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Mãe, a Lua está Estagada? PENÉLOPE NO MUNDO DA LUA

Mãe, a Lua está estagada

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Page 1: Mãe, a Lua está estagada

Mãe, a Lua está Estagada?PENÉLOPE NO MUNDO DA LUA

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FICHA TÉCNICAEDIÇÃO: Luís Sá FernandesTÍTULO: Mãe, a Lua Está Estagada? - Penélope no Mundo da LuaAUTOR: Luís Sá Fernandes

ILUSTRAÇÕES: Teresa Augusto

CAPA: Nuno FerreiraREVISÃO / PAGINAÇÃO: Paulo Resende

1.ª EDIÇÃO

LISBOA, 2010

IMPRESSÃO E ACABAMENTO: Agapex

ISBN: 978-989-96571-0-6DEPÓSITO LEGAL: 304307/10

© LUÍS SÁ FERNANDES

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda.Lg. Machado de Assis, lote 2 — 1700-116 Lisboawww.sitiodolivro.pt

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Ao meu filhote,Mateus…

…Que a tuaVidaSeja

PlenaComo

UmLuar

DeAgosto!

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Luís Sá Fernandes

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A Lua, luminosa, sorridente, bochechuda e redondinha, brilha

no escuro, lá no alto do firmamento, iluminando a noite… Zangou-

se com o Sol, seu namorado, porém por ele é iluminada…

Os poetas fazem-lhe poemas… À sua luz, beijam-se os namo-

rados e, lá no alto dos serros, uivam os lobos chorosos, enquanto as

bruxas voam em seu redor…

O planeta terra, a seus pés, ajoelha-se… Esse berlinde vítreo,

enorme e azul… Onde as marés ondulam, baixam e sobem, ao seu

sabor…

Os continentes iluminam-se na escuridão; as cidades adorme-

cem ao som da televisão…

Portugal beija o Atlântico. Este lava o seu rosto com o sal e a pi-

menta de antigas epopeias… Cheira a Brasil, a África e a Oriente…

Debaixo do seu nariz, ergue-se a cidade de Lisboa; por onde Ulisses

passou… Ao lado Paço de Arcos…

Numa casa amarela, numa noite de calor, uma menina brincava

no parapeito de uma janela aberta com o seu boneco preferido, a

Galinha Pita, de penas fofinhas e a crista tombada para o lado…

Penélope, de olhos brilhantes e rabinos, transpirava a curiosidade…

Como uma esponja, os seus sentidos sugavam tudo…

O céu estava particularmente brilhante e estrelado… O cami-

nho de Santiago, a via láctea, era uma grande auto-estrada, sem por-

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tagens… Não havia nem princípio nem fim… Tudo era imenso…

E no meio daquilo tudo aquela grande lâmpada... Cheia de bura-

cos... «É um grande queijo, muito mal cheiroso» – pensava ela...

– Penélope vem tomar banho e deixa de olhar para a Lua!

– Já vai, Mãe!

Muito ela brincara nesse dia…Estava toda suja... Zangara-se

com o Tomás no infantário. Rebolaram os dois na lama. Este quis

roubar-lhe a Galinha Pita. A menina não partilhava brinquedos,

muito menos a Pita, a sua grande, verdadeira, amiga... Esta escuta-

va-a sempre e não reclamava, por ela não comer a sopa... A sua Mãe,

por vezes, era muito chata...

Muito ela chapinhou na banheira com os animais da sua quinta

em miniatura... Depois veio o jantar... A maldita sopa (sim, porque

nenhum miúdo gosta de sopa) e valeu a pena esperar pelos benditos

morangos da sobremesa.

Depois, sentou-se na sua cadeirinha encanada, com florzinhas

desenhadas, a ver os desenhos animados. A sua Tia Bitis comprara-a

no Alentejo. Era a sua cadeira e ninguém se sentava nela... Aquando

da visita de umas primas suas, ela arranhara-as, mordiscara-as por

estas se atreverem a sentarem-se no seu pequeno trono... Se não

fosse a VóCina a separá-las, não sei, não!

O cansaço apoderou-se dela... O dia fora longo. Despediu-se

do Pai, meio estremunhada, agarrando nos seus longos bigodes e ao

colo de sua Mãe deixou-se dormir...

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A Mãe levou-a, enfim, para a sua cama coberta com uma colcha

cheia de cadeirinhas: umas encarnadas, outras azuis, outras ama-

relas. Muito gostava ela de desses pequenos tronos onde ela era a

Rainha e os bonecos, os seus súbditos!

– Ai que aconchego! Hum, estes lençóis estão tão lavadinhos,

tão cheiosos... Ai que chôninho... Foi um dia longo... Boa noite, Pita!

A galinha, de olhos abertos, estava cuidadosamente deitada ao

lado da menina rabina, com o lençol até ao pescoço... Era a sua

companhia nocturna... O seu Anjo da Guarda...

Penélope aninhou-se, bocejou duas vezes e adormeceu...

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O seu sono foi bastante inquieto... Sonhou com o infantário...

O Tomás, a Mariana e a Sofia roubavam-lhe todos os seus brinque-

dos, um após outro... E depois devolviam-nos... Era um põe e tira

constante... O desespero apoderou-se de Penélope... E acordou.

Estava toda tanspiada... Que pesadelo desagradável...

Hum, que estranho! A janela do quarto estava aberta... O luar

penetrava no quarto, sorrateiramente... Teria sido o vento?

ZUPT! ZUPT!

Algo se mexia no breu...

ZUPT! ZUPT!

Alguém ou algo estava dentro do quarto...

Sentiu um leve toque no braço esquerdo... Algo lhe tapou a

boca... Sentiu o sabor a penas... Era a malandra da Galinha Pita!

– Chííííu! Passa-se qualquer coisa debaixo da tua cama!

A menina esfregou bem os olhos... Estaria a sonhar? A Galinha

Pita a falar consigo? Impossível!

SRECHT! SCRECHT! BLIP! BLIP!

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Mãe, a Lua está Estagada?

Uma pálida luz surgiu por debaixo da cama… Esta foi aumen-

tando gradualmente. Aumentou... Aumentou... Aumentou...

Até iluminar o quarto...

Ela sempre detestara a parte inferior da cama. Aí perdera, mis-

teriosamente, muitos bonecos. Para além disso, havia também mui-

to pó... Enfim, era uma zona muito sombria, oculta; onde moravam

estranhas criaturas, bastante esquisitas...

De repente, vindos do nada, o quarto polvilhou-se de seres

muito pequenininhos e esverdeados, com umas antenas muito bi-

zarras... Estes estavam armados com umas lanças do tamanho de um

palito... Seria uma invasão?

Pasmada, Penélope observou um grupo de verdinhos a desdo-

brar uma rampa descartável e metalizada que dava acesso ao tampo

de vime da sua cadeirinha encanada. Quando terminaram essa tarefa,

estenderam um tapete rolante, vermelho, até ao seu topo...

Ouviram-se clarins...

Tá-Tátara-Tá! Tá-Tátara-Tá! Tá-Tátara-Tá!

De estandartes na mão, dois verdinhos, cabeçudos e altivos,

deslizaram lentamente até ao seu cume. Os estandartes que empu-

nhavam tinham estampado, sobre um tecido de fundo azul, um pla-

neta vermelho. À sua volta, dez estrelinhas amarelas. Quinze palmos

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depois, seguiam outros dois verdinhos, cabeçudos, de olhos ovais e

cheios de medalhas. Os clarins estrepitaram outra vez...

Tá-Tátara-Tá! Tá-Tátara-Tá! Tá-Tátara-Tá!

Um dos verdinhos medalhados desenrolou um papiro e discur-

sou, com uma voz metálica:

– Saudações cordiais do Planeta Vermelho,

mais conhecido pelo planeta Marte! Vimos em

missão de paz! Somos da raça dos VERDUSCOS,

povo pacífico e trabalhador. Vimos por este

meio solicitar a vossas excelências, a vossa

ajuda... Ah... Eu sou o General Bleep!... Ao

meu lado, o Tenente-Coronel, Zblog!

– Está bem, está bem! Agora, saíam do cimo da minha cadeiri-

nha! É minha! E depois vão-se embora do meu quarto, pois quero

dormir!

– Mas, menina...

A malandra da galinha Pita bateu as asas e esvoaçou até à extre-

midade da cama:

– Ajuda? Que tipo de ajuda?

– Tivemos uma pequena avaria na nossa

nave... Não foi bem uma avaria... faltou-nos

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o combustível... (e apontou para debaixo da

cama). Sem combustível não podemos cumprir

a nossa missão...

Penélope e a Pita debruçaram-se na cama e para seu espan-

to, boquiabertas, viram uma estranha aeronave com uma forma de

melancia...Vários verdinhos, de fato macaco azul, circundavam-na.

Estavam a fazer-lhe uma profunda vistoria.

– Missão! Que missão? Questionou Penélope.

– É secreta. Não podemos contar.

– Vá lá, eu pometo não contar a ninguém!

– Hum... Está bem!

O general Bleep deu um grande salto até à orelha de Penélope

e segredou-lhe:

– A Lua está estragada!

– ESTÁ ESTAGADA? Disse a menina em voz alta.

– Era para ser segredo! Agora, estragaste

tudo!!!

Os verdinhos olharam uns para os outros, cheios de medo e

horrorizados...

– ESTÁ ESTAGADA?! Disseram todos ao mesmo tempo.

– Não está nada estragada! Aquela bolachuda continua lá bem

no alto a iluminar-nos! – exclamou a Pita.

– Sim, sim... Mas não lhe falta nada?

– Deixa ver... Parece que alguém lhe deu uma trincadela...

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Mãe, a Lua está Estagada?

– É uma boa observadora, sim senhor. Pois

bem, ontem a Lua estava cheia, insuflada. Al-

guém ou algo comeu-lhe um bocado...

Penélope saltou da cama... E não é que era verdade! A lua pa-

recia uma letra do alfabeto que a Vó Cina lhe ensinara... Sim, um

“C” de “Cão”; de “Coelho” e de “Cobra”. Detestava cobras, essses

vermes venenosos...

– E quem a runhou?

– Ninguém o sabe. Disse o Tenente-Coronel,

Zblog. A única pista que temos, é uma mensa-

gem de S.O.S emitida pelo o chefe dos minei-

ros. Ei-la...

BZOING!

Ao colocar um disco prateado no chão, do tamanho de um bo-

tão, projectou-se, em pleno ar, uma imagem tridimensional. Um

ratinho magrinho, magrinho, com um capacete de mineiro, surgiu.

Este, ao mesmo tempo que falava, fazia festas ao seu farto bigode.

Porém, havia muitas interferências na emissão e, de quando em vez,

perdia-se o som...

“A quem receber esta mensagem... Algo de terrível vai aconte-

cer à Lua... Precisamos da vossa ajuda... Estamos prestes a ser...”

Subitamente, a projecção foi interrompida... BZOING!

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Um silêncio sepulcral espalhou-se no quarto...

– Uma tragédia, meus amigos! Uma tragédia!

E nós sem combustível! – suspirou o general Bleep – O

que fazer?

Pita deu umas pancadinhas nas costas do general...

– Estejam descansados que eu e a Nisca (Penélope) vamos aju-

dá-los na vossa penosa tarefa! O.K.?

– Contem connosco! – disse Penélope – O que é que precisam?

– Zblog, chama o engenheiro mecânico

Anilha, por favor!

De fato macaco azul e de chaves-de-fendas na mão, um verdi-

nho, bastante oleado falou e disse:

– Bem, para que a nossa nave volte a voar,

necessitamos de água bastante gelada, de

preferência doce, em estado sólido. Por ou-

tras palavras, precisamos de gelo...

– A minha Mãe tem muito disso no frigorífico. Esperem só um

momento! Eu já volto!

Abrindo devagarinho a porta do quarto, a menina evaporou-se

na escuridão do corredor...

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Mãe, a Lua está Estagada?

«Ai como eu gosto de trincar gelo! Acho que vou provar um

pouco…»

Pé-ante-pé, muito cuidadosamente, passou pela porta do quar-

to dos seus pais. Ouvia-se o roncar barulhento do seu Pai. Parecia

um avião a descolar...

Desceu as escadas cuidadosamente, pois estas rangiam um pou-

co e não queria ser detectada... «Eis a porta da cozinha!» Mal chega-

va à maçaneta e, do nada... sentiu as suas costas a serem fariscadas.

Era a sua cadela, a Laica. Esta tinha o nome da cadela russa que voou

pela primeira vez no espaço.

– Chíííu! Está quietinha, pô favô! Se alguém vier, avisa. Depois

dou-te um biscoito, está bem?

A Laica deu-lhe uma lambidela no nariz e afastou-se.

Penélope, rodando lentamente a maçaneta, penetrou na cozi-

nha. Agora havia outro problema: «Como abrir a porta do congela-

dor?» Esta ficava lá tão no alto!

– BÉU, BÉU, BÉU! Ladrou a Laica no corredor... Alguém vi-

nha ali!

«O que fazê? Escondê-me. Aonde? Debaixo da mesa!»

Coitadinha da menina! Ficou meio entalada, entre o pé da mesa

e um banco de cozinha!

Passado uns breves segundos, abriu-se a porta e umas grandes

pantufas, com uns grandes pés peludos entraram... Era o seu pai!

Este era um verdadeiro gigante, com os seus grandes braços e as

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suas longas pernas... Dirigiu-se ao frigorífico e, o mais estranho, era

que ele falava consigo próprio:

– Estou com a garganta seca... Faz cá um calor!

A garrafa de água estava vazia...

– Ninguém a enche nesta casa, tenho que ser sempre eu!

Depois de a ter enchido, retirou o gelo do congelador e serviu-

se de um copo de água. Três pequenos cúbitos de gelo fizeram mui-

to barulho ao caírem no lava-loiça de inox. Felizmente, com o sono,

o seu pai esqueceu-se de repor o saquinho de gelo no frigorífico,

voltando para o quarto ainda bastante ensonado...

«Que sorte! Que bela oportunidade!» – pensou Penélope. Rapi-

damente, esticando-se para o lava-loiça, a menina soltou dois cubos

de gelo da sua prisão e carregou-os para o quarto... Estes queima-

vam-lhe as mãos, porém tinha que vencer a dor... Obviamente que a

Laica foi recompensada... com uns belos biscoitos crocantes...

Mal chegou ao quarto, os cubitos foram rapidamente inseridos

no depósito da nave.. e os motores começaram a funcionar...

BRUMM! BZOING! BRUMM! BZOING!

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– Então, e não me levam com vocês? Belos amigos que arran-

jei! – interrogou, indignada, a menina. – A Lua também precisa da

minha ajuda!

Numa das janelas da nave, Zblog deu uma espreitadela, apon-

tando para o canto do quarto...

– Não te preocupes! Enquanto foste à co-

zinha, fizemos umas ligeiras adapta-ções

na tua cadeirinha. Sabes, és muito grande!

Não cabes na nossa nave. Agora, ouve bem

as seguintes indicações – para activar o

Hiper-Salto, diz:”Lua”, para desligar, diz:

”Eclipse”. Quando voltares para casa dizes:

”Terra”. Compreendeste?

Penélope ficou espantadíssima. Os pés da sua cadeirita tinham

umas estranhas luzinhas incrustadas na madeira. Para além disso, as

suas extremidades tinham umas espirais; pareciam umas molas...

Deviam ser especiais, digo, espaciais... «Que estranha tecnologia

aquela!? Que esquisito!?» – pensou a Pita.

– Pita, minha amiga, ficas aqui para contar tudo à minha Mãe,

ela não pode ficar peocupada com o meu desaparecimento, tá bem?

– Mas... mas eu quero ir contigo salvar a Lua. Não me deixes

ficar aqui sozinha, por favor!

– Não, não! Ficas aqui! Está decidido, está decidido!

Penélope ajeitou o seu pijamita, cheio de ursos pardos; sen -

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tou-se na cadeira encarnada e disse:

– LUA!

As espirais da cadeira ficaram incandescentes; as luzinhas come-

çaram a piscar...

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10... 9... 8...7... 6... 5... 4... 3... 2... 1... 0.... IGNIÇÃO!

Uma espiral de vento cósmico envolvia a menina, criando um

remoinho. Esta agarrou-se com unhas e dentes à cadeira – tinha

medo de cair...

TOING! PLOING!

Com o impulso das molas e no meio do remoinho de vento,

Penélope atravessou o quarto, como se fosse um verdadeiro fantas-

ma. Todo o seu corpo era transparente, excepto os seus cabelos,

pois ficaram brancos... E subiu, subiu, subiu!

A sua casa ficou cada vez mais pequenina; depois a cidade; de-

pois Portugal, depois a Europa e o Atlântico... STOP!

Durante um certo tempo, a Cadeirinha Mágica ficou parada so-

bre o globo terrestre. Que vista panorâmica! O planeta Terra não

era bem redondo, era achatado nos seus polos. À sua volta circunva-

gavam satélites... Eram centenas... Todavia, tudo aquilo era lindo...

O azul dos mares, os tons acastanhados dos continentes e as nuvens

algodão transformavam aquela paisagem numa aguarela... Era um

grande olho azul que observava o universo...

A última coisa que viu foi a nave dos verdinhos a passar rente a

si... Depois... Depois, sentiu um novo impulso... A cadeirinha apon-

tou para a Lua... e desapareceu no firmamento...

PLUFT!

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Da Terra, a Lua parecia uma pequena bola de ténis de mesa... À

medida que a pequena astronauta se aproximava do seu objectivo, a

Lua aumentava, aumentava, aumentava!

Que paisagem! Tantos buraquinhos! A Lua era mesmo um gran-

de queijo, mas não cheirava mal!

A cadeirinha ziguezagueou sobre a superfície lunar, até pousar

como uma pena em solo seguro...

Alguém já tinha estado por aquelas bandas, pois havia restos de

uma nave... Esta deveria ter sido muito grande... Nas imediações,

uma bandeira, cheia de estrelas e riscas encarnadas, erguia-se no

horizonte...

«Esses senhores deveriam estar cheios de pessa, certamente!»

Dali tinha-se uma vista privilegiada do nosso planeta azul.

«Quando fô gande quero uma casa nesta zona, com vista para a

Terra! Ela parece uma bola de cristal, enoime! No entanto, é preciso

estimá-la, para não ficar vazia e seca como a Lua…»

Aquela aridez engolia uma menina sentada numa cadeirita en-

carnada…

Bizarro, ela conseguia respirar! Mas na Lua não há oxigénio?

Como estamos no Mundo do Faz-de-Conta, tudo é possível!

– Por favor, poderia levantar o seu pesado rabinho, pois tenho

a mão presa! – era a malandra da Galinha Pita!

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Eu não te disse para ficares em casa!? Agora os meus Pais vão

ficar peocupados comigo!

– Prefiro estar contigo! Sou a tua protectora! E o que farias sem

mim? Nada!

– Agora, deixa estar… Não há nada a fazê… Já agora, poque

vieste comigo?

– Bem, no último momento estava bastante hesitante… Mas a

solução veio como um relâmpago – era preciso ajudar-te! Ainda o

remoinho estava a formar-se e… PIMBA! Dei um salto e fiquei com

a mão presa… nas tuas zonas baixas…

– O que é feito dos Verdinhos? Ainda não chegaram?

– Devem estar perdidos ou ficaram outra vez sem combustível

– o depósito pode ter alguma vazão…

Esperaram quinze minutos… e nada!

– Bem, não podemos esperar eternamente… Ora, vamos lá en-

tão investigar a Lua!

Ao levantar-se da cadeirita, Penélope deu um grande impulso…

e saltou cinco metros no ar!

– SOCORRO, O QUE É ISTOOOOO?!

A sua amiga Pita bateu freneticamente as suas asas e agarrou-a

pelo pé, puxando-a para baixo… e… CATRAPUM! Caíram

de quatro, as duas, no chão… Ela nunca tinha visto uma galinha a

voar! Mas ali todas voariam, certamente!

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– É a bendita lei da gravidade! Aqui, simplesmente, não há! –

Respondeu-lhe a Pita.

– Então, é ilegal! As leis são para sê cumpidas, foi o que a minha

Mãe disse!

Todavia, passaram horas a fio a saltar, até se habituarem à gra-

vidade zero… Andavam em câmara lenta… No fim do treino, já

conseguiam dar pequenos saltos e seguir um rumo em linha recta!

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No fundo, agradeciam a inexistência de gravidade, pois não se can-

savam quase nada a saltitar… Depois, fartaram-se!

Com as mãos e asas afuniladas e encostadas na boca e no res-

pectivo bico, as duas amigas começaram a gritar, ao mesmo tempo:

– VERDINHOS, ONDE ESTÃO? ESTÁ AQUI ALGUÉM? Ó,

DA CASA!

Nada de nada! Ninguém lhes respondia… Ter-se-iam perdido?

Não podiam esperar mais…

A Pita maluca e a Penélope saltitaram até ao monte mais próxi-

mo, para ver se avistavam algo…

POING! POING! CATRAPOING!

E bem lá no fundo da linha do horizonte viram um reflexo…

Algo brilhava…

– O que será?

– Não faço a mínima ideia… Talvez a nave dos Verdinhos… Se

calhar, tiveam um acidente! Vamos ver!

E lá foram elas…

POING! POING! CATRAPOING!

Pareciam dois gafanhotos aos pulos… Em pouco tempo che-

garam ao local… E surpresas das surpresas! Era um veículo lunar,

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mais especificamente, um carro! Um carro bastante esquelético…

Provavelmente, a sua carcaça teria sido comida por uns abutres…

Mas não havia abutres na Lua? Este tinha uns grandes pneus e uma

antena paranóica, digo, parabólica… Ficara, talvez, sem gasolina…

Ou então o condutor chateou-se por estar eternamente na bicha da

ponte, pois a chave ainda estava na ignição… Mas ali não havia nem

pontes nem estradas…

Pita sentou-se de asas ao volante do Luna-Carro. Ela nunca ti-

rara a carta de condução, mas vira muitos filmes de acção; onde os

carros davam piruetas no ar… Pita rodou a chave… e nada… À se-

gunda tentativa, uma luzinha acendeu-se no tablier… Pita colocou

as mãos nas mudanças… e o carro começou a deslizar…

«Que estanho, o carro não deita fumo pelo escape… Não deita,

poque nem escape tem! Deve ser um carro anti-poluente, movido a

energia solar…» – pensou ela.

Fosse o que fosse, andava e bem! Assim, nunca se cansariam…

– STOP, PÁRA! Tenho que ir buscar a minha cadeirinha mági-

ca… É o nosso bilhete de volta para a Terra!

Penélope, correu e pulou até à cadeirita. Agarrou-a e, colo-

cando-a próxima da antena paramédica, lá foram elas… Explorar

aquele mundo fantástico… Talvez, um dia, aparecessem num pro-

grama de televisão da National Geographic Society1, vistas ao longe pelo

1 Revista científica americana.

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telescópio Hubble2, a andar naquele veículo escanifobético... Então fi-

cariam ricas e famosas!

VRUUMM! VRUUMM! VRUUMM!

Vira para a esquerda, vira para a direita! Sobe a ravina! Desce o

planalto! Salta daqui, salta dali!

2 Telescópio espacial que circunvaga o Planeta Terra.

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– Em que direcção vamos? Perguntou a Pita.

– Sempre em fente! Andar em linha recta é o caminho mais

seguro… Assim, temos menos pobabilidades de nos pedemos… Digo

eu…

– Esperemos encontrar alguma coisa… no meio deste deserto

branco…

Andaram, aproximadamente, dez quilómetros, quando… a Lua

começou a tremer… A superfície lunar vibrava como gelatina…

Das suas entranhas rugia um leão…

ROOOAAA! ROOOAAA!

Travaram a fundo!

IIIIIIHHHH!

Seria um tremor de terra? Pior! Algo aproximava-se das nossas

amigas perigosamente… Esse estranho fenómeno perfurava o sub-

solo como se fosse um berbequim na madeira… Que grande túnel

ele escavava por debaixo das crateras lunares! Será que trabalhava

para o Metro de Lisboa?

Penélope e a Pita gelaram de pavor! BBRRR! Iriam ter um

segundo encontro imediato do terceiro grau?

E não é que o montículo de rochas se quedou mesmo debaixo

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Mãe, a Lua está Estagada?

do seus bigodes… Algo vinha à superfície… Seria um submarino?

Umas grandes garras brotaram da terra… Depois, um looongo

nariz em forma de broca… e finalmente uns olhos minúsculos…

Era uma toupeira lunar, gigantesca!

A galinha tonta, com o pânico, saltou para o colo da menina!

– Ai que medo!

A toupeira lunar cheirou-as bem… SNIF! SNIF! E

perguntou:

– O que é que vocês fazem por aqui? Não sabem que estão a

impedir o meu caminho! Estou com pressa! Tenho que ir trabalhar!

Penélope encheu o peito de coragem, levantou-se do assento e

proclamou:

– A Lua está estagada! Viemos em seu socorro! E o senhôa…

não se apesenta?!

– Que falta de educação a minha! É de estar com a cabeça sem-

pre enfiada na terra! Perdoem-me os meus modos mas estou um

pouco atrasada!

Olhou para a esquerda, olhou para a direita…

– Estou atrasada e perdida! Eu e a minha mania de não pôr os

óculos…

Tirou uns óculos do bolso e colocou-os! Mais uma vez, olhou

para a esquerda, olhou para a direita…

– Ena, pá, devo estar a léguas do ponto de prospecção! É hoje

que me despedem! Bem, minhas senhoras, vou-me apresentar…

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E as nossas amigas lá conheceram a toupeira Furona. Esta traba-

lhava numa mina de queijo fundido e estava perdida! Ah, para além

disso, nascera e vivia na Cidade do Requeijão, em Luna Plena3… As

3 Lua Cheia, do Latim.

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nossas amigas, por sua vez, também se apresentaram...

Depois de limpar bem os óculos, a Furona olhou-as de alto a

baixo:

– Sim senhora, uma menina e uma galinha de aviário circulam

numa estranha viatura para salvar a Lua… É verdade…(esfregando

o queixo) Algo aconteceu lá para Leste… bem para Leste… Não se

sabe bem o quê… só que desde ontem…

A galinha ia-se transformando em todas as cores! Parecia uma

bomba preste a explodir! E… BUMM! – a Pita explodiu fu-

riosa.

– Não gosto que me ofenda! Sou uma galinha das melhores

capoeiras… sua… sua toupeira… cegueta…

– Desculpe, desculpe, não era para ofender…

– Desde ontem, o quê? – interrompeu Penélope – Vá lá, de-

sembuche!

– Desde ontem, que a Cidade do Requeijão, em Luna Plena, come-

çou a desmoronar-se… Não sejam tão impacientes, está bem? Mas

deixa cá ver…

Olhou-as, mais uma vez, de alto a baixo… e…

– Valha-me Plutão! As eleitas, as salvadoras… Uma menina e…

uma Fénix de aviário ou de capoeira… Não interessa, a profecia

concretiza-se! Valha-me, Plutão!

– Lá está você outra vez a ofendê a minha amiga! Ela não é ne-

nhuma Fénix de aviário, está bem?! Olhe, nós só queemos ajudar…

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e… p’ra já… gostaríamos de saber onde estamos?

– No Mar da Tranquilidade, especificamente! Foi aqui que os

humanos aterraram pela primeira vez… Até aqui deixaram lixo!

(apontando para o carro) Estou a ver que gostam de mexer no lixo!

– Olhe, para já isto não é lixo! É um veículo ligeiro! E estava

apenas abandonado! O que é achado não é roubado!

E a malandreca da Penélope fez-lhe uma grande careta!

– BRRRRRR!!!– Bom, deixemo-nos de conversas e avancemos! – interrompeu

a Pita que não era de toda maluca… Qual a direcção dessa terra do

requeijão? Norte, Sul, Este ou Oeste?

– Estejam tranquilas… Eu indico-lhes o caminho…

E lá foram elas, por ali fora, seguindo aquele rastro de entulho

lunar…

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4

Foram duas horas sempre a andar...

Aqueles tons cinzas tornavam-se monótonos se não fossem os

solavancos provocados pela irregularidade do terreno...

A Pita conduzia o melhor que podia, seguindo aquele rastro

tubular... Aos poucos e poucos o piso foi-se alterando... Deixou de

ter a consistência de um terreno duro e sinuoso, ficando um pouco

mais mole, bastante plano, da cor do leite... Era uma autêntica alca-

tifa! Parecia queijo fresco... Penélope deslizou o seu dedo na super-

fície lunar e saboreou-o... E era mesmo... Deveriam estar bastante

próximos de Luna Plena...

Ah, como ela gostava de queijo! Não interessava o tipo. Des-

de o Flamengo até ao Queijo da Serra; com bolor ou sem bolor...

Tudo era bom.... Porém, diziam as más-línguas que provocava o

esquecimento... Isso era falso, pois Penélope tinha uma memória

fotográfica e comia toneladas de queijo! Além disso, sendo aquele

queijo fresco, não engordava! A Mãe chamava-lhe Light e dizia que

fazia bem ao colesterol... Fosse lá isso o que fosse...

Qualquer coisa confundia-se naquela inóspita paisagem...

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Mãe, a Lua está Estagada?

As ameias da grande muralha de Luna Plena impunham-se a

qualquer viajante que por ali passasse... O mesmo aconteceu com as

nossas amigas... Ficaram simplesmente extasiadas com a sua impo-

nência... «Tanto queijo fresco!» – pensou a menina...

Circundaram a muralha pela direita e pararam em frente a um

grande arco em ogiva. Era a entrada para a cidade... Um portão,

também este grandioso, impedia a passagem para o interior da me-

trópole... Mesmo assim, ouviam-se os ruídos da população... O ran-

ger das carroças, as brincadeiras das crianças, os vendedores ambu-

lantes... e sons indecifráveis...

A toupeira Furona emergiu do estômago da Lua... Ali, tinha que

andar à superfície. No interior da cidade, eram proibidas escava-

ções... Além disso, o metro ainda não tinha sido inventado...

– Ó DA GUARDA...

– UÁÁÁ! Quem vem lá?

Um ratinho bem magricela elevou-se no topo da muralha e,

à medida que falava, bocejava... Este era muito preguiçoso, com

certeza...

– Vimos em paz! Queremos falar com o Governador, urgente-

mente!

– Já vai... É só um momento... NICO, ACORDA! ABRE AÍ O

PORTÃO...

Aqueles guardas eram bastante desmazelados e ociosos... A ci-

dade devia ser bastante pacífica... Com aquele tipo de segurança...

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Luís Sá Fernandes

Os grandes portões, feitos de casca de queijo, rangeram um

pouco e entreabriram-se... Entraram...

Os edifícios eram todos branquinhos, feitos de queijo fresco.

Pareciam caixas de fósforos empilhadas umas nas outras... Umas

térreas, outras de dois andares.

Por sua vez, as ruas eram muito estreitas. Salvo a avenida prin-

cipal que conduzia ao mal cheiroso Mercado do Bolor, localizado na

Praça Camembert... Aí tratavam-se de negócios... de queijo, claro!

Este era o epicentro da cidade. Todavia, a avenida prosseguia... na

direcção do Palácio do Governador...

Que confusão de gente... Digo, de ratinhos... Estes estavam

muito ocupados na distribuição de leite... Possivelmente, para

transformá-lo em queijo... Sim, porque o queijo é um produto lác-

teo, tal como os iogurtes, os gelados, etc...

Já os ratinhos maiores, os Porquinhos-da-Índia, puxavam car-

roças de vários tipos de queijo... Estes vinham das fábricas e iam

para o mercado...

À passagem dos viajantes, parte da população fazia uma pau-

sa nos seus afazeres para observar aqueles visitantes estrangeiros...

Nunca tinham visto uma carroça a andar sozinha... Que maravilha!

Quando passaram no mercado bolorento e mal cheiroso (chei-

rava a pés), a maior parte dos ratinhos não lhes prestaram a mínima

atenção, pois estavam a leiloar um lote de Queijo de Azeitão, muito

raro... Parecia a Bolsa de Nova Iorque... Os ratinhos amontoavam-

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Mãe, a Lua está Estagada?

se numa bola de neve felpuda, de pé, com um braço no ar e, lá do

alto, um ratão de lápis na orelha ia tomando atenção às ofertas... até

que... VENDIDO!Mal estas palavras foram ditas, um som monstruoso, crepitoso,

rasgou a Lua...

BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

Tudo parou! O solo tremeu muito, as muralhas serpenteavam;

pareciam um canavial ao vento. Por sua vez, as bancadas do mer-

cado ruíram, as paredes das casas racharam-se. Centenas de rati-

nhos saíram para a rua em pânico... Tudo aquilo não durou mais de

dez segundos, mas parecia uma eternidade... Depois, tudo voltou à

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Luís Sá Fernandes

normalidade… Os ratitos levantaram-se, sacudiram-se, e come-

çaram a fazer uma contabilização dos estragos, para recomeçar a

reconstrução.

– Esta brincadeira dura há longos dias… Algo aconteceu no

Lado Obscuro da Lua, diz-se… Os tremores são sucessivos. De doze

em doze horas, aproximadamente, o queijo lunar desintegra-se…

Depois, temos que fundi-lo para reciclá-lo... – suspirou a Furona.

Esta estava com os nervos completamente alterados… Os seus

olhos estavam agora escavados por duas olheiras profundas…

Felizmente não houve feridos…

Deveria ser horrível viver naquele medo permanente… O futu-

ro parecia incerto…

Os nossos amigos prosseguiram em marcha lenta, em direcção

ao Palácio do Governador… O veículo lunar, por vezes, tinha di-

ficuldades em ultrapassar os destroços no meio da via pública. Os

bombeiros socorriam primeiro os seus conterrâneos, só depois a

desobstruíam.

A VóCina contara-lhe, uma vez, que em Lisboa, há muito tempo,

acontecera a mesma coisa… Toda a cidade fora arrasada… E foi

um tal de Marquês, o de Pombal, que a reconstruiu…

Por fim, chegaram ao palácio do Governador, um majestoso

edifício, circular, de colunas gregas, com uma grande cúpula esbu-

racada… Parecia um saleiro gigantesco… Foi ali que a Furona se

despediu das suas amigas. Tinha faltado toda a manhã ao trabalho

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Mãe, a Lua está Estagada?

e ainda havia muito por fazer nas profundezas das Minas de Brie!

Abraçaram-se e depois partiu...

Penélope nunca gostara de despedidas... Um «até breve» foi o

suficiente...

As portas douradas do “saleiro” estavam entreabertas… Um

mordomo, de negro e branco, esperava a comitiva à porta… «As

notícias por aqui andam à velocidade da luz!» – pensava a meni-

na, enquanto ajeitava o seu pijamita. Tinha que estar minimamente

apresentável para resolver assuntos de Estado!

Subiram uma grande escadaria, com um grande corrimão em

mármore. O ratinho-mordomo empurrou as portas basculantes de

ouro branco e entraram num grande salão…

– EIS OS DIPLOMATAS DA TERRA! – anunciou.

O salão era muito comprido. As paredes estavam ladeadas por

dezenas de quadros com ratinhos de olhar sério e penetrante. Pro-

vavelmente, seriam antigos governadores… Continuemos a descri-

ção…

Ao fundo da sala, bem no fundo, estavam sete ratinhos, engra-

vatados, sentados numa mesa com a forma de um quarto-crescente

cujas pontas estavam viradas para a comitiva… Nessa mesma pare-

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de, ao fundo, projectavam-se num grande écran, sem som, imagens

televisivas da recente catástrofe… «Na Lua também há televisão!»

– falando a galinha Pita com os seus botões. E como ela gostava de

televisão! Principalmente dos desenhos animados e dos programas

da natureza… Passava horas sentada ao sofá, fixada naquele qua-

dradinho de sensações visuais, enquanto a Penélope brincava aos

supermercados com as amigas.

O ratito do meio levantou-se, lentamente, na sua elegância. Este

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Mãe, a Lua está Estagada?

tinha algumas dificuldades em andar, pois tinha uma bengala de

apoio… E caminhou aos soluços na direcção das nossas amigas...

Era um ratito idoso, mas muito sorridente!

– Sejam bem-vindas à nossa pequena Cidade! Pequena em

tamanho, mas grandiosa no trabalho. Há séculos que as esperáva-

mos... A profecia parece concretizar-se...

– Profecia? Que profecia? Eu nem sei o que isso é! – resmun-

gou a galinha Pita – E já agora, quem é o senhor?

– Roquefort, Governador Roquefort... encantado! – e fez uma pe-

quena vénia.

O ratinho aproximou-se das duas companheiras de viagem e

continuou o seu discurso:

– Uma profecia é uma previsão antecipada de acontecimentos

futuros. É um boletim meteorológico de factos que ainda não se

realizaram; é saber o número da lotaria, antes de ter havido o sor-

teio... Percebe?

– Sim, sim! Mas, ao menos, avancemos! Qual, então, essa pro...

procefia?

No topo do punho de prata da bengala havia um pequeno bo-

tão. Roquefort, apontou a sua bengalita para o centro da sala e cal-

cou-o...

Um pedestal elevou-se do solo... No seu topo uma bola de cris-

tal...

– Eis o Oráculo de Esquecimento...

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Luís Sá Fernandes

No seu interior, uma nuvem de fumo começou a bafejar a dita

profecia... Letra após letra, palavra após palavra, as frases surgiam...

esfumadas... Enquanto isso, Roquefort lia a profecia em voz alta,

pois sabia que a menina Penélope ainda não aprendera a ler, nem

a escrever:

«No princípio do milénio, a Lua tremerá nas mãos de Marte! Do planeta

azul, uma princesa virá no dorso de uma Fénix, ave mitológica, para evitar,

o inevitável fim de todos nós...»

– Oh, e tinha logo que ser eu... E eu que nem tenho sangue

azul... Isto quer dizer que estavam à nossa espera?! Mas não fizeram

nada para tentar resolver a situação?

– Não, porque pensámos que não passasse de um fenómeno

natural! Mas depois algo de estranho aconteceu... Uma equipa de

prospecção, liderada pelo chefe mineiro Dentinho, partiu para uma

região para lá do Entreposto lunar de Finis Luna1, em Oceanus Pro-

cellarum2. Alguma coisa fora do normal se passava por ali... Pensa-se

que a expedição penetrou no Lado Obscuro da Lua, Luna Incognita3,

dado que no Lado Iluminado as causas daqueles tremores constan-

tes não eram visíveis... Todavia, até ao momento, não obtivemos

respostas... E o mais grave é que perdemos o contacto rádio com

1 O Fim da Lua, do Latim.2 Oceano das Tempestades, do Latim.3 Lua Desconhecida, do Latim.

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Mãe, a Lua está Estagada?

a expedição... Sabem, a Lua não é como o planeta Terra que gira

sobre si próprio. É por isso que vocês têm os dias e as noites... O

nosso eixo é fixo. Aqui é sempre dia e no Lado Obscuro é sempre

noite... Embora a profecia se esteja a concretizar, nunca confiámos

nos humanos... Sempre tentámos resolver os nossos próprios pro-

blemas... Há milhares de anos que vos observamos directamente.

Vocês destroem a natureza e civilizações...

– Mas nem todos nós somos assim, felizmente! Cometemos cé-

tos erros no passado, mas estamos a tentá ultrapassá-los... Ninguém

é pefeito... – suspirou Penélope. Bem tentara defender a humanida-

de, no entanto tinha consciência que os homens não respeitavam a

Natureza. Zangara-se muitas vezes com a sua Tia Bitis por esta deitar

habitualmente papéis para o chão... Ela própria, por vezes, de quan-

do em vez, arrancava flores no jardim, mas era para oferecer à sua

Mãe... Era com boa intenção... Não era por mal...

O telefone, em forma de búzio, tocou... TRIMMM! TRIMM!

Um dos ratinhos engravatados atendeu-o...

– É para si, excelência... do Museu Arqueológico do Queijo Bolorento.

O engravatadinho passou-lhe a chamada...

– Sim... sim... Não me diga! Vamos já para aí! Pousou o auscul-

tador... Há novidades em relação ao Lado Obscuro! O Ratinho Poei-

ras, o director do museu, encontrou novas pistas num dos manus-

critos...

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Luís Sá Fernandes

E lá foram eles... Penélope, a galinha Pita e o ratinho Roquefort,

no cimo do Luna-Carro, iam observando o grau de destruição pro-

vocado pelo último terramoto, digo, o último lunamoto...

Pedaços de queijo estavam espalhados pelo chão... As estradas

estavam ainda a ser desimpedidas... Passaram pelo mercado... este

já estava vazio... Viraram à direita e seguiram sempre em frente pela

Avenida Armstrong. Ao fundo, um edifício impunha-se numa ar-

quitectura ousada. Um quarto de queijo de vidros espelhados, re-

flectia nas suas janelas a cidade amarelada, de casas, quase todas

elas, rasteiras. Alguém comera os outros três quartos... Alguma Pe-

nélope gigante, cheia de fome, provavelmente!

Um museu é um lugar sagrado. Representa a cultura, a história

de um povo... É a nossa maior herança... Todas as peças de museu

percorreram o tempo, são sobreviventes de um naufrágio. Foram

tocadas por trabalhadores, famílias, sábios e chegaram até nós...

Umas inteiras, outras em cacos... Mas estão ali, expostas ao nosso

olhar curioso...

O museu já estava fechado. Um ratinho, porteiro, abriu-lhes as

portas... À entrada, um grande letreiro prateado: «o Passado é con-

selheiro do Presente e amigo do Futuro». Roquefort, sem cerimónias,

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Mãe, a Lua está Estagada?

avançou pelos corredores, pois aquele espaço era-lhe bastante fa-

miliar... Enquanto isso, ratinhos da limpeza davam lustro ao chão...

Atravessaram por uma das alas... Esta tinha muitos quadros surre-

alistas de Gali, pintados a queijo fundido, todos eles muito colori-

dos... Pareciam tempestades de cores... e de odores, pois cheiravam

a várias variedades de queijo...

Subiram de elevador até ao primeiro andar e entraram na galeria

principal. Era uma verdadeira catedral do queijo... Ali simulava-se,

em escala real, o trabalho árduo dos ratinhos mineiros e das tou-

peiras que extraíam do fundo da Mina de Brie Oriental, o principal

alimento de toda aquela civilização... Os bonecos pareciam mesmo

verdadeiros...

No outro extremo da galeria havia uma torre de perfuração de

leite que jorrava esse liquido valorosíssimo vindo das profundezas da

Lua... À medida que ia coalhando, transformava-se, aos poucos, em

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queijo, camada sobre camada... Era por isso que a Lua estava cheia

de buracos... A prospecção de leite e as minas de queijo tinham um

custo... Se não tomassem cuidado, um dia o Lado Iluminado da Lua

transformar-se-ia numa peneira... O seu principal recurso extin-

guir-se-ia...

O planeta Terra sofria dos mesmos problemas ambientais... So-

bretudo, com as suas principais fontes energéticas, o petróleo e o

gás... Um dia, estas também acabariam... Daí o desenvolvimento

tecnológico das fontes energéticas alternativas: os ventos, as marés

e o Sol... Mas havia ainda muito por fazer...

Não divaguemos! Continuemos com a narração!

Os nossos amiguinhos cruzaram a galeria, sempre atrás do go-

vernador... Até entrarem numa grande biblioteca... Esta tinha três

andares de altura, com centenas de prateleiras, com milhares de

livros... Dezenas de mesas estendiam-se pela salão, onde muitos ra-

tinhos estudiosos consultavam jornais, documentos e livros. A Vó-

Cina dizia que o livro, tal como o cão, é o melhor amigo do homem

– «faz-nos companhia; aprendemos coisas novas e este não nos exige nada

em troca». Em suma, Penélope nunca tinha visto tantos livros juntos.

Os seus Pais tinham muitos livros em casa, mas nada se comparava

com aquela visão...

Florestas inteiras foram destruídas para fazer aqueles livros to-

dos... Sim, porque os livros são feitos de papel e o papel tem como

origem a madeira das árvores que, por sua vez, se transforma em

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Mãe, a Lua está Estagada?

pasta de papel que, depois de bem prensada, se transforma em pa-

pel... Seguramente, todas as árvores da Lua foram destruídas para

fazer o recheio daquela biblioteca... E nem uma só árvore restou...

Não pensaram na reflorestação da Lua e o deserto cinzento engoliu

o verde das copas das árvores... Afinal, eles também não foram cui-

dadosos com o seu meio ambiente!

Dois grandes globos, um terrestre e outro lunar, estavam coloca-

dos bem no centro do salão... Um deles era bem curioso... o da Lua,

pois somente a face iluminada estava cartografada. A outra metade

do grande queijo estava pintada de negro – a Luna Incognita. Um rati-

nho, de brancos bigodes, de óculos bastante graduados na ponta do

nariz, digo, do focinho, dirigiu-se aos recém-chegados, de patinha

estendida, para cumprimen-

tá-los. Era, certamente, o

ratinho Poeiras... E isso con-

firmou-se logo no momento

seguinte... O ratinho olhou

de alto a baixo a menina Pe-

nélope e a galinha Pita numa

curiosidade científica... e,

depois, monopolizou toda a

conversa...

– Fantástico, o mito

torna-se realidade... E eu a

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Luís Sá Fernandes

pensar que tudo não passava de uma historieta, de um conto de

fadas! Bom, vamos ao que nos interessa... Desde que começaram

estes terríveis acontecimentos, eu e a minha equipa temos estado a

investigar a profecia do Oráculo de Esquecimento e toda a documenta-

ção relacionada com este estranho fenómeno da natureza... Como

sabem, esta bola de cristal foi encontrada, há cem anos, pelos mi-

neiros de Brie Oriental, nas entranhas dessa mesma mina. Mas não

foi o único achado...Com ela, foi também encontrado um in-fólio4,

um livro mágico, obscuro, com uma estranha luminescência, deno-

minado: “O Livro Negro dos Eclipses”. Só que este livro, até agora,

não constava nos nossos arquivos da biblioteca... Dia e noite, noite

e dia, andámos à sua procura nas catacumbas do museu... E ante-

ontem, de madrugada, encontrámo-lo! É verdadeiramente mágico e

surpreendente... Por favor, sigam-me até à sala escura...

Desceram dois lanços de uma escada em caracol e penetraram

numa sala absolutamente escura, nem um rasgo de luz ali brilhava...

Até que... Os olhos habituaram-se à escuridão e... Uma Lua Cheia

começou a brilhar, a brilhar, a brilhar!

4 Livro em que as folhas de impressão apenas são dobradas em duas.

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Eis a capa do livro! – exclamou o ratinho Poeiras, abrindo-o –

Este só pode ser lido na escuridão. Como podem ver, todas as suas

letras são fluorescentes, de tom azulado, e estão escritos no Dialecto

Ratónico, um dialecto bastante arcaico. Os nossos copistas já fizeram

uma cópia exacta do livro e os nossos linguistas, peritos em línguas

extintas, estão, neste momento a tentar decifrá-lo... Este livro é um

verdadeiro enigma; fala-nos de um reino engolido pelos mares...

– O que é um enigma? – perguntou Penélope.

– Bem, um enigma é uma adivinha bastante difícil de desvendar,

só o poder da inteligência a pode esclarecer...

– Então, não vos adiantou nada encontrá-lo! Tudo continua na

mesma... A sua tradução poderá durar anos e anos... – disse, desa-

pontado, o ratinho Roquefort.

– Nada disso! Recentemente, na sua contracapa, encontrámos

um Portulano5, uma espécie de mapa...

– Mas no Lado Iluminado já se conhece, cada cratera, cada mina,

cada cidade!?

– Aí está! Todo o Lado Iluminado está cartografado... Falta o

Lado Obscuro, a Luna Incognita! E foi isso que encontrámos: o mapa

pormenorizado da Luna Incognita, a outra face da Lua! Subamos até

à biblioteca, se fizerem o favor...

5 Mapa Cartográfico da época dos Descobrimentos portugueses.

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Aquela viagem parecia não levá-los a lado nenhum... Quando se

fechava uma porta, outras duas abriam-se... Era uma autêntica bola

de neve...

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Mãe, a Lua está Estagada?

Ali estavam, mais uma vez naquela floresta reciclada em

livros..«Tantos ratitos juntos!» A Pita era tonta, mas não era malu-

ca... «A maioria deles devem ser, certamente, os ditos estudiosos...

Esses tais de linguistas...» – dizia ela para com as suas próprias pe-

nas...

Numa mesa, sem ninguém, estava um documento enrolado, em

forma de canudo... O Director do Museu desenrolou-o cuidado-

samente e colocou em cada umas das suas pontas um tinteiro, de

modo a segurá-las...

– Eis o Portulano encontrado na contracapa do livro... Este não

tem poderes ocultos, porém é lindíssimo...

E era mesmo... Todo ele era desenhado a tinta da china... Cer-

tos pormenores eram pintados a aguarela – “Luna Incognita”, inti-

tulava-se – que caligrafia maravilhosa e perfeccionista! Parecia uma

pintura, no entanto estava envelhecido pelo tempo e ainda se nota-

vam as duas linhas rectas bem vincadas que se cruzavam bem no seu

centro. Estranhamente, o mapa não estava escrito em Dialecto Rató-

nico, mas num português bem claro, sendo o seu autor anónimo...

Quem teria feito aquele mapa? Este era posterior ao “Livro Ne-

gro dos Eclipses”. Provavelmente, alguém conseguira traduzi-lo e,

a partir deste, desenhou aquele mapa... O que teria acontecido ao

seu tradutor? Teria morrido esmagado numa derrocada nas Minas

de Brie Oriental? Enfim, mais uma porta fechada a trinco, mais um

mistério por resolver...

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Luís Sá Fernandes

Que belo mapa... Viam-se montanhas e vales profundíssi-

mos... Um pequeno tracejado a vermelho indicava o percurso a

percorrer... “O Grande Lago de Iogurte”, a noroeste, O Olho de Horus –

Udjat6 (uma cratera do tamanho do Alentejo); bem junto ao Grande

Lago, O Minarete Gelatinoso7, erguia-se na no seu centro... Já perto

do limite da mapa, três pirâmides, semelhantes às egípcias. Uma no

6 Amuleto egípcio, poder e protecção, o Olho de Horus.7 Torre das Mesquitas Árabes, virada para Meca.

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Mãe, a Lua está Estagada?

extremo noroeste, a de Isis8; uma no centro, na zona equatorial, a

de Tot9, e a última a nordeste, a de Osíris10. A do meio era a maior

e a mais imponente. Curioso... Cada uma das pirâmides agarrava,

com umas mãos gigantescas, os Três Pilares de Pharos – Djeds11. Pa-

reciam três grandes faróis... No mínimo, bizarro... Penélope nunca

tinha visto pirâmides com punhos – estrambólico, não? – Final-

mente, bem próximo das torres, um grande quarto-crescente, com

riscas coloridas... Era parecido com um croissant! Como gostava de

croissants! Especialmente com manteiga e queijo... Hum, tão bom

que era... Se tivesse um por ali mordiscava-o logo! Mas o que seria

aquilo?

– Ninguém sabe, menina! – Com os óculos bem na pontinha do

seu focinhito, o ratito Poeiras suspirou – A única coisa de concreto

que temos são estes tremores de Lua insuportáveis que se agravam,

à medida que o tempo passa, na sua intensidade e frequência. Ha-

verá alguma ligação entre os lunamotos e a partida da expedição?

Recebemos uma mensagem de socorro incompleta... e a partir daí...

nada de nada!

– Bem, temos que organizar uma segunda expedição... Desta

8 Deusa egípcia, modelo das Mães e das esposas, a protectora de magia inven-cível.

9 Deus egípcio, cordato e sábio, secretário-arquivista dos deuses.10 Deus egípcio, reina no mundo subterrâneo e julga os mortos.11 Amuleto egípcio, com a figura de um pilar, símbolo da estabilidade.

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vez, uma expedição de salvamento... Disse o ratinho Roquefort, co-

çando a sua cabecita branca.

Poeiras analisava, com um olhar muito sério e circunspecto, o

Portulano... O seu dedo percorria todos aqueles lugares exóticos...

Num momento posterior, agarrou-o bem no ar e colocou-o em

contraluz... Analisou-o, mais uma vez... Pegou no telefone-búzio...

– Tragam-me uma vela, por favor!

Minutos depois, com uma vela em cima da mesa, Poeiras passou

a sua chama, cuidadosamente, por debaixo do documento... Uma

marca de água, escondida secretamente nas entranhas do papel,

emergiu debaixo de todos aqueles pares de olhos: “À ALTURA DE

UMA CRIANÇA, UM SENTIDO FALTA NO GRANDE CRES-

CENTE... O PURO DE ESPÍRITO COLOCÁ-LO-Á NO DEVIDO

LUGAR... ENTÃO OS DOZE ANCIÃOS ILUMINARÃO COM A

LUZ DIVINA O MONÓLITO VINDO DO CENTRO DO UNI-

VERSO... NO SEU CORAÇÃO, A SALVAÇÃO DA LUA!”

Todos disseram um longo:

– OOOOH!

– A solução deste mistério está então neste quarto-crescente! –

Penélope batia palmas de felicidade... – O ratinho Poeiras é muito

esperto! Consegue pecebê todos os segredos... A minha Mãe tam-

bém! Ela descobe muitas charadas, umas tais de palavras cruzadas...

Passa horas naquilo... Sempre a coçar a cabeça... Deve fazer muita

comichão!

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Não exagere, menina! Foi a leitura de muitos livros que me

permitiu desvendar alguns segredos... No entanto, precisamos tam-

bém de ser humildes, pois quanto mais estudamos, menos sabemos

acerca dos mistérios do universo. Ninguém é verdadeiramente sá-

bio... Bem, esta tinta é feita de limão, uma técnica de espionagem

medieval... Deste modo, quase de certeza, que este documento foi

escrito na Era das Florestas; quando ainda existiam árvores na Lua...

Neste caso, especificamente, um limoeiro... Segundo a nossa biblio-

teca, era um fruto amarelo e bastante azedo!

– A avó da Penélope tem muitos desses frutos na sua Quinta da

Serrada... E ao lanche, faz-nos grandes jarros de limonada. Sabe tão

bem, no Verão, e refresca tanto! – A galinha Pita já tinha a garganta

seca, só de falar nisso...

– Hum, bastante interessante! Os humanos fazem também

sumo a partir do limão... – Poeiras tirou, então, alguns aponta-

mentos no seu bloco de notas...

– Próximo objectivo, o Entreposto de Finis Luna! – disse o Gover-

nador Roquefort, entusiasmado...

Foram longos dias de preparativos... Uma expedição não se

prepara de um dia para o outro! Dá muito trabalho! Os nossos ami-

guinhos tiveram de arrumar, nas suas mochilas, alimentos (à base de

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Luís Sá Fernandes

queijo, leite e iogurtes), e os equipamentos indispensáveis: cordas,

capacetes de mineiro, tendas, sacos-cama, lanternas, etc.). O que

vale é que não tinham que carregar tudo aquilo às costas. O equipa-

mento mais pesado e os alimentos iam muito bem acondicionados

no Luna-Carro...

Na véspera da partida do grupo expedicionário houve uma

grande festa de despedida em Luna Plena! A festa durou até às tantas!

Menos para os nossos amigos, que no dia seguinte tinham que se

levantar bastante cedo... No meio do caos dos lunamotos, a expedi-

ção foi um bom pretexto para a população se esquecer das recentes

contrariedades...

No dia seguinte, poucos ratinhos vieram despedir-se dos aven-

tureiros, devido à maioria dos foliões ainda estar a dormir... A Pené-

lope é que não gostou muito da brincadeira – iam aventurar-se em

nome de um bando de dorminhocos! – mas depois lá se acalmou...

De mãos ao volante, a galinha Pita ia assobiando feliz da vida! Ao

seu lado, a rabina da Penélope saboreava um belo iogurte de moran-

go. Atrás, os ratinhos Roquefort e Poeiras iam em amena conversa,

discutindo os factos ocorridos até então...

Antes de penetrarem na escuridão de Luna Incognita teriam que

chegar ao último entreposto comercial... Lá, o ratinho Fagundes, o

chefe do entreposto, juntar-se-ia à equipa, pois o seu primo, um

ratinho de seu nome Dentinho, desaparecera misteriosamente... E

a toda a família estava preocupada com o seu paradeiro...

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56

Mãe, a Lua está Estagada?

O Luna-Carro ia deixando um trilho de pneus e uma nuvem

de pó naquela paisagem agreste... A Cidade do Requeijão ficara lá para

trás... Havia o risco de se tornar uma cidade fantasma, um monte de

ruínas... Naquele veículo espacial havia muita esperança. Todavia,

nos ombros dos nossos amigos, o peso da responsabilidade era de-

masiado desgastante... Vendo bem as coisas, a aventura ainda nem

começara!

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57

Luís Sá Fernandes

5

Foram dois dias de viagem... Embora ali fizesse sempre dia, o

corpo tinha sempre que descansar... E tal como no planeta Terra,

os nossos amigos tinham que dormir pelo menos sete horas para

recuperar as forças... A Lua fazia lembrar certos países nórdicos da

Europa em que meio ano é dia e meio ano é noite... Assim, eles dor-

miam numas tendas especiais, onde nem um raio solar conseguiria

penetrar. Aliás, essas mesmas tendas estavam também preparadas

para o frio intenso do Lado Obscuro.

Finalmente, lá chegaram ao último entreposto lunar... Havia um

grande arco, bem semelhante ao Arco da Rua Augusta, em Lisboa...

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58

Mãe, a Lua está Estagada?

No seu topo, um ratinho, representando a Glória, coroava dois ra-

titos querubins simbolizando o Sonho e a Audácia... Ao seu centro,

grandes letras de bronze avisavam os viajantes: “A CURIOSIDADE

MATOU O GATO!”

«Mas que gato? Ali não havia gatos, só ratos? Centenas deles! Só

se os gatos foram para o Lado Obscuro e desapareceram... Absurdo!

Ou talvez não! Mas se algum gato ali morreu, bem feito!» Penélope

detestava gatos, pois era alérgica aos seus pêlos – estes faziam-na

espirrar muito...

O arco era ladeado por vários edifícios coloridos: azuis, ama-

relos, verdes, vermelho tijolo; com os seus telhados às ondinhas de

espuma branca... Todos eles eram diferentes uns dos outros... Uns

maiores, outros mais pequenos... Uns de janelas quadradas MM, ou-

tros, redondas QQ... Enfim, eram originalíssimos... Só o arco

era de mármore frio... Dois portões descomunais encerravam-no...

Estes tinham dois pontos de interrogação desenhados... ? ? O que

significariam? O desconhecido? Ou o fim da Lua, a Finis Luna? Tal-

vez...

BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

Mais uma vez a Lua tremeu... e todos aqueles telhados ondula-

ram numa estranha cadência... Pareciam vagas que se desvaneciam

na praia...

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59

Luís Sá Fernandes

Subitamente, o topo do arco cedeu... Infelizmente, os ratitos

querubins não ganharam asas e escavacaram estrondosamente as

duas interrogações... E foi então que se viu o que havia para além

dos dois portões... Um vazio escuro... Enoime, de morrer! De cer-

teza que era ali que vivia o Papão, porém não havia ali nenhum

candeeiro para se ligar no breu, quando o medo apertava... Não!

Penélope não podia ter medo! Tinha que salvar a sua amiga Lua!

Senão, como é que poderia segui-la, quando viajava para Castelo de

Paiva com os seus pais? Ela acompanhava-a sempre em viagem! Os

montes e vales iam ficando para trás, mas ela estava sempre ao seu

lado! Era sua companheira...»

Foi uma confusão geral! Muitos ratinhos saíam das suas casitas

em pânico, enquanto os ratos bombeiros voluntários iam socorrê-

los... Felizmente, não houve feridos!

O Luna-Carro quedou-se em frente dos destroços do Grão-Arco

de Finis Luna. E foi lá que conheceram dois novos amigos: o rati-

nho Fagundes, o chefe do entreposto, bem anafadinho, e o ratinho

Papa-Lume, o chefe dos ratinhos bombeiros, bem magricela, mas

musculoso. Ao longe, pareciam o Bucha e o Estica! Estavam os dois

a contabilizar os estragos... Tudo aquilo fazia lembrar um campo de

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60

Mãe, a Lua está Estagada?

batalha num telejornal das oito da noite...

– Por Tot, temos aqui um prejuízo! Só me faltava esta!

– Veja, Fagundes, quem chegou! – disse Papa-Lume.

– Oh, já chegaram? Foram muito rápidos! Ah, vieram nesse

estranho veículo! Deve ser muito rápido...

E lá se fizeram as apresentações da praxe...

– Infelizmente – continuou Fagundes —, têm que o descarre-

gar...

– Poquê? – disse indignada a tonta da Pita. E logo ela que gostava

muito de conduzi-lo...

– Pelo que posso ver, esse veículo é movido a energia solar... Em

Luna Incognita não há luz solar, logo não há energia...

– Hum, que chatice! Agora temos que carregar todo este equi-

pamento às costas! – queixou-se a menina Penélope.

– De forma alguma, o que nos vão valer são os Sarapintados! –

Papa-Lume apontou para uma manada de bichos muito estranhos...

Eram uns burritos com cabeça de girafa... Obviamente que ti-

nham grandes pescoços, além disso, eram sarapintados com man-

chas coloridas que faziam toalete com o entreposto fronteiriço... No

entanto, pareciam animais possantes e robustos...

– Todas aquelas pintas são fluorescentes – continuou ele – bri-

lham às escuras...

Penélope e a Pita aproximaram-se dos bicharocos. Eram ani-

mais dóceis e gostavam muito de festinhas...

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61

Luís Sá Fernandes

Todo o entreposto estava ainda em estado de choque... Apesar

disso, a vida continuava... Os ratinhos engenheiros e os ratinhos

arquitectos começaram a reconstruir o seu grande símbolo, o Arco

de Finis Luna.

Os nossos amigos pernoitaram na casa do ratinho Papa-Lume.

Era bastante curioso, todas aquelas casas tinham janelas viradas para

ambas as faces da Lua: A Iluminada e a Obscura... Os quartos esta-

vam virados para o breu, para se poder dormir melhor, enquanto

que as outras divisões estavam viradas para a luz... Todo o Entreposto

de Finis Luna fazia fronteira entre as duas faces da Lua... Daí a sua

fama e exotismo...

Antes de se deitarem e depois de terem jantado um belo caldo

de queijo fundido, toda a expedição juntou-se à volta da mesa, para

se acertarem pequenos pormenores relacionados com a expedição

de salvamento. Foi-lhes entregue o último grito da tecnologia ra-

tónica: os Íris, uns óculos bem redondinhos que permitiam ver no

escuro...

– Não os percam nem gastem inutilmente as baterias – aconse-

lhou sabiamente Fagundes, senão é a vossa perdição!

A Pita maluca colocou-os na ponta do bico e... Ficou imediata-

mente ofuscada com a intensidade da luz...

– UÁÁÁ! – berrou ela.

– Os Íris só devem ser colocados no breu...

E foram para o quarto do ratinho Papa-Lume para experimen-

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Mãe, a Lua está Estagada?

tá-los.

O Lado Obscuro, Luna Incognita, não era totalmente negro. Nos

quartos de dormir podia observar-se que em toda a linha do hori-

zonte emanava uma luminescência do Lado Iluminado... Era como se

fosse uma luz de presença... Todavia, quando as montanhas e vales

encobriam a linha do horizonte, esse ponto de referência desapa-

recia... Colocaram os óculos; no meio de uma grande amarelidão,

conseguiam observar uma cadeia montanhosa lunar que era inter-

rompida a pique por um corte, um pequeno estreito...

– É por ali que vamos penetrar, em Vallis Alpes1 – disse o ratinho

Poeiras, apontando...

– Não será escuro demais? – perguntou Fagundes.

– Perderíamos muito tempo se déssemos a volta...

– Quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos...

– Acho que não nos devemos preocupar, pois são as indicações

que temos do Portulano...

Foi também nessa ocasião que o ratinho Fagundes teve a opor-

tunidade de contar ao governador Roquefort sobre a breve passa-

gem do seu primo Dentinho, e do restante grupo expedicionário,

por aquelas bandas. Vinham das Minas de Brie Oriental... Estes per-

noitaram também ali e, logo no dia seguinte, partiram cheios de

pressa em prospecção de novas minas de queijo, na região de Ocea-

1 Vale Montanhoso, do Latim.

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Luís Sá Fernandes

nus Procellarum2... Depois, depois nunca mais se souberam notícias...

O que lhes teria acontecido?

Os nossos amigos, no dia seguinte, levantaram-se bem cedo

para transferir todo o material que estava acondicionado no Luna-

Carro para os largos dorsos dos Sarapintados... Depois guardaram-

no num armazém de queijo abandonado...

Pernoitaram por ali mais uma noite para, mais uma vez, se li-

marem algumas arestas relativas aos pormenores da viagem. No dia

seguinte, partiriam para uma nova aventura...

2 Oceano das Tempestades, do Latim.

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Mãe, a Lua está Estagada?

O grande dia chegou! Uma grande ansiedade percorreu a espi-

nha dorsal dos viajantes... Não pelo medo em si, mas pelo desafio...

Teriam eles as mesmas sensações dos navegadores portugueses

do século XVI, na hora da partida?

Penélope, naquele momento, estava perdida nos seus pensa-

mentos... Tinha saudades dos seus pais, da Tia Bitis e da VóCina...

O que estariam eles a fazer? Praticamente, já passara uma semana

a viajar naquele queijo todo... Certamente estariam preocupadíssi-

mos... A sua fotografia deveria estar em todos os jornais... E todas as

televisões já deveriam ter realizado vários documentários e debates

sobre o seu misterioso desaparecimento... Na Terra, no seu peque-

no país, Portugal, ela deveria ser uma grande estrela mediática...

Penélope olhou para trás e aquele globo azul, coberto de algo-

dão doce, provocou-lhe ainda mais saudades no seu pequeno co-

ração... Mal dessem os primeiros passos naquela zona inóspita e

obscura, o Planeta Terra desapareceria e só teriam a companhia das

estrelas... Tão infinitamente distantes... Enfim, tinham que partir...

Quase toda a população do entreposto veio despedir-se dos

nossos bravos heróis... Os Sarapintados mostravam-se nervosos

com tanta agitação em seu redor... E lá montaram os bicharocos...

O ratinho Poeiras comandava a fila indiana, seguido pelo governa-

dor Roquefort, pela menina Penélope e a sua galinha, que ia mon-

tada no mesmo animal, pelo Fagundes e, finalmente, a fila era en-

cerrada pelo ratinho bombeiro, Papa-Lume. Este último, por sua

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vez, agarrava numa corda deveras grossa que puxava mais quatro

Sarapintados, carregados com todo o material imaginável! Eram,

ao todo, dez míseros pontinhos no meio da multidão... Era tal e

qual como nos filmes de cowboys, quando os colonos rumavam para

Oeste e as caravanas eram atacadas pelos índios... Ainda bem que

não havia nada disso por ali... Ufa! Mas poderiam haver cobras!

Como Penélope detestava cobras! Teria, se necessário, de rilhar as

suas cabeças... Enfim...

Como era engraçado cavalgar, digo, sarapintar naqueles bichos...

Estes davam pequenos pulitos na superfície lunar... Saltitavam como

os cangurus australianos... Por isso, tinham que se agarrar bem às

rédeas... Segundo o ratinho Fagundes, se batessem com os dois pés,

vigorosamente, no lombo dos Sarapintados, estes poderiam dar

grandes saltos no firmamento! Mas só deveriam fazer isso, em caso

de emergência...

Poeiras virou-se para a multidão, encheu o peito de ar e disse

como sinal de bom agoiro:

– ATÉ AO NOSSO REGRESSO!

E lá penetraram na escuridão, sendo completamente engoli-

dos por aquele vazio... Tal e qual como num número de magia...

PLUFT!

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6

Uau, aquilo era tudo muito escuro! Os olhos custaram a adap-

tar-se à escuridão... Porém, ao olharem para trás, aquela lumines-

cência criava um ambiente azulado... Era bom saber que para lá do

fundo do horizonte havia a luz do Sol e o planeta Terra... Era uma

luz ao fundo do túnel... Enfim, uma esperança de um dia voltarem

para casa... No entanto, o caminho era sempre em frente, para o

interior das trevas... Ali, o ambiente não era muito alegre e fazia um

frio de rachar...

«O solo está coberto por uma fina camada de neve... Ainda bem

que trazemos uns casaquinhos bastante felpudinhos! Em Portugal,

só havia neve na Serra da Estrela... Era muito giro fazer bolas de

neve, todavia queimavam as mãos... Não era só o fogo que queimava

as mãos... Quem me dera ter uma lareira para me aquecer... Ao

menos, haveria luz!» – pensava Penélope com os seus botanitos...

Até que...

Que maravilha! Os Sarapintados começaram a sarapintar! As

manchas ovais do dorso dos animais eram coloridas... A caravana

parecia uma discoteca ambulante, sempre aos pulitos!

TOING! TOING! TOING!

– Companheiros – disse o ratinho Fagundes —, por favor, tor-

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Mãe, a Lua está Estagada?

çam a orelha esquerda do vosso sarapintado!

Todo os amigos executaram a ordem... Coitadinhos dos bichos!

Deram uma guinchadela e os seus olhos iluminaram-se! Uau!, eram

como dois faróis de automóveis! Teriam eles luzes de nevoeiro?

Bom, pelo menos não utilizariam, por enquanto, os preciosos Íris...

TOING! TOING! TOING!

Lá iam eles aos pulos em direcção da falha existente na cadeia

montanhosa de Vallis Alpes...

Foi tenebroso atravessar aquela falha... Ali não havia nenhuma

réstia de luz ambiente... Seriam eles obrigados a ligar os óculos Íris?

Os focos de luz dos Sarapintados estavam cada vez mais fracos...

O cansaço apoderava-se deles... Estavam na boca do lobo, na sua

traqueia... as suas paredes intensificavam o frio... Este tornava-se

cada vez mais insuportável... Os casacos felpudos pareciam t-shirts

de algodão... Corriam o risco de se transformarem em gelados – só

faltava o cone de bolacha...

– As minhas penas estão quase petrificadas, Penélope...

– O meu nariz parece um giz vermelho... Até custa falar...

– Não falem muito – disse o ratinho Papa-Lume —, pois quei-

mam os pulmões..

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Luís Sá Fernandes

E o silêncio voltou a engoli-los...

Era difícil saltitar por ali... Além do frio, havia muitos penedos

tombados... Quase que obstruíam a passagem... Os lunamotos deixa-

ram, também por ali, as suas marcas...

Subitamente, o ratinho Roquefort apontou para o alto da falé-

sia:

– Vejam, há ali qualquer coisa!

E era mesmo verdade... Uma das paredes do estreito, a do lado

direito, começou a brilhar lá bem no alto... Era uma luz dourada...

Seria ouro? Todavia o ouro ali não valia nada...

Naquelas bandas, davam tudo por um simples fósforo! Mas

aquilo não era ouro?! Isto, porque o ouro não voa... Milhares de

pontinhos dourados levantaram voo das paredes... Pareciam um

verdadeiro enxame de abelhas... Fizeram duas piruetas no ar e co-

meçaram a descer a pique num sonoro bater de asas...

VUUUUUUM! VUUUUUUM!

Toda a expedição assustou-se... Estariam a ser atacados?

A nuvem dourada quedou-se mesmo à frente do nariz do rati-

nho Poeiras que era o líder da caravana...

Ouviu-se uma voz fininha... Quase que não se ouvia:

– Quem vem lá? Sois vós os causadores de tanta destruição?

Era uma espécie de pirilampo que falava; não era só o rabito que

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Mãe, a Lua está Estagada?

brilhava, mas todo o seu corpo... A luz dourada dava-lhe uma trans-

parência fantasmagórica... O bichinho tinha uma coroa no cimo da

sua cabecita de alfinete... Devia ser o rei daquele pequeno povo...

– Viemos em paz! Somos ratinhos lunáticos, vindos do Pais do

Requeijão, no Lado Iluminado da Lua... Bem... Excepto aquela meni-

na e aquela galinha que vieram do Planeta Terra...

– Nunca vimos ninguém da vossa raça por aqui! Mas há sempre uma primeira vez

para tudo... Vocês não parecem ser muito perigosos... Não sabem, vocês, a causa destes

tremores em Emmental? Isto nunca mais tem fim...

– Emmental? Estamos no Lado Obscuro da Lua ou vive noutro

planeta?! – disse a Pita Galinha estupefacta.

– Não te irrites... Não passa de um nome dado à mesma coi-

sa... – disse o ratinho Poeiras, para pôr água na fervura – Bem, em

relação à sua questão, Sua Majestade, a única coisa que sabemos é

que a resposta encontra-se perto de umas pirâmides...

– Mas por aqui não há nenhumas pirâmides ou lá o que é isso... Nunca nos afas-

támos muito de Lampius, pois os nossos antepassados, quando se atreveram a sair para

o Horizonte Longínquo, nunca mais voltaram... Aqui sentimo-nos bastante seguros...

Um estranho fenómeno acontecia com a presença daquela nu-

vem de Lampius, a temperatura ambiente aumentara consideravel-

mente... Aqueles pequenos insectos tinham uma energia muito in-

tensa, só assim poderiam sobreviver naquele inferno de gelo...

– Por acaso, não passaram por aqui outros ratinhos, Excelência?

– Sois os primeiros da vossa raça em Lampius!

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Provavelmente deram a volta... – disse Roquefort a Fagun-

des...

– Talvez...

BRUMMM! BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

A Lua mais uma vez tremeu... Das encostas da falha, grandes

penedos e pequenas pedras começaram a rebolar... O enxame de

Lampius dispersou-se e a nuvem desfez-se num segundo...

– AVALANCHE! ENCOSTEM-SE ÀS PAREDES! – gritou o

Papa-Lume.

CATRAPUM! PUM! PUM! PUM!

Um penedo aqui, uma pedra acolá! Felizmente, ninguém se

magoou! Só um dos Sarapintados sofreu um arranhão na coxa... No

entanto, Fagundes fez-lhe logo um curativo.

– Ufa, foi por um triz! Ainda por cima, até me caíram algumas

penas! – disse a Pita Galinha.

A nuvem dourada, mais uma vez, formou-se à frente dos nossos

amigos...

– Estão a ver, isto está a dar cabo dos nossos nervos e do nosso reino!

– Por favor, ajudem-nos a atavessar o vosso reino e pometo que

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Luís Sá Fernandes

vamos salvar Emmental! A Lua, quero eu dizer... E todos os Lampius,

claro...

Penélope ao dizer estas palavras tranquilizou o rei dos Lampius...

– Com todo o gosto indicaremos o caminho! Lamparina, anda

cá!

– Diga, sua excelência, majestade, meu Pai, Lampião!

– És mesmo um trapalhão, filho! Ouve lá, não eras tu que procuravas aventura

e estavas farto de esvoaçar por aqui... Pois tens aqui uma boa demanda! Prova que és

um Lampius e junta-te a eles!

– Sim, meu Pai... GLUP!

Engoliu em seco e a sua cara perdeu a luminosidade... Teria que

ir para o Horizonte Longínquo, onde um seu tetravô tinha perdido as

botas... Mas não podia dizer que não... Era uma atitude indigna para

um Lampius de sangue real...

Demoraram cerca de sete horas a sarapintar aquele pequeno

pesadelo... O que lhes valeu foram os Lampius que lhes alumiaram

o caminho até à saída. Além disso, os Sarapintados conseguiram

recuperar a energia nas suas pintas, com a luz proveniente daqueles

pequenos insectos lunáticos...

Tudo aquilo fora um pouco assustador... Mas enfim, lá conse-

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Mãe, a Lua está Estagada?

guiram atravessar a cordilheira...

Feitas as despedidas e depois do adeus, o grupo tinha ganho

mais um elemento, o Príncipe Lamparina! Pequeno de tamanho,

mas de um coração enoime!

Quando atravessaram o rasgo da cordilheira, o terreno tornou-

se consideravelmente plano... A luz de presença, azulada, voltou a

acompanhá-los e os Sarapintados a sarapintar... A paisagem apa-

rentemente voltava a ser igual e monótona... Mas isso não era bem

assim...

– Amigos – disse o ratinho Poeiras —, há qualquer coisa lá ao

fundo, a noroeste daqui...

Todos olharam... Hum, havia uma pequena, pequena luz, bem

lá ao longe...

– O que será? – perguntou o ratinho Roquefort.

Poeiras consultou o Portulano...

– Não me parece ser o Grande Lago de Iogurte, só se for o Udjat,

o Olho de Hórus? O mapa indica essa direcção... Espero não estar

enganado!

E lá foram eles sarapintando rumo à luz no fundo do túnel... Ou

seria mais um túnel no fundo da luz?

TOING! TOING! TOING!

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Luís Sá Fernandes

A sarapintação não durou mais de duas horas... Houve a neces-

sidade de descansar e de comer uma refeição quente... Um belo

caldo de queijo fundido... Depois, chegou a hora de uma bela sone-

ca... Montaram as tendas sob as luzes dos Sarapintados... Estas eram

muitos confortáveis...

Penélope perdia-se nos seus pensamentos... Como fazia falta

a luz do dia naquele lugar... “Sem luz não há vida!” disse-lhe uma

vez a VóCina. Ela era tão esperta! Tal como o ratinho Poeiras! Sim,

estava farta daquele sítio, era vazio de mais e não inspirava muita

confiança... Quanto mais tempo permanecia na Lua, mais saudades

tinha do planeta Terra, das suas cores, do azul do céu e dos mares,

do verde Douro e do encarnado dos morangos... Era tão bom trin-

car um morango verdadeiro pela metade e saboreá-lo... Já estava

farta do leite e dos seus derivados... Aquele ratos deveriam ser, com

certeza, patrocinados por alguma marca de leite!

Havia sempre uma maneira de voltar... Bastava sentar-se na ca-

deira e dizer “Terra”... A tentação era grande... Mas, não! Tinha

que ter forças! O caminho mais fácil tornar-se-ia, com certeza, o

mais difícil. Como justificar àquelas centenas de ratinhos o desa-

parecimento dos seus amigos. Além disso, a autodestruição da Lua

tornar-se-ia inevitável!

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Mãe, a Lua está Estagada?

Sem se dar conta, deixou-se adormecer... Que sono tão profun-

do! Estava mesmo muito cansada!

ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ

ZZZZZZZZZ(...)ZZZZZZZZZZZZZZ

– Vamos lá acordar! – a menina sentiu um leve zunir na orelha.

BZZZZZZ

– Acorde, por favor!

Penélope bocejou e virou-se para o lado... Sentiu um leve aba-

não nas costas...

– Vá lá toca a levantar! Temos que desmontar as tendas e partir!

Já é dia, digo, já é noite!

Era o ratinho Fagundes. À sua volta, uma pinta de luz esvoaçava

deixando um rasto, em forma de ϑ, o Lamparina, claro!

Tomaram um leve pequeno almoço de iogurte natural e a cara-

vana seguiu viagem... Mais uma sarapintação de cinco horas...

TOING! TOING! TOING!

A luz, que, no início tinha o tamanho da cabecita de um alfinete,

ia aumentando cada vez mais...

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Luís Sá Fernandes

Para lá de umas colinas, um foco de luz intenso projectava-se

nos céus, em grandes pinceladas. Parecia a cratera de um vulcão...

Uns pontinhos alados esvoaçavam no seu topo. Estranho... bastante

estranho...

Seria aquilo o Olho de Hórus? Porém, ainda estava bem longe... A

umas quatro horas de viagem, pelo menos!

– Será que o vulcão está em erupção? – perguntou curiosamen-

te o ratinho Papa-Lume.

– Não me parece – disse o sábio ratinho Poeiras —, pois não

escorre nenhuma lava do seu cone!

Infelizmente, naquele momento crucial, os Sarapintados come-

çaram a perder energia... Só as manchas na sua pele piscavam lenta-

mente, num fraco tilintar... Precisavam de recuperar forças debaixo

de uma fonte de luz...

Saltitaram custosamente pelo menos uns quinhentos metros...

quando... ZUPT! Deslizaram vertiginosamente num solo escor-

regadio, numa autêntica casca de banana... E lá foram eles sem tra-

vões, sempre sem parar, longos e longos metros, até darem todos

um grande trambolhão.

CATRAPUM!

Todos eles caíram estatelados com a boca virada para o chão –

excepto o Lamparina que voava... Os nossos amiguinhos puderam

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Mãe, a Lua está Estagada?

então saborear com a língua um gosto doce de iogurte de ananás.

ESTAVAM NO GRANDE LAGO DE IOGURTE!

– Meus amigos, declaro solenemente que estamos no bom ca-

minho! De certeza, que aquilo lá ao longe é o Udjat, o Olho de Hórus!

– Poeiras sorria satisfeito com a extrema autenticidade do Portulano.

Deram todos pulos de alegria... E mais uma vez escorregaram!

CATRAPUM!

Foi difícil encontrar a margem Este do Grande Lago de Iogur-

te (Ananás), mas por fim, lá conseguiram andar em solo firme! De

quando em vez, Penélope e a galinha Pita iam patinar no iogurte

gelado para quebrar a monotonia...

Feliz, feliz, estava a tonta da galinha! Tudo aquilo era uma gran-

de aventura! Nunca tinha saído de casa e, logo na primeira longa

viagem que realizou, foi à Lua! Muitas pessoas viajavam para Paris,

Londres e Nova Iorque; mas muito pouca gente teve a oportunidade

de pisar o solo lunar! «Quando os outros brinquedos souberem, vão

roer-se de inveja!» – pensou a Pita maluca, contente.

O dia fora, assim, igual aos anteriores, sempre a caminhar...

Pernoitaram mais uma noite naquela planície gélida... Porém, o ma-

jestoso Olho de Hórus crescia a olhos vistos... No dia seguinte, digo,

na noite seguinte, atingiriam o seu sopé...

Page 79: Mãe, a Lua está estagada

79

Luís Sá Fernandes

Depois de, mais uma vez, desmontarem as tendas, segui-

ram viagem... Andaram, sarapintaram, descansaram, patinaram!

ZUPT!ZUPT! Voltaram a pular, TOING! PLOING! E a caminhar...

Estavam perto, muito perto... A luz vinda do interior da cratera

erguia-se na escuridão como uma catedral que quer tocar o firma-

mento! Era impressionante o seu esplendor!

Penélope e a tonta da galinha patinavam ao longo do lago, bem

perto da sua margem, em paralelo à caravana... Isto é... tentavam

patinar, pois quase sempre escorregavam e quando menos espera-

vam – CATRAPUM! – caíam no chão gelado...

De repente, vindo do nada, ouviu-se um ribombar de tambo-

res...

TUM! (...) TUM! (...) TUM! (...)TUM! TUM! TUM! TUM!

Parecia uma tempestade de verão, uma grande trovoada!

Viraram-se todos para o lado esquerdo... No meio do nada,

bem lá no fundo, bem perto da linha do horizonte, viam-se umas

chamas espectrais alaranjadas... O que seria aquilo?

No entanto, os tambores estavam muito perto dali!

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80

Mãe, a Lua está Estagada?

Infelizmente, os Sarapintados, com o cansaço, já quase não sa-

rapintavam! Os farolins dos olhos apagaram-se... Apenas emitiam

pequenos clarões do dorso... Não haveria maneira de observar o que

se passava à sua volta da expedição?

Subitamente...

TÁ-TÁ, TARARÁ, TÁ-TÁ, TARARÁ, TÁ-TÁ, TARARÁ!

Viraram-se todos para o lado direito... Ouviam-se cornetins,

dezenas deles! Quase que ensurdeceram a expedição!

Algo sobrevoava as suas cabeças...

VUUMM!

Papa-Lume e a Penélope lembraram-se, então, de colocarem os

seus Íris... Tudo ficou amarelado! Por momentos, a noite virou dia!

Viraram-se para o ribombar... Uns seres gorditos, atarracados,

com olhos de gato, com uns cornichos muito pequenos, de cauda

curta, de lanças em riste, deslizavam a alta velocidade, em patins, na

direcção da caravana! Do outro lado, umas máquinas com cabeça de

balde, de pernas para o ar, empunhavam umas pistolas bizarras em

forma de Z.. Bzoing!Só tiveram tempo para ver um penedo a cinco metros de dis-

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Luís Sá Fernandes

tância... Devia ser uma espécie de posto de observação arcaico, pois

só tinha uma escada de acesso para o seu topo e nada mais... Foi

quando...

OINNN!

As baterias dos Íris foram-se abaixo... Quase que não duraram

nada! Fagundes, desde a última vez que os utilizou, esquecera-se de

recarregá-las!

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82

Mãe, a Lua está Estagada?

Um medo angustiante apoderou-se dos dois amigos! No meio

da escuridão só tiveram tempo de gritar:

– DESMONTEM-SE DOS SARPINTADOS E CORRAM EM

FRENTE! DEPOIS SUBAM A ROCHA!

Fachos de luzes incandescentes passaram por cima de suas

cabeças, tal como o som agudo de lanças... DZZZZZT! ZZIIPPPPT! DZZZZZT!

ESTAVAM NO MEIO DE UMA BATALHA!

Ouviam-se gritos, urros de guerra misturados com sons electró-

nicos e metalizados...

Bzoing!

GRUM! NHOCK! GRUM! NHOCK! NHOCK!

As armas laser e as flechas incendiárias iluminavam o negrume

com clarões, momentâneos, laranja e azulados... DZZZZZT! ZZIIPPPPT! DZZZZZT!

Tinham que fugir dali! Estavam demasiadamente expostos!

Correram o mais que podiam e BOINK! Esbarraram contra

o penedo... Tacteando, subiram as escadarias em ruínas, numa falta

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Luís Sá Fernandes

de ar angustiante... No cimo rastejaram, não fosse uma lança ou

flecha perdida atingi-los...

Mais uma vez, tiveram a sensação que algo sobrevoava acima das

suas cabeças... VUUMM!Ali, do topo, presenciaram o indescritível...

Dezenas e dezenas de robôs abriam fogo sobre aqueles diabi-

tos... DZZZZZT! Esses bicharocos de rabicho, quando

atingidos, ficavam petrificados em estátuas, tal como fotografias ti-

radas em movimento... FLASH! Eram magotes de diabitos com

lanças e marretas. Outros lançavam flechas incendiárias, parecia

uma chuva de meteoritos... Ainda por cima, dos ares veio uma vaga

de risos esganiçados, eram dezenas de bruxas feias, montadas nas

suas vassouras, desgrenhadas... VUUMM!– AJUDEMOS OS GRUNHOS!

Estas lançavam uns estranhos ovos negros sobre aquela lataria

toda... Ao quebrarem-se nas suas cabeças, estes ficavam imediata-

mente paralisados por um óleo peganhento. PLUFT! Por sua vez,

as setas dos bichos rabichos conseguiam penetrar a lata dos robôs

que era demasiado fina, provocando sucessivos curto-circuitos...

Bzoing!Felizmente, do lado dos robôs vieram em seu socorro uns pássa-

ros alados, enormes... Estes debicavam incessantemente as bruxas,

até estas caírem das suas vassouras... eram... eram... Flamingos... VUUMM! Uns rosas, outros brancos... Mas tinham o dobro

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84

Mãe, a Lua está Estagada?

do tamanho dos seus primos terrestres...

Embora a tecnologia robótica fosse mais avançada e tivessem a

ajuda dos flamingos, a luta era desigual, pois os diabitos alaranjados

e de peitos descaídos eram em maior número... Assim, os robôs

não resistiram ao ataque fulminante e foram obrigados bater em

retirada... E corriam, corriam em direcção do Udjat, o Olho de Hórus,

para se abrigarem...

O ratinho Roquefort perdia-se nos seus pensamentos: «Então,

eles vêm dali? Qual será a razão desta batalha? As guerras têm ori-

gem ou na inveja ou na religião... Cobiçarão estes diabitos a luz do

Udjat, o Olho de Hórus? O bem mais valioso nesta face Obscura da

Lua? Provavelmente...»

Penélope começou a chorar de medo. Queria sair daquele lugar

horrível, ir para junto de sua Mãe! A Pita tentava consolá-la, não era

vergonha ter medo...

– Não interessa! Quero ir-me embora!

Por infelicidade sua, a cadeirinha mágica estava demasiado lon-

ge dos nossos amigos... Estava nas costas de um Sarapintado que

dormia em pé... Como é que alguém conseguiria dormir no meio

de toda aquela confusão?!

Foi quando... Penélope sentiu algo a agarrar a gola do seu casaco

da neve... Eram umas garras medonhas! Num impulso o seu corpo

elevou-se do chão... VUPT!ESTAVA A VOAR!

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Luís Sá Fernandes

Olhou para o solo... O penedo estava cercado de diabitos... To-

dos os seus amigos estavam perdidos! Todos, menos a sua sempre

fiel companheira, a Pita Galinha e o Príncipe Lamparina! Assim, a

Pita, ao ver que a sua amiga humana estava a ser raptada, bateu, ba-

teu e bateu as asas... Até agarrar um dos seus pés... Penélope olhou

para cima, para ver o seu raptor... Era um enorme flamingo coberto

de penas cor-de-rosa, fofinhas e lustrosas... O Lamparina bem ten-

tava ajudá-la, em vão, tentando obstruir o caminho do flamingo,

mas era demasiado pequeno para impedir fosse o que fosse...

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Largue-me, pô favô! Quero voltar para junto dos meus amigos!

O flamingo não podia falar, pois estava com a boca cheia, e falar

com a boca cheia é falta de educação! Todavia, abanou negativa-

mente a sua cabeça pontiaguda...

Um diabito tocou no ombro de um arqueiro, apontando para

os céus, espantado; um flamingo, subindo vertiginosamente os ares,

agarrava um ser esquisito pelo bico, enquanto outra ave rara se pen-

durava na pata desse ser de pele muito branquinha...

O arqueiro diabito, sem meias medidas, retirou da sua sacola

um ovo negro de nafta e espetou-o na ponta da sua flecha. Fez pon-

taria... e...

ZZZZZZZZZIIPPPPT!

A flecha descreveu um grande arco e quase por um triz acertava

naquele novelo de penas... No entanto, na sua rota descendente, a

flecha atingiu em cheio o penedo, onde estavam os ratinhos... Uma

mancha de óleo negro explodiu na sua superfície... PLUFT! STRUNK! Coitados dos ratinhos! Que culpa tinham eles?!

Já diz o ditado: “A sorte de uns é o azar de outros!” (ou será ao

contrário?)

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Luís Sá Fernandes

7

À medida que ia ganhando altitude, Penélope tinha uma vista

privilegiada do campo de batalha... Na planície, os diabitos tinham

ganho vantagem aos robôs, porém a cratera estava bem defendida

por canhões laser... Ondas e ondas de bicharocos tentavam pene-

trar as suas muralhas... Em vão! Esquadrões de flamingos lançavam

dos ares dezenas e dezenas de ovos brancos sobre as suas cabeças

... Quando os ovos se quebravam nas suas tolas, um brilho azulado

rompia das suas entranhas e num raio de cinco metros todos os

diabitos ficavam petrificados...

Nos ares, a batalha tinha sido ganha pelos flamingos, estes gras-

navam vitória: KRAA! As bruxas tombavam como moscas...Que

cena fantástica aquela!

Mas onde estavam os seus amigos? O penedo não passava agora

de um simples pontinho naquela imensidão de exércitos...

À entrada da cratera, dois flamingos escoltaram o seu compa-

nheiro de armas e os intrusos terrestres... Ali, a panorâmica mudava

completamente...

«Que buraco enoime!» – pensou Penélope.

– Menina, não sei se consigo segurar-me tanto tempo! – disse

assustada a Pita galinha.

– Aguenta-te mais um pouco! – disse o Lamparina, tentando empur-

rar o rabo da galinha para cima.

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Mãe, a Lua está Estagada?

Vista do ar era impressionante... No meio daquela escuridão,

aquele Olho de Hórus, do tamanho de dezenas e dezenas de estádios

de futebol, impunha-se na sua grandiosidade.

As paredes do cone da cratera emitiam um brilho intenso... Este

quase que cegava a vista... Que estranha fonte de luz... No entanto,

era ela que criava vida naquele pequeno grande paraíso... E o mais

incrível é que ali havia água (outra condição para haver vida). Assim,

prados verdejantes e riachos estendiam-se no centro da cratera...

Estes eram cultivados por robôs que tinham uns chapeuzinhos de

palha na cabeça... Bzoing! Havia ali, também, toda a espécie de

árvores de fruto, morangais, arrozais e vinhas...

Aquilo era tão maravilhoso que até tinha micro-clima – peque-

nas nuvens formando um pequeno manto branco sobrevoavam os

campos de cultivo...

Esperem! Não eram bem nuvens, mas sim ovelhas! Estas ti-

nham umas asinhas nas patas... Voavam até ao riacho mais próximo,

banhavam-se descontraidamente durante alguns minutos, e iam

escurecendo, escurecendo, escurecendo! Quando ficavam com-

pletamente negras e pesadonas, iam para o campo de cultivo mais

próximo, para irrigarem as árvores e os legumes... Ali, a chuva era

muito selecta e muito localizada, só chovia onde era estritamente

necessário; não era, deste modo, necessário guarda-chuva...

– Como se chamam aqueles baldes que andam por ali? – per-

guntou a Penélope, curiosa, a um dos flamingos que a escoltava...

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Luís Sá Fernandes

– São os Latinhas-Agricultores!

E não adiantou mais nada... A menina franziu as sobrancelhas

e insistiu:

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Os senhores flamingos e esses Latinhas, porque é que anda-

vam à bolachada com aqueles rabudos, lá atrás?

O flamingo torceu o nariz, digo, o bico e disse:

– Os Grunhos, mais especificamente, menina, querem apode-

rar-se dos nossos campos de cultivo e extrair o Vítreon que cresce

em abundância nas encostas da cratera... Eles vivem praticamente

na escuridão. Só têm uma coisa, chamada fogo, para iluminá-los...

«Então, a luz vem desse vidrão ou lá o que é!» – pensou Pené-

lope.

– Por que é que raptaram a menina? – perguntou numa voz esganiçada

o Lamparina, debaixo do rabo da Pita.

– O Sr. Júlio espera-a há praticamente cem anos! – e não abriu

mais o bico. Inclinou-se para esquerda e desapareceu com o seu

companheiro. Os dois flamingos que escoltavam a menina voltaram

para o campo de batalha, os visitantes já estavam seguros...

«O Sr. Júlio está à minha espeia? Não conheço nenhum Sr. Júlio!

Mas deve ser muito velho, se está à minha espeia há cem anos! São

muitos anos!»

Pénelope começava já a ficar enjoada com o balançar do voo...

O flamingo dava sinais que estava a perder as forças – seu bico já não

aguentava mais... Aos poucos e poucos começou a perder altitude...

Bem que o Lamparina se esforçava para empurrar o rabo da Pita,

mas o esforço foi em vão...

A última coisa que a Penélope e a Pita viram foi um minarete,

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Luís Sá Fernandes

uma espécie de torre cristalina encarnada, com um quarto-crescen-

te no seu topo, mesmo à frente dos seus “narizes” (um nariz e dois

bicos, mais especificamente)... Em baixo, um campo de verdes e

estranhos símbolos... Depois caíram no vazio...

Δ Δ Δ

Aquele cheiro era insuportável... Não se conseguiam mexer,

aquele líquido era muito pegajoso e oleoso... Pareciam umas bolas

de plasticina...

Papa-Lume fora a única testemunha do rapto: Penélope fora

debicada por um animal grandioso que voava... Um molho de penas

seguiu-a... A Pita também já não estava ali... A última coisa que viu

foi uma seta a cruzar os ares na sua direcção... depois... depois, ficou

tudo negro...

Quando abriram os olhos, o exército dos Grunhos, esses seres

das trevas, avançaram aos milhares para o Udjat, o Olho de Hórus,

circundando o posto de vigia... Era uma autêntica nuvem de um

laranja tóxico... No entanto, como estavam de costas para a batalha,

não deu para ver mais nada...

Bem lá atrás, ouviam-se os grunhidos do exército de diabitos,

sons metálicos, explosões eléctricas... Estavam ali sozinhos e nin-

guém lhes dava atenção... até que... Começaram a ouvir uns grunhi-

dos a aproximarem-se ...

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92

Mãe, a Lua está Estagada?

– GRUM! NHOCK! GRUM! NHOCK! NHOCK!

Vários Grunhos subiram o penedo... Olharam boquiabertos

para os nossos amigos mostrando-lhes os seus dentes negros – que

mau hálito eles tinham! Não deviam lavar os dentes, os porcalhões!

Estes nunca antes tinham visto aqueles seres branquelas! Com

uma redes bem grossas cobriram-nos, arrastando-os dali para fora...

Com os solavancos e o cheiro intenso a nafta, os nossos amigos per-

deram os sentidos...

– SOCORRROOOOOOO! Estou a CAAAIR!

E não é que caiu mesmo?! Todavia, a queda deu-se em câmara

lenta, como na televisão... Estava na Lua... E a falta de gravidade

era um autêntico pára-quedas... Por sua vez, a Pita amparava o seu

tombo batendo as suas asas...

Como duas penas, as nossas amigas desceram lentamente, aos

ziguezagues, num campo de milho... Nele, uns robôzitos desenha-

vam umas figuras geométricas bizarras, empurrando uns rolos mui-

to pesados e grandes... Quase que elas os bombardeavam...

Page 93: Mãe, a Lua está estagada

93

Luís Sá Fernandes

CATRAPUM! – tocaram no solo! Havia espigas de milho

por todo o lado! A Pita sacudiu bem as penas, enquanto Penélope

despia o seu casaco felpudo... Ali a temperatura era amena – um

verdadeiro oásis lunar. Porém, tinham de ser sair dali e encontrar o

carreiro! Felizmente, o Lamparina voava sobre as espigas e indicou-

lhes o caminho! E correram, correram, no meio do milheiral.

Os dois rôbozitos-agricultores, que foram surpreendidos pela

a súbita aparição daqueles seres bizarros, deixaram de lado os seus

estranhos afazeres e aproximaram-se cuidadosamente...

– BZOING! Quem sois vós? Que fazeis por aqui? Não vêem que estão a estragar os nossos desenhos?!

– Pedimos imensas desculpas! Não foi por mal! – disse a Pita

galinha – Foi aquele Sr. Flamingo que nos largou dos ares! – e apon-

tou para o céu estrelado.

Lá estava aquela ave monumental aos rodopios, descendo sua-

vemente num voo em espiral... Por uns minutos tinha-os perdido

de vista, mas os seus olhos eram como dois binóculos – dos ares até

conseguia localizar uma agulha naquele imenso milheiral!

Aterrou mesmo à frente do grupo. Que grandes pernas tinha o

Sr. Flamingo! Era uma ave mesmo altiva!

– Meninas, o Sr. Júlio espera-as urgentemente na sua torre de

cristal!

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Mãe, a Lua está Estagada?

Por sua vez, os robôs sacudiram duas vezes as suas cabeças de

balde electrónico – BZOING! – encolheram os seus braços metáli-

cos e voltaram ao trabalho.

– Desculpe, Sr. Flamingo, mas agora vamos a pé! Já basta de

voos amalucados! A torre fica mesmo aqui ao lado! – disse Penélope

meio zangada.

– Se não se importam, eu acompanho-as também a pé. Por fa-

vor, não me tratem de Sr. Flamingo – o meu nome é Flambé!

– Está bem, Sr. Flambé, o flamingo! – disse o pirilampo Lamparina,

ziguezagueando em frente do seu longo bico ϑ.

Subiram. Desceram. Subiram novamente. Desceram outra vez. O

milheiral estendia-se até ao minarete cristalino... No cimo de um

dos montes, podiam ver-se os símbolos gravados naquele manto

verde... Cinco estavam acabados, um sexto estava ainda por com-

pletar... Eram círculos perfeitos, uns maiores, outros mais peque-

nos, arquitectavam lentamente padrões simétricos que tatuavam a

Paisagem...

Penélope continuava a achar tudo aquilo muito esquisito... La-

tinhas a estragaram aquele milheiral, sem mais nem menos, para

fazerem uns desenhos escanifobéticos.

– Mas por que é que os Latinhas estragam as espigas de milho

com aqueles pesadíssimos rolos, Sr. Flambé?

– Bem, é uma velha tradição que passou de Pai Flamingo para Fi-

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Luís Sá Fernandes

lho Flamingo! Nos princípio do Grande-Início viveu aqui uma civiliza-

ção poderosíssima que prestava o culto ao deus Atum1, o criador do

universo. Estes desenhos têm como objectivo prestar-lhe tributo,

de modo a que nos abençoe com a fertilidade dos campos... Éramos

nós antigamente que pisávamos o milho, mas ainda bem que o Sr.

Júlio inventou os Latinhas, assim podemos defender melhor o nosso

paraíso lunar!

– O deus ATUM?! Atum, não gosto nada de atum! Esse deus

não deve valê lá grande coisa...

– E o que é que aconteceu a essa civilização?

– Ninguém sabe ao certo... Subitamente desapareceram... Se

calhar o Udjat, o Olho de Hórus tornou-se demasiado pequeno para

eles... Só ficámos nós...

– E os Latinhas apareceram quando?

– Foi o Sr. Júlio que os fabricou, já lá vão quase cem anos... Foi

ele que mandou construir a grande torre cristalina ao estilo muçul-

mano... Nas mesquitas árabes há sempre um minarete, virado para

Meca – disse-me ele... Sabem, ele é muito culto – está sempre a ler

e a escrever!

Falando no demo... ela erguia-se mesmo à frente dos nossos

aventureiros... Era linda e delicada como uma mulher e quase tão

transparente como um fio de água!

1 Deus egípcio, o rei de todos os deuses, o criador do universo.

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96

Mãe, a Lua está Estagada?

Esta fora envolta numa espiral, uma grande rampa externa que

sucessivamente se ia elevando nas alturas até ao topo... Não se via

o interior da torre, as suas paredes eram foscas, todavia, olhando

atentamente, viam-se os vultos de Latinhas, bastante ocupados, a

subirem e a descerem escadarias invisíveis... Parecia uma torre de

gelatina...

Subiram a longa rampa. Quando chegaram a meio da subida...

BRUMMM! BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

Mais um lunamoto irritante... Até ali! Ninguém lhe escapava,

nem naquele oásis... A torre tremeu, abanou, ondulando como uma

cobra... Mas aguentou-se firme...

«Esse tal de Atum deve estar a detestar aqueles desenhos... E

mosta, assim, a sua fúria... Não goto nada dele! Que falta de gosto!»

– pensou a pequenita.

Chegaram ao topo da torre – no alto de uma abóbada, um

quarto-crescente de Vítreon quase ofuscava-lhes a visão... Uma porta

aberta abriu-se... Um senhor de barba branca com um chapéu de

comandante de navio estendeu-lhes os braços dando-lhes as boas

vindas... Era, quase de certeza, o tal do Sr. Júlio... Mas não parecia

ter cem anos?!

Page 97: Mãe, a Lua está estagada

97

Luís Sá Fernandes

Δ Δ Δ

Fagundes abriu os olhos lentamente... Um cheiro enjoativo Pai-

rava no ar... tornando-o pesado... Era difícil respirar...

Que visão medonha e sombria! Centenas de torres em ferro

erguiam-se verticalmente, como agulhas, espetando os céus. De-

zenas e dezenas de Grunhos, num sobe e desce constante, faziam

a sua manutenção. E tudo aquilo para quê? Para preservar o bem

mais valioso da Luna Incognita – a luz que, neste caso, era forneci-

da através do fogo. No topo de cada uma destas torres, labaredas

dançarinas alumiavam toda a Ilha de Draco – à sua volta um mar de

iogurte. Como um sopro dum bafo de dragão, elas iam e vinham

numa cadência ritmada... FLAMISH! Em baixo, um bairro

de casebres... Eram as tocas dos Grunhos, feitas em barro... Como

é que eles poderiam viver naquela imundice?!

Aos poucos e poucos, os companheiros de infortúnio iam abrin-

do os olhos lentamente e deparavam-se com a triste realidade – es-

tavam acorrentados a uns postes de ferro, no meio de uma grande

clareira. Provavelmente, seria o centro da cidade. Estavam assim

expostos em praça pública, como despojos de guerra.

Roquefort tentou forçar as correntes que lhe mordiam irri-

tantemente os seus pulsos e calcanhares... Mas, foi em vão! Não

havia folgas! A fuga era impossível! Papa-Lume ainda estava meio

atordoado e olhava desconsoladamente para o seu pêlo que, até há

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98

Mãe, a Lua está Estagada?

bem pouco tempo, fora branquinho e lustroso... Agora, estava negro

e pegajoso... O pior é que cheirava mal como tudo! Tinham-lhes,

provavelmente, retirado algumas camadas daquele líquido viscoso e

paralisante, mas, do pescoço para baixo, estavam irreconhecíveis –

eles que eram branquinhos como a Lua... Simplesmente, horrível!

Perto deles, dentro de uma cerca em ferro forjado, estavam

aprisionados os coitados dos Sarapintados... Ainda carregavam o

material da expedição no seu lombo. Poeiras conseguia ver dali a ca-

deirita encarnada da Penélope. Onde estaria ela agora? Fora levada

por aquele pássaro alado para o interior do Udjat, o Olho de Hórus...

Mas, era sempre bem melhor do que estar ali, naquele lugar hedion-

do e poluído! Aquelas labaredas simplesmente amedrontavam-nos,

pareciam dragões famintos e furiosos!

Ninguém lhes prestava a mínima atenção... Os Grunhos per-

diam-se nos seus afazeres. Em grandes fornos e bigornas, forjavam

espadas, lanças e setas, num martelar constante, ritmado e metali-

zado... Era ensurdecedor!

TRÁS, PÁS, CATRAPÁS!

Tal como os homens, os Grunhos dedicavam-se à guerra. Que

desperdício de tempo a dedicarem-se àquilo! A destruição não leva

a lado nenhum! Nada medra com o ódio! Enfim...

Passaram-se horas naquela tortura sonora, naquele formigueiro

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Luís Sá Fernandes

de grunhidos... Por fim, uma comitiva de Grunhos, acompanha-

da por uma bruxa muito feiosa, aproximou-se dos nossos amigui-

nhos... A comitiva era liderada por um Grunho, de bigode e pêra,

com um capacete bicudo, parecido aos do exército alemão da Pri-

meira Grande Guerra, e disse:

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Sou o Marechal Belendrau I, o Grunho dos Grunhos, e, antes

de vos comer num grande e faustoso banquete, gostaria de saber

quem sois vós? A vossa espécie não é conhecida por estas bandas!

Que fazíeis próximo do Udjat, o Olho de Hórus?

– A nossa missão é secreta! – disse Roquefort – viemos de Finis

Luna, o último entreposto lunar, no Lado Iluminado da Lua. Já agora,

onde estamos nós?

– Algures no Grande Lago de Iogurte, mais especificamente na Ilha

de Draco! Mas não mudeis de assunto! Aqui quem faz as perguntas

sou eu! Vós sois bastante mentirosos... Não há nenhum lado ilumina-

do, aqui em Emmental. Só o Vítreon de Udjat, o Olho de Hórus, a fonte

de vida, nos ilumina eternamente!

– Acredite, Excelência, que para lá da cordilheira de Vallis Alpes,

há muita luz!

– Mentirosos, detesto mentirosos!

«Como a Ignorância se confunde com a Mentira» – pensava

Poeiras com os seus botões, digo com os seus pêlos que estavam

muito sujos.

Pela primeira vez, a bruxa falou:

– Não se preocupe, Marechal, eu saberei, rapidamente, se o

atrevido conta a verdade!

– Despachai-vos com o serviço, bruxa Bidé!

A bruxa Bidé andou de um lado para o outro... Qual daqueles

ratitos seria a vítima dos seus feitiços? Hum, o ratinho Poeiras, o

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Luís Sá Fernandes

Roquefort, o Papa-Lume ou o Fagundes?

A Bidé aproximou-se do ratinho Fagundes e esbugalhou-lhe

bem os olhos – estes pareciam feitos de vidro e pouco a pouco

foram girando, girando, girando, até formarem duas pequenas

espirais penetrantes... A princípio Fagundes parecia resistir àquele

olhar, mas, passado alguns minutos, sucumbiu à hipnose... A bruxa

Bidé, feia e má, fechou-lhe suavemente as pálpebras e perguntou-

lhe:

– De onde vens?

– Do último Entreposto de Finis Luna...

– Que fazem por aqui?

– Procuramos uns companheiros...

– Quem?

– O ratinho Dentinho e o resto da expedição...

– Que procuram eles em Emmental?

– Emmental está estragada, buscam a sua cura...

Bidé, embora irritada por os não ter apanhado em falso, decla-

rou a sessão de hipnose por encerrada.

– Então dizíeis a verdade! Então Emmental está mesmo estraga-

da? Por isso estes tremores.... As torres de nafta, mais tarde ou mais

cedo, não resistirão à sua fúria! – o marechal Belendrau, impacien-

te, aproximou-se do ratinho Roquefort:

– E para onde é que eles se dirigiam?

– Em direcção do Crescente.

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Um Crescente, o que é um Crescente?

– Um Crescente é um quarto de Lua, digo, um quarto de Em-

mental!

– Onde fica o Crescente?

– Para lá das Grandes Pirâmides!

Belendrau, coçando a sua pêra, estava confuso com todas aque-

las estranhas revelações:

– Bem, já não precisamos destas ratazanas... Já sabemos tudo

aquilo que queríamos saber... Temos que tomar providências! Te-

mos que enviar uma patrulha de Grunhos até lá! – Belendrau olhou

para um grupo de Grunhos que estavam à sua beira – Orik, meu

Grunho de confiança, já sabes o que tens que fazer! – Orik abanou

afirmativamente a sua cabeça de melancia e partiu – Tragam o gran-

de caldeirão, hoje temos jantar!

– Hoje há sopa de ratos! – disse a Bidé aguada, esfregando as

mãos de contente.

Uns Grunhos, suando cascatas de suor pela sua pele viscosa,

trouxeram, a custo, o dito caldeirão. Pousaram-no mesmo no cen-

tro da clareira, deitaram-lhe nafta por debaixo e atiçaram-lhe lume.

O ferro forjado começou a aquecer, a aquecer, a aquecer...

“Que sorte danada!” – pensou Papa-Lume –, “um mal nunca

vem só!”

Fagundes no meio daquela desgraça, até tinha sorte, pois na sua

inconsciência, não sabia a sorte que lhe esperava...

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Luís Sá Fernandes

SERÁ QUE OS QUATRO RATITOS VÃO ACABAR COMO

O JOÃO RATÃO?

– Sejam bem-vindos a Udjat, o Olho de Hórus! – o Sr. Júlio re-

parou no ar cansado das duas amigas e do pequeno insecto. Pre-

cisavam de descansar um pouco – Mas eu estava à espera de sete

convidados? O que lhes aconteceu?

– Infelizmente não sabemos do seu paradeiro, desde que fomos

raptadas pelo flamingo Flambé, no meio da batalha. Certamente, que

estão em apuros! – disse a Galinha Pita, com uma voz preocupada.

– Flambé, se me fizeres um favor, vai à procura do General Latão

e diz-lhe para se encontrar urgentemente comigo, nos meus apo-

sentos. Obrigado.

E o pernalta do flamingo bateu as asas dali para fora... Como era

bonito vê-lo a voar, em terra tinha um ar mesmo desajeitado... As

aparências iludem, meus amigos!

– Entremos, por favor, entremos!

No topo do minarete, ficavam os faustosos aposentos do Sr.

Júlio. Para lá chegarem, subiram através de um antigo elevador, do

início do século XX, em que as suas portas de metal se fechavam em

acordeão. Era um grandioso salão, todo ele decorado com motivos

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Mãe, a Lua está Estagada?

marítimos: bússolas, escafandros, bóias, redes e âncoras... Simples-

mente indescritível! No extremo esquerdo, havia uma pequena bi-

blioteca e uma secretária. Lamparina zumbiu por ali, mesmo por

cima de uns apontamentos do Sr. Júlio:«Estará ele a escrever um

livro? Será ele um escritor?» Mas o que impressionava mais era uma

placa gigantesca, em cobre, onde a palavra “Nautilus” estava grava-

da. No lado oposto, por entre a transparência das paredes exterio-

res da torre, grandes aquários borbulhavam com peixes tropicais

de mil e uma cores. Era ali que se situava a cama bastante larga do

Sr. Júlio. No meio do salão, um grande sofá encarnado, em forma

de meia-lua, impunha-se. A parede a Norte, estranhamente, estava

vazia, sem qualquer tipo de decoração; no entanto, já a parede Sul,

abria-se, através de umas grandes janelas e de uma bela varanda, aos

verdes campos de Udjat, o Olho de Hórus. Dali, conseguiam admirar-

se os azuis riachos de águas puras e cristalinas que percorriam as co-

linas, até se deterem em pequenas lagoas, onde os peixes saltitavam

de alegria! Que bela paisagem!

– Sabem, há longas semanas que estava à vossa espera!

– À nossa espera? – interrogou a galinha Pita.

– Sim, não sois os primeiros a passarem por aqui...

– O DENTINHO E A SUA EXPEDIÇÃO! – disseram as duas

amigas, ao mesmo tempo.

– Eles mesmos! Vinham cheios de pressa... Algo se passava para

além das Grandes Pirâmides... Ajudei-os no que pude... Pelo que

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Luís Sá Fernandes

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Mãe, a Lua está Estagada?

me apercebi, estes não tiveram qualquer tipo de contacto com os

Grunhos nem com as bruxas do Ceilão... Descansaram dois dias e

partiram. Dois dias depois, começaram estes tremores sucessivos e

incomodativos – desde a ”Ilha Misteriosa” que isto não acontecia...

O que nos vale, é que o minarete é anti-sísmico! Abana, mas não

quebra!

– Qual será a origem desses lunamotos? – perguntou o Príncipe Lam-

parina.

– Bem, não sei! Mas deve haver uma relação entre eles e a pas-

sagem da expedição por aqui... Algo de irreversível está a acontecer

em Emmental! Na minha modesta opinião, penso que a Lua, aos

poucos e poucos, está a desfazer-se!

– Mas, por mera curiosidade, quem é o Senhor e o que faz por aqui?

– Bem, o meu nome é Júlio Verne e fui em tempo um grande

escritor... Em 1905, estava tão farto de viver no planeta Terra que

decidi ir viver em definitivo para a Lua, pois é um lugar tranqui-

lo... Sabem, preciso de muita tranquilidade para escrever os meus

livros... O nosso planeta estava a tornar-se demasiado violento para

o meu gosto e muito poluído, consequência de uma Revolução In-

dustrial descontrolada... Então, tal como na minha obra, “Da Terra

à Lua”, mandei construir um grande canhão, do tamanho de um

prédio de sete andares! Era magnífico!

Penélope bateu palmas, tal era a excitação:

– Uma vez, vi no circo um homem-bala que era disparado pelos

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Luís Sá Fernandes

ares, até cair no cimo de uma rede! Fez o mesmo, Sr. Júlio?

O Sr. Júlio sorriu, afagando as suas barbas...

– Não, não fui um homem-bala, mas viajei dentro de uma...

Era linda, toda ela feita em prata, mas oca por dentro, com sofás

forrados em veludo e equipada com tecnologia demasiada avançada

para a época – sabem, fui eu que inventei o primeiro computador!

– disse ele todo orgulhoso.

– O meu Pai está sempre a trabalhar nesse “putador”!

– Assim, no dia 24 de Março de 1905 , a ficção tornou-se rea-

lidade e... BUUMM! Fui disparado para a Lua, a minha musa

inspiradora! Viajei no espaço durante quatro dias; gravitei cinco

vezes à volta da Lua... E no seu Lado Obscuro pude vislumbrar,

pela primeira vez, o Olho de Hórus, o Udjat, esta cratera verdejante

e fantástica iluminada pelo Vítreon. Na completa escuridão, o Udjat,

o Olho de Hórus parecia Nova Iorque vista pelos ares, grandiosa...

Então, resolvi descer para investigar tal maravilha! Os seus únicos

habitantes eram os flamingos e as nuvens de ovelhas. Estes eram

alvos da cobiça dos Grunhos... Estes queriam o Vítreon Sagrado...

Então, resolvi ajudá-los! Construí esta torre e criei os Latinhas para

protegerem o Udjat, o Olho de Hórus e para cultivarem os campos...

Desde então, que vivo aqui a cultivar, não os campos, mas a escrita...

– Que história fabulosa! – disse a galinha Pita – Parece a nossa

aventura!

– Mas para onde foram os ratinhos?

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Aproximem-se, por favor, da parede do fundo.

Do bolso, tirou um controlo remoto e pressionou num botão...

Havia ali uma parede falsa... Uma grande janela panorâmica abria-

se lentamente para a outra extremidade do Udjat, o Olho de Hórus...

ΔΔΔ

Desta vez, estavam bem tramados... Iriam servir de petisco às

bruxas e aos Grunhos... O caldeirão estava a ferver! Iam ser cozidos!

Que horrível!

Dezenas de Grunhos organizavam os preparativos do banquete:

mesas, bancos, pratos e talheres. Enquanto isso, outras dezenas de

bruxas estacionavam as suas vassouras bem perto do caldeirão e dos

nossos amigos. VUUMM! De mão dada, cantavam, em coro,

à sua volta:

– OLÉ, OLÁ! VAMOS COMER UMA SOPA DE RATINHOS!

OLÁ, OLÉ! SÃO GORDOS E TENRINHOS!

Roquefort, Poeiras e Papa-Lume tremiam de medo! Fagundes,

aos poucos e poucos, ganhava a consciência do estranho feitiço –

estava ainda meio atordoado e não percebia a razão de toda aquela

agitação!

Papa-Lume tentou afrouxar, mais uma vez, as correntes, através

de vários solavancos. Todavia, estas estavam bem apertadas... O que

fazer? Só um milagre os poderia salvar! E das entranhas da Lua, o

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Luís Sá Fernandes

milagre surgiu!

BRUMMM! BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

O lunamoto durou cerca de trinta segundos, mas parecia uma

eternidade! Todas as pedras da Lua saltavam como pipocas: os ca-

sebres de barro dos Grunhos estalaram e as suas torres de nafta

tremeram, tremeram, tremeram, como varas verdes! Por sua vez, os

postes onde os ratinhos estavam presos, balançaram para a esquer-

da, balançaram para a direita, para a frente e para trás e... PUNK! Tombaram de lado, sem ferir milagrosamente os ratinhos, que-

brando, as correntes que os aprisionavam! E não ficou por ali... O

caldeirão, virou-se e... Rebolou, rebolou, rebolou, desfazendo em

pedaços as mesas do banquete! CATRAPÁS!– QUE BELA OPORTUNIDADE PARA FUGIRMOS! – gritou

Roquefort – CORRAM, AMIGOS, CORRAM!

Poeiras agarrou pelos ombros o ratinho Fagundes – este ain-

da não se tinha totalmente recuperado... A confusão era geral! Os

Grunhos grunhiam de pânico e as bruxas levantaram os seus saiotes

negros e correram para debaixo das torres...

Enquanto isso, os nossos amigos andavam à voltas e voltas...

Para onde fugir? Estavam cercados por iogurte de ananás congela-

do, na Ilha de Draco... À mínima escorregadela, seriam facilmente

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Mãe, a Lua está Estagada?

apanhados!

– FUJAMOS NAS VASSOURAS DAS BRUXAS MALVADAS!

– disse o Poeiras.

– Boa ideia! Eureka! Corram para as vassouras que eu vou atra-

sá-los!

Papa-Lume, perito em tudo o que fosse relacionado com o fogo,

pegou na lata de nafta que os Grunhos trouxeram para acender o

lume e, em linha recta, verteu-a até ao rastro de lume que o cal-

deirão tinha deixado... FLAMISH! Uma cortina de chamas

soprou pelos ares, formando uma grande barreira de lume... O pâ-

nico dos Grunhos e das bruxas aumentou! Desta forma, os ratinhos

ganharam algum tempo de avanço! Correram, correram, correram,

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Luís Sá Fernandes

sem fôlego, até às vassouras – os seus cabos estavam encostados, em

cone, uns aos outros. Pegaram-lhes e montaram-nas... Mas, nada...

Não voavam!

– VOEM, VASSOURINHAS, VOEM! – gritou Fagundes.

E nada! «Se calhar, precisam de algum feitiço?»

– ZÁS, TRÁS, CATRAPÁS! VOEM, VASSOURITAS, VOEM! –

gritou, desta vez, Poeiras.

Nada! Nem se mexeram!

– Se calhar, basta sermos educados e mais simpáticos – disse

Roquefort – Vassourinhas, sejam nossas amigas e, se fizerem o fa-

vor, voem!

E como as vassourinhas eram muito educadas e nunca tinham

sido, até a esse momento, tratadas com delicadeza, resolveram

conceder-lhes o pedido, voando dali para fora! VUUMM! Para a esquerda! VUUMMM! Rodopio para a direita!

Porém, os ratitos não se esqueceram de salvar os Sarapintados!

VUUMMM! Num voo rasante, Fagundes abriu as cercas

que encurralavam os Sarapintados... No entanto, como estes esta-

vam também em pânico com o lunamoto e com aquelas labaredas as-

sustadoras, saíram precipitadamente... POING! POING! Alguns chocaram entre si! CATRAPUM! E o terrível acon-

teceu! A cadeirinha mágica de Penélope quebrou-se em pedaços!

CATRAPÁS!«Como é que a Penélope voltará à Terra? Espero que ela não

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Mãe, a Lua está Estagada?

diga que eu fui culpado disto tudo!» – pensou Fagundes, cheio de

suores frios.

(Estaria ela condenada a permanecer eternamente na Lua? Ai,

ai, a sua Mãe é que se arreliaria muito com isso!)

– VAMOS, FAGUNDES, FUJAMOS! Não há nada a fazer! Não

podemos chorar pelo leite derramado!

E VUUMMM! Fugiram. Para trás, deixaram o caos: os

Grunhos preocupavam-se em salvar os seus haveres e em apagar o

grande incêndio... E subiram, subiram, subiram! Mas não foi as-

sim tão fácil! As malandras das bruxas, lideradas pela bruxa Bidé,

estavam muito furiosas e zangadas! E digo mais – zangadas e furio-

sas! Mal conseguiram ultrapassar a coluna de chamas, alcançaram

as restantes vassouras dando-lhes duas valentes chibatadas... As vas-

souritas, com o susto, deram um grande pinote nos ares e lá foram

em perseguição dos nossos amiguinhos. VUUMMM! Os

ratinhos tinham algum avanço sobre as bruxas malvadas, mas não

era o suficiente para escapar – ziguezaguearam, subiram em espiral,

desceram a pique, mas elas continuavam no seu encalço. Poeiras

olhou para trás:

– Olhem, as bruxas feiosas e desdentadas continuam atrás de

nós...

– Para onde fugir? – perguntou Roquefort.

– Em direcção da luz! Para o Udjat, o Olho de Hórus!

– Por favor, vassourinhas, voem mais depressa! – suplicou Pa-

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Luís Sá Fernandes

pa-Lume.

E como elas nunca foram tão bem tratadas... Voaram, voaram,

voaram o mais que podiam... E lá foram eles, pareciam verda-

deiros foguetes!

A janela abriu-se completamente...

Do lado norte do Udjat, o Olho de Hórus, a luz emanada pelo Ví-

treon era mais fraca, dando uma atmosfera sombria àquele território.

Além disso, os terrenos, desde o minarete até ao sopé rochoso do

cone da grande cratera que formava o Udjat, o Olho de Hórus, não

estavam cultivados... Por que razão, quereria o Sr. Júlio uma janela

panorâmica para aquele deserto lunar? Nem vivalma passava por ali?

Todavia o Sr. Júlio carregou noutro botão do controlo remo-

to e BRUMMM! CATRAPUM! Um pequeno tremor

sentiu-se ao longo da estrutura da torre... FANTÁSTICO! Lenta-

mente abriram-se três grandes fendas no cone da cratera, uma bem

ao meio e as outras duas a nordeste e a noroeste... Do outro lado,

a completa escuridão... Mas tudo aquilo ainda não terminara... Das

profundezas do Udjat, o Olho de Hórus, bem perto da torre gelatino-

sa, três colunas metálicas, elevaram-se a quinze metros de altura.

Na extremidade de cada uma delas, havia um espelho, em forma

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Mãe, a Lua está Estagada?

triangular e ZUUUPPT! CLINK! Cada um desses es-

pelhos abriu-se em leque, formando uma concha gigantesca espe-

lhada, com cinco metros de diâmetro. Por sua vez, na encosta da

cratera, surgiram, como cogumelos, centenas de pequenos espe-

lhos côncavos, reflectindo a luz do Vítreon, para o epicentro das três

conchas espelhadas... Estas ficaram, aos poucos e poucos, cada vez

mais intensas, cheias de energia acumulada, até que... FLASH! FLASH! FLASH! Três fachos de luz cruzaram cada uma

das fendas abertas no Udjat, o Olho de Hórus, penetrando na imensa

escuridão lunar... E PIMBA! Num golpe de magia, desvendaram os

três colossos lunares: a noroeste, a pirâmide dourada de Ísis; esta

é a mais popular de todas as deusas egípcias, o modelo das esposas

e mães, a protectora, de magia invencível.; a Norte, a pirâmide de

marfim de Tot, sendo esta a maior. Tot era um deus cordato, sá-

bio, assistente e secretário-arquivista dos deuses, divindade à qual

era atribuída a revelação ao homem de quase todas as disciplinas

intelectuais: a escrita, a aritmética, as ciências em geral e a magia.

Era o deus-escriba e o deus letrado por excelência; e finalmente, a

nordeste, a marmórea pirâmide de Osíris, deus egípcio que reina no

mundo subterrâneo e julga os mortos, com os quais pode cooperar,

com o sol, na sua viagem nocturna.

Que deslumbramento! O vértice de cada uma das pirâmides

era feito em ouro! Não há palavras para descrever essas maravilhas

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Luís Sá Fernandes

lunares...

– Que mecanismo engenhoso, Sr. Júlio! – exclamou o Lamparina.

– É mesmo, não é?! Tem como base a refracção da luz....

– Seja lá o que for, é espectacular essa fricção! – disse a Pita

Galinha.

– Foi o Senhor que inventou este mecanismo? – questionou

Penélope.

– Não. Este já existia, quando eu cheguei à Lua. Uma civilização

Pré-Egípcia, provavelmente, construiu esta máquina de espelhos e

deixou-a sempre ligada. Por que razão? Ninguém o sabe... Na mi-

nha opinião, a Lua serviu de base intermédia para colonizar o nosso

planeta azul. Mas tudo isto não passa de suposições... Olhem, estão

a ver o foco de luz que ilumina a pirâmide central? A meio do ca-

minho, estão os destroços da minha bala... Quando cheguei à Lua,

bastou-me seguir a luz, até ao centro do Udjat, o Olho de Hórus... O

seu brilho é tão intenso que quase que nos cega a vista... Por sorte,

tinha no meio das minhas ferramentas uns óculos de soldar...

– E já esteve em alguma das pirâmides?

– Não. Preocupei-me somente a desenvolver a agricultura no

Udjat, o Olho de Hórus e a protegê-lo. Para além disso, a escrita ocu-

pa-me o meu tempo livre... A única informação que vos posso dar

é que as pirâmides estão, segundo os meus cálculos, afastadas cem

quilómetros umas das outras, e aproximadamente a cinquenta qui-

lómetros de distância daqui.

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Mãe, a Lua está Estagada?

– E para lá das pirâmides, o que há? – perguntou Penélope.

– Não cheguei a explorar mais nada... Aparentemente, uma vas-

to deserto lunar... Os vossos amigos foram em direcção da pirâmide

de Tot...

De repente, bateram à porta... Viraram-se todos para trás...

– Entre, por favor...

CLINK! CLOINK! Era o General Latão. Este tinha

muitas medalhas, uns binóculos ao peito e um chapéu à Napoleão.

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Luís Sá Fernandes

– Chamou, Excelência? Bzoing!-Sim, meu General, temos uma missão de salvamento a reali-

zar...

E foi interrompido. Nesse preciso momento...

UUÁÁÁÁÁÁ! UUÁÁÁÁÁÁ! UUÁÁÁÁÁÁ! UUÁÁÁÁÁÁ!

As sirenes, antiaéreas, começaram a soar... O som era muito

agudo e ensurdecedor. Parecia que estavam num filme da Segunda

Grande Guerra Mundial, quando Londres era bombardeada pela

força aérea Nazi...

– Estamos a ser atacados! Alguém penetrou no espaço aéreo! Bzoing !O nosso radar anti-bruxas não engana! Bzoing!

Saíram todos a correr dos aposentos do Sr. Júlio... O suposto

ataque vinha do lado Sudoeste do Udjat, o Olho de Hórus! No topo do

minarete tinha-se uma perspectiva única de toda a movimentação

dos Latinhas. O território ainda estava a recuperar do último luna-

moto... Mesmo assim um formigueiro de Latinhas ocorreu ao limite

sul do Udjat, o Olho de Hórus, acompanhados por bandos de fla-

mingos cor-de-rosa pernaltas que levantaram voo dos arrozais para

defenderem mais um ataque...

– Vem aí qualquer coisa... General Latão pode passar-me os

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Mãe, a Lua está Estagada?

seus binóculos?

– Com certeza, Excelência! Bzoing!O Sr. Júlio espreitou pelos binóculos – viam-se nove pontinhos,

num voo desconcertante, pareciam moscas a voar nervosamente.

Quando estes entraram na cratera, catapultas medievais, as anti-

áereas do Udjat, o Olho de Hórus, lançaram granadas de Vítreon... dois

tombaram lá bem no alto... Por sua vez, dois flamingos conseguiram

abater um outro ponto negro...

– Mesmo assim, penetraram no Udjat, Exce-lência! Bzoing!

– Espero que os flamingos evitem a sua progressão...

– Também gostava de poder ver! – disse Penélope.

Sr. Júlio passou-lhe os binóculos. Mal Penélope encostou-os ao

nariz, deu um pulo de alegria:

– São os nossos companheiros! Mas não estão sós...

ΔΔΔ

Os ratinhos estavam a ser perseguidos pela bruxa Bidé e por

uma outra bruxa malvada. Os ratinhos fizeram um voo rasante, bem

perto da superfície dos arrozais e a água até fez ondas e tudo.

– Amigos, agora que estamos em maior número, separemo-nos!

– ordenou Papa-Lume lá dos ares.

Dito e feito. Roquefort e Fagundes viraram para a esquerda,

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Luís Sá Fernandes

Papa-Lume e Poeiras para a direita. As bruxas fizeram o mesmo,

mas ao dividirem-se, caíram na armadilha... Enquanto que uma de-

las perseguia afincadamente o ratinho Roquefort, Fagundes fez um

voo paralelo à sua vassoura, dando-lhe bastantes pontapés na canela.

A bruxa malvada não resistiu à dor e caiu lá do alto...

Í O M M M M M M M M M M M M ! SPLASH!

Mergulhou de chapa no meio do arrozal, sendo logo feita pri-

sioneira por uma patrulha de Latinhas. Já a bruxa Bidé foi difícil de

dominar... A vassourinha de Poeiras estava muito cansada – era um

ratito redondinho e pesadote. Deste modo, a Bidé não teve dificul-

dades em alcançá-lo:

– Anda cá, minha ratazana atrevida! Vou dar-te uma lição que

jamais te vais esquecer!

E sem meias medidas, saltou-lhe para a vassoura... ZUPT!– Sai daqui, bruxa peçonhenta! A vassoura não aguenta o peso

dos dois!

– Não faz mal, seu rato de esgoto!

E começou a puxar com as suas mãos enrugadas os bigodes e as

orelhas do pobre ratito...

– AI! AI! SOCORRO, PAPA-LUME, ACODE-ME!

E foi o que fez... Papa-Lume deu meia volta e desceu, desceu,

desceu, passando por cima de uma pilha de granadas de Vítreon

que estava à beira de uma catapulta... Estendeu a patinha e roubou

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Mãe, a Lua está Estagada?

uma... Depois, subiu, subiu, subiu, ao encontro de Poeiras, a

Bruxa dava-lhe cabo do juízo e dos bigodes...

– Quem és tu, rato de biblioteca? Depois de dar uma lição a

este papo-seco, vais aprender a tabuada comigo! – apontando-lhe o

dedo indicador.

– Quem se ri por último, ri-se melhor! Toma lá, que é para

estares calada!

E Papa-lume espetou-lhe a granada de Vítreon pelo nariz pontia-

gudo e cheio de verrugas... ZÁS! TRÁS! Toda ela se iluminou

por dentro. Até se conseguia ver o seu esqueleto! Depois, depois

transformou-se logo em pedra! O problema é que ela não caiu logo

da vassoura abaixo... Transformada em estátua o seu peso aumentou

vinte vezes! A coitadita da vassoura não aguentou com o peso dos

dois passageiros e começou a cair a pique... em direcção da torre

gelatinosa...

ÍOMMMMMMMMMMMM! Poeiras puxava, em vão, o cabo da vassoura... A última coisa que

viu foi um chapéu de Napoleão ...

– Baixem as vossas cabeças! Eles vêm contra nós! – avisou o Sr.

Júlio, tarde demais!

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Luís Sá Fernandes

Bzoing ? CATRAPÁS! O General Latão não teve tempo de reagir ao aviso do Sr. Júlio

– o cabo da vassoura arrancara-lhe a cabeça, sendo projectada pelos

ares a cinco metros de distância... PLINK! PLOINK! PLUNK! A sorte de Poeiras é que as portas dos aposentos do

Sr. Júlio estavam abertas, estatelando-se confortavelmente, no sofá

encarnado em figura de meia-lua.

POING! POING! CATRAPOING! Já a bruxa Bidé, não teve a mesma sorte...

CATRAPÁS! PÁS! Desfez-se em cacos de ruindade! Como diz o ditado:

“QUEM SEMEIA VENTOS, COLHE TEMPESTADES!”

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Luís Sá Fernandes

8

Nos dias seguintes, toda a expedição recuperou forças. o can-

saço não perdoa... As últimas aventuras foram muito cansativas e

perigosas!

Os ratinhos já estavam todos limpinhos – o Sr. Júlio dera-lhes

um champô e um amaciador especial para o pêlo delicado, nem

pareciam os mesmos! Já a Penélope foi difícil de consolar, pois per-

dera o seu bilhete de volta para casa – a sua cadeirita mágica partira-

se em pedaços com a fuga dos Sarapintados... Porém, o Sr. Júlio

prometera-lhe uma solução para o seu caso...

Os nossos amigos ratinhos ficaram maravilhado com aquele

oásis lunar... Nunca tinham comido legumes e cereais... Fagundes

pensou logo em fazer trocas comerciais entre o Lado Obscuro e o

Iluminado da Lua – criariam a Rota do Queijo e dos Vegetais. O proble-

ma seria evitar a Ilha de Draco e os seus habitantes... Logo se pensaria

nisso...

Impressionante, impressionante, eram aquelas parabólicas gi-

gantescas e espelhadas que apunhalavam a escuridão, desvendando

os três gigantes adormecidos... A próxima parada seria a Pirâmide de

Tot...

Terminados os preparativos, chegara a hora de partir, mais uma

vez, para o desconhecido... Tinham agora de ir a pé e carregar tudo

às costas, pois já não tinham os Sarapintados para carregar todo o

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Mãe, a Lua está Estagada?

material... Por isso, o equipamento necessário iria dentro de umas

mochilas douradas. Assim, cada um dos aventureiros trazia consigo:

um kit alimentar, uma tenda, um saco-cama, uma pedra de Vítreon,

em estado puro, enrolada num pano negro de veludo, caso preci-

sassem de luz artificial, umas granadas de Vítreon, para protecção, e

foram-lhes dados uns óculos hiper-escuros, de modo a penetrarem

em segurança no foco de luz, sem ferir a vista – não nos esqueçamos

que os Íris, uns óculos especiais para ver na escuridão, já recarrega-

dos, acompanharam os nossos amiguinhos no seu périplo desde a

partida do Entreposto de Finis Luna...

Segundo o Sr. Júlio, o foco de luz era o caminho mais segu-

ro para Tot, visto que quem estava de fora não conseguiria ver o

que se passava no seu interior... Certamente teriam a companhia

dos Grunhos, pois Belendrau I mandara uma patrulha à procura

do Crescente. Para além do mais, os Grunhos e as bruxas malvadas

eram alérgicos a tanta luminosidade e ficariam logo cegos com tanta

luz... Assim não se atreveriam a lá entrar... Finalmente, para que os

nossos amigos não ficassem demasiado bronzeados, foram-lhes fei-

tos, à medida, uns fatos prateados reflectores e até a vaidosa da Pita

Galinha tinha um... Penélope vestiu o seu por cima do seu pijamita

azul com ursinhos desenhados... Fora feito mesmo à medida!

Enquanto, terminavam os preparativos, o ratinho Poeiras e o

Sr. Júlio passaram “dia e noite” (um pouco confuso, não? Na Lua,

ou era sempre noite ou era sempre dia, consoante o lado) a ler

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Luís Sá Fernandes

o Portulano de Luna Incognita... O tracejado do percurso a tomar

encaminhava-se para o coração da pirâmide central mas, porém,

não havia nenhuma planta do seu interior.

Para se saber mais sobre pirâmides, o Sr Júlio, na sua vasta bi-

blioteca, foi à procura de um livro que lhe desse informações sobre

este tipo de construção. E lá encontrou uma “Enciclopédia Univer-

sal” que reúne todo o tipo de saberes... Segundo esta, a pirâmide de

Khufu, em Guiza, era a maior de todas elas e fora mandada construir

pelo faraó com o mesmo nome, para o seu descanso eterno. A sua

sepultura ficava mesmo no seu centro – havia apenas um corredor

ascendente que ligava ao exterior, no entanto, a saída, logo após o

enterro do faraó, fora encerrada por grandes blocos de pedra, de

modo a manter-se inacessível e secreta. Mesmo assim, os ladrões

conseguiram pilhar a sua tumba com todos os seus tesouros...

Teriam estas pirâmides lunares a mesma arquitectura? Servi-

riam elas também de sepultura? Talvez... E o que estaria nelas se-

pultado? QUE MEDO!

Depois, o mesmo tracejado dirigia-se para fora da Pirâmide de

Tot, ultrapassando os pilares de Pharos rumo a um quarto-crescen-

te... O que seria aquilo? O Sr. Júlio nunca fora para tão longe... A

única coisa que sabia era que para além das pirâmides só reina-

va o breu... Pudera, ele não tinha nenhum portulano que lhe desse

essa informação! Para ajudar futuras investigações nas pirâmides, o

Sr. Júlio emprestou a Poeiras a sua “Enciclopédia Universal”, con-

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Mãe, a Lua está Estagada?

densada num só volume, com uma encadernação magnificamente

dourada, e cedeu-lhe também, provisoriamente, o seu “Dicionário

Universal” para traduzir todas as línguas imagináveis...

Essa noite custou a passar... Penélope perdera-se, mais uma vez,

em pensamentos... Estava cada vez mais mais longe de casa! O que

estariam os seus Pais, a VóCina e a Tia Bitis a fazer? Há duas semanas

que saíra de casa... De certeza, que os seus amigos no infantário

estariam a brincar com os seus brinquedos! Mas tudo aquilo parecia

insignificante, enquanto a Lua estivesse em risco de ser completa-

mente destruída!

Quase toda a população de latinhas e flamingos veio despedir-

se dos aventureiros... O Sr. Júlio abraçou-os um a um, desejando-

lhes boa sorte! E puseram-se a caminho – entraram no foco de luz

central que levava à Pirâmide de Tot e, num abrir e fechar de olhos,

evaporaram-se como fantasmas!

O brilho era muito intenso mas conseguiam ver bem porque,

para já, caminhavam de costas viradas para a luz e, além do mais,

porque tinham colocado os seus óculos hiper-escuros – até o Lampa-

rina tinha uns minúsculos! Surpreendentemente, ali a temperatura

era amena. Porém, à última da hora, lembraram-se de trazer uns

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Luís Sá Fernandes

casacos felpudos, caso ainda fosse necessário combater o frio...

Andaram cerca de dez quilómetros sem nenhum sobressalto!

Até que... subitamente, começaram a ouvir uns barulhos a passarem

sobre as suas cabeças... VUUMMM! E uns grunhidos...

GRUM! NHOCK! GRUM! NHOCK! NHOCK!

Seriam os Grunhos e as bruxas malvadas? Dentro do foco de

luz era impossível saber o que se passava no exterior e vice-versa...

Só que a tonta da Pita Galinha, não deu tempo nem para pensar...

Devido à sua extrema curiosidade, atreveu-se a atravessar momen-

taneamente a barreira de luz... Lentamente, pôs o seu bico de gali-

náceo de fora, uma asa, duas asas, o resto da cabeça e... BUUUU!

QUE SUSTO! Deu de caras, com um rosto horrível de um Grunho

de nariz abatatado e desdentado! Que mau hálito! Os seus olhos

eram enormes, cheios de derrames, vermelhos de fúria, e quase que

a comiam viva!

– Anda cá, sua ave rara!

E puxou-a pelo pescoço, para o meio da escuridão... Só o Lam-

parina e a Penélope deram pelo sucedido, dando o alerta...

– A PITA GALINHA FOI PUXADA, PARA FORA DO FOCO!

– a caravana parou imediatamente a sua marcha.

Sem pensar, num impulso, Lamparina cruzou a fronteira lumi-

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Mãe, a Lua está Estagada?

nosa e penetrou também na escuridão...

A Pita Galinha estava em apuros: esperneava e batia as suas asas,

tentando soltar-se das grandes manápulas de um Grunho que se

babava de fome:

– Já tenho jantar! Canja de Galinha!

Só havia uma solução – aplicar a técnica Kamikaze... Lamparina

bateu as suas pequenas asas, o mais que pôde; deu duas piruetas no

ar ϑϑ e lançou-se para um dos olhos remelosos do Grunho.

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Luís Sá Fernandes

VUUUUUUM! VUUUUUUM! PLUFT! – ia-

lhe cegando a vista. Este, com o pânico e o susto, largou imediata-

mente a Pita! Foi o momento ideal para a Pita se escapar – bateu as

asas dali para fora e penetrou novamente no foco protector, acom-

panhada pelo Lamparina... Este último foi aclamado como um ver-

dadeiro herói pelos ratinhos, enquanto que a Pita Galinha apanhou

um valente raspanete da Penélope – a “curiosidade ia matando o

gato”, neste caso, o galináceo!

Como previsto, a meio do percurso, entre o Udjat, o Olho de

Hórus e as Pirâmides, os nossos amigos encontraram a bala prateada

com que o Sr. Júlio cruzara o firmamento até à Lua. Esta estava com

a sua extremidade enterrada no solo lunar... Do seu lado esquerdo,

havia uma portinhola toda escancarada. Entraram...

O seu interior estava todo num reboliço, parecia o quarto da

Penélope, após um dia de brincadeiras.... Havia talheres e cacos de

loiça espalhados pelo chão; os instrumentos de navegação da bala-

espacial estavam avariados e cheios de pó... O embate da bala na

superfície lunar fora muito forte! Mesmo assim, no meio daquela

confusão, conseguiram encontrar uma caixa de primeiros-socorros

e uma pistola de sinalização que o ratinho Papa-Lume guardou

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Mãe, a Lua está Estagada?

cuidadosamente na sua mochila. Um dia, poderiam vir a ser úteis!

E prosseguiram viagem...

Andaram, andaram, andaram, até chegarem à base qua-

drangular da Pirâmide de Tot, o deus da sabedoria e da Lua... To-

dos os ratinhos tactearam-na... Quão grandiosa e imponente era

aquela obra arquitectónica, aquele magnífico monumento lunar! O

seu vértice era revestido a oiro e a sua face iluminada era toda ela

ladrilhada em marfim... Mas ali não havia elefantes? Não interessa,

era coberta de marfim!

Aparentemente, não havia nenhuma entrada naquela face trian-

gular da pirâmide... Estaria ela escondida, por debaixo de um da-

queles ladrilhos? Talvez, porém a sua face era tão lisa e escorregadia

que era impossível escalá-la. Restava explorar as restantes três faces

da pirâmide... Porventura, a mesma situação repetir-se-ia mas ha-

via, ao menos, que tentar! Só que agora existia um outro problema,

estas não estavam sob a protecção do foco de luz vindo do interior

do Udjat, o Olho de Hórus! Os nosso amiguinhos ficariam, assim, ex-

postos à malvadez dos Grunhos e das bruxas! Contudo, Papa-Lume

teve uma ideia!

– Para reduzirmos o risco de cairmos numa armadilha, eu pedi-

ria ao Príncipe Lamparina, que é muito pequeno e passa facilmente

despercebido, para dar uma vista de olhos ao outro lado da pirâmi-

de... Talvez a costa esteja livre...

Assim dito, assim feito! VUUUUUUUUUUUUM!

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Luís Sá Fernandes

VUUUUUUM! Volta, reviravolta, pirueta, espiral à direita

e Lamparina desapareceu no breu... esperaram cinco, dez minu-

tos, um quarto de hora... Até que... VUUUUUUUUM! VUUUUUUM! O Lamparina estava de volta!

– Meus amigos, não há nenhum Grunho à vista...

Mesmo assim, os nossos aventureiros arriscaram... ERA TUDO

OU NADA! Assim, sacaram da mochila as granadas de Vítreon e, mal

saíram da luz protectora do foco, substituíram de imediato os ócu-

los hiper-escuros pelos Íris, aguardando o pior... No entanto... nem

sombra de Grunhos e de bruxas... Onde estariam eles?

Estavam situados na esquina das duas faces da pirâmide... Con-

tornaram, durante algum tempo a outra face semi-sombria e, quan-

do chegaram à face oposta da pirâmide, encontraram o caos, no

meio de um aparente silêncio sepulcral...

Estavam a uns sete metros de uma falésia! Um quarto de Lua

tinha desaparecido misteriosamente... À sua frente estendia-se o

espaço sideral, ofuscado por nuvens de gazes roxos, verdes e alaran-

jados... A Lua parecia uma sanduíche abocanhada por um gigante,

formando um arco de centenas e centenas de quilómetros... Em

cada uma das pontas da mordidela, conseguia-se observar, ao longe,

as pirâmides de Ísis e de Osíris.... Estas estavam também à beirinha

da boca infernal, enubladas pelos mesmos gazes...

Então, é que repararam... Que fantástico! Em cada face norte

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Mãe, a Lua está Estagada?

das três pirâmides, estendia-se um grande punho em ébano cuja

respectiva mão estava completamente aberta! Que construções tão

exóticas! Eu diria mesmo, bizarras! Até então, nunca se vira uma

pirâmide que estendia um braço de mão aberta!

– Houve algo ou alguém que desconcertou as Pirâmides! Elas

estavam encaixadas, segundo o Portulano, aos pilares de Pharos, tal

como uma peça de Lego! – disse o ratinho Poeiras.

– A Lua está mesmo estagada! – disse Penélope.

– Olhem, o meu primo Dentinho esteve por aqui! – disse Fa-

gundes, a fervilhar de excitação – Há uma corda pendurada na jun-

ção do punho com a pirâmide...

– A entrada deve ser por ali! – Lamparina esvoaçou até ao topo do

punho – CONFIRMA-SE! A ENTRADA É MESMO AQUI! A PORTA ESTA ABERTA!

– Espera por nós, não entres! Pode ser perigoso! – aconselhou

sabiamente Roquefort...

– Mas para quê, subir por uma corda? Estamos na Lua! Basta

um salto e a falta da gravidade dá um empurrão! – disse a esperta-

lhona da Pita.

Assim dito, assim feito! Saltou mas, todavia, foi com muita di-

ficuldade que alcançou o punho, pois o seu rabo era bem pesado...

Para dar um impulso extra, teve mesmo que bater as asas... O pu-

nho ficava mesmo lá bem no alto...

– Bom, é melhor subirmos pela corda! É mais seguro! – disse

o Poeiras.

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Luís Sá Fernandes

E lá começaram a subi-la... Porém, quando estavam a meio,

a cinco metros do solo, sentiram subitamente o zunir de dezenas

flechas com um odor intenso a crude...

ZZIIPPPPT!ZZIIPPPPT!

Todas elas lhes passaram ao lado! Viraram a cabeça... Estavam

completamente encurralados...

– GRUM! NHOCK! GRUM! NHOCK! NHOCK!

Quatro dezenas de Grunhos, comandados por Orik, estavam a

atacá-los impiedosamente... A única hipótese de fuga, era continuar

a subir a corda...

– GRUM! NHOCK! Hoje vamos comer empada de ga-

linha, croquete de ratos metediços e espetada de menina rabina...

RENDAM-SE! – ordenou Orik.

Lá do alto, e sentindo-se segura, a Pita troçou descaradamente

do bando de Grunhos, fazendo-lhes muitas caretas:

– Roam as vossas unhas, seus Grunhos feiosos! BRRRRR!– Maldito galináceo, vais arrepender-te!

Quando foi interrompido... Das profundezas do espaço... Nu-

vens de gazes, cada vez mais negras, mais negras, mais negras entra-

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Mãe, a Lua está Estagada?

ram, de repente, em ebulição, formando redemoinhos turbulentos,

até que... Um estranho vento solar começou a aumentar a sua inten-

sidade e as nuvens transformaram-se numa tempestade eléctrica...

ZÁS, TRÁS! FAISK! ZÁS, TRÁS! FAISK!

Como uma vaga gigantesca, a tempestade aproximou-se perigo-

samente da pirâmide e, mal tocou em solo lunar, toda a Lua come-

çou a tremer...

BRUMMM! BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

Eis a origem de todos aqueles lunamotos... Pedaços de Lua, caí-

am no abismo negro, sem fundo... Esta, aos poucos e poucos, estava

a desfazer-se...

ZÁS, TRÁS! FAISK!

Havia relâmpagos por todos os lados... Orik, o Grunho, despre-

venido, foi logo electrocutado, parecia a lâmpada de um candeeiro

a fundir-se... Ficaram apenas as suas cinzas... E para agravar a situ-

ação, o vendaval solar, descontrolado, começou a varrer tudo o que

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estava à sua superfície...

VUUUUUUMMM! VUUUUUUUMMM!

Os restantes Grunhos, em pânico, não tiveram hipótese de es-

capar àquele pequeno, mas eficaz apocalipse, e foram literalmente

aspirados pelos redemoinhos electrizantes... Tal era o barulho da

tempestade e do lunamoto, que nem se conseguira ouvir os seus gri-

tos de terror...

E os nossos heróis? Felizmente, os nossos aventureiros estavam

bem agarrados à corda – foi a sua salvação!

VUUUUUUMMM! VUUUUUUUMMM!

O vendaval puxava-os, puxava-os, mas eles conseguiram agar-

rar-se com unhas e dentes!

Tão depressa começara, tão depressa terminara! Pouco tempo

durara a tempestade, contudo causara bastante estragos...

Quando tudo aquilo acabou, os nossos amigos suspiraram de

alívio... UFA! Chegados ao topo do punho, abraçaram-se todos...

Bem, todos não!

– Tot está connosco! Escapámos de boa! – disse Papa-Lume.

– Mas... Mas, falta aqui alguém! Onde está a tonta da Pita e o

Príncipe Lamparina? – perguntou, preocupado, o ratinho Fagun-

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Mãe, a Lua está Estagada?

des.

Discretamente, Lamparina saiu de um dos bolsos do fato espa-

cial de Penélope, todo despenteado:

– Ufa, foi por pouco...

– E a Pita?

Penélope espreitou ansiosa para dentro da pirâmide... Nada!

Cheirava apenas a bafio...

Ela perdera e estragara muitos brinquedos, contudo a Pita Gali-

nha era mais que um brinquedo, era a sua grande amiga! As lágrimas

vieram-lhe aos olhos!

– BUÁÁÁ! BUÁÁÁ! BUÁÁÁ! BUÁÁÁ!

– Vejam, amigos!

Poeiras apontou para um rasto de penas que terminava na ex-

tremidade da mão de ébano... E ao longe, bastante ao longe, ouvia-

se um sussurro:

– SOCORRO, AMIGOS! ACUDAM-ME!

Um pontinho negro, distante, de asas abertas e com uma pe-

quena crista, ia-se afastando, tranquilamente, como uma folha ca-

duca na corrente de um rio e... PLUFT! Desapareceu no meio do

nada! Quisera ser a primeira a subir, mas desta vez custara-lhe caro

a precipitação, pois não tivera nada a que se agarrar... A Pita não

aprendera nada com a má experiência que tivera dentro do foco de

luz... A Sorte nem sempre está do nosso lado...

– BUÁÁÁ! BUÁÁÁ! BUÁÁÁ! BUÁÁÁ! – Penélope continuou a

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chorar desconsoladamente.

Não havia nada a fazer! Era impossível alcançar dali a Pita! Esta-

va irremediavelmente perdida... Enfim, tinham que entrar na pirâ-

mide, antes que outra tempestade ocorresse...

O sentimento de perda é terrível! A moral do grupo expedicio-

nário estava bastante em baixo... Só o tempo os poderia ajudar a

esquecer a memória daquele terrível acontecimento...

Por quanto tempo mais, se manteria a Lua inteira? Aquelas tem-

pestades electrizantes iam-na corroendo avassaladoramente.. Deste

modo, a estrutura das pirâmides estava em perigo de colapso...

Refugiaram-se dentro da pirâmide. Estavam dentro de um pe-

queno cubículo muito escuro. Poeiras resolveu tirar da sua sacola, a

tiracolo, uma pedra de Vítreon... Os Íris já incomodavam... E a noite

virou dia...

Centenas de hieróglifos cobriam uma parede de marfim... Que

lindos desenhos aqueles, pintados em todas as cores do arco-íris.

Segundo o ratinho Poeiras, era o tipo de escrita utilizado no Antigo

Egipto.

Roquefort olhou para o chão; no canto, havia um pequeno can-

til abandonado... A primeira expedição estivera certamente por ali!

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Mãe, a Lua está Estagada?

Aparentemente, não foram engolidos pelo Nada...

Enquanto isso, Poeiras tacteava curiosamente as paredes, mais

especificamente o perfil dourado do deus Tot, com a sua cabeça de

Íbis, um pássaro com o bico curvilíneo, em meia-lua. A figura quase

que preenchia a parede sul com a sua presença. Esta segurava na sua

mão esquerda uma Lua Cheia, enquanto que, na sua mão direita,

uma pequena figura feminina do tamanho duma criança segurava

um ceptro... O que significaria aquilo? Poeiras traduziu em voz alta

uma sequência de hieróglifos: “Só alguém de espírito puro poderá

salvar a Lua!”. Papa-Lume aproximou-se também da imagem. No

centro da Lua Cheia, um pequeno triângulo; no seu interior, um pe-

queníssimo Olho de Hórus! Este estava um pouco saliente... Seria

um botão? Ao contrário dos outros hieróglifos, empoeirados pela

passagem do tempo, este estava singularmente limpo e lustroso...

Num reflexo, carregou no triângulo – CLICK! – Tot rachou-

se ao meio... Duas portas, do tamanho de uma criança, abriram-se

para o coração da pirâmide... Papa-Lume encontrara uma passagem

secreta! Só que... no seu interior... BUUU! Que susto! Uma grande

gárgula do deus Sobek, o deus da Punição, com cabeça de crocodi-

lo... Mais outro beco sem saída... A cabeça da gárgula era muito feia,

ainda porcima, tinha a bocarra toda aberta!

Lamparina cirandou pela pequena sala – era o espião perfei-

to! ZUPT! ZAPT! Pr´á a esquerda, p’rá direita. ZAPT, ZUPT! Para cima e para baixo! Sem mais nem menos, penetrou

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Luís Sá Fernandes

na boca do crocodilo...

Mal saiu daquela bocarra assustadora de alabastro, disse:

– Companheiros, dentro da garganta do crocodilo há uma ala-

vanca!

Poeiras aproximou a luz do Vítreon... Sim, via-se qualquer coisa

no fundo da garganta do bicharoco, parecia uma espinha encrava-

da... Poeiras tentou alcançá-la, mas foi em vão! Os seus braços eram

demasiados curtos para a agarrar e os dentes de Sobek arranharam-

lhe o pêlo... Então, Fagundes, com uma corda que tinha na mochi-

la, fez um pequeno laço na sua ponta e pediu ao Lamparina que o

apertasse na alavanca. Dito e feito!

Depois do laço bem apertado, Fagundes puxou pela corda...

Mas nada... A alavanca nem se mexia... Roquefort e Papa-Lume

deram uma mão a Fagundes na sua árdua tarefa... Puxaram, pu-

xaram, puxaram (transpiravam por todos os pêlos)... Até que –

SRETCH! – a alavanca mexeu-se... Contudo, nada... Ficaram

a olhar uns para os outros, na expectativa que algo acontecesse!

E, num sopro, ouviu-se um CLICK! O chão abriu-se a seus

pés ( e patinhas)! Este susto fora ainda maior: um alçapão abriu-se,

obrigando-os a deslizar numa espécie de escorrega em espiral que

os engoliu na direcção das profundezas da pirâmide... Desceram,

desceram, desceram, no meio da penumbra e do pó, aos berros...

AAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHHHH!

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Mãe, a Lua está Estagada?

Sobek engolira-os! Qual seria a punição? Ao fundo da longa es-

piral começou, aos poucos e poucos, a ver-se um raio de luz que, à

medida que se descia, ia aumentando de tamanho... ZUPPPPT! Subitamente, essa estranha luz transformou-se num espelho de

água. E tal como num parque aquático, os nossos amigos cruzaram

as águas com um grande SPLASH!

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Luís Sá Fernandes

Estavam todos pinguços e tontos da viagem forçada, quando

vieram à tona de água... Todos, excepto o Lamparina que teve a sor-

te de voar toda aquela descida alucinante... O ar ali era muito carre-

gado, quem sofresse de asma, com certeza que teria dificuldades em

respirá-lo! Poeiras, com a sua boquita, fez um pequeno esguicho de

água...... Mal abriu os olhos, até os arregalou!

Estavam na câmara central da pirâmide, toda ela iluminada por

pedras de Vítreon, estrategicamente colocadas em nichos ao longo

das paredes... Mais especificamente, no lado Sul da pirâmide, den-

tro de um tanque de água – entraram a Norte e saíram no seu ex-

tremo Sul. Que grande volta que eles deram, hein!

Por trás das costas dos nossos aventureiros, a boca gigantesca de

uma áspide em ouro ameaçava-os. Foi por ali que eles foram cuspi-

dos daquela montanha russa...

Sobrepondo-se àquela carranca, havia um fresco enorme re-

tratando o juízo final – a “Sala da Dupla Verdade”, onde uma balança

julgava quem falecesse, após a morte. Assim, num prato, era colo-

cado o coração do réu, no outro uma pena; “maât”, que significa a

verdade. Se o coração fosse tão leve como a pena, poderia atingir

a vida eterna, se não, o deus Sobek, com a sua cabeça de crocodilo,

devoraria o seu coração e a alma deixaria simplesmente de existir...

A câmara à sua frente era esplendorosa! Ladeada por duas está-

tuas gigantes de Tot – a da direita apontava com os dois indicadores

para os céus, neste caso, para o vértice da pirâmide; por sua vez, a

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Mãe, a Lua está Estagada?

da esquerda, apontava para o solo. Em ambas, Tot agarrava com as

suas mãos uma pena e um ceptro real. Em toda a área da grande

câmara estavam espalhadas, paralelamente, meia dúzia de grandes

ânforas cujas tampas tinham a figura de vários deuses egípcios. Que

estranho? O que estaria lá dentro?

No lado Norte, ao fundo, uma vertiginosa escadaria, com três

lanços de escadas, elevava-se até a uma pirâmide prateada, esta mais

pequena, cuja entrada era guardada por duas esfinges de Amon-Ré1,

com a sua cabeça de bode... Mas maravilhoso, maravilhoso, era o

seu vértice, decorado com um Olho de Hórus, feito em oiro, cujo

globo ocular era iluminado por uma pedra de Vítreon. Seria ali a

tumba do Faraó? Além disso, em cada um dos lados das escadarias,

erguiam-se dois sublimes obeliscos com hieróglifos fluorescentes...

Deveriam ser feitos à base de Vítreon... Naquele lusco-fusco, estes

davam uma atmosfera sobrenatural à pirâmide... QUE MEDO!

Subiram cuidadosamente umas escadinhas que havia por dentro

do tanque de água e ficaram ao nível do solo. As faces interiores da

pirâmide estavam também todas revestidas por centenas de milha-

res de hieróglifos... E no chão, bem no centro da grande câmara,

1 Rei dos deuses, ele é o senhor dos templos de Luxor e Carnac. Tem por esposa Mut e por filho Khonsu. Sua personalidade formou-se por volta de 2000 a.C. e traz algumas funções de Ré: sob o nome de Amon-Ré, ele é o sol que dá vida ao país.

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Luís Sá Fernandes

estava desenhada uma magnifica e gigantesca galera egípcia, de vela

hasteada... Esta era carregada aos ombros por um conjunto de guer-

reiros egípcios, comandados pelo deus Atum. Ao centro da mesma,

jazia o relevo de uma arca com duas Íbis de asas abertas, decorada

com dezenas e dezenas de letras do alfabeto grego. A estátua de Tot,

situada no lado esquerdo, apontava com o seu ceptro real e a sua

pena para ela.

– Os gregos também estiveram por aqui? Que estranha misce-

lânea de culturas?! Mas não é de admirar, pois muitos matemáticos

e filósofos gregos estudaram em Alexandria2 – disse o ratinho Po-

eiras.

Quando rumavam para a pequena pirâmide, a Norte, pisaram

inevitavelmente no relevo da barca e na sua respectiva arca... e...

FANTÁSTICO! Cada letra grega que pisavam, no interior da arca,

iluminava-se ao simples toque! – parecia um teclado, aparentemen-

te inofensivo...

Por breves momentos, Penélope esquecera-se do desapareci-

mento da Pita Galinha e brincou tanto quanto podia naquela sopa

de letras, saltitando de um lado para o outro!.

No entanto, algo de terrível ali acontecera... Em certas zonas o

solo e as paredes estavam um pouco chamuscados...

2 Cidade a Norte do Egipto, famosa na antiguidade pela sua universidade e pela respectiva biblioteca.

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Mãe, a Lua está Estagada?

– A primeira expedição esteve com certeza por aqui! – disse

Roquefort – Isto são sinais de combate! Com o quê? Não sei. Dá a

sensação que a batalha foi breve...

– Porém, não há nenhuma vítima a registar... – suspirou Fagun-

des aliviado.

– Temos que ter mais cuidado com o que pisamos e com o que

abrimos! Este sítio está cheio de armadilhas.

– Sim, mas há que ultrapassar o medo! É preciso salvar a Lua!

Vamos explorar a pequena pirâmide prateada!

E Fagundes lá liderou a fila de curiosos que, lentamente, subia

o primeiro lanço de escadas. Todos, excepto o ratinho Poeiras que

ficou para trás a decifrar os hieróglifos dos dois obeliscos...

Chegados ao topo, constataram que a porta da pirâmide prate-

ada estava semiaberta. Mesmo assim, os ratitos tiveram que puxá-

la com muita força, pois esta era de granito maciço... UFA! QUE

PESO! E quando finalmente a abriram, entraram numa sala bastante

bizarra: toda ela era esférica e muito sombria. Contudo, sobre uma

coluna de mármore branco repousava um fantástico escaravelho

de cristal, iluminado verticalmente por um foco de luz e, ao

seu lado, havia uma estranha alavanca cujo punho tinha uma áspide

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de oiro esculpida... Eram lindíssimos os reflexos que o insecto

emitia em redor da parede esférica! Desta vez, Penélope tomou a

iniciativa, mas entrou com cuidado, pé ante pé...

Ao chegar ao escaravelho, verificou que no seu suporte havia

sido escrito mais um conjunto de enigmáticos hieróglifos. Pacien-

temente, esperaram pelo ratinho Poeiras... Passados dez minutos,

lá chegou...

Este já tinha traduzido, com o seu “Dicionário Universal”, as

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Mãe, a Lua está Estagada?

inscrições dos dois obeliscos. Do seu bolso, retirou o seu caderni-

nho de apontamentos:

– Meus amigos, eis as duas pistas que nos foram dadas pelas ins-

crições dos dois obeliscos da grande câmara: “No Oráculo de Ankh3, a

Chave da Vida, o rumo do Crescente, ser-vos-á desvendado!” e “Quando os

quatro elementos da vida se unirem, Hórus, pelas mãos de Anúbis4, reencar-

nar-se-á no caminhante das estrelas!”.

– Interessante, mestre Poeiras, calculo que estejamos na pre-

sença do Oráculo – disse Roquefort, apontando para o escaravelho

de cristal.

Poeiras, acabado de chegar àquele lugar maravilhoso, ficou logo

fascinado com o dito escaravelho. Lendo cuidadosamente os hieró-

glifos do seu suporte, identificou-o como tal.

– Eis a chave da vida, o Ankh! Segundo este, “A Mão Infantil,

na cabeça do Amuleto Sagrado, revelará o destino do Crescente”.

– A única ciança aqui sou eu! – suavemente e agora sem medo,

Penélope colocou a sua mão na cabeça do insecto.

As suas asas de cristal abriram-se e numa explosão de claridade,

em toda a esfera, projectaram-se visões do Pretérito, do Presente e do

Futuro. ESPECTACULAR! As imagens, como uma concha, em for-

3 Amuleto egípcio, a Chave da Vida, símbolo da vida eterna.4 Deus egípcio, é o mestre dos cemitérios e o patrono dos embalsamadores, introduz os mortos no além e protege os seus túmulos com a forma de um chacal deitado numa capela ou caixão.

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Luís Sá Fernandes

ma circular, cobriam os nossos amigos dos pés à cabeça! Todos eles

ficaram boquiabertos, pois parecia que estavam mesmo a participar

no que observavam. Assim, primeiramente, o Oráculo regrediu para

o Passado num estalar de dedos. No mesmo sítio onde estavam,

viram o ratinho Dentinho a empurrar a alavanca, ao lado do escara-

velho, e ficaram horrorizados, quando viram as mãos de ébano das

pirâmides lunares a descerrarem-se, largando suavemente os três

pilares de Pharos – os Djeds – e libertando o Crescente!

Fora o Dentinho que causara toda aquela catástrofe? Com cer-

teza que teve algum propósito para fazer aquele acto imperdoável!

Seguidamente, através de um conjunto de breves visões sucessi-

vas, viram-se a eles próprios, dentro do Oráculo, o Presente; depois,

a observarem minuciosamente o relevo da arca colocada sobre a ga-

lera egípcia; a pirâmide de Tot a desfazer-se; uma bola de fogo a engo-

li-los e, finalmente, o Crescente, a vaguear para nordeste, sem desti-

no... Como alcançá-lo? O Futuro não parecia ser muito promissor!

Num piscar de olhos, a projecção terminou, ficando novamente a

sala sombria, somente com o escaravelho de cristal iluminado...

As imagens foram muito intensas e ao mesmo tempo enigmá-

ticas... Todos eles suspiraram de alívio, porém ficaram desanima-

dos... A Lua estava destinada ao colapso total! E o Crescente mesmo

ali ao lado... Todavia, Poeiras não se rendeu totalmente à tristeza:

– Companheiros de viagem, nem tudo está perdido... Esta pirâ-

mide ainda esconde muitos segredos!

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Como assim? – questionou-o Roquefort – Estamos presos à

Lua... Só nos resta esperar a inevitável perdição!

– Anima-te, temos mas é que nos concentrar em pensamentos

positivos! Falta-nos ainda esclarecer a pista que o outro obelisco nos

forneceu. E segundo o Oráculo, a resposta está lá em baixo!

Estavam novamente na grande câmara da Pirâmide de Tot, mes-

mo por cima da galera egípcia. Enquanto Poeiras estava parado de

cócoras, debruçado sobre o teclado luminoso da sopa de letras da

arca, os restantes companheiros, caminhando, analisavam o barco

de guerra...

– Ora, segundo o obelisco, “Quando os quatro elementos da vida

se unirem, Hórus pelas mãos de Anúbis reencarnar-se-á no caminhante das

estrelas!”.

– Quatro elementos? Mas esse conceito não está ligado à Alqui-

mia? – perguntou Roquefort.

– Bem, estou a ver que tens a lição bem estudada! Na Idade

Média, os alquimistas acreditavam que o universo tinha origem em

quatro elementos primordiais: a Água, a Terra, o Fogo e o Ar.

– Mas aqui não encontramos esses elementos... – disse Fagun-

des desanimado.

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Luís Sá Fernandes

– Isso não é bem assim... – apontando para o centro do relevo da

arca – Se repararem há aqui um orifício no meio... Será para verter

qualquer coisa?

– Encontrei aqui muitos hieróglifos na barriga do barco! – disse

Penélope.

– E eu na proa! – disse Roquefort.

– Também há hieróglifos no mastro! – disse Papa-Lume.

– E em baixo da figura de Atum! – disse Fagundes

Poeiras levou algum tempo a decifrar aquele conjunto de sím-

bolos milenares... Mas lá conseguiu.

– Meus amigos, na barriga do barco diz: “Verta-se o Negro Líquido

de Sekhmet5, na Arca Sagrada de Tot”; na proa: “Avista-se terra daqui, o

nosso descanso eterno, útero materno de Anúbis. Verta-se o solo fértil na Arca

Sagrada de Tot”; no mastro: “A eterna chama de Ré consumirá a ira de

Sekhmet! A sua Luz iluminará as trevas e o coração da Lua baterá forte!”; e

finalmente, por baixo do deus Atum: “A Íbis libertará da Arca as penas

de Tot! O seu sopro levar-vos-á ao Crescente!”

– Sim senhor, que bela charada para resolver! – disse Lamparina con-

fundido.

– Detesto adivinhas! Gosto é de anedotas!

5 Deusa egípcia, quase sempre representada como uma mulher com cabeça de leoa, coroada com o disco solar, tem mau carácter e tem cóleras pavorosas que podem propagar no país ventos ardentes, epidemias e a morte.

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Mãe, a Lua está Estagada?

– Penélope, não fiques chateada. Toda a adivinha tem uma solu-

ção... Ora, então, precisamos dos quatro elementos para unir. Com

certeza que eles devem estar por aqui, mesmo por debaixo dos nos-

sos narizes...

– Bem, Poeiras, a água temos ali, mas não é nenhum líquido

negro...

Revirando as cabeças e andando de um lado para o outro, ob-

servaram tudo o que os rodeava: as estátuas, o Oráculo, os obeliscos,

as ânforas, o tanque de água...

– Esperem, ainda não analisámos o conteúdo das ânforas! – dis-

se Penélope, com a sua habitual perspicácia.

Com toda aquela excitação, os nossos amigos, dois a dois, cor-

reram de imediato para cada uma das seis...

– Estas duas têm aquele líquido peganhento dos Grunhos! –

disse Roquefort, enojado.

– Ora, aí temos o “Negro Líquido de Sekhmet”! Reparem, na res-

pectiva tampa com cabeça de leoa. Vertam-na, por favor. no orifício

da arca! – pediu Poeiras.

– Este par de ânforas tem muita terra. – disse Roquefort, en-

terrando a sua delicada patinha no seu interior – Bem, não parece

ser terra... – esfregando devagarinho, com um dedo, pequeníssimas

bolinhas negras. – Cheira a pólvora!

– Não faz mal! Deve ser isso mesmo! Repara na ânfora cuja

tampa tem a forma da cabeça de chacal de Anúbis! Verte-a, por fa-

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Luís Sá Fernandes

vor, no centro do relevo da arca. Dito e feito!

– Estas duas com a cabeça falcão têm uma tochas apagadas,

embebidas em nafta... – disseram Papa-lume e Penélope, ao mesmo

tempo.

– Calculo que seja “A eterna chama de Ré”! Mas, ainda falta o

“Ar”?

– Bem observado, Penélope!

Poeiras, que estava mesmo no centro do desenho da galera egíp-

cia, ajoelhou-se tacteando as duas íbis incrustadas na Arca Sagrada de

Tot. «A Íbis libertará as penas de Tot! O seu sopro levar-vos-á ao Crescente!»

O Ar deve estar na Arca... Como accioná-lo? Fagundes, à medida

que ia pensando, ia pisando o teclado nela existente. As letras do al-

fabeto grego iam piscando a cada toque das suas patinhas... «Como

é que se diz “Ar” em grego?» – Poeiras consultou mais uma vez o

seu Dicionário Universal.

Enquanto este estudava o problema, os nossos amigos impa-

cientavam-se, principalmente, a reguila da Penélope!

– Já sei! «αέρας»!.– Será que...

E letra, após letra, soletrou a palavra “Ar” em grego. Mal a es-

creveu, do interior do orifício, sentiu-se um forte sopro de ar...

Penélope aproximou-se:

– Cheira a gás! Que cheiro enjoativo!

– Cuidado, afasta-te! – ordenou Papa-Lume.

– EUREKA! a solução está no gás! Papa-Lume, tu que és bom-

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Mãe, a Lua está Estagada?

beiro, acende rapidamente, se faz favor, uma tocha com o Vítreon!

Mas tem cuidado! Depois passa-ma!

– Sim, Poeiras!

Dito e feito. Seguidamente, Poeiras pediu delicadamente para

que os restantes companheiros se afastassem dali. «A eterna chama de

Ré consumirá a ira de Sekhmet», pensou ele.

Como se estivesse a acender um grande fogão, neste caso, a to-

cha seria o fósforo, aproximou-a perigosamente do orifício da Arca

e... FLAMiSH! Uma grande labareda ergueu-se das entranhas

da pirâmide, quase chegando ao topo do seu vértice. E... VUPT! Tal como depressa aparecera, logo desapareceu no vácuo – sugada

por forças desconhecidas... No entanto, aquilo não ficara por ali...

BRUMMM! BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

A Pirâmide de Tot começou a tremer, a tremer, a tremer...

Porém, desta vez, não era apenas um lunamoto... Seria a fúria de

Sekhmet ou de Sobek a punir-lhes a ousadia?!

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Luís Sá Fernandes

Estavam encurralados! Se a pirâmide entrasse definitivamente

em colapso, seriam enterrados vivos!

Por artes mágicas ou mecânicas, a Arca de Tot, aquela sopa de

letras envenenada, e todo o relevo da barca egípcia começou obli-

quamente a rachar-se... Tanto se rachou que, por fim, as letras se

desfizeram em pedaços... CATRAPUM! Pondo a descoberto

um buraco profundo... Todos deram um salto para trás. Todos, ex-

cepto Penélope, que desprevenida se ia deixando cair naquele abis-

mo. Se não fosse o ratinho Roquefort a puxá-la pela gola do fato,

mais uma tragédia aconteceria...

– Bigada! – agradeceu a menina, ainda pálida com o susto.

Os aventureiros espreitaram lá para dentro... Uma escuridão

profunda...

Lamparina, como sempre audacioso, desceu com o seu rabinho

luminoso para aquele inferno sepulcral... Desceu, desceu, desceu,

até o terem perdido de vista...

– LAMPARINA, HÁ AÍ ALGUMA COISA? – gritou Penélope

para as profundezas.

Nenhuma resposta... Até que, passados breves momentos... ou-

viu-se um CLICK! E depois: ZUUMM!ZUUMM! Algo estava a erguer-se das trevas... Parecia o som de um elevador...

Com medo de mais uma surpresa desagradável, todos eles subiram

o primeiro lanço de escadas que subia em direcção do Oráculo de

Ankh.

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Mãe, a Lua está Estagada?

FENOMENAL! Os quatro pares de olhos das duas estátuas gi-

gantescas do deus Tot iluminaram-se! Eram uns verdadeiros holo-

fotes a focar aquele poço sem fundo... E, aos poucos e poucos, algo

fantástico começou a emergir... Era, era... uma galera egípcia, em

tamanho real! (O desenho no solo da grande câmara anunciava a

sua chegada!)

Era lindíssima! Tinha perto de dezassete metros de compri-

mento. Toda ela era feita de talha dourada. Em cada lado do tomba-

dilho, estendiam-se quinze compridíssimos remos que roçavam no

chão da pirâmide. A sua proa, em honra de Tot, tinha uma carranca

em forma de bico curvilíneo de uma Íbis. Por sua vez, a sua popa

era adornada com a representação de um folha de papiro em ouro

branco que se enrolava sobre si, numa espiral incompleta, abrindo-

-se em leque. Aí, num plano superior, em relação ao tombadilho,

erguia-se um toldo de seda com listas brancas e vermelhas supor-

tado por seis estacas douradas. Este último, era ladeado por dois

remos gigantescos com uma pás enormes que serviam de leme à

embarcação militar... Todavia, o mais estranho era que a galera não

tinha nem mastro, nem velas!

Lamparina, com um olhar atrevido, sentado de pernas cruzadas,

descansava as suas asas, à espera dos seus companheiros, bem por

cima do toldo do barco.

– Entrem meus amigos, sejam bem-vindos a bordo!

Subiram para o tombadilho da galera, através de uma escada

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Luís Sá Fernandes

feita em cordame, estendida para fora da embarcação e lá foram

na direcção do Lamparina. Quando subiram o tombadilho supe-

rior, repararam em duas alavancas existentes por debaixo do tol-

do... Cada uma delas tinha um hieróglifo gravado em cada um dos

punhos: e . Fagundes assumiu o controlo, puxando para

si a primeira alavanca e... a áspide, por onde tinham entrado, come-

çou a jorrar, a jorrar, a jorrar, centenas de metros cúbicos de

água. SPLASH! SPLASH! O tanque começou a transbordar

e a alagar, a uma velocidade diluviana, toda a câmara da pirâmide...

Ainda bem que estavam dentro do barco, senão ficariam todos mo-

lhados! Encheu, encheu, encheu, até que, meia hora depois…

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Mãe, a Lua está Estagada?

SCRETCH! A barca elevou-se suavemente do solo. ESTAVAM

A FLUTUAR!

Bastaram duas horas para alagar a pirâmide... A água, primeiro,

cobriu os dois lanços de escada, depois as estátuas, o Oráculo e

finalmente os Obeliscos... Assim, a embarcação, subindo cada vez

mais, começou a afunilar-se por entre as faces interiores da pirâ-

mide... ESTAVAM PERDIDOS! Pois, estavam prestes a embater

contra o seu vértice... Morreriam esmagados! Que triste fim o deles!

Até que... um novo CLICK! O vértice da Pirâmide de Tot

abriu-se, como uma flor, em quatro triângulos equiláteros, expondo

o negro manto do universo polvilhado de estrelas...

A galera subiu, subiu, subiu até chegar ao topo daquela mag-

nífica construção. Que visão deslumbrante, a água, como uma cas-

cata, deslizava pelas faces exteriores da pirâmide... Embora balan-

çando para a esquerda e para a direita, a barca, através dos seus dois

grandes remos, mantinha-se equilibrada no seu topo...

Que paisagem maravilhosa! Dali conseguia ver-se a grande cra-

tera que formava o Udjat, o Olho de Hórus, os seus campos verdejan-

tes e o minarete imponente do Sr. Júlio! Contudo, estavam comple-

tamente estagnados! Como sair dali?

Chegara a hora de puxar a segunda alavanca... Dito e feito!

As surpresas não acabavam! De cada um dos lados do casco da

proa, onde se impunha a carranca do deus Tot, dispararam-se hori-

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zontalmente dois pára-quedas gigantescos e prateados que se abri-

ram automaticamente.... Sentiu-se um forte puxão... O vento solar

começara a soprar e os remos mecanicamente começaram a mover-

se. Os nossos amigos tiveram que se agarrar firmemente às estacas

do toldo para não caírem... A barca de Tot foi assim forçada a sair da

pirâmide – estavam finalmente a voar! Fagundes e Papa-lume agar-

ravam cada um dos lemes, contudo Tot tinha vontade própria, não

lhes obedecia minimamente! Depressa desistiram de controlá-lo...

Tal como um pombo à procura do seu caminho para casa, a

galera egípcia deu duas voltas à pirâmide e subitamente rumou, em

piloto automático, para nordeste...

– Estamos no bom caminho! – disse Poeira sorrindo – Vamos

em direcção do Crescente!

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A Paisagem era formidável... Era como estar no fundo do mar...

Viam-se cardumes de estrelas...

Passaram lentamente por Marte, o quarto planeta do sistema

solar, todo ele era encarnado e árido. Tinha muitas cicatrizes na sua

superfície... Seriam marcas de rios extintos há milhares de anos?

Comparado com o nosso planeta, este era bastante feioso!

Eis um bom exemplo para a humanidade! Assim, é preciso pre-

servar os nossos recursos naturais, de modo a que a Terra não tenha

o mesmo triste fim!

Os enigmáticos verdinhos provinham daquele horrível deserto!

Desde que Penélope chegara à Lua, nunca mais soubera notícias

deles? O que lhes teria acontecido?

Os dois pára-quedas solares prateados, autênticas velas espa-

ciais, puxavam lentamente a embarcação alada. Esta deslizava com

uma impressionante delicadeza pelo etéreo...

Numa órbita já bastante afastada, conseguia ver-se ainda Júpi-

ter, o maior planeta e o mais brilhante, num reboliço de gases... E

saíram definitivamente do nosso sistema solar, rumo à Via-Láctea...

Quanto tempo mais demorariam a chegar ao Crescente? Segundo

os cálculos do ratinho Poeiras, Dentinho e os seus companheiros

tinham, aproximadamente, uns dez dias de avanço...

«O meu primo deve ter tido um motivo muito forte para sepa-

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Mãe, a Lua está Estagada?

rar o Crescente do resto da Lua! Falta uma peça neste grande puzzle!»

– pensava Fagundes com os seus botões.

Sagitário toureava a constelação de Touro; Leão, irritado, ru-

gia a Capricórnio; enquanto que Peixes nadava em Aquário... Tot

navegou sem parar cerca de seis horas seguidas, até que começou a

abrandar, a abrandar e estagnou... Os pára-quedas perderam o seu

volume, murchando, sem forças... Os remos da galera egípcia para-

ram... Já estavam muito afastados do Sol... Os seus ventos perderam

a sua intensidade... Tot era um barco à deriva... A expedição entrou

em pânico:

– Estamos completamente encalhados! – Penélope bracejava no

convés desorientada.

Mas o pânico não lhe valeu de nada... Passaram uma, duas, três

e quatro horas e nenhum vento solar...

Papa-Lume desconsolado e tristonho, sentado à proa, na car-

ranca do deus escriba, avistou ao longe um pequeno ponto luzi-

dio, ora alaranjado ora encarnado... Este aumentou, aumentou,

aumentou gradualmente o seu tamanho!

Levantando-se, a ansiedade apoderou-se dele – o pontinho lu-

minoso transformara-se, em pouco tempo, numa bola de fogo que

rasgava a escuridão a uma velocidade impressionante... Agora, é que

estavam PERDIDOS! Iam ser engolidos por aquela labareda...

– Amigos, uma bola de fogo vai abalroar-nos! Abriguem-se!

Não havia nada a fazer... Não se conseguiam mexer dali...

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O choque era inevitável...

Fagundes, Penélope, Roquefort e Papa-Lume, dois a dois, agar-

raram-se a cada um dos lemes da embarcação egípcia, enquanto

que Poeiras, cheio de suores frios, empurrava e puxava a alavanca de

comando... No entanto a galera alada nem se mexia um milímetro,

teimosa como uma mula! IRIAM ELES MORRER ESTURRICA-

DOS?

A esfera ardente girava sobre si mesma, num estranho efeito, tal

como uma bola de futebol chutada à baliza... ERA UM COMETA!

As suas labaredas esticavam-se como tentáculos no firmamento...

E quando esta estava prestes a engolir Tot e os seu passageiros, no

último instante PAROU!

Um rosto, quase humano, desvendou-se no meio daquele ar-

dor... Com um olhar curioso e penetrante, o estranho cometa, de

sobrancelhas franzidas, rodeou três vezes a galera e três vezes per-

guntou:

– Quem sois? De onde vindes? P’ra onde Ides?A sua voz era assustadoramente ameaçadora, porém Penélope,

pouco impressionada, de nariz empinado, respondeu-lhe:

– Eu sou Penélope, potuguesa, do Planeta Terra. Estes são os

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Mãe, a Lua está Estagada?

meus amigos ratinhos... Viemos mesmo agóa do que resta da Lua e

estamos à pócua de um pedaço seu que se descolou. E, tu, quem és?

– Sou o Cometa Faúlha. Vim de outra galáxia e estou em viagem turística. Sabem, gosto muito de viajar. Quero conhecer outros mundos, outros seres... Por exemplo, nunca tinha visto ninguém da vossa espécie. Como podem ver, as viagens permitem conhecer outras culturas, aprofundando os nossos conheci-mentos...

– Porventura, o Sr. Faúlha não viu por aí um grande pedaço de

Lua, em forma de um quarto-crescente? – perguntou educadamen-

te Poeiras

Faúlha esfregou pensativamente o seu queixo ardente:

– Hum, esse pedaço de Lua não me é estranho... Eu acho que o vi ao longe... Mas, como não se cruzou comigo, nem me dei ao trabalho de investigar... Pensei que fosse um meteorito vaga-bundo...

– E em que direcção ia ele?

Faúlha olhou curiosamente para Lamparina, aquela pequeníssi-

ma amostra de cometa luminoso. Talvez fosse um primo afastado?!

– A caminho de Alfa-Centauro, creio?!– Mas o que nos vale sabê isso, se estamos pr’aqui encalhados! –

disse Penélope desanimada – Este bote a remos resolveu avariar-se

mesmo no meio do nada!

– Querem um empurrãozinho? – aproximando-se, perigosa-

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mente, o cometa da galera.

– NÃO! – gritou o ratinho Papa-Lume – Olha, que nos queimas

a todos!

– Desculpem! Não era essa a minha intenção! Hum, pelo me-nos deixem-me ajudar-vos!

Faúlha girou mais uma vez à volta de Tot. Parando ao lado dos

dois pára-quedas mortiços, começou a matutar... Até que:

– O que vocês precisam é de um sopro bem forte!– Sim, sim! – batendo as palmas Penélope – Tal como nos dias

de anos! Ah, como eu gosto de apagar velas!

– Bom, desde que não nos queimes e nos apontes em direcção

do Crescente... – disse apreensivo Fagundes.

– Juro-vos que não vos faço mal! Agarrem-se bem!Faúlha posicionou-se atrás da embarcação egípcia, enquanto os

nossos amigos desciam rapidamente até ao convés inferior. Sob a

orientação de Papa-Lume, o perito em segurança, esticaram, bem

esticada, uma grande corda entre as amuradas paralelas da embarca-

ção. Depois sentaram-se, encostados à parede em talha dourada que

se elevava do convés para o tombadilho superior da galera, agarran-

do firmemente a dita corda. Estavam prontos para partir!

– Quando quiser, assopre, Sr. Faúlha! – disse ansiosa Penélope.

– Ora, então vamos lá! 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1, 0.... – as

bochechas de Faulha incharam, incharam, incharam, até ficarem

cheias de ar e...

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VUUUUUUUCCCH! VUUMMM!

Parecia um Fórmula 1! Os pára-quedas prateados ganharam de

novo vida e os nossos viajantes interplanetários foram projectados

com tal força que se sentiram esmagados contra o tombadilho su-

perior de Tot – os astronautas deveriam com certeza ter a mesma

sensação, quando saíam da atmosfera terrestre, nos seus foguetões!

A velocidade era tal, que tudo à sua volta se tornou hiper-colorido!

Era um autêntico caleidoscópio estonteante! Enfim, estavam a voar

no hiper-espaço...

O voo não durou mais de cinco minutos, mas voaram milhares

e milhares (eu diria mesmo biliões e triliões) anos de luz! Até que,

pouco a pouco, a galera egípcia começou a abrandar, mas desta vez

não parou... Aquele empurrãozito fora imprescindível para alcançar

outras fortes correntes solares...

Os nossos viajantes largaram as cordas e subiram ao tombadilho

superior – a força do bafo do cometa Faúlha fora tão intensa que

arrancara o toldo da embarcação... À sua volta, nem sombra do Cres-

cente, só se viam salpicos de estrelas por todo o lado...

– Afinal o empurrão não nos valeu de nada!

Lamparina aparentemente tinha razão! Todavia, mal disse estas

palavras, o piloto automático de Tot fez mover os seus dois lemes

para a direita, obrigando-o a girar 1800 sobre o seu eixo e... tudo

parecia na mesma – só céu estrelado! Só que então... a proa da

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Mãe, a Lua está Estagada?

galera mergulhou abruptamente 400 e revelou o inesperado – ES-

TAVAM MESMO POR CIMA DO CRESCENTE!

Deram todos um grito de alegria:

– CONSEGUIMOS ENCONTRAR O PEDAÇO QUE FALTA-

VA À LUA!

Abraçaram-se e choraram de felicidade! Tinha valido a pena

percorrer aquele caminho tortuoso, mas cheio de aventuras! Sem

sacrifícios, não se alcançam os Sonhos!

Penélope tinha a certeza que a Pita Galinha estava no Céu das

Galinhas a observá-la orgulhosamente... Enfim, estavam na recta da

meta! Mais um pouco e estaria tudo resolvido!

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À medida que a embarcação alada se aproximava do Crescente, ti-

nha-se uma perspectiva geral de toda a sua superfície... Bem no seu

centro e nas suas duas pontas opostas, erguiam-se as três imponen-

tes colunas de Pharos – Djeds. LINDÍSSIMAS! Todas elas eram azuis,

revestidas com um manto de lápis-lazúli. Era ali que as três mãos

das pirâmides se agarravam, de modo a manter a Lua cheia. No topo

de cada Djed havia uma luz que piscava intermitentemente... Pisca-

va, piscava, tal como o farol que alumia o rumo dos marinheiros...

Tot, movido por forças superiores, fez lentamente a aproxima-

ção ao Crescente, rasando o Djed central – era fino como um obelisco,

só que a sua parte superior tinha a forma de uma peça de xadrez – a

Rainha.

Aos poucos e poucos, foram-se apercebendo da existência de

uma estranhas estátuas grandiosas, coloridas com as cores do arco-

íris – umas às riscas verticais, outras horizontais; umas às bolinhas,

outras manchadas – erigidas na vertical e com rostos humanos...

Estavam agrupadas num semicírculo, em cima de um fino tabuleiro

de pedra que criava a figura de um outro crescente, desta vez mais pe-

queno – um crescente contido noutro. Poeiras tirou cuidadosamente

o Portulano que carregava na mochila e desenrolou-o:

– Eis o misterioso Crescente colorido... O Sr. Júlio, quando sou-

ber, vai ficar maravilhado! – guardou novamente o Portulano e retirou

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Mãe, a Lua está Estagada?

um outro livro da sua mochila. Folheou-o, folheou-o, até encon-

trar o que queria – Ah, cá está! Segundo a “Enciclopédia Universal”,

poderemos encontrar semelhantes estátuas no planeta Terra, mais

especificamente na Ilha de Páscoa... Esses rostos denominam-se de

Moais que, por sua vez, estão colocados num suporte de pedra, pa-

recido com uma grande mesa sem pernas – o Ahu. Pensa-se que

foram erguidos em memória dos seus antepassados...

E foi interrompido por Fagundes:

– Olhem, ali, estão a ver? Bem ao lado desses Moais... Estão

ali montadas umas tendas Iglô. – um sorriso estendeu-se-lhe na

face – É de certeza o meu primo Dentinho! ENCONTRAMOS A

PRIMEIRA EXPEDIÇÃO!

A quilha em “V” da galera egípcia deslizara suavemente pelo

pedaço roubado à Lua, com todos os seu remos automaticamente

recolhidos, deixando a marca da sua esteira no solo do gigante pe-

daço lunar.

SZZZZZZZZZZZZZZ!

Imediatamente, saltaram os dois olhos da carranca de Tot, duas

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enormes esferas de aço penduradas em correntes. Estas caíram fir-

me e pesadamente no chão. Por breves instantes, Tot teve o seu

casco encostado à Lua, mas com a ausência de gravidade, logo se

elevou nos ares. Todavia, as âncoras esféricas não o deixaram es-

capar... Roquefort com a ajuda de Fagundes, lançaram a escada de

cordame borda fora e, um a um, lá foram descendo aquele estranho

veículo espacial.

De novo em terra firme! Digo, em Lua firme... (Será que aqui

também haveria lunamotos? Provavelmente...) Em fila indiana, ca-

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Mãe, a Lua está Estagada?

minharam em direcção do acampamento. Dali conseguiam ver-se

perfeitamente as seis tendas Iglô, montadas em círculo, e bem no

seu centro havia uma fogueira acesa.

Quando lá chegaram, viram dois ratinhos com capacetes de mi-

neiros, armados com granadas de Vítreon à cintura e umas lanças

improvisadas (uma faca atada a um cabo de vassoura). Estes estavam

a dormir profundamente com as suas pequenas cabeças encostadas

uma na outra.

Fagundes sorriu maliciosamente ao vislumbrar aquelas lindas

figuras e, dando um valente pontapé na areia lunar que os salpicou

completamente, berrou:

– ACORDEM, SEUS MALANDROS! ESTÃO-SE CONSO-

LANDO?!

Coitados, deram cá um pulo! Quase que iam morrendo de sus-

to! Esfregaram bem os olhos e sacudiram-se. Não podiam acreditar

que estavam salvos:

– Finalmente chegaram! – os seus olhos brilhavam de alegria –

Vamos já chamar o chefe Dentinho!

Todo o acampamento se levantou. Seis ratinhos mineiros for-

maram-se, com as suas lanternas acesas, na parte frontal do capa-

cete, e de peito para fora, mesmo à frente dos recém-chegados.

Pareciam mesmo soldados em formatura. Dentinho, um rato bas-

tante magricela, de pêra e bigode, com uma dentola “enoyme” saiu

em último lugar da sua tenda e abraçou sonoramente, com os seus

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olhos lacrimejantes, o seu primo Fagundes.

– Sejam bem-vindos ao Crescente! Devem estar cheios de fome!

Vamos preparar qualquer coisa para vocês comerem!

Os nossos amiguinhos estavam mesmo esfomeados. Assim, foi-

lhes feita uma bela ceia – empadão de queijo. Juntos, à volta da

fogueira, e ao mesmo tempo que iam comendo, Dentinho contava

sucintamente a sua aventura...

– Bem, meus amigos, estais preparados para saber toda a ver-

dade? A causa de toda esta tragédia? – os visitantes acenaram afir-

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Mãe, a Lua está Estagada?

mativamente as suas cabeças, ansiosos – Ora, a verdade é que OS

MARCIANOS QUEREM CONQUISTAR A TERRA!

– Os Verdinhos?! Impossível! – exclamou Penélope – Mas foam

eles que nos pediam ajuda para salvar a Lua? Eles nunca falaram em

conquistar a Terra... Tiveram uma avaria e pediram gelo... Aliás,

eles transmitiam uma mensagem sua a pedir socorro! Não acredito!

– É verdade, pedi ajuda! Só que foi a Luna Plena, a Cidade do

Requeijão. A minha mensagem deve ter sido captada e desviada por

esses VERDUSCOS malvados! Diga-me, menina, desde que chegou

à Lua, viu-os mais alguma vez?

– Não, nunca mais os vi... – respondeu perplexa.

– Está a ver! São muito espertos! Andaram a observá-la às es-

condidas... E ainda bem que falou em gelo... Sabem, eles tinham um

plano maquiavélico – eles queriam roubar toda a água do planeta

Terra, para levarem para Marte... Marte, um dia, também já teve

muita água, atmosfera e vida... só que... os antepassados dos VER-

DUSCOS não respeitaram a natureza e... tanto a poluíram que o seu

planeta tornou-se num deserto!

– E como é que eles transportariam tanta água para Marte? –

questionou o ratinho Poeiras, coçando a sua pêra.

– O plano era engenhosamente simples – criando um eclipse

solar permanente. A órbita lunar seria travada, fazendo uma sombra

gigantesca sobre o planeta Terra e a catástrofe iniciar-se-ia. Sem a

luz solar, a vida na Terra deixaria de existir e, em menos de vinte

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Luís Sá Fernandes

anos, todos os oceanos terrestres congelar-se-iam e a humanidade

seria facilmente extinta... O eclipse solar está próximo. Está previs-

to para o dia 21 de Agosto de 2017. Então...

– Desculpe interrompê-lo, mas como é que souberam desse plano mirabolante?

Dentinho olhou para aquele pequena luzinha esvoaçante e res-

pondeu:

– Bem, fomos em prospecção para Oceanus Procellarum, à pro-

cura de novas jazidas de queijo... Já estávamos bastante afastados

do Entreposto de Finis Luna, a nordeste, quando, ao quinto dia de

viagem, entrámos em Sinus Roris, a Baía do Orvalho, e escondidos

atrás de umas colinas conseguimos observar o indescritível – uma

base marciana, onde uma grande frota de naves verduscas estava aí

instalada... Eram centenas e centenas de naves, umas maiores, ou-

tras mais pequenas à espera da grande invasão... No entanto, o mais

impressionante não era a base, mas sim uma construção em forma

de uma grande estrela doirada de cinco pontas, com uma grande

antena parabólica no meio...

– Era um radar?

– Pior! Estavam nessa altura a fazer testes sucessivos... E, de vez

em quando, a Lua tremia, parando momentaneamente a sua rotação

à volta da Terra. ERA UM TRAVÃO ORBITAL! Felizmente, este

ainda não estava a funcionar a 100%... Porém, a esta hora, o me-

canismo já deve estar pronto e bem afinado... Só falta uma coisa...

Eh! Eh! Eh! Uma Lua cheia para fazer sombra à Terra! Para impedir

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174

Mãe, a Lua está Estagada?

que os VERDUSCOS atinjam os seus objectivos basta esperar três

dias e ameaça desaparecerá! O problema é... voltar atrás! O Crescente

está condenado, provavelmente, a vaguear eternamente pelo espaço

e isso será o fim da Lua...

Fez-se silêncio... Era difícil digerir toda aquela torrente de in-

formações em tão pouco tempo... Papa-Lume, por fim, levantou

um dedo no ar:

– Mas... mas, como é que souberam que no Lado Obscuro po-

deriam impedir os VERDUSCOS de alcançarem os seus objectivos?

– Muito bem visto! Capturámos um VERDUSCO que por ali

passava... Tragam-no, por favor!

Dois ratinhos mineiros foram buscá-lo a uma das tendas. Este

tinha a altura de Penélope, e já não estava sob o efeito dos raios-

redutores; os seus olhos eram negros e ovais e tinha uma crista en-

carnada na sua cabeça, bem no meio de duas antenas. Além disso,

tinha as duas mãos presas atrás das costas e estava amordaçado.

– Tirem-lhe a mordaça, por favor! Obrigado. Agora, recruta

Bitok, conte-nos tudo o que lhe aconteceu...

O VERDUSCO olhou desconfiado para os recém-chegados.

Mas como até agora, tinha sido tratado condignamente, repetiu a

sua história, porém isso não adiantou muita coisa...

– Fui capturado por estes senhores e lev-

ei-os até à Gruta de Néon... Ali, leram os

sinais...

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175

Luís Sá Fernandes

– Mas que sinais? – perguntou o ratinho Roquefort.

– Bem, nas profundezas dessa gruta havia uma espantosa parede em azul fluores-

cente, onde se relatava uma lenda – uma menina terrestre salvaria a Lua...

– Mas porquê eu? Por que é que me escolheram logo a mim?

Há tantas meninas no meu planeta! – disse Penélope indignada.

– Com certeza! Porém, nessa mesma parede estavam grava-

das as coordenadas exactas da tua casa: Terra>Portugal>Paço de

Arcos>Casa Amarela, por detrás do Palácio dos Arcos. Foi por isso

que eles foram fazer-te uma visita... Para avaliar o perigo que cor-

riam...

– Deixe-me pensar, pô favô, Sr. Dentinho... Eles sabiam que a

Lua estava estagada, mesmo assim, isso não faz sentido... Eles não

me taziam para a Lua sem uma segunda intenção...

– Hum, talvez tenhas razão! Bem, obrigado pela sua colabora-

ção, Bitok. Levem-no de volta, por favor! – dito e feito – No entanto,

além dessa lenda, havia nessa mesma parede um mapa em relevo

do Lado Obscuro da Lua que levava ao interior da pirâmide de Tot.

Então, resolvemos partir, não podíamos esperar por uma menina

virtual. Já no lado Obscuro da Lua, rodeámos Vallis Alpes a Oeste, e

entrámos em Udjat, o Olho de Hórus pelo lado noroeste...

– E não tiveram nenhum encontro imediato com os Grunhos?

– perguntou Fagundes.

– (?????) – encolhendo os ombros.

– Estou a ver que não tiveram o prazer em conhecê-los...

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176

Mãe, a Lua está Estagada?

– Sim... talvez... mas fomos emboscados por uma patrulha ver-

dusca dentro da Pirâmide de Tot que vinha em socorro de Bitok. Só

nos livrámos da sua má companhia, quando libertámos o Crescente...

Saímos da pirâmide, o mais depressa possível, através de uma passa-

gem secreta existente no interior do Oráculo de Ankh. O Crescente já se

tinha afastado bastante do resto da Lua, aquando da nossa chegada

ao exterior... Havia apenas uma hipótese – dar um grande salto para

o pedaço de Lua flutuante. E feitos uns loucos corremos, corremos,

corremos... e PIMBA! Pulámos! E aqui estamos!

– E o que aconteceu à patrulha verdusca, Sr. Dentinho?

– Veio no nosso encalço... Os VERDUSCOS bem tentaram

saltar mas, felizmente, falharam por milímetros... Foram engolidos

pelo abismo... Finalmente, encontrámos este estranho templo... e

nada... simplesmente um beco sem saída... Restava apenas esperar...

Esperámos, esperámos e esperámos... Precisávamos de um mila-

gre... e ele por fim chegou! – apontando para Penélope.

– Eu não sou nenhum milagre! Sou apenas uma menina que

pedeu uma grande amiga nesse mesmo abismo, tá bem? – chorosa,

Penélope levantou-se e correu o mais depressa que podia para fora

do acampamento, em direcção do templo de Moais. O peso da res-

ponsabilidade era imenso...

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Luís Sá Fernandes

– É curioso, como a figura de uma “menina”, simbolizando a

salvação da Lua, aparece espalhada ao longo mesma; primeiro, em

Luna Plena, no Oráculo de Esquecimento; em seguida no Portulano e na

Pirâmide de Tot, em forma de criança; depois, no Oráculo de Ankh,

uma “Mão Infantil” e finalmente, na Gruta de Néon... – meio en-

sonado, de barriga para o ar, Poeiras trocava as últimas impressões

com Fagundes.

– Penélope é mesmo a predestinada... Será que ela se sente

melhor?

– Roquefort esteve a consolá-la... Acho que já se deitou... Bom,

vamos mas é também dormir... Amanhã não sabemos o que nos

reserva... Boa noite!

– Boa noite!

Todavia, Penélope passou uma boa parte da noite em branco a

pensar na sua Mãe, esse cordão umbilical que, em pensamentos, a

ligava da Terra à Lua. Lentamente, o cansaço apoderou-se do seu

corpo, as suas pálpebras ficaram mais pesadas, adormecendo... e

sonhou em branco...

Estavam a flutuar à deriva nos confins do espaço... O Crescente

estava adormecido...

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Mãe, a Lua está Estagada?

No dia seguinte, Penélope foi acordada com um leve toque no

braço... Seria a sua Mãe a despertá-la para ir para a Escola? Infe-

lizmente, era o ratinho Roquefort a roer um belo naco de queijo,

como pequeno-almoço.

– Acorde, menina, está na hora de se levantar! Há muitos mis-

térios ainda por resolver!

Depois de tomarem o pequeno almoço, os aventureiros dirigi-

ram-se para o Templo do Crescente. Os Moais que o constituíam eram

irregulares, tinham vários tamanhos. Eram doze estátuas singulares

e coloridas, embora não fossem muito bonitas – não tinham tronco

nem membros, só cabeça. Para além de serem cabeçudas, os seus

rostos também eram rudes e feios – pareciam Picassos na sua fase

cubista, de olhos vesgos e de bocas tortas – estendendo-se no solo

lunar, formando uma meia-lua carnavalesca.

Como é que na Lua havia traços de duas civilizações distintas?

Ambas conseguiram viajar no espaço, incrível! Derivariam as duas

de um mesmo tronco civilizacional? Tudo era possível!

Poeiras desenrolou o Portulano. Lendo em voz alta, recordou a

sua profecia, escrita em marca de água: “À altura de uma criança, um

sentido falta no grande Crescente... O puro de espírito colocá-lo-á no devido

lugar... Então os doze anciãos iluminarão com a luz divina o monólito vindo

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Luís Sá Fernandes

do centro do universo... No seu coração, a salvação da Lua!”

Enquanto isso, Lamparina cirandava as cabeçitas dos nossos

amigos bastante preocupado:

– Tenho a impressão que estamos a ser observados...

A investigação foi imediatamente interrompida. Os ratinhos

mineiros puseram-se em guarda. Olharam todos para o firmamen-

to – nenhum movimento aparente, o céu estava limpo, as estrelas

continuavam a brilhar desinteressadamente!

– Bem, continuemos... – disse Roquefort – Ora, então, falta um

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Mãe, a Lua está Estagada?

sentido no Crescente... Isso não faz sentido ou faz?

– Que confusão! Mas afinal o que é um sentido? – perguntou

Penélope.

Roquefort explicou:

– Todos nós temos cinco sentidos: o Olfacto, o Tacto, o Pa-

ladar, a Audição e a Visão. Ora, possivelmente, a um destes Moais

falta-lhe um. Temos que descobri-lo!

– Bem, é melhor dispersarmo-nos – sugeriu Dentinho.

E assim foi... Os nossos amiguinhos começaram a investigar

aquelas estranhas escultura vesgas. Investigaram, investigaram,

investigaram, quando, lá do alto, Lamparina gritou o mais

alto que pôde:

– MEUS AMIGOS, NÃO ESTAMOS SÓS! AQUI HÁ GATO!

BATI COM FORÇA EM ALGO INVIS...

E nem teve tempo para acabar a frase... Uma bolha gelatino-

sa, cor-de-rosa, vinda do nada, engoliu-o – parecia estar dentro de

uma bola de pastilha elástica. Os seus movimentos de asas ficaram

completamente paralisados. E caiu vertiginosamente... A sorte é que

estava na Lua, sendo a sua queda amortecida.

PLINK! PLOINK PLUNK! – saltitou no Cres-

cente como uma bola de ténis de mesa, até finalmente estabilizar. Os

ratinhos mineiros correram em seu socorro, recolhendo-o...

– Aqui não há gatos, aqui há VERDUSCOS! Onde estarão essas

pestes? – Dentinho olhou para o manto estrelado, mas nada se via

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Luís Sá Fernandes

à vista desarmada!

Os ratinhos mineiros, Dentinho, Papa-Lume e Fagundes puse-

ram-se em guarda com as granadas de Vítreon nas mãos.

Papa-Lume não pôde esperar mais, ansioso, retirou da sua mo-

chila a pistola de sinalização que tinham encontrado, a meio do

caminho da Pirâmide de Tot, dentro da bala do Sr. Júlio e, apontando,

mais ou menos, para o sítio onde Lamparina embatera, disparou...

FFFZZZZZZZZZZ! – como uma pequena

estrela roxa, um clarão intenso, subiu em arco, alumiando o seu

percurso ascendente, através de um rastro de luz, e, já na sua rota

descendente, colidiu em algo...

BZZZZZTTT! BZZZZZTTT! – fez-se um

grande curto-circuito! Centenas de faíscas cruzaram-se nos céus,

como foguetes de uma romaria... E o invisível passou a visível – uma

imensa prateada Nave-Mãe verdusca, em forma de ovo estrelado,

ameaçava-os lá das alturas...

O pior ainda estava para vir... À sua volta, outras centenas de

caças revelaram-se! Já não precisavam estar escondidos! Acabara-se

a brincadeira!

– ESTAMOS TRAMADOS! – disseram os nove, ao mesmo

tempo!

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Mãe, a Lua está Estagada?

Entretanto, Poeiras, Roquefort e Penélope tentavam decifrar

aquele último enigma. Correram ao longo daquela fileira côncava

de Moais... De um lado, para o outro – até perderem o fôlego – e,

subitamente, Poeiras parou mesmo em frente a um Moai amarelo

de riscas azuis, do tamanho de uma criança. Faltava-lhe uma vista!

– Este é zarolho, meus amigos! – disse ele apontando – Falta-

lhe uma vista, procurem-na!

Mais uma voltinha! De cá para lá! Da esquerda para a direita! Os

seus pulmões estavam prestes a rebentar... Mesmo assim, Penélope

manteve-se calma e concentrada. Respirou fundo e percorreu, mais

uma vez, aquelas bizarras caricaturas verticais. Procurou à frente e

atrás, até que... PIMBA! Mesmo na ponta da meia-lua encontrou

uma gigantesca pérola negra do tamanho de uma bola de boliche.

– ENCONTREI UM OLHO! AJUDEM-ME, É PESADÍSSI-

MO!

Carregaram-no o mais depressa possível, até ao Moai parecido

com uma pintura surrealista de Camões. As forças já lhes faltavam...

A batalha começara. Curiosamente, os caças VERDUSCOS

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Luís Sá Fernandes

mantiveram-se quietos, talvez seguros da vitória; todavia, a Nave-

Mãe desatou a disparar, ao acaso, bolas peganhentas e gelatinosas.

Visto ao longe, quase fazia lembrar um festival de bolas de sabão

cor-de-rosa lançadas por uma criança do cimo de uma varanda de

4º andar. Aos nossos amigos, só restava evitar aquela chuva agluti-

nante.

PLINK! PLOINK PLUNK!

Page 184: Mãe, a Lua está estagada

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Mãe, a Lua está Estagada?

À medida que elas iam caindo, os ratinhos bem tentavam des-

viar-se das bolas, ora saltavam para a frente, para trás, para a esquer-

da, ora para a direita... Só que a sorte não estava do seu lado – dois

ratinhos mineiros atreveram-se a espetar as suas lanças em duas de-

las e... PLOFT! Rebentaram mesmo em cima deles, cobrindo-os

de gelatina. Só havia uma hipótese, fugir, enquanto que Penélope,

Poeiras e Roquefort tentavam salvar a Lua. Deste modo, correram

o mais longe possível para fora do templo de Moais, desviando a

atenção dos VERDUSCOS. Mesmo assim, era uma mera questão

de tempo, para serem “engelatinados”...

– “O puro de espírito colocá-lo-á no devido lugar...”, Penélope, tu és

a eleita... Só tu poderás cumprir a profecia! – disse Poeiras.

Ela não sabia se tinha um espírito puro. Porém, pediu silen-

ciosamente a Deus desculpas, por todas as suas traquinices. Num

último esforço, pondo-se de cócoras, Penélope agarrou a pérola ne-

gra com as duas mãos e elevou-a lentamente, como um alterofilista

nos Jogos Olímpicos, até à orbita do pequeno Maoi encaixando-a,

milimetricamente, no respectivo orifício...

DZZZZT! DZZZZT! DZZZZT! DZZZZT! DZZZZT!

DZZZZZT!

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Luís Sá Fernandes

Dado que os Moais estavam posicionados de forma convexa,

“...os doze anciãos...”, um a um, sucessivamente, através de raios la-

ser encarnados, lançaram um olhar fulminante de trinta metros de

comprimento, até cada um destes se unirem inevitavelmente num

mesmo eixo. Nesse ponto, formou-se a figura sólida de um monóli-

to negro, na posição vertical, um paralelepípedo perfeito... Os dois

ratinhos e Penélope aproximaram-se do mesmo, cuidadosamente...

O que seria aquilo?

Os marcianos suspenderam momentaneamente o ataque... A

Nave-Mãe fez inversão de marcha e sobrevoou o monólito e os três

aventureiros. Um feixe de luz, vindo do seu centro, projectou-se no

solo lunar. Das suas entranhas, duas figuras desceram vagarosamen-

te e... surpresa das surpresas! O Tenente-Coronel Zblog agarrava

pelo pescoço, com arrogância, como se tratasse de um trofeu de

caça, a... GALINHA PITA!

Penélope comoveu-se! A Pita Galinha, o seu brinquedo preferi-

do, a sua confidente, estava viva! Com certeza que os VERDUSCOS

a encontraram no espaço à deriva!

A sua alegria destoava com a tristeza dos ratinhos... O Planeta

Terra estava perdido e não conseguiriam evitar o eclipse solar...

Zblog falou directamente a Penélope:

– Renda-se, menina, se não quer que a sua

amiga vire churrasco! – e tirando do coldre, com a mão

direita, uma pistola laser, apontou-a à cabeça do galináceo. Por sua

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Mãe, a Lua está Estagada?

vez, a sua mão canhota, apertava com mais força o pescoço da ave,

até os olhos da Pita se revirarem, sufocando!

– Por favor, não lhe faça mal! Nós rendemo-nos! – disse a me-

nina.

Roquefort e Poeiras, desiludidos, levantaram as mãos no ar, em

sinal de capitulação.

– Muito bem, agora é uma questão de tempo!

As suas antenas entram em curto-circuito, BZZZZZT! BZZZZZT!, dando sinal à Nave-Mãe marciana que estava

tudo bem. Imediatamente, de cada uma das extremidades do veí-

culo espacial, soltaram-se uns cabos cujas extremidades tinham um

gigantesco gancho. Os cabos, num impulso, esticaram-se, mal os

ganchos se cravaram no Crescente, TUNK, SCRETCH! – o

pedaço de Lua estava prestes a ser rebocado à força!

Contudo, aquilo não ficara por ali... A Pita Galinha, em au-

todefesa, bicou a mão de Zblog, soltando-se. Este, num reflexo,

começou a disparar:

– Maldita ave! Vais pagá-las! – com a mão a sangrar.

DZZZZZT! DZZZZZT! DZZZZZT! DZZZZZT!

– SOCORRO, PENÉLOPE, NÃO QUERO VIRAR FRANGO

DE AVIÁRIO!

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Luís Sá Fernandes

A Pita bem que batia as asas, saltitando aterrorizada no Crescente.

Mas o esforço foi em vão, com um tiro de raspão, soltaram-se-lhe

penas do rabiosque. Ficara depenada, em pele de galinha, pronta

para ir para o talho! Pita perdera definitivamente o controlo e cega

de medo, sem ver por onde ia, penetrou no monólito negro. Sem

pensar, num impulso, Penélope saltou também lá para dentro...

GLUP!FORAM AMBAS ENGOLIDAS!

Estavam dentro de uma bolha de ar, nas profundezas de um

oceano, límpido e azul... Teriam voltado elas de novo à Terra? O

monólito deveria ser um portal para outros mundos...

Tubarões, baleias, raias, golfinhos e cardumes de sardinhas

rodeavam-nas, porém estavam completamente estáticos. O tempo

parara ali. Flutuaram, flutuaram, até chegarem às ruínas de um

templo. Este também tinha a forma piramidal, só que era construí-

do em degraus, parecia uma pirâmide da civilização Maia...

A bolha de ar subiu como uma pena. No seu vértice havia uma

porta escancarada e entrou. ZUPT!Instantaneamente, encontraram-se as duas numa sala sem pa-

redes... Não havia ali nenhuma linha de horizonte, tudo era assus-

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Mãe, a Lua está Estagada?

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tadoramente branco! Mesmo no centro desse vazio incolor algo de

brilhante cintilava.... Acercaram-se... Um ceptro magnífico, um

quarto-crescente, com um olho de Hórus incrustado, com um cabo

feito em jade, resplandecia! Estava à espera de Penélope há milénios!

A menina esticou o braço, mas logo recuou-o, hesitando...

Atreveu-se, outra vez, e... AGARROU-O! PUFT!Mal lhe tocou, a luz magicamente desapareceu à sua volta e,

como um cenário de teatro, caído no estrado de um palco, encon-

trava-se de novo fora do monólito... Este último estava mesmo atrás

de si... à espera...

Os ratinhos e os VERDUSCOS estavam todos espantados com

o estranho fenómeno! Para eles, aquilo decorrera tudo num segun-

do!

«Chegou a hora! É agora ou nunca!» – pensou Penélope, levan-

tando o ceptro lunar.

– POR TOT, ATLANTIS E OSÍRIS, PELO PODER DO AR-

CO-ÍRIS, AFASTAI-VOS! – as palavras brotaram da sua boca, como

se alguém falasse por ela.

O clarão do ceptro quase que lhes cegava a vista. O brilho do ar-

co-íris espalhou-se pelo firmamento, como uma lata de tinta vertida

no chão. Era o fim do mundo! Só não choveram sapos! Choveram

sim, centenas e centenas de meteoritos que, numa só vassourada,

limparam o sarampo aos VERDUSCOS!

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Mãe, a Lua está Estagada?

BRUMMM! BRUMMM! CATRAPUM! PUM! PUM!

O Crescente brilhou mais do que nunca! – até parecia uma pu-

blicidade a detergente, mas tudo aquilo acontecera de verdade! OS

MARCIANOS FORAM DERROTADOS MILAGROSAMENTE!

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Luís Sá Fernandes

EPÍLOGO

Tudo voltara à normalidade! Tudo acabara em bem! Penélo-

pe olhou uma última vez para o ceptro. Apontou-o para o centro

do paralelepípedo espacial e atirou-o para o seu interior... PLUFT!

Desapareceu. Automaticamente os raios laser vindos dos Moais dei-

xaram de funcionar, a pérola negra caiu novamente no solo e o

monólito esfumou-se...

Finalmente, por artes mágicas, empurrado por forças desco-

nhecidas, o Crescente deu meia volta e, tal como um bumerangue,

regressou à mão do seu dono, neste caso à Lua.

Foi uma semana de festividades em toda a Lua... Ela estava de

novo cheia e livre de Marcianos – a base Verdusca e o travão orbital

foram desmantelados. Desde Luna Plena até ao Udjat, o Olho de Hórus

a festa foi de arromba! Claro que as bruxas de Ceilão e os Grunhos

não participaram. A inveja era tal que se tornaram cada vez mais

tortuosos e azedos, enfim...

Estabeleceram-se rotas comerciais entre as duas principais ci-

dades lunares – trocava-se queijo e leite por legumes e cereais. O

Vítreon tornou-se a nova energia alternativa. Ah, falta dizer que a

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Mãe, a Lua está Estagada?

barca alada de Tot foi transformada em transporte de mercadorias

e de passageiros entres as duas faces da Lua.

Udjat, 22 horas

Entretanto, Penélope perdera a alegria...

– Sr. Júlio, preciso de voltar para o planeta Terra. A missão está

cumprida... Tenho saudades da minha família... Há um mês que

estou fora de casa... Infelizmente, a minha cadeira mágica patiu-se!

Será que Tot levar-me-ia de volta?

O Sr. Júlio olhou fixamente para o horizonte verdejante:

– Acho que a tua boleia está a chegar... Espera só um momen-

to...

Um rebanho de ovelhas branquinhas como o algodão esvoaçara

até à beira do minarete de gelatina.

– Estas são as ovelhas anti-ciclónicas de baixa pressão... São as

nuvens que tu vês no céu!

– Não são, não! O meu Pai disse-me que as nuvens vêm da

evapoação da água!

– Como queiras! Porém este rebanho, vai agora mesmo partir

para Portugal... Há para lá grandes incêndios e toda a ajuda é pouca!

Aproveita a boleia...

– E é seguro?

– Está descansada!

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Luís Sá Fernandes

– Ok! Vamos, Pita, despacha-te, vamos voltá para casa!

O Sr. Júlio agarrou a menina por baixo dos braços e pô-la no

cachaço de uma ovelha negra e fofinha. Por sua vez, a tonta da Pita,

num só bater de asas, saltou também para cima da mesma, agarran-

do-se à barriga de Penélope. Era quase como andar de mota...

Todos os amigos vieram despedir-se: o ratinho Poeiras, Fagun-

des, Dentinho, Papa-Lume, Roquefort, o Príncipe Lamparina e o

flamingo Flambé. Estavam todos comovidos com a partida da me-

nina. Fora um mês cheio de aventuras, sobressaltos e companhei-

rismo...

– Bom, menina, estás pronta para voltares a casa? – perguntou

o Sr. Júlio.

– Acho que sim... – agarrando-se com firmeza à lã da ovelha

negrita.

– NUNCA TE ESQUEÇAS DE NÓS! – disseram todos ao mes-

mo tempo.

– Nunca! Tenho a impressão que vos vou voltar a ver, um dia,

de novo...

A Pita limpou uma lágrima que escorregara do canto da vista,

fazendo, ao mesmo tempo, adeus...

E partiram... Que belo arco formavam aquelas ovelhinhas! So-

brevoaram o minarete por duas vezes, e desceram lentamente até

uma lagoa de águas cristalinas, próxima de um campo verdejante de

milho, onde os Latinhas trabalhavam arduamente. Excepto a boleia

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Mãe, a Lua está Estagada?

de Penélope, todas as outras ovelhas, como esponjas, absorveram

uma grande quantidade de água, ficando muito cinzentas e voaram

rumo ao nosso querido planeta.

Circunvagaram o Lado Obscuro da Lua, sobrevoando, a uma

altitude vertiginosa, a Ilha de Draco e o Lago de Iogurte; atingiram a

fronteira entre as duas faces da Lua – Vallis Alpes, a terra dos Lampius

e o Entreposto Lunar de Finis Luna. Já no Lado Iluminado, viram so-

mente de relance a Cidade do Requeijão de Luna Plena, pois o grande

tapete cinza subitamente saiu da atmosfera lunar e, à sua frente,

impunha-se a maravilhosa esfera azul terrestre, com os seus conti-

nentes e oceanos! E saltitaram, saltitaram, saltitaram, aproxi -

mando-se, cada vez mais, daquele lindíssimo berlinde!

Quando chegaram à atmosfera do nosso querido planeta, mes-

mo por cima da Península Ibérica, outras ovelhas tresmalhadas

juntaram-se ao rebanho vindo de Udjat, o Olho de Hórus. Um longo

balir ecoou na nossa atmosfera, anunciando uma grande tempesta-

de! BÉÉÉÉ! BÉÉÉÉ! BÉÉÉÉ! O incêndio em Portugal deveria ser

mesmo devastador!

Num momento seguinte, as ovelhas dividiram-se: umas iam

para Norte e outras para Centro do nosso Pais... Todavia, a negrita

rumou para Sul... saltitando, saltitando, saltitando, com as

suas asitas nas patas, sempre a esvoaçarem, até chegar, primeiro

a Lisboa, depois a Paço de Arcos e finalmente à casa amarela de

Penélope.

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Luís Sá Fernandes

A janela do seu quarto estava curiosamente aberta! A negrita

abeirou-se ao umbral da janela, o que permitiu que as duas insepa-

ráveis amigas saltassem em segurança, para o seu interior. As aven-

tureiras despediram-se da ovelhita, dando-lhe uma festa na sua lã

negra e encaracolada. Esta, em forma de despedida, manifestou o

seu agrado balindo: BÉÉÉÉ! E voltou para junto das suas irmãs...

☺– É bom estar de novo de volta em casa, Pita!

– Sim, menina, mas é melhor deitarmo-nos, antes que os adul-

tos se apercebam da nossa chegada nocturna.

A galinha Pita voou para cima da cama da Penélope. Esta estava

cuidadosamente aberta, parecia mesmo que estavam à sua espera.

– Que lençóis macios e cheirosos... Estou tão cansadinha! – a

Pita tapando-se, mal fechou os olhos, adormeceu.

Penélope não se deitou logo. Foi ver por última vez aquele gi-

gantesco pedaço de queijo luminoso. Quase que era capaz de ver

dali a cidade de Luna Plena... Penélope estava orgulhosa de si mesma

– tinha ajudado a salvar a Lua e a Terra! Mas aquilo fora tudo muito

desgastante para uma menina com cinco anos de idade! Enfim, lá

se deitou... Enroscou-se nos lençóis, aconchegou a sua almofada e

pousou cuidadosamente o seu braço numa das asas da Pita, adorme-

cendo... – estava outra vez no Mundo da Lua!

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Mãe, a Lua está Estagada?

☼– Despertar, despertar! É segunda-feira! Vamos para a Escola!

– a sua Mãe entrara de rompante pelo quarto com um sorriso de

boas vindas.

Penélope esfregou os olhos. A Pita, preguiçosa, continuava a

dormir profundamente. No entanto, tinha que se levantar...

«Será que tudo aquilo não passou de um sonho? A minha mãe

nem sentiu a minha falta durante este tempo todo?!»

Mas como todas as crianças, Penélope esqueceu-se rapidamente

de responder a essa questão, com as mil e uma brincadeiras na es-

cola. E como ela brincou nesse dia! Brincou, brincou, brincou,

até não poder mais! Era bom não ter responsabilidades!

À noite tiveram visitas ao jantar: a VóCina e a Tia Bitis. Penélo-

pe encheu a barriguinha! Como sobremesa, deram-lhe queijo com

marmelada, uma das suas sobremesas preferidas. Porém, só tocou

na marmelada.

– Por que é que não comeste o queijo? – perguntou-lhe a sua

Tia.

– Bigadinha, mas estou enjoadíssima. Na Lua comi queijo para

duas vidas!

Os adultos olharam todos uns para os outros, pasmados com

aquela resposta. De onde é que ela tirara aquela estranha ideia? De

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Luís Sá Fernandes

alguma brincadeira da Escola?

Pouco rogada, Penélope enfiou a sua pequena mão no balde de

gelo, enquanto que a Mãe e o Pai levantavam a mesa. Tirando um

cubo de gelo, começou a roê-lo. Como era bom sentir o lento der-

reter do gelo em água na sua boca, naquela noite de Verão. E pensar

que salvara o mundo! «A esta hora, se calhar, o globo terrestre não

passaria de uma enoime bola de neve!»

A televisão só falava de incêndios em todo o Pais e de uma chuva

miraculosa, fora de época, que tinha ajudado a apagá-los. Agora, fe-

lizmente, estavam em fase de rescaldo. Penélope correu para o sofá,

sorrindo, enquanto a Pita Galinha, de crista tombada, no topo de

uma pilha de brinquedos, lhe piscava subtilmente um olho... Afinal,

aquilo tudo fora verdade! E para ter a certeza...

– Mãe, a Lua está estagada?

A Mãe que passava, nesse momento, à beira da janela, espreitou,

fazendo uma pausa às arrumações...

– Anda cá, minha querida, vem ver este luar de Agosto, mara-

vilhoso!

E puseram-se as duas no beiral da janela da sala de jantar... Que

bela noite! O géiser1 artificial de Oeiras estava iluminado, no meio

do mar, mesmo em frente à casa de Penélope, espirrando um des-

1 Fonte quente cuja actividade se caracteriza pela projecção no espaço, com intervalos regulares, de jactos de água e de vapor.

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comunal jacto de água. Ao seu lado, reflectia-se uma Lua bolachuda,

sorrindo-lhe...

Penélope fechou os olhos, entre os braços de sua Mãe, de modo

a sentir a brisa marítima que lhe afagava o rosto...

No dia seguinte, ocorreu um espectacular Eclipse Solar. A ma-

landreca da Lua passou mesmo à frente do Sol, durante meia hora,

tapando-lhe a sua luz e o dia transformou-se em noite...

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Luís Sá Fernandes

Momentaneamente, Portugal parara para observar aquele estra-

nho fenómeno astronómico – uma esfera negra, aos poucos e pou-

cos engoliu o astro-rei, deixando apenas um anel de fogo à sua volta.

Mas a Lua estava apenas de passagem... Depois... depois, a vida, lá

em baixo, continuou monótona, como sempre...

FIM

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A todos os Pais:Sempre este jogoDo gato e do rato...À procura de uma falsa Glória... Onde estás tu, Meninice?“Despida na praia, numa desbotada fotografia,Nua de juízos e preconceitos...” Então, tudo parecia irreal, inconcreto...A maior dúvida tinha resposta simples:“A Lua está vazia, pois está estagada!” Onde estás tu, Meninice?“Corrompida pelo inevitável crescimento;Pela tomada de consciência;Pelo declínio do ;Pelo peso da responsabilidadeE pela vitória da mentira!” Enfim,Choro.Não por cair do baloiço,Mas por cair em Mim!

Luís Sá Fernandes

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