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P DANIEL PENNAC MÁGOAS DA ESCOLA Tradução de Isabel St. Aubyn

MÁGOAS DA ESCOLA - Notícias de Portugal e do mundo, …static.publico.pt/docs/cultura/livros/magoasdaescola.pdf · Eu era, portanto, um mau aluno. Na minha infância, chegava todos

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DANIEL PENNAC

MÁGOAS DA ESCOLATradução de Isabel St. Aubyn

I

A lixeira de Djibuti

Estatisticamente tudo se explica,pessoalmente tudo se complica.

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Comecemos pelo epílogo: a minha mãe, quase centenária,vendo um filme sobre um autor que ela conhece bem. O autor estáem casa, em Paris, rodeado dos seus livros, na biblioteca que lheserve igualmente de escritório. A janela abre para o pátio de umaescola. Algazarra de recreio. Fica-se a saber que, durante umquarto de século, o autor exerceu o ofício de professor e que, seescolheu aquele apartamento voltado para dois pátios de recreio,foi ao jeito de um ferroviário que vive, após reformar-se, por cimade uma estação de comboios de mercadorias. Depois vê-se o autorem Espanha, em Itália, conversando com os tradutores das suasobras, gracejando com amigos venezianos, e no planalto do Vercors,caminhando, solitário, pela bruma das altitudes, falando sobre asua arte, a língua, o estilo, a estrutura romanesca, as personagens...Novo escritório, desta vez aberto sobre o esplendor alpino. Estascenas são entrecortadas por entrevistas com artistas que o autoradmira, e que falam eles próprios do seu trabalho: o cineasta eromancista Dai Sijie, o desenhador Sempé, o cantor Thomas Fersen,o pintor Jürg Kreienbühl.

Regresso a Paris: o autor em frente do computador, desta vezrodeado de dicionários. É uma paixão, afirma. Fica-se a saber, deresto, e é assim que o filme termina, que o autor entrou para odicionário, Le Robert, na letra P, sob o nome de Pennac, que temorigem seu apelido completo Pennacchioni, nome próprio Daniel.

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A minha mãe, portanto, vê o filme, na companhia do meuirmão Bernard, que o gravou para ela. Vê-o do princípio ao fim,muito quieta na poltrona, de olhar fixo, sem dizer uma palavra, aocair da noite.

Fim do filme.Genérico.Silêncio.Depois, voltando-se lentamente para Bernard, a minha mãe

pergunta:– Acreditas que ele vai safar-se, um dia?

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A verdade é que fui um mau aluno e que a minha mãe nuncase refez completamente desse desgosto. Hoje que a sua consciênciade senhora muito idosa abandona os limites do presente e refluilentamente para os longínquos arquipélagos da memória, os pri-meiros recifes que emergem recordam-lhe a inquietação que adevorou durante toda a minha escolaridade.

Pousa em mim um olhar inquieto e, lentamente:– Que fazes na vida?O meu futuro afigurou-se-lhe tão comprometido desde sem-

pre que nunca acreditou muito no meu presente. Não estandodestinado a ter futuro, eu não lhe parecia preparado para durar.Eu era o filho instável. Porém, sabia que eu era independente desdeo mês de Setembro de 1969, quando entrei na primeira sala de aulana qualidade de professor. Mas durante as décadas que se seguiram(isto é, durante a minha vida de adulto), a sua inquietação resistiusecretamente a todas as «provas de sucesso» de que a informavamos meus telefonemas, as minhas cartas, as minhas visitas, a publica-ção dos meus livros, os artigos de jornais ou as minhas passagenspelos programas de Bernard Pivot. Nem a estabilidade da minhavida profissional, nem o reconhecimento do meu trabalho literário,nada do que ouvira dizer de mim através de terceiros ou que puderaler na imprensa a tranquilizavam completamente. É verdade que

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se congratulava com os meus sucessos, comentava-os com os ami-gos, aceitava que o meu pai, falecido antes, se teria sentido feliz,mas, no fundo do seu coração, permanecia a ansiedade que o maualuno dos primeiros tempos suscitara para sempre. Era assim quese exprimia o seu amor de mãe; quando eu a arreliava quanto àsdelícias da inquietação maternal, ela respondia alegremente comum gracejo à Woody Allen:

– Que queres, nem todas as judias são mães, mas todas asmães são judias.

E, hoje que a minha velha mãe judia já não está totalmente nopresente, é de novo esta mesma inquietação que os seus olhosexprimem quando pousam no filho mais novo, de sessenta anos.Uma inquietação que talvez tenha perdido intensidade, umaansiedade fóssil, que não é mais do que um hábito de si mesma,mas que permanece suficientemente viva para que a minha mãeme pergunte, pousando a sua mão na minha, no momento em queme despeço dela:

– Tens um apartamento em Paris?

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Eu era, portanto, um mau aluno. Na minha infância, chegavatodos os dias a casa perseguido pela escola. As minhas cadernetasreflectiam a censura dos professores. Quando não era o pior daturma, era o penúltimo. (Bravo!) Impenetrável à aritmética primeiro,à matemática em seguida, profundamente disortográfico, refractárioà memorização das datas e à localização dos pontos geográ ficos,inapto para a aprendizagem de línguas estrangeiras, consideradopreguiçoso (lições não estudadas, deveres por fazer), levava paracasa notas lamentáveis que nem a música, uma qualquer activi-dade desportiva ou extracurricular, de resto, conseguia remediar.

– Compreendes? És ao menos capaz de compreender o que teexplico?

Eu não compreendia. Esta incapacidade de compreenderremontava tão longe na minha infância que os meus familiarescriaram uma lenda para datar a sua origem: a aprendizagem doalfabeto. Sempre ouvi dizer que precisei de um ano inteiro paraaprender a letra a. A letra a, num ano. O deserto da minha igno-rância começava antes do intransponível b.

– Não entremos em pânico, daqui a vinte e seis anos ele domi-nará perfeitamente o alfabeto.

Assim ironizava o meu pai para afugentar os seus própriosreceios. Muitos anos mais tarde, repetindo o último ano do ensino

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secundário em perseguição de um baccalauréat1 que fugia obstina-damente de mim, o meu pai disse-me:

– Não te preocupes, mesmo para fazer o bac há automatismosque se adquirem…

Ou, em Setembro de 1968, já na posse de uma licenciatura emLetras:

– Precisaste de uma revolução para a licenciatura, devemosrecear uma guerra mundial para a agregação?

Tudo isto dito sem nenhuma animosidade particular. Era anossa forma de conivência. Eu e o meu pai optámos muito cedopela via do sorriso.

Mas voltemos ao princípio. O mais novo de quatro irmãos, euera um caso especial. Os meus pais não tinham tido tempo de setreinar com os mais velhos, cuja escolaridade, sem ser excepcio-nalmente brilhante, decorrera sem problemas.

Eu era um objecto de estupefacção, e de estupefacção cons-tante, pois os anos iam passando sem contribuir com a mínimamelhoria para o meu estado de torpor escolar. «Fico de bocaaberta», «Nem posso acreditar» são expressões familiares, associa-das a olhares de adultos nos quais vejo que a minha incapacidadede assimilar o que quer que seja escava um abismo de increduli-dade.

Aparentemente, toda a gente compreendia mais depressa doque eu.

– És totalmente tapado!Numa tarde do ano do bac (um dos anos do bac), enquanto o

meu pai me dava uma aula de trigonometria na divisão que nosservia de biblioteca, o nosso cão deitou-se discretamente no divã,atrás de nós. Descoberto, foi de imediato expulso:

– Sai daí, cão, vai para a tua cadeira!Passados cinco minutos, o cão estava de novo em cima do

divã. Limitara-se a ir buscar a velha manta que protegia a cadeira

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1 Diploma obtido no final do Ensino Secundário e que permite o ingresso no EnsinoSuperior. (N. do E.)

na qual se enroscava e a deitar-se em cima dela. Admiração geral,evidentemente, e justificada: que um animal pudesse associar umainterdição a uma ideia abstracta de higiene e daí tirar a conclusãoque se impunha para desfrutar da companhia dos donos, bravo,com certeza, era um autêntico raciocínio! Foi um tema de conversafamiliar que atravessou os tempos. Pessoalmente, concluí quemesmo o cão lá de casa compreendia mais depressa do que eu.Creio mesmo que lhe segredei ao ouvido:

– Amanhã és tu que vais para a escola, lambe-cús.

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Dois cavalheiros de uma certa idade passeiam nas margens do Loup, o rio da sua infância. Dois irmãos. Eu e o meu irmãoBernard. Meio século antes, mergulhavam naquela transparência.Nadavam no meio das fataças que não se assustavam com o alvo-roço provocado. A familiaridade dos peixes sugeria que aquelafelicidade duraria para sempre. O rio corria por entre falésias.Quando os dois irmãos o seguiam até ao mar, ora arrastados pelacorrente ora saltitando sobre os rochedos, acontecia-lhes perde-rem-se de vista. Para voltarem a encontrar-se, tinham aprendido asoltar um assobio, levando os dedos à boca. Longas estridulaçõesque se repercutiam contra as paredes rochosas.

Hoje o nível das águas baixou, os peixes desapareceram, umaespuma viscosa e estagnada marca a vitória do detergente sobre anatureza. Da nossa infância, restam o canto das cigarras e o calorresinoso do sol. Além disso, continuamos a saber assobiar levandoos dedos à boca; nunca nos perdemos.

Anuncio a Bernard que tenciono escrever um livro tendocomo tema a escola; não a escola que muda na sociedade quemuda, como mudou este rio, mas, no cerne desta incessante agita-ção, sobre o que não muda, justamente, sobre uma permanênciasobre a qual nunca ouço falar: a dor partilhada entre o cábula, os

pais e os professores, a interacção entre estas mágoas da escola.

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– Vasto programa… E como vais abordá-lo?– Interrogando-te, por exemplo. Que recordações guardas da

minha própria nulidade, digamos… em matemática?O meu irmão Bernard era o único membro da família que

podia ajudar-me no trabalho escolar sem que eu me fechassecomo uma ostra. Partilhámos o mesmo quarto até à minhaentrada para o sétimo ano, quando me internaram num colégio.

– Em matemática? Começou com a aritmética, sabes! Umdia, perguntei-te o que fazer com uma fracção que tinhas àfrente dos olhos. Respondeste-me automaticamente: «É precisoreduzi-la ao denominador comum.» Só havia uma fracção, por-tanto um único denominador, mas tu não desistias: «É precisoreduzi-la ao denominador comum!» Perante a minha obstinação:«Raciocina um pouco, Daniel, só tens uma fracção, portanto um

único denominador», resolveste amuar: «Foi o profe que disse; épreciso reduzir as fracções a um denominador comum!»

E os dois cavalheiros sorriram, ao longo do passeio. Tudo istojá ficou muito para trás. Um deles foi professor durante vinte ecinco anos: dois mil e quinhentos alunos, mais ou menos, algunsdos quais com «grandes dificuldades», segundo a expressão consa-grada. E ambos são pais de família. «O profe disse que…», sabemcomo é. A esperança depositada pelo cábula na litania, sim… Aspalavras do professor são toros flutuantes aos quais o mau alunose agarra num rio cuja corrente o arrasta para as grandes quedas.Repete o que o profe disse. Não para encontrar algum sentido, nãopara que a regra tome forma; mas sim para resolver o assunto,momentaneamente, para que «me deixem em paz». Ou para quegostem de mim. Custe o que custar.

– …– Mais um livro sobre a escola, então? Não te parece que já há

muitos?– Não é sobre a escola! Toda a gente se preocupa com a escola,

eterna querela entre os antigos e os modernos: os programas, o seupapel social, as suas finalidades, a escola de ontem, a de amanhã…

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Não, um livro sobre os cábulas! Sobre a dor de não compreender, eos seus danos colaterais.

– …– Sofreste assim tanto?– …– …– Podes dizer-me mais alguma coisa sobre o cábula que eu fui?– Queixavas-te de falta de memória. As explicações que eu te

dava à tarde evaporavam-se durante a noite. No dia seguinte demanhã tinhas esquecido tudo.

De facto. Eu não decorava, como hoje dizem os jovens. Nãocompreendia nem decorava. As palavras mais simples perdiamsubstância logo que me pediam que as encarasse como objecto deconhecimento. Se tivesse de aprender uma lição sobre o maciço doJura, por exemplo (mais do que um exemplo é, na verdade, umarecordação muito precisa), esta pequena palavra decompunha-seimediatamente até perder qualquer relação com o Franco-Condado,o Ain, a relojoaria, as vinhas, os cachimbos, a altitude, as vacas, osrigores do Inverno, a fronteira com a Suíça, o maciço alpino ou asimples montanha. Não representava mais nada. Jura, dizia paracomigo, Jura? Jura… E repetia a palavra, incansavelmente, comouma criança que nunca mais acaba de mastigar, mastigar semengolir, repetir sem assimilar, até à total decomposição do gosto edo sentido, mastigar, repetir, Jura, Jura, jura, juro, juras, jura, juro-jurasjura, até a palavra se tornar uma massa sonora indefinida,sem o mais leve resquício de sentido, um ruído pastoso de ébrionum cérebro esponjoso… É assim que se adormece sobre umalição de Geografia.

– Afirmavas que detestavas as maiúsculas.Ah! Terríveis sentinelas, as maiúsculas! Parecia-me que se

introduziam entre mim e os nomes próprios para me impediremde me aproximar. Toda a palavra iniciada por uma maiúsculaestava condenada ao esquecimento instantâneo: cidades, rios,batalhas, heróis, tratados, poetas, galáxias, teoremas, interdição dememória em virtude de maiúscula aterradora. Alto lá, exclamava a

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primeira letra, não se entra pela porta deste nome, é demasiadopróprio, não és digno dele, és um cretino!

Precisão de Bernard, ao longo da caminhada:– Um cretino minúsculo!Riso dos dois irmãos.– E mais tarde, a mesma atitude em relação às línguas estran-

geiras: não conseguia abstrair-me da ideia de que elas exprimiamcoisas demasiado inteligentes para mim.

– O que te dispensava de aprender as listas de vocabulário.– As palavras inglesas eram tão voláteis quanto os nomes pró-

prios…– …– …– Em suma, inventavas histórias.Sim, é próprio dos cábulas, repetem à exaustão a história da

sua cabulice: sou um zero, nunca conseguirei, nem vale a penatentar, estou antecipadamente tramado, eu bem vos dizia, a escolanão foi feita para mim… A escola afigura-se-lhes um clube muitofechado no qual se recusam a entrar. Com a ajuda de alguns pro-fessores, às vezes.

– …– …Dois cavalheiros de uma certa idade passeiam ao longo de um

rio. No final do passeio, alcançam um charco rodeado de canas eseixos.

Bertrand pergunta:– Continuas a ser especialista em ricochetes?

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Como é evidente, impõe-se conhecer a causa original. De ondevinha a minha cabulice? Filho da burguesia de Estado, oriundo deuma família afável, sem conflitos, rodeado de adultos responsáveisque me ajudavam a fazer os deveres… Pai formado na Escola Politéc-nica, mãe em casa, nem divórcios, nem alcoólicos, nem inadaptados,nem taras hereditárias, três irmãos já com o bac feito (com vocaçãopara a matemática, em breve dois engenheiros e um oficial), ritmofamiliar normal, alimentação saudável, biblioteca em casa, ambientecultural adequado ao meio e à época (pai e mãe nascidos antes de1914): pintura até aos impressionistas, poesia até Mallarmé, músicaaté Debussy, romances russos, o inevitável período Teilhard deChardin, Joyce e Cioran por ousadia… Conversas à mesa calmas,divertidas e cultas.

E todavia, um cábula.Nenhuma explicação a tirar da história familiar. Trata-se de

uma progressão social em três gerações graças à escola laica, gra-tuita e obrigatória, ascensão republicana em suma, vitória àmaneira de Jules Ferry… Um outro Jules, o tio do meu pai, o Tio,Jules Pennacchioni, levou ao exame da quarta classe as crianças deGuargualé e de Pila-Canale, as aldeias corsas da família; devemos--lhe gerações de professores, de carteiros, de gendarmes, e outrosfuncionários da França colonial ou metropolitana… (porventura

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também alguns bandidos, mas pelo menos fez deles leitores). O Tio, segundo dizem, obrigava a fazer ditados e exercícios de cálculo a toda a gente e em quaisquer circunstâncias; consta aindaque chegava a raptar as crianças que os pais obrigavam a faltar àescola durante a colheita das castanhas. Ia buscá-las ao campo,levava-as para casa e prevenia o pai esclavagista:

– Devolver-te-ei o rapaz quando fizer o exame da quarta classe!Se é uma lenda, gosto dela. Não creio que o ofício de professor

possa ser concebido de outra maneira. Todo o mal que se diz daescola esquece o número de crianças que salvou das taras, dos pre-conceitos, do desprezo, da ignorância, da estupidez, da cupidez,do imobilismo ou fatalismo das famílias.

O Tio era assim.Porém, passadas três gerações, eu, o cábula!Que vergonha para o Tio, se tivesse sabido… Por sorte, morreu

antes de me ver nascer.Não só os meus antecedentes me interditavam toda a cabulice

como, enquanto último representante de uma linhagem cada vezmais diplomada, estava socialmente programado para me tornar oorgulho da família: da Escola Politécnica ou da Escola Normal, daEscola Nacional de Administração, evidentemente, o Tribunal deContas, um ministério, vá-se lá saber… Não se podia esperarmenos. E também, um casamento produtivo e o nascimento decriancinhas destinadas desde o berço ao Liceu Louis-le-Grand epropulsadas para o trono do Eliseu ou para a direcção de um consórcio mundial de cosmética. A rotina do darwinismo social, a reprodução das elites…

Pois bem, não, um cábula.Um cábula sem fundamento histórico, sem razão sociológica,

sem falta de amor: um cábula em si mesmo. Um cábula-padrão.Uma unidade de medida.

Porquê?A resposta jaz porventura no gabinete dos psicólogos, mas ainda

não tinha chegado o tempo do psicólogo escolar considerado comosubstituto da família. Cada um agia com os meios ao seu alcance.

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Bernard, por seu lado, propunha uma explicação:– Aos seis anos, caíste na lixeira municipal de Djibuti.– Aos seis anos? O ano do a?– Sim. Era uma lixeira a céu aberto, na verdade. Caíste do

cimo de um muro. Não me recordo de quanto tempo ficaste ali amacerar. Tinhas desaparecido, procuravam-te por toda a parte, etu debatias-te ali dentro, debaixo de um sol que devia rondar ossessenta graus. Prefiro não imaginar ao que se assemelharia.

Vendo bem, a imagem da lixeira adapta-se perfeitamente aosentimento de detrito que o aluno perdido experimenta em rela-ção à escola. De resto, «caixote do lixo» é um termo que ouvi pro-ferir muitas vezes para qualificar as escolas privadas que aceitamsem contrato (a que preço?) acolher o refugo da escola. Estivenuma destas escolas do sétimo até ao décimo primeiro, comoaluno interno. E entre todos os professores a que tive de me sub-meter, houve quatro que me salvaram.

– Quando te retiraram do monte de lixo, diagnosticaram-teuma septicemia; durante meses, deram-te injecções de penicilina.Custava-te imenso, morrias de medo. Sempre que o enfermeiroaparecia, passávamos horas a procurar-te pela casa toda. Um diaescondeste-te num armário que caiu em cima de ti.

Medo da injecção, eis uma metáfora elucidativa: toda a minhaescolaridade a fugir dos professores considerados Diafoirus2 arma-dos de seringas gigantescas e encarregados de inocular em mimaquela queimadura espessa, a penicilina dos anos cinquenta – daqual me lembro muito bem –, uma espécie de chumbo derretidoque injectavam num corpo de criança.

Em todo o caso, sim, o medo foi sem dúvida a grande questãoda minha escolaridade; o seu ferrolho. E a urgência do professorque vim a ser consistiu em apaziguar o medo dos meus piores alunospara fazer saltar o ferrolho, para conferir ao saber uma oportuni-dade de entrar.

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2 Diafoirus – Médico arreigado a convicções rígidas e pouco preocupado com a saúdedos doentes, personagem da peça Doença de Cisma (Le malade imaginaire), de Molière,século XVII. (N. da T.)

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Tenho um sonho. Não um sonho infantil, um sonho actual,enquanto escrevo este livro. Precisamente depois do capítulo ante-rior, para dizer a verdade. Estou sentado, de pijama, na berma daminha cama. Grandes algarismos de plástico, como aqueles comque brincam as crianças muito pequenas, estão espalhados pelotapete, à minha frente. Tenho de «ordenar aqueles algarismos». É o enunciado. A operação parece-me fácil, estou feliz. Debruço--me e estendo os braços para os algarismos. Apercebo-me de queas minhas mãos desapareceram. Não há mãos dentro do pijama.As minhas mangas estão vazias. Não é o desaparecimento dasmãos que me aterroriza, é não poder alcançar os algarismos paraos ordenar. O que seria capaz de fazer.

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Todavia, exteriormente, eu era uma criança vivaz e brinca-lhona, sem ser agitada. Hábil no jogo do berlinde e das pedrinhas,imbatível no jogo do mata, campeão mundial da luta de almofa-das, eu gostava de brincar. Essencialmente falador e brincalhão,mesmo farsante, criava amizades com todos os colegas de turma,cábulas alguns, sem dúvida, mas também marrões – eu não tinhapreconceitos. Alguns professores criticavam-me acima de tudoesta alegria. Aliava a insolência à nulidade. O mínimo que umcábula podia fazer era ser discreto: nado-morto seria o ideal. Simplesmente, a minha vitalidade era-me vital, se assim se podedizer. A brincadeira furtava-me à tristeza que me invadia logoque sucumbia à minha humilhação solitária. Meu Deus, a solidãodo cábula humilhado por nunca conseguir fazer o que deve! E a vontade de fugir… Senti muito cedo a vontade de fugir. Para onde? Deveras confuso. Fugir de mim mesmo, digamos, e contudo sem deixar de ser eu próprio. Mas um eu que os outros aceitassem. É sem dúvida a esta vontade de fugir que devoa estranha escrita que precedeu a minha escrita. Em vez de alinharas letras do alfabeto, desenhava pequenos bonecos que fugiampara a margem da folha de papel, onde formavam um bando.Aplicava-me, pois, de início, contornava as letras o melhor quepodia, mas elas, aos poucos, metamorfoseavam-se sozinhas

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Ainda hoje utilizo estes bonecos nas minhas dedicató-rias. São-me preciosos para aligeirar a elegante trivialidade

que somos levados a escrever napágina de rosto dos exemplarespara a imprensa. Permaneço fielao bando da minha infância.

naqueles pequenos seres, saltitantes e alegres que iam divertir-sealgures, ideogramas da minha necessidade de viver:

Adolescente, sonhei com um bando mais real. Ainda não che-gara o tempo, não era próprio do meu meio, o ambiente em quevivia não me proporcionava essa possibilidade, mas ainda hoje,afirmo-o sem rodeios, se tivesse surgido uma ocasião de pertencera um bando, tê-lo-ia feito. E com que alegria! Os meus compa-nheiros de folguedos não me satisfaziam. Para eles, eu só existiadurante os recreios; na sala de aula, sentia-me comprometedor.Ah! Diluir-me num bando em que a escolaridade não contassepara nada, que sonho! Em que reside o atractivo de um bando? Na dissolução com a sensação de afirmação. Que bela ilusão deidentidade! Tudo para esquecer o sentimento de estranheza absolutano universo escolar, e fugir aos olhares desdenhosos de um adulto.Tão convergentes, esses olhares! Opor um sentimento de comuni-dade a esta perpétua solidão, um algures a este aqui, um territórioa esta prisão. Abandonar a ilha do cábula a todo o custo, mesmoque fosse num barco de piratas onde reinasse unicamente a lei dopunho e que conduzisse, no melhor dos casos, à prisão. Sentia-ostão mais fortes do que eu, os outros, os professores, os adultos, ede uma força muitíssimo mais esmagadora do que o punho, tãoaceite, tão legal, que me acontecia experimentar um sentimento devingança próximo da obsessão. (Quatro décadas mais tarde, quandoa expressão «sentir ódio» surgiu na boca de alguns adolescentes,

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não me surpreendi. Multiplicada por uma quantidade de novosfactores, sociológicos, culturais, económicos, continuava a expri-mir a necessidade de vingança que me fora tão familiar.) Por sorte,os meus companheiros de folguedos não eram dos que formambandos, e eu não era originário de nenhum bairro dos subúrbios.Formei, pois, um bando de jovens sozinho, como diz a canção deRenaud, um bando bem modesto, no qual representava em solitá-rio represálias a tender para o sub-reptício. As línguas de vaca, porexemplo (uma centena), retiradas durante a noite da dispensa dacantina que espetei na porta de um ecónomo porque no-las serviaduas vezes por semana e nos obrigava a comê-las no dia seguintese não coméssemos tudo. Ou o arenque fumado atado ao tubo deescape do automóvel novo de um professor de inglês (era umAriane, recordo-me, com a face lateral dos pneus pintada debranco como os sapatos de um chulo…), que começou inexplica-velmente a cheirar a peixe queimado ao ponto de, nos primeirosdias, o seu proprietário entrar na sala de aula empestado de cheiroa peixe. Ou ainda a trintena de galinhas, roubadas das quintas maispróximas do meu colégio interno na montanha, que povoaram oquarto do chefe dos vigilantes durante todo o fim-de-semana emque eu tinha ficado de castigo. Que magnífico galinheiro se tornouaquele quarto em apenas três dias: excrementos e penas coladas,com palha para parecer mais verídico, ovos partidos um poucopor todo o lado, e o milho generosamente distribuído por todo o lado! Sem falar do cheiro! Ah, que grande alegria quando o vigi-lante, abrindo inocentemente a porta do quarto, libertou para os corredores as prisioneiras aterradas que todos nos pusemos aperseguir!

Foi uma parvoíce, claro, uma tolice, uma maldade repreensívele imperdoável… E ineficaz, ainda por cima: o género de sevíciasque não melhora o carácter do corpo docente… Morrerei, contudo,sem me arrepender das galinhas, do arenque e das pobres línguasde vaca. Formavam juntamente com os bonecos saltitantes, partedo meu bando.

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Uma constante pedagógica: salvo raras excepções, o desor-deiro dissimulado (ou o zaragateiro, é uma questão de ponto devista) nunca se denuncia. Se for um colega a cometer a façanha,também não o denuncia. Solidariedade? Não tanto. Mais umaespécie de volúpia, ao ver a autoridade esgotar-se em investigaçõesestéreis. Que todos os alunos sejam castigados – privados disto ou daquilo – até que o culpado se confesse não o comove. Muitopelo contrário, constitui uma ocasião para se sentir integrado nacomunidade, finalmente! Associa-se a todos para considerar«indecente» que tantos «inocentes» sejam obrigados a «pagar» porum único «culpado». Surpreendente sinceridade! O facto de ser eleo culpado em causa não entra, aos seus olhos, em linha de conta.Castigando toda a gente, a autoridade permitiu-lhe mudar deregisto: já não estamos na ordem dos factos, que segue a investiga-ção, mas no terreno dos princípios; ora, como bom adolescenteque é, a equidade é um princípio sobre o qual não transige.

– Não descobrem quem foi, portanto teremos de ser todos apagar, é indecente!

Que lhe chamem cobarde, ladrão, mentiroso ou o que querque seja, que um supervisor tonitruante declare publicamentetodo o desprezo que lhe merecem os abomináveis da sua espécieque «não assumem a coragem dos seus actos» não o incomoda

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absolutamente nada. Primeiro porque vê nessa atitude a confirma-ção do que lhe repetiram mil vezes e concorda com o supervisornesse ponto (é mesmo um prazer raro, este acordo secreto: «Sim,tens razão, sou o malvado de que falas, ou mesmo pior, se soubes-ses…») e depois porque a coragem de ir pendurar as três sotainasdo prefeito encarregado da disciplina no cimo do pára-raios, porexemplo, não foi o supervisor que a teve, nem nenhum outroaluno ali presente, mas ele, e só ele, no meio da noite escura, elemesmo, na sua nocturna e doravante gloriosa solidão. Durantealgumas horas, as sotainas serviram na escola de bandeira negra depiratas e ninguém, nunca, saberá quem içou tão grotesco pavilhão.

E se acusarem algum outro no seu lugar, permanecerá calado,pois conhece o seu mundo e sabe muito bem (como Claudel, que noentanto nunca lerá) que «também podemos merecer a injustiça».

Não se denuncia. Porque construiu uma razão para a sua soli-dão e deixou finalmente de ter medo. Não baixa os olhos. Olhempara ele, é o culpado de olhar cândido. Enterrou no seu silêncioeste prazer único: ninguém saberá, nunca! Quando sentimos quepertencemos a parte nenhuma, temos tendência para fazer jura-mentos a nós próprios.

Mas o que ele sente, acima de tudo, é a triste alegria de se tertornado incompreensível face aos dotados do saber que o censu-ram por não compreender nada de nada. Em suma, descobriu-sesenhor de uma aptidão: provocar o medo naqueles que o aterrori-zam; o que lhe causa um prazer intenso. Ninguém sabe do que eleé capaz, o que é bom.

O nascimento da delinquência está no investimento secreto detodas as faculdades da inteligência na astúcia.

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NCFI-MAGES-03

Mas faríamos uma falsa ideia do aluno que eu era se conside-rassemos apenas estas represálias clandestinas. (De resto, as trêssotainas, não fui eu.) O cábula sempre em festa, urdindo golpesvingativos noite dentro, o invisível Zorro das punições infantis,bem gostaria de me circunscrever a esta santa imagem, simples-mente eu era também – e acima de tudo – uma criança capaz detodos os compromissos em troca do olhar benevolente de umadulto. Implorar em silêncio o assentimento dos professores eaceitar todos os conformismos: sim, professor, tem razão, sim…hem, professor, não sou assim tão estúpido, tão maldoso, tãodecepcionante, tão… Oh! A humilhação quando o outro meremete, com uma frase seca, à minha indignidade. Oh! O abjectosentimento de felicidade quando, pelo contrário, bastavam duaspalavras vagamente delicadas que eu arrecadava de imediato comoum tesouro de humanidade… E como me precipitava, nessamesma noite, a falar do caso aos meus pais: «Tive uma boa con-versa com o professor Fulano…» (como se se tratasse de ter umaboa conversa, devia pensar o meu pai, e com razão…).

Durante muito tempo, arrastei comigo as marcas desta vergo-nha.

O ódio e a necessidade de afecto tinham-me envolvido porcompleto nos meus primeiros fracassos. Tratava-se de domesticar

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o ogre escolar. Fazer o possível para que não me devorasse ocoração. Contribuir, por exemplo, para o presente de aniversáriodaquele professor do sexto ano que, no entanto, classificava todos osmeus ditados com uma nota negativa: «Menos 38, Pennacchioni, atemperatura está cada vez mais baixa!» Puxar pela cabeça paraescolher o que daria realmente prazer àquele patife, organizar opeditório entre os alunos e fornecer eu próprio o restante, dado queo preço da horrível maravilha ultrapassava o montante reunido.

Havia cofres-fortes nas casas burguesas da época. Decidi arrom-bar o dos meus pais para participar no presente do meu torcionário.Era um daqueles pequenos cofres escuros e robustos que albergamos segredos de família. Uma chave, um manípulo em forma de rosetacoberta de algarismos, outro de letras. Eu sabia onde os meus paisguardavam a chave, mas precisei de várias noites para descobrir acombinação. Manípulo, chave, porta fechada. Manípulo, chave,porta fechada. Porta fechada. Porta fechada. Achei que nunca conse-guiria. E de repente, clique, a porta abre-se! Fiquei siderado. Umaporta aberta para o mundo secreto dos adultos. Segredos bem parcos,na verdade, algumas obrigações, suponho, de empréstimos russosque ali dormiam à espera da ressurreição, a pistola de ordenança deum tio-avô, cujo carregador estava cheio mas à qual tinham limado opercussor, e também dinheiro, não muito, algumas notas, do qualretirei o dízimo necessário ao financiamento do presente.

Roubar para comprar o afecto dos adultos… Não se tratavaexactamente de um roubo e não comprou, como é evidente,nenhum afecto. O crime foi descoberto quando, nesse mesmo ano,ofereci à minha mãe um desses horríveis jardins japoneses entãomuito em voga e que custavam os olhos da cara.

O acontecimento teve três consequências: a minha mãe cho-rou (o que era raro), convencida de ter trazido a este mundo umarrombador de cofres (o único domínio em que o seu benjamimmanifestava uma indiscutível precocidade), internaram-me numcolégio e fui incapaz de roubar o que quer que fosse no resto davida, mesmo quando o roubo se tornou culturalmente uma modaentre os jovens da minha geração.

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A todos aqueles que hoje atribuem a constituição de bandosunicamente ao fenómeno dos subúrbios, digo: sim, têm razão, sim,o desemprego, sim, a concentração dos excluídos, sim, os reagru-pamentos étnicos, sim, a tirania das marcas, a família monoparen-tal, sim, o desenvolvimento de uma economia paralela e os tráficosde toda a ordem, sim, sim, sim… Mas evitemos subestimar a únicacoisa sobre a qual podemos agir pessoalmente e que, essa, data danoite dos tempos pedagógicos: a solidão e a vergonha do alunoque não compreende, perdido num mundo em que todos osoutros compreendem.

Só nós podemos tirá-lo dessa prisão, tenhamos ou não forma-ção para o fazer.

Os professores que me salvaram – e que fizeram de mim umprofessor – não tinham recebido nenhuma formação para essefim. Não se preocuparam com as origens da minha incapacidadeescolar. Não perderam tempo a procurar as causas nem tampoucoa ralhar comigo. Eram adultos confrontados com adolescentes emperigo. Pensaram que era urgente. Mergulharam de cabeça. Nãome apanharam. Mergulharam de novo, dia após dia, mais e mais…Acabaram por me pescar. E muitos outros como eu. Repescaram--nos, literalmente. Devemos-lhes a vida.

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Remexo no monte da minha velha papelada à procura dasminhas cadernetas escolares e dos meus diplomas, e deparo-mecom uma carta guardada pela minha mãe. Data de Fevereiro de 1959.

Tinha feito catorze anos havia três meses. Frequentava o oitavoano. Escrevia-lhe do primeiro colégio onde fui aluno interno:

Minha querida mãe,Eu também vi as minhas notas, fiquei muito desanimado, estou

fartu [sic] quando cheguei a estudar duas horas sem parar duranteuma aula de revisões e tive 1 num teste de álgebra que julgei [sic] estarbem há motivos de desânimo, por isso largei [sic] tudo para me prepa-rar para os exames e o meu 4 em aplicação esplica [sic] com certeza oque estudei de geologia durante a esplicação [sic] de matemática,

[etc.]Não sou suficientemente inteligente e estudioso para prosseguir

os estudos. Não me interessam, fico com dores de cabessa [sic] porestar fexado [sic] rodeado de papéis, não persebo [sic] nada de inglês,de álgebra, sou uma nolidade [sic] em ortografia, que me resta?

Marie-Thé, a cabeleireira da nossa aldeia – La Colle-sur-Loup–, mais velha do que eu, mas minha amiga desde a infância, confessou-me recentemente que a minha mãe, desabafando e

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abanando-se com um leque debaixo do secador, lhe confiara a suainquietação quanto ao meu futuro, algo aliviada, dizia ela, por terobtido dos meus irmãos a promessa de que tomariam conta demim depois da sua morte e da do meu pai.

Ainda na mesma carta, eu escrevia: «Tiveram três filhos inteli-gentes e estudiosos… e um cábula, um perguiçozo» (sic)… Seguia-seum estudo comparado dos resultados obtidos pelos meus irmãos epor mim e uma vigorosa súplica para que pusessem termo ao mas-sacre, me tirassem da escola e me enviassem «para uma colónia»(família de militares), «para um pequeno logarejo [sic] o únicolugar onde eu seria feliz» (sublinhado duas vezes). O exílio, no fimdo mundo, em suma, à falta de melhor nos sonhos, um projectode fuga à maneira de Bardamu3 no filho de um soldado.

Dez anos mais tarde, a 30 de Setembro de 1969, recebi umacarta do meu pai, endereçada à escola onde exercia há um mês ocargo de professor. Era a minha primeira colocação e a sua pri-meira carta dirigida ao filho que conseguiu ser alguém. Tivera altado hospital, falava-me da doçura da convalescença, dos lentos pas-seios com o nosso cão, dava-me notícias da família, anunciava-meo provável casamento da minha prima em Estocolmo, aludia dis-cretamente a um projecto de romance sobre o qual conversáramosambos (e que eu nunca escrevi), manifestava uma viva curiosidadeem relação às minhas conversas com os meus colegas, aguardava achegada pelo correio de La loge du gouverneur, de Angelo Rinaldipraguejando contra a greve dos carteiros, elogiava Uma Agulha noPalheiro de Salinger e Le Jardin des délices de José Cabanis, descul-pava a minha mãe por não me escrever («mais cansada do que eu porter tratado de mim»), anunciava que emprestara a roda sobressalentedo nosso 2 CV à minha amiga Fanchon («Bernard teve o gratoprazer de lha mudar»), e mandava-me um abraço garantindo-meque se encontrava em boa forma.

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3 Ferdinand Bardamu – Soldado, médico, aventureiro, personagem criada por Louis Fer-dinand Céline e presente em várias das suas obras. (N. da T.)

Assim como nunca me ameaçara de um futuro calamitosodurante a minha escolaridade, também não fazia a mínima alusãoao meu passado de cábula. Quanto à maior parte dos assuntos, otom era como de costume pudicamente irónico, e não pareciaconsiderar que a minha nova posição de professor merecesse o seuespanto, as suas felicitações, ou alguma preocupação em relaçãoaos meus alunos.

Em suma, o meu pai tal como era, irónico e sensato, desejosode conversar comigo, a uma distância respeitável, sobre a vida quecontinuava.

Tenho à minha frente o envelope da carta.Só hoje reparo num pormenor.Não se limitara a escrever o meu nome, o nome da escola, o da

rua e da cidade…Acrescentara a menção: professor.

Daniel Pennacchioniprofessor na escola…

Professor…Na sua caligrafia tão precisa.Precisei de uma vida inteira para ouvir este grito de alegria…

e este suspiro de alívio.

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