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30-06-2019 Sociedade Uma paisagem em ebulição Mais é menos? Dos novos sindicatos e outras questões A existência de sindicatos fortes e de taxas elevadas de sindicalização é uma das variáveis associadas a uma redistribuição menos desequilibrada dos rendimentos entre o capital e o trabalho, tendendo a diminuir a parte dos rendimentos mais elevados. Tem, portanto, um papel fundamental na construção de sociedades menos desiguais. Mas será que a simples multiplicação de novos sindicatos pode dar garantias de continuar a ser esse o seu papel? Uma realidade complexa sobre a qual importa reflectir. DORA FONSECA * A emergência de novos sindicatos em Portugal lugar a várias inter- rogações e convoca o debate, tão alargado quanto recorrente, acerca da crise do sindicalismo. Este tem mais de duas déca- das e a sua virtude reside em obrigar a uma reflexão permanente acerca das estratégias, objectivos e configurações das organizações sindicais. E esse não é um problema por- tuguês. Reproduz-se à escala europeia e em outros pontos do globo, evocando as sempre atuais questões da democracia, da represen- tatividade e da vitalidade do movimento sin- dical. Questões que são, aliás, indissociáveis. O próprio trajecto sócio-histórico do sindica- lismo o demonstra Os trabalhos de autores como Jelle Visser, Bernhard Ebbinghaus ou George Ross e Andrew Martinti l sublinham opapel do movimento sindical na promoção de uma democracia de macas e da eman- cipação generalizada dos trabalhadores. Os sindicatos foram e são protagonistas da luta pelo alargamento da democracia política às classes mais desfavorecidas e da promoção da igualdade e dos direitos laborais. Hoje em dia são organizações de negociação perfeita- mente consolidadas e reconhecidas social- mente. Assim, sindicatos fortes significam maior justiça social e laborai. Os meios de comunicação social têm dado algum destaque à questão dos novos sindicatos, convidando à reflexão a pro- pósito das suas causas e consequências. É verdade que desde o início de 2017 foram criados 24 sindicatos, na sua grande maio- ria à margem das duas centrais sindicais de referência em Portugal, a Confedera- ção Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a União Geral de Trabalhadores (UGT). Se alargarmos esse período a 2011, o número aumenta. O escrutínio dos Bole- tins do Trabalho e Emprego (BTE), da res- ponsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, aponta para a criação de 53 sindicatos. Ainda que alguns não se encontrem activos, o facto é que os seus estatutos foram publicados, conferindo-lhes existência em algum mo- mento. A emergência de novos sindicatos não é propriamente uma novidade. Entre 2003 e 2011 (um período de 9 anos, como o ante- rior), a consulta dos BTE revela a criação de 53 sindicatos. Precisamente o mesmo nú- mero. Se assim é, qual a razão para a relevân- cia que lhes é dada agora? O que é que tem alimentado as reacções de espanto, curiosi- dade ou mesmo alarmismo? Qual o seu sig- nificado e implicações? Constituem um sinal de vitalidade democrática ou, ao invés, espe- lham a divisão do campo sindical e, por ine- rência, a crise do sindicalismo? Uma forma de olhar para o problema é pensar as razões subjacentes ao facto de a maior parte dos novos sindicatos surgirem à margem da CGTP e da UGT. De uma forma geral, a panóplia de sindicatos filiados em cada uma das confederações cobre de forma alargada os sectores de actividade econó- mica existentes. O que não é o mesmo que dizer que apresentam o grau de especifici- dade que os trabalhadores exigem ou com que gostariam de ver os seus interesses re- presentados. A emergência de novas pro- fissões ou o reforço da presença de outras mais antigas, como por exemplo a de ope- rador de call center, coloca outras exigências aos sindicatos, no sentido da adequação das suas estratégias e acção a novos segmentos do «mercado das profissões». Os trabalha- dores vêem-se confrontados com merca- dos de trabalho mais exigentes, com a ame- aça de precarização e com modelos de ges- tão mais agressivos. Por isso, esperam mais dos sindicatos, esperam que estes estejam plenamente sintonizados com as suas reali- dades e dificuldades, como é sustentado por vários estudos [2] . Daí também o apelo à cria- ção de sindicatos «mais específicos», que te- nham como âmbito actividades novas ou contempladas, mas talvez não estabelecidas como prioridade. Dos 53 sindicatos criados entre 2011 e 2019, apenas 8 são filiados nas confedera- ções sindicais, sendo que a UGT foi alvo da preferência de 6 deles. Entre 2003 e 2010, o padrão encontrado não é muito diferente: dos 53 novos sindicatos, 5 surgem sob a al- çada da UGT e 9 da CGTP. Em relação ao pe- ríodo subsequente, o número é superior, mas não de forma expressiva O fenómeno da criação de novos sindicatos fora da esfera de influência quer da CGTP quer da UGT não é, portanto, novo. Então, quais as razões para suscitarem tanta atenção? Pode ser uma questão de ritmo. Foram criados 22 sindicatos independentes desde 2017. Se considerarmos o período 2003- 2010 e olharmos para os últimos três anos, esse número reduz-se para sensivelmente metade. Podemos especular que é a veloci- dade a que têm vindo a ser criados nos últi- mos anos que justifica a atenção redobrada de que são agora alvo. E não só. Ao suceder ao governo de coligação entre o Partido So- cial Democrata (PSD) e o CDS - Partido Po- pular; que demonstrou enorme zelo na exe- cução do Memorando de Entendimento, colocando obstáculos à acção sindical, a so- lução governativa dirigida pelo primeiro- -ministro António Costa, alguns indicado- res económicos mais positivos ou a ideia de uma certa retoma económica vieram tornar o terreno mais propício à reivindicação. A esquerda no poder cria expectativas, como sugerem várias teorias sociológicas. Cria ex- pectativas de que as reivindicações, antigas, do tempo em que a esquerda estava na opo- sição e apoiava as pretensões dos trabalha- dores e das suas estruturas de representa- ção colectiva, bem como reivindicações no- vas, serão atendidas. Por isso, não deixa de ser expectável, pelo menos até certo ponto, esta onda de reivindicações que se tem tra- duzido em greves protagonizadas por clas- ses profissionais específicas. Agora, a questão da independência Como atrás se disse, não é uma questão propria- mente nova A «independência» de um sin- dicato parece ser colocada como a solução mágica para todas as maleitas de que por- ventura poderão sofrer os sindicatos filiados nas centrais sindicais. Diz-se que serão mais capazes de se manter a salvo de influências exógenas como as exercidas por partidos po- líticos, evitando assim a transformação em «correntes de transmissão». Dessa forma, estarão mais centrados na tarefa de defesa e promoção dos interesses de quem repre- sentam. Mas são os sindicatos sem filiação a uma das duas centrais sindicais realmente independentes? Pode colocar-se a hipótese de a dita «independência» ser sempre «rela- tiva», pois apenas não é assumida uma pro- ximidade à CGTP ou à UGT, que por seu turno assumem explicitamente a sua ligação a for- ças políticas bem identificadas. Aqui pode fa- zer sentido o argumento de que «os sindica- tos são os seus filiados», e os últimos podem militar em, ou simpatizar com, um determi- nado partido político, pelo que os primeiros nunca estarão totalmente «a salvo» dessa in- fluência Adicionalmente podemos convocar o argumento de que existindo um sindicato que representa um determinado segmento ou classe profissional dentro das centrais sindicais, não faz sentido formar um novo sindicato, no âmbito dessa mesma central, que represente o mesmo segmento. A nas- cer, terá de ser preferencialmente «fora». Ou estar-se-ia a fomentar a competição dentro da mesma estrutura confederativa Vamos formar um sindicato porque sim? Multiplicação e redundâncias A estranheza ou perplexidade que pode causar a multiplicação de estruturas sindi- cais em torno de uma mesma classe profis- sional não deixa de justificar-se. Diminui a força dos sindicatos pois a sua representa- tividade é menor. Acentua-se a competição intersindical pela conquista de novos mem- bros, inclusive de membros de outros sindi- catos congéneres. E, como é óbvio, menos fi- liados significa uma fatia menor do número total de trabalhadores de um determinado

Mais é menos? Dos novos sindicatos e outras questões · ções sindicais, sendo que a UGT foi alvo da preferência de 6 deles. Entre 2003 e 2010, opadrão encontrado não é muito

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30-06-2019

Sociedade

Uma paisagem em ebulição

Mais é menos? Dos novos sindicatos e outras questões A existência de sindicatos fortes e de taxas elevadas de sindicalização é uma das variáveis associadas a uma redistribuição menos desequilibrada dos rendimentos entre o capital e o trabalho, tendendo a diminuir a parte dos rendimentos mais elevados. Tem, portanto, um papel fundamental na construção de sociedades menos desiguais. Mas será que a simples multiplicação de novos sindicatos pode dar garantias de continuar a ser esse o seu papel? Uma realidade complexa sobre a qual importa reflectir.

DORA FONSECA *

Aemergência de novos sindicatos em Portugal dá lugar a várias inter-rogações e convoca o debate, tão

alargado quanto recorrente, acerca da crise do sindicalismo. Este tem mais de duas déca-das e a sua virtude reside em obrigar a uma reflexão permanente acerca das estratégias, objectivos e configurações das organizações sindicais. E esse não é um problema só por-tuguês. Reproduz-se à escala europeia e em outros pontos do globo, evocando as sempre atuais questões da democracia, da represen-tatividade e da vitalidade do movimento sin-dical. Questões que são, aliás, indissociáveis. O próprio trajecto sócio-histórico do sindica-lismo o demonstra Os trabalhos de autores como Jelle Visser, Bernhard Ebbinghaus ou George Ross e Andrew Martintil sublinham opapel do movimento sindical na promoção de uma democracia de macas e da eman-cipação generalizada dos trabalhadores. Os sindicatos foram e são protagonistas da luta pelo alargamento da democracia política às classes mais desfavorecidas e da promoção da igualdade e dos direitos laborais. Hoje em dia são organizações de negociação perfeita-mente consolidadas e reconhecidas social-mente. Assim, sindicatos fortes significam maior justiça social e laborai.

Os meios de comunicação social têm dado algum destaque à questão dos novos sindicatos, convidando à reflexão a pro-pósito das suas causas e consequências. É verdade que desde o início de 2017 foram criados 24 sindicatos, na sua grande maio-ria à margem das duas centrais sindicais de referência em Portugal, a Confedera-ção Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a União Geral de Trabalhadores (UGT). Se alargarmos esse período a 2011, o número aumenta. O escrutínio dos Bole-tins do Trabalho e Emprego (BTE), da res-ponsabilidade do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, aponta para a criação de 53 sindicatos. Ainda que alguns já não se encontrem activos, o facto é que os seus estatutos foram publicados,

conferindo-lhes existência em algum mo-mento.

A emergência de novos sindicatos não é propriamente uma novidade. Entre 2003 e 2011 (um período de 9 anos, como o ante-rior), a consulta dos BTE revela a criação de 53 sindicatos. Precisamente o mesmo nú-mero. Se assim é, qual a razão para a relevân-cia que lhes é dada agora? O que é que tem alimentado as reacções de espanto, curiosi-dade ou mesmo alarmismo? Qual o seu sig-nificado e implicações? Constituem um sinal de vitalidade democrática ou, ao invés, espe-lham a divisão do campo sindical e, por ine-rência, a crise do sindicalismo?

Uma forma de olhar para o problema é pensar as razões subjacentes ao facto de a maior parte dos novos sindicatos surgirem à margem da CGTP e da UGT. De uma forma geral, a panóplia de sindicatos filiados em cada uma das confederações cobre de forma alargada os sectores de actividade econó-mica existentes. O que não é o mesmo que dizer que apresentam o grau de especifici-dade que os trabalhadores exigem ou com que gostariam de ver os seus interesses re-presentados. A emergência de novas pro-fissões ou o reforço da presença de outras mais antigas, como por exemplo a de ope-rador de call center, coloca outras exigências aos sindicatos, no sentido da adequação das suas estratégias e acção a novos segmentos do «mercado das profissões». Os trabalha-dores vêem-se confrontados com merca-dos de trabalho mais exigentes, com a ame-aça de precarização e com modelos de ges-tão mais agressivos. Por isso, esperam mais dos sindicatos, esperam que estes estejam plenamente sintonizados com as suas reali-dades e dificuldades, como é sustentado por vários estudos[2]. Daí também o apelo à cria-ção de sindicatos «mais específicos», que te-nham como âmbito actividades novas ou já contempladas, mas talvez não estabelecidas como prioridade.

Dos 53 sindicatos criados entre 2011 e 2019, apenas 8 são filiados nas confedera-

ções sindicais, sendo que a UGT foi alvo da preferência de 6 deles. Entre 2003 e 2010, o padrão encontrado não é muito diferente: dos 53 novos sindicatos, 5 surgem sob a al-çada da UGT e 9 da CGTP. Em relação ao pe-ríodo subsequente, o número é superior, mas não de forma expressiva O fenómeno da criação de novos sindicatos fora da esfera de influência quer da CGTP quer da UGT não é, portanto, novo. Então, quais as razões para suscitarem tanta atenção?

Pode ser uma questão de ritmo. Foram criados 22 sindicatos independentes desde 2017. Se considerarmos o período 2003-2010 e olharmos para os últimos três anos, esse número reduz-se para sensivelmente metade. Podemos especular que é a veloci-dade a que têm vindo a ser criados nos últi-mos anos que justifica a atenção redobrada de que são agora alvo. E não só. Ao suceder ao governo de coligação entre o Partido So-cial Democrata (PSD) e o CDS - Partido Po-pular; que demonstrou enorme zelo na exe-cução do Memorando de Entendimento, colocando obstáculos à acção sindical, a so-lução governativa dirigida pelo primeiro--ministro António Costa, alguns indicado-res económicos mais positivos ou a ideia de uma certa retoma económica vieram tornar o terreno mais propício à reivindicação. A esquerda no poder cria expectativas, como sugerem várias teorias sociológicas. Cria ex-pectativas de que as reivindicações, antigas, do tempo em que a esquerda estava na opo-sição e apoiava as pretensões dos trabalha-dores e das suas estruturas de representa-ção colectiva, bem como reivindicações no-vas, serão atendidas. Por isso, não deixa de ser expectável, pelo menos até certo ponto, esta onda de reivindicações que se tem tra-duzido em greves protagonizadas por clas-ses profissionais específicas.

Agora, a questão da independência Como atrás se disse, não é uma questão propria-mente nova A «independência» de um sin-dicato parece ser colocada como a solução mágica para todas as maleitas de que por-

ventura poderão sofrer os sindicatos filiados nas centrais sindicais. Diz-se que serão mais capazes de se manter a salvo de influências exógenas como as exercidas por partidos po-líticos, evitando assim a transformação em «correntes de transmissão». Dessa forma, estarão mais centrados na tarefa de defesa e promoção dos interesses de quem repre-sentam. Mas são os sindicatos sem filiação a uma das duas centrais sindicais realmente independentes? Pode colocar-se a hipótese de a dita «independência» ser sempre «rela-tiva», pois apenas não é assumida uma pro-ximidade à CGTP ou à UGT, que por seu turno assumem explicitamente a sua ligação a for-ças políticas bem identificadas. Aqui pode fa-zer sentido o argumento de que «os sindica-tos são os seus filiados», e os últimos podem militar em, ou simpatizar com, um determi-nado partido político, pelo que os primeiros nunca estarão totalmente «a salvo» dessa in-fluência Adicionalmente podemos convocar oargumento de que existindo um sindicato que representa um determinado segmento ou classe profissional dentro das centrais sindicais, não faz sentido formar um novo sindicato, no âmbito dessa mesma central, que represente o mesmo segmento. A nas-cer, terá de ser preferencialmente «fora». Ou estar-se-ia a fomentar a competição dentro da mesma estrutura confederativa

Vamos formar um sindicato só porque sim? Multiplicação e redundâncias

A estranheza ou perplexidade que pode causar a multiplicação de estruturas sindi-cais em torno de uma mesma classe profis-sional não deixa de justificar-se. Diminui a força dos sindicatos pois a sua representa-tividade é menor. Acentua-se a competição intersindical pela conquista de novos mem-bros, inclusive de membros de outros sindi-catos congéneres. E, como é óbvio, menos fi-liados significa uma fatia menor do número total de trabalhadores de um determinado

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sector ou segmento profissional e, portanto, menor poder negociaL Ainda assim, enca-ramos com naturalidade o facto de, para a maior parte das classes profissionais ou sec-tores de actividade, a CGTP e a UGT conta-rem, cada uma delas, com um sindicato que cobre esse âmbito ou classe, tendo um tra-balhador sempre alternativa disponível em uma das confederações. Somam-se também, para alguns sectores e classes profissionais, os sindicatos independentes. Mas algumas situações podem suscitar dúvidas.

É o caso de uma classe profissional bem particular; a policia Como foi amplamente noticiado recentemente, existem 17 sindi-catos da policia, o último criado em Abril de 2019. Parece difícil encontrar razões que sustentem um número tão avultado de sin-dicatos que têm como objecto a mesma classe profissional, não obstante as nuances que lhes possam ser inerentes. Uma das ra-zões que facilita ou mesmo estimula essa proliferação será a relativa facilidade de for-mar um sindicato. Aliás, não são raros os ca-sos em que, após a publicação dos estatutos de um sindicato em BTE, é declarada a nu-lidade do acto de constituição e dos estatu-tos e consequentemente a sua extinção. Por exemplo, foi esse o caso do Sindicato Mo-derno dos Professores - SMP - NOVUM em 2005. Uma sentença da 17.. Vara Cível de Lisboa, motivada pela omissão da norma que regulamenta o exercício do direito de tendência dos associados, assim o ditou.

A dispersão é quiçá mais inquietante quando uma confederação sindical apre-senta dois sindicatos que aparentemente

têm o mesmo âmbito. Nesse caso, o desdo-bramento não poderá ter outra consequên-cia que não o enfraquecimento de ambos os sindicatos pois os potenciais filiados di-videm-se. Uma situação do género pode encontrar-se na UGT. Existem dois sindica-tos de enfermeiros no seu seio: o Sindicato dos Enfermeiros (SE) e o «jovem» Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (SINDEPOR), constituído em Julho de 2017, que, como sabemos, teve um papel prepon-derante na «Greve Cirúrgica» que mobilizou tudo e todos há pouco tempo atrás, susci-tando críticas provenientes dos mais diver-sos quadrantes da sociedade portuguesa

O que justifica a existência de dois sindica-tos a representarem a mesma classe profis-sional dentro da mesma confederação sindi-cal? A redundância não deixa de ser notória logo à partida Assim como chama a aten-ção o facto de um dos sindicatos, o último, ser uma espécie de sindicato «rebelde». Um sindicato que nasce com a missão de recu-perar o espaço perdido, ou nunca conquis-tado, pelo Sindicato dos Enfermeiros (SE), até porque o último terá um âmbito mais circunscrito à zona norte, ainda que não de forma expressamente assumida Na base desta multiplicação podem estar várias coi-sas, nomeadamente a existência de diver-gências quanto ao tipo de sindicalismo pra-ticado, formas de acção, estilos. Podem ser vários os motivos, quanto a isso não há dú-vidas. Chama também a atenção o facto de o dirigente máximo do SINDEPOR ter en-veredado por uma estratégia de luta algo polémica ao anunciar uma greve de fome

que acabou por não levar a termo. Não será uma inverdade dizer que até a sua estrutura confederai se ressentiu um pouco da forma como a greve foi conduzida A novidade do crowdfunding colocou mais problemas, le-vantando questões sobre a transparência do financiamento e dos possíveis jogos de basti-dores de uma luta, sublinhe-se, a vários títu-los legítima É caso para perguntar: estão as regras do jogo a mudar?

O Sindicato dos Motoristas de Matérias Perigosas ou a nova forma de fazer as coisas

Muito recentemente, um sindicato consti-tuído em finais de 2018 captou a atenção da sociedade portuguesa ao colocar o país em suspenso. Negociou, e bem, aumentos sala-riais e outras condições que representam melhorias significas. Mas também não dei-xou de suscitar olhares menos lisonjeiros. Lançou a interrogação: para que tipo de sin-dicalismo estamos a caminhar? A sua actu-ação mostra que a greve, a «arma» tradicio-

nal do movimento operário, tem muita força. Quanto a isso não existem quaisquer dúvi-das. Sectores estratégicos conseguem pa-ralisar um país, uma economia No caso da greve convocada pelo Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas (SNMMP), se não o paralisou de facto, pelo menos dei-xou-o em suspenso. A corrida aos postos de abastecimento e as informações acerca de encerramentos por falta de combustível as-sim o demonstram. A potencial gravidade da situação - «potencial» porque a greve não chegou a termo - exige uma incursão por al-guns meandros da questão.

O SNMMP surgiu em Novembro de 2018. É um sindicato independente que convocou uma greve potencialmente disruptiva num período sensível - a Páscoa -, e que levou o governo a decretar uma requisição civil e, posteriormente, a convidar as partes a sen-tarem-se à mesa de negociações. Logo aqui temos uma «vitória»: um sindicato novo, sem grande representatividade, impele o go-verno para a abertura de uma ronda nego-ciai. A novidade não é a ronda negociaL A no-vidade é o facto de um sindicato tão recente ter, sozinho, força suficiente para colocar em cima da mesa a necessidade de negociações. Principalmente quando ainda em Setembro oContrato Colectivo de Trabalho entre a AN-TRAMPI e a FECTRANS[41 havia sido alvo de revisão global. Dois meses depois são publi-cados os estatutos do SNMMP em BTE. A única coisa que pode ser dita é que estes mo-toristas não se reviram no acordo celebrado (ou que estava para ser celebrado), envere-dando assim, o que é legítimo, pela criação de uma nova estrutura de representação co-lectiva

A novidade a apontar é a «agressividade» da estratégia do sindicato recém-criado. A inversão das regras do jogo, chamemos-lhe assim, é notória Antes da negociação veio a greve, sendo que esta é tradicionalmente usada como último recurso, perante um im-passe negociai, quando se verifica uma rup-tura entre as partes. Ainda que alguma mu-dança de estratégias de acção, de objectivos, possa ser bem-vinda - em jeito de «lufada de ar fresco» -, colocar o conflito antes da nego-ciação pode representar a tal «inversão das regras do jogo», cujos resultados são impre-visíveis, pelo menos por ora E se todos os sindicatos passarem a fazer o mesmo?

Não menos importante é a questão da re-presentatividade. O que dizer quando sindi-catos com uma representatividade menor I>

MARIA SASSETTI Lingas (2019) . Cortesia da Galeria Underdogs, Lisboa

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[1] Cf. Jelle Visser, «Trade Unions from a comparative perspective», em J. Van Ruysseveldt, R. Huiskamp e J. van Hoof (org.), Comparative industrial & employment relations, Sage, Londres, 1995, pp. 37-67; Bernhard Ebbinghaus e Jelle Visser, «A guide to the handbook», em B. Ebbinghaus e J. Visser (org.), Trade unions in westem Europe since 1945, MacMillan, Londres, 2000, pp. 3-32; e George Ross e Andrew Martin, «European unions face the millennium», em A. Martin e G. Ross (org.), The brave new world of European labor: European trade unions at the millennium, Berghahn Books, Nova Iorque, 1999, pp. 1-25. [2] A título de exemplo, podem ser mencionados os seguintes: Jeremy Waddington, «Trade union membership retention and workplace representation in Europe Questions on the renewal of trade union organisation», Working Paper 2014.10, European Trade Union Institute, Bruxelas, 2014; e Dora Fonseca, Movimentos sociais e sindicalismo em tempos de crise. O caso português: alianças ou tensões latentes?, Tese de Doutoramento, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2016. [3] Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias. [4] Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações (CGTP).

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XANA SOUSA . Ponto de fuga (2017) Cortesia da Galeria Underdogs, Lisboa

Sociedade

I> firmam acordos em que os demais não se revêem? É certo que tal acontece com alguma frequência Serão então exageradas as visões que enredam em pessimismo a criação de no-vos sindicatos na sua maior parte fora da es-fera de influência da CGTP e da UGT? Talvez ainda seja demasiado cedo para responder. Contudo, não podemos ignorar o «enredo» de lutas bem concretas e também muito re-centes, como as aqui referidas. A transparên-cia dos processos é por isso vital.

O poder dos sindicatos: realidade ou utopia?

A crise do sindicalismo não é, como se disse, um assunto novo. É até tomada como um dado adquirido, assumindo muitos, sem quaisquer pruridos, que os sindicatos se-riam «uma coisa do passado», incapazes de se adaptarem às novas tendências, avessos a reinvenções. A «lei de ferro da oligarquia» e os seus efeitos perniciosos são bem reais. O fenómeno da oligarquização revela-se, como documentou Robert Michels151, nas tendên-cias de centralização do poder e de conser-vação das lideranças. Existe uma relação en-tre o crescimento das organizações e a assun-ção de atitudes cautelosas e suavização das políticas. No fundo, trata-se da emergência de tendências de autopreservação: a organiza-ção torna-se «imóvel», perde as característi-cas e energia revolucionárias, evita tudo o que possa interferir com a sua dinâmica e amea-çar a forma externa - o «triunfo do órgão so-bre o organismo». O reconhecimento desse facto não equivale a dizer que tudo está mal. Significa antes que temos de estar atentos, vi-gilantes e abertos aos sinais que nos chegam. Os sindicatos são parte integrante de uma sociedade em permanente mudança, uma mudança que podem e devem acompanhar. Aliás, olhando para a «explosão» da plaTorm economy («economia das plataformas»), ou-tra opção não lhes restará.

Do campo sindical chegam alguns sinais de revitalização das suas estruturas e estra-tégias. Um estudo recente realizado por um grupo de investigadores da Faculdade de Economia e do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra aponta para isso. Muitos sindicatos ganharam filiados Perante os constrangimentos e a degradação das rela-ções de trabalho impostos pela Troika e pelo Memorando de Entendimento, muitos traba-lhadores procuraram os sindicatos por forma a assegurarem alguma protecção contra prá-ticas de gestão mais agressivas e processos de reestruturação que o mais das vezes implica-ram despedimentos Empresas como a Altice são disso exemplo, como ficou bem patente em vários episódios, entre eles o caso das po-lémicas transmissões de estabelecimento. Em 2017, a Altice levou a cabo a transmissão de 155 trabalhadores para prestadores ex-ternos como a Visabeira, a Tnord, a Sudtel e a Winprovit, o que fragilizava o seu estatuto la-boral, pois findo o período de garantia o pro-

cesso poderia culminar no despedimento, sem acesso às compensações devidas, para além de a adesão à transmissão não ser ne-cessariamente voluntária Esta situação mo-tivou a mobilização do conjunto de estrutu-ras de representação colectiva dos trabalha-dores, que induía a Cl' Meo181, SINTTAV171, S VI 81, SINDEULC0181, SNTC14181, STr[11],

SITESE1121 e SINQUADROS1131. Foi convocada a greve de 21 de Junho de 2017, a primeira na PT por razões especificamente ligadas à em-presa em mais de 10 anos. O que justifica que a mobilização contra a transmissão de esta-belecimento seja considerada um marco da acção reivindicativa e da contestação dentro daquela empresa. Outras iniciativas como as tribunas públicas no Porto e em Lisboa ali-mentaram a mobilização e o debate em tomo da questão. A situação teve uma ampla reper-cussão na opinião pública A imagem da AI-tice ficou manchada e as pressões surgiram de toda a parte, levando inclusive a que o Par-lamento votasse uma alteração do regime ju-rídico aplicável à transmissão de empresa ou estabelecimento que reforçou os direitos dos trabalhadores (a Lei n.º 14/2018).

Este caso concreto, bem como a ques-tão dos novos sindicatos, sugerem algu-mas reflexões acerca do caminho que vem sendo trilhado pelo movimento sindical. Em primeiro lugar, os sindicatos ainda são capazes de levar a bom porto as lutas que travam. A alteração do regime jurídico mencionada demonstra-o. Não se trata de optimismo excessivo. Porque, ainda em relação ao caso da PT - Altice, é necessá-rio sublinhar que a luta contra a transmis-são de estabelecimento colocou, de forma inédita, CGTP e UGT lado a lado, tanto os seus secretários-gerais como os seus sin-dicatos. É possível colocar de lado diferen-ças ideológicas menos relevantes, quanto a estratégias e modos de acção, quando

uma situação assim o exige. Assim como é possível enquadrar a mensagem sindical de forma a reunir o apoio da sociedade, o que só acrescenta força às reivindicações. Isso não é obviamente sinal de sucesso, mas pode ajudar, e muito. Em último lugar, e sem que a reflexão se esgote, a multipli-cação de sindicatos é uma «faca de dois gu-mes». Não sendo nova, pode, no entanto, redundar em situações no mínimo cari-catas. E, especialmente no tempo em que vivemos, há sempre a possibilidade de fo-mentar lógicas que em nada contribuem para vitalidade e capacidade de acção do movimento sindical. •

* Investigadora do Centro de Estudos Sociais da

Universidade de Coimbra.

[5] Robert Michels, Para Uma Sociologia Dos Partidos Políticos Na Democracia Moderna, Antígona, Lisboa, 2001. [6] Comissão de Trabalhadores da MEO. [7] Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual. [8] Sindicato dos Trabalhadores do Grupo Altice em Portugal (desde Julho de 2018). [9] Sindicato Democrático dos Trabalhadores dos Correios, Telecomunicações, Media e Serviços. [10] Sindicato Nacional dos Trabalhadores dos Correios e das Telecomunicação. [11] Sindicato dos Trabalhadores de Telecomunicações e Comunicação Audiovisual. [12] Sindicato dos Trabalhadores e Técnicos de Serviços, Comércio, Restauração e Turismo. [13] Sindicato dos Quadros das Comunicações.

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O ressurgimento do socialismo BHASKAR SUNKARA, EDWARD CASTLETON

EP Ir Sudão, Argélia: a chama acesa da «Primavera árabe»? GILBERT ACHCAR

Os migrantes nas redes africanas e europeias RÉMI CARAYOL

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rnan o osas• o ovo nos espelhos da História MIGUEL CARDINA

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diplomatique EDIÇÃO PORTUGUESA

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MENSAL . II SÉRIE . N.° 152. JUNHO 2019. 4,90 EUROS . DIRECTORA: SANDRA MONTEIRO

Produtividade e emprego: desconstruir a narrativa económica da direita DIOGO MARTINS

A arte da provocação SERGE HALIMI

poderá um Estado que, sem motivos reais, denuncia um acordo internacional de desarmamento longamente negociado, ameaça em seguida agredir militarmente um

outro Estado signatário? Poderá esse Estado ordenar a todos os países que se alinhem com as suas posições caprichosas e bélicas, afirmando que se não o fizerem sofrerão, também eles, sanções exorbitantes? Quando se trata dos Estados Unidos, a resposta é «sim».

É perfeitamente inútil, em suma, perder tempo a estudar as razões invocadas pela Casa Branca para justificar a sua escalada contra o Irão. Imagina-se que John Bolton, conselheiro para a segurança nacional do presidente Donald Trump, e Mike Pompeo, secretário de Estado, tenham confiado aos diplomatas e aos serviços de informações norte-americanos uma missão do tipo «procurem pretextos, eu trato da guerra».

John Bolton não tem falta de experiência nem de constância nas ideias. Em Março de 2015, altura em que o seu fanatismo a favor da invasão do Iraque lhe enfraqueceu a influência, publicou no New York Times um artigo de opinião intitulado «Para parar a bomba iraniana é preciso bombardear o Irão». Depois de ter defendido que Teerão jamais negociaria o fim do seu programa nuclear, concluiu: «Os Estados Unidos poderão fazer um trabalho meticuloso de destruição, mas só Israel pode fazer o que tem de ser feito. (...) O objectivo será a mudança de regime em Teerão» h1.

Alguns meses mais tarde era assinado por todas as grandes potências, incluindo os Estados Unidos, um acordo nuclear com o Irão. Segundo a Agência Internacional da Energia Atómica, Teerão respeitou escrupulosamente os termos deste acordo. Porém, John Bolton não desiste. Em 2018, ultrapassando as posições belicistas do governo israelita e da

monarquia saudita, continuará a defender de igual modo a sua «mudança de regime»: «A política oficial dos Estados Unidos», escreve ele nessa altura, «deveria ser acabar com a revolução islâmica iraniana antes do seu 40.° aniversário. Isso lavaria a vergonha de termos tido os nossos diplomatas presos como reféns durante 444 dias. E estes antigos reféns poderiam cortar a fita aquando da inauguração de uma nova embaixada em Teerão»[21.

O actual presidente dos Estados Unidos fez campanha contra a política das «mudanças de regime», isto é, das guerras de agressão americanas. Ainda não é certo, portanto, que o pior aconteça. Mas a paz tem de ser muito frágil, para parecer depender a este ponto da capacidade de Trump de controlar os conselheiros enraivecidos que ele próprio nomeou. Asfixiando economicamente o Irão com a ajuda das capitais e das grandes empresas ocidentais (constrangidas e submetidas), Washington pretende que o seu bloqueio obrigue Teerão a capitular. Na realidade, John Bolton e Mike Pompeo não ignoram que esta mesma estratégia fracassou na Coreia do Norte e em Cuba. Eles contam sobretudo com uma reacção iraniana que, em seguida, poderão apresentar, triunfalmente, como uma agressão que exige uma «resposta» americana.

Intoxicações, falsificações, manipulações, provocações: depois do Iraque, da Líbia e do lémen, os neoconservadores definiram a sua presa.

111 John Bolton, «To stop Iran's bomb, bomb Iran», The New York Times,

26 de Março de 2015. 121 John Bolton, «Beyond the Iran nuclear deal», The Wall Street Joumal, Nova Iorque, 15 de Janeiro de 2018.