5
Ciências Sociais Unisinos 44(3):181-185, setembro/dezembro 2008 © 2008 by Unisinos – doi: 10.4013/csu.20083.02 Resumo O trabalho de Michel Maffesoli procura observar o homem comum e, nele, a passagem de um modo de identidade (conotação ideológica) para uma forma de identificação (imaginal, conotação que interessa o imaginário). A identidade seria uma característica da modernidade, enquanto a identificação da pós-modernidade. Maffesoli trabalha com a teoria de uma sensibilidade pós-moderna que justifique mudanças na civilização. É um tipo de raciocínio, a exemplo de Nietzsche, prospectivo. De todos os teóricos de filiação pós-moderna, não seria exagero designá-lo como sendo o único que tent a incluir o imaginário, conforme a visão durandiana, na sua forma de pensar. É esta, aliás, precisa- mente, a peculiaridade do seu trabalho: a reflexão de uma nova “dinâmica social”. Para ele, a diferença é clara. Se antes nós tínhamos uma relação de confiança contratual, um perfil delineado, uma profissão segura, um projeto de vida, hoje não. Agora, o perfil é mutante, a profissão (quase) não existe, o projeto é ocasional e o futuro incerto. O que vale é o presente (presenteísmo). O assunto da identidade merece uma reflexão longa por parte de Maffesoli. Este tema também é discutido por outros teóricos ligados aos Estudos Culturais, como Stuart Hall. Em pelo menos um ponto eles têm algo em comum. Ambos apostam na saturação da lógica clássica da identidade, e é este o tema do artigo abaixo, baseado em um seminário de Maffesoli em maio de 2006, na PUCRS. Palavras-chave: imaginário, pós-modernidade, cotidiano. Abstract Michel Maffesoli’s work tries to understand the common man without despising him as something insignificant if compared to the researcher of academic formation. For that inclination we can discuss a theme that, for him, has deserved several reflections: the passage from an identity way (ideological connotation) to an identification form (imaginal connotation, that concerns the imaginary). The identity would be a characteristic of the modernity, while the identification would be a characteristic of the post-modernity. Let us see why. Maffesoli works with the theory of a post-modern sensibility to see changes in the civilization. It is a prospective type of reasoning, like Nietzsche’s. Of all the post- modern affiliation theorists, Maffesoli is the only one that tries to include the imaginary, under the durandiano view, in his form of thinking. And it is that, precisely, the peculiarity of his work, a reflection on the new “social dynamics” . For him, the difference is clear. If we were able to have a delineated profile, a safe profession, a life project before, that no Eduardo Portanova Barros 1 [email protected] Maffesoli e a “investigação do sentido” – das identidades às identificações 1 Jornalista, doutorando do Programa de Pós- Graduação em Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS) e bolsista do CNPQ-Brasil. Maffesoli and the “investigation of the sense” From identities to identifications

Maffesoli e a Investigação Do Sentido - Das Identidades Às Identificações

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Eduardo Portanova Barros1

Citation preview

  • Cincias Sociais Unisinos44(3):181-185, setembro/dezembro 2008 2008 by Unisinos doi: 10.4013/csu.20083.02

    Resumo

    O trabalho de Michel Maffesoli procura observar o homem comum e, nele, a passagem de um modo de identidade (conotao ideolgica) para uma forma de identificao (imaginal, conotao que interessa o imaginrio). A identidade seria uma caracterstica da modernidade, enquanto a identificao da ps-modernidade. Maffesoli trabalha com a teoria de uma sensibilidade ps-moderna que justifique mudanas na civilizao. um tipo de raciocnio, a exemplo de Nietzsche, prospectivo. De todos os tericos de filiao ps-moderna, no seria exagero design-lo como sendo o nico que tent a incluir o imaginrio, conforme a viso durandiana, na sua forma de pensar. esta, alis, precisa-mente, a peculiaridade do seu trabalho: a reflexo de uma nova dinmica social. Para ele, a diferena clara. Se antes ns tnhamos uma relao de confiana contratual, um perfil delineado, uma profisso segura, um projeto de vida, hoje no. Agora, o perfil mutante, a profisso (quase) no existe, o projeto ocasional e o futuro incerto. O que vale o presente (presentesmo). O assunto da identidade merece uma reflexo longa por parte de Maffesoli. Este tema tambm discutido por outros tericos ligados aos Estudos Culturais, como Stuart Hall. Em pelo menos um ponto eles tm algo em comum. Ambos apostam na saturao da lgica clssica da identidade, e este o tema do artigo abaixo, baseado em um seminrio de Maffesoli em maio de 2006, na PUCRS.

    Palavras-chave: imaginrio, ps-modernidade, cotidiano.

    Abstract

    Michel Maffesolis work tries to understand the common man without despising him as something insignificant if compared to the researcher of academic formation. For that inclination we can discuss a theme that, for him, has deserved several reflections: the passage from an identity way (ideological connotation) to an identification form (imaginal connotation, that concerns the imaginary). The identity would be a characteristic of the modernity, while the identification would be a characteristic of the post-modernity. Let us see why. Maffesoli works with the theory of a post-modern sensibility to see changes in the civilization. It is a prospective type of reasoning, like Nietzsches. Of all the post-modern affiliation theorists, Maffesoli is the only one that tries to include the imaginary, under the durandiano view, in his form of thinking. And it is that, precisely, the peculiarity of his work, a reflection on the new social dynamics . For him, the difference is clear. If we were able to have a delineated profile, a safe profession, a life project before, that no

    Eduardo Portanova [email protected]

    Maffesoli e a investigao do sentido das identidades s identificaes

    1 Jornalista, doutorando do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PPGCOM-PUCRS) e bolsista do CNPQ-Brasil.

    Maffesoli and the investigation of the sense From identities to identifications

  • 182

    Cincias Sociais Unisinos

    Maffesoli e a investigao do sentido das identidades s identificaes

    longer happens. Now, profiles are mutant, professions (almost) do not exist, projects are occasional and the future, uncertain. What is worth is the present (presenteism). The subject of the identity deserves a long reflection on the part of Maffesoli. This theme is also discussed by other theorists linked to the Cultural Studies, like Stuart Hall. Maffesoli argues, approaching Hall, and vice-versa, that a saturation of the classical logics of identity can happen.

    Keywords: imaginary, post-modernity, quotidian.

    A obra de Michel Maffesoli tem se destacado por tentar compreender o homem dito comum sem menosprez-lo como algo insignificante se comparado ao pesquisador de formao acadmica. E isso no pouca coisa, principalmente pelo histrico de Maffesoli: professor da sisuda Sorbonne. Ele autor de livros corajosos, questio-nando o que chama de moralismo judaico-cristo (de forte inspirao nietzschiana) da sociedade ocidental. O ocidentalismo como suporte identitrio o que est na base do pensamento maffesoliano. Existe um jeito ocidental de pensar? Qual? Por esse vis, poderemos discutir um tema que, para ele, tem merecido vrias reflexes: a passagem de uma forma de identidade (conotao ideolgica) a uma forma de identificao (conotao imaginal, que diz respeito ao imaginrio). A identidade seria uma caracterstica da modernidade, ao passo que a identificao da ps-modernidade. Vejamos por qu.

    Maffesoli trabalha com a tese de uma sensibilidade ps-moderna para enxergar mudanas na civilizao. um tipo de raciocnio, a exemplo de Nietzsche, prospectivo. Talvez o que Maffesoli tenha dito do filsofo alemo era no-contemporneo do seu tempo diga respeito a ele mesmo. De todos os tericos de filiao ps-moderna, Maffesoli o nico que procura incluir o imaginrio, sob a aba durandiana, na sua forma de pensar. E esta, precisamente, a peculiaridade de sua obra, uma reflexo sobre a nova dinmica social (ttulo de sua tese de doutoramento em Letras e Cincias Humanas, defendida em junho de 1978 e orientada por Gilbert Durand): das identidades s identificaes. Para ele, a diferena clara. Se antes ns podamos, seguramente, ter um perfil delineado, uma profisso segura, um projeto de vida, isso j no acontece mais. Agora, o perfil mutante, a profisso (quase) no existe, o projeto ocasional e o futuro, incerto. O que vale o presente (presentesmo).

    A questo da identidade merece uma longa reflexo por parte de Maffesoli. Este tema tambm discutido por tericos filiados aos Estudos Culturais, como Stuart Hall. Para ele, Hall, as concepes de identidade se dividem em (a) sujeito do Iluminismo, (b) sujeito sociolgico e (c) sujeito ps-moderno (Hall, 1999, p. 10). Hall apresenta a tese dos cinco descentramentos do sujeito moderno: a rejeio do mito do homo economicus; a lgica oriunda tambm do inconsciente; a autoria sem individualidade; o poder disciplinar foucaultiano, e, por fim, a abertura promovida pelo

    feminismo. Sustenta a tese, ainda, com base nesses postulados, de que as culturas nacionais no so homogneas: Em vez de pens-las como unificadas, deveramos pens-las como cons-tituindo um dispositivo discursivo que representa a diferena como unidade ou identidade (Hall, 1999, p. 61-61). Maffesoli argumenta, aproximando-se de Hall, e vice-versa, que pode haver uma saturao nessa lgica clssica da identidade.

    O que Maffesoli pe no lugar uma lgica da identificao, sustentada pela tese da existncia de um processo, um deslize da identidade rumo identificao, sem que aquela desaparea para ceder lugar, totalmente, a esta. A possvel substituio, porm, no o ponto do argumento maffesoliano, e sim o de que estamos vivendo outra disposio (tanto em termos de vontade quanto de arranjo), e que isso pode ser uma das marcas da ps-modernidade. O eu apenas uma iluso ou, antes, uma busca um pouco inicitica; no nunca dado, definitivamente, mas conta-se progressivamente, sem que haja, para ser exato, unidade de suas diversas expresses (Maffesoli, 1996, p. 303). O sujeito, para ele, cede lugar pessoa. Uma pessoa que, conforme a raiz etimolgica da palavra, veste mscaras ou apresenta diversas facetas que, apesar de distintas, so incorporadas por uma mesma individualidade.

    Para Maffesoli, a ps-modernidade s pode ser compre-endida se levarmos em conta aspectos pr-individuais, atravs do que ele chama de investigao de sentido. E o que ele percebe que a lgica do pensamento ocidental repousa na unidade, na separao e no longnquo. Unidade porque a polissemia do real estaria sendo reduzida a um nico valor; longnquo porque a verdadeira vida estaria em outro lugar, e, finalmente, separao porque o ser humano estaria sendo desmembrado da natureza, isto , ns seramos uma coisa e a natureza, outra. Esta trade estaria, segundo Maffesoli, na base do racionalismo europeu e, da, passa a se capilarizar no corpo da sociedade. Teramos, ento, a partir desses trs exemplos, um modo oficial de pensamento no Ocidente. Com isso, tambm, estaramos reduzindo nossa capacidade de ver as coisas de maneira polissmica, multilgica e complexa, sem dar espao para as contradies prprias do ser humano.

    Em seminrio realizado na PUCRS, em maio de 20062, Maffesoli aprofundou o tema3. Maffesoli, voltando ao seminrio, disse que, em relao unidade, o monotesmo culminaria na glo-

    2 Seminrio sobre metodologia, epistemologia e ps-modernidade, que se intitulou Sociologia Compreensiva, Razo Sensvel e Conhecimento Comum e que foi ministrado pelo Prof. Dr. Michel Maffesoli, de 8 a 11/5, na PUCRS, por iniciativa do Programa de Ps-Graduao em Comunicao Social.3 Todas as citaes de Maffesoli neste artigo a partir de agora so extradas desse seminrio: so frases oriundas da oralidade, da sua expresso verbal, e no de pginas impressas nos seus livros.

  • Volume 44 nmero 3 set/dez 2008

    183Eduardo Portanova Barros

    balizao contempornea, e, a partir desse monotesmo estrutural, se chegaria devastao do mundo e a uma pilhagem ecolgica. Tambm a partir da destruio da multiplicidade e dos saberes, haveria uma lgica de destruio da biodiversidade. No caso do longnquo, tudo estaria em outro lugar, como a verdadeira vida. A Cidade de Deus um por-vir. Viveramos, ento, em um vale de lgrimas (Santo Agostinho). Como haveria uma ressurreio da carne no alm, esta vida, agora, teria, pois, pouca importncia, segundo ele. Maffesoli lembra que Deus separou a luz das trevas, o que nos remete separao. Ela seria, para Maffesoli, da ordem do que original, e tudo declinaria dela. A natureza seria um objeto a ser explorado. Distingue-se, separa-se, corta-se. Essa concepo analtica se tornaria eficaz por causa da performati-vidade moderna que colocaria a natureza de um lado e a cultura, de outro, na opinio dele.

    A totalidade da nossa maneira de pensar repousaria nestas trs linhas, a separao, a explicao e a anlise. Em latim, ensina Maffesoli, explicare significa retirar e desfazer as dobras. Tudo seria plano e liso sob o olhar de Deus e da Razo. Aquela totalidade fundamentaria o desempenho da tradio ocidental. Hoje, porm, Maffesoli trabalha com a hiptese de que haja uma inverso desse processo, e isso, na opinio dele, a sociologia compre-ensiva. Cum prender tomar aquilo que fora separado, mas, no caso do ensino universitrio, permanece a lgica da separao. O desafio metodolgico ter capacidade de tomar os elementos da totalidade social, diz o socilogo. Esta concepo diairtica (Durand), aponta ele, o substancialismo, o fato de passarmos do verbo ser no infinitivo (tre, em francs, ao mesmo tempo ser e estar) a um ser nominal, raciocina o autor de Elogio da razo sensvel (1998). A nominalizao do ser foi o fundamento da perspectiva ocidental, afirma Maffesoli.

    E essa nominalizao, Maffesoli continua, se d quando se passa para Dieu (Deus). Porm, prprio de uma individualidade fsico-qumica o fato de ser plural. Para ele, significaria passar da individualidade ao indivduo em um processo que vai, por sua vez, de um infinitivo para um nome. Mais um exemplo: comunidade passa a ser sociedade (substancialismo). A substncia auto-suficiente, como um sujeito que age sobre um objeto. O paradoxo que o homem mestre da natureza caminha em direo devastao dessa mesma natureza. O tdio leva do vazio da vida individual ao vazio da vida coletiva. Podemos falar em hterot-lie. A idia do controle leva ao seu contrrio. O substancialismo tem essa dimenso perversa, na opinio do socilogo. Ou seja, ao tentarmos ser outra coisa, acabamos nos tornando mais nada, observa Maffesoli, lembrando que assim a idia de simulacro de Baudrillard. Maffesoli valoriza a idia de trajetividade: no mais o sujeito opinando sobre o objeto, mas antes um trajeto.

    A separao colocaria de lado, segundo ele, a subjetividade. Ela, a separao, o prottipo do cientificismo. Haveria um retor-no, agora, da reversibilidade dos fenmenos, que Morin chamaria de complexidade (perspectiva sistmica, ao contrrio do esquema causativo). Maffesoli observa que a marca da cientificidade foi separar o pesquisador da sua subjetividade: O que serviu de modelo cientfico j evoluiu, mas ns permanecemos naquele do

    sculo XIX. A questo essencial entre explicao e compreenso, para ele, de natureza semntica. Quando no percebemos a finalidade de algo, ela considerada insensata. Portanto, tento mostrar sentido sem que haja um sentido. Talvez seja essa a marca da ps-modernidade: um sentido sem sentido, arrisca-se. Maffesoli usa Gilbert Durand, que distingue os regimes diurno e noturno do imaginrio. O procedimento explicativo, portanto, pertenceria ao regime diurno do imaginrio, o da razo: a grande caracterstica da tradio ocidental.

    Durand observa como o regime diurno se expressa na literatura, na pintura, na escultura. Eu diria que essa anlise pode ser extrapolvel a outras manifestaes da vida cotidiana. Uma das figuras emblemticas desse regime seria a espada, que separa o bem do mal. Outra figura seria o arado, que representaria o domnio sobre a terra, exemplifica Maffesoli. A terceira figura o falo elevado, continua Maffesoli, dizendo que so todas ima-gens de objetos contundentes, que buscam, invadem e cortam. Configura-se a explicao. E, do lado oposto, h o regime no-turno do imaginrio. A copa enfatiza menos o contedo do que o continente, afirma Maffesoli. Para mim, a idia de compreenso est ligada ao retorno do noturno na ps-modernidade. Todo o desenvolvimento tecnolgico e interativo d a idia de concavi-dade e copa. Ele afirma que na histria da arte a figura clssica apresenta ngulos retos; j no barroco, a nfase direcionada organicidade das coisas. Em outros termos, o clssico flico, e o barroco, vaginal, para Maffesoli.

    Muitas manifestaes culturais podem ser qualificadas como barrocas, para Maffesoli. Ele diz que no livro O fundo das aparncias (1996) quis dar, justamente, a idia de cncavo, e no de fundo. Creux, em francs, remete a creuser, que como um crisol. a idia matricial na imagem do continente. Insisto em valorizar o continente e no o contedo. Os reality shows e a pu-blicidade tm contedo zero, mas uma forma comunal. Maffesoli lembra que sempre se prevaleceu o cognitivo no sculo XIX, mas que, na perspectiva do continente (que tambm pode se chamar razo sensvel), a nfase no saber incorporado, ou seja: no passa, necessariamente, pela explicao ou verbalizao. algo de um saber animal. o coup doeil. o fundamento da perspectiva compreensiva, ressalta o socilogo. E, para dar o que Maffesoli chama de dimenso aberta tese da sociologia compreensiva, recusa-se a usar o conceito, algo muito prximo de outra palavra que, para ele, tambm deveria ser superada, a crtica.

    H uma inflao de conceitos. Em todos os domnios, pa-rece ser um termo-chave, apesar de no dizer mais nada. Por qu? Porque conceito significa tudo aquilo que fechado, e, portanto, prprio dele isolar o objeto como um produto finito e acabado, diz. Em O conhecimento comum (2007), destaca ele, tenta-se usar o termo noo, que o de uma instrumentao congruente com o momento vital. Maffesoli acha que preciso encontrar noes menos verdadeiras possveis. Assim, segundo Maffesoli, o conceito buscaria a verdade, mas a noo buscaria a semelhana. Ele costuma repetir a tese de que preciso olhar longe para trs para olhar longe para frente. Considera que no conceito haveria algo de, fundamen-talmente, paranico: Parania, alis, vem do grego, e significa um

  • 184

    Cincias Sociais Unisinos

    Maffesoli e a investigao do sentido das identidades s identificaes

    pensamento que vem de cima (haut penser, em francs). Baudelaire, em um texto sobre a modernidade, se refere a Deus como o maior dos paranicos, pois tem a viso de cima.

    Maffesoli prefere um pensar com: Metania, um pensa-mento que acompanha a realidade, sem cri-la. Um procedimento, alis, mais metafsico. Quanto crtica, Maffesoli traz referncia ao termo grego que lhe d origem, crinein. Para ele, a atitude crtica judicativa ou normativa: Nietzsche na filosofia e Simmel na sociologia, por exemplo, consideravam aquilo que e no o que deveria ser. Maffesoli refere-se, ainda, a Paul Feyerabend, um fsico lgico, que, segundo ele, tira conseqncias da expresso tudo vale, a fim de procurar no mais a superao do bem e do mal, e sim um processo de reversibilidade. Aproveitando esse tema, o que poderamos chamar de formismo (a importncia da forma). Quando falo da forma me apio em Simmel. Falo de uma sociologia formista para chegarmos intuio da sociologia compreensiva, diz Maffesoli. Para ele, a forma formante, e h, nisso, o que considera uma revoluo metodolgica.

    Do mesmo modo, continua Maffesoli, o corpo social s pode existir porque h essa pele constituindo-o, que da ordem da animalidade. Isso tambm nos remete a hmus, humano e humildade. Nesse pensamento da forma, o trabalho analtico do intelectual ocupa um segundo plano em relao ao que . A noo de forma, para ele, lembra a moldura de um quadro, cuja funo destacar a pintura e, portanto, o gnio do artista: algo que no existe enquanto tal, mas que faz destacar, que epifaniza. Essa era a proposta de Aristteles ao fundar o mtodo filosfico de pensamento: colocar belamente o problema. Tambm era, segundo Maffesoli, a idia de Guy Debord, segundo o qual nossas idias estariam dentro de todas as cabeas. O pensador cristaliza o que est na cabea das outras pessoas. No sou eu que crio o que nomino, mas ressalto o que destacado. Primeiro a existncia e depois, a formao. Formismo interao, afirma ele.

    a idia de ao recproca. Para Maffesoli, trata-se de um processo no de adio, mas de multiplicao, que estabelece uma sinergia entre o arcaico e o desenvolvimento tecnolgico, remetendo metfora da tribo (arcaica) e da internet (tecnologia de ponta). No se trata mais de um princpio de individualizao, mas antes relacional, no sentido de um retorno ao ideal comuni-trio. Essa a primeira conseqncia da forma, na opinio dele. Maffesoli traz a imagem da ponte e da porta. A porta o que fecha. A ponte o que liga. As coisas, assim, se apresentariam em duplo sentido, como se tudo fosse ligado e separado. Em O tempo das tribos, Maffesoli (1997) diz que h tanto incluso quanto excluso, atrao e repulso: Isso no racional, mas emocional. uma questo de feeling. uma questo de sentir ou no, que remete ao cheiro e ao sentimento. Para mim, tambm uma pista de razo sensvel; aquilo que se esboa na ps-modernidade. De acordo com o socilogo, toda a metfora da tribo est a, ou seja, um princpio de relao baseado nos diversos tipos de gosto.

    na ordem dos afetos, e no mais do racionalismo contra-tual, que pensa Maffesoli. Ele faz questo de insistir em destacar os aspectos afetual e emocional do que chama de uma ambincia ou dimenso climatolgica. A idia de emocionalidade nos leva

    ao sentido de atmosfera, como na copa do mundo de futebol. Nela, o elemento essencial uma atmosfera histrica, traduzida pelas expresses mise en foule e mise en folle. A idia do relati-vismo costuma escandalizar, segundo Maffesoli. O fim do sculo XIX marca o triunfo da modernidade, com base, justamente, em valores universais. O relativismo, porm, o contrrio dessa pers-pectiva, e , no entender de Maffesoli, uma das caractersticas da ps-modernidade. Ele argumenta que ao se colocar em relao, leva-se em conta o policulturalismo e a polissemia.

    A reacentuao das formas, para Maffesoli, tambm leva ao relativismo. Pr em relao, na opinio dele, seria outra maneira de pensar o equilbrio e a harmonia. Diferentemente do monotesmo (estruturalmente fantico, diz ele), o politesmo engendra outra forma de harmonia. Penso que o esquema do relativismo devesse ser aplicado s sociedades atuais. Devemos levar a srio as aparncias. uma ao recproca, que tambm poderia ser chamada de interacionismo simblico ou comu-nicao. Em outras palavras, Maffesoli diz que a comunicao ps-moderna o retorno do simblico pr-moderno. Eu s existo atravs e sob o olhar do outro. Nietzsche e Simmel tm idias seminais com fora de pensamento instituinte, no aceito pelo institudo, mas que iro ressurgir dcadas mais tarde. O anmico se torna cannico, afirma o socilogo. Admirador de Nietzsche, Maffesoli afirma que o filsofo alemo deixou, pelo menos, trs legados. Em primeiro lugar, a suspeita em relao ao sujeito e ao indivduo; em segundo, a idia de no-racionalidade, e, em terceiro, a da concepo trgica da existncia.

    Maffesoli confessa que foi Nietzsche que lhe permitiu pensar na idia de pessoa e de tribo, ou seja, na saturao do indivduo e na emergncia do tribalismo. Para Nietzsche, o no-racional no quer dizer irracional. O no-racional seria da ordem da paixo, da emoo e do afeto. Nietzsche, ainda, inspirou a distino entre o drama e a tragdia. Nosso modo de pensar dramtico, quer saibamos ou no. No drama, h uma ao que deve ser solucionada e uma concepo judaico-crist, encontrada no marxismo, aponta Maffesoli. O instrumento a dialtica, observada, por Maffesoli, na educao, na poltica e na economia. O trgico, porm, o que ele chamou de instante eterno, pois no se procura uma eternidade, mas sim o presente e o gozo: da a idia de Maffesoli segundo a qual o prazer teria, portanto, relao com o trgico, e a caracterizao do Brasil como sendo um laboratrio da ps-modernidade.

    Maffesoli diz que, para alm de uma concepo progres-sista, destacam-se trs arcasmos na ps-modernidade: o retorno de Dioniso (dimenso hedonista da existncia), a idia de tribo (modo de estar-junto a partir do gosto compartilhado) e a de nomadismo (sedentarizao da existncia, retorno da animalidade, do brbaro e do selvagem). Contra o grande esquema que marcou a modernidade, o enraizamento dinmico uma energia que se mantm no aqui e agora. Observo uma concepo anarquista no esprito do tempo. Assim, o que orienta meu trabalho a socio-logia da vida cotidiana, e a que vejo uma grande mudana de episteme. Maffesoli refere-se ao fundamento do individualismo ocidental, baseado na idia de economia de salvao (Santo

  • Volume 44 nmero 3 set/dez 2008

    185Eduardo Portanova Barros

    Agostinho). Para ele, toda a tradio crist repousa nisso, algo que no encontramos em outras tradies, e que se acentuaria no sculo XVII e se aceleraria at se tornar o fundamento terico da sociedade.

    Freud lembra Maffesoli usa a expresso infra-estrutura social, e Descartes inventa o indivduo filosfico: Penso, logo existo na fortaleza da minha mente. Fortaleza, continua Maffesoli, traduz a idia de carapaa e fechamento psicolgico. Maffesoli observa que Weber mostrou que pela inveno do indivduo religioso haver o desenvolvimento do capitalismo e que a eco-nomia da salvao ser a economia stricto sensu, na qual ir se basear a sociedade moderna. A inveno do sujeito poltico se d atravs da filosofia das luzes e da Revoluo Francesa. E a inveno do sujeito jurdico se inicia no sculo XIX, cujo modelo o Cdigo Napolenico. Para Maffesoli, o indivduo passa a ser um piv a partir do qual se ir construir o contrato, e Foucault mostra como se inventa a instituio social. esse o processo que est em jogo na ps-modernidade, de acordo com Maffesoli. Isto , o fim de um mundo no o fim do mundo. Estamos em meio a uma verdadeira mudana, que podemos dividir em trs grandes pontos: saturao do indivduo, do estado-nao e a de cunho epistemolgico.

    Ao mesmo tempo em que se observa a saturao do indi-vduo indivisvel e uno, h uma emergncia da pessoa (persona ou mscara). A pessoa, pois, tem vrias mscaras a sua disposio, afirma Maffesoli. Para ele, a pessoa , estruturalmente, plural, no mais uma identidade, mas antes, pertencente ao universo das identificaes mltiplas. Maffesoli lembra que a idia de pluralidade do ser era considerada uma espcie de esquizofrenia (esquizo, rememora ele, significa corte). Vou me expressar, portan-to, atravs de mscaras sucessivas. Muda a concepo temporal. No individualismo, o que est em jogo o futuro. Na pessoa, o que est em jogo o instante eterno. A conseqncia da pluralizao a multiplicao das grandes emoes compartilhadas, segundo ele. Os ritos piaculares, de choro, por exemplo, tm uma funo agregativa que funciona como cimento social. Para Maffesoli, no se trata mais de pensarmos apenas no indivduo racional, mas em termos de pessoas emocionais: A mdia o vetor dessa contaminao.

    A segunda virada, para Maffesoli, a saturao do estado-nao e a emergncia de uma entidade global. preciso pensar, paradoxalmente, no imprio e na tribo. O imprio, diz ele, como uma espcie de conjunto vazio matemtico (Imprio Romano). Trata-se de uma entidade vaga e vasta, sendo que, dentro dela, aparecem pequenas tribos variveis. isso a geopoltica em ges-

    tao, na atualidade. Prevalncia localista. Mcdonaldizao do mundo. McDonalds e feijoada. A terceira e ltima saturao de cunho epistemolgico, como j se disse. Para Maffesoli, h um retorno do sensvel, do corpo e da intensidade, de forma difusa. mais vivido do que pensado. uma idia de criatividade da existncia. Noo de criao da vida como obra de arte e da este-tizao da vida social. Esttica o compartilhamento de emoes (quaisquer que sejam). Logo, haveria, segundo ele, outro lao social em jogo. A rebelio do imaginrio interna. Se h uma fora interna contra uma sociedade racionalista, pelo fato de haver uma (re)ligao com foras arcaicas e naturais, como em Da Vinci, um arteso-artista: e meu aporte encontrar a terra frtil na vida cotidiana.

    Neste seminrio, Maffesoli sintetizou os principais pontos de seu trabalho, cuja erudio inegvel. O que chama a ateno no pensamento maffesoliano , justamente, este saber profundo em sintonia com a vida e o cotidiano, com o senso comum, com o homem banal, com a existncia simples, mas, nem por isso, vazia de sentido e de vitalidade. Para sustentar essa idia, Maffesoli foi buscar na sociologia compreensiva de Weber e na filosofia niilista de Nietzsche as noes que melhor se enquadram nos seus questionamentos sociolgicos. Maffesoli no julga, o que uma postura tipicamente ps-moderna. A crtica, como diz ele, caracterstica da modernidade, e, portanto, para ser coerente em relao ao tempo de que fala, no haveria espao, nele, para qualquer tipo de julgamento. Coerncia na pluralidade, alis, uma das principais caractersticas de Maffesoli, um erudito que no vira as costas para o cotidiano e que, mais do que isso, encontra, nesta forma de viver, relaes de vizinhana que antes pareciam insignificantes no jogo social.

    Referncias

    HALL, S. 1999. A identidade cultural na ps-modernidade. DP&A, Rio de Janeiro, 102 p.MAFFESOLI, M. 1996. No fundo das aparncias. Rio de Janeiro, Vozes, 350 p.MAFFESOLI, M. 1997. O tempo das tribos. Rio de Janeiro, Forense-Universitria, 232 p. MAFFESOLI, M. 1998. Elogio da razo sensvel. Rio de Janeiro, Vozes, 207 p.MAFFESOLI, M. 2007. O conhecimento comum. Porto Alegre, Sulina, 295 p.

    Submetido em: 12/05/2008Aceito em: 23/09/2008