Magia Em Portugal

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    T OPOI , v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004, pp. 9-70.

    I nquisio, pacto com o demnio emagia africana em Lisboa no

    sculo XVIII

    Didier Lahon

    Em 1787, algumas negras bruxas vivem nas cavernas das ribeirasngremes do Tejo. Para sobreviverem, dizem a sina e vendem sortilgioscontra malefcios. William Beckford, durante um passeio, assistiu deten-o pela Inquisio de uma destas miserveis sibilas [...] hediondo ser, cujosuivos (o) encheram de terror.1Por si s, o testemunho do famoso dndiingls no permite afirmar a existncia de uma importante bruxaria africa-na em Lisboa no fim do sculo XVIII. No entanto levanta a questo dasprticas mgicas na populao negra da capital e a possibilidade de que traos

    e crenas de origens africanas tivessem sobrevivido, adaptando-se e inse-rindo-se nas prticas locais. Pouco conhecidos, menos estudados ainda, sobo ngulo desta problemtica, acrescentar-se-iam ento aos elementos des-se rio submerso que ter sido em Portugal a heterodoxia, o descontenta-mento, a marginalidade, mesmo a heresia, que se opuseram, numa resis-tncia de sculos, ao domnio das conscincias, intolerncia, perseguio,ao ostracismo.2

    Os arquivos da Inquisio constituem neste campo a principal se noa nica fonte qual podemos recorrer. Contudo, esta no se presta facil-mente ao exame da heterodoxia considerada do ngulo que aqui nos inte-ressa. Com efeito, quando um processo diz respeito a um negro ele perdeo carter de confrontao econmica ou poltica que, sobre fundo religio-so, ope regularmente a Inquisio aos cristos novos e mouriscos que afir-mam a crena dos seus antepassados s vezes at a morte.3 Para a Inquisi-o de Lisboa, entre os processos de escravos e forros, negros e mulatos,

    residindo em Portugal, os condenados entregues ao brao secular so rela-tivamente raros, em especial quando se tratava de bruxaria. Em certos pro-cessos, perante a gravidade dos fatos indiciados, a sua qualidade de pagos

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    recm-convertidos pesou em seu favor e a Inquisio parece mesmo de-monstrar uma certa clemncia. Esta impresso, deixada por vrios proces-sos, precisa ser verificada pela anlise de um maior nmero de situaes.

    Assim, nos casos que conhecemos, a suspeita de um regresso reli-gio dos antepassados nunca foi explicitamente indicada, mesmo quandoa acusao era a de ter negado a F catlica. Nunca aparece o termo idola-tria, nunca feita uma referncia explcita s crenas africanas. Mesmotardiamente, em 1796 por exemplo, quando o escravo Loureno denun-ciado por adorar freqentemente o sol vista de toda a vizinhana, embo-

    ra seja cristo batizado.4Um negro, quer africano, quer natural da metrpole ou do Brasil, eratratado como um cristo velho: respeitou ou transgrediu as regras e dogmasda religio e da igreja. Os atos que lhe so imputados so considerados comocometidos sob a influncia do demnio com quem o acusado teria feitoum pacto, pois, como observa Jos Pedro Paiva5no seu estudo sobre os s-culos XVII e XVIII, a ideologia do pacto diablico foi objeto de uma ver-dadeira propaganda.

    Dos plpitos pela voz de alguns procos e missionrios, dos confession-rios, nas igrejas onde os exorcistas atuavam, dos palcos onde se liam senten-as dos autos-da-f os populares foram bombardeados com a mensagem dafiliao diablica dos actos mgicos. Nem sempre possvel confirmar atra-vs dos relatos dos rus a influncia desta propaganda nas suas narrativas,mas em alguns casos essa influncia evidente e at confessada.

    Os inquisidores procuravam de maneira obsessiva o menor sinal des-se pacto com o diabo. Esperavam ou desesperavam de ouvir a sua confis-so seguida do sincero arrependimento, as duas vertentes de um processos quais o acusado devia submeter-se e sem as quais ele no podia esperar oseu perdo, a salvao da sua alma, a reintegrao na comunidade espiri-tual e, num plano mais prosaico, a reduo do seu castigo corporal.

    Em inumerveis casos, para os inquisidores, o pacto com o demnioconstituiu o nico fio condutor da instruo do processo, o nico filtro

    que permitia analisar a lgica dos acontecimentos e do comportamentodo ru. Se as prticas de bruxaria, de adivinhao ou de curas mgicas, ascartas de tocar ou as bolsas, nomeadamente de mandinga, entravam nesta

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    categoria, a blasfmia, em algumas circunstncias, podia igualmente ser dodomnio demonaco. Com este condicionamento, a maior parte das ve-zes, os elementos da confisso dos acusados j estavam contidos nas per-guntas dos inquisidores.6Ser ou no ser um bom cristo, ter conservado asua F apesar de um delito mais ou menos grave, ter-se mais ou menosapartado da religio catlica constituam os temas recorrentes dos interro-gatrios. Na maioria dos casos, o acusado entrava no molde que lhe eraimposto, quer por medo, tivesse sido ou no torturado, quer por compreen-der que era do seu interesse. Aqui, como em outros lugares da Europa, sob

    a tortura ou para satisfazer os inquisidores, os acusados confessaram fatose eventos materialmente impossveis, prestando-se mais ou menos cons-cientemente aos quadros teolgicos da demonologia.

    Em Bruxaria e Superstio, entre as centenas de processos da Inquisi-o de Lisboa analisados por Jos Pedro Paiva, entram uma dzia de casosde negros e negras por ns estudados. Relativamente a esta populao emais alguns casos das Inquisies de vora e Coimbra, J. P. Paiva chega auma constatao particularmente significativa. Apesar da obsesso da In-quisio de conseguir a confisso de um pacto com o demnio, h da partedos rsticos uma grande obstinao em no confessarem os pactos diab-licos. E sem essa prova os juzes no podiam aplicar sanes mais pesa-das. Assim, apenas 12,6% dos acusados terminaram por confessar o pac-to, mas perto da metade mediante tortura. No entanto, mesmo confessandoo pacto, no afirmavam de seguida a sua renegao de Deus e da Igrejaporque a interiorizao da crena em Deus era to slida que era quaseimpossvel admitir a sua negao. Pelo contrrio, no que diz respeito aosnegros escravos e forros, J. P. Paiva nota a tendncia para, muitas vezeslogo s primeiras perguntas dos inquisidores, confessarem o pacto e a ado-rao do Diabo ser muito mais facilmente admitida do que entre a popu-lao branca, crist-velha, o que o autor explica por um compreensvelmenor enraizamento da crena e discurso catlico por parte destes extra-tos da populao.7 esta constatao, que corresponde nossa prpriaanlise, acrescentaremos a mesma freqente recusa de confessar a renegao

    de Deus e da Igreja. Ainda assim, quando a renegao era admitida, alisfreqentemente por ter sido feita perante numerosos testemunhos,8 o acu-sado tentava encontrar uma desculpa num estado de paixo momentnea

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    que pudesse atenuar a sua culpa e afirmava a sua adeso a todos os cnonesda Igreja, mesmo quando os seus conhecimentos doutrinais revelavam-semuito fracos. Portanto, mesmo sem terem interiorizado como os brancosa crena em Deus, e o dio ao Diabo, smbolo de todo o mal, [que] ha-viam sido to insistentemente vincados pela pastoral da Igreja, os negros,para J. P. Paiva, parecem ter compreendido a ttica que deviam adotar frenteaos inquisidores. J habituados a dobrar-se vontade do senhor nos deta-lhes do seu quotidiano, sabiam que no podiam entrar numa luta perdidade antemo contra esta instituio temida, inclusive por aqueles que os do-minavam habitualmente. Os freqentes autos-de-f incitavam rapidamenteos recm-chegados a esta prudncia.

    Contudo, no se deve generalizar. Certos acusados recusavam nosomente confessar a renegao de Deus como de ter feito um pacto com odiabo. Alegavam a sua ingenuidade,9pretextando no saber que o que lhesera censurado podia ser atribudo ao demnio. A esse respeito, durante osinterrogatrios, alguns rus refutavam as acusaes com um surpreenden-

    te e duradouro autodomnio. Mas tal pertincia raramente conseguia agen-tar por muito tempo as longas, repetitivas e debilitantes sesses de interro-gatrios contraditrios. No caso contrrio, a tortura apagava geralmentequalquer veleidade de resistncia prolongada.

    Se certo, como afirma J. P. Paiva, que os acusados brancos conhe-ciam a cultura da organizao e sabiam que confessar abertamente o pac-to diablico ou a renegao de Deus era contrrio ao seu interesse, no ha menor dvida que muitos negros no a ignoravam. Caso contrrio, muitorapidamente, a sua permanncia nos crceres da Inquisio permitia-lhescompreender os seus principais mecanismos. A esse conhecimento, mes-mo que intuitivo, juntava-se uma espcie de cegueira ou surdez ideolgicada parte dos inquisidores, que causa dificuldades aos investigadores paraencontrar os elementos abertamente africanos nas confisses. Quer os acu-sados no os confessavam como tais, quer os escrives no os transcreviamfielmente, reduzindo-os a manifestaes de ordem diablica compreens-

    veis a uma mentalidade ocidental pouco preparada para perceber as cren-as africanas de outro modo que como idolatria de origem demonaca.

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    Socorro, meu Diabo: o recurso dos humilhados

    Todavia, alguns processos deixam transparecer um fundo africano. J. P.Paiva no deixou de sublinh-lo a respeito de Catarina Maria,10natural deAngola, escrava de um Beneficiado particularmente violento e de duasmulheres doentiamente ansiosas. Observa, com efeito: as palavras queproferia, se o notrio no as deturpou excessivamente, tinham pouco a vercom as ditas por feiticeiras lusas [... ], e insiste num fato que observamosigualmente:

    na Inquisio de Lisboa, este tipo de delito de escravos que devido a maustratos se queriam vingar de seus senhores, conheceu significativo crescimentodurante o sculo XVIII, (), na maioria dos casos, eles confessavam que paratal fim usavam palavras para convocar o diabo para que este os viesse auxiliar,prtica da qual no existe eco entre os feiticeiros naturais do continente.11

    O processo de Catarina Maria nos permite suspeitar de uma forte li-gao com a frica. O seu caso exemplar, porque prova que alguns escra-

    vos, dos dois sexos, eram j portadores de conhecimentos tradicionais ape-sar de quase crianas na altura do seu cativeiro. Naturalmente, como observaManuel Moreno Fraginals, se no mbito da escravido os africanos muito jovens no teriam sido portadores de conhecimentos culturais muito ela-borados, no entanto, de acordo como R. Slenes, eles j teriam assimila-do as orientaes culturais bsicas, constatadas por vrios autores numavasta zona da frica central. Alm disso, sublinha ainda R. Slenes, no sepode ter como um fato adquirido que, mesmo retirados da sua cultura deorigem na adolescncia, os jovens africanos sofressem um processo dedesaculturao rpido e incorporassem os modelos culturais europeus.12Uma primeira socializao, uma primeira aprendizagem podia ser comple-tada em cativeiro por um escravo mais antigo, como aconteceu comCatarina Maria. Assim, apesar de uma provvel alterao, laos suficien-temente fortes com a cultura materna podiam ser preservados.

    Deixemos um momento o caso mais complexo de Catarina Maria em

    proveito do de Florinda Maria,13

    tambm natural da Angola. Como fre-qentemente acontecia, Florinda Maria tornou-se feiticeira depois de tersido violentamente castigada por sua senhora. Com pedaos de pano pre-

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    to ela fabricou uma bonequinha na qual espetou uma dzia de agulhas. Aboneca, amarrada com cordas de viola, foi escondida embaixo do colchoda senhora, que rapidamente viu a sua sade declinar. Para perfazer a suaobra, Florinda Maria no hesitou em colocar um veneno na sopa de suapatroa. Logo, esta comeou a sofrer de repentinas crises de asma e procu-rou o remdio nos exorcismos de um padre que, aps o malogro do seutratamento espiritual, terminou por lhe administrar uma infuso apresen-tada como um contraveneno. Denunciada, Florinda Maria confessou ime-diatamente obter os seus conhecimentos das mulheres do seu pas e, numa

    outra sesso, de seu pai.O caso de Catarina Maria ainda mais significativo. Quando caiu nasmos da Inquisio, ela tinha 17 anos e j havia sido vendida quatro vezes.A primeira no Rio de Janeiro, quando chegou da frica, com doze anos deidade. Seu dono, um soldado, mandou batiz-la e, quando voltou paraLisboa, vendeu-a a uma mulher com quem ela ficou por pouco tempo. Comseu novo senhor, um comerciante de Santarm, ela permaneceu por trsanos durante os quais aprendeu a doutrina crist e comeou a confessar-se.Quando entrou na casa do Beneficiado passou a freqentar a igreja, assis-tia missa durante a qual, quase sempre adormecia, denunciou uma tes-temunha , e confessava-se. Mas, pretextando que ela no conhecia a dou-trina, o padre recusava-lhe a comunho. No entanto, constatou-se que elarecitava com perfeio todas as oraes, conhecia os mandamentos da Igrejae explicava o mistrio da Santssima Trindade, conhecimentos que a colo-cavam muito acima da maior parte dos cristos velhos da sua poca. Comtal educao religiosa, ela no podia alegar ignorncia para justificar os seusatos. Chamado a testemunhar contra Catarina Maria, o comerciante deSantarm afirmou nunca ter constatado nela os fatos extraordinrios quelhe eram censurados. Mas recordou-se que a sua mulher tropeara e caravrias vezes, sem saber porque, e torcera duas vezes o tornozelo. Tambmlhe acontecera o mesmo incidente mas, na poca, no lhe dera qualquerimportncia. Por conseguinte, foi aparentemente quando ela entrou na casado Beneficiado, onde assistia havia j quinze meses na altura da denncia,

    que todos os poderes do Maligno desencadearam-se e levaram CatarinaMaria a cometer um conjunto de atos que conduziram os ocupantes a umestado caracterstico de histeria e parania, preexistente indubitavelmente

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    sua chegada. Com efeito, meses antes o Beneficiado tinha denunciado asua criada branca, Josefa Maria, acusando-a de ter enfeitiado a sua casaaps ter celebrado um pacto com o demnio e mantido relaes sexuaiscom ele. Quando Catarina Maria foi julgada, acusada de crimes semelhantesaos da outra criada, esta encontrava-se em Angola, para onde, embora re-conciliada, tinha sido degredada. Catarina Maria foi acusada de pacto como demnio, apesar de no ter confessado, e de manter relaes sexuais con-tnuas com ele, que teria sido o responsvel pelo seu desfloramento, con-firmado por exame. Haveria um ano que estaria lanando malefcios so-

    bre a casa onde, de noite, ressoavam barulhos inexplicveis. Alm disso, aama do Beneficiado e a filha dela comearam a sofrer de repentinas doresnos dentes, nas orelhas e nos olhos, sentiram debilidades e apatias inexpli-cveis que, afirmaram, apareciam e desapareciam de acordo com o bomou mal querer da escrava que, por ltimo, tentou envenenar toda a casa.Entretanto, apesar de todos os esforos de Catarina Maria e da sua associa-o com o demnio, a sade do seu senhor no foi abalada. Ele resistiu aseus malefcios porque, segundo Catarina, a sua F era bem maior que a

    das duas mulheres.O interesse da confisso de Catarina Maria diz respeito a suas rela-es com o seu passado, com a sua terra natal. Ela confessou ter mantidorelaes sexuais com o diabo, na figura de pretinho, desde o seu embar-que em Angola, e que as primeiras palavras para realizar malefcio, carincacasundeque carisca, foram-lhe ensinadas pelo seu pai Catumbeque e a se-guir, em Lisboa, por uma negra de nome Ana. Alm disso, regularmente,no espao de uma hora, o diabo levava-a para Angola onde encontrava aantiga criada da casa, que nunca tinha encontrado anteriormente. Estaltima, de noite como de dia, acompanhada de um diabo que tinha a apa-rncia de um negro ou mais raramente de um mulato, regressava s vezesde Angola casa do seu antigo patro e ficando nela por muito tempo in-citava Catarina Maria a fazer todo o mal possvel.

    Assim, graas ao seu diabo, Catarina Maria viajava de volta para An-gola. Atravessava o mar e realizava no sentido contrrio a viagem que a ti-nha separado da sua terra natal e dos seus. Mas ela no diz se, nessas oca-sies, encontravam-se. No entanto, entre todos os processos analisados,Catarina Maria a nica escrava africana capaz de reconstituir a sua genealogia,de dar na sua lngua materna o nome dos seus pais e de suas irms.14

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    Nas confisses dos acusados negros, os diabos so freqentemente pre-tos. O que no surpreendia aos inquisidores mas apenas confirmava as suascertezas. No entanto, freqentemente acontecia que o diabo do negrofosse branco, com aparncia de mulher. Estas diferenas cromticas e degnero, de acordo com os indivduos e o contexto que eles descreviam, nopodem ser consideradas como detalhes sem significados simblicos. Damesma maneira, aceitar o termo de diabo para qualificar as figuras pretasou brancas que se apresentavam aos acusados ou os acompanhavam, seriaadotar o ponto de vista do inquisidor. Seria admitir, como se fosse uma evi-

    dncia, que todos os escravos africanos ou naturais do reino, mulatos inclu-dos, tinham interiorizado a cor preta como smbolo e representao do mal.15Ora, na cultura dos povos da regio do Congo-Angola, o branco o

    smbolo da morte: os homens so pretos, os espritos so brancos. Almdisso, apoiando-se sobre os trabalhos de MacGaffey, R. Slenes16sublinhaque nesta regio da frica o trfico de escravos era considerado como umaviagem para a morte, e que a terra dos brancos era identificada como a dosmortos. MacGaffey recorda que os Bakongo acreditavam, h pouco ainda,

    que os mortos vo para Amrica (concebido como um composto da Am-rica e da Europa) e sempre foram. O fato histrico do trfico de escravos recordado como uma forma de bruxaria, pela qual um grande nmero deAfricanos foi transportado para a outra costa.

    Os escravos acreditavam no regresso do seu esprito para a frica apsa sua morte, assim como na possibilidade de voltar em esprito, mesmoque ainda vivos, voando maneira de um feiticeiro. Alm disso, para oBrasil, Maria Karasch17sublinhou a freqncia dos escravos que, se deses-perando de voltar vivos frica, suicidavam-se por afogamento, forma debatismo que libertava a sua alma para a travessia para a frica. necess-rio recordar tambm os numerosos cativos que se lanavam ao mar duran-te as travessias para as Amricas.

    Assim, apesar de falar perfeitamente o portugus, como reala o fa-miliar do Santo Ofcio, Catarina Maria no se satisfazia em praticar a feitia-

    ria de acordo com uma frmula africana aprendida com seu pai e comple-tada em Portugal. Graas ao seu diabo preto/negro, retornava regularmente frica e mantinha relaes com uma exilada branca cujo diabo era igual-

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    mente preto/negro, mas s vezes desta cor intermdia que o pardo. Se atravessia da gua, do mar, se o elemento lquido em geral, possua este va-lor simblico de regresso s origens, temos que nos perguntar sobre o sen-tido a dar ao desejo de suicdio, lanando-se num poo, como fez JoanaAntnia,18natural da Angola, com 8 anos de idade na poca. Um desejoque se teria transformado num pedido de ajuda ao demnio, com quem,numa to tenra idade e sem dvida ainda pouco conhecedora do seu signi-ficado cristo, teria firmado um pacto. necessrio interrogar-se igualmentesobre a associao feita com o mesmo, aos 12 anos, por Maria de Jesus,19

    natural de Luanda. Aos 28 anos, j forra e morando no Hospital da Tercei-ra Ordem de S. Francisco, graas a um legado deixado a esta instituiopela sua senhora, confessa entre outras faltas as suas deslocaes noturnascom o demnio. O diabo, bonito de rosto, mas feito de madeira e muitotorto, aparecia na forma de um homem, sem cor, ou de uma mulher, ouainda como um cavalo ou um camelo: e se lhe mostrava posto em humoratrio na figura de Cristo como em cruz, outra vezes no mesmo oratrio

    na figura de camelo. Outras vezes, aps ter-lhe untado a parte da frentedo corpo com um ungento o diabo a fazia passar

    em camisa, e na gua, () sobre a outra margem (...) via efectivamente quepassava o mar, mas no compreendia como estava sem sapatos, e sentiaefectivamente a gua e sentia a camisa, e na gua molhada parecia-lhe passaro mar como se aquilo tivesse sido uma pequena corrente de gua.

    Dizia-lhe o demnio que iam apenas at Moita, do outro lado do Tejo,

    distante algumas lguas ao Sul de Lisboa. L, numa quinta com hortas,estavam esperando cinco o seis Demnios em figura de homens, e outrastantas mulheres, e todos se punham a bailar com castanholas, abraavam ebeijavam as mulheres, (), e no fim da dana cada hum dos Demnios ti-nha cpula com sua mulher e com ela s a tinha o Demnio que a acompa-nhava no sexo de homem, porque muitas vezes se tratava com ela torpe, elascivamente como mulher.

    Este processo, de acordo com Laura de Mello e Souza, um dos rarosda Inquisio portuguesa do sculo XVIII que faz explicitamente refern-cia ao sab. Ora, estes, em quatro casos sobre seis, referem-se a indivduos

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    relacionados, de uma forma ou de outra, com o universo colonial.20Soba presso da Inquisio, diz ela em substncia a propsito de um outro casosobre o qual voltaremos, a crena (tradicional) cede lugar a um imaginriode fundo europeu cuja familiaridade poderia ter sido adquirida nas prisesdo Santo Ofcio. O que a conduz a interrogar por que curiosos mecanis-mos aculturadores teria o imaginrio desses negros africanos, alguns compassagem pelo Brasil, se mostrado mais permevel a concepes europiasmilenares do que o de outros rus portugueses do Santo Ofcio. O sab,sugeriu, no teria sido j na poca um discurso banalizado, um estereti-po desprovido de contedo, ridicularizado pelas elites ilustradas da Euro-pa, passvel, nesta qualidade, de ser deslocado para outros contextos?21Essa hiptese, alis recentemente confirmada,22satisfaz contudo apenasparcialmente no caso das declaraes de Maria de Jesus. Nelas dois pontosno correspondem aos esteretipos. No somente ela no entrou no mo-delo tradicional ocidental do transporte ao sab o vo como introdu-ziu um elemento desconhecido no bestirio diablico: o camelo. Ora, este,no Ocidente, ao contrrio do cavalo, no figurava entre os smbolos rela-cionados com o Diabo. Representa isto sim um companheiro do homemconduzindo-o de osis em osis e permitindo-o atravessar o deserto, sm-bolo ambguo perdio e busca do absoluto mas no necessariamentenegativo, ao qual o camelo poderia indiretamente remeter.23 Com Mariade Jesus, como sempre, os inquisidores preocuparam-se muito mais deprovar o pacto individual com o demnio, e as torpezas sexuais que issoimplicava, do que associar a este o tema do sab no qual o elemento da

    travessia aqutica24inscrevia-se to pouco que na literatura portuguesa osab, o vo e a metamorfose das bruxas so aspectos quase omissos. Noentanto, embora pouco freqente, o mito era conhecido em Portugal pois,os inquisidores no tinham um pensamento monoltico. Havia uns maisabertos que outros a estas crenas.25Assim, se Maria de Jesus tivesse sidoinfluenciada pelo esteretipo europeu, fosse ou no aprendido na priso,no teria deixado de fazer aluso ao vo, antes que a uma travessia do mar. esta falha no uso do esteretipo, enquanto todos os outros elementosclssicos do sab esto presentes, que na nossa opinio confere um interes-se especfico a sua narrativa.

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    O imaginrio dos Africanos teria sido, se seguirmos Laura de Mello eSouza, mais permevel s concepes europias milenares que o da maiorparte dos acusados portugueses. Todavia essa permeabilidade no deve noslevar a olh-los, mais uma vez, como seres humanos simbolicamentelobotomizados por efeito da aculturao, tendo perdido, pelo menos paraos de primeira e segunda gerao, qualquer memria, qualquer referncias suas origens. No tanto a evidente permeabilidade do seu imaginrio,melhor dito, a sua colonizao, que parece ter que ser questionada massobretudo os reduzidos modos de expresso deste imaginrio num contex-

    to caracterizado pelo medo e a coao. Nesse sentido temos que insistirsobre o fato de que os acusados de feitiaria, quer da metrpole quer dascolnias portuguesas e espanholas, fazem abertamente referncia ao seupassado africano apenas de maneira muito excepcional.

    Por isso, as confisses de Catarina Maria e de Florinda Maria devemser consideradas de particular interesse para o estudo das populaes es-cravas em Portugal. No obstante a raridade de depoimentos desse teor, oestado atual das investigaes em Portugal no permite concluir que osnegros, escravos e forros da metrpole sofreram um processo de aculturaomuito mais rpido e profundo que seus companheiros brasileiros que vi-viam no meio urbano durante os sculos XVIII e XIX. Considerar a re-presso inquisitorial como a principal responsvel pelo desaparecimentodestas sobrevivncias seria ignorar ou esquecer que, em Portugal, os feiti-ceiros e outros mgicos nunca foram o alvo principal do SantoOfcio.26Alm disso, a distino entre escravos ou forros portugueses ebrasileiros feita unicamente a partir do lugar de nascimento ou de batis-mo, quando a informao existe, no se revela sempre produtiva. Muitosentre eles podiam sucessiva ou alternadamente pertencer a uma ou outracategoria, e as vezes, s duas. Quando se fala de permeabilidade, necess-rio pr na balana as influncias recprocas entre a metrpole e a colnia.Por um lado, precisamos considerar o importantssimo nmero de escra-vos da metrpole vendidos no Brasil, quer como forma extrema de castigoquer, depois das leis de 1761 e 1773,27como melhor forma de desinvesti-

    mento sem perda de capital. De outro, cada frota vinda da colnia trazia oseu contingente de escravos; os que seguiam os seus senhores, os africanosque transitavam pelo Brasil, por ltimo os marinheiros negros, escravos de

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    ganho ou forros. Para alm dos seus valores culturais e das suas crenas,importavam, abertamente28ou s escondidas, produtos provenientes doBrasil cujo uso veremos logo. Quanto frica, at 1761, cada desembar-que em Lisboa de novos escravos permitia renovar e manter as relaes como continente e a cultura de origem.

    por conseguinte uma verdadeira rede de passadores de valores cultu-rais, materiais e espirituais cuja existncia percebe-se de maneira incontestvel,embora fugaz e rara nos documentos. A esta corrente de troca ligada aocomrcio, temos que acrescentar todos os acusados brasileiros da Inqui-

    sio, feiticeiros ou curandeiros, remetidos ao tribunal de Lisboa para se-rem julgados. Cumpriam geralmente as suas penas na metrpole, ondecostumavam reincidir difundindo as suas prticas antes de carem nova-mente nas garras do Santo Ofcio. A esse respeito, longe de viver numuniverso fechado, num nico espao geogrfico e simblico, os protago-nistas dos processos da Inquisio revelam que evoluam no meio de umprocesso de mestiagem cultural complexo no qual so ao mesmo tempoagentes e objetos, como frisou Laura de Mello e Sousa.29

    Temos que acrescentar que, freqentemente, nos processos, no soas confisses dos rus que fornecem as informaes de maior significadosocial. So as testemunhas que revelam a extenso das redes de sociabilida-de implicando um nmero considervel de pessoas das quais podemosduvidar da ortodoxia religiosa. Por isso, no estado atual da investigao emPortugal, a ausncia provada de um culto coletivo, estruturado e organiza-do, seguido por uma franja mais ou menos importante de africanos ou

    negros naturais do reino, no pode surpreender. E, mesmo admitindo quetal culto existiu e que fosse s embrionrio, pouco provvel que tenhadeixado o mnimo vestgio na documentao. Porm, no parece intilprocurar os estados mentais que poderiam ter se manifestado, no emum culto de carter pblico mas sim, seguindo Durkeim, em um pensa-mento oferecido s divindades tradicionais.30Sem negar todavia a permea-bilidade ao modelo ideolgico dominante, adaptado e articulado s situa-es de esperas/desesperos geradas pelas condies do novo meio, assimcomo o deixam entender os exemplos a seguir.

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    Curandeiros e feiticeiros negros de Lisboa

    Francisco Antnio, negro, gordo, aleijado e curandeiroEntre todos os processos, o de Francisco Antnio31 o exemplo da

    dificuldade para distinguir o que na prtica de um mgico africano dizrespeito tradio ocidental assimilada, embora conservando alguns tra-os da tradio de origem, tanto no ritual como na cura. Em 1744, quan-do respondeu s acusaes do Santo Ofcio, Francisco Antnio era um forronatural da Costa da Mina, descrito como bastante gordo hoje seria pro-

    vavelmente qualificado de obeso e aleijado de uma perna. Praticava assuas curas com a ajuda de sua mulher, Joana, e de dois aclitos; um era cegoenquanto o outro tinha uma perna e um brao aleijados.32No Bairro Altoonde morava, assim como na zona prxima do Mocambo, a sua reputao j no estava por fazer. Dois testemunhos afirmaram que tratava de todasas de espcies de mazelas e molstias e que no parava de ser chamado. Elerecrutava entre a populao negra mas gozava igualmente de uma grandefama junto dos brancos, os nicos que, de maneira sintomtica, foramchamados a testemunhar e a confessar neste processo.

    Para estes, Francisco Antnio representava o ltimo recurso contra asenfermidades de origem malfica quando a medicina e os exorcismos fa-lhavam. De fato, o processo no deixa dvida que, uma vez vencidos,mdicos e religiosos, aps terem posto os seus fracassos respectivos na con-ta da bruxaria, no tiveram receio de aconselhar aos pobres desamparadosde procurar quem podia o(s) curar.33Assim, quando encontram Francis-co Antnio e os seus assistentes, j esto convencidos serem vtimas de umato malfico. Por via ora de uma rede local impossvel de definir, ora deum antigo cliente satisfeito, ora de um escravo ou de um nefito so ori-entados para esta nova esperana de cura. O segredo est longe de cercarestas prticas.34

    Embora Francisco Antnio se deslocasse s vezes ao domiclio dos do-entes, praticava geralmente na sua casa do Bairro Alto. Este foi o caso deBrbara Mana, mulher de um antigo barbeiro feito taberneiro, aconselha-

    do por um pedreiro que foi tratado com sucesso. Mas, desconfiada, che-gando a saber que Francisco Antnio j havia sido chamado pela Inquisi-o, atormentada pelos remorsos, fomentados sobretudo pelo malogro da

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    sua consulta, confessa-se. Instigada por seu diretor de conscincia, denun-ciou Inquisio aquele em quem tinha depositado todas as suas esperan-as de cura aps o malogro dos mdicos e exorcistas.

    Podemos observar a prtica de Francisco Antnio graas a vrias tes-temunhas, antigos doentes, todas pertencentes s camadas sociais maispobres, s vezes pequenos artesos,35todos moradores de bairros diferen-tes mas pouco distantes de onde morava o curandeiro. Logo no primeiroencontro ele decidia o preo da cura e nessa ocasio, seguindo a expressode P. Bourdieu,36comportava-se como um pequeno empresrio indepen-dente. De fato, na medida em que a soma no era simblica uma moedade ouro , ele no se relacionava com os seus doentes de um modo muitodiferente dos mdicos consultados anteriormente.

    Uma vez recebida a sua moeda e depois de ter murmurado algumaspalavras incompreensveis, enquanto espreitava com os olhos arregaladosalternadamente o doente e um pedao de vidro do tamanho duma hstia,ou um espelho, de acordo com os testemunhos, Francisco Antnio confir-mava a origem do mal. A cura podia ento comear seguindo o esquemageral descrito por Brbara Mana, seu marido e as outras testemunhas.

    Aps enxaguar as mos, Francisco Antnio lanava, numa bacia deargila branca cheia de gua, o cruzado novo oferecido pelo doente, um ro-srio dequiros, mais um solto, dois bzios, dois dados e algumas pequenaspedras pretas, um conjunto de artefatos sem os quais, de acordo com asexplicaes dadas a Brbara, no podia ver nem fazer nada.37Os seus as-sistentes faziam ento um crculo ao redor da bacia enquanto ele comea-

    va a falar na sua lngua, indo e vindo, deixando cair da boca fios de baba.Os seus companheiros pareciam que lhe respondiam, demonstrando esta-rem em comunicao com a bacia agitando-se acima dela. Na fase seguin-te, Francisco Antnio retirava da bacia um dos dados, no qual encontrava-se uma coisa preta, passava-o sobre os seus olhos e a sua boca enquantopronunciava algumas palavras, colocando-o por ltimo sobre a dobra in-terna do brao do paciente. Logo depois, tirava com os dentes o dado dobrao, sugava a parte onde o tinha colocado e, aps algum tempo, cuspianum pequeno recipiente um pouco de humor de cor amarela. Logo a se-guir ordenava a um dos seus assistentes para lanar na rua o humor e que-

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    brar o recipiente, recomendando-lhe tomar muito cuidado para no guar-dar vestgios dele nos seus sapatos.

    Brbara confessou ter sentido um alvio imediato da sua articulao,graas ao qual conseguiu mover livremente o seu brao que a fazia pade-cer to cruelmente havia meses que nem conseguia dobr-lo nem lev-lo boca. Mas imediatamente a dor deslocou-se para a polpa do brao e logodepois para o seu rosto. Brbara teve que se sujeitar a uma nova sesso. Doisdias depois lanou outra vez umcruzado de sortena bacia. Terminadas aspreliminares, Francisco Antnio aplicou sobre o seu brao doente um

    ungento por ele fabricado e a dor passou do msculo para o pulso. E destaforma ela

    se recolheo para casa com animo de no tornar por escrupulos da conscienciasem embargo dos pretos lhe disserem que esperavo por ella dahi a oito dias,e dentro nella no sentia mais que a dor no pulso do brao porm como ellano foy no tempo assinalado saho a dor para o hombro e principiou amaltratala como de antes.38

    Seu marido, sem dvida mais convencido que a mulher dos poderesdo curandeiro, foi encontr-lo e explicar-lhe a situao. Francisco e seusaclitos responderam-lhe sem rodeios que Brbara estava neste estado por-que o queria assim e porque no tinha pago o que devia. No entanto, se elaquisesse vir no dia seguinte e pagar as suas dvidas, voltaria curada para casa.Melhor ainda, caso Brbara no pudesse deslocar-se, dariam ao seu mari-do um ungento que iria restabelec-la definitivamente. Brbara recusoupelo mal que lhe pareceu aquela forma de cura e escolheu ir se confessar evir denunciar a esta Mesa o que lhe tinha socedido e antes quer padecer doque ser curada na referida forma. Deixemos a infeliz com os seus escrpu-los, a sua desconfiana, a sua incredulidade, sem dvida justificados tantopelas exigncias financeiras de Francisco Antnio quanto pelos poucosresultados obtidos, para analisar as tcnicas e os rituais da cura.

    De acordo com as narrativas das testemunhas, Francisco Antniodesempenhava o papel de mestre do ritual no qual, segundo as circunstn-cias, introduzia algumas variaes. Com alguns doentes no utilizava umespelho para a adivinhao, mas olhava diretamente nos olhos do pacien-te; s vezes acrescentava alguns botes de metal na bacia; uma vez s indi-

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    cou a uma paciente o lugar de onde provinha o mal e, mesma pacienteinsegura sobre as suas capacidades, afirmou saber curar os malefcios dodiabo. Na sua casa havia uma imagem do Cristo crucificado qual todosmanifestavam respeito e adorao. Mas s excepcionalmente essa imagemparece ter um papel no ritual. Quando Francisco Antnio iniciava os encan-tos39na sua lngua, os seus companheiros, sentados em redor de uma pe-quena mesa sobre a qual era colocada a bacia, respondiam na mesma ln-gua, repetindo vrias vezes as mesmas palavras. Eles acompanhavam-nobatendo com os dedos sobre a mesa. s vezes Francisco Antnio batia pal-

    mas em cadncia. Era aps estes encantos ou invocaes que a cura come-ava. Num caso, a paciente bebia uma bebida, preparada pelo assistentecego, composta de algumas razes raspadas e reduzidas na hora a p, de umovo batido, de acar e aguardente. As vezes, as bebidas eram vomitivas,ou laxativas, com efeito imediato. Francisco Antnio variava os ungentosem funo dos pacientes. Para uma mulher natural do campo, fabricou umemplastro com urina aquecida misturada com esterco de vaca que aplicousobre o membro doente. Para uma outra foi s leo, enquanto num outrocaso contentou-se em esfregar o doente com a gua da bacia de adivinha-o. Finalmente, no brao direito ou esquerdo de vrias pessoas, amarroucom um fino pedao de pano uma raiz borrifada de sangue de galinha bran-ca, s vezes de um galo preto e branco fornecidos pelo doente. Na hora emque amarrava o pano, proferia algumas palavras insistindo para que nofosse tirado pois protegeria dos malefcios.

    Enquanto omodus operandida fase de adivinhao parece relativamen-te estereotipado, a cura revela, tendo em conta de que dispomos apenas dealguns exemplos, uma certa diversidade das prticas e uma adaptao a cadadoente.40Nota-se, como exemplo desta, o uso do esterco de vaca no casode uma mulher natural duma zona rural. Todavia, em muitos pontos, tan-to o ritual de adivinhao como as prticas curativas de Francisco Antnioso comparveis com os mtodos dos mgicos brancos descritos por Fran-cisco Bethencourt e Jos Pedro Paiva. A bacia, a gua, os dados, os bzios,o vidro, o espelho, as pedras ou sementes enfiadas ou soltas, pertencem ao

    arsenal aparentemente heterclito dos curandeiros ou feiticeiros da metr-pole. Igual semelhana no que diz respeito cura propriamente dita. Paraalm do uso vulgar de produtos de origem vegetal razes, leo (mas no

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    o azeite) , animal ovo, esterco de boi, sangue ou humana urina, sa-liva , que neste ltimo caso permite transmitir um dom imanente docurandeiro,41Francisco Antnio sugava a parte doente da mesma maneiraque o faziam numerosos prticos em diversas partes do mundo.

    No entanto, as declaraes das testemunhas revelam que o ritual e acura diferenciavam-se em vrios aspectos das prticas conhecidas no mun-do cristo. A comear precisamente pela ausncia de referncias explcitasa qualquer smbolo ou objeto consagrado da religio catlica, sempre uti-lizados pelos mgicos da pennsula. Nas curas de Francisco Antnio no

    h p de pedra de altar, nem hstia, nem gua benta, nem oraes crists,nenhuma referncia a um santo catlico, nenhuma orao de S. Marco ouS. Cipriano. Alm disso, a imagem de Cristo, apesar das reverncias quelhes so dirigidas, numa nica ocasio, no parece entrar como elementoestruturador do ritual. Por ltimo, o sinal da cruz, assinalado igualmenteuma nica vez, traado acima de uma das pacientes e acompanhado dealgumas palavras, quando da aplicao de um ungento composto unica-mente de leo, no suficiente para concluir que se trata por definio

    do smbolo cristo.42

    Sem dvida, Francisco Antnio evoca o diabo numaocasio. Mas, em pas cristo, podia-se designar diferentemente uma forasobrenatural negativa que conduzia as pessoas a consult-lo?

    Esta quase ausncia de referncias materiais ao domnio sagrado dareligio catlica, assim como a ambigidade que envolve a imagem de Cristoe o sinal da cruz, constitui o primeiro indcio de que Francisco Antniono tem um perfil comum. Que seja assistido e acompanhado durante aadivinhao e a cura no corresponde tampouco ao modelo do feiticeiroocidental.43No sem significado que os encantos sejam proferidos na ln-gua dos oficiantes, e no em portugus, como tambm o modo cantado eritmado por batimentos das mos e mais geralmente dos dedos sobre a mesaonde descansa a bacia. Isto tudo podia, naturalmente, fazer parte da ence-nao especfica prpria de cada mgico a fim de reforar a vertenteesotrica, impressionar o paciente e por conseguinte a eficcia simblicade todos os seus atos. Alis, no porque Francisco Antnio vivia das suascuras que ele no acreditava possuir certos dons, poder recorrer a certasforas ocultas e manipul-las.

    Nenhum dos elementos do processo sugere que Francisco Antniotenha sido um feiticeiro. Alis, no foi acusado de lanar malefcios ou de

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    praticar a sua arte contra as pessoas. Pelo contrrio, uma das testemunhas,curada, evocando todos os oficiantes do ritual acrescentou que nunca pen-sou que curavam por arte do demnio e que o acusado fosse um maucristo porque, para alm de suas reverncias imagem de Cristo, ele ob-servou a sua atitude caritativa para com os pobres. No entanto, mesmosendo mal sucedido, sempre procurava desviar a desgraa. E mesmo assim,a cura que desapontou Brbara pode ser interpretada como um alvio pordeslocao da dor, assim como praticavam os sacerdotes da adivinhao de Ifaestudada por Bernard Maupoil.44Com efeito, se o elemento lquido no

    entrasse na sua prtica, e tendo em conta a natural ambigidade dos sm-bolos, seria possvel considerar que o seu ritual no passou de um avatar,uma forma alterada e adaptada ao contexto portugus desta forma degeomancia caracterstica da Costa dos Escravos. Embora a falta de elementossuficientes no permita ir muito alm dessa suposio, as caractersticasatpicas mencionadas fazem pensar numa imbricao de valores religiososafricanos e de prticas e crenas ocidentais.45

    As bolsas de mandingasJos Francisco Pereira: escravo Mina e mandingueiro

    Em Portugal, a utilizao de bolsas fazendo funo de amuleto j eraconhecida desde a Idade Mdia.46Mas, a partir do fim do sculo XVII esobretudo durante as primeiras dcadas do sculo XVIII, um novo tipo debolsas comeou a difundir-se atravs de alguns escravos e forros vindosdiretamente da frica ou depois de ter transitado pelo Brasil. Conhecidasdoravante sob o nome de bolsa de mandinga, tinham a fama de protegercontra as feridas de armas brancas ou de fogo e fizeram muito sucesso en-tre a populao negra em razo dos inumerveis confrontos, rixas e ajustesde contas que ensangentavam as noites da capital.47

    Longe de serem divulgadas em segredo, elas foram objeto de umaverdadeira campanha publicitria, pois, de acordo com J. Pedro Paiva, al-guns dos seus adeptos instalavam-se em lugar pblico de torso nu e, para

    provar a sua eficcia, lanavam-se sobre uma espada apontada sobre opeito.48Contudo, o primeiro processo conhecido pelo uso desta bolsa temlugar apenas em 1690 e refere-se a um forro, guarda-costas, natural de Cabo

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    Verde, Patrcio de Andrade.49Vinte e trs outros processos seguiram sobesta acusao, um total que no reflete o verdadeiro nmero dos adeptosda capital e da metrpole. S para a Inquisio de Lisboa, e unicamentepara a populao negra ou mulata do continente, as acusaes ou denn-cias-processos representam perto de 10% dos 150 processos que conhe-cemos.50Mas, para medir a importncia do fenmeno, igualmente ne-cessrio considerar o sem nmero de denncias que, provavelmente poressa razo, ficaram quase esquecidas pela Inquisio.

    J. P. Paiva nota que o contedo destas bolsas de mandinga no era

    estruturalmente diferente de as que j eram utilizadas em Portugal. Uma,tomada a um negro natural dos arredores de Luanda, continha diferentese indeterminados ps, cabelos, unhas de aves e papis com oraes. A acei-tao dessas bolsas pelos habitantes do reino poderia por conseguinte pro-vir dos poderes ocultos que, pensava-se, os escravos traziam das suas es-tranhas terras.51A origem da bolsa de mandinga era atribuda aos negrosmandingas, denominao genrica imprecisa que designava diferentes povosinstalados no territrio mandinga da Alta Guin. Ora, no fim do sculoXVII, este territrio era j influenciado pelo Isl desde muito tempo e, oque provavelmente tinha sido um talism tradicional de um povo sem escri-ta, integrava j caracteres rabes. o que permite concluir a nica descrioafricana que conhecemos, feita por Francisco de Lemos Coelho em 1684.52

    Contudo, nenhuma descrio das bolsas apreendidas pela inquisiomenciona qualquer texto escrito em rabe. Pelo contrrio, os escritos refe-rem-se a um simbolismo eminentemente cristo utilizado numa outra

    prtica de proteo muito difundida em Portugal, a carta de tocar; umconjunto de papis que se deviam usar junto do corpo, para atravs deesse contacto lhe transmitirem as suas virtudes protectivas.53Neles encon-travam-se referncias aos objetos contra os quais se pretendia ser protegi-do; as armas brancas ou de fogo. Continham igualmente diversos grafismoscom smbolos da Paixo do Cristo como a cruz, uma escada, lanas, ummartelo, brochas, um chicote, uma vara com uma esponja na ponta, dadose uma tnica e finalmente uma srie de palavras ou oraes nas quais seexprimiam as virtudes que se pretendiam alcanar.54Freqentemente, comonas outras prticas mgicas, as oraes recorriam S. Cipriano e S. Marco.

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    Jos Francisco Pereira: entre o terror e o sincretismo

    Entre os processos pelo uso da bolsa de mandinga, um apresenta ex-cepcional interesse por oferecer a enumerao detalhada do seu contedoe de ter salvaguardado vrias pginas das oraes e dos grafismos que a acom-panhava. Trata-se mais precisamente de dois processos, o de Jos FranciscoPedroso, e o de Jos Francisco Pereira,55natural da costa da Mina, escravono Brasil antes de vir para Portugal com seu senhor. Os dois processos jforam estudados por Luiz Mott e Laura de Melo e Souza.56Sobre esses casos

    J. P. Paiva nota rapidamente que um escravo de Lisboa dizia participar emassemblias compostas apenas por diabos e homens negros, onde o Dia-bo os sodomizava57enquanto Laura de Melo e Souza considera que os me-canismos de introjeo da concepo erudita de bruxaria por parte dosrus do Santo Ofcio58teriam levado os dois acusados a confessar detalha-damente o pacto e as relaes sexuais com o demnio. De certo, as confis-ses de Francisco Pedroso e Jos Francisco Pereira apenas foram obtidaspela tortura59o que os conduziu a delirar sobre as mltiplas possibilida-

    des do coito, que coincidentemente constituam tambm o saber demo-nolgico: as relaes anais, dolorosas, frias, destitudas de prazer e prenhesde sentimentos culposos.60Contudo, embora os interrogatrios fossemorientados essencialmente para conseguir dos rus o reconhecimento doseu pacto com o diabo, as suas confisses contm alguns elementos queno parecem corresponder a um delrio, provocado pelo medo da torturaou sob o seu efeito, nem com o mecanismo de introjeco sugerido por Laurade Mello e Sousa. A confisso de Francisco Pedroso, tal como a de Mariade Jesus, contm alguns detalhes completamente alheios ao esquema tra-dicional do sab que, integrados a este, permitiram ao acusado quer aliviara sua conscincia quer satisfazer a espera dos inquisidores. Mas deste de-lrio estes retiveram apenas o que esperavam ouvir e correspondia ao car-ter das assemblias demonacas e orgacas. Nada, no entanto, na acusaoinicial, deixava presumir tal deslize.

    Francisco Jos Pereira era acusado de uma falta bastante banal para a

    poca e o lugar: fabrico, uso e comrcio de bolsas de mandinga compostasde oraes.61O seu companheiro, Jos Francisco Pedroso, tinha apenas umpapel secundrio, executando as ordens do primeiro. Ambos analfabetos,

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    recorriam a um terceiro comparsa, escravo de um membro da Ordem doCristo, que copiava os textos das oraes. Em seguida Jos Francisco Pedrosocolocava sub-repticiamente os folhetos embaixo da pedra do altar da igrejaparoquial de S. Paulo.

    Ao redor dos mandingueiros gravitavam dois escravos desembarcadoscom seus donos na ltima frota vinda do Rio de Janeiro. Trs outros, pro-vavelmente implicados na seqncia da divulgao do processo, tinhamsido embarcados para a colnia. Entre eles, Miguel, que era escravo, na pocados fatos, do coadjutor da igreja de S. Paulo, cuja pedra de altar servia de

    abrigo s oraes. Todos tinham comprado uma bolsa a um outro escravo,tambm de nome Jos, logo aps o seu desembarque. Na sua trouxa, eletrazia algumas ervas para as quais acreditava que poderia encontrar com-pradores na capital do Imprio. Com efeito, entre os ingredientes da bolsaestava uma erva de forte odor, proveniente do Brasil. Detalhe significati-vo, os dois acusados acabaram por confessar que a tinham recebido do demoe que ela possua o poder de evitar-lhes os castigos dos seus senhores62quan-do vagueavam noite pelas ruas.63Mas Jos Francisco Pedroso resistiu de-moradamente antes de admitir qualquer interveno do demnio na con-feco da bolsa. Ele afirmou sua boa f e tentou fazer uma distino entredois tipos de mandingas: aquela que trazia e uma outra, conhecida comomandinga do campo. A primeira, afirmava, no podia ser a obra do De-mnio mas de Deus, porque no somente era feita para preservar a vidamas os que a utilizavam podiam entrar nas igrejas e cumprir todos os seusdeveres de cristos. Pelo contrrio, a do campo, que afirmou nunca ter tidoa vontade de utilizar, necessitava da interveno do demnio e os que apossuam no podiam entrar numa igreja.64Vrios processos65relativos amandingas nos levam a refletir que, nos pensamentos da poca, a distin-o entre as duas categorias no era totalmente destituda de fundamento.Os inquisidores, aborrecidos por no conseguirem fazer compreender aosacusados que qualquer mandinga podia ser apenas obra do Maligno,66pensaram abalar a defesa de Jos Francisco. Utilizaram um argumento quelhes pareceu sem dvida de uma devastadora lgica mas revela os seus pre-

    conceitos. Como ele podia pensar que a mandinga era uma coisa de Deus,dado que via que s os pretos a utilizavam, e com muita precauo e queassim a dita mandinga no podia parecer-lhe lcita e boa?67

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    Examinemos o objeto do delito. A bolsa, feita de um pedao de panobranco, continha uma pedra de corisco, um olho-de-gato, enxofre, um p,uma bala de chumbo, uma moeda de prata de pouco valor, um osso dedefunto. Alguns dos componentes tinham de ser enterrados algum tempoantes de serem colocados na bolsa, enquanto as oraes deveriam perma-necer vrios dias embaixo de uma pedra de altar pedra de ara a fim deadquirir o seu poder graas ao sacrifcio da missa.68

    As oraes corriam sobre vrios flios cobertos de escritos e de dese-nhos, em parte traados com o sangue de frango branco ou preto e s ve-

    zes, quando o dinheiro faltava para compr-los, do brao esquerdo69

    de JosFrancisco Pereira. Os escritos, no conjunto bastante ilegveis, revelam areferncia a S. Marco e S. Cipriano e a invocao de numerosos outrossantos. Um dos desenhos composto ao redor de alguns dos elementos daPaixo do Cristo enumerados por J. P. Paiva, sem todavia respeitar real-mente a composio tradicional. Em outros flios, encontram-se igualmen-te representaes do sinal de Salomo associado a uma cruz e/ou a umcorao atravessado por uma flecha, que so assinaladas por Jos Leite deVasconcelos em Lisboa no fim sculo XIX.70Juntava-se tambm uma re-presentao das armas da coroa portuguesa, sem a esfera armilar. Estas, comooutros smbolos de difcil interpretao, sobre os quais voltaremos, tm umacor castanha provavelmente por terem sido traados com sangue de frangoou humano.71A bolsa e as folhas, dobradas e reduzidas a um formato decerca de 8 x 10 cm, deviam ser incensadas. Durante a noite de So Joo, abolsa era colocada embaixo de um fogo para lhe conferir uma maior efic-cia. Tratava-se por conseguinte, como freqentemente era o caso, de umaprtica mgica que associava dois mtodos de proteo que se reforavammutuamente: a bolsa, quer seja ou no de mandinga, e a carta de tocar.

    At agora nada nos permite pensar que era uma prtica mgica deorigem especificamente africana. Nas folhas encontram-se numerosos ele-mentos presentes numa orao portuguesa do sculo XVII consideradacomo um remdio para estancar o sangue: orao Santssima Trindade, aSo Cosme e Damio, a Jesus, Virgem, afirmao dos dogmas da ressur-

    reio de Cristo e da Imaculada Conceio, enfim, de igual maneira quena bolsa de Jos Francisco, o smbolo da cruz intercalava-se entre as pala-vras das oraes.72Quer na orao do sculo XVII, quer na da bolsa de Jos

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    Francisco, nada na formulao dos textos nos recorda um encanto desti-nado a convocar o demnio. Porm, a presena do signo de Salomo nabolsa de Jos Francisco introduz uma ambigidade, se no uma dvida.De acordo com Francisco Bethencourt, quando as bruxas invocavam osdemnios traavam este sinal como um ritual de proteo face s forasdesencadeadas. O smbolo garantia a sua integridade fsica na hora de umacomunicao que gerava riscos perigosssimos. Alguns feiticeiros, acrescentaFrancisco Bethencout, utilizavam a imagem da cruz73como equivalente aosigno de Salomo. Contudo, de acordo com a crena popular assinalada

    por Leite de Vasconcelos, o signo de Salomo tinha valor de proteo con-tra os atos de bruxaria e mais largamente contra o Diabo. de resto signi-ficativo que os inquisidores no parecem ter-se preocupado com o teor dasoraes que no podiam ignorar. Foi sobre os ingredientes da bolsa, as suascaractersticas individuais e, principalmente, sobre como o conjunto esta-va carregado de uma temvel eficcia, atestada por numerosos testemunhos74em outros processos, que os inquisidores orientaram a acusao. comefeito por ocasio deste acondicionamento que o grupo de homens reu-nia-se durante a noite e, assim como confessaram, encontravam o diaboque os assistia. s vezes ocorriam verdadeiras orgias sexuais durante as quaiso diabo mudava no somente de cor como de sexo.

    O espao onde se realizavam estas reunies, pode-se mesmo falar decerimnias, se no de ritual, no indiferente. Jos Francisco Pereira de-signou dois lugares em particular: os campos da Cotovia75e o Vale de Ca-valinho. Este ltimo, situado bem ao norte da capital, era conhecido des-de o incio do sculo XVI como o lugar de ajuntamento predileto dosfeiticeiros da capital e de diversas regies do pas.76J. P. Paiva, para o sculoXVIII, menciona sobretudo a encruzilhada dos quatro caminhos nos cam-pos de Cotovia. Era l, atrs do convento de Jesus, que os comparsas enter-ravam a bolsa. Mas as reunies celebravam-se igualmente em dois outroslugares: a encruzilhada de Buenos Aires e o stio do Mocambo.77O cruza-mento de Cotovia, o de Buenos Aires, o stio do Mocambo constituem trspontos relativamente prximos. No incio do sculo XVIII, os dois pri-

    meiros ficavam ainda em zonas rurais enquanto o Mocambo, situado so-bre a parquia de Santos, era um bairro popular conhecido com este nomedesde o sculo XVI, por abrigar uma numerosa populao negra. Os trs

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    pontos formam um tringulo e poderiam ter delimitado um espao sim-blico considerado mgico ou consagrado.

    Era neste espao que tinham lugar as assemblias durante as quais, paraalm do acondicionamento dos ingredientes da bolsa e das orgias sexuaisevocados, a pequena turma de negros entregava-se igualmente uma esp-cie de sarabanda infernal. Aps uma refeio feita de bebida e uvas ofe-recidas pelo diabo, confrontavam-se com ele ou lutavam entre si com ar-mas de madeira cachaporra ou de ferro, entoavam cantos africanos entreos quais alguns na lngua da Costa da Mina.78s vezes matavam um bode,

    comiam a sua carne e depois iam-se embora levando a sua pele dentro dosseus chapus como proteo contra as armas brancas. O consumo de bodeintrigou evidentemente a Inquisio. Interrogado sobre o lugar de consu-mo desta carne, com brancos ou com pretos, de noite ou de dia, se era fer-vida ou grelhada, Pedroso respondeu de maneira muito cautelosa. Confes-sou ter ido vrias vezes, de noite, na casa de Pereira onde, em companhiade trs outros negros, comeu um pouco de guisado sem saber com queespcie de carne tinha sido preparado.

    O conjunto dos fatos descritos, nomeadamente o carter coletivo dasassemblias com a presena do diabo ou de espritos malignos, levou aInquisio a identificar estas reunies como sabs. Mas verdade, como osublinha Laura de Mello e Souza, que os acusados emprestaram-se de cer-to modo a esta interpretao. Interrogando a crena dos acusados na au-tenticidade do pacto com o demnio, ela considera que a partir do mo-mento em que se opta pela adeso ao discurso que do inquisidor, masencontra equivalncias no imaginrio popular, passa-se a acreditar que tudoquanto foi dito aconteceu de fato. Ora, para ela, por trs desta leitura dosab dissimula-se uma cerimnia africana; na realidade, tratava-se de algobem diferente, localizado na raiz da umbanda e dos candombls atuais: oscalundus e os catimbs.79Mas, infelizmente, ela no nos entrega todas aschaves da sua anlise nem os elementos do processo sobre os quais apia asua concluso. Ora, tanto os dados do processo como as equivalncias pro-vveis ou as analogias relevantes entre os dois sistemas culturais de repre-

    sentaes so deveras numerosas para que, satisfazendo o imaginrio in-quisitorial, as confisses dos rus no tenham entrado em contradio coma sua prpria crena ou mesmo com os fatos.

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    Antes de examinar os diferentes elementos do processo, que nos le-vam a compartilhar da concluso de Laura de Mello e Souza, necessriorecordar que desde o sculo XVI, apesar das proibies, os escravos de v-rios bairros de Lisboa reuniam-se para bailar e cantar a seus modos. assim legtimo pensar que a partir deste perodo uma franja das diferentespopulaes negras e africanas da capital, com o pretexto de divertimentos,praticava uma forma de culto tradicional. Ao longo dos sculos, lugarescomo o Mocambo e outros prximos, nomeadamente as encruzilhadas daCotovia e de Buenos Aires, poderiam ter adquirido um valor sagrado para

    as populaes africanas da capital. Quanto aos diversos elementos mate-riais e simblicos contidos no processo, tentaremos interpret-los do pon-to de vista da cultura da Costa da Mina, da qual eram naturais os dois acu-sados e alguns dos seus aclitos. Terminaremos com algumas observaesacerca de um dos desenhos da bolsa. Mas recordemos que, na geomanciada Costa dos Escravos, os amuletos (Fafo) da adivinhao de fapodem sercomprados sem necessidade de uma consulta prvia e que neles suficien-te inscrever um sinal escolhido em virtude das suas qualidades mgicas. Maistarde, depois de usados, podem ser revendidos.80

    Pedra de Ara versus Aroun Ara: as equivalncias simblicas

    O sacrifcio de um bode e o seu consumo confirmaram evidentementepara a Inquisio a sua idia quanto a ter havido um pacto com o demnio.O que explica porque, para alm de duas ou trs perguntas, no levou adian-te a sua investigao. Ora, se no Ocidente cristo o bode foi assimilado aodiabo, bruxaria e luxria, devido sua atividade gensica, na frica perdeneste aspecto o seu carter negativo, ganhando freqentemente o de foratutelar. Assim, na regio de origem dos rus, uma lenda relacionada comum dos smbolos secundrios da divinao de If apresenta este animal comofonte de vida devido luz que difunde, de dia como de noite. O seu olhoesquerdo representa o Sol, o direito a Lua, as estrelas so as suas crianas.81Alm disso, entre os 16 signos principais da divinao de If, o bode nun-

    ca marcado por um tabu alimentar e, para os iorubs assim como os fonsdo Benim, o bode o animal simblico oferecido, cozinhado no leo depalma, ao Orix conhecido como Ex para os primeiros, Legba para os

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    segundos.82Ora, como sabemos, Ex/Legba foi assimilado ao diabo pelosmissionrios em razo destas caractersticas notoriamente flicas e por sers vezes representado com chifres no Daom,83mas provavelmente tam-bm porque um culto das encruzilhadas era-lhe rendido. No imaginriocatlico, simbolizou tudo o que a maldade, perverso e abjeo. De acor-do com P. Verger, Ex apresenta aspectos mltiplos e contraditrios quetornam pouco fcil uma definio coerente. De carter irascvel, gosta desuscitar as dissenses e as querelas, de provocar os acidentes e as calamida-des pblicas e privadas. manhoso, grosseiro, vaidoso, indecente. Para os

    fons, com o nome de Legba, assume as mesmas caractersticas; repre-sentado por um amontoado de terra na forma de homem acocorado, agra-ciado de um falo de grande tamanho.84 Porm, Ex no apenas isto. igualmente um orix que, quando tratado com considerao, se mostraamvel e atento. bom, alegre, dinmico e finalmente mostra-se assimcomo o mais humano dos orixs, nem completamente mau, nem comple-tamente bom. Ele , diz B. Maupoil a respeito de Legba, o princpio dafantasia ou do azar, o acidente. Sem ele, fano seria humano.85De fato,Ex/Legba, que pode ser um orix protetor, manifesta a sua extrema e fu-riosa susceptibilidade apenas quando se esquecem de fazer-lhe oferendasou sacrifcios. Matar, ferir, o acidente, a confuso, a clera sbita, o lapso,o pesadelo, os sonhos erticos e a loucura momentnea so Legba, dizMaupoil.86 Ex igualmente o intermedirio entre o mundo dos vivos e odos deuses.87 por isso que nada pode ser feito sem ele e sem que oferendaslhes sejam feitas antes de qualquer outro orix, para neutralizar as suas ten-dncias a provocar equvocos entre os seres humanos e nas suas relaescom os deuses e mesmo entre os deuses.88De acordo com Maupoil, objeto de um culto original que seria arbitrrio reduzir a um culto indi-vidual. Se cada indivduo tem um Legba nele, porque deve ser capaz de en-trar em contacto em qualquer momento com a fonte de vida que Deus.89Mas,pelo contrrio, de acordo com um dos seus informantes, adivinhador, Legbareportar-se-ia a um culto individual. Cada um edificaria em casa, sob o nomede Legba, uma imagem da sua prpria clera, e procuraria amans-la.90 Por

    ltimo, Legba/Ex o protetor dos altares das casas, das cidades e das pessoas.Estas caractersticas gerais conduzem os adeptos de um e outro a par-ticiparem s vezes das cerimnias celebradas para os deuses e, em certas

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    regies, quando acompanham as de Xang, seguram na mo durante asdanas um pau grosso de forma flica.91Xang, viril e descarado, violentoe justiceiro92 o Deus do Trovo, um dos mais respeitados entre os orixsiorub e nag. venerado sob o nome de Hviosso pelos fons do Benim.

    Ora, uma curiosa coincidncia, de ordem lingstica e simblica,poderia fazer de Xang um ator presente no caso que nos preocupa, comoem muitos outros em que a bolsa era acondicionada ou utilizada por indi-vduos oriundos da Costa dos Escravos. Lembramos que as oraes e osdesenhos da bolsa deviam permanecer embaixo de uma pedra de altar, so-

    bre a qual vrias missas deviam ser celebradas, a fim de receber um com-pleto poder celestial. A bolsa continha igualmente uma pedra-de-corisco,conhecida igualmente como pedra-de-raio, outro smbolo de um podercelestial. Ora, na frica, estas pedras so associadas aos cultos dos deusesdo cu e, sob forma de machado de dois gumes, simbolizam Xang.93Ondecai o raio, os seus sacerdotes procuram as pedras-de-corisco lanadas peloorix, consideradas como a emanao do deus e portadoras do seuax , asua fora mstica. Para manter a sua fora e vitalidade, as pedras so depo-sitadas sobre um altar, feito de um almofariz de madeira esculpida, e asper-gidas com o sangue dos seus animais consagrados, o carneiro em particu-lar. A correspondncia, a equivalncia simblica entre a pedra de altar doculto catlico e o sacrifcio realizado sobre ela como sobre o altar consa-grado Xang, e era to evidente que podia apenas incitar a um uso mgicoe sincrtico. Tanto mais que enquanto em portugus a pedra de altar igual-mente chamada pedra de ara, na lngua iorub a pedra-de-raio de Xangtem por nome Edoun Ara, ara significando corpo.94Para terminar, quandoXang baila, representado pelos seus adeptos, revela o seu carter libertino eatrevido e brande o seu machado. No assim muito difcil entender ou admi-tir a possvel dupla interpretao dos smbolos encontrados neste processo.

    O olho-de-gato, outro ingrediente da bolsa, possibilitava igualmenteo mesmo processo de dupla interpretao, pois a sua viso noturna podeser considerada como um dom malfico e sobrenatural ou aceite como umaqualidade. Assim, enquanto em numerosas culturas o animal associado

    ao mal, ao diabo no Ocidente cristo sobretudo quando de cor preta, ele s vezes percebido de maneira positiva na frica. -lhe atribudo o domde clarividncia e, na frica Central por exemplo, numerosas bolsas de

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    curandeiros so fabricadas com a pele do gato selvagem.95Contudo, na zonacultural de origem de Jos Francisco, o gato inscreve-se ainda hoje entre osanimais feiticeiros ligados magia negra.96

    Terminaremos com o exame de um dos desenhos da bolsa (Figura 1).Exame e no verdadeira anlise, porque apenas sero realados alguns ele-mentos do grafismo, cujos significados simblicos continuam de difcil,seno impossvel, interpretao. A primeira caracterstica diz respeito aouso do sangue para traar certos smbolos, uso perceptvel na ntida dife-rena cromtica preta ou acastanhada que parece marcar e determinar

    uma pertena a campos simblicos diferentes ou mesmo opostos. Algunselementos evocam a Paixo de Cristo, com uma semelhana com as nu-merosas cenas da Paixo dos painis de azulejos das igrejas portuguesas dosculo XVIII, mas alguns so tratados aqui de maneira mais abstrata quede costume. Juntam-se vrios outros elementos, alheios representao daPaixo, quase todos desenhados com sangue.

    Assim, de cor preta, o Sol, a cruz, o seu pedestal com a caveira e osossos, a escada, compem um conjunto tratado classicamente, exceto aescada, qual voltaremos mais frente. Da mesma cor, situado em baixodo montante esquerdo da cruz, o que parece ser uma ave o Esprito San-to? em cima de uma coluna com um trao em forma de espiral apoiadanum pedestal triangular, o conjunto dando a impresso de um movimen-to ascendente. No topo da coluna, perto da cabea da ave, o que pareceuma pena cujo equivalente encontra-se sob o montante direito da cruz, aop da escada. Sobre os braos da cruz, provavelmente o martelo e os pregosapesar de no se perceber claramente o desenho na extremidade do mon-tante direito. Na interseco da cruz, a coroa de espinhos, colocada ao centrode um tringulo isscele invertido cujo topo est no ponto exato do pregoque fixa os ps do Cristo. Dos dois lados so representados respectivamen-te, esquerda, a vara com a esponja, direita a lana que furou o flanco docrucificado. Por ltimo, na extremidade superior da cruz, entre a haste e alana, a tbua com a inscrio INRI esta de cor acastanhada que forma

    a base de um tringulo, ao centro do qual inscreve-se, no lugar da cabeado Cristo , o que se assemelha coroa de espinhos, de cor preta.

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    FIGURA 1

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    Todos os outros smbolos da folha so de cor castanha. A Lua, ou osmbolo colocado no seu lugar, oposta ao Sol, duplicada de um sinal idn-tico mas menor, trespassado, por uma flecha e uma espada formando umaCruz de S. Andr. Em dois outros folhetos da bolsa o mesmo smbolo trespassado por duas flechas. Poderia por conseqente tratar-se do selo deSalomo. De cor castanha ainda, esquerda e direita da cruz, dois smbo-los: o da direita continua misterioso enquanto perto da coluna o crculodenteado, interiormente divido em cinco partes, sugere duas interpreta-es de resto ligadas e complementares, quer uma outra representao do

    Sol quer uma Roda da Fortuna assim que o deixam supor os seis raios queo dividem. De cada lado da cruz as duas figurinhas armadas seriam a re-presentao pouco clssica dos soldados romanos que guardavam Cristo.A atitude deles sugere contudo uma situao de confrontao, uma inter-pretao que no pode ser recusada em razo do objetivo da bolsa e de al-guns detalhes que, apesar da simplicidade dos desenhos, os diferenciam.Em primeiro lugar os rostos, dois tipos humanos contrastados, mas sobre-tudo o armamento. A figura da esquerda tem uma arma cuja guarda cor-responde das espadas em uso na poca. O da direita brande na mo direi-ta um sabre largo e curto mas ligeiramente curvo e, na mo esquerda, umescudo, uma forma de proteo j abandonada pelos exrcitos euro-peus97mas ainda em uso na frica.

    Ao p da cruz, de um lado e do outro, as duas figurinhas sobre o pe-destal permanecem um enigma, embora possam representar os dois anjosque constam de numerosas iconografias da Paixo de Cristo. No entanto,aqui, ocupam o lugar geralmente reservado a outras personagens. A mes-ma pergunta pode ser feita sobre as duas singulares figuras parecendo inse-tos voadores de parte e outra da coroa portuguesa. Vem por ltimo estacabea redonda que nomeadamente em razo do desenho das orelhas no pode ser confundida com a caveira de cor preta, colocada no eixo dopedestal da cruz. Esta figura de aparncia humana parece assentar como acaveira sobre dois ossos mas a ntida diferena das representaes remetesem dvida a um outro significado. Os arabescos da coroa provam a capa-

    cidade do autor dos desenhos de reproduzir traos mais complexos, o quenos leva a pensar que o conjunto desta composio no resulta de uma sim-plificao e que cada detalhe tem sua importncia. No entanto imposs-

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    vel estabelecer uma estrita relao estrutural entre os smbolos. Porm,examinados separadamente, dois entre eles chamam particularmente a aten-o, e arriscaremos uma interpretao.

    Em primeiro lugar, a escada, cujo desenho dos degraus nenhum horizontal parece indicar um movimento em espiral. Ora, no que se tor-nou o vodu haitiano, estudado por A. Metraux, no meio do terreiro en-contra-se o poteau-mitan98enfeitado quase sempre de bandas de coresvivas dispostas em espiral, ou borrifado de pontos claros sobre fundo uni-forme. Segundo Metraux, o efeito de ordem mais decorativa que sim-

    blica enquanto o poteau-mitan representa o caminho dos espritos ou,a escada que usam para descer no peristilo quando so invocados. Nodesenho do processo, este caminho dos espritos, se bem daquilo quese trata, posicionado paralelamente a cruz, reforaria, dobraria por conse-guinte o poder simblico de comunicao com as potncias celestiais. Maspode igualmente se tratar de dois caminhos paralelos destinados a duasdivindades, uma crist e a outra africana. Para entrar em contacto com estas necessrio um intermedirio, funo que desempenhada por Ex. Ora,a figura redonda colocada sob o pedestal da cruz tem, na nossa opinio,uma estranha semelhana com a representao antropomrfica de Exdescrito por viajantes no incio sculo XVIII e como ainda hoje este re-presentado, na frica e no Brasil. De fato os trs exemplos que propomosaqui (Figuras 2, 3 e 4) apresentam semelhanas com o desenho da bolsa.99Uma outra curiosa similitude existe entre os desenhos dos outros flios(Figura 1-a) e um dos smbolos vodu apresentado por Metraux (Figura 5)100no somente com o corao atravessado por uma espada, mas tambm como outro com a inscrioSI . Milhares de quilmetros e pouco mais de doissculos separam este desenho e os da bolsa de Jos Francisco Pedroso.

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    FI GURA 1-a

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    FIGURA 2

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    FIGURA 3

    FIGURA 4

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    FIGURA 5 - Smbolo ( vv) da deusa Ezili-freda-Daom

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    No entanto, enquanto nos campos da Cotovia Jos Francisco e seuscompanheiros praticavam rituais muitos semelhantes ao calundu brasilei-ro, no Haiti outros escravos naturais da Costa dos Escravos juntavam-seem assemblias noturnas sob pretexto de danas gerais. Estas, chamadascalenda, foram proibidas pelas autoridades francesas a partir de 1704 massem sucesso pois, em 1765, um corpo especial de tropas ligeiras foi criadopara debandar estas assemblias, agora consideradas suspeitas no entenderdas autoridades.101Enquanto o candombl encontrara suas razes no calundubrasileiro, a calenda haitiana transformar-se-ia no vodu. Maupoil, subli-

    nha a fora de expanso dos cultos da Costa dos Escravos e a admiraoprovocada nos que a verificaram nas Antilhas, no Brasil e nos Estadosmeridionais da Amrica do Norte (o Deep South), onde o trfico de ne-gros no conduzia apenas Daomeanos, iorubs ou Minas.102

    Em Portugal, mais que a represso da Inquisio ou que o nmerorelativamente fraco de populao escrava importada,103foi sobretudo aproibio precoce do trfico em direo a Portugal, assim como o carterprincipalmente urbano da escravido, que entravou a preservao duradouraembora oculta de certos valores e crenas africanas.

    Atravs de Catarina Maria, Florinda Maria, Maria de Jesus, todasangolanas, de Francisco Antnio e seus assistentes curandeiros, naturais daCosta dos Escravos, assim como de Jos Francisco e seus companheirosmandingueiros, observamos como estes valores e crenas conseguirammanifestar-se, parcialmente e de maneiras mais ou menos subterrneas,principalmente no terreno da magia. Valores e crenas j alterados, mistu-rando-se freqentemente, na forma e no contedo, s tradies popularesportuguesas, sem contudo abdicarem totalmente de modo consciente ouno da sua memria cultural. Uma mestiagem tornada ainda mais fcil,uma vez que a simblica mgica presta-se naturalmente a reinterpretaesalm das barreiras lingsticas e culturais. por isso que, embora proibi-das, as suas prticas nunca foram completamente secretas. Inscreviam-senuma rede de sociabilidade e de trocas complexas da qual participaram asdiferentes castas de escravos e libertos mas igualmente os brancos das cate-

    gorias sociais mais desfavorecidas. As fontes no permitem afirmar umaestreita cumplicidade entre esses segmentos da sociedade, mas seria erradoremeter uma absoluta marginalidade os negros envolvidos nessas prticas.

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    Ao contrrio, como vimos, compartilhavam, inclusive com os que osdenunciaram ou acusaram, de um mesmo sistema de pensamento. Na ver-dade, s o regime de terror estabelecido pela Inquisio levava a denunciaraquele branco ou negro com quem, durante um tempo, se tinha partilha-do abertamente a mesma crena considerada heterodoxa. Sintomticas soa denncia de Brbara Mana e a falsa ingenuidade do moo que copiouoraes de S. Marcos logo guardadas numa bolsa que conservou vrios diasantes de denunciar o legtimo proprietrio.

    Tanto a pequena turma de forros aleijados, que mal sobrevivia graas

    reputao de curandeiro de um deles, como os outros acusados, homenscomo mulheres, eram apenas escravos ou forros que compartilhavam asmesmas condies de vida de milhares dos seus companheiros de infort-nio. As confisses deixam aparecer as relaes bastante conflituosas entresenhores e escravos e as dificuldades de sobreviver para os libertos. Porm,quando presos, desaparece a diferena entre eles e os cristos velhos quecaem nas garras da Inquisio por motivos idnticos. Para todos, magia ereligio popular so dois sistemas de pensamento simblicos que no so-mente no se excluem mas se completam freqentemente, em especialquando se trata de lutar contra a doena, a desgraa, o inexplicvel, quan-do o demnio invade o cotidiano e parece mais presente e mais acessvelque Deus.

    Curandeiros e mandingueiros negrosno sistema mgico religioso portugus

    Para um melhor entendimento dos casos apresentados at agora tor-na-se necessrio inseri-los no quadro mais abrangente do complexo mgi-co religioso portugus, alargando o nosso espectro das crenas religiosasem vigor entre os sculos XVI e XVIII.

    Na medida em que as pessoas recorrem a Francisco Antnio para tra-tar uma doena orgnica, mas sobretudo a manifestao de uma desgraade origem diablica, diagnosticada como tal tanto pelo mdico como pelo

    exorcista, os doentes introduzem uma nova figura no campo dos prticosda eficcia simblica: o mgico e, neste caso preciso, o curandeiro. Este,embora reconhecido pela crena e avox populino tinha qualquer estatuto

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    legtimo, ao inverso do mdico e do padre. Alm disso, no sendo semprefcil estabelecer a demarcao entre magia e religio, tampouco no apare-cem de modo certo as distines operadas pelas populaes entre ritospagos e catlicos para conjurar uma epidemia, uma seca, afastar uma in-vaso de gafanhotos etc. A mesma dificuldade apresenta-se entre magia emilagre quando os rituais de curas aparentam-se e quando a ao de san-tos104 taumaturgos, vrias vezes de mbito local, vem juntar-se como re-curso suplementar. Assim, a escolha no aparece seno como uma questode oportunidade ou, de acordo com os indivduos e o tipo de sua insero

    social,105

    com a legitimidade social do prtico para o qual se orientam emltima instncia.106Que este seja um negro no sem importncia e volta-remos sobre esta distino.

    Da cura simblica e do uso adequado do santo,do exorcista e do curandeiro

    Assim, no incio da segunda metade do sculo XVIII, enquanto o

    curandeiro negro Francisco Antnio estava preso nos crceres da Inquisi-o, as populaes do bairro do Mocambo e parquias circundantes tinhamo privilgio, quando j no existia qualquer esperana de cura, de poderrecorrer intercesso de Fr. Antnio do Lumiar, Venervel falecido em 1746no Convento da Serra da Arrbida. J considerado como santo quandoainda vivo, em razo dos numerosos prodgios, profecias e milagres reali-zados junto de pessoas de todas as condies sociais, o seu poder especiali-zou-se de maneira caracterstica, aps a sua morte, na cura taumatrgica.Doze anos aps o seu falecimento, seu hagigrafo e antigo confessor nolhe atribuiu menos de 23 milagres entre os mais notveis, alguns dos quaisregistrados por um notrio apostlico. Exceto a nobreza, todas as catego-rias sociais so referidas como beneficirias dos seus milagres, incluindo osescravos, representados por uma mulher que sobreviveu a um parto perigoso.

    A insero desta escrava e o tipo de milagre que a ela se refere umdos trs partos da lista no provavelmente isento de significado e ne-

    cessita de uma rpida digresso. Com efeito, a hagiografia foi publicadadois anos aps a lei de proibio de entrada de novos escravos (1761) e colocaat certo ponto a tnica sobre o valor dos escravos e o interesse da sua re-

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    produo biolgica. No entanto, a intercesso foi apresentada como vin-do da escrava, e no da sua senhora, o que pode ser para o hagigrafo umamaneira de significar ou afirmar a adeso das escravas religio catlica e ointeresse da Igreja por elas. Neste sentido, a ausncia de um escravo de sexomasculino entre os beneficirios no tampouco sem significado. Seja comofor, as duas interpretaes reproduo biolgica/interesse para as mulhe-res negras boas catlicas podem no ser necessariamente e conscientementerelacionadas no entender do redator, sem todavia serem nem contraditriasnem incompatveis. No podemos tampouco excluir uma demonstrao pe-

    daggica destinada em especial aos senhores, com o fim de mostrar-lhes o in-teresse de conceder uma boa educao religiosa aos seus cativos.Embora a Serra da Arrbida fosse para a poca bastante afastada de

    Lisboa e de acesso particularmente difcil, , no entanto, na capital que maisde dois teros (17) dos milagres esto situados. Entre eles, quatro dizemrespeito a moradores do Mocambo e quatro das freguesias limtrofes ondeFrancisco Antnio atuava: Mercs, S. Paulo, Santa Catarina. Comparadascom as categorias sociais que comparecem no processo de Francisco Ant-nio, as da hagiografia so, de modo geral, de um nvel superior.107Encon-tramos pessoas que tm j f nas virtudes taumatrgicas do Venervel eoutras, sujeitos ativos ou objetos passivos do acontecimento miraculoso, aquem ela foi transmitida em situao de desespero ou de emergncia. As-sistimos por conseguinte a um verdadeiro processo de transmisso da de-voo em relao ao Venervel e a um alargamento do seu campo social deinterveno e de influncia. Todas as situaes correspondem a indivduosquer beira da morte ou gravemente doentes, quer atingidos de uma afecoperigosa, crnica ou na origem de graves incapacidades fsicas, sempreconfrontados com a impotncia dos mdicos que renunciaram e os aban-donaram ao desamparo.

    O hagigrafo, atravs da descrio dos comportamentos de algunsdevotos, que introduziu na sua narrativa, revela um dos traos do pensa-mento religioso e mgico da poca: uma f superior nas foras tutelares quenos mdicos e seus remdios. Assim, Manoel Ferreira Delgado, devoto

    fervoroso do Venervel, quando acorre para socorrer o seu vizinho que estse esvaindo em sangue pelo nariz na seqncia de uma apoplexia, come-ou por lanar fora todos os remdios prescritos, antes de aplicar-lhe um

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    pouco da terra da sepultura do santo homem sobre as narinas e o crnio.Apesar do sucesso temporrio, em razo da pouca f do paciente, que oconduziu at um estado de coma gravssimo, conseguiu restabelecer-se apsa terceira interveno do devoto, que lhe fez beber um caldo de galinhamisturado com uma decoco da mesma terra.

    Relquia inesgotvel, aquela terra constitua o princpio ativo simb-lico da maior parte dos milagres referidos, independentemente das mols-tias de resto indicadas com uma relativa preciso para a poca. Assim, emLisboa, encontramos um caso de carbnculo maligno, de difteria garro-

    tilho , trs dores de dentes, um tumor no seio, dois tumores ou inchaesperigosas, uma febre aguda com complicaes respiratrias, uma dor nopeito acompanhada de diversos sintomas violentos, duas dores violentas eperigosas no localizadas pelo documento e, por ltimo, oito infecesoculares que j provocaram a cegueira parcial ou quase total de um ou dosdois olhos. Foi por exemplo o dramtico caso de Maria de Jesus que, apster sido sangrada dezesseis108vezes sem nenhuma melhora, absorveu a guamisturada com a terra da sepultura do Venervel, lavou os olhos com amesma, e experimentou um alvio imediato. Na maioria dos casos o doen-te conseguia uma melhoria rpida do seu estado, s vezes a cura era quaseinstantnea, s vezes necessitava de alguns dias. Raramente assistia-se a umarecada, mas quando isto acontecia era atribuda pouca f do paciente,como no caso citado h pouco. Nessa argumentao encontramos umaestreita similitude com o caso de Brbara Mana, tratada por Francisco An-tnio, que aps ter conhecido um primeiro alvio sofreu uma recada qua-se imediata quando comeou a duvidar do carter lcito da cura.

    Exceto um caso,109 todas as situaes apresentadas na hagiografia pa-recem confirmar que o processo que conduz um paciente a voltar-se paraum santo taumaturgo no constitui de modo algum uma ruptura com oscuidados anteriores, mas a ltima etapa quando as precedentes se revela-ram vs.110Contudo, no faltam os exemplos em contrrio, mostrandoclaramente que, no pensamento religioso da poca barroca, a cura ditamilagrosa constitua apenas um dos meios disposio dos pacientes, mas

    que no era nem logicamente nem hierarquicamente determinada na ca-deia das possibilidades curativas. Apresentar o milagre como o recurso deltima instncia era sem dvida fazer obra pedaggica mas era igualmente

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    esquecer a lio da Igreja sobre a origem divina, por conseguinte sobrena-tural, da doena, pois da mesma maneira que as epidemias ou as catstro-fes naturais que afligiam o conjunto de uma populao eram apresen-tadas como um aviso e um castigo celestial sancionando um desregramentosocial, a doena individual tambm era percebida como um aviso ou umcastigo de Deus. Conseqentemente, era a Deus, diretamente ou atravsos seus santos, que o homem devia dirigir-se em primeiro lugar para curara sua alma e, como reflexo desta, o seu corpo em perdio, corpo que devese esforar para tratar aproveitando-se de todos os meios lcitos.

    Este princpio da primazia da cura espiritual foi analisado por Jos Gila propsito do uso curativo do famoso retbulo do convento dos Anto-nitas111 de Issenheim, na Alscia Francesa. Aqui manifesta-se de modoparadigmtico a estreita relao entre a mobilizao psicolgica do pacien-te e a cura miraculosa, graas a uma encenao simblica que era suficiente porsi prpria para provocar a cura ou favorecer o processo teraputico.

    A ordem dos Antonitas dedicava-se exclusivamente a tratar de doen-tes. Nos seus hospitais eram invocados vrios santos.112Mas, em Issenheim,

    a pea soberana do arsenal curativo era o retbulo representando Cristo,composto numa inteno bem precisa (): desempenhava um papel te-raputico. Este Cristo impressionante, (...) de cor esverdeada, quase emestado de putrefao, a dor encarnada considera J. Gil.113De acordo comOtto Benesch, o retbulo ficava fechado a maior parte do ano e no apre-sentava aos fiis seno os painis externos,

    com ao centro, a Crucificao, sobre a vertente fixa da esquerda Santo An-tnio, sobre a da direita So Sebastio. () O retbulo fechado os renesob os vastos braos, semelhantes a duas asas potentes, do Crucificado. (.)Os doentes conduzidos ao hospital eram primeiro colocados na frente destaimagem, na esperana de um milagre; se no tivesse lugar, comeava-se en-to o verdadeiro tratamento mdico.114

    certo, diz J. Gil, que o propsito do autor do retbulo era propor

    uma metamorfose do corpo: do corpo do Cristo e do corpo do doente. Omilagre esperado implicaria uma forte comoo vista do Crucificado exan-gue, esfolado, to horrvel e to prximo que provoca o empenho emo-cional do doente: este deveria contribuir para a cessao do sofrimento doCristo, ao seu renascimento, sua ressurreio.115

  • 8/6/2019 Magia Em Portugal

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    Existiria, prossegue J. Gil, um convite uma troca energtica entreo paciente que expulsa a sua doena, transformando-a em energia puri-ficada que oferece ao Crucificado e o Cristo que faz descer sobre opaciente a graa do milagre.

    Este empenho emocional, que os antonitas tentavam consciente-mente provocar antes de comearem qualquer cura mdica, mostra que omilagre era bem, como o sublinha J. M. Sallmann, uma cura teraputicacujo uso feito com uma relativa facilidade e cuja eficcia depende dosmeios simblicos postos em prtica. Neste sentido, acrescenta:

    o recurso ao poder taumatrgico de um santo situa-se no mesmo plano for-mal que o de outras curas de tipo no especializada como a medicina oua magia, ou de tipo mais especializado como o exorcismo. Entre estas di-ferentes teraputicas, h menos concorrncia que complementaridade. Osdoentes recorrem apenas ao santo ou as suas relquias em ltima instncia,quando todas as outras formas de tratamento falharam. Na ideologia co-mum do tempo, quase no h hierarquia entre elas, e o fato de solicitar osrecursos da medicina, da magia ou da santidade continua a ser apenas uma

    questo de circunstncia. A inspirao do momento prevalece sempre, so-bretudo quando h urgncia.116

    Ora, esta urgncia, se evidentemente tem a ver em primeiro lugar como estado do doente, pode igualmente resultar de um malogro dos mdi-cos, exorcistas ou mesmo da cura miraculosa. Dito de outra maneira, ne-nhum dos operadores culturais, encarregados de fazer compreender aopaciente que a sua perturbao provocada por uma ruptura das suas rela-es com o sagrado e que s ele pode restabelec-las,117conseguiu mobi-lizar o seu potencial emocional que lhe permite superar o mal. Para