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8/19/2019 Machado, Ecologia Das Extensões Culturais http://slidepdf.com/reader/full/machado-ecologia-das-extensoes-culturais 1/9 Revista FAMECOS  Porto Alegre  nº 39  agosto de 2009  quadrimestral 19 DOSSIÊ ESPECIAL: GT Comunicação e Cultura (COMPÓS - 2009) Quando Marshall McLuhan chamou de “explorações” suas observações e pensamentos sobre os meios de co- municação, não foi apenas o teor das ideias que pertur- bou o cenário acadêmico; o modo de apresentação das proposições, tanto nas performances orais quanto nos escritos em meio impresso, foram igualmente desconser- tantes. Muito já se falou das sínteses e aforismos por meio dos quais McLuhan encapsulava seu pensamento. Ainda que pouco se compreenda sobre as relações deste procedimento com a retórica ou com o método caleidos- cópico de enunciação, muitas são as inferências quanto à vagueza de sua linguagem e à superficialidade de suas formulações. Não é rara a afirmação de que o mes- tre canadense não fez mais do que pronunciar slogans simplificadores sob forma de um discurso inconsistente. Logo, não há necessidade de investimentos analíticos nesta área já coberta, sobretudo, por quem se coloca no contracampo, não apenas de seu pensamento como tam- bém da pragmática experimental da descoberta científi- ca. Além do mais, é preciso lembrar que a resistência às explorações de McLuhan impediu a leitura conseqüente de sua vasta obra, por mais que grande parte dos livros tenha sido traduzida para diferentes línguas, incluindo o português, entre os anos 70 e 80 1 . Sobre o exercício especulativo Ainda que não se possa falar da história das leituras da obra de McLuhan, as demandas em torno de questões que impulsionaram suas investigações, a saber, a pre- sença dos meios de comunicação na cultura e suas inter- ferências nos processos perceptivos e cognitivos, conti- nuam vigorosas. As explorações de McLuhan continuam, pois, desafiadoras naquilo que propõem sobre o papel multiplicador da linguagem e, por conseguinte, das transformações mentais, sensoriais e culturais dos am- bientes comunicativos em que diferentes meios flores- cem. Considerando que as modificações quanto ao modo de produção das mensagens sejam propriedade por ex- celência dos meios – ou melhor, a definição strictu sensu de medium – é natural que o desafio seja não apenas constante como também radicalmente diferente em suas manifestações. Nesse sentido, o trabalho de McLuhan  jamais foi superado. O motivo principal de sua perma- nência deve-se ao fato de sua obra não se restringir apenas à construção de um novo objeto de investigação. Seu mais alto investimento foi a elaboração de um méto- do especulativo 2  e de uma apresentação científica coe- rente com as articulações da própria descoberta. E é aqui que os argumentos contra McLuhan se esfarelam e cres- ce o aspecto desafiador e radicalmente inovador de suas formulações: o redimensionamento da linguagem do objeto – o ambiente enunciativo – na formulação de conceitos e teorias. Ecologia das extensões culturais* RESUMO O principal objetivo deste artigo é examinar as formula- ções de McLuhan que definem os meios como ambientes comunicacionais a partir dos quais é possível situar as interações, bem como as ulteriores transformações cul- turais, dentro de uma perspectiva evolutiva. Nesse sen- tido, a variação é base conceitual das extensões, forma- doras de uma ecologia entre diferentes processos e sistemas culturais. Ao conceber os meios como ambien- te, McLuhan não se restringiu à construção de um novo objeto de investigação: seu mais alto investimento foi a elaboração de um método especulativo e de uma apre- sentação científica coerente com as articulações da pró- pria descoberta. Assim, a metalinguagem construída em suas explorações aponta para a renovação da retórica enunciada pelos próprios meios. PALAVRAS-CHAVE ecologia meios ambiente  AB ST RA CT The main focus of this article concerns on the McLuhan´s assumptions about media as communication environment. From this point we try to understand interactions and cultural transformations inside an evolutionary achievement. In this sense, variation is the conceptual basis of extensions and of the ecological approach among different processes and cultural systems. When McLuhan achieves media as environment he not only presents a new object of investigation: he also creates a new methodological and speculative approach to scientific  presentation. So, the metalanguage built in his explorations declare the renewal of rethoric uttered by media themselves. KEY WORDS ecology media environment Irene Machado Professora da Escola de Comunicações e Artes da USP/SP/BR [email protected]

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Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 39 • agosto de 2009 • quadrimestral 19

DOSSIÊ ESPECIAL: GT Comunicação e Cultura (COMPÓS - 2009)

Quando Marshall McLuhan  chamou de “explorações”

suas observações e pensamentos sobre os meios de co-municação, não foi apenas o teor das ideias que pertur-bou o cenário acadêmico; o modo de apresentação dasproposições, tanto nas performances orais quanto nosescritos em meio impresso, foram igualmente desconser-tantes. Muito já se falou das sínteses e aforismos pormeio dos quais McLuhan encapsulava seu pensamento.Ainda que pouco se compreenda sobre as relações desteprocedimento com a retórica ou com o método caleidos-cópico de enunciação, muitas são as inferências quantoà vagueza de sua linguagem e à superficialidade desuas formulações. Não é rara a afirmação de que o mes-tre canadense não fez mais do que pronunciar slogans

simplificadores sob forma de um discurso inconsistente.Logo, não há necessidade de investimentos analíticosnesta área já coberta, sobretudo, por quem se coloca nocontracampo, não apenas de seu pensamento como tam-bém da pragmática experimental da descoberta científi-ca. Além do mais, é preciso lembrar que a resistência àsexplorações de McLuhan impediu a leitura conseqüentede sua vasta obra, por mais que grande parte dos livrostenha sido traduzida para diferentes línguas, incluindoo português, entre os anos 70 e 801.

Sobre o exercício especulativoAinda que não se possa falar da história das leituras daobra de McLuhan, as demandas em torno de questõesque impulsionaram suas investigações, a saber, a pre-sença dos meios de comunicação na cultura e suas inter-ferências nos processos perceptivos e cognitivos, conti-nuam vigorosas. As explorações de McLuhan continuam,pois, desafiadoras naquilo que propõem sobre o papelmultiplicador da linguagem e, por conseguinte, dastransformações mentais, sensoriais e culturais dos am-bientes comunicativos em que diferentes meios flores-cem. Considerando que as modificações quanto ao modode produção das mensagens sejam propriedade por ex-

celência dos meios – ou melhor, a definição strictu sensude medium – é natural que o desafio seja não apenasconstante como também radicalmente diferente em suasmanifestações. Nesse sentido, o trabalho de McLuhan jamais foi superado. O motivo principal de sua perma-nência deve-se ao fato de sua obra não se restringirapenas à construção de um novo objeto de investigação.Seu mais alto investimento foi a elaboração de um méto-do especulativo2 e de uma apresentação científica coe-rente com as articulações da própria descoberta. E é aquique os argumentos contra McLuhan se esfarelam e cres-ce o aspecto desafiador e radicalmente inovador de suasformulações: o redimensionamento da linguagem doobjeto – o ambiente enunciativo – na formulação deconceitos e teorias.

Ecologia das extensões culturais*RESUMO

O principal objetivo deste artigo é examinar as formula-ções de McLuhan que definem os meios como ambientescomunicacionais a partir dos quais é possível situar asinterações, bem como as ulteriores transformações cul-turais, dentro de uma perspectiva evolutiva. Nesse sen-tido, a variação é base conceitual das extensões, forma-doras de uma ecologia entre diferentes processos esistemas culturais. Ao conceber os meios como ambien-te, McLuhan não se restringiu à construção de um novoobjeto de investigação: seu mais alto investimento foi aelaboração de um método especulativo e de uma apre-sentação científica coerente com as articulações da pró-pria descoberta. Assim, a metalinguagem construída emsuas explorações aponta para a renovação da retóricaenunciada pelos próprios meios.

PALAVRAS-CHAVEecologiameiosambiente

 ABSTRACT 

The main focus of this article concerns on the McLuhan´sassumptions about media as communication environment.From this point we try to understand interactions and cultural

transformations inside an evolutionary achievement. In thissense, variation is the conceptual basis of extensions and of theecological approach among different processes and culturalsystems. When McLuhan achieves media as environment henot only presents a new object of investigation: he also createsa new methodological and speculative approach to scientific presentation. So, the metalanguage built in his explorationsdeclare the renewal of rethoric uttered by media themselves.

KEY WORDS

ecologymedia

environment

Irene MachadoProfessora da Escola de Comunicações e Artes da USP/SP/BR

[email protected]

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É para este contexto que temos direcionado nossoesforço epistemológico. Mesmo à revelia dos estudosdominantes na área de comunicação, particularmenteno Brasil, trabalhamos com a hipótese de que, comogrande humanista, McLuhan fez da linguagem não ape-

nas um objeto de investigação como também um locusprivilegiado dos embates sobre os meios. Sem nada de-ver a um pensamento aberto ao diálogo, mostrou que asformações de linguagem, implementadas pelos meios,favoreceram o desenvolvimento de ambientes diferenci-ados na história da cultura. Neles, estruturas formais degrande complexidade desafiam o exercício especulativobem como o modo de apresentação das descobertas cien-tíficas no vasto campo da comunicação. Por isso, a ar-quitetônica de seu pensamento constrói um ambienteenunciativo servindo-se de termos descritivos, metáfo-ras e gestos conceituais de formação semiótica diversa.

 As explorações de McLuhancontinuam, pois, desafiadorasnaquilo que propõem sobre opapel multiplicador da linguageme, por conseguinte, dastransformações mentais,sensoriais e culturais dosambientes comunicativos em quediferentes meios florescem.

Todo seu esforço se encaminha para compreender opotencial expressivo, sensorial e cognitivo dos signos.Para isso, ele não hesitou em experimentar o própriodesign da comunicação. Logo, uma abordagem minima-

mente coerente com suas explorações demanda compre-ensão não apenas das inovações comunicativas dosmeios, como também de suas proposições nos termos dametalinguagem científica dos objetos sobre os quais es-pecula. A articulação entre a descoberta científica e for-mulação do argumento nem sempre é cogitada, por exem-plo, na compreensão de seu conceito mais divulgado: omeio é a mensagem. Por isso, o entendimento desta for-mulação depende muito mais de um exercício metalin-güístico que redesenhou o papel da retórica do que dasdescrições imediatas da tecnologia.

McLuhan mostrou sintonia com a ideia segundo aqual os conteúdos inovadores reivindicam formas ex-

pressivas igualmente renovadas (como proclamara opoeta V. Maiakóvski). Consciente ou não, demonstrou

ser impossível servir-se de termos velhos para nomearnovas descobertas, tampouco criar termos novos paraidéias antigas, como defendia Charles. S. Peirce. Algumnível de intervenção na linguagem precisaria ser reali-zado quando se tratava de expressar novas concepções.

O conceito depende do termo, mas não se limita a ele. Naverdade, o conceito transcende o termo ao formar con-textos de idéias e representações inter-relacionadas –seus interpretantes lógicos, como diria Peirce. Por isso,tanto em performances orais quanto nos escritos, a lin-guagem e o discurso tornaram-se objetos de reflexão eespaço de renovação conceitual e enunciativa.

Diante disso, é possível dizer que as explorações deMcLuhan são elaborações para cuja expressão contribu-em diferentes classes de signos. Para a formulação deidéias e conceitos concorrem diferentes processos semi-óticos resultando em estruturas formais com graus dife-renciados de complexidade, coerentes, todavia, com oconjunto da formulação.

Em outros estudos procuramos entender a metodolo-gia semiótica das formulações de McLuhan ao recorrer aformas gráficas, fotográficas, gravuras e diagramas comoaliados na formulação dos conceitos (Machado, 2008).Avançando no estudo da metalinguagem científica, échegada a hora de compreender a pragmática de talexercício especulativo. Qual seria, afinal, a finalidade detal empreendimento semiótico? Em última análise, nos-sa indagação quer entender a lógica das relações queestimulam as interações entre diferentes classes de sig-nos na construção do pensamento sobre os meios de

modo a alcançar os ambientes enunciativos em suasdiferentes esferas sensoriais ou lógico-cognitivas. En-contramos, nos próprios conceitos de McLuhan, umapista valiosa. A noção de meio como “extensão”, articu-lada às noções de meios como “tradutores” e “meiocomo mensagem”, constituem a tríade conceitual queoferece a dinâmica formadora de ambientes. Os meiostanto geram ambientes quanto são gerados por eles, daía importância em considerar o elo que vai do produtotecnológico à enunciação, passando, evidentemente pelapercepção e operação cognitiva.

Com isso, se existe uma finalidade da trama conceitu-

al arquitetada, esta só pode ser pensada no contexto daecologia dos sentidos que desencadeia relações, cone-xões, associações entre diferentes esferas. Logo, o estudodos meios, seus conceitos e implicações, ao ser guiadopela lógica das relações – base filosófica do pragmatis-mo3 – visa constituir a ecologia dos sentidos em suasextensões ambientais.

A necessidade de compreender as formulações deMcLuhan do ponto de vista do pragmatismo, que sus-tenta nossa abordagem semiótica da comunicação, inse-re-se no contexto de nossas indagações sobre a ecologiada comunicação – ou da inter-relação de signos na pro-dução de semioses sob forma de linguagens mediadas

por ferramentas tecnológicas (intelectuais, como o alfa-beto, ou técnicas, como as eletrônico-digitais). Neste cam-

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po especulativo se espera alcançar o mecanismo funda-mental da semiose operado pelas linguagens da comu-nicação na formação de ambientes e dos processos inte-rativos. Nesta breve comunicação, interessa mostrar queGregory Bateson (2002) não estava sozinho quando pen-sou a ecologia da comunicação em ambientes enunciati-vos precisos. Os exercícios especulativos das explora-ções de McLuhan oferecem um experimento conceitualvalioso para o florescimento deste campo científico emdesenvolvimento.

 Ambiente enunciativo sob forma de gestos conceituaisPara aqueles que não tiveram oportunidade de ler oumanusear os livros de McLuhan, a reprodução a seguir

pode, naturalmente, trazer à lembrança uma composi-ção que se tornou comum nas histórias em quadrinhos –e não haverá nenhum equívoco em tal associação. Defato, desde que os desenhistas do gênero descobriram aspossibilidades gráficas para a representação gráfica desons, o traçado de sonoridades, como as onomatopéias,passou a constituir um vocabulário elementar das repre-sentações acústicas nas histórias gráficas em meio im-presso. Na página do livro O meio são as massa-gens: uminventário de efeitos, que McLuhan escreveu em parceriacom o designer Quentin Fiore, o quadrinho não compor-ta uma narrativa, mas abriga a formulação de um pensa-

mento em que se especula sobre a propriedade ambien-tal do som, ou melhor, o som como uma informação quesimplesmente ocupa o espaço acústico em toda sua ex-tensão. Contudo, não é da representação do som que setrata. O quadrinho desenha na página impressa umefeito acústico realizando um gesto conceitual cuja fina-lidade é distinguir espaço visual e espaço acústico comoestados culturais da civilização humana.

No texto verbal situado no espaço em branco, no cantodireito da página, se afirma o seguinte:

O ouvido não tem preferência particular por um“ponto de vista”. Nós somos envolvidos pelo som.

Este forma uma rede sem costuras em torno de nós.Costumamos dizer: “A música encherá o ar”. Nun-

ca dizemos: “A música encherá um segmento parti-cular do ar”.

Ouvimos sons vindos de toda parte, sem jamaishaver um foco. Os sons vêm de “cima”, de “baixo”,

da “frente”, de “trás”, da “direita”, da “esquerda”.Não podemos fechar a porta aos sons automatica-mente. Simplesmente não possuímos pálpebras au-ditivas. Enquanto o espaço visual é um continuumorganizado de uma espécie uniformemente interli-gada, o mundo auditivo é um mundo de relaçõessimultâneas (McLuhan; Fiore, 1969, p.139).

O gesto conceitual cumpre a função de situar o ambi-ente da experiência cultural in praesentia, naquilo que eletem de mais significativo: o confronto entre visualidadee sonoridade do ponto de vista de seus efeitos, no caso,os grafismos. A representação acústica de um som ex-plosivo, prática singela e comum às histórias em quadri-nhos, adquire o status de um eloquente gesto conceitualna medida em que a representação não se configuraindependentemente da percepção, criando o ambientesensorial onde não apenas os espaços acústico e visualinteragem como também permitem a emergência do pró-prio conhecimento sobre o que se afirma. Se, por umlado, a representação acústica do som emerge no grafis-mo explosivo do desenho, por outro, evoca a experiênciasensorial que traduz o movimento do som no espaço.Trata-se, portanto, de um efeito de sentido conjugadopela percepção sensorial acústico-cinética do movimen-

to sonoro no espaço da página.Apresentar a formulação teórica no contexto vivo daenunciação, articulando, para isso, propriedades visu-ais dos signos gráficos como tradução acústica não dei-xa de ser uma forma de se apresentar os efeitos de ummeio em relação aos outros de modo a contribuir paracriar ambientes integrados. Dos efeitos emergem propri-edades elementares dos meios de comunicação, respon-sáveis pela sua capacidade de traduzir percepções cri-ando, assim, ambientes sensoriais de interaçõesdiferenciadas.

O pensamento de McLuhan, contudo, não pára aqui:

sua página teórica exercita o caráter do meio. O gestoconceitual desenhado na página pode não ser um gestono sentido tátil do termo, o que não impede que eleprojete movimentos e percepções enunciadas a cada vi-rada de página que o leitor executa ao manusear o livro.A enunciação torna-se o ambiente vivo tanto da percep-ção quanto do conceito4. O efeito explicita sua condiçãomultiplicadora: pode ser tanto efeito de sentido (do pon-to de vista sensorial) quanto efeito de sentido (do pontode vista intelectual). Afinal, em português a palavrasentido designa ambas as acepções. O efeito pode ser,assim, entendido, como capacidade cultural interpreta-tiva que une percepção e cognição. Assim entendemos

ser a composição do gesto conceitual em grande partedos escritos de McLuhan5.

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Ler a reprodução da página de um estudo teóricocomo quadrinho não deixa de ser uma demonstração datese de McLuhan sobre os meios como extensão e, conse-qüentemente, como efeito de um em sua relação comoutro. Contudo, como a percepção não é fenômeno isola-

do e implica um processo cognitivo, a demonstraçãocumpre uma função pragmática de experimentação da-quilo sobre o que se especula. Quer dizer, o quadrinho sófoi deslocado de seu contexto narrativo para compor oconceito porque, em sua dimensão sensorial, o repertó-rio das formas gráficas não se limita ao espaço visual,mas o atravessa e, ao fazê-lo, convoca outra dimensãosensorial e cognitiva. O trabalho que envolve percepçãoe conceito como exercício pragmático de experimenta-ção de idéias é o que estamos considerando “gesto con-ceitual” no ambiente enunciativo da formulação. O ges-to conceitual organiza a experiência recorrendo adiferentes classes de signos de modo a oferecer a argu-mentação em sua variedade gráfico-visual (seja enquan-to expressão alfabética ou pictórica). Assim entendemosas explorações de McLuhan no contexto experimentaldas indagações epistemológicas afinadas com o espíritocientífico que reconhece o poder dos signos e das lingua-gens para a comunicação das descobertas elaboradaspelo raciocínio.

A formulação em pauta neste momento é a constitui-ção dos efeitos do ponto de vista de suas reverberaçõesde uns sobre os outros de modo a criar um ambiente.Tanto a página graficamente constituída se reporta àpercepção sonora, quanto o efeito acústico contribui para

o conhecimento do espaço em suas extensões sensoriais.Trata-se, evidentemente, de introduzir um dos conceitosmais caros do pensamento de McLuhan: o tema dosmeios como extensões conjugadas no ambiente de modoa compor com ele uma ecologia.

Ecologia como envolvimento integradorUm dos traços marcantes do conceito de ambiente é avivacidade das interações no presente das relações numevento. Sendo animado tanto por disposições temporaisquanto espaciais, o ambiente não pode prescindir desua configuração anímica, em constante modificação.

McLuhan não perde de vista a etimologia da palavra –ambiente em sua derivação “do grego perivello: golpeartodos os lados ao mesmo tempo” – ao conceber seucaráter evolutivo integrador, como se pode ler no frag-mento.

Uma característica primordial do ambiente é suainvisibilidade ou inconsciência. Parece um envol-vimento no processo de filogenia. Cada nova etapade crescimento se converte em um ambiente paratodas as etapas precedentes. Porém, temos consci-ência tão somente das etapas precedentes ou doconteúdo do ambiente (McLuhan, M. apud

McLuhan, E.; Zingrone, 1995, p.329).

A disposição anímica espácio-temporal situada his-toricamente concentra o foco conceitual da definição demeio como ambiente, sobretudo porque os meios de co-municação são inconcebíveis fora do contexto históricoespecífico: aquele que marcou as descobertas da eletrici-

dade. Por isso, McLuhan entende que os meios, em suaontogênese (emergência), não podem ser consideradosfora de sua filogênese (evolução) uma vez que não ape-nas criam ambientes, como também, eles próprios, sãoambientais. Explico. Do ponto de vista tecnológico, osmeios são tão somente veículos. Contudo, do ponto devista dos signos que produzem linguagem e, por conse-guinte, mediações, as semioses constituem sistemas vin-culados aos mesmos princípios que regem os sistemasvivos. Conjugam, assim, um ambiente vivo e podem sercompreendidos pela dimensão evolutiva, isto é, pelaontogênese geradora da espécie e pela filogênese queimpulsiona suas transformações.

 As extensões não são nemsucedâneos tecnológicos, nemagregações mecânicas, masefeitos de sentido.

Em síntese: trata-se de considerar a composição orgâ-nica na elaboração do conceito, uma mutualidade deefeitos de sentido (sensorial e intelectual) a delinear oconhecimento formulado. Logo, o ambiente (dos meios)é concebido em sua ambiência (histórico-científica). Gra-ças a esta composição orgânica, McLuhan entende astransformações tanto do alfabeto na criação da culturatipográfica, quanto da eletricidade na consolidação dacultura eletrônica. Ambos convulsionaram a cultura emudaram definitivamente os rumos das interações, daspercepções e dos modos de conhecer o mundo.

Entendidos como processos de transformação históri-

ca, os meios podem, então, ser compreendidos comoextensões sensoriais. Nem mesmo a prótese mecânicapode ser acoplada sem que haja uma composição orgâ-nica. Por exemplo: uma prótese que não compõe com ocorpo um organismo é rejeitada, eliminada. Logo, a di-mensão orgânica é fundamental para se pensar a exten-são de um ponto de vista humano (ou humanístico) enão mecânico e determinista. Este é o pressuposto con-ceitual que sustenta a compreensão de McLuhan demeio como ambiente gerador de ambientes e, por conse-guinte, núcleo das formulações sobre a ecologia dasextensões culturais em seu traço elementar: a interaçãosocial no ambiente tecnológico. A compreensão ecológi-

ca das extensões é uma evidência do envolvimento hu-mano com as tecnologias, contudo, é bom que se elimine

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do horizonte qualquer automatismo, sobretudo porqueo envolvimento diz respeito a diferentes processos inter-pretativos de transformação cultural. Trata-se um lega-do filosófico conceitual que exige um mergulho na prag-mática dos dispositivos na constituição de seus próprios

ambientes vivenciais sem perder de vista a condiçãoevolutiva (ontogênese e filogênese).As várias extensões examinadas por McLuhan, tanto

no livro Understanding Media (Os meios de comunicaçãocomo extensões), quanto no The Medium is the Massage (Osmeios são as massa-gens), são exploradas do ponto de vistade sua configuração ecológica, quer dizer, enquanto com-posições organizadas em ambientes. As extensões nãosão nem sucedâneos tecnológicos, nem agregações me-cânicas, mas efeitos de sentido. Focalizada em sua eco-logia, a extensão põe em xeque o papel das sucessões,como afirma McLuhan:

[...] o fato de uma coisa seguir-se a outra não signifi-ca nada. A simples sucessão não conduz a nada, anão ser à mudança. Assim a eletricidade viria acausar a maior das revoluções, ao liqüidar a se-qüência e tornar as coisas simultâneas (McLuhan,1971, pp.22-23).

A ecologia se define a partir das extensões sensoriaiscuja articulação central, a exemplo de um sistema nervo-so, se ramifica em linguagem. Sua principal articulaçãoé igualmente transformada, consolidando-se como meio.Tal é o que deduzimos das palavras de McLuhan repro-

duzidas no seguinte fragmento:

A meu ver, a ecologia cultural tem bases razoavel-mente estáveis no sensório humano e qualquer ex-tensão do sensório pelos prolongamentos tecnoló-gicos tem influência apreciável no estabelecimentode novos sistemas de relações entre os sentidos.Como as línguas são tecnologias, no sentido deconstituírem prolongamento ou expressão (exterio-rização) de todos os sentidos ao mesmo tempo, fi-cam elas mesmas imediatamente sujeitas ao impac-to ou intrusão de qualquer expansão mecânica de

algum sentido. Isto é, a escrita afeta diretamente apalavra não só suas inflexões e sintaxe, como tam-bém em sua enunciação e usos sociais (McLuhan,1977, p.63).

Considerando que as extensões não são um fim em simesmas, mas têm como meta a interação no tempo e noespaço, a ecologia torna-se, igualmente, ação integrado-ra. Esta noção, contudo, não é observada a partir dastecnologias elétricas. Em sua compreensão do tato comosentido integrador por excelência, McLuhan observa queos gregos tinham o senso de complementaridade muitodesenvolvido, como se pode ler a seguir.

Os gregos tinham a noção de um consenso ou de

uma faculdade do “senso comum”, capaz de tradu-zir um sentido em outro, de modo a conferir, aohomem, consciência. Hoje, quando, pela tecnolo-gia, prolongamos todos os nossos sentidos e todasas partes de nosso corpo, sentimos a ânsia da ne-

cessidade de um consenso externo entre a tecnolo-gia e a experiência que eleva a nossa vida comunalao nível de um consenso mundial. Uma vez atingi-da uma fragmentação mundial, seria natural6pensarnuma integração mundial. Dante sonhou essa uni-versalidade do ser consciente para a Humanidade;ele acreditava que os homens não passariam de unscacos quebrados até que se unissem numa consci-ência inclusiva (McLuhan, 1971, p.128; 1998, p.108).

Quando McLuhan defende que seria “natural” pen-sar numa integração mundial no contexto das tecnologi-as elétricas, seu pensamento se debate no contracampode uma mentalidade desintegradora, nada natural:

O que hoje vemos, no entanto, em lugar de umaconsciência social eletricamente ordenada, é a sub-consciência particular ou o “ponto de vista” indivi-dual, impostos, a rigor, pela velha tecnologia mecâ-nica (McLuhan, 1971, p.128; 1998, p.108).

O que temos não é o natural, integrador, mas o frag-mentário; daí a necessidade de uma visão ecológica dasextensões, não isolada ou individualizada. Em tempo: atecnologia é integradora, ainda que seu uso não o seja.

Esta distinção faz toda a diferença. Na verdade, as ex-tensões revelam, igualmente, o processo de envolvimen-to de um meio com relação ao outro, uma vez que é este oprincípio gerador das tecnologias.

Toda tecnologia – afirma McLuhan – cria novastensões e necessidades nos seres humanos que aengendraram. A nova necessidade e a nova respos-ta tecnológica nascem de nosso envolvimento coma tecnologia já existente – num processo ininterrup-to (McLuhan, 1998, p.183 (tradução nossa); 1971,p.209).

O envolvimento não deixa de definir a ação das exten-sões no ambiente em sua configuração ecológica, pormais estranhas que possam ser as conexões dos elemen-tos envolvidos, fazendo valer a idéia da não naturalida-de do envolvimento – o que deixa de lado qualquerpossibilidade de apreensão da ecologia. Afinal, é dafilogenia que se trata.

Tentemos elucidar este ponto acompanhando as ob-servações de McLuhan a respeito da roda como exten-são dos pés. Do ponto de vista da ontogênese, a roda éapreendida como extensão de deslocamento no espaço,seja para desbravar, seja para desenhar novos modelos

de ocupação. A introdução da roda trouxe conseqüênci-as filogenéticas: condicionou a criação de estradas e

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estas se encarregaram de multiplicar os direcionamen-tos centro-periferia. Para McLuhan aqui reside um dadoprimoroso para se flagrar a origem do caos urbano detodas as cidades na marcha de seu desenvolvimentoindustrial. A roda, portanto, é a extensão dos pés e da

própria caminhada – de ruas e estradas. A percepçãoecológica ganha mais nitidez quando “caminho” e“caminhada” são transformados em correlatos nãodiretamente explicitados, porém, naturais e orgâni-cos, a exemplo do avião que voa como um pássarosem servir-se dos pés.

 A ecologia das extensões explora,sobretudo, a integração e a

complementaridade dos meios nacultura. Os meios em suaambiência criadora de ambientes– a ratios da própriatransformação.

No encadeamento apresentado, a organicidade doprocesso pode ser constatada pelos elementos envolvi-

dos: pés, roda, estrada, ruas, cidades, automóveis, avi-ões. O impacto da integração do imponderável surgequando McLuhan introduz um meio como o cinema naescalada das extensões da roda:

Um dos mais avançados usos da roda é o da câmerae do projetor de cinema. Não deixa de ser signifi-cante que este agrupamento de rodas extremamentecomplexo e sutil tenha sido inventado para quealguém ganhasse uma aposta sobre se, numa corri-da, os quatro pés de um cavalo levantavam-se ounão simultaneamente do chão. Esta aposta foi feita

entre o pioneiro da fotografia, Edward Muybridge eo criador de cavalos Leland Stanford em 1889. Noinício, uma série de câmaras foi disposta, uma aolado da outra, para que cada uma fixasse um fla-grante das patas em movimento. A câmera e o proje-tor de cinema foram desenvolvidos a partir da idéiade reconstituir mecanicamente o movimento dospés. A roda, que começou como extensão dos pés,viria a dar um grande passo evolucionário nas sa-las de cinema. Mediante uma enorme aceleraçãodos segmentos de uma linha de montagem, a câme-ra cinematográfica enrola o mundo num carretel edepois o desenrola e o traduz numa tela. O cinemarecria o movimento e o processo orgânico levando o

princípio mecânico até o ponto de reversão – e estaestrutura comparece em todas as extensões huma-nas, quando elas atingem o máximo de desempe-nho. Quando o avião decola, a estrada desaparece;ele se torna um míssil, um sistema de transporte

auto-suficiente. Nesse ponto, a roda é reabsorvidana forma de um pássaro ou de um peixe – o avião noar (McLuhan, 1971, p.207-208).

Evidentemente o projetor de cinema não consta doprograma de design da roda, de sua ontogênese. Contu-do, no processo das interações ambientais o própriodesign se modifica filogeneticamente e, retomando a ci-tação, “A roda, que começou como extensão dos pés,viria a dar um grande passo evolucionário nas salas decinema”. Trata-se, pois, de um “salto evolucionário”,um ponto de vista evolutivo no programa de design dossistemas em interação ecológico-ambiental.

A ecologia das extensões explora, sobretudo, a inte-gração e a complementaridade dos meios na cultura. Osmeios em sua ambiência criadora de ambientes – a ratiosda própria transformação. Daí que o espectro das exten-sões examinadas por McLuhan seja tão variado: do alfa-beto aos autômatos; das rodas aos armamentos; dossons profundos do universo aos satélites. Fora da ecolo-gia, as extensões são prolongamentos isolados e as for-mulações de McLuhan se desarticulam em cacos, per-dendo a possibilidade de exprimir consciência.

O exercício pragmático na análise de casosSe a ecologia possibilita explorar o potencial integradordas extensões, definindo o envolvimento de umas comas outras, é também da natureza ecológica a formaçãodo continuum das relações ambientais simultâneas. Damesma forma como o tato serviu para que os gregosformulassem a noção de um senso comum integrador, osom desempenhou papel semelhante em culturas áu-dio-táteis, sugerindo a McLuhan a idéia de integraçãoecológica que ele encontra nas extensões dos meios decomunicação. Nesse sentido, o caráter ambiental apro-xima o “som” da “luz” e define a audiovisualidade naecologia de suas extensões. Se som é ambiental porque

ele traduz a própria presença no espaço, a luz tambémexibe sua condição ambiental ao dimensionar continui-dades. Este raciocínio é o que leva à concepção da eletri-cidade como ambiente gerador de ambientes, ou seja,dos meios. Sem eletricidade os meios simplesmente nãoexistiriam. Por isso a eletricidade é o fundamento detudo que se pretende compreender sobre a ecologia dasextensões nos ambientes de meios.

Alfabeto, na cultura da escrita, e eletricidade, na cul-tura de meios, são, igualmente, veículos de signos pro-vocadores das mudanças que introduziram transforma-ções históricas da cultura. Da mesma forma como oalfabeto se revelou o grande empreendimento que atri-buiu ao homem o poder de comunicação pela lingua-

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gem, a eletricidade foi responsável pela geração do am-biente sensorial no espaço de relações. A comunicaçãopela linguagem se torna especializada pelos meios. Nãose trata de sequência, mas de interação ecológica.

A ecologia das extensões encontra-se realizada, tal-

vez de modo mais direto, nos estudos de McLuhan sobreos códigos culturais agrupados em duas classes, defini-das como quentes (de alta definição) e de frios (de baixadefinição). Aqui o continuum marcado pelas reverbera-ções de uns sobre outros numa simultaneidade de açõesaparece com toda força teórica na constituição dos casosexaminados. Nesse aspecto, McLuhan não hesita emtransformar suas hipóteses em exercícios especulativos,em casos para observação e análise. É assim que acom-panhamos suas formulações sobre os meios quentes emeios frios em que a televisão se torna o experimentoarticulador dos pressupostos da ecologia das extensões.Daí ser o caso privilegiado de suas análises.

Da mesma forma como o mito de Cadmo e o mito deNarciso serviram a McLuhan como modelos semióticosda ecologia das extensões, a obra do dramaturgo Willi-am Shakespeare torna-se um rico manancial de exem-plos para se reconstituir importantes gestos conceituaisdos meios em suas extensões. O drama Romeu e Julieta foio ponto de partida para se examinar a ecologia de ummeio frio como a televisão. Em seu livro Os meios decomunicação como extensões do homem propõe um desafio:

Um manual bastante completo para o estudo dasextensões do homem poderia ser organizado com-

pilando-se citações de Shakespeare. Não chegaría-mos a pensar na televisão se alguém nos propuses-se, como adivinha, estes versos de Romeu e Julieta?

Mas, veja! Que luz é aquela, que passa pela janela?Ela fala – e não diz nada (McLuhan, 1971, p.23).

Com base na imagem que se mostra, mas não diznada, McLuhan deriva o traço participativo dos meios.Contrariamente aos meios quentes como o livro, o cine-ma, a fotografia, os meios frios convidam a participaçãodos seus interlocutores. A televisão é um meio frio e,

como tal, “incentiva a criação de estruturas em profun-didade no mundo da arte e do entretenimento criandoao mesmo tempo um profundo envolvimento” (McLuhan,1971, p.350). O convite à participação torna o espectadorum participante ativo, “o espectador é a tela” (McLuhan,1971, p.351) e a tevê um meio produtivo. O espectadorprecisa entreter sua mente ao completar a precariedadeda linguagem do meio, como se pode ler na formulaçãoque se segue:

A imagem da TV, visualmente, apresenta baixo teorde informação. Ela não é uma tomada parada. Nãoé fotografia em nenhum sentido – e sim o incessantecontorno das coisas em formação delineado pelo

dedo perscrutador. O contorno plástico resulta daluz que atravessa e não da luz que ilumina, forman-do uma imagem que tem a qualidade da escultura edo ícone, mais do que a da pintura. Três milhões depontos por segundo formam a imagem-chuveiro

que o telespectador recebe. Destes, ele capta algu-mas poucas dúzias, com as quais forma uma ima-gem (McLuhan, 1971, p. 351).

Se existe uma finalidade datrama conceitual arquitetada,esta só pode ser pensada nocontexto da ecologia dos

sentidos.A noção de atravessamento dos pontos de luz, de

incompletude, de mosaico plano, bidimensional, sem ailusão da profundidade tridimensional, cria o ambientede envolvimento que o espectador preenche de modocinético e tátil (McLuhan, 1971, p.352). A imagem toca eaciona a interação de todos os sentidos. Aquilo queMcLuhan entendeu como tatilidade da imagem da TV éo que cria o ambiente ativo de efeitos sensoriais e com-plementares, afinal, “o modo tátil de perceber é imedia-

to, mas não é especializado” (McLuhan, 1971, p.376).Ao que McLuhan conclui:

A televisão é menos um meio visual do que tátil-auditivo, que envolve todos os nossos sentidos emprofunda inter-relação. Para as pessoas há muitohabituadas à experiência meramente visual da ti-pografia e da fotografia, parece que é a sinestesia,ou profundidade tátil da experiência da TV, que asdesloca de suas atitudes correntes de passividade edesligamento (McLuhan, 1971, p.378).

A ecologia das extensões demonstra que, quando asociedade passa a operar uma nova tecnologia, não é aárea de incisão desse meio aquela que sofre maior afeta-ção, mas sim todo o sistema onde ela está inserida. Aoconsiderar essa afetação, formula uma das mais notá-veis noções semióticas do efeito de sentido, sobretudoquando ele afirma: “qualquer impacto altera a ratios detodos os sentidos” (McLuhan, 1971, p.84), não é a suces-são o que importa; esta em si não leva a nada. O queimporta é o efeito de sentido que faz com que o efeito dorádio, por exemplo, seja a visualidade ou o efeito dafotografia seja a audição: a conjugação do som e da voz,num caso, e do enquadramento, em outro, é produzidade maneira tal que o efeito surge como se fosse produzi-

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da pelos códigos que lhes são específicos. Porque sãoambientais, os efeitos operam sínteses estruturais e ja-mais podem ser considerados isoladamente. Os meiosaudiovisuais ou áudio-táteis não podem ser desmem-brados sem o risco de decompor sua estrutura.

Considerações finaisO método comparativo de observar as transformações –a filogenia que impulsiona uma coisa em direção a outra– McLuhan explorou em seus estudos sobre a constela-ção de eventos que produziram transformações do mun-do oral áudio-tátil, para o mundo alfabético e tipográficoda visão e da leitura e deste para o mundo das sensoria-lidades eletrônicas. Acompanhou as transformações queos instrumentos, criados com finalidades culturais, ope-ram na mente. Tudo porque a “exteriorização ou expres-são de nossos sentidos, que é a linguagem e a fala, é uminstrumento que tornou possível ao homem acumularexperiência e conhecimento de forma a ser fácil a suatransmissão e o máximo uso possível” (McLuhan,1977, p.22).

A ratios, contudo, da linguagem oral se desenvolveucriando extensões que não constavam dos limites de suaconfiguração oral. Não foi a fala – medium  – que setransformou, mas os signos da linguagem, ou melhor, osinterpretantes gerados pela ação pragmática dos signosda comunicação nos ambientes culturais. Em termos deMcLuhan equivale dizer: a tecnologia elétrica desperta acompreensão do homem para a sua maquinaria e o ho-mem entra em contato com seu cérebro, fora de seu crâ-

nio, e com seus nervos, fora de sua pele. O ambientetorna-se lugar de interações: o homem entra em contatocom sua condição de signo que ele cria para controlá-lo.Essa é uma visão cibernética da extensão provocadapelo ambiente (McLuhan,M. apud McLuhan,E.; Zingro-ne, 1998, p. 317). Quando se trata de compreender aambiência em que os meios de comunicação produzemmensagens, extensão é igualmente a transformação tra-dutória de uma energia, ou transdução, que não deixade ser um efeito de sentido. Meio é a mensagem significana era eletrônica que os meios criam um novo ambientehumano de percepção e transformação, com um conteú-

do totalmente novo. A própria cultura é considerada emtermos ambientais. Por isso, a história da cultura redi-mensiona suas tradições em termos dos códigos cultu-rais nela desenvolvidos. No âmbito desta investigaçãoisso quer dizer que o fio condutor da história dos meiossão as mediações semióticas. Esse procedimento recupe-ra um dos aspectos fundamentais da semiose na cultu-ra: a filogenia, vale dizer, as transformações dos siste-mas mobilizadas pela transmutação de energia e,consequentemente, pelas emergências dela resultantes.

É hora de reformular nossa premissa de partida. Seexiste uma finalidade da trama conceitual arquitetada,esta só pode ser pensada no contexto da ecologia dos

sentidos – desencadeador de relações, conexões, associ-ações entre diferentes esferas de comunicação na cultu-

ra – porque as extensões estimulam envolvimentos decaráter diferenciado, tal como se observou entre pés,rodas, estradas, avião e cinema. As extensões definem-se como prolongamentos dinâmicos e imprevisíveis: noambiente, meios e processos se implicam mutuamente,

daí a modificação ser uma via de mão dupla.Nesse caso, a proposta que apresenta o estudo dosmeios como ambiente e no ambiente enunciativo de suasformulações nos coloca diante não apenas do objetocomo também do método especulativo que o examina.Com isso, a metalinguagem científica aponta para umanova retórica (Nakagawa, 2008) que os próprios meioselaboram em sua escalada ecológica. No contexto danova retórica de caráter ecológico, o exercício especulati-vo fundado no pragmatismo avança em outra direção:não se trata mais de afirmar que os meios produzemmudanças de percepção – este foi o trabalho de McLuhande que não se pode mais duvidar. Resta conhecer anatureza das mudanças cognitivas que as diferentespercepções estimulam. Ou melhor, trata-se de conhecero campo de incidência e dos prolongamentos da ratios.Estamos longe, pois, da afirmação dos automatismos daalegada influência. Afinal, tais prolongamentos reve-lam diferenças de graus e de espécies, o que demandainvestimentos especulativos de envergadura conceitualde grande complexidade FAMECOS

NOTAS* Versão modificada do artigo apresentado na reunião

do GT Comunicação e Cultura por ocasião do 18º

Encontro Anual da COMPÓS, Belo Horizonte, PUC-Minas, junho de 2009. Agradeço aos colegas do GTpela discussão, pelo voto de confiança e pelas cola-borações valiosas que espero ter incorporado favora-velmente.

1 Referências completas no final do artigo.

2 Atente-se para a distinção entre especular e investi-gar. O caráter heurístico das formulações de McLuhanexplicita o caráter especulativo de suas exploraçõesque são apresentadas para ulteriores desenvolvimen-

tos e comprovações, estes, sim, trabalhos de investi-gação. Como todo ato abdutivo, a especulação é infe-rência de base hipotética.

3 Pragmatismo, tal como o define Peirce (1980): ramoda ciência em que a investigação que tem no horizon-te as finalidades. A ação é, portanto, o fim do homem.

4 Ainda que não se possa esmiuçar aqui os conceitosde gesto e de enunciação, vale lembrar que a nossametalinguagem está amparada pelas formulações deVilém Flusser e Mikhail Bakhtin. Gesto, para Flusser(1994, p.8), é uma categoria para denominar uma

classe específica de movimentos: aqueles movimen-tos corporais que expressam uma intenção não cau-

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sal, mas voluntária. Tanto expressam quanto articu-lam significados suscetíveis de leitura. Nesse caso,os gestos promovem a interpretação culturalmentecodificada. Em seus estudos sobre o enunciado con-creto, Bakhtin (1982) define enunciação como espaço

das relações dialógicas da heteroglossia, ou seja, dainteração de diferentes pontos de vista e, sobretudo,dos que excedem o campo de visão específico, unin-do o dito e o não-dito.

5 Em outro momento, examinamos os gestos conceitu-ais que foram rigorosamente compostos em The Me-chanical Bride, primeiro livro de McLuhan, publicadoem 1951. Os textos gráfico-visuais de jornais e anún-cios, já por essa época, compunham textos de análisecomo um mosaico argumentativo em que o designgráfico era usado como criador de relações, funcio-nando como verdadeiras partituras de leitura damatéria em pauta.

6 No original inglês consultado a frase é a seguinte:“When we have achieved a world-wide fragmentati-on, it is not unnatural to think about a world-wideintegration” (McLuhan, 1998, p.108). Optamos pormanter a construção na negativa em vez de citar aversão em português cuja escolha lexical é mais acer-tada, porém, esconde a idéia do não-natural e dosubjuntivo, tornando-se afirmativa. A frase em por-tuguês é a seguinte: “Uma vez atingida uma frag-mentação mundial, não deixa de ser natural pensar

numa integração mundial” (McLuhan, 1971, p.128).

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