, o crescimento da participao feminina e sua atitude de contestao, velada ou explcita, ao autoritarismo masculino, violncia domstica, s ameaas de separao parecem estar indicando que, de fato, comeam a ocorrer algumas alteraes nas relaes de poder na dimenso da vida privada. Uma das conseqncias mais significativas dessa mudana o incio de uma redefinio da posio da mulher no apenas em relao ao companheiro e ao seu grupo domstico. O que se percebe, no contato com as mulheres nas lutas dos bairros, das associaes, etc., que estas comeam a ter uma posio qualitativamente diferenciada nas suas relaes cotidianas, o que, por sua vez, redefine sua prpria relao no nvel pblico (Pinto, 1992) e, conseqentemente, reflete na construo de sua identidade de gnero.

    Entendemos que, ao vivenciar essas novas prticas sociais, as mulheres passam a redimensionar sua prpria experincia cotidiana, estabelecendo processos de

  • negociao, transformando-se, num certo sentido, em sujeitos de sua prpria vida. Isso significa a construo de novas representaes sociais sobre si e sobre o mundo que as cerca, o que leva ampliao da conscincia de que, como pessoa, "tem direito a ter direitos". Nesse sentido, buscam resgatar uma dimenso de sua existncia que lhes vm sendo negada, pela rigidez das hierarquias de gnero e classe . Entenda-se, com isso, ser mulher e pobre, numa sociedade marcada por desigualdades sociais como a brasileira.

    Assim, acreditamos que, ao participarem dos movimentos populares, as mulheres esto buscando muito mais que uma resposta para necessidades "objetivas" e imediatas (como transporte, saneamento, educao, etc.), esto se remetendo ao universo das "mediaes simblicas" e, por que no dizer, a um mundo onde possvel ter sonhos e novas aspiraes. A busca e a motivao propulsoras dessa participao o desejo de romper com os "asfixiantes" limites da vida privada, em que essencialmente se vive o tempo de (e para) "outros". Dessa forma, percebemos que a motivao para participao em diversas prticas sociais no se encontra assentada numa relao direta entre um conjunto de necessidades e respectivas alternativas de enfrentamento. Mas , a nosso ver, o resultado da articulao de um conjunto de fatores que tem como locus, sem sombra de dvida, a esfera da vida privada, onde so "tecidas" suas identidades em formao.

    H uma grande importncia poltica na ampliao dessa participao da mulher, ela vem significando a constituio de um espao que , ao mesmo tempo, pblico e privado, o que "(....) no significa [dizer] que se fundiram as esferas do pblico e do privado ou que seus limites tornaram-se indefinidos, mas que se adquire a capacidade de transitar mais livremente entre elas. (Britto da Motta, 1993: 418). justamente o exerccio desse trnsito entre essas esferas que vai favorecer s mulheres a construo de novas sociabilidades e identidades. Estas se descobrem como pessoas, sujeitos, agentes e formulam um discurso no qual acentuam as rupturas e mudanas de comportamentos.

    A constituio de mulheres como sujeitos sociais, portanto, requer que no processo da ao coletiva sejam reelaboradas pelas agentes suas experincias como mulher e trabalhadora, mulher e integrante de determinado movimento, como mulher e moradora de periferia, etc. (Lavinas, 1989: 5-6), pois s assim as mulheres podero construir novas representaes sociais sobre si mesmas - representaes estas que devem ser coerentes com a sua realidade e com suas prticas sociais, tal como enunciava Souza-Lobo (1989: 9):

    Os caminhos de construo dessa nova identidade podem ser dolorosos, mas (....) as mulheres j no so mais as mesmas. (....)O importante que muitas se descobriram como pessoas, como sujeito de suas vidas e, por isso mesmo, esto dispostas a deixar o conforto ambguo da esfera privada para enfrentar o mundo l fora e para inventar novos sonhos.

    Refletindo algumas propostas de ao

    Uma das principais questes na reflexo sobre as relaes de gnero no contexto urbano, possibilidades e desafios no sentido de uma transformao da sociedade nessa direo, que ela no pode estar dissociada de uma dimenso mais utpica em torno de transformaes societrias mais amplas, o que passa pela construo de uma sociedade sem contradies em torno de questes alm de gnero, como raa/etnia, idade/gerao, desigualdades de classe ou ainda opo sexual ou religiosa. Falamos da possibilidade de uma sociedade em que seja possvel uma convivncia mais humana entre os diferentes, baseada no princpio de uma possvel e desejvel coexistncia de processos de homogeneizao e diferenciao social.

  • Nessa direo, as pistas de ao, para todos aqueles que buscam a construo de uma nova estrutura societria que reconhece a existncia de diferenas sem abrir mo da luta poltica pela igualdade, passam inequivocamente pela mobilizao em torno das questes que envolvem as relaes de gnero. A transversalidade de gnero nas relaes sociais facilita esse processo, pois uma dimenso que atravessa os vrios campos do fazer humano e, em especial, aqueles voltados para a construo de novas prticas e representaes sociais. Portanto, a incorporao da perspectiva de gnero implica trabalhar com homens e mulheres, mas implica uma necessria nfase em polticas voltadas para a transformao da realidade das mulheres, pois a construo da eqidade de gnero passa pela implementao de aes que permitam a constituio e o fortalecimento do protagonismo social das mulheres, tornando-as no apenas sujeitos sociais, mas principalmente sujeitos polticos. Dessa forma, as aes voltadas para a construo da eqidade de gnero devem, entre outros fatores, atentar para que:

    Sejam incentivadas atividades coletivas (encontros, bate-papos, debates, exibio de filmes, etc.) que envolvam homens e mulheres, em todas as faixas de idade, para que sejam discutidas questes cotidianas ligadas s experincias e representaes de gnero, visando a desconstruo de referenciais tradicionais em torno de temas como: trabalho domstico, educao diferenciada, modelos de paternidade/paternagem e maternidade/maternagem, corpo e sexualidade, mundo do trabalho, imagem da mulher nos meios de comunicao, modelos de masculinidade, entre outros.

    As atividades geradoras de renda que envolvem mulheres tenham capacidade competitiva no mercado de trabalho, aliadas a uma formao para o trabalho (no apenas tcnica, mas uma formao que caminhe na linha da "conscientizao" e envolva temas como auto-estima, organizao, corpo, sexualidade, participao poltica, educao diferenciada, etc.).

    A participao de mulheres em atividades comunitrias em torno de questes ligadas ao consumo coletivo no signifique apenas uma ampliao da sua jornada de trabalho, mantendo sua dimenso estratgica quanto transformao efetiva no contexto social dessas mulheres.

    Haja incentivo para a criao de organizaes autnomas de mulheres, favorecendo seu intercmbio, estimulando aes conjuntas em torno de questes ligadas aos direitos de cidadania, atentando para a articulao com as lutas especficas em torno das desigualdades de gnero.

    Sejam encaminhadas iniciativas de apoio ampliao da educao formal e informal das mulheres, o que passa pelo apoio aos processos de elevao dos nveis de escolarizao (alfabetizao, supletivo, cursos pr-vestibulares) e ainda pela contribuio realizao de atividades de formao continuada, como encontros, seminrios, cursos de curta durao, entre outros.

    As organizaes de mulheres sejam incentivadas participao no delineamento, no planejamento e na execuo de polticas pblicas, tendo clareza para a necessidade dos porqus e do como na insero do recorte de gnero, e possam estar envolvidas na implementao de medidas de construo da eqidade.

  • Seja incentivada a capacitao de representantes da sociedade civil (conselheiros municipais, ativistas de ONGs, membros de organizaes populares, etc.) e de indivduos que ocupem posio estratgica na formao de opinio (professoras/ es de diferentes nveis, assistentes sociais, lideranas, etc.), especialmente das mulheres, para a construo de referenciais crticos em torno dos eixos articuladores das assimetrias de gnero em campos como: educao (por exemplo, a implementao da proposta de reformulao dos contedos curriculares da educao formal, atravs dos temas transversais como gnero, realizao de formaes especficas sobre gnero e sexualidade voltados para educadoras/es etc.); sade e direitos reprodutivos (preveno de cncer de mama e crvico-uterino, (in)formao sobre sexualidade e a possibilidade de decidir quanto ao nmero de filhos, etc.); medidas preventivas e de interveno na questo da violncia contra a mulher (instalao de delegacias especializadas e capacitao de pessoal, casas-abrigo, campanhas informativas, etc.); alternativas de produo de emprego e renda que gerem autonomia econmica e reduo do desemprego (por exemplo, qualificao profissional, alternativas competitivas de produo para o mercado, etc.); infra-estrutura urbana voltada para as necessidades de homens e mulheres (instalao e conservao de banheiros pblicos, lavanderias comunitrias, creches, etc.); segurana pblica (como iluminao e urbanizao de locais "ermos", postos de policiamento comunitrio com a presena de homens e mulheres, demolio de runas e estruturao de reas de circulao de pessoas com atividades de esporte e lazer, etc.); participao poltica (incentivo e capacitao de mulheres para a participao na poltica formal, apoio candidatura de mulheres a cargos eletivos, construo de plataformas polticas com o recorte de gnero, etc.).

    No caso das mulheres chefes de famlia, as polticas pblicas devem levar em considerao a dupla lgica que traz desvantagens sociais para esses sujeitos, tanto como mulheres quanto como chefes de suas famlias, e as conseqncias da vivncia dessa experincia num contexto social fortemente marcado pelas desigualdades de gnero. Assim, uma proposta de ao voltada para alterao nas condies de vida desses sujeitos deve oferecer, entre outros pontos:

    Alternativas e programas de gerao de renda e de formao para o trabalho, visando sua melhor insero no mercado formal e informal.

    Apoio atividade remunerada da mulher que tem filhos em torno da gerao de infra-estrutura urbana, como creches, escola em tempo integral; equipamentos coletivos, como restaurantes comunitrios, etc.

    Iniciativas que incentivem e auxiliem a busca de mecanismos legais de responsabilizao dos pais pela manuteno dos filhos - independentemente da natureza do tipo de vnculo conjugal com as genitoras.

    Programas habitacionais que levem em conta as especificidades desse grupo - como os baixos nveis de remunerao e as reduzidas taxas de vinculao formal ao mercado de trabalho -, facilitando o acesso ao financiamento de moradias subsidiadas ou com reduzidas taxas de juros, bem como tambm para ampliao e reforma de imveis, alm da viabilizao da legalizao das moradias em reas j ocupadas (regularizao fundiria).

  • Acreditar na eqidade de gnero e envidar esforos para a transformao das relaes entre homens e mulheres no contexto urbano uma das importantes vias para a reafirmao de valores e princpios como dignidade humana, justia, eqidade, solidariedade, parceria/cooperao e participao efetiva. Logicamente que "nem tudo uma questo de gnero"; por outro lado, todas as mudanas nas relaes sociais esto de alguma forma ligadas a essa dimenso, fazendo com que gnero no seja a mais importante, mas seja uma instncia necessria para a construo da utopia da sociedade mais justa com a qual sonhamos e que acreditamos colocar em movimento com a nossa prtica cotidiana.

    NOTAS

    1. Artigo produzido para reflexo na Oficina: gnero, moradia e suas relaes no contexto urbano, promovida pelo GTGnero da Plataforma de Contrapartes Novib no Brasil, realizada nos dias 7 e 8 de junho de 2001, em Salvador, sob coordenao do CEAS e CDDH Bento Rubio.

    2. Ver a esse respeito o vdeo Que histria essa de mulheres pedreiras?, produzido por Terezinha Oliveira e distribudo pela Massangana Produes (Recife, 1998).

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