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Mais ciência no zoo

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Pesquisa FAPESP - Ed. 181

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Page 1: Mais ciência no zoo

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Page 3: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 3

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manipulação genética acende proteínas da planta Arabidopsis thaliana, o rato de laboratório do mundo vegetal. a imagem está entre as 21 vencedoras do prêmio britânico Wellcome image awards 2011.

Planta fluorescente

Page 4: Mais ciência no zoo

l8l I MARÇO 2011

SEÇÕES

3 IMAGEM DO MÊS

6 CARTAS

7 CARTA DA EDITORA

8 MEMÓRIA

24 ESTRATÉGIAS

40 LABORATÓRIO

60 SCIELO NOTíCIAS

62 LINHA DE PRODUÇÃO

94 RESENHA

95 LIVROS

96 FiCÇÃO

98 CLASSIFICADOS

WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR

CAPA16 Os zoológicos

reveem seu papelna conservaçãoda vida silvestre

ENTREVISTA10 Maestro Isaac

Karabtchevsky falada ligação históricada música popularcom a erudita e contaque foi a voz queo ensinou a reger

CAPA EDUARDO CESAR

POLíTICA CIENTíFICA E TECNOLÓGICA

30 CIENCIOMETRIAEstudo mostra quepesquisadores daFrança e da Alemanhatambém perdeminfluência quando nãopublicam em inglês

36 INTERNACIONALlZAÇÃOGrupo de EsperCavalheiro, da Unifesp,fomenta colaboraçõesem estudossobre epilepsia

34 USP aparece em15° lugar em volumede publicaçõesno Ranking Leiden,mas impactoainda é restrito

CIÊNCIA

44 GEOFíSICAMedições da forçada gravidade mostramuma Terra deformada

48 ASTROFíSICALevantamento descobre900 novas anãs brancasmagnéticas, umtipo raro de estrela

50 ECOLOGIAUSOda terra afeta adiversidade biológicado solo amazônico

Page 5: Mais ciência no zoo

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IECNOLOGIA HUMA NIDA DES

54 GENÉTICAAncestralidadeeuropeia é disseminadaem quatro regiõesdo Brasil

57 ÉTICAFraude em estudosobre vacinareabre discussãoacerca das práticasde pesquisa

66 EMPREENDEDORISMOIncubadoras investemem criatividadepara impulsionarempresas tecnológicas

78 ANTROPOLOGIADebate colocafundamentos dadisciplina em xeque

86 LITERATURAEstudos revelamnovos rumosda leitura comos e-readers

70 SAÚDETelefone armazenadados do pacientepara visitasdomiciliares

82 EDUCAÇÃOPesquisa reabilitamemorizaçãono ensino

91 MíDIARede da Democracia,formada por trêsgrandes jornais,teve papel naqueda de Jango

74 ODONTOLOGIAAvançam osestudos para usode LEDs contrabactérias e fungos

Page 6: Mais ciência no zoo

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FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO

CELSO LAFER

PRESIDENTE

EDUARDO MOACYR KRIEGERVleE-PRESIDENTE

CONSELHO SUPERIOR

CELSO LAFER, EDUARDO MQACYR KRIEGER. HORÁCIO LAFER PIVA,

HERMAN JACOBUS CORNElIS VQORWALD, MARIA JOSÉ SOARES MENDESGIANNINI, JOSÉ DE SOUZA MARTINS, JOSÉ TADEU JORGE,LUIZ GONZAGA BELlUZZO, SEDI HIRANO, SUELY VILELA SAMPAIO,VAHAN AGOPYAN, YOSHIAKI NAKANO

CONSELHO TÉCNICO-ADt~INISTRATIVO

RICARDO RENZO BRENTANI

DIRETOR PRESIDENTE

CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZDIRETOR CIENTIFICO

JOAQUIM J. DE CAMARGO ENGLER

DIRETOR ADMINISTRATIVO

CONSELHO EDITORIALLUIZ HENRIQUE LOPES DOS SANTOS (COORD[NADOR ClENTfFlCO),CARLOS HENRIQUE DE BRITO CRUZ. CYLON GONÇALVES DA SILVA,FRANCISCO ANTÓNIO BEZERRA COUTINHO, JOAQUIM J. DE CAMARGOENGLER, JOÃO FURTADO, .rost ROBERTO PARRA, Luis AUGUSTOBARBOSA CORTEZ, Luis FERNANDES LOPEZ, MARIE'ANNE VAN SLUYS,MÁRIO JOSt ABDALLA SAAD, PAULA MONTERO, RICARDO RENZOBRENTANI, StRGIO QUEIROZ, WAGNER DO AMARAL, WALTER COLLI

DIRETORA DE REDAÇÃOMARILUCE MOURA

EDITOR CHEFENELDSON MARCOLlN

EDITORES EXECUTIVOSCARLOS HAAG (HUMANIDAD[S), FABRIcIO MARQUES (POLfTlCA),MARCOS DE OLIVEIRA (T[CNOLOGIA), RICARDO ZORZETTO (CltNCIA)

EDITORES ESPECIAISCARLOS FlORAVANTI, MARCOS PIVETTA

EDITORA ASSISTENTEDINORAH ERENO

REVISÃOMÁRCia GUIMARÃES DE ARAÚJO, MARGÓ NEGRO

EDITORA DE ARTELAURA DAVINA E MAYUMI OKUYAMA (COORD[NAÇÃO)

ARTEMARIA CECILIA FEL LI E JÚLlA CHEREM RODRIGUES

FOTÓGRAFOEDUARDO CESAR

EDITORA ON-LlNfMARIA GUIMARÃES

WEBMASTERSOLON MACEDONIA SOARES

COLABORADORESANA LIMA, ANDRt SERRADAS (BANCO D[ DADOS), DANIELLE MACIELCARLA RODRIGUES, CATARINA BESSELL, DIANA TAVARES, ESTEVANPELLI, EVANILDO DA SILVEIRA, FERNANDA POMPEU, GABRIEL BITAR,ISABEL FALLElROS, MÁRCIO FERRARI, MARCOS FLAMINIO, MATEUSACIOLl, NELSON PROVAZI, PEDRO HAMDAN, TATlANA NARDI EYURI VASCONCELOS

OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO REFLETEMNECESSARIAMENTE A OPINIÃO DA FAPESP

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIALDE TEXTOS E FOTOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO

PARA FALAR COM A REDAÇÃO(11)3087-4210cartesetaoeso.orPARA ANUNCIAR(11)[email protected]

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PESQUISA FAPESPRUA JOAQUIM ANTUNES, NO 727 - 100 ANDAR, CEP 05415-012PINHEIROS - SÃO PAULO - SP

FAPESPRUA PIO XI, N° 1.500, CEP 05468-901ALTO DA LAPA - SÃO PAULO - SP

SECRETARIA DO ENSINO SUPERIOR

GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

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INSTITUTOVERIFICADORDE CIRCULAÇÃO

6 • MARÇO DE 2011 • PESQUISA FAPESP 181

EMPRESA QUE APOIA A CIÊNCIA BRASILEIRA

BiOLABFARMACÊUTICA

[email protected]

Multiculturalidade

Li com emoção a reportagem intitulada"Ambiente multicultural" (edição 177) egostaria de expressar meus agradecimen-tos ao autor Fabrício Marques. No texto,descreve-se como o Instituto de Física deSão Carlos da Universidade de São Paulovem se destacando pela capacidade deatrair estudantes de pós-graduação doexterior. Fica claro que a incorporação deestudantes estrangeiros tornou-se políti-ca de universidades de reconhecida exce-lência no país. Eu mesma sou argentina,vim para o Brasil em 2004 para cursãro mestrado na Universidade Federalde São Carlos e hoje sou pesquisadorade pós-doutorado nessa universidade.Desde o início tive o apoio das agências(CNPq, Capes e FAPESP). É importantereconhecer que as oportunidades que oBrasil oferece são fundamentais para odesenvolvimento profissional de muitosestrangeiros que, como eu, não as encon-

, tram nos seus países de origem.

CAROLINA ISABEL MINO

Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)São Carlos, SP

Pesquisa interdisciplinar

A reportagem "Equações da vida" (edi-ção 178) é um belo exemplo de pesquisainterdisciplinar exitosa entre as ciênciasda vida e as exatas. A forrnalização de

um código corretor de erro em sequên-cias de DNA certamente vai ter impactonos sistemas de bioinformática atuais,por exemplo, na correção automática deerros de sequenciamento, que hoje temque ser realizada manualmente depoisde inspeção visual, usando softwaresespecíficos. Os pesquisadores que con-duziram a pesquisa estão de parabéns.Gostaria de fazer um comentário sobre afrase «•••uma relação entre certas sequên-cias de DNA com código corretor de er-ros (ECC, sigla de error-correcting code),que são equações matemáticas utilizadasem todo processo digital': Mesmo que otermo "equação" seja genérico o bastantepara se adequar à frase acima, sugere-seque existe apenas um ECC. Na verdade,esses códigos são ferramentas matemá-ticas da teoria da informação e, de fato,existem vários ECCs. Embora não se-ja possível, na reportagem, detalhar ateoria e a prática de ECC, é adequadocomentar, para benefício de profissio-nais de exatas, que os ECCs podem sercontextualizados na teoria da álgebralinear e mais geralmente na teoria dasestruturas algébricas.

CÉSARBRAVO

São Paulo, SP

Cartas para esta revista devem ser enviadas parao e-mail [email protected] ou para a rua JoaquimAntunes, 727 -100 andar - CEP 05415-012 - Pinheiros -São Paulo, SP. As cartas poderão ser resumidaspor motivo de espaço e clareza.

Page 7: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 7

Imagens da ciência

P ara que servem, afinal, os zoológicos? Nem de longe despropositada, ao contrário, muito pertinente em tempos de discussões acirra-

das sobre o tratamento que se deve dispensar aos animais e sobre a propriedade ou impropriedade de agrupá-los em espaços urbanos, a pergunta estrutura a partir da página 16 a reportagem de capa desta edição de Pesquisa FaPesP, a cargo de nosso editor especial Carlos Fioravanti. E permite que gradualmente ele vá revelando em que medida os zoos são hoje parques de diver-sões, conservatórios de animais silvestres ou laboratórios vivos para a pesquisa zoológica. É certo que nos acostumamos a pensar por longo tempo o zoológico como o lugar onde crianças vão conhecer ao vivo leões, girafas, lobos e ursos, vão ter, em suma, algum contato seguro com a vida selvagem – ponto. E cristalizamos esse olhar. Se ainda faz algum sentido, ele, entretanto, já não é suficiente.

No percurso em que se mostra por que assim é, ganha status de questão relevante a inexistên-cia de equipes científicas próprias em qualquer dos 129 zoos existentes no país, dos quais só 45 devidamente registrados no Ibama, situação bem diversa da que se constata nas instituições simila-res de, por exemplo, Nova York, Washington ou Berlim. O fato é que até o presente os zoológi-cos brasileiros têm servido de laboratório para grupos externos de pesquisa, ainda que deles dependam em parte a aprovação dos projetos e o acesso aos animais. E não é exatamente desprezí-vel sua contribuição nesse sentido: vasculhando as fontes possíveis de informação, um diretor do zoológico de São Paulo encontrou cerca de 1.100 publicações acadêmicas produzidas ali por pesquisadores externos num período de 50 anos. Ressalte-se que se trata do maior zoo do país, ho-je com um acervo aproximado de 3.100 animais e média anual de 2,5 milhões de visitantes, crianças em sua maioria. Vale a pena entrar nesse mundo cheio de ambiguidades dos zoológicos.

Gostaria de destacar também nesta edição reportagem elaborada pelo mesmo Carlos Fio-ravanti sobre pesquisa, com certa vocação para a polêmica, a respeito de como a agora bem me-dida força gravitacional, ou seja, a nossa velha

conhecida gravidade newtoniana, deforma a bela esfera que é a Terra vista do espaço. Altos e baixos na superfície oceânica, por exemplo, dado que esta se ajusta de acordo com o campo de gravidade a cada instante, recomendariam que se admitisse que o famoso nível do mar nem existe. Sugiro ver essa história inteira a partir da página 44.

Por fim vou aproveitar o pretexto do prê-mio britânico Wellcome Image Awards 2011, do qual escolhemos uma das fotos vencedoras para figurar em nossa página 3, sempre destinada à Imagem do Mês, para observar o quanto ainda é pobre nosso acervo de imagens fotográficas relativas à produção científica brasileira – e nos-so, neste caso, refere-se ao país. Nesta edição, as ilustrações superam com larga vantagem as fotografias, dada a dificuldade que tivemos para obter boas, belas e pertinentes imagens fotográfi-cas que dialogassem a contento com os textos. E não se trata só de macrofotografia de complexas experiências científicas. No exemplo para mim mais espantoso, não conseguíamos fotos de bra-sileiros pretos e pardos (uso a nomenclatura do IBGE) com olhos verdes ou azuis para ilustrar a reportagem escrita por nossa editora da revis-ta on-line, Maria Guimarães, sobre a pesquisa do geneticista Sergio Pena, segundo a qual esses grupos populacionais no Brasil têm pelo menos 60% de ancestralidade europeia em seu material genético. A cor dos olhos era, em minha avalia-ção, justamente um elemento que sintetizaria plasticamente a constatação do estudo. “Como não?,” eu perguntava inconformada, se passei pelo menos três décadas de minha vida (em Salvador) vendo diariamente pessoas com essas características! Recorri aos acervos de conhecidos e respeitados fotógrafos baianos e as dificulda-des continuaram. Famosos, como a poetisa Elisa Lucinda, sim, seus lindos rostos de pele escura e olhos claros estão registrados, mas não é fácil encontrar as fotos dos anônimos. Achamos uma e vale a pena conferir entre as páginas 54 e 56. É possível que eu receba reclamações de meus amigos fotógrafos, mas insisto que o registro fo-tográfico da ciência brasileira (às vezes da cultura também) ainda engatinha. Boa leitura!

Mariluce Moura - Diretora de Redação

carta da editora

Page 8: Mais ciência no zoo

8 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Em 1911 Marie Curie ganhou o Prêmio Nobel de Química pelos trabalhos sobre radioatividade – nome proposto por ela em 1898 –, pela descoberta dos elementos polônio e rádio e por ter isolado o rádio. Foi a sua segunda láurea. A primeira ocorreu em 1903, quando recebeu o Nobel de Física junto com

o marido Pierre e Henri Becquerel, pelos estudos sobre radioatividade espontânea. Madame Curie foi pioneira em muitas outras frentes. É até hoje a única pessoa a receber duas vezes o Nobel em áreas diferentes da ciência. Foi a primeira mulher doutora em ciências físicas, a primeira professora universitária da França e coordenadora de um laboratório no país e a primeira a ganhar uma cátedra na Universidade de Sorbonne. “Suas descobertas inquestionáveis transformaram duas áreas, a física e a química”, observa o físico Vanderlei Salvador Bagnato, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), de São Carlos.

Os 100 anos do segundo Nobel de Marie Curie entrarão no rol das comemorações de 2011, escolhido pelas Nações Unidas como o Ano Internacional da Química (ver Pesquisa FAPESP nº 180) – este mês, em 8 de março, se comemora também o Dia Internacional da Mulher. Há décadas a cientista simboliza o sucesso e a competência feminina em áreas com grande predominância masculina, como a química e a física.

A subversão do gênero

Há 100 anos, marie Curie ganhava seu segundo Prêmio Nobel, o de Química

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Marie e Pierre trabalhando no laboratório

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 9

Suas lutas e tropeços, no entanto, são um pouco menos conhecidos.

Madame Curie (1867- 1934) nasceu em Varsóvia, capital da Polônia então ocupada pela Rússia, como Maria Sklodowska. Completou os estudos do ensino médio e frequentou centros clandestinos de ensino para mulheres, uma vez que os russos só admitiam homens nas universidades. Maria queria continuar estudando e ambicionava um doutorado. Em 1891 partiu para Paris e foi aceita na Universidade de Sorbonne onde se graduou em física e matemática. No período, conheceu e casou com o físico Pierre Curie em 1895. Virou, então, Marie Curie.

Em busca de um tema de pesquisa, Marie optou pelos raios recém-descobertos pelo francês Henri Becquerel. Estudioso das substâncias fosforescentes e fluorescentes, ele queria verificar se elas emitiam raios X, descobertos em 1895 pelo alemão Wilhelm Röntgen. Ao utilizar urânio, o francês viu que o elemento emitia radiação, mas diferente dos raios X. No final de 1897, Marie tentou descobrir outros materiais que emitissem o mesmo tipo de radiação do urânio. Na Alemanha, G. C. Smith teve a mesma ideia. Já em abril de 1898 os dois relataram que o tório também emitia radiação semelhante. Marie, porém, notou que dois minerais de urânio, a pechblenda e a calcolita, eram mais ativos do que o próprio urânio. A partir daí ela predisse a existência

Edição francesa, de 1914 (esq.), e a primeira edição em português, de 1911

para fazer a Academia Sueca incluir Marie na premiação.

“Marie Curie era tão capaz como qualquer outro cientista importante, mas, por ser mulher, foi colocada na borda do centro da ciência daquele período”, diz o antropólogo Gabriel Pugliese, da Escola de Sociologia e Política, que estudou o assunto com orientação de Lilia Moritz Schwarcz, da USP. “Os prêmios não apagam uma trajetória cheia de dificuldades.” Quando voltou de Estocolmo depois de ter recebido o Nobel de 1911, Marie encontrou sua casa em Paris apedrejada. Motivo: os jornais haviam divulgado um caso amoroso dela – que já era viúva havia cinco anos – com um colega francês casado, com quatro filhos.

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Conferência de Solvay, em 1911: única mulher entre os maiores físicos da época

Laboratório dos Curie, onde foram descobertos o polônio e o rádio

École de Physique et Chimie Industrielle, sem nenhuma estrutura. O lugar só era conveniente por estar próximo da residência, o que permitia a ela cuidar da casa e da filha e trabalhar no laboratório. Marie sempre realizou suas pesquisas com apoio e colaboração de Pierre tanto na parte científica como para ser levada a sério pela comunidade de cientistas. O primeiro Nobel, por exemplo, era para ser dado apenas para Pierre e Becquerel. Foi preciso a mobilização de Pierre

de dois novos elementos: o polônio, em homenagem à Polônia, e o rádio, por ser o mais radioativo dos materiais analisados por ela. Na mesma ocasião em que divulgou suas descobertas, em 1898, ela chamou a atenção para o fato de o urânio e o tório serem elementos de maior peso atômico.

Marie e Pierre trabalharam por anos em um galpão cedido pela

Page 10: Mais ciência no zoo

10 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Isaac Karabtchevsky

O som do gesto

maestro fala da ligação histórica da música popular com a erudita e conta que foi a voz que o ensinou a reger

Foi um professor que mudou a sua vida. O maestro Isaac Karabtchevsky era então um jovem de 21 anos que estudava no Colégio Mackenzie. Em meio a uma aula de história, ele preferia viajar para outras dimensões com exercícios de contra­ponto. O professor percebeu, pôs a mão em seu ombro e disse: “Karabtchevsky, seu lugar não é

aqui”. O aluno olhou, agradeceu e nunca mais voltou, passando a se dedicar ao estudo da música em tempo integral na Escola Livre de Música de Koelreutter. Hoje ele acaba de assumir, como diretor artístico do Instituto Baccarelli, um projeto acadêmico e social que oferece educação musical para 1,2 mil crianças carentes em 17 grupos corais e quatro orquestras, entre elas a Sinfônica de Heliópolis – a maior favela de São Paulo –, que acaba de retornar de uma turnê pela Europa, onde tocou Bee­thoven na cidade natal do compositor. Desde 2000, ele também é o professor de regência do Curso de Regência de Lago del Garda, onde dá aulas para alunos vindos de todas as partes do mundo para estudar com ele.

Após uma passagem pelo movimento sionista, ele, como diz, “em vez de um partido político acabei fun­dando, em 1955, um coro”, o Madrigal Renascentista, em Belo Horizonte, um dos conjuntos de canto coral mais celebrados que o país já teve. Apaixonado pela regência, ganhou uma bolsa do governo alemão para estudar em Freiburg. De volta ao país, em 1969 assumiu a direção da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB), então em franca decadência pela falta crescente de público. “Havia, com a ditadura militar, um vazio do contato do jovem com a música e então nos ocorreu a ideia de fazer um mo­vimento de cunho popular para recuperar o que havia sido marginalizado pelo regime: o acesso ao ensino hu­manístico.” Nasceram os Concertos para a Juventude, os Concertos Internacionais (na TV Globo) e o Projeto Aquarius, que reunia multidões para concertos abertos na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. A OSB de Karabtchevsky teve a ousadia de juntar­se com Chico Buarque no palco do Municipal e foi um escândalo. Mais tarde, o regente insistiria na fórmula ao lado de nomes como Tom Jobim, Cazuza, Caetano Veloso, entre outros.

Carlos Haag

entrevista

Page 11: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 11

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12 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

E, em vez de política, o senhor criou ■num coral.

Isso. A voz realmente é o instrumen­ —to mais perfeito, mais completo, e os instrumentos que usamos em orquestra nada mais fazem do que tentar repro­duzir as nuances, os detalhes, as cores que a voz consegue, sem possibilidade de confronto, reproduzir. A voz é um instrumento absolutamente perfeito. Foi a voz que me ensinou música, a re­ger. Acho que um regente deve respirar com a orquestra, deve cantar. E a sua técnica, o seu gestual, deve transmitir, deve plasmar essa sonoridade que pro­vém do canto.

Como o regente cria a magia da música? ■nEle não cria nada. Para mim, há duas —

referências psicológicas que me ajuda­ram a pensar o que é ser um maestro. Um é texto do Freud que evoca a figura do líder, do indivíduo perante a massa. Evidente que ele estava se referindo a um período conturbado da política da Europa, estava pensando na figura de ditadores que se mantêm no poder, o indivíduo perante a massa. Mas se você tirar o ditador e a conotação política e transformar o indivíduo em maestro e a massa em orquestra, são mais ou me­nos os mesmos problemas. O maestro se identifica com a figura do pai. E aí entre Lacan, que usou aquela famosa frase: “Le problème c’est toujours le pè-re”. O regente pode também adquirir as feições do patrão, e aí existe essa re­lação patrão­empregado; ou ele pode ser simplesmente uma figura que faz parte da comunidade. Essa figura eu prefiro, que se afina com o todo e não cria hiatos e barreiras que levam inevi­tavelmente a uma ruptura. Foi a partir dessas leituras que decidi fazer análise. Porque a relação de maestro, enquan­to indivíduo, figura humana, isolado, confrontado diariamente com mais de 100 músicos, leva inevitavelmente a um confronto, qualquer que seja. Se você não tiver instrumentos e mecanismos que possam dialogar, aferir exatamen­te quais são os pontos de tensão, isso pode levar a rupturas inevitáveis entre maestros e orquestras.

Não é, como se diz, a “única ditadura ■nque dá certo”?

Eu não usaria o termo ditadura —numa relação humana em que o ele­

Foram 26 anos à frente da OSB. “Os maestros mais puristas insistiam na coisa do cada macaco no seu galho, dizendo que os estilos deveriam ser totalmente separados.” O compositor Marlos Nobre chegou a criar uma pará­frase de uma música popular para agre­dir o maestro: “Karabichê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Karabichê precisava/ É de uma boa lambada”. “Tu­do o que eu fiz foi para salvar a OSB da derrocada financeira, mas muita gente não quis entender isso”, lembra.

Após duas temporadas como dire­tor artístico do Teatro Municipal de São Paulo, o regente, em 1988, passou a ser o maestro da Tonkünstler, de Viena, e, em 1994, assumiu a Orquestra do La Fenice, em Veneza, até que ocorreu o incêndio que devastou o teatro. Hoje Karabtchevsky divide seu tempo entre Heliópolis, Rio de Janeiro (onde é o ti­tular da Orquestra Petrobras Sinfônica) e Nantes (diretor da Orchestre National des Pays de la Loire).

Quando começou a sua música?■nAcho que o fator decisivo foi ter —

crescido ouvindo minha mãe cantar. Ela era cantora de ópera. Então, ao ou­vi­la cantar, direta e indiretamente en­trei em contato com a respiração, com o pulsar e com esse amor à melodia, amor ao canto. Acho que foi a partir desse momento que comecei a vislumbrar a possibilidade de me dedicar à regência de coro. Aos 12 anos comecei a pensar em regência. Eu estudava em São Pau­

lo, no Liceu Pasteur, e o professor de música me fez reger o coro. Eu, sem saber absolutamente nada. Eu mexia as mãos e pensava que, com isso, surgiria automaticamente o som. Esse foi um momento decisivo.

Como dividir a música com a política?■nQuando entrei no movimento sio­ —

nista, não entrei por nenhuma mo­tivação política. Era um movimento social, eles se reuniam em minha casa e eu automaticamente participava das reuniões. Li os grandes socialistas, li Marx, Sartre e comecei a me inteirar do problema do sionismo e do problema judeu. Foi progressiva e lentamente que comecei a adquirir a consciência polí­tica mais ligada à própria formação de identidade do povo judaico espalhado pelo mundo do que propriamente uma aspiração política. O envolvimento po­lítico, ligado ao socialismo, viria mais tarde e a partir daí fiz um treinamento aqui em Jundiaí, São Paulo, onde morei numa comunidade agrícola durante um ano. Era um kibutz. Era uma prévia on­de aprendíamos a trabalhar a terra, que não é bem uma característica do povo judeu, e a inverter os valores, a começar a adquirir consciência da necessidade de criar raízes na própria terra. Mas eu sabia que aquilo não ia dar certo. Nessa época já começava a estudar piano e já começava a ter aulas na Escola Livre de Música. O compromisso com a música foi de certa maneira uma ruptura com o movimento estudantil.

Page 13: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 13

mento primordial é a música. A mú­sica não admite esse tipo de ditadura. Você dialoga, tenta obter uma concep­ção que seja mais ou menos unitária e seja compartilhada pela maioria da orquestra. Cada um tem sua cabeça, cada um pensa do seu jeito e o grande mistério – e aí respondo àquela per­gunta inicial – é como você consegue persuadir, convencer a todos de que sua versão é compatível com aquilo que eles pensam. Nesse ponto é que surgem os grandes regentes e a magia que se cria é ser respeitado e admirado pelo todo. Cada maestro carrega uma aura. O importante é dividir isso com o gru­po. Vou dar um exemplo. Quando fui regente em Viena convidei o primeiro clarinete da Filarmônica de Berlim pa­ra tocar e conversamos sobre como era a relação entre os músicos e o regente deles, Claudio Abbado. Ele me disse: “É muito complicada, porque estamos tentando convencê­lo de como nós tocamos Brahms”. Num grupo como aquele é possível falar com o Abbado ou com o Karajan sobre interpretação musical. Acho legítimo, desde que ve­nha de um grupo com esses antece­dentes gloriosos.

É possível enganar o público com ges-■ntos vazios?

Se o público aceita, ótimo para ele. —Há uma falsa ideia de que o gesto quan­to mais bonito, melhor, e se funciona com o público serve para a orquestra, isso é uma mentira. Os gestos só são autênticos quando são impregnados de conteúdo musical. Aqueles que são feitos para a plateia não funcionam. A orquestra percebe e não se deixa enga­nar, sabe perfeitamente que há gestos dirigidos a eles e outros para o público. Por melhor e mais belo que seja o gesto do maestro, se isso não corresponde a uma verdade musical, a plateia se desinteressa. Pode até se entusiasmar pelo gestual em si, mas é uma relação completamente vazia, não conduz a nada se não há uma reciprocidade da orquestra. E quando a orquestra toca sem emoção, o público sente.

Como funciona o gesto na regência?■nÉ o ponto nevrálgico de nossa ati­ —

vidade: “Como estabelecer um gestual compatível com o conteúdo musical?”. Você, com o passar dos anos, cada vez

se interioriza mais. Cada ano que passa traz para mim uma redução da am­plitude do gesto e uma concentração naquilo que é absolutamente funda­mental. Acho que é esse o ideal que todos os regentes procuram. Porque à medida que você envelhece, esse pro­blema se torna muito mais evidente. Até porque você não tem a força que tinha com 20 ou 25 anos, então você reduz o gesto à proporção justa, e a partir daí a música passa a ser fruto de um processo consciente, não de­magógico. Se você vir antigos filmes com Karajan regendo perceberá co­mo ele fica cada vez mais econômico e consegue expressar o máximo com o mínimo, com um olhar. Há também uma gravação do compositor Richard Strauss, pouco antes de morrer, regen­do a sua ópera O cavaleiro da rosa. E era impressionante, quando você olhava a concentração dos músicos, a fascinação e a personalidade que o Strauss exercia sobre eles e a falta completa de gestos, havia praticamente uma imobilidade gestual. Strauss era uma coisa de ar­repiar, emocionante, e ele conseguia induzir os músicos à coesão através dos mínimos gestos. Esse é um sonho dos bons maestros. Todo regente tem a sua lixeira, e é nela que joga os gestos que não usa mais. De vez em quando você recolhe dessa caixa alguns movimen­

tos que são efetivos num determinado momento. Usa e depois joga de volta à caixa de lixo.

É possível reger uma obra por anos e ■nainda achar coisas novas para revelar sobre ela?

Ouça os vários ciclos das sinfonias —de Beethoven com Karajan e verá co­mo ele consegue criar dois mundos totalmente diferentes em cada fase da sua vida. Ou seja, não há regras que imponham um determinado crité­rio de interpretação não passível de mudanças, às vezes até de profundas mudanças. O exemplo das sinfonias de Beethoven e Karajan é que, de acordo com as fases da vida do maestro, elas foram submetidas a várias visões, a várias formas de pensar, às vezes um pequeno detalhe que valoriza o todo. É a soma desses detalhes que faz com que a regência seja diferente numa de­terminada fase de outra, em que ele não tinha observado esses detalhes. No meu caso, eu sempre estudo. Mes­mo as obras que já regi mil vezes não paro de estudar. E nas minhas partitu­ras têm sempre uma marcação e anoto o ano em que ela foi formulada para que depois, numa reavaliação dessas partituras, eu possa confrontar, “há 15 anos eu pensava assim, hoje penso completamente diferente”. Porque acho que esse é o fascínio que uma partitu­ra musical exerce sobre o intérprete. O intérprete está sujeito a um constan­te processo de renovação e ainda bem que é assim. A música é algo muito di­ferente da fala. Você pode dizer uma frase musical de mil formas diversas e o andamento que você dá a essa frase também pode ser diferenciado. Se você disser algo para alguém muito rápido, corre o risco de não ser entendido. Mas na música isso é possível. Você pode criar andamentos de acordo com a ma­neira que você sente a música, mesmo que não esteja seguindo as recomen­dações todas do compositor.

Temos hoje grandes regentes, mas ■npoucos grandes compositores. Vivemos numa era em que a reprodução supera a criação?

Sim, sem dúvida. Acho que real­ —mente vivemos ondas: o mundo é as­sim, há épocas de maior calor, confu­são com o tempo, não se entende mais

Foi a voz que me ensinou música, me ensinou a reger. acho que um regente deve respirar com a orquestra, deve cantar

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nada, muita neve na Europa, muito calor e inundação aqui na América Latina. Acho que o universo cultural é movido por essas forças invisíveis que ora fazem surgir de repente uma cons­telação de gênios, como aconteceu em Viena numa determinada época, em que conviviam praticamente em simul­taneidade Beethoven, Mozart, Haydn, Schubert e um pouco mais tarde Schu­mann, Brahms, depois Wagner. Mas, enfim, Viena foi, digamos, uma capital que podia ter o orgulho de concentrar a mais genial constelação de criadores de todos os tempos num determinado período. E nunca mais aconteceu isso. Por quê? Não se sabe. São aquelas fa­mosas ondas. De repente produzem uma cadeia em série de grandes com­positores. Nós hoje não chegamos mais ao mesmo nível que chegou Viena em princípios do século XIX.

Há poucos casos de regentes que com-■npõem. Como entender que alguém tão ligado ao fazer musical não seja capaz de criar?

A composição é um talento. É um —talento irreprimível, esse que te leva a compor. Eu infelizmente não tenho esse talento, mas admiro aqueles que têm essa facilidade de exprimir. Mas acho que a composição é tão absorvente que eu não seria capaz de exercer as duas atividades concomitantemente. E admi­ro, por exemplo, um compositor como Mahler, que era basicamente regente e compunha à beira do lago nos meses de junho e julho, de lá daquela casinha, uma casinha simples, um casebre. Lá ele compunha suas obras­primas. Eu não entendo isso, são gênios. Eu não entendo os gênios.

O senhor é fascinado por Mahler, um ■ncompositor que era obcecado pela morte.

Acho que sim. Ninguém escapa. Ne­ —nhum ser pensante e sensível escapa à confrontação com a finitude. É impos­sível, ao se colocar na posição de intér­prete, que esses sentimentos de algum modo não transpareçam na sua forma de dizer as coisas. E tudo muda. Sim­plesmente muda. Aquela visão que você tinha antes se transforma com o fim do humano. Discuto com meu analista se é uma coisa sensata essa obsessão e ele responde de uma forma lacaniana: “Não, você vai à procura do invisível,

porque a morte é invisível. Vá, pene­tre nela, mergulhe na morte”. O que ele quer dizer? Mergulhe na morte, mer­gulhe na música.

Um concerto é algo efêmero, que não ■nse repete. Como é essa sensação?

Acho que vale aquele momento, —sem nenhuma preocupação de trans­cendência. Valem aqueles minutos em que você consegue a sublimação. Eles se revigoram, se restauram, dão força para procurar outros momentos iguais. Quando é um grande concerto de plenitude, durante o concerto não sei o que acontece. Plenitude é quando faço um bom concerto. Há plenitude só quando você realiza o belo. Quando você tem a consciência de que não foi bom, sai derrotado.

Em quais momentos é preciso respeitar ■no compositor e em quais é melhor trair o compositor?

É sempre bom respeitar o composi­ —tor. Mas, por exemplo, estou começan­do agora um ciclo de gravações com a Osesp das 11 sinfonias de Villa­Lobos. Estudei essas sinfonias, as estou regen­do pela primeira vez e acho que, para uma orquestra brasileira, é a primeira vez que se enfrenta esse desafio de gra­vá­las. As partituras estão sendo sub­metidas pela Osesp a um trabalho de profunda análise e resgate. Elas foram reformuladas a partir dos manuscritos. Mas quando você pensa em sinfonia o que vem à mente de qualquer mú­sico é a forma sonata com seus dois temas, pontes, tensão, exposição, coda etc., aqueles princípios que nasceram no século XVIII e se prolongam até hoje. Mas Villa­Lobos, por exemplo, não era um compositor muito atento à forma sonata. Ele era um compositor rapsódico. Isso, aliás, faz com que para nós, brasileiros, seja importante que uma orquestra brasileira faça esse re­gistro. Afinal, nós temos a consciência da linguagem de Villa­Lobos. Ele era rapsódico e os elementos rapsódicos estão presentes sempre, ainda que se­ja no primeiro tema etc. Mas há que se improvisar, como se improvisa um chorinho, como se improvisa um pre­lúdio de guitarra. Há que se improvi­sar. E o grande desafio dessas sinfonias de Villa­Lobos é achar o momento em que você pode se conceder essa liber­dade. Esse é um bom exemplo em que “trair” a escrita do compositor pode estar a serviço da melhor leitura do que ele desejava.

Ainda há preconceito em unir erudito ■ne popular?

Isso é uma discussão totalmente —superada. Naquela época talvez esti­vesse lutando contra o preconceito, todo um elitismo, um falso elitismo, porque há elementos recíprocos entre a música popular e a música erudita e elas se completam. São vertentes de uma mesma fonte, a fonte universal que é a música, e as vertentes são a música erudita de um lado e a música popular de outro, música caipira de outro... Mas de certa maneira elas se integram. Acho que cada experiência, cada contato mu­sical é válido, desde que ele conduza a uma curiosidade, uma inquietude. Quando estive com a OSB tomei como desafio suprir o vazio cultural com um

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brenome, ocupam uma posição social. É isso que está acontecendo aqui em Heliópolis. Sem a música, não sei o que eles seriam. Havia antes uma falsa visão de pessoas que não acreditam no ser humano. “Ah, pessoal do morro, vamos dar uma rabeca para eles, um pandei­ro, porque pandeiro eles sabem tocar.” Dá um violino. E dá uma escola que tem professores da Osesp e do Teatro Municipal trabalhando com eles. Dá um oboé, uma flauta. Você vai chorar, não há outra reação possível a não ser chorar. As orquestras tradicionais de jovens, em geral, não emocionam. A própria postura, a própria relação delas com a cultura musical é uma relação de absoluta seriedade, nenhum sorriso no lábio. Orquestras como a de Heliópolis estabelecem outro tipo de comunica­ção, mais lúdica, com o público. Eu acho isso fantástico, um movimento de renovação, que provém, sem dúvida, da América Latina e fico muito orgulhoso que provenha da América Latina.

O que o professor Karabtchevsky diz ■na seus alunos?

A primeira coisa que digo a eles é: —“É difícil. A grande qualidade que um regente deve ter é persistência, perseve­rança e obstinação. A confiança no seu talento e procurar essa confrontação diária com uma orquestra”. Até porque dessa confrontação com uma orques­tra é que você consegue plasmar uma sonoridade. Você pratica um determi­nado gesto e espera que desse gesto venha uma correspondência musical. Um jovem regente faz um gesto, não acontece nada.

Como é ter a orquestra como seu ins-■ntrumento?

É o poder do gesto. O gesto é um —instrumento. Você pode fazer isso em relação ao piano também. Basta pres­sionar uma tecla que você consegue um som. Um som fixo. A orquestra é mais ou menos isso, você pressiona uma te­cla. Mas não é isso o essencial.

O que é o essencial?■nO essencial é o que se esconde —

atrás do gesto. Como o essencial pa­ra qualquer músico e regente é o que se esconde atrás das notas musicais, aquilo que está escondido à espera de ser desvendado. n

movimento que fosse ao encontro da necessidade do jovem de ter contato com a música. Sensibilidade é uma só. Se um jovem tem sensibilidade para a música popular, com certeza ele tam­bém vai ter para a música erudita, bas­ta que haja divulgação e oportunidade para ele ser submetido a um confronto com essa música. A sensibilidade não pode ser ceifada, é um fenômeno glo­bal, unitário. Na época era um mistério porque se separavam as duas músicas, já que o brasileiro é altamente musi­cal, sensível a qualquer tipo de música. Eu não vejo nenhuma barreira entre a boa música popular e a boa música erudita e sempre achei que existe um elo de comunicação entre as duas, uma vinculação profunda e até histórica, já que ambas se influenciaram mutua­mente ao longo da história. Acho que cada experiência, cada contato musical é válido, desde que ele conduza a uma curiosidade, uma inquietude. Quan­do fui regente do La Fenice, de Veneza, durante os nove anos em que passei lá quis fazer uma Aída, de Verdi, mas aí o teatro pegou fogo. Exatamente em 1996, quando eu era titular. Pegou fogo e ficou praticamente destruído. Eu e minha mulher estávamos em Varsó­via, e vi tudo pela televisão. Mas como a atividade musical não para, quando chegamos a Veneza o prefeito da cidade tinha mandado construir um tendone, um grande circo, com ar condiciona­do, calefação, camarins, com telefone, com tudo. Você jurava que estava num teatro. Fizemos toda a temporada, in­clusive todas as sinfonias de Mahler dentro desse tendone. E ainda assim foi um período fértil em que tinha ópera numa noite, concerto sinfônico na ou­tra. Foi o período mais fértil da minha vida. Eu me lembro que estava regendo o Rigoletto, de Verdi, em que há uma ce­na famosa de tempestade e exatamente nesse momento caiu uma tempestade imensa naquela lona. O diretor falou para mim: “Foi a ópera mais realista que eu já vi até hoje”. A tempestade era virtual, era visível, complementava a cena, foi algo fantástico e mostrou o poder da música.

A partir de experiências como essa, ■ncomo o senhor vê a experiência de reger os jovens da favela de Heliópolis?

O que vi me deixou fascinado. Vo­ —

cê não precisa prospectar talentos, eles estão ali na sua frente. Aqui, você não prospecta talentos como prospecta pe­tróleo. Os verdadeiros talentos brasi­leiros estão nas superfícies, em lugares insuspeitados. É fascinante o que vi em Heliópolis, aqueles meninos ensaian­do a segunda sinfonia de Mahler. Esses meninos que provêm de um universo totalmente descompassado com a elite brasileira. Como eles conseguem sen­tir essa música e lutar para criar com tanta qualidade? Donde você chega à conclusão de que a música é um fenô­meno tão absorvente que ela invade o corpo humano desde a mais tenra ida­de. Ela nos invade, independentemente da condição, da classe social, se você tem intelecto ou não tem intelecto; ela invade, se propaga pelas nossas saídas nervosas e consegue estabelecer um princípio e interesse de comunicação da arte. Acho que é mais importante você começar com música do que começar com outra arte, que exige um preparo intelectual. A música é tão forte que ela está condicionada a nossa pulsação, ela nasce com o bater do coração, o pulsar do coração. E essa pulsação é perma­nente. Eles todos são provenientes de condições sociais totalmente precárias e é através da música que estão adquirin­do a identidade, a consciência do eu. E a partir do momento que têm um violino na mão, sentam diante da estante de música e tocam, eles já têm nome e so­

a música é tão forte que ela está condicionada a nossa pulsação, ela nasce com o bater do coração

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capa

os zoológicos reveem seu papel na conservação da vida silvestre

Carlos Fioravanti

fotos Eduardo Cesar

capa

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Muitas espécies de animais hoje em vida livre passaram por zoológi-cos. O mico-leão-dourado, o con-dor americano, o condor andino, uma espécie de cervo da Oceania e outra de cavalo da Polônia, o diabo-da-tasmânia e o panda já

estiveram em perigo iminente de extinção, foram levados para zoológicos, conseguiram se reproduzir e voltaram à vida livre. A ararinha-azul não foi mais vista nas matas, mas vive em zoológicos do Brasil. O rinoceronte-branco, chimpanzés e lobos já estariam extintos se não estivessem em cativeiro.

“Para muitas espécies, o zoológico é a última fron-teira”, diz José Luiz Catão Dias, professor da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de São Paulo e ex-diretor técnico-científico do zoológico de São Paulo, o maior do Brasil, com um acervo de cerca de 3.100 animais, visitado anualmente por 2,5 milhões de pessoas, a maioria crianças. Os zoológicos participam

há anos do esforço para conservar animais silvestres, embora não consigam acompanhar o ritmo em que seus ambientes naturais se perdem: dos estimados 2 milhões de espécies de seres vivos no mundo, 150 tipos únicos de organismos são extintos diariamente. Agora intensificam a colaboração com outras instituições para ampliar a pesquisa científica que possa beneficiar tanto os animais quanto os seres humanos.

Dentro de cochos de alvenaria com a frente de madeira pintada de verde, em um pátio cercado por mata atlântica, uma mistura de folhas, galhos e troncos de árvores triturados, serragem, um lo-do rico em microalgas resultante do tratamento da água dos lagos, dejetos e carcaças dos animais se decompõe durante 90 dias, antes de ser usada como adubo nas plantações e jardins do zoológico paulista-no. Em meio ao material de compostagem, uma equi-pe da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) encontrou quase 400 espécies de microrganismos de interesse biotecnológico, por produzirem enzimas

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que podem facilitar o desenvolvimen-to de novos antibióticos, produtos de uso amplo como sabões em pó ou com-bustíveis derivados da cana-de-açúcar. Se as pesquisas correrem bem, vários microrganismos podem ganhar uma aplicação ambiental, por digerirem compostos poluentes como fenóis e hidrocarbonetos.

Em outra vertente, Fernando Soares, pesquisador do Hospital do Câncer AC Camargo e coordenador do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) do Câncer financiado pela FAPESP, conhe-ceu em dezembro a coleção de lâminas e blocos de parafinas com amostras de órgãos e tecidos de animais necropsia-dos desde 1958 – e gostou muito. “É um material intocado, que abre imen-sas oportunidades de pesquisa”, disse. “Queremos começar a trabalhar assim que possível, oferecendo nossa experiên-cia de 13 anos do banco de tumores do Hospital do Câncer, para formar um banco de tumores dos animais.” Um dos animais que tinha sido necropsiado ha-via pouco tempo quando Soares estava lá era um tamanduá com um câncer de fígado – tumores são bastante comuns,

já que os animais em cativeiro vivem mais do que em vida livre. Outro era um orangotango obeso com uma severa aterosclerose, causada pelo acúmulo de gorduras de origem animal nas paredes dos vasos sanguíneos. Algo intrigante, porque orangotangos são herbívoros.

N ormalmente, os zoológicos aprovam os projetos de pesqui-sa e o acesso aos animais, mas

raramente veem os resultados finais. Para dimensionar essa contribuição à produção de conhecimento, o atual di-retor técnico-científico do zoológico de São Paulo, João Batista da Cruz, conta que vasculhou as fontes possíveis de informações e encontrou cerca de 1.100 publicações acadêmicas (artigos cientí-ficos, teses ou dissertações) elaboradas por grupos externos de pesquisadores nos últimos 50 anos.

Como quase nunca têm equipes científicas próprias, diferentemente das instituições equivalentes em Nova York, Washington ou Berlim, os zoológicos daqui dependem das iniciativas, dos in-teresses e das equipes de outras institui-ções. Luiz Antônio da Silva Pires, pre-sidente da Sociedade de Zoológicos do Brasil (SZB), diretor do zoo de Bauru e professor da Universidade de Marília, ajudou a aprovar cerca de 150 trabalhos para serem apresentados no próximo congresso dos zoológicos, marcado pa-ra o final de março em Gramado, no Rio Grande do Sul – quase todos de universidades. É provável que os zoo-lógicos brasileiros consigam produzir mais e mais rapidamente quando não forem apenas fornecedores de animais ou de materiais, mas também tiverem equipes próprias de pesquisadores.

Agora, ao acompanharem de perto as novas pesquisas, os diretores do zoo-lógico de São Paulo procuram desfazer a imagem de que um zoológico é apenas um lugar para expor animais que nem sempre teriam o merecido conforto. Os zoológicos estão revendo seu papel, em resposta a pressões de grupos de pro-teção de animais, órgãos de governo e visitantes, que esperam ver os animais em cativeiro sendo bem tratados.

Em novembro de 2010, em um dos lances mais recentes de contestação aos zoológicos, um grupo de organizações não governamentais pediu judicial-mente, por meio de um habeas corpus,

Estabelecimento de um laboratório de microbiologia aplicada no parque zoológico de São Paulo: identificação e isolamento de microrganismos que produzam enzimas e seus inibidores – nº 2009/52030-5

modAlIdAdE

Linha regular de auxílio a Projeto de Pesquisa

Co or dE nA dor

Luiz Juliano Neto – Unifesp

InvEStImEnto

r$ 1.046.124,23 (FaPESP)

O prOjetO

Rinoceronte- -branco, ameaçado de extinção

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a transferência para espaços mais am-plos de um chimpanzé mantido em um zoológico de Niterói, alegando que o animal estava deprimido. Um juiz do Rio de Janeiro negou o habeas corpus.

À frente desse movimento, o cubano Pedro Ynterian, presidente do Projeto dos Grandes Primatas (GAP), diz que não desistirá: “Vamos até o Supremo Tribunal e queremos que os juízes se pronunciem, determinando se um pri-mata é um sujeito, portanto com direi-tos, ou um objeto como um carro. Os primatas são só os primeiros, porque queremos que outros animais, como os golfinhos, muito parecidos em inteli-gência com os seres humanos, também sejam reconhecidos como sujeitos”.

Ynterian divide o tempo entre sua empresa de microbiologia na cidade de São Paulo e o GAP, em Sorocaba, inte-rior paulista. Ali, segundo ele, vivem 50 chimpanzés, a maioria vinda de circos e zoológicos, em espaços amplos, fecha-dos para visitação pública. Com base nessa experiência, ele diz: “Em geral os zoológicos do Brasil, do modo como são administrados, são depósitos de animais que nunca vão sair de lá. Os animais não representam as espécies de vida livre, estão todos estressados e se acomodam em espaços pequenos e inapropriados, alguns com problemas mentais, expres-sos nos movimentos repetitivos. O que as crianças veem é uma caricatura do que se passa na natureza”.

S egundo ele, seria mais provei-toso assistir a documentários que mostram chimpanzés em

movimento na mata. “Eles são inteli-gentes e sofrem muito com o assédio do público. Se os zoológicos não têm condições de fazer recintos grandes, para eles terem privacidade, é melhor não ter nada. Não quero fechar zooló-gicos, nem desempregar ninguém, mas mudar o propósito dos zoológicos, que deveriam ser centro de conservação, fe-chados à visitação.”

Catão Dias discorda. “Os zoológicos são janelas de conscientização do mun-do. Quando as crianças veem animais da Amazônia ou do cerrado, enxergam melhor a importância de conservar as espécies animais e os ambientes em que originalmente viveram.” Segundo ele, os zoológicos poderiam ir muito além se valorizassem também as culturas hu-

manas ligadas a cada espécie animal. “No zoológico de Buenos Aires, as pa-redes dos recintos dos leopardos-das- -neves estão decoradas com desenhos do Nepal, já que esses animais vieram do Himalaia, e grupos budistas às vezes aparecem para realizar uma cerimônia de adoração do leopardo”, diz ele.

Catão Dias conta que em janeiro de 2005 ele assistiu em Buenos Aires aos representantes do povo mapuche homenagear os condores, que são seus mensageiros diante das divindades, mantidos cativos. Depois, ele partici-pou da soltura dos condores em uma península do sul da Argentina. As penas que caíam eram recolhidas e entregues a um xamã, que as abençoava e depois as soltava ao vento. Ele ganhou uma pe-na e a pôs em um quadro que mantém em frente à sua mesa de trabalho. “Seria

Zoológico

de Buenos

Aires Valoriza

As tradições

dos povos

dos lugares

em que os

animais viviam

Viveiro de aves no zoo de São Paulo

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20 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

fantástico fazer esses resgates culturais com nossos bichos, usando as tradições dos povos indígenas, como os guaranis com o lobo-guará e a onça”, diz.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Na-turais Renováveis (Ibama) está

contribuindo para a modernização dos zoológicos mostrando mais rigor na fiscalização: nos últimos anos, fechou totalmente ou apenas para visitação uma dezena de instituições que não tinham equipes, condições sanitárias nem infraestruturas adequadas. “Os zoológicos não eram obrigados a ter sequer um técnico para cuidar dos ani-mais, mas hoje têm de ter no mínimo um médico veterinário e um biólogo”, observa Pires. “Não há mais como jus-tificar a manutenção de um animal em cativeiro se não estiver em plenitude de saúde física e psicológica.” Ainda assim há muito por fazer. Das 129 instituições

ligadas à SZB, apenas 45 estão registra-das no Ibama.

Manter animais em cativeiro é um hábito antigo. Há 5 mil anos os faraós já colecionavam hienas, macacos, leo-pardos, girafas e aves. Os imperadores chineses e romanos e mais tarde os reis europeus também gostavam de expor animais exóticos, que atestavam como eram vastos seus domínios. No Brasil, as primeiras coleções tomaram forma no Museu Emílio Goeldi, em Belém do Pará, em 1882, e depois no Rio de Janeiro, Curitiba, São Paulo e outras cidades, mais intensamente a partir dos anos 1970. Agora, procurando se renovar, os zoológicos brasileiros di-versificam as coleções, hoje de cerca de 40 mil animais do Brasil ou de outros países, incluindo os peixes, normal-mente pouco lembrados por quem sai no domingo de sol para ver leões e girafas. “Aquário também é zoológico”, afirma Pires.

Segundo Catão Dias, os zoológicos tendem a ter menos animais, mas todos eles com mais qualidade de vida. Ele conta que em 2001, ao assumir a di-retoria técnico-científica do zoológico paulistano, viviam ali cerca de 4.600 animais. Com base em um planeja-mento sobre espécies prioritárias para conservação e em informações sobre o estado de saúde, idade e abundância dos animais, começou um controle da procriação, por meio de esterilização ou vasectomia, e o total caiu para 3.100 em 2007, quando ele deixou o cargo. “Em seis anos, reduzimos à metade o número de grandes carnívoros, como leão, onça e suçuarana, cuja população era muito grande, sem prejuízo para a conservação dessas espécies.”

Outra decisão: “Desde 2001 não aceitamos mais animais provenientes de apreensão ou de doações”, diz Paulo Magalhães Bressan, diretor presidente do zoológico de São Paulo. “Não há mais espaço. Ainda temos um longo caminho a trilhar, mas a imagem de zoológicos como depósitos de animais é equivocada. Os zoológicos já foram assim, mas não são mais.” Tanto quanto a redução da população de animais, a pesquisa científica costumava correr em silêncio. Raramente se acompanha-va de perto uma pesquisa, como está acontecendo com a busca de microrga-nismos no material em decomposição nos fundos do zoo de São Paulo.

Esse trabalho começou de modo inusual: com uma mala perdida no ae-roporto de Chicago. A bagagem vinha do Japão, com amostras de microrga-nismos extraídos de fezes de animais de zoológicos. Kohei Oda, professor

Devolver

animais

apreendidos

à Natureza

sem o devido

cuidado

pode ser

desastroso

Urumutum, harpia e urubu-rei, já raros em vida livre

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 21

emérito do Instituto Tecnológico de Kyoto, pretendia investigar as pro-priedades desses microrganismos na Unifesp, onde estava temporariamen-te em 2007. Oda já havia descoberto micróbios produtores de enzimas que ajudaram a desenvolver novos métodos para degradar embalagens plásticas.

Em busca de organismos simila-res, o professor da Unifesp Luiz Juliano Neto levou Oda para co-

nhecer a unidade de compostagem do zoológico paulistano. Oda exultou, mas logo teve de voltar ao Japão. A equipe da Unifesp prosseguiu. “Ninguém queria mexer nos dejetos dos animais, mas de repente todos estão vendo que aquilo vale ouro”, diz Juliano, coordenador do grupo, que já atraiu colaboradores da USP e da Universidade Estadual Paulis-ta (Unesp). Luis Fernando Tamassia, ge-rente de pesquisa da Tortuga, fabricante de rações para animais, acompanha o trabalho, com interesse especial em um grupo específico de enzimas, as fitases, que podem facilitar a absorção dos ali-mentos e gerar menos dejetos.

Pelo menos uma vez por semana, Renata Pascon e Julio Cezar Franco de Oliveira, professores da Unifesp, põem botas, avental e luvas, sobem nos cochos e colhem amostras de di-ferentes profundidades do material em decomposição. Isolar e identificar os microrganismos cultiváveis era demo-rado, mas em 2008 Juliano soube que um equipamento de seu laboratório,

um espectrômetro de massa usado para separar e identificar proteínas, poderia ser utilizado para identificar microrganismos. “A identificação das espécies passou de semanas para al-gumas horas”, diz Renata. O próximo desafio é produzir as enzimas de maior interesse. Segundo Oliveira, raramen-te os microrganismos crescem fora de seus próprios ambientes. Por essa razão, os pesquisadores estão formando um banco de microrganismos e de clones de genes. Eles acreditam que poderão expressar os genes em bactérias que produzirão as enzimas.

O zoológico de São Paulo deve par-ticipar da gestão do Centro de Pesquisa de Triagem de Animais Silvestres (CP-TRAS), que deve entrar em operação este ano em Cubatão, litoral paulista. Dirigido por Eliana Matushima e Luiz Carlos de Sá-Rocha, professores da Faculdade de Veterinária da USP, o centro deve promo-ver a pesquisa de animais provenientes da mata atlântica e ajudar na busca de novos critérios sobre o que fazer com eles.

Estima-se que os órgãos do governo apreendam milhões de animais todo ano do tráfico ilegal; só a Polícia Am-biental paulista reteve 25 mil animais em 2005, o último ano contabilizado. A maioria morre. Os que sobrevivem

são soltos, nem sempre nos espaços de onde vieram, ou vão para criado-res autorizados. “Soltar animais sem o devido cuidado pode ser desastroso”, alerta Cruz. “Duas espécies de saguis, o Callithrix jacchus, vindo do Nordeste por meio do tráfico e introduzido no estado de São Paulo, e o C. penicilla-ta, que ocorre em zonas de transição entre estados em São Paulo, são mais agressivos e ameaçam uma espécie en-dêmica em São Paulo e Rio de Janeiro, o C. aurita, competindo por espaço e alimentos. O resultado pode ser a perda de biodiversidade do Sudeste.”

Bressan e Cruz acreditam que, por meio do novo centro, poderão propor, com base em recomen-

dações internacionais, critérios sobre a destinação dos animais selvagens apreen didos ou abandonados. “Não existem diretrizes legais, técnicas ou científicas que indiquem claramente

Medindo girino para assegurar a procriação da perereca Scinax perpusillus

Onça-pintada, maior felino das Américas

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22 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

A nhanguera, uma suçuarana de quase 2 anos de idade, um metro e meio de comprimento e 42 quilogramas de peso, voltou à liberdade no dia 10 de fevereiro, ao deixar um cerca-

do de 100 metros quadrados, limitado por telas de metal, em que viveu durante um mês, em meio a uma vegetação alta e fechada, a quase 2 mil metros de altitude na serra do Japi, remanescente de mata atlântica próximo à capital paulista.

“O que sempre sonhei agora estamos conse-guindo”, celebrou Cristina Harumi Adania, coor-denadora de fauna da Associação Mata Ciliar, uma das raras organizações não governamentais do país que cuidam de animais silvestres e fazem pesquisas sobre estratégias de conservação, em colaboração com universidades do Brasil e dos Estados Unidos, órgãos públicos e empresas.

Cristina estava à frente dos pesquisadores que subiram a serra até o cerco onde Anhanguera vi-via. Sem que o animal os visse, instalaram três câmaras para registrar sua saída, abriram a en-trada e partiram em silêncio por volta das 5h30 do dia 10. Também sem ser visto, o biólogo Jairo de Cássio Pereira subiu e desceu dois quilômetros de mata íngreme uma ou duas vezes por dia no último mês, para enviar presas vivas (codornas e cobaias) através de um tubo de PVC para den-tro do cercado; assim a suçuarana poderia caçar, preparando-se para a volta à liberdade, sem as-sociar alimento à presença humana.

“Não queremos só soltar, mas também mo-nitorar os animais após a soltura. Como saber se realmente conseguirão sobreviver?”, diz Cris-tina. Encontrada muito magra, com ferimentos e um dente quebrado após ter sido atropelada na Rodovia Anhanguera em setembro de 2009, a suçuarana agora carrega um colar especial, por meio do qual os pesquisadores da Mata Ciliar pretendem seguir seus movimentos e conhecer melhor seu comportamento em vida livre. Des-de o ano passado, eles seguem uma onça e dois lobos-guarás com coleira. Nem tudo sai como desejado. Em novembro de 2010, um dos lobos,

De volta às matas

o que fazer”, diz Cruz. “A eutanásia de animais silvestres, adotada em institui-ções públicas de outros países, por aqui ainda é polêmica.” Segundo Pires, em alguns países os animais são sacrifica-dos no próprio aeroporto em que são apreendidos, o que contribui para evi-tar a disseminação de vírus desconheci-dos. Diz Catão Dias: “Os zoológicos da Austrália não podiam atender cangurus atropelados, que eram eutanasiados, porque a população desses animais em cativeiro já era grande o bastante”.

Bressan conta que o labirinto de leis dificulta o esforço de conservação: “Um criador de Belo Horizonte está separando harpias machos e fêmeas porque não quer que se reproduzam mais. As harpias nos interessam, mas enquanto não tivermos as autorizações de vários órgãos do governo federal, elas não saem de lá”.

Cristiano Azevedo, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais e atualmente no Centro Universitário de Belo Horizonte, verificou que os zoológicos brasileiros estão longe de representar a diversidade das aves bra-sileiras. Seu levantamento, publicado na Zoo Biology, indicou que os zooló-gicos brasileiros mantêm 350 espécies de aves – ainda pouco diante das quase 2 mil espécies nativas. Outra conclu-são é que as espécies mais ameaçadas de extinção são as menos encontradas nos zoológicos. Azevedo participou da elaboração de um índice matemático que avalia o papel dos zoológicos na conservação de animais silvestres: “O único com resultados satisfatórios foi o zoológico de São Paulo. Os outros estão aquém do desejável”.

Dificilmente os zoológicos con-seguirão acompanhar o desejo dos amantes da vida silvestre.“O Brasil é um país megadiverso, com megapro-blemas e micro-orçamentos. Não con-seguiremos representar a biodiversida-de brasileira nos zoos”, comenta Catão Dias. Bressan acrescenta: “Temos de identificar as espécies prioritárias”. Pires alerta: “Os zoológicos não são uma Arca de Noé”. n

Artigo científico

AZEVEDO, C. et al. Role of Brazilian Zoos in Ex Situ Bird Conservation: from 1981 to 2005. Zoo Biology. 29, 1-17. nov. 2010

Page 23: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 23

capturado em Campinas, morreu atro-pelado na Rodovia Dom Pedro I, depois de correr 25 quilômetros em um só dia (bem mais dos que os habituais um ou dois quilômetros dos dias anteriores) fugindo da queimada de uma mata de Bragança Paulista, onde fora solto.

A equipe da Mata Ciliar, por meio do Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) e do Centro Brasileiro para Conservação de Felinos Neotropi-cais, localizados em uma fazenda de 36 hectares em Jundiaí, a 60 quilômetros da capital, recebe em média cinco animais silvestres da região por dia e quando possível os solta nos próprios lugares de onde vieram. Em um único dia do início de fevereiro, a equipe da ONG tinha sol-tado duas jiboias, um gavião-carijó e 15 aves, que apareceram na cidade de Ca-breúva depois de chuvas fortes alagarem o trecho da mata em que viviam.

Às vezes a equipe da Mata Ciliar de-volve os animais assim que os encontra,

como aconteceu com uma onça-parda, retirada, com a ajuda dos bombeiros, de uma árvore, a 30 metros do solo, no município de Itirapina, próximo a São Carlos. Os felinos são carismáti-cos a ponto de atraírem admiradores e patrocínio de empresas que ajudam a pagar, por exemplo, os colares. Mas o que fazer com um gambá, ou melhor, com os oito gambás trazidos por mo-radores da região? “Também cuidamos, reduzindo ao mínimo o contato com as pessoas, e os devolvemos à mata”, diz Cristina. Segundo ela, ainda existem la-cunas nas regras que estabelecem como e quando soltar.

Banco de dnA – Nem todos os ani-mais voltam aos espaços em que vi-viam. Uma das razões é que as matas estão encolhendo. William Douglas de Carvalho, pesquisador da Mata Ciliar, tem notado que os condomínios resi-denciais estão “estrangulando a serra do Japi”, como ele diz. “Os animais se perdem e não conseguem mais voltar aos espaços em que viviam.” Nas matas da serra, Carvalho localizou 32 espécies nativas de mamíferos, além de espé-cies invasoras como a lebre europeia, o ratão-do-banhado e um número cres-cente de cachorros domésticos. Outra razão é que muitos animais resgatados seriam predados facilmente ou prova-velmente não conseguiriam sobreviver se retornassem às matas. Por essa razão é que a Mata Ciliar mantém atualmen-te cerca de 200 animais, entre eles um gavião de asa amputada, bugios feridos por cães e papagaios sempre criados por pessoas, além de felinos nascidos em cativeiro.

Em freezers e botijões de nitrogênio líquido estão cerca de 20 mil amostras de DNA, sangue e outros materiais, que têm sido úteis em pesquisas sobre a biologia, a reprodução e o compor-tamento de animais silvestres. Em 2007 nasceram ali três jaguatiricas, por meio de transferência de embriões, uma téc-nica muito pouco usada com felinos no Brasil e adotada como resultado de uma colaboração com as equipes do zoológico de Cincinnati, Estados Unidos. Cristina terminou em 2009 o doutorado na USP sobre fisiologia e gestação de jaguatiricas, que, como outros felinos brasileiros, se encontram ameaçadas de extinção. n

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carismáticos

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fazer com

um gambá?

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Anhanguera, encontrada em uma rodovia e solta na serra do Japi

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24 ■ MARÇO DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 181

ESTRATÉGIAS MUNDO

com participação de universidades de vários países. “Ele será muito útil se seu trabalho resultar na integração de recursos e na aplicação de tecnologia de ponta”, disse à agência SciDev.Net Allen Yuhung Lai, especialista em gerenciamento de desastres da Universidade Nacional de Cingapura. Ele alerta, contudo, que é fundamental reavaliar a capacidade de gerenciamento de desastres de cada país envolvido. “A tecnologia resolve apenas parte do problema”, diz. O centro vai começar a operar em junho graças a dotações do Japão (US$ 6 milhões), da Austrália (US$ 500 mil) e dos Estados Unidos (US$ 500 mil), além de suporte técnico da Nova Zelândia. Cada país membro vai contribuir com US$ 100 mil por ano, exceto a Indonésia, que entrará com US$ 555 mil.

A ANTEVISÃO DOS DESASTRES

Um grupo de 10 países do Sudeste Asiático criou um centro para coordenar a prevenção e o enfrentamento de catástrofes na região, com ênfase na ampliação de conhecimento científi co sobre desastres naturais. Sediada em Jacarta, na Indonésia, a iniciativa vai conectar as agências nacionais de monitoramento e coordenar sistemas de alerta. Um dos objetivos é compilar informações sobre desastres naturais, produzindo, por exemplo, mapas de vulnerabilidade, e desenvolver novas tecnologias de prevenção. Segundo Ridwan Djamaluddin, da Agência de Avaliação e Aplicação de Tecnologia da Indonésia, o centro terá uma forte atividade de pesquisa,

CHANCE DE RENASCIMENTO

A queda do ditador Hosni Mubarak animou pesqui-

sadores do Egito a defl agrar uma articulação para

recuperar o estagnado sistema de ciência e tecno-

logia do país. Um líder informal do movimento é o

Nobel de Química de 1999, Ahmed Zewail, egípcio

radicado nos Estados Unidos. Ele retornou ao país

para integrar um grupo de intelectuais incumbido

de elaborar planos para garantir uma transição pa-

cífi ca para a democracia. Num artigo escrito para o

jornal International Herald Tribune, Zewail acusou

Mubarak de promover uma contínua deterioração

na educação e na pesquisa do Egito. De acordo com

o Science Citation Index, o Egito produziu 5.140

artigos científi cos em 2010 – só a Universidade

Harvard publicou o dobro disso. A pesquisa sofre

com a falta de dinheiro – os investimentos oscilam entre 0,2%

e 0,3% do PIB – e os salários baixos levaram a uma fuga de

cérebros para outros países árabes. “O governo jamais teve

a visão estratégica de que o apoio à pesquisa e à inovação

ajudaria o país a competir globalmente”, disse à revista Nature

Hassan Azzazy, da Universidade Americana no Cairo. Para

Tarek Khalil, reitor da Universidade do Nilo, a geração que

se revoltou pelo Facebook representa a melhor chance em

décadas para o renascimento intelectual do Egito. “São jovens

que pensam de forma crítica e criativa”, disse.

Efeitos do tsunami de 2005 em Jacarta

Multidão na praça Tahrir:revolta popular

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PESQUISA FAPESP 181 ■ MARÇO DE 2011 ■ 25

A MULTIPLICAÇÃODOS PEIXES

Uma série de tecnologias pode ajudar os países a conciliar a crescente demanda pelo consumo de peixes com a necessidade de preservar a biodiversidade, de acordo com um relatório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). O documento, intitulado O estado mundial da pesca e da aquicultura 2010, mostra que o uso da internet, de sistemas de informação geográfi ca (SIG) e de sensoriamento remoto permite que vários países gerenciem de forma sustentável seus recursos pesqueiros. Uma das experiências citadas é a do Equador, com seu sistema de monitoramento da saúde dos camarões no golfo de Guayaquil, que utiliza imagens do satélite Landsat 7 e tecnologias multimídia para prevenir doenças e controlar a produtividade. Outro exemplo é o Projeto Chileno de Aquicultura. Ele oferece informações diárias sobre a temperatura da superfície do mar e a

VENTOS DA MUDANÇA

Com 30% de sua energia gerada a partir de fontes renová-

veis, o Uruguai lançou um plano para elevar esse quinhão

a 50% até 2015. Em janeiro, o governo abriu licitação pa-

ra a instalação de três parques eólicos que vão gerar 150

megawatts (MW) e anunciou para abril outra licitação para

criar 150 MW adicionais. Além deles, a empresa estatal de

energia UTE construirá parques com empresas privadas para

gerar 200 MW, totalizando 500 MW, mais de seis vezes a

capacidade atual. O plano prevê investimentos de US$ 5,5

bilhões em cinco anos, disse à agência SciDev.Net Ramón

Méndez, diretor nacional de energia do Uruguai. As licitações

exigem que os parques eólicos usem, pelo menos, 40% de

tecnologia e de recursos humanos nacionais. Outro projeto

em marcha é a geração de eletricidade por biomassa, espe-

cialmente resíduos da casca de arroz e bagaço. O governo

propôs que em 2015 30% dos resíduos agroindustriais do

país se destinem à produção de energia.

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TWAS TEM NOVO DIRETOR

A Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS) tem um novo diretor executivo. O físico ruandês Romain Murenzi foi designado para substituir o sudanês Mohamed Hassan, que estava há 25 anos no cargo. A TWAS tem sede em Trieste, na Itália, e é presidida pelo matemático

brasileiro Jacob Palis. Murenzi nasceu em Ruanda e cresceu no vizinho Burundi, onde se graduou em matemática. O mestrado e o doutorado em física ele obteve na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Mudou-se para os Estados Unidos em 1992, para trabalhar como professor da Clark Atlanta University. Voltou a Ruanda em 2001, nomeado ministro da Educação e Ciência, e ajudou a modernizar o sistema científi co do país. Passados 17 anos do genocídio que matou 800 mil pessoas, Ruanda alcançou estabilidade política e se destaca na África subsaariana por investir 1,6% do PIB em ciência e tecnologia. “Murenzi tem talento e experiência para ajudar a TWAS a expandir seus esforços na construção de capacidade científi ca e tecnológica em todos os países em desenvolvimento”, disse Jacob Palis.

Fazenda de aquicultura:sustentabilidade

limpidez da água, e permite que os criadores tomem atitudes quando a proliferação de algas tóxicas ameaça os peixes. Já na Colômbia o Instituto de Pesquisa Marinha e Costeira (Invemar) está implantando uma ferramenta chamada Geovisor que vai ajudar os pescadores a localizar cardumes com mais efi ciência usando informações de satélites.

Turbina eólicano Uruguai:renovável

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26 ■ MARÇO DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 181

IMPASSE EMBUDAPESTE

O Collegium Budapeste, um prestigiado instituto de estudos avançados na capital da Hungria criado há 17 anos, corre o risco de fechar. A instituição já recebeu cerca de 700 pesquisadores de 40 países e se tornou um símbolo da nova ciência na Europa do Leste – mas é vítima do desinteresse de seus patrocinadores. O custo anual do instituto, em torno de € 1,2 milhão, é bancado por vários governos da Europa Ocidental, bancos

ENTRE FAMÍLIAE VOCAÇÃO

Combater a discriminação no ambiente acadêmico não é sufi ciente para ampliar a participação das mulheres em carreiras científi cas – pelo menos nos Estados Unidos. Dois pesquisadores da Universidade Cornell, Stephen Ceci e Wendy Williams, analisaram 20 anos de dados sobre a discriminação de gênero e a situação das mulheres na ciência no país. Concluíram que a escassez de mulheres no topo de carreiras ligadas a ciências e engenharias é explicada mais por escolhas pessoais que elas foram obrigadas a fazer – como ter fi lhos e cuidar da família – do que pela hostilidade do ambiente. Embora a discriminação ocorra, Ceci e Williams mostram que os incidentes são raros. Segundo o estudo, publicado na revista Proceedings of National Academy of Sciences (PNAS), homens e mulheres de perfi s semelhantes publicam trabalhos científi cos em quantidade e qualidade parecidos e são

REPENSARA NUTRIÇÃO

A Comissão Europeia lançou um projeto

de € 1 milhão para repensar a agenda

de pesquisa sobre nutrição na África.

Batizado de Sunray, acrônimo para a

sigla em inglês de “pesquisa sustentá-

vel em nutrição para a África nos pró-

ximos anos”, o projeto será implantado

por um consórcio de cinco instituições

europeias e quatro africanas, sob a

coor denação do Instituto de Medicina

Tropical de Antuérpia, Bélgica. A ambi-

ção é identifi car formas inovadoras de

enfrentar a desnutrição, que continua

elevada principalmente na África sub-

saariana. Mas a desnutrição é apenas

parte do problema sobre o qual a ini-

ciativa vai debruçar-se: a obesidade e

outras doenças crônicas relacionadas à

alimentação inadequada estão crescen-

do na esteira das mudanças de estilo de

vida da população. Os pesquisadores vão mapear as linhas

de pesquisa em nutrição na África e identifi car barreiras

enfrentadas e oportunidades disponíveis. A ideia é relacionar

os desafi os na área da nutrição com as perspectivas nos

campos das mudanças climáticas, biodiversidade, demografi a,

urbanização e disponibilidade de água, entre outros.

e fundações privadas. O governo da Hungria, que contribui com apenas € 100 mil por ano, está sendo pressionado pelos parceiros a arcar com a metade dos custos, mas resiste. Divergências políticas entre as autoridades húngaras e os pesquisadores do Collegium explicariam o desinteresse. Uma reunião em abril irá defi nir a sorte da instituição. Como observou editorial da revista Nature, a Hungria perderia muito com o fechamento, pois pesquisadores de renome internacional são difíceis de encontrar nas universidades do país.

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contemplados com salários e fi nanciamento similares. O que impede o avanço delas é o adiamento da carreira para cuidar da família. Segundo os autores, a saída é criar políticas capazes de atacar as razões culturais que levam as mulheres a optar pela vida pessoal em detrimento da vocação.

O Collegium:briga depatrocinadores

Menina africana:desafi os permanecem

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PESQUISA FAPESP 181 ■ MARÇO DE 2011 ■ 27

ESTRATÉGIAS BRASIL

SCIELO NO TOPODO RANKING

A biblioteca eletrônica SciELO Bra-

sil foi classifi cada em 1o lugar num

ranking mundial de portais de aces-

so aberto divulgado pelo laboratório

Cybermetrics, vinculado ao Conselho

Superior de Pesquisas Científi cas da

Espanha. Curiosamente, a SciELO

não está em 1o lugar em nenhum dos

quatro quesitos medidos no ranking:

fi cou em 2o tanto no item tamanho

quanto no de presença no portal

acadêmico Google Scholar, em 3o

em número de arquivos PDF e em 4o

em visibilidade, que é a quantidade de links que remetem a

páginas do portal. O somatório, contudo, rendeu-lhe a lide-

rança. “A consistência da SciELO prevaleceu sobre outros

competidores”, diz Abel Packer, coordenador da biblioteca.

A 2a posição coube ao portal HAL, do Centro Nacional de

Pesquisa Científi ca da França. A conquista da SciELO deu-

-se na categoria Portal. Na categoria Repositório, o 1o lugar

coube ao Social Science Research Network (SSRN) – o 14o

lugar foi da Biblioteca Digital de Teses da Universidade de

São Paulo. A SciELO, sigla para Scientifi c Electronic Library

Online, abrange uma coleção de 248 periódicos brasileiros

oferecidos em acesso aberto na internet. É resultado de

um projeto da FAPESP, em parceria com o Centro Latino-

-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saú-

de, Bireme. Para ser admitido e se manter na coleção, cada

periódico precisa cumprir exigências rígidas em relação

à qualidade do conteúdo, à regularidade da publicação, à

revisão e aprovação por pares dos artigos publicados.

Brito Cruz, diretor científi co da FAPESP. “O acordo de cooperação entre a Biolab e a FAPESP é um exemplo de como a parceria público--privada pode ajudar o país a crescer e auxiliar milhões de pessoas a obter melhor qualidade de vida”, disse Dante Alário Júnior, chief scientifi c offi cer da Biolab.

EM BUSCA DENOVOS REMÉDIOS

A FAPESP e a Biolab Farmacêutica lançaramuma chamada de propostas de pesquisas no âmbito do acordo fi rmado entre as duas instituições em outubro de 2010. Pesquisadores do estado de São Paulo poderão apresentar, até o dia 10 de junho, projetos com potencial para aumentar o conhecimento na prevenção e no tratamento de doenças crônicas ou degenerativas e também de alta incidência. Um dos objetivos principais é gerar resultados que possam ser aplicados no desenvolvimento de medicamentos inovadores. FAPESP e Biolab destinarão até R$ 5 milhões, divididos igualmente entre as partes, para apoiar as propostas selecionadas. É a primeira vez que a FAPESP lança chamada pública para pesquisas em parceria com uma indústria farmacêutica

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na área de saúde humana. A chamada apoiará pesquisas em oncologia – sobre tumores de difícil tratamento ou para os quais não existam medicamentos –, doenças degenerativas imunomoduladas e do sistema nervoso central, disfunções hormonais, diabetes e doenças provocadas por fungos, bactérias, protozoários ou vírus. Também poderão ser fi nanciadas pesquisas sobre distúrbios cardiovasculares, processos infl amatórios envolvidos em diferentes patologias, princípios ativos moduladores da pigmentação da pele e distúrbios gastrointestinais. As propostas devem ser apresentadas por pesquisadores de instituições de ensino superior e de pesquisa, públicas ou privadas, no estado de São Paulo. “A FAPESP investe na intensifi cação das colaborações em pesquisa

entre universidades ou institutos de pesquisa e empresas, buscando, com isso, benefícios para a pesquisa no estado de São Paulo. A Biolab tem uma tradição em pesquisa em desenvolvimento na área farmacêutica e sabe valorizar a excelência em pesquisa”, disse Carlos Henrique de

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28 ■ MARÇO DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 181

à Agência FAPESP Lars Hinrichsen, do Danish Council. A comitiva da Dinamarca, chefi ada pela ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Charlotte Sahl-Madsen, foi recebida pelo presidente da FAPESP, Celso Lafer, e pelo diretor científi co, Carlos Henrique de Brito Cruz. “Acordos de cooperação científi ca como esse refl etem não só o nosso interesse pelo mundo como também o interesse do mundo pelo que estamos fazendo em ciência e tecnologia. Esperamos, com isso, criar novas e adicionais oportunidades para os pesquisadores brasileiros”, disse Lafer.

ACORDO COM A DINAMARCA

A FAPESP e o The Danish Council for Strategic Research celebraram um acordo de cooperação científi ca que prevê o lançamento de chamadas de propostas entre pesquisadores do Brasil e da Dinamarca. A primeira chamada deve contemplar o campo da ciência dos alimentos, mas também estão previstas colaborações em áreas como energia renovável, meio ambiente e ciências agrícolas. “O acordo vai possibilitar criar novas soluções e tecnologias que possam ser aplicadas em setores estratégicos para ambos os países”, disse

EM DEFESA DA PRESERVAÇÃO

A Sociedade Brasileira para o Pro-

gresso da Ciência (SBPC) e a Aca-

demia Brasileira de Ciências (ABC)

apresentaram na Câmara dos Deputa-

dos, em Brasília, o sumário executivo

de seu relatório sobre a proposta de

mudança no Código Florestal em tra-

mitação no Congresso. O texto dos

cientistas critica a ideia de reduzir

as Áreas de Preservação Permanente

(APP), prevista na mudança, e reforça

a necessidade de protegê-las e res-

taurá-las. Tais áreas têm como função

preservar os rios, a biodiversidade e o

fl uxo da fauna e da fl ora, entre outras.

O documento confi rma que as APPs

são “insubstituíveis” para populações urbanas e rurais, e

para a própria atividade agropecuária, ao fornecer servi-

ços ambientais como polinização, controle de pragas e de

espécies exóticas invasoras. Afi rma que a redução dessas

áreas pode signifi car um “gigantesco ônus para a sociedade

como um todo”. O objetivo da SBPC e da ABC ao elaborar o

estudo foi trazer argumentos científi cos para a discussão. O

texto completo do relatório ainda não foi divulgado.

no relacionamento com as instituições estrangeiras e com os alunos seja o inglês, a disponibilidade de informações em outros idiomas facilita bastante o contato inicial, principalmente dos alunos que buscam a instituição como destino internacional.” A ação faz parte de uma série de iniciativas para internacionalizar a universidade, como a criação de incentivos para alunos que desejam fazer intercâmbio ou estágio no exterior. Nos últimos meses, a Unesp celebrou vários acordos de cooperação com países como China, Coreia, Finlândia, Índia e Inglaterra.

Mata atlânticadesmatada noEspírito Santo

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PORTAL EM 10 IDIOMAS

O portal na internet da Universidade Estadual Paulista (Unesp) inaugurou versões em dois novos idiomas, o hebraico e o árabe, elevando a 10 o número de línguas com que se apresenta na web: já havia páginas em português, inglês, alemão, francês, italiano, espanhol, japonês e mandarim. “A novidade nos permitirá ter mais visibilidade em outros países”, diz o professor José Celso Freire Júnior, chefe da Assessoria de Relações Externas (Arex). “Embora a língua geralmente utilizada

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Page 29: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 ■ MARÇO DE 2011 ■ 29

COOPERAÇÃOFACILITADA

A Câmara dos Deputados aprovou a Me-

dida Provisória que permite ao governo

ampliar as atividades no exterior da Em-

presa Brasileira de Pesquisa Agropecuá-

ria (Embrapa). A medida, que ainda será

apreciada pelo Senado, muda o texto da

lei que criou a Embrapa e autorizava a

empresa a operar somente em território

brasileiro. Antes da MP, a presença da Em-

brapa fora do Brasil ocorria por meio de

projetos com instituições parceiras. Com a

mudança, a empresa poderá, por exemplo,

abrir contas no exterior ou alugar imó-

veis. Também poderá receber diretamente

royalties provenientes da venda de tecno-

logias, produtos e serviços gerados com sua marca. “Isso tornará

mais fácil mobilizar os meios necessários para a implantação de

nossos projetos de cooperação”, afi rmou o chefe da Secretaria de

Relações Internacionais da Embrapa, Francisco Basílio de Souza.

A Embrapa tem acordos de cooperação com 56 países. Mantém

laboratórios virtuais em instituições parceiras de nações como

Estados Unidos, França, Holanda, Inglaterra e Coreia do Sul, e

escritórios em quatro países africanos e na Venezuela.

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ENZIMÁTICOS

Nos próximos quatro anos um projeto que envolve cientistas de São Paulo e do Pará concentrará esforços para produzir, a partir de fungos e bactérias da fl oresta amazônica, coquetéis enzimáticos capazes de degradar a celulose, tornando viável o chamado etanol de segunda geração. O projeto foi aprovado no âmbito de um acordo de cooperação assinado pelas fundações de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), de Minas Gerais (Fapemig) e do Pará (Fapespa) e pela Vale S.A. As pesquisas serão realizadas

no Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), em Campinas, e na Universidade Federal do Pará (UFPA). O grupo vai buscar microrganismos e coquetéis enzimáticos utilizáveis na fabricação do etanol celulósico. De acordo com Carlos Eduardo Rossell,

Agricultura na África, um dos alvos da Embrapa

pesquisador do CTBE, com a produção de etanol a partir do bagaço e da palha da cana será possível aumentar a produtividade sem alterar a área plantada. “O desafi o é a natureza recalcitrante da biomassa. O material lignocelulósico é muito resistente aos ataques enzimáticos”, disse.

MAIORIDADE EM ÓRBITA

O primeiro satélite brasileiro a entrar em órbita completou 18 anos de atividade no dia 9 de fevereiro. Desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em São José dos Campos, o Satélite de Coleta de Dados (SCD-1) foi lançado em 1993 pelo foguete norte-americano Pegasus. Com um metro de diâmetro, 115 quilos de peso e a forma de um prisma octogonal, o SCD-1 deu 94.994 voltas ao redor da Terra em seus 18 anos de vida. Projetado para durar apenas um ano, o equipamento viaja a 27 mil quilômetros por hora e demora cerca de uma hora e 40 minutos para dar uma volta completa em torno do planeta. Sua principal missão, entre outras aplicações, é retransmitir informações que auxiliam na previsão do tempo e no monitoramento das bacias hidrográfi cas brasileiras. O satélite integra o Sistema Nacional de Dados Ambientais (Sinda), que retransmite a um centro de missão as informações ambientais recebidas pelo SCD-1 de plataformas de coleta de dados espalhadas pelo Brasil.

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política científica e tecnológica

Page 31: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 31

[ CIENCIomETrIa ]

Código sagradoEstudo mostra que pesquisadores

da França e da alemanha também perdeminfluência quando não publicam em inglês

Fabrício Marques

Aproverbial barreira do idioma, responsá-vel pela baixa repercussão da produção científica escrita em qualquer língua que não seja o inglês, não atrapalha apenas os pesquisadores de países emergentes como o Brasil. Um estudo liderado pe-lo físico Anthony van Raan, diretor do

Centro para Estudos de Ciência e Tecnologia da Universidade de Leiden, na Holanda, mostrou que o problema também prejudica potências eu-ropeias da ciência como França e Alemanha, que só estão atrás de quatro rivais – Estados Unidos, China, Reino Unido e Japão – no ranking das na-ções que mais publicam artigos científicos. Ainda assim, cientistas franceses e alemães amargam um impacto mais modesto de sua produção científica quando a divulgam em seus idiomas maternos.

Anthony van Raan, especialista em cienciome-tria, a disciplina que busca gerar informações para estimular a superação dos desafios da ciência, é um dos responsáveis pelo Ranking Leiden, coleção de dados gerados pela universidade holandesa que busca analisar a produção científica de paí-ses e instituições de pesquisa e ensino superior. Na mais recente edição do ranking holandês, a Universidade de São Paulo (USP) despontava na 15ª posição na lista de universidades com maior volume de produção científica (ver reportagem na página 34). O estudo sobre a barreira do idioma

debruçou-se sobre uma lista das principais 500 universidades do mundo, ranqueadas de acordo com o impacto obtido por seus artigos científi-cos na base de dados Web of Science (WoS), da empresa Thomson Reuters. O fator de impacto é medido pela quantidade de citações de um artigo em outros trabalhos científicos. O pesquisador holandês havia observado que o desempenho modesto de várias universidades francesas e ale-mãs em rankings estava descolado do prestígio acadêmico de que elas desfrutam. Para fazer um exercício de comparação, produziu uma segunda lista, na qual apenas a produção científica publi-cada em revistas em inglês foi considerada e os artigos em idioma local foram desprezados. Van Raan constatou que a performance das universi-dades alemãs e francesas era superior no ranking apenas com artigos em inglês, pois o impacto desses trabalhos era maior do que o dos artigos divulgados em idioma nativo.

A Universidade de Nantes, por exemplo, apa-rece na 106a posição no ranking dos artigos em inglês – e em 201o lugar na lista que considera ar-tigos também em outras línguas. As universidades alemãs de Heidelberg e LMU de Munique apare-cem, respectivamente, em 109º e 114º lugares no ranking do impacto baseado apenas nos artigos em inglês, mas caem para a 150ª e a 166ª posições quando se contam todos os artigos. “Encontramos Il

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32 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

um efeito dramático e subestimado nas medidas de impacto”, afirmou Van Raan. “Os artigos não publicados em inglês diluem o impacto médio de países co-mo Alemanha, Áustria e França. Isso acontece particularmente com campos aplicados, como a medicina clínica e a engenharia, e também com as ciências sociais e as humanidades. Como a me-dicina representa uma parte conside-rável da ciência de um país, esse efeito influencia a posição da universidade.”

Ferramenta – A preocupação de Van Raan refere-se ao uso de indicadores bibliométricos vinculados a fatores de impacto. Como as citações têm um peso importante em rankings de uni-versidades, como o da Times Higher Education e o da Universidade Shan-ghai Jiao Tong, da China, o pesquisador sugere cautela ao analisar essas listas e propõe uma alternativa polêmica para remover o viés: levar em conta, para efeito de comparação, apenas a produ-ção científica em inglês das instituições, desprezando os artigos em outros idio-mas. “Calcular os indicadores baseados apenas em publicações em inglês é o único procedimento justo”, afirma.

Não há novidade alguma em afirmar que a proficiência no inglês é ferramen-ta indispensável para pesquisadores de todos os campos do conhecimento. Isso

já era verdade nos anos 1930, quando pesquisadores alemães publicaram, em seu próprio idioma, um estudo que rela-cionava o consumo de cigarro à incidên-cia maior de câncer no pulmão. Devido à barreira do idioma, os dados manti-veram-se praticamente desconhecidos até os anos 1960, quando britânicos e norte-americanos chegaram à mesma correlação. Atualmente, lutar contra a supremacia do inglês na ciência é con-traproducente, diz Sonia Vasconcelos, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de uma tese de doutorado sobre a barreira do idioma defendida em 2008 (ver Pes-quisa FAPESP nº 162). “Os países em que o inglês é o principal idioma levam grande vantagem, mas existe uma mobi-lização internacional por parte de insti-tuições de pesquisa e editores científicos de vários países não anglofônicos para reduzi-la. No caso do Brasil, é preciso treinar cada vez mais os nossos pesqui-sadores, particularmente nas áreas de ciência e tecnologia, para escrever bem em inglês e desenvolver alguma inde-pendência para se comunicar com seus pares em contextos internacionais”, afir-ma. “Hoje, na Alemanha, há cursos de pós-graduação ministrados em inglês, o que ajuda os estudantes a quebrar es-sa barreira. Isso acontece também na França, que sempre cultivou – e conti-

nua cultivando, porém com uma atitude estratégica em relação ao inglês – seu idioma no cenário acadêmico. Já o Brasil não tem uma estratégia articulada para enfrentar esse desafio”, diz.

A sugestão de Van Raan de ignorar a produção científica em língua nativa para aperfeiçoar as comparações inter-nacionais poderia causar outro tipo de viés, causado pela ausência da contribui-ção em importantes campos do conhe-cimento. “A produção em língua local é parte indissociável do conhecimento ge-rado pelos países e não pode ser posto de lado”, diz Abel Packer, da coordenação da biblioteca eletrônica científica SciELO Brasil. Packer lembra que há uma tra-dição no país de publicar em português em disciplinas como, por exemplo, as ciências da saúde e as agrárias, pois isso é importante para levar o conhe-cimento a profissionais dessas áreas. “A questão não envolve só os cientistas, que em geral conhecem o inglês, mas outros usuários da informação cientí-fica que não têm a mesma proficiência do idioma”, diz. “O multilinguismo é parte da comunicação científica e tem suas raízes no fato de que a ciência é parte da cultura. A ciência não é feita em uma torre de marfim separada do resto da sociedade, mas é reconhecida com uma fonte de conhecimento para

Impacto restrito dos artigos publicados em idioma nativo derruba o desempenho de universidades em rankings

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 33

o desenvolvimento econômico e tec-nológico. Se não existir esforço da co-munidade científica nacional para criar semânticas na sua língua nativa, o país e a sua cultura não serão capazes de absorver ideias e conhecimento que na essência servem a sua sociedade”.

Para Luiz Henrique Lopes dos San-tos, coordenador adjunto de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura, Eco-nomia e Administração da FAPESP e professor do Departamento de Filoso-fia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, a questão requer uma solução de compromisso, pois não se reduz à questão do impacto. “É também uma questão cultural”, diz. “A língua é um elemento essencial da cultura de um país e ela se constitui e se enriquece na interação entre os seus usos mais ordinários e os mais sofisti-cados – como na literatura, na ciência, na filosofia. Nenhum país pode se dar ao luxo de abrir mão inteiramente de sua língua como veículo da produção do conhecimento.”

Adicione-se ao debate, propõe Pa-cker, o fato de estar crescendo a pro-dução escrita em português no bolo de revistas indexadas. Até 2007, a porcen-tagem dos artigos publicados em por-tuguês na base Web of Science era de 8,5%. Agora é de 22%. “Isso aumentou

É útil lembrar que escrever em inglês, embora ajude a ampliar o alcance de um artigo científico, não garante citações e prestígio

porque se ampliou o rol de revistas bra-sileiras indexadas. Eram 34 revistas em 2007 e hoje são 133. Assim, o Brasil su-biu para o 13o no ranking da produção científica. Se não quisermos que revistas em português sejam consideradas, vol-taremos para o 17o lugar”, afirma.

Dado marcante – Também se deve considerar que escrever em inglês não é condição suficiente para garantir ci-tações e prestígio. Um estudo publicado por Rogério Meneghini, coordenador científico da biblioteca SciELO Brasil, mostrou que mesmo artigos escritos em inglês, mas publicados em revis-tas brasileiras, produzem em média menos citações. Meneghini convidou nove cientistas brasileiros habituados a divulgar seus trabalhos em revistas internacionais a publicar um artigo original na edição de maio de 2008 dos Anais da Academia Brasileira de Ciências. A intenção era avaliar até que ponto esses autores seriam capazes de transferir seu prestígio para a revista brasileira, que é publicada em inglês. Dois anos após a publicação, observou- -se que o número de citações desses artigos superou o dos demais artigos da revista: foi 1,67 citação ante 0,76 dos outros. Já os 62 artigos publicados pelos mesmos autores em revistas internacio-nais em 2008 tiveram, em média, 4,13

citações cada um. Segundo Meneghini, a diferença pode ser atribuída ao fato de as revistas brasileiras terem menos visibilidade internacional, embora tam-bém haja uma tendência de os autores enviarem seus melhores artigos para o exterior. Mas um dado marcante foi a constatação de que os nove autores abs-tiveram-se de citar artigos de revistas brasileiras. Apenas 1,52% das citações feitas por eles em 2008 se referiam a trabalhos publicados nacionalmente. Meneghini sugere que citar revistas na-cionais não dá prestígio. “Parece que os autores optaram por negligenciar cita-ções em periódicos brasileiros assumin-do que eles podem passar a impressão de que o artigo é falho”, disse.

Tal contingência não ofusca o con-senso de que é fundamental estimular a produção em inglês. “Quando um pesquisador se esforça para citar tra-balhos de seu país, é frustrante ver que a referência não pode ser consultada no exterior porque o trabalho está dispo-nível apenas em português”, diz Sonia Vasconcelos. Para Abel Packer, da SciE-LO, a solução é investir na tradução de artigos escritos em português, tornan-do-os disponíveis também em inglês. “Isso exigiria investimentos pesados, mas não consigo ver outra saída para aumentar a visibilidade do conjunto da ciência brasileira”, afirma Packer. n

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A Universidade de São Paulo (USP) aparece em 15o lu-gar no rol das 500 maiores universidades do mundo

em volume de publicações, um dos indicadores de um ranking feito pe-lo Centro para Estudos em Ciência e Tecnologia da Universidade de Leiden, na Holanda. Nessa lista, a Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp) está na 161ª colocação, e as federais do Rio de Janeiro (UFRJ), de Minas Gerais (UFMG) e do Rio Grande do Sul (UFRGS) despontam, respectiva-mente, nos 193o, 317o e 442o lugares. “Não chega a surpreender que a USP esteja nesta posição”, diz o pró-reitor de Pesquisa da USP, Marco Antonio Zago. “Se o Brasil é o 13o país em volume de publicações e a USP é responsável por 23% da produção brasileira, é natural que tenhamos posição destacada num ranking desse tipo”, afirmou.

O Ranking Leiden oferece uma coleção de listas que classificam uni-versidades segundo vários critérios, utilizando como referência dados da base Web of Science. Além do indicador por volume de publicações, há outro que mede o impacto. Nessa categoria, que se baseia no número de citações dos artigos, não há universidades bra-sileiras no primeiro pelotão. A UFRGS aparece na 391a posição, a USP na 452a, a UFMG na 458a, a UFRJ no 463o lugar e a Unicamp no 465o. “Aumentar o im-pacto é o grande desafio da USP e das demais universidades brasileiras”, diz Marco Antonio Zago. “Já publicamos bastante, agora precisamos ampliar a relevância de nossa produção. E isso vai ser feito não apenas buscando publicar em revistas de maior impacto, mas, so-bretudo, melhorando a qualidade da pesquisa, que hoje ainda é fragmentada. Por meio de sinergias entre grupos de várias disciplinas, por exemplo, pode-mos contribuir de forma ainda mais relevante”, diz.

Outros indicadores do Ranking Leiden trabalham os dados de volu-me e de impacto de forma a remover

vieses gerados pelo tamanho da ins-tituição ou sua especialização em de-terminados campos do conhecimento. Num deles, que multiplica o número total de publicações pelo impacto em cada campo do conhecimento, a USP aparece na 71a posição, a Unicamp em 285o lugar, a UFRJ em 321o, a UFMG em 394o e a UFRGS em 488o. E quan-do o critério é o número de citações dividido pelo impacto médio em ca-da campo do conhecimento, a UFMG aparece em 463o lugar, a USP em 467o, a Unicamp em 478º, a UFGRS em 480o e a UFRJ em 482o.

O pró-reitor de Pesquisa da Uni-camp, Ronaldo Pilli, afirma que o desempenho de sua instituição em rankings está relacionado, além da ex-celência acadêmica, a um esforço de dar visibilidade à sua produção científica. “É possível melhorar essa visibilidade. Em alguns campos do conhecimento ainda há certa resistência em publicar os resultados de pesquisas em inglês, com o argumento de que o interesse é regional. Mas uma boa pesquisa so-bre violência nas escolas no Brasil, por exemplo, pode interessar a um pesqui-sador estrangeiro que esteja estudando bullying”, afirmou.

Em outros rankings, a posição das instituições brasileiras varia, embora USP e Unicamp ocupem as primei-ras posições. No mais recente Acade-mic Ranking of World Universities (ARWU), da Shanghai Jiao Tong Uni-versity, da China, a USP aparece entre as 150 melhores universidades do mun-do, a Unicamp, no pelotão entre as 201 e 250 melhores; a UFMG, a UFRJ e a Universidade Estadual Paulista (Unesp), entre as 400 melhores; e a UFRGS, entre as 500 melhores. Em outro ranking con-sagrado, o da Times Higher Education, que combina critérios bibliométricos com o número de ganhadores de Prê-mios Nobel em cada instituição e uma pesquisa de opinião entre cientistas do mundo inteiro sobre o peso de cada universidade, a USP apareceu em 232o lugar, a Unicamp em 248o. n

Destaque entre as 500 maiores

USP aparece em 15º lugar em volume de publicações no ranking Leiden, mas impacto ainda é restrito

Volume* Impacto**

USP 15ª 452ª

Unicamp 161ª 465ª

UFRJ 193ª 463ª

UFMG 317ª 458ª

UFRGS 442ª 391ª

O desempenho de cada umaA posição das universidades brasileiras em duas listas do Ranking Leiden

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* Número de publicações ** Citações por publicação

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36 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Esta é a sétima reportagem de uma série sobre a internacionalização

da pesquisa científica em São Paulo

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 37

Sinapses sem fronteirasGrupo da Unifesp fomentacolaborações em estudossobre epilepsia

[ IntErnacIonalIzação ]

Ao longo dos 10 últimos dias de fevereiro um grupo de 70 estudantes e 20 professores e tutores esteve reunido num hotel em Gua-rulhos para discutir os avanços científicos relacionados às interações da epilepsia com o comportamento e a cognição. Com repre-sentantes de 12 países latino-americanos,

além de Moçambique e da Espanha, o grupo assistiu a uma maratona de 55 apresentações de especialistas de países como Itália, Reino Unido, Espanha, Colômbia, Uruguai, Canadá, Estados Unidos, Argentina, Dina-marca, Honduras e Chile – a palestra de abertura coube ao médico Peter Wolf, diretor do Centro Dina-marquês de Epilepsia e presidente entre 2005 e 2009 da Liga Internacional contra a Epilepsia, que con-grega mais de 5 mil médicos e cientistas do mundo. Tratou-se da 5ª edição da Escola Latino-Americana de Verão de Epilepsia (Lasse), curso internacional de curta duração que, a cada ano, discute um novo tópico relacionado à doença que ataca 1% da popu-lação mundial, sendo que 80% dela vive em países em desenvolvimento. Os alunos do curso também se dividiram em grupos de trabalho que, ao final do evento, elaboraram propostas de projetos de pesquisa a serem desenvolvidos dali por diante.

A Lasse, que recebeu apoio da FAPESP na moda-lidade auxílio organização, é uma das ferramentas usadas pelo neurocientista Esper Abrão Cavalhei-ro, 61 anos, professor titular do Departamento de

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38 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Neurologia e Neurocirurgia da Uni-versidade Federal de São Paulo (Uni-fesp), para manter em nível elevado a inserção internacional que seu grupo amealhou desde os anos 1990, época em que ele desenvolveu um modelo experimental para estudo da epilepsia utilizado atualmente nos Estados Uni-dos, Inglaterra, França, Alemanha, Itá-lia, Japão e Austrália. O modelo, criado juntamente com o polonês Lechoslaw Turski, é um método de indução de convulsões em animais de laboratório a partir da aplicação da pilocarpina, um alcaloide extraído das folhas de jaborandi, planta nativa do Brasil. Ele é capaz de repetidamente induzir um quadro convulsivo que pode inclusive levar à perda de consciência. O modelo reproduz a sequência de eventos que caracteriza a epilepsia do lobo tempo-ral, responsável por 70% da epilepsia observada em seres humanos. Através desse modelo foi possível estabelecer, por exemplo, os passos que levam uma criança que sofreu um traumatismo craniano importante, ou que teve uma infecção também grave do sistema ner-voso, a desenvolver, anos mais tarde, um quadro de epilepsia.

Real escala – Manter colaborações in-ternacionais é fundamental para qual-quer pesquisador, observa Cavalheiro. “O contato com os pares de outros paí-ses faz você conseguir enxergar a real escala de sua participação no avanço do conhecimento e entender o tamanho exato das coisas. E a união de cérebros potencializa os resultados de pesquisa”, diz o neurocientista, que é graduado em

com pesquisadores de outros países foi vital para a evolução do meu gru-po. Hoje meus alunos e ex-alunos têm reconhecimento internacional e são convidados a dar palestras em outros países. Nós somos players”, afirma Ca-valheiro, que mantém paralelamente uma carreira de gestor em ciência e tecnologia: foi secretário de Políticas e Programas do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) entre 1999 e 2001, presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecno-lógico (CNPq) de 2001 a 2003 e desde 2005 atua como assessor da presidência do Centro de Gestão de Estudos Es-tratégicos (CGEE), organização social vinculada ao MCT, em Brasília.

O grupo de Cavalheiro na Unifesp mantém parcerias com instituições de vários países, entre as quais o Institu-

medicina e tem mestrado e doutorado em biologia molecular pela Unifesp e cumpriu estágios de pós-doutoramento no Centro Nacional de Pesquisa Cien-tífica da França e na Università degli Studi di Roma, na Itália. Em 1983 foi responsável pela criação do primeiro centro nacional voltado para o estudo da neurologia experimental, na então Escola Paulista de Medicina, hoje Uni-fesp, com o objetivo de estudar os me-canismos fisiopatológicos vinculados a vários distúrbios neurológicos.

Segundo ele, criar uma teia de cola-borações não é tarefa trivial – e a rela-tiva facilidade com que consegue atrair pesquisadores de fora para eventos e colaborações é uma conquista recen-te. “A primeira reunião internacional importante que realizei foi em Ma-naus, nos anos 1980, e tive de vencer o descrédito de muitos colegas, que tinham receio de doenças tropicais e diziam que a qualidade científica seria pequena”, recorda-se. O pesquisador já orientou quase 60 alunos de mestra-do e de doutorado e publicou mais de 220 artigos em revistas especializadas. “A estratégia de manter colaborações

O modelo

experimental

para estudo

da epilepsia

desenvolvido pelo

pesquisador hoje

é usado em

países como

Estados Unidos,

Inglaterra,

França e Itália

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 39

to de Neurologia de Milão, o Instituto de Neurociências da Universidade de Coimbra, a Universidade da Califórnia, Los Angeles, e a Universidade George Mason, próxima a Washington. É co-mum que receba visitantes estrangei-ros. “Muitos pesquisadores do exterior vêm até nós para realizar estágios de pós-doutorado ou mesmo doutorado. Vários grupos internacionais têm in-teresse em estabelecer cooperação com nosso grupo”, afirma. Em outubro de 2010, Vassiliy Tsytsarev, neurocientista da Universidade George Mason, passou uma temporada de duas semanas no laboratório de Cavalheiro, patrocinado pela FAPESP na modalidade auxílio vi-sitante do exterior. Nascido e formado na Rússia e com experiência de pes-quisador no Japão, onde fez dois pós- -doutoramentos, Vassiliy radicou-se nos Estados Unidos em 2005. Ele traba-lha com modelos animais para estudos de epilepsia e há tempos se corresponde com Cavalheiro, cuja produção cien-tífica já conhecia. O contato rendeu o convite para vir ao Brasil. “Fiquei mui-to impressionado com o ambiente de trabalho no laboratório”, diz Vassiliy. “Apesar da limitação de tempo, pude-mos experimentar uma nova técnica de visualização de crises epiléticas no córtex cerebral de ratos anestesiados.

Esses métodos se baseiam em níveis diferentes de reflexão da luz no tecido cerebral oxigenado e não oxigenado, o que nos permite enxergar áreas ativadas e não ativadas da superfície cerebral”, afirma o pesquisador, que deseja man-ter ativa a colaboração. “As ciências bio-médicas têm uma grande perspectiva no Brasil e gostaria muito de participar disso. Espero continuar a trabalhar com a Unifesp”, diz.

Centro de referência – Em meados de 2009, Emilio R. Garrido-Sanabria, diretor do Laboratório de Pesquisa em Epilepsia da Universidade do Texas, Brownsville, passou uma temporada de um mês em São Paulo, também gra-ças a auxílio da FAPESP. “O laboratório do professor Cavalheiro é um centro de referência em epilepsia reconhecido internacionalmente. Por muitos anos tem exibido uma produtividade eleva-da, traduzida em um grande número de trabalhos publicados em revistas in-dexadas. Uma das vantagens de visitar seu laboratório foi a oportunidade de colaborar com ele na determinação das bases fisiológicas, anatômicas e mole-

culares vinculadas à suscetibilidade a crises em novos modelos animais que só existem em seu laboratório”, diz. A Unifesp é uma referência importan-te na trajetória de Garrido-Sanabria. Graduado pelo Instituto Superior de Ciências Médicas de Havana, em Cuba, fez doutorado sob orientação de Esper Cavalheiro entre 1995 e 1999, com bolsa do CNPq, e pós-doutorado entre 1999 e 2001, com bolsa da FAPESP. Depois disso radicou-se nos Estados Unidos. Sua recente passagem pelo Brasil cris-talizou colaborações que envolveram outros grupos brasileiros e resultaram num trabalho aceito recentemente pa-ra publicação na revista Neuroscience e também num artigo de revisão sobre epilepsia límbica na revista Frontiers of Biosciences, que além da Unifesp te-ve a participação de pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A única nota dissonante que observou no Brasil, se-gundo o pesquisador, foi a dificuldade de importar anticorpos e reagentes, mesmo havendo recursos para isso. “O resultado é o atraso na obtenção dos insumos e o aumento de preços no meio do processo”, diz.

Esper Cavalheiro elogia o ambiente favorável no país para atrair talentos de fora. “Somos bastante generosos. As bolsas oferecidas pela FAPESP são mais elevadas do que as da Capes e do CNPq e São Paulo é atraente para pós- -doutores”, afirma. O trânsito interna-cional de seu grupo faz com que receba estudantes estrangeiros e envie alunos brasileiros para o exterior com frequên-cia. “Tenho um aluno que acabou de chegar da Espanha e outro que no ano passado esteve na França”, revela. “E já tivemos muita gente da França, da Itá-lia, da Costa do Marfim e de Portugal fazendo parte do doutorado aqui”, diz o professor, que agora se prepara para receber dois doutorandos da República de Camarões, contemplados por bolsas da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS). n

Fabrício Marques

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Criar uma teia

de colaborações

não é tarefa

trivial, diz

Cavalheiro, que

enfrentou

descrédito de

colegas quando

coordenou os

primeiros eventos

internacionais

Esper Cavalheiro: parcerias e curso internacional

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40 ■ MARÇO DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 181

LABORATÓRIO MUNDO

do Museu de História Natural de Londres e do University College London encontraram sinais de manipulação pós-morte de esqueletos humanos

CRÂNIOS USADOSCOMO TAÇAS

Os antigos ingleses usavam crânios humanos como copos. Pesquisadores

MÃOZINHA EXTRA

Já se imaginou com um terceiro bra-

ço? Por muito tempo se achou que não

fosse possível. Acreditava-se que a ima-

gem que temos de nosso corpo fosse

limitada pela estrutura corporal. Mas

pesquisadores do Instituto Karolinska,

na Suécia, mostraram que não é difícil

enganar o cérebro. A equipe de Henrik

Ehrsson conseguiu induzir em volun-

tários saudáveis – com dois braços – a

sensação de ter um braço extra (PLoS

ONE, fevereiro). Nos testes os parti-

cipantes sentavam-se com os braços

estendidos sobre uma mesa e, ao lado

de seu braço direito, foi colocada uma

prótese de borracha. Os pesquisadores

criaram a ilusão do terceiro braço ao

tocar simultaneamente a mão real e a artifi cial com um pincel.

Para ver se o braço de borracha era sentido como parte do

corpo, o grupo mediu o grau de ansiedade dos voluntários

quando uma faca era aproximada da mão real e da artifi cial.

Nessas situações, diz Arvid Guterstam, um dos autores do

estudo, surge um confl ito no cérebro. “Esperava-se que só

uma das mãos, presumivelmente a real, fosse sentida como

parte do corpo”, explica. “Mas o cérebro resolveu o confl ito

aceitando as duas.” O grupo acredita que a estratégia possa

ajudar na recuperação de acidente vascular cerebral.

na caverna de Gough, em Somerset, sudoeste da Inglaterra. Os tecidos moles eram extraídos, a mandíbula retirada e o alto do crânio transformado em cuia – as bordas eram retocadas para se tornarem mais regulares. Os especialistas chegaram a essa conclusão após examinar 41 peças (37 fragmentos de esqueletos e 4 de mandíbulas) de pelo menos cinco pessoas (uma criança de 3 anos, dois adolescentes e dois adultos) que viveram há estimados 14.700 anos. A determinação da idade dessas peças faz desses os crânios-copos mais antigos já encontrados e, por enquanto, os únicos conhecidos do arquipélago britânico. Relatos de crânios usados como taças são antigos, mas amostras arqueológicas são extremamente raras.

Cérebro enganado: ilusão de ter terceiro braço

Crânio de Gough: retoque nas bordas

OUTRO EFEITODO PROZAC

A fl uoxetina, o ingrediente ativo do antidepressivo Prozac, além de inibir a recaptação do neurotransmissor serotonina, suprime a atividade de um tipo de canal de potássio conhecido pela sigla TREK1, associado à regulação do humor, segundo estudo de pesquisadores da Califórnia, Estados Unidos (PNAS, 24 de janeiro). O TREK1 é um dos portões moleculares da membrana dos neurônios que controlam o fl uxo de íons. Ao permitir a passagem de potássio, ajuda a regular a transmissão dos impulsos elétricos pelos neurônios. Outros estudos tinham mostrado que camundongos com o gene TREK1 desativado resistiam à depressão, como os animais tratados com fl uoxetina.

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PESQUISA FAPESP 181 ■ MARÇO DE 2011 ■ 41

CALOR, PÓLEN E MAIS ALERGIA

As alergias causadas pelo

pólen da ambrósia ou artemí-

sia (Ambrosia artemisiifolia)

intensifi caram-se entre 1995

e 2009, prolongando-se por

duas a quatro semanas além

do perío do habitual nos últimos

anos, provavelmente por causa

das temperaturas mais altas e das geadas tardias nas

regiões ao norte dos Estados Unidos e do Canadá (PNAS,

21 de fevereiro). Esse estudo se mostrou coerente com as

projeções de especialistas do Painel Intergovernamental

de Mudanças Climáticas (IPCC) de uma elevação nas tem-

peraturas médias nas regiões mais próximas do Ártico.

A alergia à ambrósia, chamada de febre do feno, atinge

30% dos moradores dos Estados Unidos, principalmente

nas estações mais quentes do ano. Os sintomas variam

de uma simples coriza à asma severa.

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Ilustração de disco de poeira (faixa azul) ao redor da T Cha

Sólidos de água e sabão

No contato entre eles, surgiu uma superfície triangular paralela às das extremidades do prisma. O experimento mostra um delicado equilíbrio chamado metaestabilidade e pode ajudar a entender como o arranjo das bolhas no interior de espumas sólidas determina suas propriedades macroscópicas.

NASCE UM PLANETA

Usando o Very Large Telescope, conjunto de quatro telescópios ópticos do Observatório Europeu do Sul (ESO), instalado em Cerro Paranal, no Chile, um grupo de astrônomos observou na constelação Camaleão

O EQUILÍBRIO DAS FORMAS

Uma armação mergulhada em água e sabão nem sempre forma bolhas esféricas. Nicolas Vandewalle e sua equipe na Universidade de Liège, Bélgica, acompanharam as transformações de películas de sabão à medida que reduziam ou aumentavam a distância entre o topo e a base de um prisma de base triangular (sólido de cinco faces, em que a superior ea inferior são triangulares e paralelas, ligadas por três faces retangulares). Quando a distância correspondia à metade de um dos lados do triângulo, surgiram no interior da armação duas pirâmides triangulares (uma delas invertida), unidas por um fi o. Se a distância entre as faces triangulares fosse menor que 40% dessa medida, formavam-se dois troncos de base triangular (fi guras que lembram pirâmides sem o topo), um invertido sobre o outro. Nesse caso, porém, os lados da fi gura eram curvos (Physical Review E, no prelo).

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Pólen de ambrósia: alergias no verão

uma estrela de brilho muito fraco com apenas 7 milhões de anos – a T Chamaeleontis (T Cha), parecida ao que deve ter sido o Sol no início de sua vida – ainda acompanhada do disco de poeira que existe na fase inicial da formação dos planetas. No caso da T Cha, o disco, notaram os astrônomos, é composto por duas faixas: uma mais próxima à estrela e outra bem mais distante. Entre as faixas, a uma distância semelhante à que separa Júpiter do Sol, os pesquisadores identifi caram um objeto, que ainda não sabem dizer se é uma estrela muito pequena – uma anã marrom, por exemplo – ou, o que seria mais excitante, um planeta (Astronomy & Astrophysics, 12 de janeiro). Os planetas se formam a partir dessa poeira, mas a transição do disco para um sistema planetário é rápida e poucos objetos são observados durante essa fase. Nenhum planeta foi visto em seu anel de poeira, no caso da T Cha, localizado a apenas 20 milhões de quilômetros da estrela, embora outros planetas já tenham sido identifi cados antes em discos mais antigos.

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42 ■ MARÇO DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 181

LABORATÓRIO BRASIL

NOVA CLASSEDE ALIMENTOS

Versões altamente processadas dos alimentos tendem a ser mais calóricas e potencialmente mais perigosas à saúde do que a forma original dessas comidas. Consumir um pêssego fresco é, por exemplo, mais saudável do que ingerir a fruta em conserva. Com base nesse raciocínio, pesquisadores brasileiros encabeçados por Carlos Augusto Monteiro, da Universidade de São Paulo, propõem uma nova forma de classifi car os alimentos: em três categorias, e não mais duas (Cadernos de Saúde Pública, novembro de 2010). O principal parâmetro considerado é o grau de processamento. Produtos pouco ou não processados – frutas frescas, vegetais,

A LUA E OS PEIXES DO MANGUEZAL

A composição dos cardumes de peixes

que usam os canais de maré dos man-

gues varia em número de espécies e

em abundância de acordo com as fases

da lua, concluíram pesquisadores coor-

denados por Mário Barletta, da Univer-

sidade Federal de Pernambuco (Jour-

nal of Fish Biology, janeiro de 2011). Em

12 canais de maré do estuário do rio

Goiana, entre Pernambuco e Paraíba,

eles coletaram 5.528 peixes de 46 es-

pécies. O número de manjubas (Ancho-

via clupeoides), robalos (Centropomus

pectinatus) e de outras 16 espécies

variou com o ciclo lunar. Na lua nova

o número de indivíduos e a massa total

dos cardumes foram maiores. As luas cheia e nova tiveram

grande infl uência sobre as manjubas, possivelmente devido

à amplitude das marés (até dois metros). Na maré alta os pa-

râmetros físico-químicos da água (salinidade, temperatura e

oxigênio) nos canais do mangue assemelham-se aos da região

costeira adjacente, permitindo o acesso de mais peixes. Já na

vazante os parâmetros se diferenciam e os peixes retornam

para o canal principal do estuário e região costeira.

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grãos, carnes, leite, sucos naturais – formam o primeiro grupo. O segundo é composto por alimentos manipulados que entram em preparações culinárias, como farinhas, manteigas, óleos vegetais, sal, açúcar e certas massas. A novidade é o terceiro nível, dos extremamente processados, que deveriam ser ingeridos com moderação (pães, chocolates, queijos, refrigerantes e embutidos). O grupo de Monteiro aplicou essa classifi cação a um levantamento do IBGE feito em 48 mil domicílios e constatou que os alimentos do primeiro grupo contribuem com 42,5% das calorias ingeridas diariamente pelo brasileiro; os do segundo com 37,5%; e os do terceiro com 20%. A participação dos alimentos altamente processados foi maior entre os mais ricos.

Cardume de robalos (centro): maior na lua nova

Alimentos frescos: menos calorias

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PESQUISA FAPESP 181 ■ MARÇO DE 2011 ■ 43

OSCILAÇÕES NO CLIMA AMAZÔNICO

O clima da Amazônia sofreu alterações intensas entre 50 mil e 10 mil anos atrás. A equipe do geoquímico Renato Campello Cordeiro, da Universidade Federal Fluminense, analisou a composição química de colunas de sedimentos de lagos na região de São Gabriel da Cachoeira, alto rio Negro, próximo à Venezuela, e observou que nesse período houve três ciclos climáticos bem marcados (Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology, janeiro). O primeiro, de clima mais úmido, durou de 50 mil a 26,3 mil anos atrás. Foi seguido por outro, de 9 mil anos, em que prevaleceram temperaturas elevadas e pouca chuva. Só por volta de 15 mil anos atrás o clima na região voltou a ser mais úmido. Após comparar indicadores de umidade com os de produtividade da fl oresta, o grupo concluiu que pode haver mudanças nos processos químicos e biológicos do lago mesmo quando a cobertura vegetal ao redor segue inalterada.

Butantan, Mariana contou que muitas pessoas picadas por cobras na região de Santarém adotam medidas que podem agravar o ferimento: antes de ir ao hospital, a maioria (65%) toma remédios caseiros contra picadas de cobra ou passa alho, cebola ou banha sobre a picada (51%). Cerca de um quarto (27%) adota outra medida não recomendada: o torniquete. “Essas medidas aumentam o risco de complicações locais como infecções, necrose e, mais raramente, amputações”, diz Francisco França, médico do Hospital Vital Brazil do Butantan. O mais indicado é lavar o ferimento com água e sabão. Em São Paulo, segundo ele, as pessoas chegam mais rapidamente aos postos de atendimento. “Aqui o transporte é mais rápido e há mais serviços de saúde com soro antiofídico do que na Amazônia”, diz. “Por essas razões, os casos graves são mais raros.” A seu ver, o soro liofi lizado, que dispensa o uso de geladeira e já é usado em outros países, poderia reduzir o tempo de atendimento nas comunidades mais distantes.

TUBERCULOSE INVISÍVEL

No município do Rio de Janeiro as pessoas diagnosti-

cadas com tuberculose são encaminhadas às unidades

que participam do Programa de Controle de Tuber-

culose e são registradas no Sistema de Informação

de Agravos de Notifi cação (Sinan). O problema é que

tem sido alta a subnotifi cação de óbitos e internações

por tuberculose no Sinan, verifi caram Ludmilla Sousa,

da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, e Rejane

Sobrino Pinheiro, da Universidade Federal do Rio de

Janeiro, após examinarem os registros de mortes

associadas à tuberculose no Sistema de Informação

sobre Mortalidade e as internações do Sistema de

Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde.

Elas constataram que 43,2% dos 542 óbitos por tuberculose

e 22,1% das 1.079 internações ocorridos em 2004 não tinham

sido notifi cados no Sinam (Revista de Saúde Pública, fevereiro

de 2011). Possivelmente, o percentual de mortes e internações

não notifi cadas seja ainda maior, por não incluírem os casos

registrados após a morte. A subnotifi cação pode indicar uma

barreira ao tratamento no Rio de Janeiro, estado com inci-

dência de tuberculose acima da média nacional.

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DEMORA AGRAVAPICADAS DE COBRA

Ser picado por uma cobra na Amazônia é mais preocupante porque o posto médico mais próximo

pode estar muito longe. Mariana Quiroga, infectologista do Núcleo de Medicina Tropical, que trabalha no Hospital Municipal de Santarém, no Pará, avaliando 217 pessoas atendidas de julho de 2009 a agosto de 2010, verifi cou que nem todos chegam rapidamente aos hospitais. Só uma minoria (18%) consegue ir ao hospital em até três horas, 23% de três a seis horas e 12% em mais de 24 horas. Em consequência, uma em cada cinco picadas se caracterizou como acidente grave (os casos leves representaram 31% do total e os moderados 42%). Ao apresentar seu estudo em uma reunião do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinas realizada em fevereiro no Instituto

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A Terramoldada pela gravidade

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 45

[ GEoFÍSICa ]

medições apuradas deformam a esfera perfeita vista do espaço

Carlos Fioravanti

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Agravidade, como já fez com Newton, conti-nua a excitar a imaginação, levando a con-clusões desnorteantes. Uma delas: quem viajar de navio da Cidade do Cabo, na Áfri-ca do Sul, até Belém, no Pará, vai percorrer uma imperceptível descida. Por causa das diferenças de massa do planeta no trajeto

entre esses dois lugares – e, portanto, das variações do campo de gravidade da Terra –, o nível do mar no porto do sul da África do Sul está a 70 metros acima da altura do mar no porto de Belém.

“Ninguém nota esse desnível porque a distância entre a África do Sul e o Brasil é muito grande, de quase 8 mil quilômetros”, assegura o geofísico Eder Cassola Molina, professor do Instituto de Astronomia, Geo-física e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP). “Além disso, a superfície do mar é curva, já que nosso planeta tem o formato aproxima-do de uma esfera.” Ele fez no ano passado o mapa do Atlântico Sul que oferece essas conclusões, para passar no concurso de professor livre-docente, e agora uma versão menor, em formato A4, está pregada na porta de um dos armários de seu amplo laboratório.

A força gravitacional expressa a atração física entre os corpos – e varia de acordo com a massa. Um exemplo cotidiano da ação dessa força é a maré oceânica, resultado da interação gravitacional entre a Terra, a Lua e o Sol, que faz a Terra se deformar diariamente. Capaz de atuar em qualquer ponto do Universo, a força da gravidade faz com que os corpos em queda livre nas proximidades da superfície ter-restre sofram uma aceleração de aproximadamente 9,8 m/s2, ou seja, sua velocidade de queda aumenta 9,8 m/s a cada segundo.

A aceleração da gravidade varia sutilmente em cada ponto da Terra, de acordo com o relevo e a den-sidade das rochas do seu interior, já que a distribuição de massa na Terra é heterogênea. Vem daí um efeito interessante: “A distribuição de massa da Terra con-trola o nível em que a água do mar vai se encontrar

em um dado instante, pois a superfície instantânea do mar se ajusta de acordo com o campo de gravidade. Assim, temos altos e baixos na superfície oceânica”, diz Molina. “O nível do mar não é constante e varia com o tempo e a localização geográfica. Na verdade, nem existe um nível do mar, mas um nível médio ou um nível instantâneo do mar.”

Em um dos computadores próximos às paredes, Molina mostra outro mapa, que detalha as varia-ções de altura da água na costa brasileira. Nesse mapa, publicado em dezembro de 2010 na revista Journal of Geodynamics, uma mancha vermelha a nordeste da Região Nordeste do Brasil representa uma área em que a água do mar deve estar 10 metros acima do que as áreas que a cercam, marcada em ver-de e azul. “Com um mapa desses à mão”, diz Molina, “o piloto de um barco poderia desviar das áreas mais altas, mesmo que não as veja e economizar tempo e combustível”. Mesmo útil, essa imagem não deixa de ser um desafio à imaginação, principalmente dos mais céticos, que dirão que nunca viram uma ladeira com água escorrendo no meio do mar.

No mar e na terra – Fernando Paolo, que agora faz doutorado no Instituto Scripps de Oceanografia, Es-tados Unidos, elaborou esse mapa em 2010, enquanto Molina, que o orientou, preparava o maior. As duas imagens resultam da soma de duas fontes de infor-mações, uma local e outra global. A primeira são os aparelhos que medem a variação do campo de gravi-dade, os gravímetros, instalados em boias amarradas atrás de 300 navios que percorreram a costa da África e do Brasil nos últimos 30 anos. A outra são medido-res da variação da altitude do mar instalados em dois satélites, o Geosat, que a Marinha dos Estados Unidos lançou em 1986, e o Satélite Europeu de Sensoriamen-to Remoto (ERS-1), em órbita desde 1995. “Usando as duas fontes de informação, desenvolvemos uma metodologia que nos permitiu enxergar, em algumas áreas, como a plataforma continental brasileira, mais

CiênCia

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46 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

do que os pesquisadores que estudam essa mesma região usando apenas dados de satélites”, comenta Molina.

A medição das variações de altitude da água do mar por meio de satélite, mesmo que pareça estranha a ma-rinheiros de primeira viagem, pode indicar vales ou morros da superfície oceânica não detectados por outros métodos, já que nem tudo o que o sa-télite examina foi avaliado por levan-tamentos batimétricos, bastante caros e trabalhosos. Em terra, esse tipo de nivelamento, feito por aparelhos GPS (sistemas de posicionamento globais), que exige um bom conhecimento do campo de gravidade, está substituindo as medições de relevo por nivelamento geométrico clássico, obtidas por meio de equipamentos chamados teodolitos: cada medição indicava as variações do relevo a distâncias de aproximadamen-te cada 100 metros, cobrindo poucos quilômetros por dia.

“Toda obra de engenharia precisa de dados precisos sobre altitude”, diz Denizar Blitzkow, professor da Escola Politécnica da USP. Os aparelhos com que ele começou a medir as variações da gravidade em São Paulo nos anos 1970 estão hoje no futuro museu da engenha-ria civil, que deve ser aberto este ano.

Essa forma de medir variações asso-ciadas ao campo de gravidade, somada a outras técnicas, indicou depósitos de petróleo em regiões do Nordeste, por

exemplo. A medida da variação de mas-sa – e da força e aceleração da gravidade, diretamente proporcionais a essa massa – está também sinalizando onde pode haver minérios ou cavernas inexplora-das, elucidando detalhes antes inexpli-cáveis de mapas geológicos, revelando diferenças na espessura na litosfera (a camada superficial da Terra) e, por fim, mostrando como e onde a quantidade de água de depósitos subterrâneos nos grandes aquíferos pode oscilar ao lon-go do ano. “Até poucos anos atrás”, diz Molina, que começou a trabalhar com gravimetria no início dos anos 1980, “tudo isso era impossível”.

As informações de dois novos saté-lites europeus, o Grace e o Goce, estão

detalhando as variações do campo de gravidade desde 2003 e permitindo a construção de uma imagem mais exata, embora um tanto desconfortável, das formas da Terra. Os gregos imagina-vam a Terra como uma esfera perfeita, mas essa perfeição se desfez à medida que a possibilidade de o planeta girar continuamente se consolidava durante o Renascimento. Newton afirmava que, em consequência do movimento de ro-tação, a Terra deveria ser achatada.

Visto do espaço, o planeta continua parecendo uma esfera quase perfeita, embora os mapas feitos com base na aceleração da gravidade representem uma Terra deformada, às vezes assu-mindo uma forma que lembra um co-ração. “Os satélites estão mostrando que estávamos errados. Por meio das medições mais recentes, verificamos que a Terra é muito pouco achatada”, diz Blitzkow. A medida do eixo da Ter-ra no equador encolheu 250 metros, passando de 6.370.388 metros em 1924 para os atuais 6.370.136,5 metros.

Desde 1982 Blitzkow trabalha com equipes do IBGE em mapas da variação do campo de gravidade em todo o ter-ritório nacional. A versão mais recen-te, que inclui outros países da América do Sul, saiu em 2010, mostrando que a força ou aceleração da gravidade é menor em uma área que compreende o Ceará, um pouco dos estados vizinhos e a região central do país, até o norte do estado de São Paulo.

Andes e Amazônia – Poucos dias antes do Natal de 2010, uma semana antes do prazo final, Gabriel do Nascimen-to Guimarães apresentou a Blitzkow a quarta versão de um mapa mais de-talhado, com as variações do campo de gravidade do estado de São Paulo – resultado de 9 mil pontos de medição em terra, complementados por infor-mações dos satélites Grace e do Goce. Esse estudo faz parte do doutorado de Guimarães e de um projeto maior, coor denado por João Francisco Galera Mônico, da Universidade Estadual Pau-lista (Unesp) em Presidente Prudente, voltado à chamada agricultura de pre-cisão, que busca as melhores condições de cultivo e colheita.

Os mapas geodésicos, feitos a partir das diferenças de elementos do campo de gravidade, abafam as diferenças de

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Gnss: investigações e aplicações no posicionamento geodésico, em estudos relacionados com a atmosfera e na agricultura de precisão – nº 2006/04008-2

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Projeto Temático

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João Francisco Galera mônico – unesp

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O PrOjetO

Representação da Terra expressa força da gravidade, mais intensa nas áreas em vermelho

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 47

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relevo. No mapa da altura geoidal do estado de São Paulo o relevo apresen-ta variações de apenas seis metros de altura de leste a oeste, sem nenhum si-nal das montanhas de 1.200 metros de altitude próximas ao litoral. No mapa da América do Sul as regiões mais altas estão nos Andes, mas com apenas 40 metros acima do nível zero, que cor-responde ao da Amazônia.

O conceito de que a aceleração da gravidade reflete a distribuição da massa ajuda a entender essas diferenças agora tão pequenas. “Os Andes, embora com 6 mil metros de altitude, não têm muito mais massa que a Amazônia”, diz Blitzkow. “Se pudéssemos pegar e pesar um cilindro da superfície de uma montanha dos Andes e outro da Ama-zônia, veríamos que a diferença de peso não é tão intensa quanto a variação de altitude.” No mapa de alturas geoidais da Terra, a cordilheira do Himalaia não passa de um morrinho.

Construído por alemães e norte- -americanos, o Grace, abreviação de

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Variações de até 70 metros no nível médio do mar refletem as diferenças do campo de gravidade da Terra

A força da

gravidade ganha

novas aplicações.

Só falta descobrir

de onde vem

a gravidade

Artigo científico

PAOLO, F.S.; MOLINA, E.C. Integrated marine gravity field in the Brazilian coast from altimeter-derived sea surface gradient and shipborne gravity. Journal of Geodynamics. v. 50, p. 347-54. 2010.

equipamentos de bordo registram va-riações de milésimos de milímetros na distância entre eles. O Goce, sigla de Gravity Field and Steady-state Ocean Circulation Explorer, foi construído pela Comunidade Europeia e lançado em 2009 para registrar algo comple-mentar, a variação dos vários elementos do campo de gravidade em relação a três eixos preestabelecidos.

A aceleração da gravidade está cons-tantemente ganhando novas aplicações. A origem da gravidade, porém, dife-rentemente da de outras forças, como a eletricidade e o magnetismo, ainda é um mistério. Ninguém sabe como o Sol atrai a Terra e, em proporção menor, a Terra atrai o Sol. n

Gravity Recovery and Climatic Expe-riment, é um conjunto de dois satéli-tes gêmeos, separados 200 quilômetros entre si, que foram para o espaço em 2002. Por estarem em uma órbita baixa, a apenas 250 quilômetros de altitude (outros satélites com funções simila-res estavam a pelo menos mil quilôme-tros), eles medem as mais sutis interfe-rências de montanhas e vales da Terra sobre a trajetória de cada um deles: os

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48 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

[ astrofísica ]

Brilho tênue

Levantamento descobre 900 novas anãs brancas magnéticas, um tipo raro de estrela

Oúltimo estágio evolutivo da vida de aproxima-damente 98% das estrelas da Via Láctea é como uma anã branca, um corpo celeste degenerado, de brilho tênue e porte encolhido, ainda que extremamente denso. Depois de perderem as camadas de sua atmosfera e consumirem to-do o hidrogênio e o hélio em seu núcleo, essas

estrelas velhas e decadentes comprimem sua massa em uma área 1 milhão de vezes menor do que a sua dimen-são original. O Sol, por exemplo, deve virar um objeto moribundo com essas características daqui a 6 bilhões de anos. Ao menos 15 mil anãs brancas já foram desco-bertas em nossa galáxia. Não chega a ser uma grande novidade identificar no céu uma nova estrela na fase final de sua existência. Mas o astrofísico Kepler de Souza Oliveira Filho, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), conseguiu uma pequena proeza ao encontrar, num curto espaço de tempo, quase mil estrelas agonizantes de um tipo bastante raro, as chamadas anãs brancas magnéticas. “Descobrimos 900 dessas estrelas no ano passado”, diz o pesquisador gaúcho. “Até então conhecíamos 150 anãs brancas magnéticas.” O achado já foi divulgado num congresso científico, mas ainda não ganhou as páginas das revistas especializadas.

Como regra geral, as anãs brancas não exibem campo magnético. Por estarem próximas do fim, perderam quase todos os predicados da juventude, inclusive o magnetis-mo. No entanto, um pequeno número delas mantém, misteriosamente, essa característica. E não se trata de algo residual. A força do magnetismo numa anã branca desse tipo pode ser milhões ou até bilhões de vezes maior

Linhas do campo

magnético do Sol

Marcos Pivetta

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 49

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Anã branca: estrela degenerada, densa e, em poucos casos, também magnética

objeto celeste. “Ele pode ser um resquí-cio fóssil das fases anteriores da estrela, pode ter sido gerado durante o processo de evolução estelar ou estar sendo pro-duzido atualmente por um dínamo ati-vo.” Em astrofísica, a teoria do dínamo tenta explicar como a Terra e as estrelas são capazes de gerar e manter atividade magnética por longos períodos.

Desvio de rota – Kepler descobriu o inusitado grupo de estrelas ao deparar com um problema, que o desviou do objetivo original de seu estudo mas o conduziu às 900 anãs brancas mag-néticas. Quando começou a estudar dados do levantamento internacio-nal Sloan Digital Sky Survey (SDSS) referentes a 50 mil estrelas candidatas a serem classificadas como anãs bran-cas, percebeu algo de estranho. Feita automaticamente por um software muito empregado pelos astrofísicos, a análise das chamadas linhas do es-pectro de emissão dessas estrelas – ou seja, de gráficos que mostram os fótons liberados pelos elementos químicos presentes nesses objetos – gerou um resultado fora do esperado. O progra-ma apontava erros de informação em 40% da amostra de estrelas do SDSS,

um índice extremamente elevado. O pesquisador da UFRGS desconfiou do resultado e resolveu verificar, com o seu próprio olho, a qualidade dos da-dos. Encontrou um padrão de linhas de emissão completamente anômalo em algumas estrelas, um desvio que deve-ria ser causado por um tipo especial de anã branca, as magnéticas. “Se eu não tivesse feito essa checagem manual, o software nunca teria descoberto essas estrelas”, diz Kepler, que contou com a ajuda de uma aluna de iniciação cien-tífica da UFRGS, Ingrid Pelisoli, para dar cabo da tarefa.

As anãs brancas magnéticas desper-taram o interesse do astrofísico brasi-leiro porque são estrelas cuja massa é difícil de dimensionar. “Seu campo magnético é tão forte que distorce os átomos e impede a realização desse tipo de medição com precisão”, afirma Ke-pler. Determinar com precisão a massa de anãs brancas era justamente o obje-tivo inicial do pesquisador quando teve acesso aos dados do SDSS. Desde 2007 Kepler tenta encontrar anãs brancas que estejam o mais próximo possível do chamado limite de Chandrasekhar, uma ideia proposta nos anos 1930. De acordo com essa lei, cuja formulação deu o Nobel de Física de 1983 ao fa-moso teórico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar (1910-1995), uma anã branca só se mantém estável se sua massa for, no máximo, 40% maior do que a do Sol. Se tiver mais do que 1,4 massa solar, ela sofre um colapso gra-vitacional e se transforma numa estrela de nêutrons ou buraco negro.

Não faltam questões a serem elu-cidadas sobre esse tipo especial de anã branca. “Esses objetos nos dão uma oportunidade única de entender a vida das estrelas magnéticas”, diz o astrofísico Baybars Külebi, da Univer-sidade de Heidelberg, Alemanha, que vai colaborar com Kepler nos estudos sobre esses misteriosos objetos celestes. “Isso é importante, visto que o magne-tismo não é muito bem explicado pela teoria da evolução estelar.” Apesar dos empecilhos, o pesquisador brasileiro ainda não desistiu de tentar determinar a massa das anãs brancas magnéticas. “Vamos testar outro método que, em vez do espectro de emissão, usa a cor da estrela para medir esse parâmetro”, afirma Kepler. n

do que a do Sol. O campo magnético médio do Sol é da ordem de 1 Gauss, o dobro do da Terra, com picos de alguns milhares de Gauss nas áreas em que se formam manchas. Apenas as estrelas de nêutrons apresentam campo de maior magnitude do que essa variante de anã branca. “A gênese do campo é um mis-tério desde a descoberta da primeira anã branca magnética nos anos 1970”, diz o astrofísico Dayal Wickramasinghe, da Universidade Nacional da Austrália, um dos maiores especialistas nesse tipo de

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[ Ecologia ]

A floresta oculta

Uso da terra afeta a diversidade biológica do solo amazônico B

esouros, pseudoescorpiões, cupins, bactérias, formigas, fungos, aranhas, ácaros, caramujos, larvas e raízes de plantas fazem parte de um mundo invisível. Pelo menos para quem anda pela floresta amazônica atordoado pelo tamanho das árvores, pelo ruído

das aves, pelo calor úmido e pelas picadas de insetos. É justamente essa diversidade oculta que uma equipe de pesquisadores que reúne 15 instituições de vários estados brasileiros vem catalogando desde 2002 no alto Solimões, uma região da Amazônia próxima à fronteira com a Colômbia e o Peru. Coordenado pela microbióloga Fatima Moreira, da Universida-de Federal de Lavras (Ufla), em Minas Gerais, o projeto Bios Brasil contou, por exemplo, 239 espécies de formigas, 75 de cupins e 53 de besouros nas amostras de solo analisadas. “Ninguém pensa nos organismos pequenos ou invisíveis, mas o solo é uma fonte imensa de recursos”, argumenta a pesquisadora.

O projeto nasceu de uma iniciativa do Pro-grama de Biologia e Fertilidade do Solo Tro-pical que, com apoio do programa ambiental da Organização das Nações Unidas, em 1995 reuniu representantes de vários países que ain-da têm florestas e diversidade biológica impor-tantes a serem protegidas. A ideia amadureceu aos poucos, e passados alguns anos sete paí-ses – Brasil, México, Uganda, Quênia, Costa do Marfim, Indonésia e Índia – começaram o trabalho com métodos padronizados.

Maria Guimarães

ilustrações Pedro Hamdan

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 51

A vertente brasileira envolveu 40 pesquisa-dores e mais de 100 estudantes, que escavaram 100 pontos de amostragem junto das comuni-dades estudadas. Somando todos esses pontos, a amostragem chega a 54 hectares, algo como 54 campos de futebol transformados em bura-co. Nas escavações era preciso sempre estarem presentes pelo menos um professor e um aluno para cada uma das 15 especialidades de estudo, trabalhando à sua maneira. Os especialistas em solo analisavam as propriedades e recolhiam amostras para depois fazer análises químicas e físicas; os entendidos em organismos micros-cópicos, como as bactérias, fungos e nematoi-des, também coletavam amostras para depois examinar ao microscópio e extrair material ge-nético revelador da diversidade invisível a olho nu. Já os estudiosos de minhocas e insetos, por exemplo, esquadrinhavam a terra revirada em busca de seus organismos prediletos. Outra equipe identificou todas as espécies de plantas encontradas nas áreas estudadas.

Trabalhando juntos, os pesquisadores têm segurança em relacionar a diversidade de um tipo de organismo com outro e buscar a corres-pondência dessa diversidade com o tipo de solo e de uso: floresta, capoeira, roça, sítio e pasta-gem. Precisaram vencer não só as dificuldades intrínsecas ao trabalho, mas também conquis-tar a confiança dos moradores. “No começo eles achavam que estávamos procurando ouro”, se diverte Fatima, “mas depois nos aceitaram e se interessaram pelo estudo”.

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52 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Os brasileiros escolheram o alto Solimões, na Amazônia, por ser uma zona ainda de difícil acesso e por isso preservada. Ali só se chega pelo rio, de-pois de meia hora de barco desde Ta-batinga, na fronteira com a Colômbia, até o município de Benjamin Constant, onde estão as comunidades indígenas de Nova Aliança e Guanabara II. A zona é isolada, o que não quer dizer que ali só vivam alguns índios caçando com arco e flecha em meio à mata virgem. São comunidades com cerca de 50 fa-mílias que praticam a queima e o corte da floresta para plantar alimento.

Corte permitido – O achado mais importante do estudo, até agora, diz respeito às consequências do método usado por lá, de desmatar áreas peque-nas e, depois de um tempo de plantio, deixar regenerar a floresta. “Existe uma noção de que a derrubada e a quei-ma sejam procedimentos maléficos”, explica Fatima. Mas sua equipe des-cobriu que, associados à conservação de grandes áreas de floresta, pequenos trechos desmatados se regeneram bem como capoeiras, uma forma de flores-ta imatura. E que o solo das capoeiras logo readquire características e riqueza biológica semelhantes às das florestas. “As comunidades ali fazem isso há centenas de anos, e funciona”, conta. E contrasta: “Desmatar grandes áreas, como se faz no Acre, em Rondônia e no Pará, é maléfico mesmo”.

Esse foi o tema do doutorado de Ederson Jesus, orientado por Fatima, que recebeu menção honrosa pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a Capes. Ele mostrou que mudanças no uso do solo alteram a estrutura das comunidades bacterianas, mas quando a capoeira cresce essas comunidades voltam a ser semelhantes às que se veem em flores-tas primárias. Segundo artigo de 2009 no ISME Journal, essas alterações nas comunidades bacterianas estão ligadas às propriedades químicas do solo, so-bretudo a acidez e a concentração de nutrientes. Concluir que as técnicas de plantio usadas nessas comunidades não bastam para perder a diversidade de bactérias é essencial, porque esses organismos microscópicos são indis-sociáveis das propriedades do solo e ajudam a manter um fluxo de nutrien-tes adequado.

A própria queimada permite neu-tralizar a acidez e reduzir a concen-tração de alumínio disponível, que é naturalmente alto no solo da região e tem efeito tóxico para as plantas. Mas essa melhoria do solo não passa de tem-porária, conforme mostrou a equipe de Fatima em artigo de 2009 na revista

Science of the Total Environment. Depois que as plantas cultivadas consomem os nutrientes, o solo rapidamente fica em-pobrecido sem a produção e a deposi-ção de matéria orgânica, o que acontece quando a floresta cresce. É por isso que o grupo encontrou as piores condições, com alta acidez e baixa concentração de nutrientes, nos pastos.

Em colaboração com bactérias e fungos, os grandes (embora minúscu-los) responsáveis pelo enriquecimento do solo por meio da decomposição da matéria orgânica são os artrópodes, sobretudo os ácaros oribatídeos e os colêmbolos. Um estudo liderado por José Wellington de Morais, do Insti-tuto Nacional de Pesquisas da Ama-zônia (Inpa) e publicado em 2010 na Neotropical Entomology, mostrou que o conjunto de organismos dos sistemas de roça não é muito diferente daquele que caracteriza a floresta primária. Já o sistema agroflorestal, com desma-tamento mais extenso, acaba ficando mais parecido com o dos pastos, que são bastante pobres. O trabalho indi-cou também que os ácaros parecem ser mais resistentes às condições adversas, já que são os organismos dominantes no solo das áreas de pastagem.

Nenhuma praga

consegue dizimar

uma floresta,

elas só são

eficientes

contra

monoculturas

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 53

Os pesquisadores do Bios Brasil ainda estão quebrando a cabeça pa-ra encaixar todas essas peças e tentar entender as relações cíclicas que ligam o solo, os organismos que vivem nele e o tipo de uso feito pelas populações humanas. “Tudo se relaciona”, ressalta Fatima, “mas é como o enigma do ovo e da galinha”.

Para os pesquisadores, os achados equivalem a ouro: muitas novidades surgem da exploração desse mundo desconhecido logo debaixo dos pés. “Já descrevemos espécies novas de nematoides, de formigas, de cupins e de fungos”, comemora a coordena-dora do projeto. Alguns dos cupins encontrados chegaram a representar um gênero novo, descrito na Zootaxa por Reginaldo Constantino, da Uni-versidade de Brasília, e Agno Acioli, da Universidade Federal do Amazonas. O nome dos insetos, Ngauratermes, vem do idioma ticuna, falado pelos índios mais comuns na região. Significa cupim que habita a serrapilheira.

Ação local – Além de render um gran-de número de publicações científicas, que estão longe de chegar ao fim, o grupo produziu também uma cartilha para expor os resultados às comunida-des locais, disponível no site do projeto (www.biosbrasil.ufla.br). “O trabalho do pesquisador é essencial”, destaca Fa-tima, “mas quem vai preservar de fato é a população local, por isso precisamos

Ninguém pensa

nos organismos

pequenos ou

invisíveis, mas o

solo é uma fonte

imensa de recursos,

diz Fatima Moreira

Artigos científicos

1. JESUS, E. DA C. et al. Changes in land use alter the structure of bacterial communities in Western Amazon soils. The ISME Journal. v. 3, p. 1.004-11. 2009.2. MOREIRA, D. M. de S. et al. Differentiation in the fertility of Inceptisols as related to land use in the upper Solimões river region, western Amazon. Science of the Total Environment. v. 408, p. 349-55. 2009.3. MORAIS, J. W. de et al. Mesofauna do solo em diferentes sistemas de uso da terra no alto rio Solimões, AM. Neotropical Entomology. v. 39, n. 2, p. 145-52. 2010.4. SILVA, G. A. et al. Eficiência de fungos micorrízicos arbusculares isolados de solos sob diferentes sistemas de uso na região do alto Solimões na Amazônia. Acta Amazonica. v. 39, n. 3, p. 477-88. 2009.

mostrar a importância dessa riqueza de maneira que possam entender”. As car-tilhas, em português, espanhol (por ser uma região fronteiriça com a Colômbia e o Peru) e inglês (a língua oficial do projeto internacional), têm sido bem usadas pela equipe. Foram o material didático para cursos em que apresenta-ram os dados à população e agora são usadas nas escolas, explicando noções de ecologia em termos integrados ao cotidiano das crianças.

Manter intacta essa riqueza é muito mais do que sentimentalismo. Fatima esclarece que a região produz impor-tantes fontes de alimento, como a pu-punha, o cupuaçu e várias hortaliças típicas dali. A agrobiodiversidade vem sendo explorada não só como maneira de cultivar essas plantas e tê-las dispo-níveis em outras regiões, mas também de entender as parcerias naturais que as tornam mais saudáveis e produtivas. Um exemplo são bactérias e fungos que se associam às raízes de plantas e as ajudam na nutrição. O grupo da pes-quisadora da Ufla tem usado bactérias amazônicas para melhorar a produtivi-dade do feijão-caupi (Vigna unguicula-ta) em outras regiões. Esse enfoque vem do mestrado de Fatima, no Inpa, com

Johanna Döbereiner, reconhecida no mundo todo por seu trabalho pioneiro com bactérias fixadoras de nitrogênio.

Gláucia Alves e Silva, sob orienta-ção de José Oswaldo Siqueira, da Ufla, e Sidney Stürmer, da Fundação Univer-sidade Regional de Blumenau, testou a eficiência da associação entre fungos e o feijão-caupi. Ela verificou, conforme publicado na Acta Amazonica, que os fungos mais eficientes para a absorção de fósforo são mais comuns em roças e em pastagens. Além disso, Fatima lembra que a diversidade biológica é uma proteção natural: nenhuma praga consegue dizimar uma floresta, elas só são eficientes contra monoculturas.

Fatima considera que outro grande benefício do projeto foi agregar pesqui-sadores que de outra maneira teriam continuado isolados. “Formamos um grupo unido que está aumentando.” O trabalho não deve ficar restrito à Ama-zônia. Acaba de ser aprovado um pro-jeto de R$ 2,5 milhões pela Vale, como parte de um edital com participação da FAPESP e da Fapemig, para fazer um estudo semelhante nos estados de Minas Gerais e São Paulo, que deve ter início ainda este ano.

Para a pesquisadora, preservar a Amazônia é um assunto de interesse mundial, e ela defende uma bolsa-flo-resta que ajude as comunidades locais a preservar a floresta amazônica e evitar as transformações drásticas que já aconte-ceram, sem possibilidade de retorno, em outras regiões do mundo. “A região do Irã e do Iraque, o berço da civilização, já foi toda floresta; hoje é deserto.” n

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[ genética ]

Muitas cores, um povo

ancestralidade europeia é disseminada em quatro regiões do Brasil

Uma terra habitada por índios, colonizada por portugueses e para onde foram trazidos escravos de vários países africanos. O resul-tado as crianças aprendem na escola: cafu-zos, mamelucos e mulatos. “Na época do Império isso não era visto com bons olhos pelos proponentes do racismo científico, e

dom Pedro II instituiu a política do branqueamento”, lembra o geneticista Sergio Pena, da Universidade Fe-deral de Minas Gerais (UFMG). “Esse programa, que trouxe ao Brasil 6 milhões de imigrantes europeus, continuou na República e durou até os anos 1970.” Na superfície não funcionou: gerou uma gradação contínua de tons de tez que vai desde pessoas com pele alva, olhos azuis e cabelos loiros até aquelas com pele bem escura e traços africanos. Mas o geneticista agora mostra, em artigo publicado em fevereiro na PLoS One, que algo funcionou. Habitantes de quatro regiões do país (o Centro-Oeste ficou de fora) têm pelo menos 60% de ancestralidade europeia em seu material genético. “Temos europeus pardos, europeus pretos e europeus brancos”, brinca Pena.

A equipe responsável pelo estudo, que além da UFMG inclui pesquisadores da Bahia, do Rio de Ja-neiro, do Rio Grande do Sul, do Ceará, do Pará e de São Paulo, analisou amostras de habitantes das regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul. “Foi uma amostragem benfeita e sistemática”, explica o geneticista. O gru-po analisou a proporção de ancestralidade europeia, africana e ameríndia em 934 pessoas que se definiam

como brancas, pardas ou pretas, em Belém, Fortaleza, Ilhéus, Rio de Janeiro, Joinville e Porto Alegre.

O estudo lançou mão de 40 trechos do DNA, que outros estudos de Pena já tinham mostrado serem suficientes para esse tipo de caracterização. São partes do material genético sem relação com as caracterís-ticas usadas para caracterizar raças, como a cor da pele e dos cabelos, mas que são distintas conforme a origem geográfica. Os resultados mostram que não há necessariamente uma correspondência direta entre cor da pele e ancestralidade. Isso não chegou a ser uma surpresa para o geneticista mineiro, que há tem-pos descreve o mosaico que forma o brasileiro (ver Pesquisa FAPESP nº 134). Em alguns brancos do Rio de Janeiro, por exemplo, os trechos do DNA usados como marcadores indicaram uma ancestralidade afri-cana mais pronunciada do que a europeia; na mesma cidade, alguns dos que se declararam pretos, confor-me terminologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são quase integralmente euro-peus no que diz respeito a esses marcadores. “Há uma tremenda variabilidade entre um indivíduo e outro, esses trechos do genoma revelam a individualidade de cada brasileiro”, comenta o pesquisador.

Os diagramas de ancestralidade também revelam algo da composição da população nas regiões do país. No Pará e no Rio Grande do Sul nota-se uma presença indígena na composição genética de parte dos bran-cos e pardos que participaram do estudo. Já na Bahia e no Rio de Janeiro, essa presença indígena é quase g

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PESQUISA FAPESP 181 n março De 2011 n 55

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Artigo científico

PENA, S. D. J. et al. The genomic ancestry of individuals from different geographical regions of Brazil is more uniform than expected. PLoS One. v. 6, n. 2. 2011.

inexistente enquanto a ancestralidade africana é mais comum.

Mas mesmo com essas diferenças o trabalho encontrou uma homogenei-dade surpreendente entre as regiões. Para isso, foi preciso antes usar uma ferramenta estatística (algo como uma média ponderada), que os pesquisado-res chamaram de “ancestralidade total”, para deixar de lado as particularida-des regionais na percepção da própria cor. “Uma pessoa que se diz parda no Norte não é geneticamente semelhante à parda do Sul”, explica Pena, “o que pode ser explicado por uma diferen-ça de exposição ao sol e também por contextos sociais distintos”. Uma vez eliminada essa variação, revelou-se que as quatro regiões têm, em média, pelo menos 60% de ancestralidade europeia – o mínimo foi o Nordeste, com 61%, e o máximo, 78%, está na Região Sul. As heranças africana e ameríndia, por ou-tro lado, são menos expressivas e mais variáveis de uma região para outra.

É um resultado marcante, mas ain-da não consensual entre geneticistas in-teressados em populações humanas. O geneticista norte-americano Alan Tem-pleton, da Universidade Washington, em Saint Louis (ver Revista FAPESP edição especial Revolução Genômica, de maio de 2008), se preocupa com o uso de raça autodeclarada, a norma adotada pelo IBGE. “Participei de um estudo com sociólogos e tivemos a surpresa de descobrir que as mesmas pessoas não se classificam da mesma maneira ao longo do tempo”, conta. Como o cálculo da ancestralidade total usa o levantamento do IBGE, ele não conseguiria eliminar discrepâncias em autoavaliação. Uma alternativa, segun-do Templeton mais precisa, seria usar um método conhecido como “marca-dores informativos de ancestralidade” (AIMs, na sigla em inglês), que inferem contribuições de ancestralidade sem nenhuma referência a cor. O problema é que esse enfoque puramente genético exigiria muito mais do que 40 marca-dores genéticos – o grupo do norte-americano usou quase 2 mil. Mesmo assim, de maneira geral ele concorda com Pena: “A conclusão principal que eu tiraria desses dados é que categorias raciais autodeclaradas são indicadores pouco confiáveis de ancestralidade ge-nômica no Brasil”.

Na prática – O estudo liderado por Pena tem um significado médico im-portante. Não por acaso, ele integrou a pesquisa da Rede Brasileira de Far-macogenética, que investiga como a composição genética de cada pessoa influencia o metabolismo de fármacos e busca chegar a uma medicina perso-nalizada. O trabalho da caracterização da ancestralidade do brasileiro já vem servindo de base para outros estudos e, segundo o geneticista, deve alterar a validade aceita para estudos farmacoló-gicos. “É comum se dizer que estudos feitos no Sul não valem para o Norte, porque a composição étnica é distinta; mostramos que não é assim.” Em outros países já foi observada uma variação na suscetibilidade a doenças e na resposta a fármacos conforme a etnia.

Pena defende que o importante é en-tender que, no caso do brasileiro, o que conta é a ancestralidade, e não a cor da pele. Daqui para a frente, segundo essa visão, estudos farmacológicos deveriam incluir informações sobre a ancestrali-dade dos participantes. E, nos casos em que um medicamento funciona melhor para certos grupos étnicos em relação a outros, seria necessário fazer o perfil de ancestralidade do paciente antes de se traçar um tratamento.

Do ponto de vista social, para Pena os resultados reforçam o que ele já vem

Mais do que

nunca o Brasil,

mesmo com

suas dimensões

continentais,

é um único país,

diz Sergio Pena

defendendo há anos: “Não se justifica querer ‘racializar’ o Brasil”. A ideia po-deria causar ecos nas políticas de cotas, já que uma pessoa de pele escura pode ter mais antepassados europeus do que uma de pele mais clara. Mas ele admite que não é tão simples. Afinal, a discri-minação se baseia no visível, não em análises de DNA. “Não existem raças, mas os racistas não dão importância para isso”, ironiza.

Além de professor na UFMG, Sergio Pena também fornece testes genéticos de vários tipos – perfis de ancestrali-dade inclusive – em sua empresa Gene, pioneira nessa área na América Latina. Para ele, entender o mosaico que forma o brasileiro e torna cada pessoa impos-sível de definir quanto à sua composição étnica tem uma importância muito mais profunda do que suas aplicações práti-cas. “Estamos nos entendendo como gente”, se orgulha. “Mais do que nunca o Brasil, mesmo com suas dimensões continentais, é um único país.” n

Maria Guimarães

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Uma série de reportagens publicada em janeiro deste ano no British Medical Journal (BMJ), respeitada revista inglesa da área médica, apre-sentou evidências contundentes de manipu-lação de dados e de conduta antiética em um estudo do fim dos anos 1990. Essa pesquisa causou um efeito devastador sobre a saúde

pública de diversos países e colocou em risco a vida de milhares de crianças ao sugerir que a vacinação contra sarampo, caxumba e rubéola poderia levar ao desen-volvimento de autismo. Com os textos do BMJ, volta à mesa uma questão tão antiga quanto o próprio método científico: como reduzir os riscos de fraude?

A história contada agora em minúcias pelo jornalista Brian Deer, que investigou o caso da vacina tríplice viral por sete anos e teve acesso aos registros médicos dos participantes do estudo, expõe mais uma vez as fragi-lidades de um sistema de produção de conhecimento que apresenta certa capacidade de se autocorrigir. Mas que não é infalível. “A série de reportagens de Brian Deer ilustra muitas das formas como a ciência pode ser corrompida”, escreveram Douglas Opel e Douglas Diekema, do Instituto de Pesquisa Infantil de Seattle, e Edgar Marcuse, do Hospital Infantil de Seattle, em editorial de 18 de janeiro no BMJ. “Acima de tudo, Deer mostra que os mecanismos para assegurar a integridade da pesquisa falharam completamente.”

O trabalho que se revelaria resultado de manipu-lações de dados, omissões de responsabilidade e des-vios éticos começou a disseminar o medo da vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) há 13 anos. Em sua edição de 28 de fevereiro de 1998, a Lancet, uma das revistas médicas mais influentes no

[ Ética ]

Fraude em estudo sobre vacina reabre discussão acerca das práticas de pesquisa

Ricardo Zorzetto

Manipulação de dados

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58 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

mundo, veiculou os resultados apa-rentemente alarmantes de um estudo feito pelo cirurgião gástrico Andrew Wakefield. No artigo ele e outros 12 autores relatavam que, uma semana após receber a vacina, 12 crianças da Inglaterra passaram a apresentar dis-túrbios gastrointestinais acompanha-dos de prejuízos no desenvolvimento mental semelhantes aos do autismo.

Wakefield afirmou na época que os sintomas apresentados pelas crianças caracterizavam uma nova síndrome, à qual deu o nome de autismo regressivo, por se instalar depois de uma fase de desenvolvimento normal.

Embora no texto da Lancet afirmas-se “não provamos a associação entre a vacina contra sarampo, caxumba e ru-béola e a síndrome descrita”, Wakefield se engajou em confirmar a ligação. Com apoio da instituição em que trabalha-va, o Royal Free Hospital, em Londres, preparou uma entrevista coletiva e dis-

Trabalho de 1998

na revista

Lancet sugeria

que vacina

tríplice viral

levasse ao

desenvolvimento

de autismo

tribuiu um vídeo para as redes de tele-visão nos quais defendia a conexão entre a vacina e o autismo.

“O principal motivo da entrevis-ta coletiva não era a possível conexão entre o distúrbio intestinal e o de de-senvolvimento – era a suposição de Wakefield de que a vacina MMR [trí-plice viral], usada nos Estados Uni-dos desde o início dos anos 1970 e na Grã-Bretanha desde a década anterior, poderia ser a responsável pelo aumento dramático nas taxas de autismo”, conta o jornalista Seth Mnookin no livro The panic virus: a true story about medicine, science, and fear. Mnookin afirma, na obra lançada este ano, que Wakefield se ateve à afirmação de ter encontrado vírus de sarampo – algo refutado por outros estudos – no trato intestinal de crianças com síndrome do intestino irritável para mostrar uma possível via biológica ligando a vacina ao distúrbio intestinal e ao autismo.

Apesar de especialistas terem ques-tionado os dados à época, o estrago estava feito. O medo de que a vacina causasse autismo se alastrou por vários países com o apoio de grupos antivaci-nação e do trabalho pouco cuidadoso da imprensa. Resultado: a proporção de crianças vacinadas caiu para 80% na Grã-Bretanha em 2003, bem abaixo dos 95% recomendados pela Organização Mundial da Saúde, e em 2008 o saram-po voltou a ser uma doença endêmica na Inglaterra e no País de Gales.

Investigando o caso, Brain Deer conseguiu em 2004 os primeiros indí-cios de fraude no trabalho de Wakefield e publicou no jornal Sunday Times. A partir disso, o Conselho Médico Geral britânico iniciou um processo contra Wakefield e os outros autores, o que permitiu reconstruir a farsa.

Deer obteve provas de que Wake-field agiu deliberadamente o tempo todo. Os casos descritos no artigo são

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 59

As comissões

de ética deveriam

ter capacidade

de acompanhar

a execução

dos testes com

seres humanos

às crianças, mas que encobriam essas informações em benefício próprio”, contou Deer à Pesquisa FAPESP.

Artigo anulado – Embora o conselho médico tenha julgado a adequação éti-ca da pesquisa de Wakefield, foi Deer quem demonstrou que os sinais clíni-cos apresentados no artigo da Lancet não correspondiam aos relatados pelos pais das crianças. Apesar das evidências de fraude, só após a decisão do con-selho, que cassou a licença médica de Wakefield em 2010, a Lancet anulou o artigo de 1998 – ele ainda pode ser lido on-line, mas exibe em vermelho a palavra retracted.

Concluído o caso, algumas preo-cupações permanecem no ar, uma vez que problemas semelhantes podem ser mais comuns do que se imagina. Uma delas é: o que motiva as pessoas a ma-nipularem os resultados de pesquisa? O médico William Saad Hossne, que

dirigiu a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no Brasil de 1996 a 2007 e coordenou a elaboração das resoluções que definem as regras da pesquisa clínica no país, acredita que as razões são muitas. “O número de pes-quisadores aumenta exponencialmente, a competição é cada vez mais acirrada e há busca por reconhecimento. Além disso, os projetos são mais complexos e envolvem mais pessoas”, afirma.

“Hoje o pesquisador tem de ser pro-dutivo, o que favorece uma cultura de pesquisa mais flexível”, lembra Sueli Dallari, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). “Em estudos com seres humanos, ao registrar os dados, mui-tas vezes os pesquisadores não são tão rigorosos como deveriam ser”, afirma a pesquisadora, que integrou a Conep e a comissão de ética em pesquisa do Hospital das Clínicas da USP.

A preocupação com os casos de fraude, segundo Hossne, levou nas úl-timas décadas países como os Estados Unidos, a Alemanha e a Dinamarca a criar instituições que tentam garantir a integridade da pesquisa. No Brasil, a Conep, constituída em 1990, tem a fun-ção de regular, aprovar e acompanhar os testes envolvendo seres humanos. As resoluções 196 e 251 da Conep, por exemplo, determinam que os dados de pesquisa devem ser armazenados e ficar disponíveis à consulta por ao menos cinco anos. “O fato de alguém poder pedir para ver esses dados ajuda a con-trolar a qualidade”, diz Hossne.

Para aprimorar o controle, segun-do Sueli, seria preciso ter comissões de ética com capacidade de acompanhar a execução dos projetos. “Como o núme-ro é grande”, diz, “poderiam ser sortea-dos alguns para verificar se executam o que se propuseram a fazer e como se propuseram a fazer”. n

de crianças cujos pais acreditavam que seus filhos tivessem desenvolvido autis-mo após a vacinação, mas que não ha-viam recebido diagnóstico médico. Elas tinham sido encaminhadas a Wakefield por uma associação contra a vacinação, a Justice Awareness and Basic Suports, quando o adequado seria buscar os ca-sos a partir de uma amostra aleatória da população ou receber os encami-nhados por outros centros médicos. O cirurgião também recebeu dinheiro do advogado Richard Barr, que procurava provas para abrir um processo contra fabricantes de vacina.

Segundo as reportagens, Wakefield não era contrário à vacinação infantil – e sim ao uso da tríplice viral –, já que ele próprio tinha patente de uma vacina contra sarampo. “Sem evidência, Wake-field afirmou por anos que no mundo todo os médicos, incluindo as autorida-des de saúde pública, não só sabiam que as vacinas causam problemas terríveis

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Biblioteca de Revistas Científicas disponível na internet | www.scielo.org

NOTÍCIAS

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\\ MÚSICA

As linguagens de Hermeto Pascoal

O artigo “Hermeto Pascoal: experiência de vida e a for-mação de sua linguagem harmônica”, de Fausto Borém, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Fabiano Araújo, da Universidade Federal do Espírito Santo, é um estudo panorâ-mico sobre a trajetória musical e a formação das linguagens do compositor, arranjador e multi-instrumentista. Hermeto Pascoal, ao longo de suas fases musicais, usava linguagens que são geralmente associadas, na música erudita, ao tonalismo, modalismo, atonalismo, polimodalismo, paisagem sonora e música concreta. É observado no ensaio como elementos de sua experiência de vida (cultural, social, religiosa e profi ssional) podem ter influenciado a combina-ção vertical de sons na sua criação musical, bem como a sua proposta e utilização de conceitos como música universal, cifragem univer-sal, música da aura, música dos ferros e método do cor-po presente.

Per Musi – nº 22 – Belo Horizonte – jul./dez. 2010

\\ EDUCAÇÃO

Integração do idoso

O artigo “Políticas públicas para a educação gerontológica na perspectiva da inserção social do idoso: desafi os e possibi-lidades” sugere a elaboração de políticas a partir de pesquisa realizada com jovens e idosos do Distrito Federal sobre inter-geracionalidade, buscando o signifi cado do envelhecimento e sua correlação com a existência ou não de preconceitos para esses dois grupos. Além disso, os autores Vicente Paulo Alves e Lucy Gomes Vianna, da Universidade Católica de Brasília, investigaram também a ação de algumas escolas com relação à formação de valores e atitudes com vistas à superação de preconceitos e à aproximação entre as gerações. Os dados foram coletados por meio da aplicação de um questionário sociodemográfi co, da Escala para Avaliação de Atitudes em Relação ao Idoso e do Inventário Sheppard. Constataram-se a inexistência de atividades para idosos e o distanciamento

desses com outras gerações nas escolas pesquisadas. Os dados da pesquisa sugerem que a educação gerontológica deva fazer parte da elaboração de políticas públicas e do currículo escolar, com objetivo de aproximar gerações, visando à superação de possíveis preconceitos e possibilitando a troca de experiências e a melhoria da qualidade de vida ou a inserção social do idoso na vida escolar.

Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação – vol. 18 – nº 68 – Rio de Janeiro – set. 2010

\\ ENGENHARIA AGRÍCOLA

Ganhos do plantio mecanizado

O Brasil é o maior produtor de cana com área de 7 milhões de hectares. O sistema de plantio mais utilizado é o semi-mecanizado (sulcação mecânica, distribuição e picamento das mudas manual e cobertura de sulco com máquina). A carência e o custo de mão de obra têm aumentado, mostrando a necessidade de mecanização total da operação. Atualmen-te a indústria de máquinas oferece seis diferentes modelos de plantadoras (duas de mudas inteiras e quatro de mudas picadas). Todas plantam duas fi leiras por vez, no espaçamen-to de 1,5 metro. O estudo “Ensaios de cinco plantadoras de cana-de-açúcar”, de Marco L. C. Rípoli, da John Deere Brasil, e Tomaz C. C. Rípoli, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo, analisou as variá-veis velocidade efetiva, capacidade efetiva, força de tração na barra, potência na barra, consumo de combustível e custos, confrontando essas variáveis com o sistema semimecanizado. Resultado: o sistema mecanizado mostrou-se mais barato que o semimecanizado.

Engenharia Agrícola – vol. 30 – nº 6 – Jaboticabal – dez. 2010

\\ HISTÓRIA

Economia colonial

A questão central do artigo “Passa-se uma engenhoca: ou como se faziam transações com terras, engenhos e crédito em mercados locais e imperfeitos (freguesia de Campo Grande, Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX)” é perceber como as hie-

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rarquias sociais e as políticas específi cas do Antigo Regime nos Trópicos se refl etiram em estratégias concretas e compreender as engrenagens locais de um mercado. A autora Manoela Pe-droza, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisa as escolhas e trajetórias de agentes envolvidos em transações com terras, engenhos e concessão de crédito na freguesia de Campo Grande. A pesquisadora propõe que as rendas criadas a partir das vendas a prazo, os vínculos pessoais entre compradores-credores-vendedores-devedores no comércio dos engenhos e a sobreposição de vínculos de dependência locais foram fatores que possibilitaram a acumulação econômica e a reprodução ampliada da condição senhorial.

Varia Historia – vol. 26 – nº 43 – Belo Horizonte – jun. 2010

\\ CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO

Literatura de viagem

A partir dos primeiros séculos da colonização, o Brasil co-meçou a receber viajantes cujo número aumentou considera-velmente com a abertura dos portos em 1808. Após o retorno aos países de origem, muitos deles publicaram seus relatos de viagem, que atraíram levas de leitores. O conjunto dessas obras, conhecido como literatura de viagem, constitui rica fonte para o estudo de diferentes aspectos da história do Brasil. O artigo “Bibliotecas brasileiras vistas pelos viajantes no século XIX”, de Luiz Antonio Gonçalves da Silva, da Universidad Complutense de Madrid, Espanha, traz uma compilação das informações deixadas por viajantes sobre bibliotecas brasi-leiras. Sem pretender cobrir todos os autores, o pesquisador examinou os relatos mais conhecidos abrangendo o período do século XIX. E não buscou fazer uma análise desses dados nem a sua verifi cação, mas apresentar o panorama das bibliotecas percorridas pelos visitantes e a forma como foram vistas por eles no período citado.

Ciência da Informação – vol. 39 – nº 1 – Brasília – jan./abr. 2010

\\ NUTRIÇÃO

Pão de queijo de ricota

O pão de queijo é um produto genuinamente brasileiro, surgido em época indefi nida nas fazendas de Minas Gerais, tendo como matéria-prima básica o polvilho azedo ou doce. Atualmente vem se destacando pelo consumo e pela produção nacional, chegando aos dias atuais até mesmo ao mercado internacional. Apesar da aceitação, o produto ainda não possui um padrão de qualidade e tecnologia de produção defi nidos em razão da grande variedade de ingredientes opcionais. Diversas

\\ O link para a íntegra dos artigos citados nestas páginas estão disponíveis

no site de Pesquisa FAPESP, www.revistapesquisa.fapesp.br

formulações são comercia-lizadas e identifi cadas como “pão de queijo”. O objetivo do trabalho “Viabilidade da utilização de queijo ti-po ricota na elaboração de pão de queijo”, de Patrícia Aparecida Pimenta Perei-ra, Thaís de Melo Ramos, Adriano Alvarenga Gajo e Ulisses Júnior Gomes, da Universidade Federal de Lavras, foi analisar a viabilidade da utilização de queijo tipo ricota na elaboração do produto. Foram realizadas análises físicas de densidade, espessura da crosta, coefi ciente de expansão, cor, textura e análise sensorial. As porcentagens de queijo utilizadas nas formulações foi 30% para o queijo meia cura e 30%, 40% e 50% para o queijo tipo ricota, em relação à porcentagem de polvilho azedo. Concluiu--se que o aumento da porcentagem de ricota na preparação de pão de queijo produz um produto mais macio, com menor gomosidade, fracturabilidade, mastigabilidade e com uma espessura da crosta menor, não diferindo sensorialmente de pães de queijo elaborados com queijo de minas meia cura.

Ciência Rural – vol. 40 – nº 11 – Santa Maria – nov. 2010

\\ SAÚDE COLETIVA

Política para medicamentos

O artigo “Medicamentos de alto custo para doenças raras no Brasil: o exemplo das doenças lisossômicas” aborda, de forma crítica, aspectos das políticas públicas brasileiras para medica-mentos, com ênfase nas drogas caras para combater moléstias raras. As doenças lisossômicas foram utilizadas como exemplo pela sua raridade e pela tendência mundial para o desenvolvi-mento de novos fármacos para seu tratamento. Três tipos dessa moléstia foram abordadas: doença de Gaucher, doença de Fabry e mucopolissacaridose tipo I. Embora todas tenham remédios registrados no Brasil, a de Gaucher é a única com protocolo clínico e diretrizes de tratamento balizadas pelo Ministério da Saúde. A despeito das difi culdades de se instituir uma política específi ca para cada doença rara, é possível o estabelecimento de modelos racionais para lidar com esse crescente desafi o. Os autores do estudo são Mônica Vinhas de Souza, Bárbara Corrêa Krug e Ida Vanessa Doederlein Schwartz, da Universi-dade Federal do Rio Grande do Sul, e Paulo Dornelles Picon, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Ciência & Saúde Coletiva – vol. 15 – supl. 3 – Rio de Janeiro – nov. 2010

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Page 62: Mais ciência no zoo

62 ■ MARÇO DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 181

LINHA DE PRODUÇÃO MUNDO

Dentro do aparelho, célula e água

tomada na rede de energia elétrica passou a ser possível com um equipamento chamado PowerTrekk, lançado em fevereiro no Mobile World Congress realizado na Espanha. Um pouco maior

FILMES EM 3D NO CELULAR

Depois de invadir as salas de ci-

nema, a tecnologia de fi lmes em

3D deverá chegar, em breve, aos

telefones celulares se depender

de um grupo de cientistas ale-

mães do Instituto Fraunhofer

de Telecomunicações, Heinrich-

-Hertz-Institut (HHI), em Berlim.

Eles apresentaram em fevereiro

uma nova técnica de compressão

de fi lmes que mantém a qualida-

de dos mesmos e permite que as

imagens carreguem rapidamente

para que o usuário possa vê-las

sem interrupção no celular. O pro-

blema dos fi lmes tridimensionais

é que eles possuem uma taxa de transferência de dados muito

maior do que os fi lmes em 2D, porque são necessárias pelo

menos duas imagens para a representação das cenas – uma

para o olho esquerdo e outra para o direito. O sistema alemão,

batizado de MVC (iniciais de Multiview Video Coding), compri-

me as duas imagens necessárias para a produção do efeito

estereoscópico 3D de modo que a taxa de transmissão dos

fi lmes é signifi cantemente reduzida. Com isso, esses fi lmes em

3D fi cam cerca de 40% menores e podem rodar no celular.

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que um celular de tela touch screen e mais volumoso, o aparelho portátil é formado por um cartucho que traz no interior uma pequena célula a combustível e uma bateria de siliceto de sódio. Ao se adicionar água pura, poluída ou do mar na bateria, ela passa a quebrar a molécula desse líquido e a transferir o hidrogênio resultante para a célula, que acaba gerando eletricidade. A conexão é por uma entrada USB. A novidade é da empresa sueca MyFC e a bateria é fornecida pela norte-americana Signa Chemistry. O PowerTrekk é destinado a recargas em ambientes externos, em viagens e locais sem energia elétrica. Como resíduo, o aparelho emite apenas um pouco de um inofensivo vapor-d’água.

PLÁSTICO DE GÁS POLUENTE

O gás dióxido de carbono (CO2) produzido por uma usina de geração de energia elétrica com carvão está sendo reciclado e utilizado pela Bayer, na Alemanha, na fabricação de plásticos. Uma fábrica piloto está funcionando na cidade de Leverkusen para testar o novo processo que utiliza um catalisador, substância que acelera a reação química, recém-descoberto pela Bayer e pela Universidade RWTH Aachen, parceira do projeto junto com a RWE, fornecedora do CO2. A empresa está produzindo poliuretano, plástico de uso amplo. A grande vantagem é que, além de substituir matérias-primas derivadas de petróleo, o gás é aproveitado e não mais lançado na atmosfera.

Fotomontagem simula efeito em 3D

RECARREGA COMHIDROGÊNIO

Suprir de energia elétrica celulares, câmeras fotográfi cas, tocadores de MP3 e aparelhos GPS sem conectar a nenhuma

My

FC

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Page 63: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 ■ MARÇO DE 2011 ■ 63

ETANOL DE CAPIMTRANSGÊNICO

Uma variedade transgênica do capim switchgrass poderá aumentar em até um terço a produção de etanol a partir dessa planta muito comum nos Estados Unidos. Ela é objeto de estudos para a produção de biocombustíveis por meio de enzimas que quebram e transformam as moléculas do vegetal. Pesquisadores do The Samuel Roberts Noble Foundation e do Oak Ridge National Laboratory, ambos norte-americanos, mostraram na revista científi ca PNAS (14 de fevereiro) o desenvolvimento de uma variedade transgênica com uma alteração genética que reduziu drasticamente a quantidade de lignina na estrutura da planta. A lignina é uma macromolécula da parede celular que confere rigidez ao vegetal, mas interfere no processo de produção. Com menos lignina, a fabricação

ÓCULOS ELETRÔNICOS

Uma boa notícia para quem usa

óculos multifocais, aqueles com

lentes de graduação progressi-

va para enxergar perto e longe,

indicados principalmente para pessoas com mais de 40

anos que sofrem de presbiopia, a famosa vista cansada. A

empresa norte-americana Pixel Optics inventou um modelo

de óculos eletrônicos feitos com lentes de cristal líquido,

mesmo material usado em telas de computadores e câ-

meras fotográfi cas, que, na aparência, se assemelham aos

óculos convencionais, mas sem a graduação multifocal. A

novidade é um circuito eletrônico miniaturizado inserido na

armação, com microbaterias, capaz de mudar a orientação

das moléculas de cristal líquido a partir da detecção do

movimento dos olhos e, assim, ajustar o tipo de lente para

cada momento, longe ou perto, em frações de segundo. O

modelo será lançado nos Estados Unidos ainda no primeiro

semestre ao custo de até US$ 1.200.

INOVAÇÃO NOS NANOCIRCUITOS

O primeiro nanoprocessador programável do mundo foi desenvolvido por pesquisadores da Universidade Harvard e da Mitre Corporation, empresa privada sem fi ns lucrativos que administra quatro centros de desenvolvimento para o governo norte--americano. O inovador sistema, que representa um avanço na complexidade dos circuitos de computador que podem ser montados a partir de componentes sintetizados em escala nanométrica, foi descrito em artigo na revista Nature (9 de fevereiro). Os nanocircuitos podem ser programados para realizar operações aritméticas básicas, como adição e subtração, além de funções lógicas. Ao contrário dos circuitos

US

DA

Lentes de cristal líquidoe recarregador

atuais, em que a miniaturização ocorre de cima para baixo, o protótipo do nanoprocessador, feito com nanofi os de germânio e silício, foi construído de baixo para cima. Os nanofi os foram integrados a fi os metálicos em um nanochip com 496 transistores programáveis em uma área de 960 micrômetros quadrados. Pelas contas dos pesquisadores, os transistores de nanofi os conseguiram trabalhar com uma efi ciência energética 100 vezes maior do que a dos transistores atuais. Também em fevereiro, pesquisadores da Universidade de Nagoia, no Japão, e da Universidade de Aalto, da Finlândia, anunciaram o desenvolvimento de um circuito integrado feito de nanotubos de carbono (Nature Nanotechnology) para uso em aparelhos eletrônicos. Pela técnica, os nanotubos crescem por meio de um processo de deposição química a vapor. Eles passam então por um fi ltro e são transferidos para um substrato de polímero, processo que demora apenas alguns segundos.

de etanol se tornará mais barata porque será feita numa temperatura mais baixa e com um terço das enzimas usadas com o capim convencional.

Switchgrass:transgênicoproduz mais

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Page 64: Mais ciência no zoo

64 ■ MARÇO DE 2011 ■ PESQUISA FAPESP 181

LINHA DE PRODUÇÃO BRASIL

ASFALTO COMBAGAÇO DE CANA

Além de gerar energia, o bagaço

de cana-de-açúcar ganhou uma

nova aplicação. Usado como adi-

tivo estabilizante nas misturas de

asfalto do tipo SMA (Stone Matrix

Asphalt), que por sua resistência

é usado em vias de tráfego inten-

so, aeroportos e autódromos, ele

substitui a fi bra de celulose obtida

da madeira. A inovação, fruto da

tese de doutorado do engenheiro

civil Cláudio Leal, professor do Instituto Federal de Educa-

ção, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFF), em Campos dos

Goytacazes, no Rio de Janeiro, depois de testada com suces-

so em laboratório, foi aplicada em campo. “Um trecho de 50

metros da BR 356, próximo do município fl uminense de São

João da Barra, recebeu a pavimentação asfáltica com SMA

e fi bra de bagaço de cana”, diz Leal. Na tese, orientada pelo

professor Protásio Ferreira e Castro, da Universidade Federal

Fluminense, e pela professora Regina Martins Paes de Aquino,

da IFF, Leal comprovou a efi cácia do bagaço como aditivo

estabilizador para o asfalto. Nos testes em campo, Leal vai

acompanhar durante seis meses o desempenho mecânico e

estrutural do material na BR 356.

COLAGEM MAIS EFICIENTE

Uma cola para madeira mais resistente à temperatura e umidade foi desenvolvida por pesquisadores da Escola de Engenharia de Lorena (EEL) da Universidade de São Paulo (USP). O novo produto é resultado de uma tese de doutorado de Maurício Pinheiro, iniciada em 2008 e defendida o ano passado, sob orientação do professor Amilton Martins

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dos Santos, do Departamento de Engenharia Química da EEL. O processo utilizado, chamado de polimerização em miniemulsão, tem como diferencial em relação ao método tradicional o mecanismo de formação das partículas. “As gotas da emulsão são geradas no início do processo, enquanto pelo método convencional as partículas de polímero são formadas ao longo da reação e vão crescendo até atingir um determinado limite”, explica Santos. Para obter uma emulsão estável, os pesquisadores sintetizaram um surfactante – composto químico utilizado na fabricação de detergentes e outros materiais – ou coloide protetor. “Ele é mais efi ciente na formação das gotas e também melhora as propriedades da cola, como resistência e umidade”, diz Santos. Tanto o processo empregado como o composto químico sintetizado para uso no processo estão protegidos por um depósito de patente.

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Pavimentoscom maior resistência

VALORES DANANOTECNOLOGIA

O mercado de produtos com algum componente nanotecnológico fabricado no Brasil atingiu a marca de R$ 115 milhões em 2010, segundo um estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan). A pesquisa contou com 150 empresas que produzem ou prestam serviços em nanotecnologia no país. Comparado com os valores globais, o mercado brasileiro ainda é pequeno.

No mundo, os negócios com nanotecnologia movimentaram US$ 164 bilhões com cerca de 800 produtos. O estudo, com esses números, indica que ainda há uma grande janela de oportunidades para produtos nanotecnológicos no Brasil. Aqui, grande parte dos produtos está concentrada nas indústrias de cosméticos, plásticos, tintas e materiais para esterilização de instrumentos cirúrgicos e de bebedouros.

Partículas de polímero

na cola

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PESQUISA FAPESP 181 ■ MARÇO DE 2011 ■ 65

TV DIGITAL NOMARANHÃO

Um experimento de TV digital na cidade de Barreirinhas, no Maranhão, permitiu que 50 famílias utilizassem a interatividade e a participação comunitária pela televisão durante três meses. A iniciativa fi nanciada pela União Europeia contou com a participação de pesquisadores da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Fortaleza (Unifor). “No sistema interativo instalado na cidade, o usuário pôde criar conteúdo, escrever textos em um canal específi co e mesmo gerar imagens e voz por meio de um gerenciador que deixou esse material disponível para todos da cidade que possuíam o sistema”, diz o professor André Hirakawa, da Poli-USP. “No canal destinado à interatividade, um professor, da casa dele, passou exercícios para os

TREINAMENTO VIRTUAL

Simuladores de operação de máquinas portuárias de abas-

tecimento e descarga de navios produzidos com tecnologia

desenvolvida no Laboratório de Métodos Computacionais

em Engenharia do Instituto de Pós-graduação e Pesquisa de

Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janei-

ro, estão em uso em portos brasileiros e italianos. No Brasil,

operadores de guindastes e empilhadeiras podem se aperfei-

çoar no centro de simulação da empresa Virtuality, abrigada

na incubadora de empresas da Coppe. O equipamento mais

avançado possui uma sala de

projeção com uma base mó-

vel que simula ventos e chu-

va. “No simulador, o operador

pratica várias vezes e treina

situações de emergência”, diz

Gerson Cunha, pesquisador

da Coppe e sócio da Virtua-

lity. Na Itália, por meio de um

convênio com a Universidade

de Gênova, um simulador de

equipamento de carga e des-

carga de contêineres está

operando no porto de Cagliari,

na Sardenha, e um simulador

de caminhão encontra-se no

porto de Gênova.

PALMILHAS BACTERICIDAS

Uma palmilha para calçados batizada de Sequinha, desenvolvida pela empresa Dublauto Gaúcha, de Ivoti, no Rio Grande do Sul, tem como diferencial a aplicação de nanopartículas de íons de prata no forro, que funcionam como um tratamento bactericida, ajudando a eliminar o mau cheiro. Composta por três camadas montadas em uma estrutura única – forro, camada intermediária com amortecedor de impacto e inferior com um tecido absorvente de umidade e tratamento antimicrobiano –, a palmilha começou a ser

desenvolvida a pedido de um fabricante de calçados infantis. O projeto, aprovado em 2007 no edital de Subvenção Econômica da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), teve a consultoria do professor Oswaldo Alves, coordenador do Laboratório de Química do Estado Sólido da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Toda a caracterização do material foi feita na Unicamp”, diz o diretor de tecnologia da empresa, Evandro Wolfart. O projeto resultou em três patentes e como desdobramento foram desenvolvidos forros com nanocápsulas que liberam aromas.

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alunos. Um outro programa mostrava atrações turísticas da cidade.” O sistema televisivo foi instalado por meio da tecnologia Power Line Communications (PLC), que utiliza os fi os da rede elétrica para a transmissão de TV. Chamado de System for Advanced interactive Digital Television and Mobile Services in Brazil (Samba), o projeto contou também com mais 10 instituições como o Instituto Fraunhofer, da Alemanha, e a empresa Axel Technologies, da Finlândia.

Simulador: projeções de imagens do porto

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Page 66: Mais ciência no zoo

[ empreendedorismo ]

incubadoras investem em criatividade para impulsionar empresas tecnológicas

Nos mais diversos ambientes, de gabinetes gover-namentais a laboratórios de pesquisa, passando por salas de aula, empresas de base tecnológica ou pequenos círculos do mundo acadêmico, a frase é repetida quase como um mantra: pa-ra tornar-se um país desenvolvido, com uma economia dinâmica, o Brasil tem que investir

em inovação, destinando mais recursos às atividades de pesquisa e desenvolvimento e de apoio à criação e forta-lecimento de empresas de base tecnológica. Um ambiente inovador melhora o nível de competitividade das empre-sas, ajuda na conquista de novos mercados, proporciona aumento na geração de empregos de qualidade e nas oportunidades de renda. O resultado final é o crescimen-to da riqueza nacional e a melhora na qualidade de vida da população. Apesar do pensamento unânime, os dados de realidade mostram que os resultados atuais ainda são tímidos – o desempenho do Brasil na área de patentes e de inovação empresarial é superado pela China, Índia e Rússia, países companheiros do Bric, o bloco de nações emergentes de grande potencial econômico.

“A tarefa de transformar boas ideias em produtos exi-ge sensibilidade, intuição, determinação e competência, mas, sobretudo, conhecimento de gestão empresarial”, destaca Cláudio Rodrigues, presidente do Centro de Ino-vação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec), de São Paulo, o maior polo incubador de empresas de base tec-nológica do país. “Do ponto de vista do empreendedor,

66 n março de 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Yuri Vasconcelos

ilustrações Estevan Pelli

Page 67: Mais ciência no zoo

um dos principais desafios é justamente saber fazer o caminho inverso: ter boas ideias após identificar demandas reais do mercado. Não adianta ter uma gran-de ideia – e até conseguir desenvolver um bom produto – se o mercado não o pede ou não está preparado para absorvê-lo”, diz Rodrigues.

Um ator com papel relevante para impulsionar a inovação no país é o gru-po das micro e pequenas empresas que hoje representa mais de 90% dos cerca de 6 milhões de estabelecimentos for-mais no Brasil. Elas geram 14 milhões de empregos e participam com cerca de 25% do PIB nacional. “Nesse universo, aquelas empresas identificadas como de base tecnológica são entendidas como locus ou uma posição privilegiada para alavancar o crescimento da inovação e, consequentemente, da competitividade empresarial”, diz Rodrigues. Segundo ele, apesar desse potencial, apenas 15% das micro e pequenas empresas brasi-leiras implementam inovações regular-mente em seus produtos e serviços. Uma das formas de ampliar a inovação nas micro e pequenas empresas de base tec-

nológica no país, adotada recentemente em algumas incubadoras, é estender sua atuação, em especial nos processos de incubação e pós-incubação, também às empresas não instaladas em suas depen-dências. Essas empresas “não residen-tes”, normalmente instaladas em sedes próprias, apesar de não usufruírem o convívio sinérgico encontrado na infra-estrutura física de uma incubadora e de suas empresas incubadas, se beneficiam dos mesmos serviços disponibilizados pela instituição.

“Basicamente, as empresas não re-sidentes contam com o mesmo apoio oferecido às empresas residentes, nas áreas de gestão tecnológica, empresarial e mercadológica, de acesso a recursos de fomento e incentivos, de parcerias com universidades e instituições de ciência e tecnologia, de informações e preparo para participação em feiras e outros eventos empresariais, além da assessoria para internacionalização de seus negócios”, explica Rodrigues. “A modalidade foi criada para atender a empresas já constituídas que estavam desenvolvendo um produto ou serviço

PESQUISA FAPESP 181 n março de 2011 n 67

tecnologia

Page 68: Mais ciência no zoo

e precisavam do apoio do Cietec sem necessidade de ocupar um módulo na incubadora. O desenvolvimento acon-tece dentro de suas próprias instala-ções e é mais uma forma de apoiar a inovação no país”, afirma Sérgio Risola, diretor executivo do Cietec e presidente do Conselho Deliberativo da Rede Pau-lista de Incubadoras. Das 149 empresas atualmente incubadas no Cietec – ins-talado nas dependências do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) na Cidade Universitária, na ca-pital paulista –, 96 são residentes e 53 não residentes. Todos os empresários participam de cursos, palestras e trei-namentos, além de terem à disposição consultores em várias áreas.

Chuvas artificiais – Uma das empresas não residentes do Cietec é a ModClima, empresa de pesquisa e desenvolvimento com foco em soluções limpas e susten-táveis para recuperação do clima e do meio ambiente, entre elas a produção de chuvas artificiais. A parceria teve início em janeiro de 2010. “O Cietec tem nos ajudado em muitas atividades. Sempre que recebe delegações interna-cionais interessadas em algo que tenha identificação com nossos projetos, a in-cubadora nos convoca a participar do encontro. Também recebemos infor-mações sobre os editais para elaboração

de projetos da FAPESP, como o Pipe [programa de Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas], da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e do Con-selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre outros”, diz a administradora Majory Imai, diretora da ModClima. “Além dis-so, se precisamos receber possíveis in-vestidores, podemos agendar reu niões no Cietec, o que é muito bom, porque eles podem ver que fazemos parte de um seleto grupo de empresas de ponta que está nascendo.”

Com sede no aeroporto de Bragan-ça Paulista, a 90 quilômetros da capital paulista, a ModClima é detentora de uma tecnologia inovadora de produção de chuvas artificiais. Desde 2001, ela presta serviços à Sabesp (Companhia

de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), produzindo chuvas artificiais que têm contribuído para encher repre-sas que abastecem cerca de 20 milhões de moradores da Região Metropolitana de São Paulo. A tecnologia da ModCli-ma consiste em semear água nas nuvens com potencial para chuva, estimulando o processo de crescimento da gota de água. A produção de chuvas artificiais pode ser utilizada também para silvi-cultura, agricultura, energia – no au-mento do nível de água das represas hidrelétricas – e prevenção de incêndios florestais, entre outros fins.

Outra empresa não residente é o Laboratório Panizza, de São Paulo, es-pecializado na produção dos chamados alimentos funcionais, por terem funções de prevenir doenças; orgânicos, cultiva-dos sem adubos químicos, pesticidas e herbicidas; e liofilizados, que são preser-vados por um processo de desidratação. O contrato teve início em julho de 2008. “As marcas do Cietec e de seus parcei-ros estratégicos, como Universidade de São Paulo (USP), Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), Ipen, Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) e gover-no do estado de São Paulo, agregaram ainda mais confiabilidade ao nosso negócio, que desde sempre procurou desenvolver produtos baseados em pes-quisas científicas”, diz Sérgio Panizza, diretor da empresa. Segundo ele, o fa-to de o Cietec estar dentro de um im-portante parque de pesquisa facilita o desenvolvimento de novas tecnologias. “A incubadora abre as portas para que a empresa tenha contato com professores universitários, o que faz com que no-vos produtos ou tecnologias possam ser desenvolvidos mais facilmente”, explica. “O Cietec é hoje um celeiro de contatos

Um celeiro de

contatos com

pessoas, empresas

e instituições que

são úteis para

impulsionar uma

ideia inovadora,

diz Sérgio Panizza

68 n março de 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Page 69: Mais ciência no zoo

PESQUISA FAPESP 181 n março de 2011 n 69

com pessoas, empresas e instituições que são úteis para impulsionar uma ideia inovadora que pode ser materia-lizada em produto.”

Nesse contexto, as incubadoras de empresas e parques tecnológicos são parceiros fundamentais desses peque-nos empresários que têm em mãos um produto ou serviço inovador e querem levá-lo com sucesso ao mercado. “Essas instituições constituem ambientes pro-pícios para a criação de iniciativas em-presariais inovadoras. Elas atuam como facilitadores desse processo, ajudando na solução dos gargalos tecnológicos, empresariais e mercadológicos enfren-tados pelas empresas start-ups de base tecnológica”, diz Cláudio Rodrigues. O país tem atualmente cerca de 400 incubadoras de empresas distribuídas em 25 estados da federação, em torno das quais existem cerca de 8 mil em-presas. Segundo a Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreen-dimentos Inovadores (Anprotec), en-tidade que representa os interesses das incubadoras e parques tecnológicos, esses empreendimentos geram, jun-tos, um faturamento anual médio de R$ 2,5 bilhões – o que representa por

A inovação não

se dá por acaso

nem por passe

de mágica.

Muito menos pode

ser entendida

como um evento

isolado, diz

Cláudio Rodrigues

‘volta de R$ 500 milhões em impostos por ano. Já os 25 parques tecnológicos em operação no país – outros 49 se encontram em fase de implantação ou projeto – acomodam cerca de 520 em-presas que movimentam R$ 1,68 bilhão em negócios e geram 35 mil postos de trabalho diretos.

Apoio essencial – A taxa de apro-veitamento das empresas que entram nas incubadoras é elevada, da ordem de 80%. Cerca de 1.700 empresas já se graduaram no país ao longo da exis-tência do movimento que tem 28 anos. Os pequenos negócios apoiados pelas incubadoras dispõem de completa infraestrutura para desenvolver suas atividades – a contrapartida é que eles possuam domínio da tecnologia, um plano de negócio estruturado e capital mínimo assegurado. Além do espaço físico em si, onde podem montar suas empresas, os empreendedores contam com o apoio de consultores de tecno-logia, marketing e comercialização, as-sistência jurídica e sobre propriedade intelectual. Também recebem orien-tação quanto à captação de recursos junto a órgãos financiadores.

Para Rodrigues, tal como foi feito no passado nos processos de forma-ção da base acadêmica nacional e da industrialização do país, também na inovação empresarial, que igualmente traz resultados para o crescimento, com qualidade, da economia do país, se faz necessária a presença do Estado no pa-pel de indutor de políticas abrangentes de apoio e fortalecimento desse pro-cesso. “O Brasil tem uma experiência e resultados louváveis com as agências de fomento, como CNPq, FAPESP e Finep, e entidades como Sebrae [Serviço Bra-sileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], que precisam ser ampliadas e diversificadas, e uma base de ciência e tecnologia e de geração de conhecimen-to que permite assegurar um programa nacional de incentivo para uma maxi-mização da inovação no Brasil”, des-taca Rodrigues. Mas faz uma ressalva: “A inovação não se dá por acaso nem por passe de mágica. Muito menos pode ser entendida como um evento isolado. É um processo que requer con-tinuidade, maturação, entendimento, capacitação e ambiente favorável, apro-priado e incentivado”. n

Page 70: Mais ciência no zoo

[ Saúde ]

Um projeto pioneiro colocado em prática em caráter experimental por um grupo de profissionais do Centro de Saúde-Escola Samuel Pessoa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) poderá elevar a qualidade e tornar mais eficientes os serviços prestados aos 87,7 mi-

lhões de brasileiros atendidos pelo Programa Saúde da Família (PSF), uma iniciativa do governo federal que conta com 27.324 equipes distribuídas em 5.125 municípios. Nas visitas domiciliares que fazem aos pacientes, no lugar de levar pastas volumosas com resultados de exames, anotações sobre os pacientes e formulários de papel a serem preenchidos, os médi-cos, enfermeiros e agentes comunitários podem car-regar apenas o telefone celular para armazenar essas informações numa espécie de prontuário eletrônico móvel. A inovação, batizada de Projeto Borboleta, foi desenvolvida no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e ainda é um protótipo destinado exclusivamente aos pacientes desse centro. Mas a empresa paulista Infomobile já está trabalhando em uma nova versão do dispositivo com a finalidade de ser utilizado no Programa Saúde da Família. Se tudo correr bem, garantem os empresários que eram alunos do IME e participantes do grupo de pesquisa que desenvolveu o Borboleta, o modelo comercial estará pronto dentro de 18 meses.

O funcionamento do sistema criado no IME é relativamente simples. Antes de deixar o centro de saúde, o médico acessa por meio da internet a plata-forma SaguiSaúde, o sistema de informação de saú-de do centro, e dá um comando para que o software prepare um arquivo com informações detalhadas dos pacientes que serão visitados naquele dia. Em seguida, utilizando a rede sem fio Wi-Fi, ele baixa em um telefone celular do tipo smartphone esse pacote de dados, contendo informações socioeconômicas dos pacientes, histórico das visitas, detalhamento da medicação e resultados de exames clínicos, entre ou- il

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Prontuário no celular

telefone armazena dados do paciente para visitas domiciliares

Page 71: Mais ciência no zoo

pESQUISA FApESp 181 n Março de 2011 n 71

tros. Durante o atendimento, além de acessar as principais informações sobre os pacientes, ele pode consultar listas de medicamentos e o catálogo internacio-nal de doenças, bem como preencher formulários eletrônicos, ditar textos e gravar memorandos de voz, que ficam armazenados num arquivo de dados. Ao retornar ao centro de saúde, o médico transfere todas essas informações para o SaguiSaúde, atualizando automatica-mente os prontuários dos pacientes.

“O Borboleta é uma ferramenta que simplifica e torna mais ágil o atendi-mento da saúde. Os profissionais têm acesso imediato aos dados e ainda po-dem fazer levantamentos de informa-ções epidemiológicas com mais rapidez, cruzando dados de vários pacientes”, afirma o professor Fabio Kon, coorde-nador do projeto, do Departamento de Ciência da Computação do IME. O público-alvo do Borboleta são pessoas que não conseguem se deslocar para as unidades de saúde e precisam ser atendidas em casa, como, por exemplo, idosos com dificuldade de locomoção, vítimas de acidente vascular cerebral (AVC), pessoas com paralisia e pacientes recém-operados. Os programas de aten-dimento domiciliar brasileiros, apesar de representarem um avanço na área da saúde, compartilham certos problemas, como perda de informação na transcri-ção dos formulários em papel para os sistemas informatizados, atraso e erros na digitação, redigitação de informa-ções em vários sistemas e dificuldades em realizar análises sobre os dados e obter informações estratégicas. Esses problemas podem gerar algum tipo de ineficiência, perda de qualidade no atendimento e falta de informações para tomadas de decisão que melhorariam a aplicação de recursos para a saúde.

O desenvolvimento do projeto Bor-boleta contou com o apoio do Instituto Virtual de Pesquisas FAPESP-Microsoft Research, que financia pesquisas na área da tecnologia da computação com o objetivo de contribuir para a solução de problemas sociais, econômicos e ambientais. O investi mento no projeto

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72 n Março de 2011 n pESQUISA FApESp 181

foi de R$ 276 mil, divididos entre a Fundação e o centro de pesquisas da empresa. A pesquisa teve início em 2007 e, desde então, versões periódicas do soft ware foram lançadas semestral-mente, a última delas no final de 2010. Segundo Kon, o sistema faz parte de uma iniciativa de software aberto do Centro de Competência em Software Livre (CCSL) do IME/USP. “Trata-se de um software livre que pertence aos au-tores e à universidade. Ele é distri buído livremente na web com uma licença BSD, que permite acesso ao código- -fonte, livre alteração e redistribuição”, explica. Os projetos incubados no centro de competência, por sua vez, integram o Arca, o grupo de interesse em softwa-re livre do Instituto de Matemática da USP. Os sistemas criados pelos membros do Arca recebem o nome de bichos em homenagem à arca de Noé. “Como o objetivo do sistema que criamos é ‘voar’ de casa em casa levando saúde, felicidade e carinho aos moradores, optamos por utilizar a borboleta como o animal sím-bolo desse sistema”, explica Kon.

A lém da participação fundamen-tal de médicos e enfermeiros do Centro de Saúde-Escola da USP,

como o professor José Ricardo de Mello Brandão, o desenvolvimento do Bor-boleta contou com a participação de parceiros de outras instituições nacio-nais e estrangeiras. A especialista em processamento e reconhecimento de voz Rebecca Bates, pesquisadora da

Universidade Estadual de Minnesota, nos Estados Unidos, passou um ano inteiro, entre 2009 e 2010, no IME/USP colaborando com o projeto. Atualmen-te ela e Kon coorientam um mestrando cujo objetivo é desenvolver ferramentas para reconhecimento do português fa-lado para telefones celulares. A ideia é incorporar esse avanço ao Borboleta, possibilitando que os memorandos de voz passem automaticamente para a versão escrita. Outro parceiro do pro-jeto é a equipe do professor Arlindo Flavio da Conceição, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) de São José dos Campos, responsável pelo de-senvolvimento de um pacote de recur-sos multimídia, composto por grava-dor de voz, câmera de vídeo e de fotos, ainda não incorporados no software. A intenção da equipe é dotar o Borbole-ta de um banco de dados multimídia, permitindo que os médicos tirem fotos e gravem imagens dos pacientes.

O programa, conforme Kon, é uma solução de baixo custo. “O software tem custo zero e o hardware é relativamente barato. Não é exigido também acesso à internet 3G [via celular], o que se-ria caro. Dessa forma, o custo total da solução é acessível a centros de saúde do Sistema Único de Saúde, o SUS”, diz ele, acrescentando que desconhe-ce outros sistemas similares no Brasil ou no exterior. “Existem sistemas para uso dentro do hospital e outros de uso domiciliar mais limitados.”

Projeto Borboleta – Sistema integrado de computação móvel para atendimento domiciliar de saúde – nº 07/54479-4

modAlIdAdE

auxílio regular a Projeto de Pesquisa – convênio Microsoft

CoordEnAdor

Fabio Kon – uSP

InvEStImEnto

r$ 138.000,00 (FaPeSP)r$ 138.000,00 (Microsoft)

O PrOjetO

O objetivo do

sistema é ‘voar’

de casa em casa

levando saúde,

felicidade e carinho

aos moradores,

diz Fabio Kon

Page 73: Mais ciência no zoo

pESQUISA FApESp 181 n Março de 2011 n 73

de patologias críticas e na prevenção de novas doenças”, afirma Kon.

A versão atual do Borboleta ainda é um protótipo e demandará milhares de horas de programação para se tornar um sistema comercial confiável, passível de ser estendido para outras unidades de saúde e ser usado amplamente no SUS. Essa preparação do sistema está sendo realizada pela Infomobile, start-up criada há quatro anos por dois ex-alunos do Programa de Mestrado em Ciên cia da Computação da USP que faziam parte do grupo de pesquisa do projeto. “A ideia inicial da empresa – e seu foco até hoje – sempre foi desenvol-ver projetos inovadores na área de com-putação móvel e aplicações que agilizem processos e tomadas de decisões recu-perando informações a qualquer hora e em qualquer lugar”, afirma o Vladimir Rocha, um dos sócios da Infomobile – o outro é Eduardo Guerra.

O foco da segunda geração do Borbo-leta é o Programa Saúde da Famí-lia. Atualmente, a Infomobile, que

está incubada no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cie-tec), conta com a parceria do Programa de Atenção Básica e Saúde da Família (PABSF) da Unifesp e do Centro de Saú-de-Escola Samuel Pessoa da Faculdade de Medicina da USP para o desenvol-vimento da tecnologia. Em novembro de 2010, a empresa foi selecionada pe-la Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) para receber investimentos do

Fundo Setorial da Saúde (CT-Saúde) destinado a projetos, processos e servi-ços inovadores de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico aplicados a ambientes de telessaúde e telemedici-na. Esses recursos, da ordem de R$ 800 mil, serão empregados no desenvolvi-mento da nova geração do Borboleta. “Assim que sair o dinheiro, teremos uma versão usável em seis meses, que será testada com algumas equipes de saúde da família com as quais já fize-mos contato. No final dos 18 meses de projeto teremos o sistema pronto para ser utilizado pelas equipes do Saúde da Família em todo Brasil”, diz Rocha.

Como o sistema a ser desenvolvido será aplicado em nível nacional, a empre-sa acredita que a formação de instituições parceiras seria a forma mais viável de dis-seminar completamente a tecnologia de forma rápida e em lugares onde ela não poderia chegar de outra forma. “Nosso modelo de negócios prevê essa situação fazendo uso da modalidade de software livre, alinhado ao governo federal, que permite a transferência da tecnologia às instituições, as quais poderão instalar e personalizar o software sem precisar de-pender de um único fornecedor”, afirma. No final do projeto, o objetivo da equipe é disponibilizar o software no portal do Software Público Brasileiro (www.sof-twarepublico.gov.br), o que deverá au-mentar a possibilidade de adoção pelos governos de diferentes estados. n

mineração de dados – Além do acesso aos dados e histórico de saúde dos pacientes nas visitas domiciliares e da capacida-de de armazenamento completo das informações coletadas, um importante benefício oferecido pelo Borboleta aos profissionais de saúde é a possibilidade de preservação e mineração dos dados, tópico de um doutorado recém-iniciado no grupo de pesquisa. Segundo Kon, com o Borboleta não há perda de informação, como ocorre com o papel, e os dados poderão ser acessados mais facilmente a qualquer momento e com a ajuda de ferramentas de mineração de dados, processo que utiliza técnicas da estatística, inteligência artificial e reconhecimento de padrões para explorar grandes quan-tidades de informações, como regras de associação ou sequências temporais para detectar relacionamentos sistemáticos entre variáveis. Por exemplo, o sistema poderia automaticamente “vasculhar” os prontuários de 10 mil pacientes nos últimos 10 anos em busca de padrões repetitivos de ocorrências e revelar que é comum pacientes com Aids e doença de Chagas terem complicações extras decorrentes dessas duas enfermidades. Ou, ainda, que a maioria dos pacientes vítimas de determinado surto viral teve dois anos depois complicações renais. “O computador descobre associações que nós nem sequer imaginávamos que existiam. Essas descobertas podem levar a atitudes pró-ativas dos gestores de saúde no tratamento desses doentes, no aumento do índice de detecção precoce

Relação de resultados de exames no celular

Yuri Vasconcelos

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74 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Sorriso limpo

avançam os estudos para uso de lEDs contra bactérias e fungos

Evanildo da Silveira

[ oDontologia ]

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 75

O uso de LEDs para destruir bac-térias e fungos nocivos à saúde bucal poderá estar disponível no Brasil dentro de pouco tempo. Um estudo, que envolve uma sé-rie de instituições do país, lidera-do pelo físico Vanderlei Salvador

Bagnato, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC-USP), está sendo finalizado em par-ceria com a empresa Gnatus, de Ribeirão Preto, produtora de equipamentos médi-cos e odontológicos. A equipe de Bagnato desenvolve desde 2009 estudos para criar e testar um tratamento de descontaminação bucal, usando a técnica chamada de foto-terapia dinâmica (TFD ou PDT, do inglês photodynamic therapy). O mesmo procedi-mento já é experimentalmente usado para outros fins como em lesões em partes ex-ternas do corpo, no tratamento de doenças como câncer de pele e leishmaniose, além de queimaduras.

Até o começo do século passado, o ho-mem tinha poucas armas para se defender de fungos e bactérias, a não ser seu próprio sistema imunológico, que na maioria dos casos não conseguia sair vitorioso. A situa-ção começou a mudar em 1928, quando o bacteriologista escocês Alexander Fle-ming descobriu a penicilina, o primeiro antibiótico, que passou a ser um medi-camento a partir de 1941. Parecia que a humanidade tinha vencido. Engano. As bactérias se mostraram um inimigo mais poderoso do que se pensava. A cada novo antibiótico elas desenvolvem resistências. Hoje existem superbactérias, imunes aos mais poderosos desses medicamentos. E é aí que entra a terapia fotodinâmica,

que consiste no uso da luz – de lasers ou diodos emissores de luz, LEDs na sigla em inglês – para matar microrganismos. No caso da equipe de Bagnato, os estudos odontológicos estão sendo feitos com a luz emitida por LEDs.

A técnica é relativamente simples. O primeiro passo é aplicar na região infec-tada uma substância fotossensibilizadora, normalmente na forma líquida, e deixá-la agir por alguns minutos. Nesse tempo, ela é absorvida pelos microrganismos ou adere à membrana externa deles. Em seguida, ilumina-se o local com uma luz de uma cor, azul, vermelha, por exemplo, com precisão no comprimento de onda eletromagnética que ela representa, mais adequada para cada caso, que serve para excitar as moléculas do fotossensibili-zador e reagir com o oxigênio presente naquele meio ou no microrganismo. Nes-sa reação esse elemento perde elétrons e formam-se radicais livres altamente reativos. “Estes, por sua vez, oxidam a região onde estão, levando à quebra da membrana dos microrganismos e, con-sequentemente, causando a morte de-les”, explica a dentista Cristina Kurachi, do IFSC-USP e integrante da equipe de Bagnato. Também participam pesquisa-dores da Faculdade de Odontologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araraquara, Faculdade de Odonto-logia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, Universidade Fe deral de São Carlos (UFSCcar), Facul-dade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Unesp de Botucatu e Hospital Sírio- -Libanês, da capital paulista.

acima, haste com Led para tratamento no interior da boca. ao lado, placas com microrganismos para estudos sob a luz

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76 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Para que essa terapia possa ser usa-da por médicos e dentistas é preciso definir antes um protocolo seguro, que determine os parâmetros do tra-tamento. Assim, é necessário saber qual substância fotossensibilizadora é mais eficiente contra que microrganismo, com luz de que cor incidindo por quan-to tempo. A equipe de Bagnato avançou no sentido de finalizar o protocolo. Eles testaram três fotossensibilizadores. A porfirina, medicação fabricada a partir da mesma substância que está presente no sangue; o azul de metileno; e o sal de curcuminoide, feito a partir da cur-cumina extraída do açafrão. Os estudos relativos a esse último fotossensibiliza-dor contaram com a participação da equipe da professora Ana Claudia Pa-varina, da Faculdade de Odontologia da Unesp de Araraquara. Os dois pri-meiros são ativados com luz vermelha, num comprimento de onda de 630 a 660 nanômetros (nm), e o terceiro, pela iluminação azul, com 450 nm.

Segundo Cristina, esses fotossensi-bilizadores, sendo iluminados pela luz adequada em tempos variados, foram testados em microrganismos como as bactérias Porfiromonas gingivalis, que causam doenças da gengiva ou perio-

dontais, Streptococcus mutans e Lacto-bacillus casei, responsáveis pelas cáries, e Staphylococcus aureus, que dão origem às infecções hospitalares. “Também testamos no fungo Candida albicans, que causa a candidíase protética e po-de afetar quem usa prótese dentária”, explica. “Os melhores resultados que obtivemos foram com a porfirina e o sal de curcuminoide.” Para ela, entre os tratamentos o que está mais avançado é o das doenças periodontais, cujo proto-colo clínico já está quase definido.

Mas tratamentos e protocolos não são os únicos resultados do projeto. Ele também rendeu avanços tecnológicos.

“Desenvolvemos muitos instrumentos e equipamentos durante as pesquisas”, diz Bagnato. “Muitos deles irão para o mercado.” Os pesquisadores diziam o que precisavam e a Gnatus, junto com a universidade, se encarregou de produzir as ferramentas. Uma delas é um kit para descontaminação bucal. Ele é compos-to de várias hastes de metal, cada uma com um LED na ponta. O que diferen-cia umas das outras é a posição desse emissor de luz, determinada pela região da boca a ser iluminada. Assim, a que vai ser usada para jogar luz na parte in-terna da bochecha tem o LED na lateral da ponta. A que é usada para iluminar a língua tem a forma de uma pequena ra-quete e aquela empregada para acessar toda a cavidade bucal tem uma ponta arredondada. A equipe também desen-volveu um aparelho de ultrassom para tratamento periodontal, com um LED acoplado. “Ao mesmo tempo que faz a raspagem da placa bacteriana do dente, ele realiza a terapia fotodinâmica”, ex-plica Cristina. Esse equipamento deverá chegar ao mercado em um ano.

Terapia de luz – Apesar de se tratar de um conceito antigo com mais de 40 anos, as pesquisas com TFD são relati-vamente recentes no mundo, por isso até agora não existe nenhum tratamento sendo usado de forma rotineira. Todos são experimentais. Mesmo nos países desenvolvidos ainda se está na fase

Placa para avaliação de eficiência da terapia fotodinâmica

Programa de inovação tecnológica do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica de São Carlos (CePoF) – nº 98/14270-8

modAlIdAdE

Centros de pesquisa, inovação e Difusão (Cepid)

Co or dE nA dor

Vanderlei Salvador Bagnato – USp

InvESTImEnTo

r$ 300.000,00 para o projeto lEDs/tFD em odontologia (FapESp)

O PrOjetO

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 77

de estudos e definição de protocolos. “Os primeiros trabalhos disponíveis na literatura que estudam os efeitos da terapia fotodinâmica em bactérias orais datam de 1992 e foram executados pelo professor Brian Wilson, do Instituto do Câncer de Ontário, no Canadá”, explica. “Eles testaram o potencial bactericida de vários agentes fotossensibilizadores.” Um ano depois, novos estudos foram publicados mostrando que a ação an-timicrobiana da terapia fotodinâmica era eficiente contra bactérias causadoras de cáries como Streptococcus mutans, Lactobacillus casei e Actinomyces viscosus, presentes em dentina humana.

Esse interesse crescente pela TFD não é por acaso. “Com a previsão do fim da era dos antibióticos, causada pe-la resistência ao tratamento desenvol-vido pelos microrganismos, a terapia fotodinâmica para controle microbiano passa a ter uma importância imperati-va”, diz Bagnato. “Além disso, ela pode oferecer várias vantagens em relação a agentes antimicrobianos tradicionais. Uma delas é que a morte das bactérias é rápida, diminuindo a necessidade da manutenção de altas concentrações de substâncias químicas por longos perío-dos de tempo, como ocorre no uso de antibióticos e antissépticos. Além disso, ela preserva o tecido sadio.” Em segundo lugar, Bagnato cita o fato de a TFD não permitir o desenvolvimento de resistência por parte dos microrga-nismos. “Como a morte das bactérias não está ligada à mediação de radi-cais químicos, o desenvolvimento de

aparelho de ultrassom com Led acoplado para limpeza bucal

O laser era a

fonte de luz mais

empregada na

terapia fotodinâmica.

Recentemente,

os LEDs ganharam

espaço por serem

mais baratos

resistência seria improvável”, explica. “Outra vantagem é que, como nem o fotossensibilizador, nem a luz empre-gada são bactericidas quando utiliza-dos isoladamente, a morte das bactérias pode ser controlada restringindo-se a região irradiada, evitando a destruição da microbiota em outros locais. Além disso, esta técnica possibilita inúmeras aplicações, sem nenhum tipo de efeito colateral associado, quando do uso de protocolos adequados.” Também está entre as vantagens da TFD o baixo custo do tratamento. Até há pouco tempo o laser era a fonte de luz mais empregada na terapia fotodi-

nâmica. Embora eficiente, ele é caro. “Agora, com o desenvolvimento dos LEDs, começaram a surgir estudos utilizando essa fonte de luz aplicada à TFD”, conta Bagnato. “Comparando-se a eficácia do LED em relação ao laser, constatou-se que os aparelhos emissores do primeiro têm um custo muito menor, com resultados similares da resposta fotodinâmica. Assim, com fontes de luz e fotossensibilizadores baratos, este tipo de tratamento passa a ser algo econo-micamente viável.” Tanto que a equipe brasileira já está pensando em novos empregos para a terapia fotodinâmica. Eles já possuem patentes registradas de aplicações como descontaminação corporal, tratamento de micoses, sebor-reia e pneumonia. Nesse último caso, a iluminação seria extracorpórea, de fora para dentro do corpo, e a substância fotossensibilizadora seria inalada pelo paciente. O tratamento poderia ser mais rápido que o tradicional, com antibióticos. As pesquisas não devem parar por aí. “O campo é ainda novo e está em franco crescimento, tendo espaço para contribuições de diversos grupos”, diz Bagnato.

Para desenvolver o projeto em an-damento, com duração prevista de três anos, a equipe conta com financiamen-to de R$ 1,5 milhão da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), R$ 1 milhão da Gnatus, R$ 300 mil do Centro de Pesquisa em Óptica e Fotônica de São Carlos, coordenado por Bagnato, e R$ 300 mil do Instituto Nacional de Óptica e Fotônica. Além dos avanços na terapia fotodinâmica do desenvolvimento de equipamentos, as pesquisas resultaram até agora em cerca de duas dezenas de artigos científicos e cinco patentes. n

Artigos científicos

1. MIMA, E. G. O.; PAVARINA, A. C; DOVIGO, L. N.; VERGANI, C. E.; COSTA, C. A. S.; KURACHI, C.; BAGNATO, V. S. Susceptibility of Candida albicans to photody-namic therapy in a murine model of oral can-didosis. Oral Surg Oral Med Oral Pathol Oral Radiol Endod. v. 109, n. 3, p. 392-401. 2010.2. GOIS, M. M.; KURACHI, C.; SANTANA, E.J.B.; MIMA, E. G. O.; SPOLIDÓRIO, D. M. P.; PELINO, J. E. P.; BAGNATO, V. S. Susceptibility of Staphylococcus aureus to porphyrin-mediated photodynamic antimi-crobial chemotherapy: an in vitro study. Lasers Medical Science. v. 25, n. 3, p. 391-35. 2010.

Page 78: Mais ciência no zoo

Antropologia não é ciênciA?

Debate coloca fundamentos da disciplina em xeque

Márcio Ferrari

ilustrações Isabel Falleiros

[ AntropologiA ]

A Associação Americana de Antro­pologia (AAA) recentemente fez uma pequena alteração na redação de um de seus documentos prin­cipais. Embora pouco extensa, a mudança provocou uma grande repercussão, porque “ciência” foi

a principal palavra retirada. Para o público leigo, o as­sunto chegou na forma de uma reportagem do New York Times, no dia 9 de dezembro, intitulada: “Antropologia é ciência? Declaração aprofunda um conflito”. A “decla­ração” referida é o plano de intenções de longo prazo da associação. Antes ele dizia que o objetivo da entidade era “promover o avanço da antropologia como a ciência que estuda a humanidade em todos os seus aspectos”. Agora diz que “os propósitos da associação devem ser a promoção do avanço do entendimento público da humanidade em todos os seus aspectos”. Em mais dois pontos do texto a palavra “ciência” foi removida. Ela subsiste, no entanto, em outros documentos importan­tes da AAA, como sua declaração de princípios.

Segundo o repórter do New York Times, Nicholas Wade, a decisão é resultado de uma tensão de muitos anos entre duas vertentes, uma ligada a disciplinas mais identificadas com a tradição científica, como a arqueo­logia e a antropologia física, e outra que se dedica a estudos de raça, etnia e gênero e “se vê como defensora de povos nativos e dos direitos humanos”. A presiden­te da AAA, Virginia Dominguez, da Universidade de Illinois, disse ao jornal que a palavra “ciência” foi reti­rada porque o conselho diretor da entidade procurou

Page 79: Mais ciência no zoo

incluir também antropólogos que não veem seu trabalho como inserido no campo científico.

Dias depois, a AAA reagiu oficial­mente às notícias publicadas, com cita­ção direta ao New York Times, dizendo que a cobertura “retratou a antropo­logia dividida entre os que a praticam como ciência e aqueles que não o fa­zem, e deu a impressão errônea de que a diretoria da AAA crê que a ciência não tem mais lugar na antropologia”. O tex­to prossegue: “Ao contrário, a diretoria reconhece e aprova o lugar crucial do método científico em grande parte da pesquisa antropológica”.

No mesmo comunicado, a AAA cita o trecho de um documento aprovado na mesma reunião que decidiu alterar a redação do plano de longo prazo. Esse texto se intitula “O que é antropolo­gia?” e diz o seguinte: “Para entender a abrangência e a complexidade totais da cultura por toda a história huma­na, a antropologia retira e se baseia em conhecimentos das ciências sociais e biológicas, assim como das humanida­des e das ciências naturais. Uma preo­cupação central dos antropólogos é a aplicação do conhecimento na solução dos problemas humanos”.

“Mesmo com esses esclarecimentos, é significativo que o New York Times tenha reagido daquela maneira e muita gente tenha se manifestado”, diz Luiz Fernando Dias Duarte, professor de antropologia social do Museu Nacional/UFRJ e vice­ ­presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). “A antropologia se construiu pelo diálogo com a alteridade cultural, através de uma complexa trama de hipóteses, modelos e interpretações. É apenas mais um movimento dessa tensão constitutiva que a AAA descre­va sua tarefa como a de ‘promover a compreen são pública da humanidade’.” Duarte observa que a expressão introdu­zida no documento utiliza o verbo inglês to advance, relacionado ao progresso do conhecimento, “absolutamente caracte­rístico do projeto iluminista e portanto científico. Não há, assim, muito com que se preocupar”, opina.

Dentro da AAA, entretanto, houve sinal de alarme. Peter Peregrine, pro­fessor da Universidade Lawrence, em Wisconsin, e presidente da Sociedade de Ciências Antropológicas, filiada à AAA, enviou um e-mail para todos os membros da associação pedindo que se manifestassem contra ou a favor da alteração de palavras do documento,

humanidades

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80 n mArço DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

que, para ele, pode vir a solapar as bases da antropologia americana. Peregrine atribuiu as mudanças a duas influên­cias dentro da disciplina. Uma seria a dos “antropólogos críticos”, aqueles que veem a ciência antropológica como instrumento do colonialismo. A outra seria do pensamento “pós­moderno”, que, segundo Peregrine, contesta a au­toridade da ciência e por isso equivale ao criacionismo, por “rejeitar o argu­mento racional e a reflexão”.

Por enquanto, contudo, nada indica que exista uma tendência a deixar de lado os procedimentos consensuais. “O debate sobre os métodos, o trabalho de campo, os conceitos etc. se faz no in­terior do campo científico. Ninguém propôs, até agora, que a antropologia saia desse campo”, diz Paula Montero, da Universidade de São Paulo e coordena­dora­adjunta da diretoria científica da

FAPESP. “O debate americano é propor que a antropologia se torne instrumento de ação política, o que é inteiramente diferente.” Sobre os termos da nova declaração, que falam em “promover o avanço do entendimento público da hu­manidade”, ela reage: “O entendimento público se faz pelo conflito e pelo debate. Não é a antropologia que pode fazer isso, porque não é uma religião. Mas já há muitas beiradas do campo antropológi­co que se atribuem a defesa de verdades e missões de salvação”.

Humanista – “O debate se equivoca quando conduz a posturas ideológicas ou reduz a antropologia às atividades humanitárias”, avalia a professora. É claro que mesmo ciência tem um fundamento ético. Ainda assim, faz parte do trabalho científico torná­lo explícito e controlar seus efeitos sobre

os resultados. “A pesquisa sobre grupos humanos está indefectivelmente ligada à dignidade desses grupos”, prossegue a antropóloga. “Fundamentos éticos estão sempre presentes. Não há disci­plina de saúde, por exemplo, que não implique a defesa da vida humana. Isso não lhe tira o caráter de ciência.”

A “missão de salvação” é um objeti­vo que, na discussão em curso nos Esta­dos Unidos, se atribui principalmente aos “antropólogos críticos”. Segundo Duarte, eles formam uma “corrente exclusivamente americana que tem um componente militante explícito”. Para o antropólogo, esse grupo adota “uma visão protestante de redenção da condição humana no mundo. Ele denuncia o suposto caráter neutro da ciência, mas isso não quer dizer que não siga protocolos científicos”.

Segundo Miriam Pillar Grossi, da Universidade Federal de Santa Catarina e ex­presidente da ABA, que fez pós­ ­doutorado na Universidade da Cali­fórnia (Berkeley), toda a polêmica está muito ligada a características especí­ficas da antropologia americana. “Ela faz sentido nos Estados Unidos porque lá a formação antropológica se dá no que eles chamam de quatro campos: cultural, arqueológico, físico­biológico e linguístico”, diz. No Brasil, a antro­pologia sempre foi cultural e nunca houve a tensão, identificada pelo New York Times nos Estados Unidos, entre a facção a que pertencem os arqueólogos e a que inclui os etnólogos.

Miriam Pillar Grossi observa também que no Brasil “não se coloca” a discussão sobre se a antropologia é ou não ciência por outra razão importante: quase toda a antropologia aqui é feita nas universi­dades. Apenas há pouco tempo se tornou numericamente significativa a atuação de antropólogos em outros contextos, como as ONGs. “O modo atual da prá­tica antropológica é muito reconhecido pelos institutos de fomento de pesquisa. A antropologia se legitima e se reconhece nesse diálogo com outros campos e é tida como ciência tanto quanto a matemática, até porque o debate sobre a subjetividade também está adentrando esses campos que antes viam a ciência de forma total­mente positivista.”

De acordo com o New York Times, o racha refletido nas recentes mudan­ças na AAA atingiu um ponto crítico

‘Os problemas da antropologia começam quando

ela tenta mimetizar um método científico no qual

nenhum cientista acredita, diz Marcio Goldman

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PESQUISA FAPESP 181 n mArço DE 2011 n 81

metidas por antropólogos de qualquer vertente, ‘cientificistas’ ou não”.

Quanto aos “pós­modernos”, eles são o que no Brasil costuma ser referi­do como “virada pós­estruturalista das ciências humanas”. “Ela discute o para­digma clássico, de [Bronislaw] Malino­wski [antropólogo polonês,1884­1942], que supõe um certo realismo na descri­ção antropológica”, diz Paula Montero. “O novo paradigma privilegia a natu­reza discursiva do real.” “Nos Estados Unidos pareceu uma visão muito nova e provocou toda uma crítica à prática tradicional”, diz Miriam Pillar Grossi. “No Brasil, o questionamento sobre a forma de pensar do outro já está pre­sente há muito tempo.”

Descontadas as questões de con­tingência, resta uma discussão episte­mológica que tem raízes bem antigas e exige um aprofundamento no debate dos próprios conceitos em jogo, além de uma prospecção histórica. “Questionar o status de ciência da antropologia supõe que se saiba inequivocamente o que é ciência e quais os critérios para uma prá­tica aspirar ao status de ciência”, diz Mar­cio Goldman, do Museu Nacional/UFRJ. “Mas as discrepâncias entre diferentes concepções de ciência são tão grandes quanto as discrepâncias entre diferentes concepções de antropologia.”

com a publicação, há pouco mais de 10 anos, do livro Darkness in Eldorado, do jornalista Patrick Tierney (no Brasil, a Ediouro o lançou em 2002 com o título Trevas no Eldorado). As acusações fei­tas por Tierney contra o antropólogo americano Napoleon Chagnon foram identificadas por parte dos membros da AAA como consequências malé­ficas de uma concepção “científica” da antropologia. Os procedimentos dessa suposta vertente estariam intrinseca­mente ligados a uma postura colonialista e etnocentrista, o que le­varia a abusos contra os povos nativos.

“O debate que de­nuncia a antropologia como um instrumento da colonização data dos anos 1960 e está ligado a movimentos políti­cos de descolonização da África e da Ásia”, diz Pau la Montero. “A an­tropologia acadêmica teve de repensar seus pressupostos e suas teorias: os mo­delos funcionalistas perdem capacidade explicativa, as condições de pesquisa de campo e de escrita etnográfica se transformam profundamente. Mas a antropologia fez isso para permane­cer ciência. A crítica a Chagnon nesse contexto (independentemente de ele ter feito ou não o que disseram que ele fez) associa necessariamente ciência e do­minação. Portanto, o argumento aqui seria dar um fim à ciência.”

Sarampo – No livro, Tierney acusa Chagnon, entre outras coisas, de ter causado um surto de sarampo entre os Ianomâmi e de ter induzido membros da tribo a encenarem rituais. Os estu­dos de Chagnon entre os Ianomâmi do Brasil e da Venezuela, contidos no livro The fierce people (O povo feroz), de 1964, eram até então considerados clássicos. “Discordo da interpretação de que as atividades de Chagnon entre os Iano­mâmi sejam representativas da antro­pologia clássica, considerada ‘científica’ pelos críticos americanos”, diz Miriam Pillar Grossi. “Os clássicos da antro­pologia são atuais até hoje. Não é uma questão de antropologia ultrapassada, mas de ética.” Duarte complementa: “Más condutas éticas podem ser co­

‘O antropólogo que pesquisa em campo o faz

na base da confiança das populações estudadas,

diz a antropóloga Paula Montero

Paula Montero contesta Goldman. “É claro que há um debate sobre mé­todos e abordagens na antropologia, mas discordo inteiramente de que não se saiba o que é ciência e quais os seus critérios. Se não houvesse consenso quanto a isso, não haveria um campo disciplinar acadêmico maduro e com amplo entendimento a respeito das regras de seu funcionamento. O autor confunde discrepâncias de abordagens com ser ou não ser ciência. Ora, fazem parte do campo da ciência a discrepân­cia e a argumentação.”

“Do ponto de vista epistemológi­co, há, sim, um debate legítimo”, diz a antropóloga. “Que tipo de razão está embutido na prática científica? Que on­tologia está posta em campo? E que tipo de ciência está sendo feita nessa posi­ção?” Esse questionamento não levará a um modo único e verdadeiro de fazer ciência, mas à explicitação dos procedi­mentos. “Toda proposição precisa en­tender um problema teórico a partir de regras de um certo tipo de conhecimen­to. São sempre questionáveis, podem ser aceitas ou não, mas não podem ser consideradas uma crença, um pensa­mento ingênuo ou uma opinião. Adotá­ ­las é um pré­requisito fundamental para aceitar o princípio do contradi­tório, que permite o debate.” n

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Reaprender a estudar

Pesquisa reabilita memorização no ensino

Aangústia de fim de ano por que passa a maior parte dos alunos e vestibulandos, que se queixam de que a matéria “não entra” na cabeça, pode decorrer de uma es-colha de método de estudo não tão eficaz. É o que sugere uma

pesquisa da Universidade Purdue, publica-da no periódico Science em fins de janeiro, que reabilita o papel da memorização nos processos de aprendizagem.

“O aprendizado tem a ver com a re-cuperação de informações [tradução aproximada para o substantivo inglês ‘retrieving’]”, afirma Jeffrey Karpicke, coordenador da pesquisa e professor no Departamento de Ciências Psicológicas da instituição norte-americana.

No experimento, dividido em duas eta-pas, Karpicke e sua assistente, Janell Blunt, reuniram 200 alunos para estudarem tó-picos de textos previamente escolhidos de várias áreas da ciência. Eles foram separa-dos em dois grupos distintos, de acordo com o método de treinamento adotado.

Um deles usou como estratégia de aprendizado a elaboração de sofisticados

Marcos Flamínio

mapas conceituais – diagramas que ilus-tram as relações entre as ideias no interior de um dado texto. O outro lançou mão apenas de exercícios de memorização: após lerem os mesmos materiais ofereci-dos ao primeiro grupo, eles os deixavam de lado e tentavam se lembrar dos concei-tos ali explicados.

Nessa primeira etapa da pesquisa, am-bos retiveram aproximadamente a mesma quantidade de informação, segun do Kar-picke. O ponto de virada ocorreria uma semana mais tarde, quando os dois gru-pos foram submetidos a testes para avaliar o grau de conhecimento e de assimila-ção dos conceitos que haviam estudado. Aqueles que se serviram de exercícios de memorização como estratégia de estudo apresentaram desempenho 50% superior, em média, aos alunos que utilizaram ma-pas conceituais.

Karpicke ressalta que, nessa segunda fase da pesquisa, os estudantes responde-ram perguntas não apenas sobre conceitos específicos presentes nos textos lidos uma semana antes, mas também tiveram que realizar conexões entre conceitos e ideias

[ EDUCaçÃo ]

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84 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

que não estavam explicitamente men-cionados ali. Nos dois casos, a perfor-mance do grupo que fez exercícios de memorização foi superior à do outro.

Os resultados surpreendentes inspi-raram a Karpicke o nome de sua pes-quisa, publicada na Science: “Retrieval practice produces more learning than elaborative studying with concept ma-pping” [A prática de recuperação de informações produz mais aprendiza-do do que os estudos elaborativos com mapas conceituais].

Ele é taxativo ao avaliar os resulta-dos do experimento que coordenou, financiado pela Divisão de Educação na Graduação da Fundação Nacional para a Ciência, dos Estados Unidos: “A pes-quisa mostra que a prática de recupe-ração de informações como método de estudo é crucial para o aprendizado”.

Surpresa – Cristiane Gottschalk, pro-fessora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), não se diz surpresa com as conclusões desse estudo. Ela lembra que estudos na área de filosofia da linguagem chegaram a conclusão parecida já nos anos 50 e 60 do século passado.

Autores como Gilbert Ryle (1900-76) e Israel Scheffler (1923) haviam demonstrado, afirma, que “a memo-rização de certos saberes proposicio-nais é condição de aprendizado dos demais. E essa memorização, se bem exercitada, é o que possibilita operar com essas informações”.

Os dois tomaram como ponto de partida a distinção feita pelo filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) entre “saber que” e “saber como”,

isto é, entre um saber normativo – que é aceito – e um saber descritivo – que é aprendido.

Cristiane exemplifica essas duas formulações com uma das operações cognitivas mais básicas da matemáti-ca. “Quando uma criança memoriza que ‘dois mais dois é igual a quatro’, ela está pondo em prática uma função normativa.” Será a partir do treino e da memorização desta e de outras opera-ções de soma que a criança será capaz de aprender situações empíricas, como deduzir que dois pares de sapatos são quatro sapatos – esta sim uma propo-sição descritiva, com sentido. “Assim”, conclui, “memorizar determinados conteúdos transcende a mera repeti-ção, pois é no exercício dessa infor-mação que o “saber como” vai sendo dominado pelo aluno, mesmo que este não seja transmitido explicitamente”.

Os resultados da pesquisa de Karpi-cke remetem a um antigo debate envol-vendo estratégias de aprendizado, que têm sua origem no final do século XIX. Até então, a memória havia exercido papel crucial no ensino, desde a An-tiguidade, passando pela Idade Média até chegar à Era Moderna.

Contrapondo-se a essa perspecti-va, surgiu a Escola Nova, que passou a

criticar duramente o que se convencio-nou chamar, a partir de então, de “pe-dagogia tradicional”. Nesta, segundo os escolanovistas, o aluno era submetido ao conhecimento de um professor au-toritário, o que acabava por resultar em alunos submissos, conformados e, logo, propensos a perpetuar o status quo. Isso tinha a ver com a ascensão do movimen-to romântico, segundo o qual a socie-dade está em constante transformação. Por contraste, o passado e, portanto, a memória perdem importância.

“A palavra de ordem para se contra-por à memorização passa a ser o desen-volvimento da criatividade no aluno, para que não houvesse a imposição de conhecimentos ‘petrificados’”, afirma a docente da USP.

Ao longo do século XX se desenvol-veriam várias derivações da Escola No-va, as mais famosas delas a pedagogia das competências e o construtivismo. No Brasil, em maior ou menor grau, elas foram incorporadas aos Parâme-tros Curriculares Nacionais (1997), que orientam o sistema público de educação. Para Cristiane, isso acabou por supervalorizar a noção de que a criança deve construir seu próprio conhecimento a partir de sua própria experiência – de fato, única.

Quando uma criança

memoriza que

‘dois mais dois

é igual a quatro’,

põe em prática uma

função normativa,

diz Cristiane

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PESQUISA FAPESP 181 n março DE 2011 n 85

Dermeval Saviani, pedagogo e pro-fessor emérito da Universidade Esta-dual de Campinas (Unicamp), criou a expressão “teoria da curvatura da vara” para explicar esse fenômeno. Se o en-sino tradicional superdimensionou a memória e passou a tratá-la de forma mecânica, “a Escola Nova curvou a vara para o outro lado, colocando o foco na imaginação e na criatividade, como se essas funções pudessem se desenvolver de forma pura, de modo espontâneo, sem se basear nas percepções e conhe-cimentos anteriores”.

O próprio Karpicke, apesar dos re-sultados de seu estudo, não descarta o ensino baseado na construção de ma-pas conceituais. Contudo, ele insiste que é preciso “descobrir modos mais efetivos e práticos para usar o retrieval no processo de aprendizagem”.

A psicóloga Rosely Sayão, com mui-tos anos de janela no aconselhamento de pais e educadores no que diz respeito ao ensino de crianças e adolescentes, pondera que “talvez seja melhor o pro-fessor agir e ensinar de acordo com o método com o qual se sente melhor – seja ele tradicional ou não”.

Assim como o docente da Univer-sidade Purdue, ela não descarta outras formas de aprendizado; mas é incisiva:

“Hoje todo mundo fala em construti-vismo, só que o professor não tem tem-po para estudar e descobrir exatamente o que ele significa”.

Enem e vestibular – Essa polarização entre métodos de ensino interfere na formulação de vestibulares e, sobretudo, do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)? “Sim, o equívoco em valorizar o ‘saber como’ em detrimento do ‘saber que’ está presente nos atuais vestibula-res, em especial naqueles que seguem o formato do Enem”, avalia Cristiane.

É possível que estudos como o coor denado por Karpicke possam vir a alterar o modo como esses exames são concebidos? “Não creio que ocor-ram alterações profundas, porque esses exames já vêm passando por processos de revisão”, diz Saviani. Porém, caso aconteçam, “espero que não promo-vam o retorno às formas mecânicas de tratamento da memória”, conclui o professor Saviani.

Uma tal reorientação pedagógica também poderia afetar a indústria edi-torial, que todo ano lança no mercado grandes variedades de “métodos” de ensino? “Sem dúvida! Boa parte deles, se não todos, teria que ser reescrita... O que essa pesquisa da Universidade

Purdue faz voltar à tela é a função cru-cial, para o processo de aprendizado, dos saberes de natureza convencional”, diz Cristiane .

Mas não há o risco de a “vara” encur-var para o outro lado e formar alunos passivos? Ao contrário, ela diz, “estare-mos dando condições de aprendizado para que eles possam inclusive criticar e modificar o que foi aprendido”.

Já Saviani pensa que a indústria editorial se ajustaria rapidamente às novas diretrizes. “Em lugar do apelo às novidades, que é muito forte nos li-vros didáticos publicados atualmente, pode ocorrer que o estudo em referên-cia motive o aparecimento de textos mais substantivos.”

A investigação de Karpicke to-mou como matéria-prima apenas o estudo de conceitos científicos. Mas seria possível estender suas conclu-sões a outras áreas do saber, como as humanidades? Cristiane, que possui graduação e mestrado em matemáti-ca aplicada, não tem dúvida de que a resposta é sim. “Há um conjunto de saberes em cada área do conhecimen-to que é ‘condição de sentido’ para os outros saberes. E isso acontece não só nas ciências empíricas, mas em todas as áreas de conhecimento.”

Bem, como o período de vestibula-res ainda está longe, talvez haja tempo de refletir sobre que método de apren-dizado adotar. n

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O livro morreu? Viva o livro!

Estudos revelam novos rumos da leitura com os e-readers

A primeira conferência digital exclusiva para de-bater o uso de tecnologia na edição de livros para crianças acontece às vésperas da abertura da Feira do Livro Infantil de Bolonha, o en-contro mais respeitado do gênero, no dia 27 deste mês. O Tools of Chance for Publishing reunirá educadores e especialistas no assunto

e vai analisar cases de educação com o livro digital. “As crianças aprendem mais e melhor com esta ferramenta?” Esta será uma das perguntas “que se tentará responder” no acontecimento.

Se há alguns anos ainda havia dúvidas sobre o futuro do livro digital, hoje já se pensa em sua utilização para além da mera diversão. Prova da nova visão é que acaba de ser aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal o projeto de lei que altera a Política Nacional do Livro, atualizando a definição e ampliando a lista de produtos equiparados ao livro. Com o projeto, que deve ser votado até meados do ano, ficarão equiparados aos livros os equipamentos eletrônicos des-tinados à leitura de textos, os e-readers. Como uma das razões para o ceticismo dos editores para a ampliação do mercado de livros digitais no Brasil é o alto preço dos equipamentos de leitura no país, a aprovação da medi-da poderá ser um bom empurrão na disseminação do e-book. Afinal, com a mudança, poderão ser concedidos benefícios fiscais próprios dos livros aos leitores digitais, ainda que o relator da CAE seja contrário à extensão da redução de impostos ao iPad, por considerá-lo mais do que um leitor de livros digitais. Outro sinal das mudanças editoriais que estão chegando foi a reunião, no final do ano passado, de seis editoras (Objetiva, Record, Sextante, Intrínseca, Rocco e Planeta) para a criação da Distribui-dora de Livros Digitais (DLD), empresa de distribuição de e-books que espera incorporar 300 novos títulos por mês ao seu catálogo, embora funcione apenas como uma intermediária entre o consumidor e as livrarias digitais, não vendendo obras diretamente para o público.

Carlos Haag

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Ainda incipiente no Brasil, o assunto gera discussões acaloradas no exterior. Uma das palestrantes do encontro em Bolonha, Lisa Edwards, é uma das responsáveis por uma pesquisa recente sobre o futuro do livro digital para as crianças, o estudo Kids and family reading reporttrade, realizado pela Scholastic Corporation, a maior editora e distribuidora de livros infantis, entre os quais a série Har-ry Potter. Segundo a pesquisa, 57% das crianças entrevis-tadas preferiam ler em aparelhos digitais (os e-readers) em vez de no meio impresso, apesar do temor paterno (41% dos pais entrevistados) de que a tecnologia afastasse seus filhos do hábito da leitura. Mais: ainda que apenas 6% dos pais possuam um aparelho eletrônico para ler e-books, neste ano o número, segundo o estudo, deve crescer para 16%. E, apesar do custo de leitores como o Kindle ou o iPad, 83% dos pais não hesitariam em deixar esses apa-relhos delicados nas mãos dos filhos, encorajando-os a usá-los na leitura. Outra pesquisa, dessa vez feita pela Marketing and Research Resources, complementa a nova direção e indica que 40% dos entrevistados passaram a ler mais livros por causa dos aparelhos eletrônicos de leitura, o que levará 11 milhões de americanos a ter um leitor até meados deste ano. As vendas de livros digitais no país cresceram 183% entre 2009 e 2010.

Mas como esse debate chega à realidade brasileira, tão diferente daquela analisada nas pesquisas americanas? Afinal, mesmo nos EUA são escassos os estudos sobre a questão e as grandes editoras ainda se dizem “cautelosas” sobre o que vai acontecer. “Os leitores brasileiros ainda não sabem da existência do livro digital e também não sabem como ter acesso a eles, algo que inclui mesmo os mais jovens, que o associam muito à internet”, avisa Galeno Amorim, novo presidente da Fundação Biblioteca Nacional e diretor do Observatório do Livro e da Leitura que, ao lado da Câmara Brasileira do Livro e da Imprensa Oficial do Estado, realizaram, no ano passado, a pesquisa Os leitores brasileiros e o livro digital. Mas são experiên-cias muito diferentes em que tudo é mais interativo e o

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leitor pode mexer letras e imagens de lugar, deparar com links que o levem para outros temas a partir de palavras de um livro, ter acesso a imagens, sons e, para crianças, ter a sensação de vi-rar um livro de cabeça para baixo e ver tudo se mover, como na versão para iPad disponibilizada como “app”, gra-tuitamente, no site da Apple. “A única unanimidade dos leitores brasileiros é que o livro impresso não vai acabar tão cedo por aqui porque ele ainda tem um valor muito grande no imaginário coletivo da sociedade brasileira, como símbolo de saber e conhecimento. Já o livro digital seria algo ‘ecológico’, mais barato ou mesmo gratuito.”

Segundo dados da pesquisa da CBL, cerca de 3% dos brasileiros já tiveram algum tipo de acesso a um livro di-gital, mas têm grandes resistências ao meio por achar incômoda a leitura em telas de computadores. “Tudo é sem-pre muito associado apenas à internet. Quando se mostra que o que está em jogo são e-readers tudo muda de figura e a maioria dos entrevistados adorou o aparelho, achando-o leve e fácil de operar”, diz Galeno.

Celulares – Mas muitos não o compra-riam por enquanto, acreditando que o futuro reserva aparelhos melhores com mais aplicativos, como aconteceu com os celulares. O preço que se acreditaria adequado para que o e-reader se disse-minasse no mercado estaria em torno de R$ 300. Também seria aceitável que um livro digital custasse um quarto do seu preço impresso: um livro técnico, por exemplo, de R$ 90 deveria ser ven-dido por R$ 20 em formato digital. “Mas é indiscutível. Quando se pergun-ta se a pessoa está disposta a comprar livros digitais a resposta é sempre ‘não’. A tendência é que tudo seja gratuito, na mesma linha de raciocínio das músicas em download: se está na internet é para ser gratuito.” Outra pesquisa, feita em 2010 pela GfK, empresa privada es-pecializada em pesquisa de mercado, mostrou que o e-book e seus leitores são desconhecidos para 67% dos bra-sileiros, embora 56% dos brasileiros pretendam adquirir um aparelho se o preço for acessível. Um dado curioso é que a Região Nordeste é mais recep-tiva à compra de livros digitais (70%) do que a Região Sul (61%), a menos

tuguês), a Simplíssimo (com cerca de 200 títulos) e a Ponto Frio (100 títulos em português). Dentre as obras ofere-cidas, a maioria esmagadora é de livros recentes de autores conhecidos e a que mais oferece material para crianças, a Gato Sabido, não tem mais do que 130 títulos para o público infantojuvenil. Os livros são apenas a versão em PDF ou e-pub dos originais e apenas alguns trazem alguma interatividade. As ex-pectativas de venda de iPads e outros dispositivos similares parecem refor-çar esse entusiasmo inicial. Segundo pesquisa da IDC Brasil, o número de tablets vendidos no Brasil deve mais do que triplicar. Serão mais de 300 mil unidades comercializadas, ante as 100 mil vendidas em 2010. O mais conhe-cido por aqui é o Kindle, que apresen-tou sua versão internacional em 2009, vendido pela livraria on-line americana Amazon por cerca de R$ 500, incluí-dos os custos da Receita Federal pela importação (aqueles que trazem o apa-relho na bagagem de volta de viagem estão isentos do imposto). O Cool-ER, comercializado pela Gato Sabido desde 2009, com tecnologia de tinta eletrôni-ca similar à do Kindle, é vendido por R$ 599. A Saraiva e a Fnac vendem o IRiver Story, com poucos recursos e sem cores, por R$ 1.099. A Positivo lançou no final do ano passado o seu leitor, o Alfa, com tela sensível ao toque e um Dicionário Aurélio acoplado, com preço em torno de R$ 700.

O objeto de maior desejo, porém, é mesmo o iPad, da Apple, importado,

Segundo dados da

pesquisa da CBL,

cerca de 3% dos

brasileiros já tiveram

algum tipo de acesso

a um livro digital

propensa à aquisição da ferramenta de leitura eletrônica, uma peculiaridade que se repete na comparação entre a intenção de compra das classes C e D (58%) em comparação com as classes A e B (54%). A explicação dada pela pes-quisa seria a carência de informação nas classes menos abastadas, por isso mais interessadas em buscar conhecimento e informação para romper as barreiras de acesso ao mercado de trabalho.

O país, porém, só conta com cinco livrarias digitais: Saraiva (catálogo de 2 mil títulos em português), Gato Sa-bido (a primeira eBookstore brasileira, fundada em 2009, com um acervo de 1,9 mil títulos em português), a Cul-tura (com cerca de mil títulos em por-

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e que chegou ao Brasil em dezembro, com um preço ainda salgado: R$ 1,6 mil. A produção nacional de tablets já começou e tem a mineira MXT In-dustrial como pioneira no segmento. A empresa lançou o iMXT, tablet para o mercado corporativo que chega às lojas com valores entre R$ 1,6 mil e R$ 2 mil. A expectativa da fabricante é vender cerca de 200 mil unidades até dezembro deste ano. Há, porém, outras questões que atrapalham a disseminação dos novos meios de leitura, como critérios de padronização, pois, por exemplo, um livro criado para iPad não roda num Galaxy. Boa parte das lojas nacionais de livros digitais não suporta conteúdo animado. Outro obstáculo prosaico é a falta de mão de obra especializada para converter os livros para o formato di-gital que, muitas vezes, devem ser en-viados editados para serem convertidos em empresas na Índia ou nas Filipinas, de onde retornam fora do formato ou com erros graves de grafia. A questão mais delicada será a dos direitos au-torais, pois será necessário, a partir de agora, discutir com os autores sobre as versões impressas e digitais, e o mesmo terá que acontecer com obras já exis-tentes em formato impresso.

Todo esse esforço valerá a pena? Muitos editores brasileiros afirmam que só investem no mercado para não perder o bonde da história. “Não há ainda consenso do impacto do livro digital no mercado editorial, porque, por enquanto, a presença da tecnologia

aplicativos. “Se a leitura é uma forma de decifrar o mundo, os novos meios trazem novos instrumentos de realizar essa tarefa antes tão complexa. As novas mídias quebraram a linearidade e hoje qualquer jovem consegue, ao mesmo tempo, ouvir música, navegar na inter-net e jogar algum jogo. Esse processo supõe uma operação diferenciada no cérebro”, explica a professora de lite-ratura Regina Zilberman, da Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul e autora do livro Das tábuas da lei à tela do computador.

União – Segundo a pesquisadora, livros e computadores não se excluem: se pa-recem antagonistas, por um lado, em outro são parceiros e o mesmo acon-tecerá com a leitura em si. “O acesso à realidade virtual depende do domínio da leitura e, assim, essa não sofre amea-ça nem concorrência. Ao contrário, sai fortalecida porque tem mais espaço para sua difusão. Quanto mais se ex-pandir o uso da escrita por intermédio do meio digital, tanto mais a leitura será chamada para contribuir para a conso-lidação do instrumento, a competência de seus usuários e o aumento do seu público”, avalia. Quais seriam, porém, as diferenças? “Penso que a leitura em meios digitais é espontânea, enquanto a leitura de livro tende a ser induzida: a escola é a instituição à qual se atribuí a responsabilidade de iniciar crianças e jovens. A leitura digital, por sua vez, dá maior possibilidade de interferência

no país é incipiente. Ainda são raros os leitores que têm e-readers no Brasil, mas a chegada dos aparelhos pode provocar a grande revolução digital dos livros di-gitais no país”, acredita Rosely Boschi-ni, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL). “Os impactos serão não só sociais, mas sobretudo psíquicos e afetarão o conceito tradicional de lei-tor e de leitura, que será ampliada para além da visão purista da decifração de letras. Esse leitor das telas eletrônicas está transitando pelas infovias das re-des, virando um novo tipo de leitor que navega nas arquiteturas líquidas e ali-neares da hipermídia no ciberespaço. É o leitor imersivo”, observa a semióloga Lucia Santaella, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e autora, entre outros, de Navegar no ciberespaço. “A leitura na tela do computador ou em iPads abre a possibilidade, para o leitor, de embara-lhar, cruzar, reunir textos que são ins-critos na mesma memória eletrônica. É um modo inteiramente novo de ler, diferente daquela forma contemplativa da linguagem impressa. Esse é um lei-tor cuja navegação programa leituras, criando um universo de signos evanes-centes e sempre disponíveis. Ele está em estado de prontidão, conectando-se entre nós e nexos, num roteiro labirín-tico que ele próprio ajudou a construir ao interagir com os nós entre palavras, imagens, documentação, músicas, vídeo etc.”. Fala-se aqui, é claro, não apenas do download de textos num computador, mas no uso de tecnologias mais sofis-ticadas que vêm sendo desenvolvidas e permitem a abertura de hiperlinks, in-tervenção no texto, sons e imagens que se mesclam com a leitura, entre outros

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90 n março DE 2011 n PESQUISA FAPESP 181

no texto à medida que se lê. Essa aber-tura que o texto digital oferece, já que ele materializa, concretiza a abertu-ra que no texto impresso é virtual, é muito apropriada para estudar e para textos-jogos”, observa a professora de literatura Marisa Lajolo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Educação da Uni-versidade Presbiteriana Mackenzie, au-tora do estudo A leitura rarefeita: livro e leitura no Brasil. Para Lúcia Santaella, a chave é compreender que as linguagem se somam, se misturam e se comple-mentam. “Diferentemente do leitor do livro que tem diante de si um objeto manipulável, a inscrição na tela sobre a qual o texto eletrônico é lido cria uma distribuição, uma organização, uma es-truturação do texto que não é de modo algum a mesma com a qual se defron-tava o leitor do livro no passado. Mas a história das mídias tem nos revelado que, quando um novo meio surge, ele não leva o anterior ao desaparecimento, mas inicia-se um processo de trocas em que um meio enriquece o outro com o empréstimo de recursos, ou seja, um aprende com o outro.”

Social – Um dos resultados, aliás, da pesquisa da Scholastic revelava que 25% dos jovens entrevistados consi-deram o uso do Facebook, Orkut etc. como formas de leitura. “O adolescente lê e escreve muito, comunica-se muito mais por escrito. As gerações anteriores liam só os livros da escola. Os jovens de hoje, não: estão sempre se informando dentro dessa vida social digitalizada”, afirmou Rosa Farah, coordenadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia da Informática da PUC-SP. “A definição do que é um texto está mudando rapida-mente e ele hoje é mais do que palavras escritas e imagens. Os leitores de agora mergulham em experiências multimo-dais e têm uma noção aguda das possi-bilidades de combinar mídias para re-ceber e transmitir mensagens”, acredita Lotta Larson, professora da Faculdade de Educação da Kansas State Universi-ty e autora da pesquisa E-reading and e-responding: new tools for the next ge-neration of readers (Digital Literacies), que usou o Kindle junto a um grupo de alunos para analisar sua relação com a leitura. “Os e-books trazem conteúdos multimídia e convidam os leitores a interagir com o texto de forma direta.

Em boa parte dessas interações eu vi uma espontaneidade e impulsividade inteligente e criativa. Eles se engaja-ram em novas práticas literárias ao perceber novas formas de acessar seus pensamentos como resposta ao que os e-books propiciavam. Houve mais mo-tivação para ler, para entender o que acontecia na história, para prever ações, para fazer juízos pessoais de atitudes de personagens etc.” Para a professora, os e-readers são especialmente úteis em cooptar leitores relutantes e arrancar deles uma interatividade notável com a leitura. “O céu não é mais o limite para a maneira como a imaginação não só dos jovens, mas também dos mais velhos está sendo estimulada nessa era de semiodiversidade, era da ecologia pluralista da comunicação e da cultura”, concorda Santaella. Há, avaliam alguns pesquisadores, todo um universo em criação de poderes do hipertexto. “Seria

a superação da autoridade do autor, a própria dissipação da hierarquia en-tre autor e leitor, nas transgressões e escolhas, realizadas por meio de leitu-ras múltiplas em textos não lineares e destituídos de autoridade, e ainda por meio de uma subjetividade que con-quistaria a liberdade e desenvolveria a criatividade”, observa Luis Cláudio Saldanha, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de São Carlos e autor do artigo “Subjeti-vidade no ciberespaço”. “Surge desse processo não apenas um novo tipo de leitor, o navegador, mas desaparece o autor ou pelo menos haveria a re-configuração de seu status. Em con-trapartida aos dois nasceria o ‘lautor’, que reuniria em si tanto o consumidor quanto o produtor de textos”, afirma Sergio Bellei, professor de literatura da PUC-RS e autor do artigo “Literatura e(m) hipertexto”. Porém há que se ter cuidado. “Há chance de termos um ‘inflacionamento’ de informações, de transformação de saber em mera in-formação. Uma leitura e uma escrita sem a marca da experiência autêntica e da reflexão, um estado informativo pontual, desconectado, efêmero e que ficará borrado no próximo instante por outras informações. O leitor no ciberes-paço não deve ser apenas um usuário de máquinas e programas, e sua leitura não deve prescindir da subjetividade e da crítica. Se não for assim, o diferencial dessa leitura se reduzirá aos aspectos técnicos e formais do novo suporte”, avisa Saldanha.

“O meio digital promove uma de-mocratização no acesso à informação. O problema é que o acesso não bas-ta. Informação temos em excesso e o acesso a ela está cada vez mais fácil. O problema é como selecionar o joio do trigo. Um dos grandes desafios da esco-la é justamente ajudar os jovens nessa empreitada”, pondera Santaella. “Além disso, o professor, em geral, é um ‘ile-trado digital’, que sabe menos do que os alunos: tem pouco a ensinar nesse departamento e muito a aprender. Não se trata apenas de reivindicar um apa-relhamento das instituições de ensino, mas uma preparação do docente, por-que se isso não ocorrer os professores vão continuar a defender que o supor-te digital não é aprendizagem”, analisa Regina Zilberman. n

O céu não é mais

o limite para

a imaginação não

só dos jovens,

mas também

dos mais velhos,

diz Santaella

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No jargão da imprensa escrita, “re-tranca” é a classificação do assunto contido em uma página, editoria ou em um conjunto de textos jornalísticos. Sob a retranca “Na Rede da Democracia”, entre ou-tubro de 1963 e março de 1964,

os três mais importantes jornais do país – O Jornal, dos Diários Associados, Jornal do Brasil, da família Nascimento Brito, e O Globo, da família Marinho – se uniram em torno de uma pauta em comum: a defesa do nacionalismo contra o comunismo, a crítica à ineficiência do Congresso, a falta de legitimidade do presidente João Goulart, o perigo de o governo ceder às pressões das manifestações de massa e dos movimentos populares. Diariamente publicada nos três diários e veiculada à noite nas suas respec-

Carla Rodrigues

[ MÍDIA ]

Imprensa versus governo

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Tropas no comício da

Central do Brasil

tivas emissoras de rádio, a Rede da Demo-cracia ajudou a enfraquecer e derrubar o governo de Jango, deposto pelos militares que tomaram o poder em 1964.

Os acontecimentos políticos posterio-res a esse momento da história brasileira têm sido muito registrados e debatidos. Mas sobre o consórcio formalizado pelos jornais sob a denominação de Rede da Democracia pouco se estudou. Foi nesse vazio que trabalhou o historiador Aloy-sio Castelo de Carvalho em sua pesquisa de pós-doutorado em história social na Universidade de São Paulo (USP), cujo resultado está sendo lançado no livro A Rede da Democracia: O Globo, O Jornal e Jornal do Brasil na queda do governo Goulart (1961-1964), coedição entre a Ni-tPress e a Editora da UFF (Universidade

Rede da Democracia, formada por três grandes jornais, teve papel na queda de Jango

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92 n MARço De 2011 n PESQUISA FAPESP 181

Federal Fluminense), onde Carvalho também é professor.

“A Rede da Democracia está incluí-da num debate sobre a relação entre os jornais e o governo de João Goulart”, diz o pesquisador. Relação que evoluiu de maneira peculiar: em agosto de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, os três jornais defenderam uma posição antigolpe, afirmando a legalidade da posse do vice João Goulart. Dois anos depois, a Rede da Democracia cerrava fileiras contra o presidente.

Em 1961 coube ao então gover-nador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, montar a chamada Rede da Legalidade, que transmitia, a partir do porão do Palácio Piratini, discursos do aliado de Jango reproduzidos em on-das curtas por dezenas de emissoras do interior e de outros estados. O modelo de resistência brizolista inspiraria, anos depois, o empresário Assis Chateau-briand, dono dos Diários Associados. As rádios Tupi, Globo e Jornal do Brasil passaram a transmitir em conjunto, a partir de 1963, pronunciamentos que no dia seguinte eram publicados nos jornais com a mesma retranca. Alguns

títulos ilustram o conteúdo editorial da Rede: “União Nacional dos Estudantes é um antro de delinquentes políticos”, “O dispositivo chamado sindical é na realidade dispositivo comunista”, “Dias graves se aproximam se não for repeli-da a invasão marxista”, “Ministério do Trabalho comanda as greves que agi-tam nosso país”, “Nosso país não está só ameaçado, mas comprometido com o comunismo” são exemplos da toma-da de posição da imprensa diante do governo de Jango. Entre os signatários estavam parlamentares da oposição e donos de jornais que, na visão de Car-valho, se arvoraram na pretensão de se tornarem atores políticos.

Padrão – Foi em busca de compreender qual foi o papel da imprensa na queda de Jango e na emergência do governo militar que Carvalho acabou encon-trando um padrão discursivo formado por quatro principais eixos: uma con-cepção valorativa da própria imprensa, que se atribui o papel de porta-voz da opinião pública; o temor de que o in-gresso das massas no sistema político seria um risco para o país; a falta de confiança no presidente da República quando ele conta com apoio popular; a falta de confiança nas instituições políticas, inclusive no Congresso e no Senado, contribuindo para reforçar a percepção do papel da imprensa co-mo fiscal dessas mesmas instituições e afirmando a importância da liberdade de imprensa.

No período Jango, os três jornais unificados sob a Rede da Democracia viam a sociedade brasileira como uma emergente sociedade de massas, mas resistiam ao ingresso dessa massa na participação política, que passou a se dar pela via dos movimentos sociais e das manifestações populares. “Os jor-nais reagiram de forma conservadora, afirmando que a única participação política legítima era pelas formas ins-titucionais”, lembra Carvalho.

No entanto, essas formas institu-cionais estavam fechadas à massa de trabalhadores que, no processo de ur-banização e industrialização, chegava à vida política. O voto não era permiti-do aos analfabetos, por exemplo, e em 1963 metade da população brasileira não sabia ler nem escrever. Daí a grande importância da Rede da Democracia

Pero etumsan vullum irilit inibh ea ad tis feummod iametum ex

A Rede da

Democracia está

incluída num

debate sobre a

relação entre os

jornais e o governo

de Goulart,

diz Carvalho

Goulart fala com multidão na Central do Brasil

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PESQUISA FAPESP 181 n MARço De 2011 n 93

Muito cuidado

para não cair

num modelo linear

de se classificar

a imprensa

de boa ou ruim,

diz Bucci

‘em veicular suas ideias no rádio, a fim de ganhar adesões também entre as massas como parte de um processo que, para Carvalho, faz parte da competição da imprensa para representar a opinião pública. “É uma visão publicista de opi-nião pública, que desvaloriza a expres-são pela via do voto ou das instituições”, explica o professor.

Embora reconheça que há períodos muito negativos, Eugênio Bucci, profes-sor de jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), considera que generalizações sobre a relação entre governo e imprensa en-frentam dois problemas: o primeiro, a dificuldade de caracterizar a imprensa como uma entidade de condutas uni-ficadas. Há, lembra ele, pluralidade e diversidade. Que poderia ser maior, reconhece, mas que já avançou muito em relação aos anos 1960. No cenário atual, não apenas jornais, mas rádios, TVs, sites de internet formam um mo-saico de veículos de comunicação com expressão de pontos de vista muito dis-tintos entre si.

“Apesar do comportamento de certos veículos da chamada grande imprensa, há mais diversidade, mais pluralidade. Sobrevive entre nós uma mentalidade que tem repercussão na imprensa e rejeita tudo aquilo que emerge do povo iletrado, essa mis-tura de raça e cor considerada ruim”, argumenta Bucci. Para ele, é preciso ter muito cuidado para não cair num modelo linear, segundo o qual se pode classificar a imprensa de boa ou ruim.

Lua de mel – O que leva Bucci a discu-tir o segundo problema: como se tem visto no noticiário após a posse da pre-sidente Dilma Rousseff, há períodos de verdadeira lua de mel entre jornais e go-verno. Foi assim, por exemplo, no início do primeiro mandato de Lula, lembra Bucci. Segundo ele, o tratamento que o governo Lula recebeu varia muito entre os períodos e entre os veículos. “A TV Record, por exemplo, compete com a TV Globo na cobertura crítica do governo”, exemplifica, lembrando que blogs e sites, como o IG, exercem papel importante em contrapontos ao discurso dos grandes jornais e também formam opinião.

O fato de a internet ainda não ser uma mídia de massa faz com que o

revisão na lei das concessões. “É preciso assegurar que qualquer grupo social possa se expressar com autonomia”, defende Baía.

A autonomia da imprensa sempre esteve em debate em tempos de crise. Foi assim nos anos 1960, quando a Re-de da Democracia pregava seu direito à liberdade de imprensa como forma de garantir a expressão de um determina-do ponto de vista em relação ao governo Jango e compartilhado pelos três jornais que integravam o consórcio. O deba-te sobre liberdade de imprensa esteve novamente em pauta durante os dois mandatos do governo Lula, e com ele veio a discussão sobre mecanismos de controle social da informação. “A liber-dade de imprensa é um eixo discursivo dos jornais quando eles querem se valo-rizar como único canal de expressão da opinião pública”, alega Carvalho. “Lula é um produto da liberdade de imprensa”, contrapõe Bucci, lembrando que foi a abertura política e, com ela, o fim da censura à imprensa que permitiram o contato entre o Partido dos Trabalha-dores e o eleitorado.

Carvalho conclui que, quando se sentem ameaçados, os jornais formam alianças formais, como a Rede da Demo-cracia, para fazer ecoar o discurso liberal e conservador. “Vai chegar o momento em que a imprensa será objeto de crítica das outras instituições. E os jornais não poderão mais ser irresponsáveis e ma-nipuladores”, aposta Carvalho. n

cientista político Paulo Baía, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UFRJ), discorde da capaci-dade desses novos meios de comuni-cação de democratizar a informação e se constituir numa via alternativa à grande imprensa. Para ele, o mecanis-mo fundamental que mantém a relação umbilical entre poder e imprensa é a lei das concessões de rádio e TV. Por isso, acredita que a única forma de alterar o que chama de “relação bilateral” entre Estado e meios de comunicação é uma

Tanques do Exército no Rio no dia do golpe militar

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livros

Mão e contramão

Paula Montero e Álvaro Comin (orgs.) Editora Globo 568 páginas, R$ 55,00

Em comemoração aos 40 anos da revis-ta Novos Estudos do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Paula Montero e Álvaro Comin organizam al-guns ensaios recentes da revista neste li-vro que se pretende ser uma reunião de análises sobre o mundo contemporâneo. Entre os autores estão Antonio Candido, Francisco de Oliveira, Ismail Xavier, Ha-bermas, Frederic Jameson, Perry Anderson e Roberto Schwarz.

Editora Globo (11) 3767-7880 www.globolivros.com.br

Azeredo da silveira: um depoimentoMatias Spektor (org.) Editora FGV 400 páginas, R$ 57,00

O depoimento inédito, gravado entre 1979 e 1982, ilustra a vivacidade e as contradi-ções do pensamento de Antônio Azeredo da Silveira, ministro das Relações Exte-riores durante o governo Geisel. Azeredo operou uma transformação no compor-tamento do país no mundo, estabelecendo articulações com a África, Oriente Médio, Estados Unidos e Argentina.

Editora FGV (21) 3799-4427 www.fgv.br/editora

identidades fluídas no judaísmo antigo e no cristianismo primitivoPaulo Augusto Nogueira, Pedro Funari e John Collins (orgs.) Annablume Editora / FAPESP 346 páginas, R$ 38,25

Os ensaios deste volume têm o caráter de investigações, estudos de caso que ilumi-nam aspectos dos problemas mais amplos sobre as identidades judaica e cristã. Os autores trabalham com o conceito de que identidade é sujeita à negociação, apon-tando as maneiras como judaísmo e cris-tianismo elaboraram suas identidades.

annablume Editora (11) 3812-6764 www.annablume.com.br

o português e o tupi no Brasil

Volker Noll e Wolf Dietrich (orgs.) Editora Contexto 240 páginas, R$ 46,00

O português e o tupi no Brasil apresenta o lado linguístico das relações entre a antiga língua tupinambá e a portuguesa, desde os primeiros contatos na época da descoberta até a presença atual do nheengatu progêni-to na Amazônia. Os pesquisadores questio-nam quais foram as influências que o tupi pode ter exercido na fonética, na morfolo-gia e no léxico da língua portuguesa trans-plantada para o Brasil.

Editora Contexto (11) 3832-5838 www.editoracontexto.com.br

raça como questão

Marcos Maio e Ricardo Santos (orgs.) Editora Fiocruz / Faperj 316 páginas, R$ 38,00

A obra é uma reunião de ensaios, não cronológicos, selecionados pelos organi-zadores, que vão da biologia às ciências sociais, antropologia e história, com va-riados enfoques. Analisando discussões sobre o pensamento higienista e trajetórias da antropologia física no Brasil do sécu-lo XIX, os artigos abrangem até as atuais correlações do pensamento racial com as tecnologias genômicas.

Editora Fiocruz (21) 3882-9039 www.fiocruz.br/editora

ideologia e contraideologia

Alfredo Bosi Companhia das Letras 448 páginas, R$ 59,50

O autor de clássicos da crítica engajada na defesa da liberdade de pensamento per-corre seis séculos de história da civilização ocidental em busca dos momentos decisi-vos da luta intelectual entre dominadores e dominados. Bosi investiga os diferentes significados da palavra “ideologia” anali-sando os discursos políticos, econômicos e culturais através da denúncia operada pelo pensamento hegemônico, a serviço das elites dominantes.

Cia. das Letras (11) 3707-3500 www.companhiadasletras.com.brFo

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ficção

A redatora que perdeu as letras

E la não recorda mais quando tudo começou. Se foi ontem ou há oito mil dias. Retém uma impressão difusa de que o início foi com o esquecimento dos nomes. Primeiro,

seu cérebro deletou os nomes dos ligeiramente conhecidos. Depois, como as luzes de um salão se apagando gradativa­mente, esqueceu os nomes dos primos, cães e amigos an­tigos. Mas o choque para valer veio quando se deu conta de que ia perdendo os nomes das pessoas próximas. Ela olhava nos olhos daquela amiga de todas as horas e não vinha nada. “Heloísa, Abgail, Ercília?” O exercício de puxar pela memória, além de exaustivo, era inútil. Começaram os constrangimentos. Encontrava com as pessoas, conversava, ria, se compadecia. Mas e o nome?

Seus amigos mais queridos tentavam minimizar a situa­ção. Creditavam sua desmemória ao inevitável envelheci­mento: “O HD vai ficando cheio”. “É que vivemos tantas coisas que as novidades já nascem antigas.” “A gente esquece, porque vamos ficando seletivos.” Eram frases de consolo. Não ajudavam nada. Mas ela percebia o carinho nas entre­linhas. Até tentava ler alguns artigos científicos sobre como nosso cérebro processa a memória. Alguns, impiedosos, afirmavam que com o envelhecimento as sinapses dimi­nuem, pois o cérebro murcha. E a alma? Ela se perguntava: “A alma também murcha?”. Depois, ela foi se esquecendo de ler artigos científicos.

Seguiu tocando a vidinha. Até o terrível dia em que co­meçou a perder informações do seu próprio saber. Por toda a vida, fora redatora de textos encomendados. Não uma escritora que escolhe seus temas, obsessões, estilos. Mas uma redatora de temas, obsessões e estilos alheios. Uma pena de aluguel. Com essa pena, ela conseguiu pagar as contas do pequeno apê, da água, da luz, da internet. Mas, por exemplo,

nunca alcançou para pagar um plano de saúde. Uma mulher pobre, isso ela nunca esqueceria.

O fato é que escrever se tornou muito lento. Sentava, mandava ver no primeiro, no segundo parágrafo. Mas e o terceiro? Não vinha nada. Um apagão de conteúdo. Um processo doloroso teve início. Ela sentia que as palavras – até então suas amantes apaixonadas – fugiam. Aninhavam­se nas dobras ocultas de sua memória. Seu texto se tornou enfadonho. O verbo ficar se repetia até a náusea. É claro, ela correu à livraria e comprou um dicionário de sinônimos. Pagou caro por um da grife Houaiss. Foi duro, porque ela era especialmente boa no vocabulário. Era capaz de encontrar um sinônimo em milésimos de segundo. O vernáculo, antes frondoso e viçoso, foi virando agreste e opaco.

Seus clientes tinham muita pressa. Bons brasileiros queriam para agora o que era para anteontem da semana passada. O gol nos quarenta cinco minutos do segundo tempo. Consequência: eles se chatearam e foram embora. Ela chorou. Perder o ofício era perder a si mesma. Mais uma vez, os amigos queridos deram socorro. Uma amiga editora a contratou para ser parecerista. Encorajou­a: “Você passou a vida produzindo textos, será completamente eficiente para julgar se um original presta ou não presta. Se tem potencial ou não”. A ex­redatora embarcou com esperança para o outro lado do balcão.

Durou pouco. Ela lia o original de ponta a ponta, com o marcador de texto em punho. Usava o de cor abóbora, seu preferido. Mas quando terminava, vinha a certeza de que não o havia lido. Ela não se lembrava da trama, das personagens, do tom. Tornava a ler, tornava a esquecer e assim sucessivamente. Naturalmente, os pareceres ficaram paupérrimos, com lacônicos bom, ruim, regular. A amiga

Fernanda Pompeu

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editora, com muito dó, dispensou­a da tarefa. Nessa altura do tormento, a ex­parecerista já tinha mudado para um quarto e sala, com aluguel mais barato, num prédio sem elevador. Também cortou o gasto com a banda larga. “Acho que estou abandonando o mundo”, pensou.

Então, a depressão tomou conta dela. O cotidiano per­deu cor e sabor. Saíram os amigos e entraram os parentes. Os irmãos fizeram uma vaquinha mensal para ela pagar as contas e caminhar no fio da navalha sem se ferir. Até que ela não ligou para mais nada. Nem para a acachapante desmemória. Aprendeu a arte de perder. Aprendeu a olhar as coisas como se fossem todas nascidas há cinco minutos. Sem marcas, sem passado. Sem futuro também. As coisas simplesmente eram. Instantâneas.

Nessa não razão, passou a andar de metrô. Primeiro, pelas manhãs. Depois, pelo dia inteiro. Pegava o trem às oito horas, voltava para o quarto e sala à noitinha. Sua missão diária era observar as pessoas nas linhas Verde, Azul, Verme­lha. Levava na bolsa um sanduíche, uma fruta, uma barra de chocolate e uma garrafinha d’água. Ração suficiente para uma jornada completa. Quando sentia necessidade de ir ao banheiro, uma voz off, a voz de Deus, ordenava: “Pare na estação terminal Jabaquara”. Ela passava a catraca, usava o banheiro. Voltava para o túnel, sem pagar o bilhete. Era seu direito de terceira idade.

Foi conquistando uma celebridade torta. Alguns condu­tores e seguranças a olhavam fixamente. Mas era só. Nunca dirigiram a ela uma palavra. Às vezes, num lampejo de lembrança, ela sorria ao recordar que na condição de reda­tora nunca ficara famosa. E olhe que ela havia se esforçado. Havia trabalhado de acordo com o cânone. Seus textos eram densos e enxutos ao mesmo tempo. Eram corretos

e elegantes. Ela entregava a encomenda na data acertada. Também cobrava barato. Agora, no papel de maníaca do metropolitano, era notada.

A linha que ela mais gostava, onde passava a maior parte do tempo, era a Linha 2 ­ Verde. Talvez porque essa linha provocasse algumas migalhas de memória. Na estação Vila Madalena, vinha uma música de adolescência, cujo come­cinho ela lembrava: “Oh, Madalena / o meu peito percebeu / que o mar é uma gota / comparado ao pranto meu”. Na Sumaré, ela associava as pessoas retratadas nos vidros aos procurados pela ditadura militar. Estação Clínicas era fá­cil! Ela sentia o cheiro da amônia, do éter, das feridas. Na Consolação, as lágrimas vinham, mas iam embora antes de chegar na Masp­Trianon, que a levava ao museu de sua infância — o MAM do Rio de Janeiro. Certamente ela não recordava de quadro ou instalação nenhuma. Mas da vista para a baía de Guanabara sim.

A estação Brigadeiro era o docinho que derretia em delí­cias na sua boca, e a Paraíso era mesmo seu paraíso. Porque então ela descia e trocava de trem para o trajeto de volta. Daí, todas as evocações se reprisavam: o doce, a baía de Guanabara, as feridas, as lágrimas, a música. Nessas idas e vindas, que somaram centenas, vez ou outra, voltava uma ideia fixa: “Um dia vou escrever minha experiência para uma revista científica. Talvez eles considerem que uma pessoa é muito maior do que seu cérebro”. Ria com essa ideia. E logo a esquecia.

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Fernanda Pompeu é redatora e editora de textos encomen-dados. Também é autora do livro de microcontos 64, editado pela Brasiliense.

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