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Manifesto/01_ MOUVEMENT

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Pare. De um passo para trás. Agora corra. E salte. Movimente-se! A Manifesto/01 tem como base de ideal a

sua reinvenção. Se descontruir e construir de novo. Buscar novos colaboradores, novas ideias, novos formatos. Estamos vivos! Somos um organismo, quase celular, e em

constante movimento. E em nossa terceira edição, com meio ano de vida, decidimos parar, por alguns poucos

segundos e observar o que se movimenta ao nosso redor.

M O U V E M E N T é um registro silencioso do caos que gere nossas vidas, de fora pra dentro e depois pra

fora de novo. Bem vindos a mais um capítulo do nosso manifesto sem fim.

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Você já reparou no fogo? Existe algo de encantador no jeito como as chamas dançam entre os meus dedos. Ela se esvai. Eu a alimento com mais combustível, eu me deixo levar pela leveza dos movimentos. Eu sou atraída, eu me deixo levar. Eu me queimo. Como algo tão belo pode ser tão destrutivo? Espera. Eu tenho que me lembrar que estou no controle, ou pelo menos é o que eu gosto de pensar... Eu a privo de oxigênio, apenas o suficiente para que ela se torne uma cen-telha de luz, uma faísca. Eu a alimento com mais combustível, eu não estou pronta para deixá-la ir. Deixe-a ir. Eu abro os olhos. O fogo se foi, mas ele ain-da queima. Eu posso sentir. Sabe aquela dor pun-gente? Ela permanece mesmo depois de não restar mais nada. Espera. Ainda resta alguma coisa. Ela vai te consumir, é o que ela faz, ela precisa do com-bustível. Espera. Eu ainda estou no controle. Eu corro. Você já reparou no seu corpo em movi-mento? Eu gosto de correr, correr livre assim, For-rest Gump, me dá a sensação de realmente estar indo a algum lugar. Eu gosto do meu corpo quando eu corro. Eu corro mais, corro até doer. Eu quero correr mais, mas a dor não deixa. A dor sufoca. Você já reparou na chuva? Esqueça sua meia molhada. A chuva dan-

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ça em você, ela se adere. A chuva sempre consegue passagem, ela nunca foi tão bem-vinda. Eu me dei-xo molhar, eu me rendo. “God is in the rain.” Você já reparou nos pássaros? Eu tenho que chegar ao trabalho. Eu estou atrasada. O vento quer que eu me curve. Eu não vou me curvar. Eu paro minha bicicleta. Eu preci-so respirar. Eu olho pra baixo. Respiro. Meu peito sobe e desce... Parece tão frágil desse ângulo. Eu olho pra cima. O céu. Nublado. Cinzento. Um pás-saro costura o céu. Suas asas sobem e descem, mas ele não parece frágil daqui. Ele é livre Você já reparou? Estar em movimento não basta. É preciso um objetivo, é preciso seguir em frente. Você pode passar a vida correndo atrás da própria cauda, cor-rendo dos próprios monstros. Ficar parado não é uma opção. O mundo vai te lançar em diferentes direções. Ele vai te desmontar e te montar outra vez. Mas algumas peças faltam. Sabe, o mundo não é dos mais atenciosos. Calma, algumas delas você recupera, outras você não consegue encontrar nunca mais e não há nada de errado nisso. Você consegue outras novas, você consegue. O que te move? O que te faz querer voar? Para onde você vai mover o seu mundo? Conta pra mim, por favor.

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– Esta é uma noite histórica. Hoje é o último dia de uma era. Amanhã, a esta hora, estaremos todos celebrando sobre o cadáver desse império que nos oprime há tanto tempo!O semblante sério dos companheiros deixava cla-ra a atmosfera pesada de excitação mesclada com uma profunda preocupação. Três seletos membros do exército compunham a corte marcial. Apesar do tardar da noite, o sono não ousava incomodá-los.

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A guerra seria decidia no entardecer seguinte. Para bem ou para mal:– Ok, então, vamos repassar a estratégia. Agente secreta Mata-hari, você e seu esquadrão precisam atrair o front inimigo para o check point. Precisa-mente e o mais rápido possível. É arriscado, nós sa-bemos do que eles são capazes, mas vocês são peça central. Estamos contando com isso para o sucesso da operação.– Pode deixar, comandante Carlos, senhor.– Tenente Hugo Palhares, a divisão de suprimentos está pronta?– Comandante, tivemos um pequeno imprevisto na logística – responde Palhares, ofegante – mas em poucas horas estará tudo pronto.– Não me decepcione, Palhares! Você é um dos membros fundadores desta resistência, o Movi-mento precisa disso o mais rápido possível!– Sim, senhor, senhor.– Capitão Alberto Gonçalves, você está responsá-vel pelo comando da infantaria. Assim que o ini-migo estiver posicionado, Mata-hari emitirá o sinal e você estará livre para abrir fogo com força total! Teremos pouco tempo até que se reorganizem, te-mos que derrubá-los em uma única investida. Eu lutarei ao seu lado. A esta altura, não podemos nos dar ao luxo de poupar combatentes.– Não se preocupe, senhor, temos os melhores pre-parados. Lançadores que esperaram a vida toda por este instante. Eles estarão honrados de estar com você em um momento tão importante. Cairão por nossa causa, se preciso for.A porta se abre em um solavanco. Major Pablo Rodriguez, responsável pela divisão de Comunica-ções, entra. Carregando um papel nas mãos trêmu-las, ignora os olhares exasperados dos companhei-ros e prostra-se ereto à esquerda do comandante, aguardando permissão para falar: – Espero que nos traga boas notícias, Major.– Sim, senhor. Desculpe interromper, mas venho informar que os militantes dos Camisas Molhadas aceitaram os termos da aliança. Temos uma coali-zão de ataque firmada para amanhã, no ponto de

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encontro, ao prumo solar, conforme o plano.Foi impossível conter um suspiro de alívio fraterno sincronizado entre os presentes. A vitória parecia um pouco menos improvável agora.– Bem, cavalheiros e dama, é isso. Que Deus guie nossos passos e que o sonho da liberdade preencha nossas almas. Agora, descansemos para que toda energia possível esteja em nós amanhã. Mas antes, bebamos um cálice para espantar de nossos ossos o frio desolador que habita lá fora... – o coman-dante pega o rádio comunicador e, depois de um segundo de hesitação, faz o requerimento. – QG, a corte marcial solicita quatro porções da bebida mais quente que tiveres na dispensa!Silêncio. – Porção de quê, Carlinhos? – a voz feminina re-verbera pela garagem na meia luz. Huguinho, que enchia os últimos balões d’água, se aquieta. Beto desvia o olhar e tira o dedo do nariz. Alicinha segu-ra o riso. E Pablito não sabe se continua em pé ou se já pode sentar porque as pernas estavam mesmo cansadas depois de correr tão rápido da rua debai-xo até ali. O pequeno alto-falante do walk-talk a pi-lha volta a chiar. – E, vocês ainda estão acordados!? Amanhã não é a final do campeonato de guerra de balões do bairro? Vão dormir, crianças!– Chocolate quente, mãe... Eu já expliquei mil ve-zes... Bebida quente é cho-co-la-te-quen-te... pfff.– E qual é a palavrinha mágica?Frustrado, o comandante abaixa o tom de voz:– Por favor, mamãe... Por favor, quatro chocolates quentes... E para com isso. A senhora está me en-vergonhando na frente do pessoal.

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No iluminismo (século XVIII), as artes foram estudadas e classificadas pela primeira vez, sendo estas divididas em dois grupos específicos e singulares: arquitetura, escultura, pintura, gra-vura, música e coreografia (às quais o cinema se agruparia mais tarde) formavam o grupo das Be-las Artes; já o outro grupo era composto por gra-mática, eloquência, poesia e literatura, formando a Belas Letras. Pela classificação disposta, eram consi-deradas artes as manifestações que tratavam da beleza sem função prática a não ser representar a própria beleza. No entanto, nem sempre foi assim. Na Antiguidade, os gregos e romanos consideravam arte e pintura, escultura, oratória, teatro, poesia, música e dança expressões artísticas. Porém, a arte acompanhou a História da Humanidade tradicionalmente moldando-se a suas novas perspectivas ideológicas, se é que é possível nomear a arte por tal viés. Não me cabe fazer um balanço de revi-

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são historiográfica sobre a arte, pois a mesma toma proporções inatingíveis a meu ver, seria necessário um espaço mais amplo para partir desse pressupos-to. Minha intenção neste artigo é fazer considera-ções sobre a arte em constante movimento e como as artes em suas dinâmicas vertentes transformam espaços, relações sociais e abrangem o leque atual, uma vez que há novas técnicas, como a fotografia, as artes digitais e a arte moderna, que procuram por si só outras formas de provocar nas pessoas emoções que vão além da beleza. Pois bem, Leonardo da Vinci disse que “A arte diz o indizível, exprime o inexplicável, traduz o intraduzível”, e com total certeza diria que a arte transforma, invade e transcende, tem o poder de mudar e se manter em movimento constante, são braços e pernas, membro a membro construindo o mais belo dançar na poesia dos cânticos embalsa-mados pelos registros das lentes; a arte é um grito, uma invasão. Assim sendo tem o poder de modificar, romper, expor, transpor barreiras, causa rupturas, renasce a todo o momento a favor do belo, do novo, de novo e de novo. São muitos os seus poderes. No seu bai-lar entre um salto e outro, a arte engana o tempo, não morre, não sucumbe, não fica de lado nunca. Ela está estática em suas esculturas ou vibrante em suas cores nos quadros expostos nas galerias, acompanhados dos sonhos a se expor, a expulsar através da arte os nossos demônios. Ressalto a fra-se de Fredrich Nietzsche: “Temos a arte para não morrer de verdade”, e acrescento que a temos para não cair na tentação de vivermos apenas o caos, o tradicional, a mesmice, pois ela nos move a ver a vida com olhos emprestados de nossas almas, a ter sensações emocionais que vão além do nosso cor-po. A arte é movimento, movimento esse que fez parte de mudanças no meio, nas relações so-ciais, na dinâmica política e até econômica de um espaço, mas, mais do que tudo isso, a arte é um mo-vimento constante de revolução, movimenta-se no ritmo da dança proposta e pode ser, para alguns, ato de anarquia, para outros, o maior gesto trans-gressor. É um propósito, um encantamento. Por isso, mova-se, movimente-se, porque só perde nes-se bailar quem ficar parado.

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Naquele quarto havia um odor de mijo e re-médio para enfermos. O suor escorria sobre as suas pernas marcadas por um passado aventurei-ro, fundindo-se com o líquido ácido e viscoso que advinha de seu sexo. Ela havia tentado. Por horas, havia tentado fazer amor com ele, seu amante. Em algum degrau dessa vertiginosa escadaria que era o seu pensamento, ao passo de que quanto mais gal-gava impetuosamente até o topo procurando por alguma solidez, mais amedrontada sentia-se de ser

atirada sem dó nem piedade, agarrou-se à ideia de que ele, seu amante, mesmo após o derrame que por meses havia o derrubado, poderia levá-la à ilha do amor. Mas agora, sentada em seu cintilante divã, bebericando uma bebida de cor dourada como se bebericasse uma amarga frustração, sentia-se sujis-munda e fatigada. Sim, ainda o amava. E há nove meses quando o almofadinha do Nicolai Shayovs-ki, o artista russo, perguntou se Antônio conseguia compreender a filosofia do tempo após anos sem lançar um único ensaio acadêmico, como sentiu-se excitada com sua resposta cortês! Mas Sarabeth já não podia mais suportar o atual estado de invalidez do marido. Por mais que o amasse, essa invalidez a tornava estática feito tron-co de uma árvore, assistindo sua vida escorrer por uma ampola e nada poder fazer a não ser choramin-gar sua amarga seiva. Não era culpa dele que todas as vezes em que pedia parar ler-lhe um conto de Fitzgerald, naquele exemplar de ouro que tanto ad-mirava, mal conseguia ouvir até o derradeiro - seus olhos fechavam-se abruptamente. Mas ser mulher, refletia, enquanto levantava-se do divã e fitava-o, oh, uma saliva manava do canto de seu lábio, e a brisa outonal adentrava à janela, sepulcral, gélida, as cortinas dançavam com o seu beijo, percorria o quarto e acossava seus braços – não era isso, não era isso. Ser mulher, e novamente procurou pensar num final para a sua sentença, enquanto limpava o suor de sua testa, como Antônio encontrava-se conservado! Ser mulher, uma sentença interminá-vel. Ele continuaria com as pálpebras fechadas até a alvorada, quando geralmente acorda e pede para que ela ligue o rádio para que ambos ouçam a can-ção da manhã. E ela desliga logo após as notícias do locutor, as desgraças, talvez mais uma vez sobre o ocorrido na França. Pode-se dizer qualquer coi-sa sábia, o locutor, mas as suas opiniões jamais são acatadas como verdades absolutas. E Antônio con-tinua a descansar, pois, também – e coitado – havia sido cúmplice de sua teatral tentativa para reanimá-lo sexualmente. Nada aconteceu. Sarabeth entrou em seu closet, havia um vesti-do de seda decotado, vermelho vitoriano, bem ao fundo. Era o seu favorito. E ficou a fitá-lo na fren-

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Rua das Margaridas, nas inúmeras tendas erguidas, uma ao lado da outra, vendiam-se petiscos, bebi-das ou caldos todos os finais de semana – a não ser a Sra. Eve que sempre permanecia com a sua pescaria embora não fosse junho, embora ninguém a não ser o jovem Marcos estivesse vestindo uma roupa à vaqueiro, tornava-se o local favorito para os pais que podiam deixar as suas crianças para mover os esqueletos possuídos pelo som da banda que tocava. É sabido que quase em todos os finais de semana, um instrumentista novo. Tomamos por exemplo hoje: podia-se avistar bem daqui, mas aquele com a gaita não era o Sr. Lee? Sim, o pe-queno e generoso. E também não seria esdrúxu-lo se a sua ex-amante, Betta Caldas, estivesse em algum canto onde havia pessoas suficientemente feias para cuspir alguma coisa com as três gordu-chinhas, ou bocejar até encontrar um homem com quem pudesse passar a noite. Talvez fosse por isso que quase ninguém na cidade a admirava. Ela era uma “daquelas mulheres”. Que horror! Acolá, se-ria Betta com o marinheiro José?! Não, não, seus cachos ruivos não eram tão belos assim. Mas quão aprazível era fitá-los! Ela veste um vestido branco, também decotado, de modo que torna-se visível a constelação de sardas em seu sulco intermamário. Ele possui cabelos negros e olhos esverdeados. Ele é um charme. Ela o fita, mas em seus olhos não ha-bitam as três marias. A brisa o tempo todo toca seu vestido, seus cabelos também esvoaçam. Ele sorri. Ela é uma boneca. Seu corpo, pálido e moldado su-tilmente pelas mãos do criador. Ela havia termina-do de ler um exemplar de Joyce antes de vir à festa, mas ele prefere Guimarães Rosa ou Pessoa. Ela não gostou da tradução, não se fazem mais traduções com ardor. Ele sussurra algo em seu ouvido. À qualquer momento, entre uma canção alegre e uma canção melancólica, ele a ganhará em seu ombro. Sarabeth juntou-se com aqueles que dançavam próximo ao Kaffe, na esquina da Rua das Margari-das, que não fechava as suas portas sob circunstân-cia alguma, só, sem par para acompanhá-la, pois uma mulher como essa não necessitava de um par. Ora ou outra formavam-se grupos que abriam ro-das e davam os braços uns aos outros, movimen-

te do espelho, pois, em outras temporadas, ele já fora o vestido mais cobiçado por Betta e as outras gorduchas que prostravam-se no canto do salão para cochichar sobre a vida alheia. Aquele vestido a arrastava para dentro de suas lembranças. E al-guma coisa mais a arrastava para dentro de suas lembranças, como uma onda que engole a arrasta para dentro de si qualquer coisa, sim, sabia bem o que era – nostalgia daquilo que havia vivido. A na-tureza de uma realidade que parecia ser constante e fora quebrantada por um terrível rúdigo do tempo. Era isso, era isso. O relógio tiquetaqueava, as esta-ções transmutavam e o seu corpo continuava ali, pálido e já não tão conservado. Noites mal dormi-das, sem sexo, masturbações ruins. Tudo perma-necia ali, mofando como um quarto abandonado. Agarrou-se em vestido vermelho vitoriano, já não podia mais continuar mofando como aquele quar-to abandonado. Cara pálida-pérola, lábios que des-conhecem o tom de vermelho que combinaria com aquele vestido e os seus sapatinhos à francesa. Era isso, era isso. Sabia bem do que necessitava. Naque-la noite, retornaria ao fluxo da vida. Não havia outra maneira a não ser passar pela Rua da Misericórdia para chegar à praia, onde os homens e mulheres festejam todos os finais de se-mana. Há muito, desde que Antônio havia tido o derrame, e desde que a Sra. Lourdes havia se sui-cidado em seu quarto, não frequentava a praia à noite. A Rua da Miseircórdia, a ruela mais grotesca que havia visto em sua vida. Sem poste para ilumi-nação, de modo que, nas madrugadas, o parquinho com seus balanços e gangorras quebrados por vân-dalos da Rua Costa era tomado por um bando de arruaceiros drogados que papeavam tão alto que era necessário chamar a polícia, a ruela dava na es-cadaria de terra batida que levava à praia. No mar não havia ondas, era brando e a água, cálida. Mas podia-se ouvir o bramido da maré se caminhasse mais para a direita, onde um corredor íngreme de seixos levava à costa marítima – o subterfúgio dos amantes noturnos. Um desperdício andejar com os sapatinhos à francesa sobre essa avenida onde, entre a praia e as casas de veraneio, e o Kaffe logo na esquina da

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tando-se para o lado e para o outro; uma senhorita era convidada à dançar no meio da roda enquanto homens faziam reverência como se elas fossem as suas amantes. A banda produzia aquele efeito, a so-noridade nadava até os seus corpos. Eles eram ali-mentos para a música e alimentados pela música. Era um caso de simbiose, pois sem a música não haveria corpos e sem os corpos não haveria a músi-ca. Isto é a vida, pensou Sarabeth, à medida em que o tamborilar dos tambores, o batucar dos batuques derretia-se dentro de si. Percorrer a estrada de sei-xos ou galgar sobre uma corda bamba, o impor-tante é continuar a caminhada. É a arte que estará viva após todos aqui virarem alimentos aos decom-positores. O momento estaria aqui nalgum lugar do passado, aqui, onde os pés movimentavam-se como se tocassem o fogo, em frente ao Kaffe, local em que os réprobos acendiam seus cigarros à noite, debatiam o caso do brasileiro que foi fuzilado na Indonésia, os jovens angustiados e os artistas fala-vam sobre Balzac, Watteau, Caio Fernando Abreu, Lispector, sim, onde encontrou-se com Antônio sobre a cálida noite de veraneio, um janeiro infer-nal, e conversaram sobre o futuro juntos. De repente, formaram-se pares. Os corpos movi-mentavam-se, agora unidos, para lá e para cá como uma nuvem numa tarde primaveril, excitados. Um homem aproximou-se, um marinheiro, e pôs as mãos em volta de seu corpo, tocando no vestido de seda decotado. Sarabeth o encarou, procurando afastar-se elegantemente daquele ser atrevido. “Oh, senhora, me permita essa dança!” “Muito obrigado, mas sinto-me bem dançando só.” “Mas bem que a senhora sabe, nenhuma mulher que se preze nesta cidade se sente bem dançando so-zinha. E, tal como é, mulheres como você possuem sorte de homens como eu ainda fazerem gestos de caridade.” Mas que falta de respeito! Sarabeth sentiu-se en-vergonhada. O marinheiro afastou-se e foi a pro-cura de outro par. Os rostos dos que dançavam não pareciam mais excitados com o calor do momento, mas, para ela, era como se aqueles rostos, aqueles corpos, revenciassem a sua vergonha. Partiu para longe do grupo que dançava próximo ao Kaffe,

sentindo-se tão líquida que poderia esparramar-se no chão. Ou qualquer coisa como enfiar o rosto na areia da praia. Sua face começava a dialogar com o céu noturno, lúgubre e sem estrelas. Todos aqueles rostos que transpassavam na ruela, todos aqueles seres fitando a sua dor. E a banda começava a tocar uma outra canção, uma canção mais melancólica. Ambos, o marinheiro e a ruiva, sentados vislum-brando o mar. Ela põe a cabeça em seus ombros. Ele acalenta seus cachos ruivos. Talvez ele tenha a ganhado para toda uma vida. Talvez apenas uma noite. Tanto faz, tanto fez. É isso, é isso. Tanto faz, tanto fez. A Sra. Eve fechava a sua barraca com difi-culdade. Oh, céus, havia perdido a noção do tempo enquanto vivia. Podia-se sapatear, podia-se sorrir, fitar gaivotas capturando peixes no mar, ouvir a canção da manhã, podia-se haver o movimento, mas, assim como a certeza da perfeição dos cálcu-los matemáticos, e a certeza da própria incerteza que rege as teorias físicas, no fim, apenas restaria o silêncio. Na volta para casa, Sarabeth não reparou os dro-gados na Rua da Misericódia. Estava esbaforida demais para fazê-lo. Segurava os sapatos em mãos como se eles fossem pequenas e elegantes desgra-ças. Do cinzento céu da alvorada, gotas de chuva começavam a capotar quando ela chegou em seu lar. Tudo estava em perfeita ordem. Havia deixa-do o rádio ligado na estação ao qual, por mais que o locutor dissesse algo interessante, suas palavras ainda não eram acatadas como verdades absolutas. E Antônio, seu amante, ainda adormecido, talvez em vias de acordar. Atravessou o quarto, corada, como se guardasse algum segredo entre as pernas, adentrou-se em seu closet e arrancou o vestido com tamanha voracidade. Pensou ter ouvido algo rasgar. Não, não, nada aconteceu. Ao retornar ao quarto, Antônio a fitava com os seus dois olhos azuis, fatigados e doentes. As lágrimas em seus olhos começaram a jazer à medida em que a can-ção da manhã começou a tocar.

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Esse é um projeto que começou antes de eu pensar em um projeto – ou no acúmulo de coisas. Somente quando entrei no Parque Lage, mais es-pecificamente em uma turma de fotografia da pro-fessora Denise, percebi que eu era o tipo de pessoa que adora guardar coisas e inventariá-las – sempre penso no carteiro do filme “Sacrifício” do grande Tarkovsky, quando ele se classifica como um cole-cionador de eventos extraordinários ou algo tipo, vindo a contar a história de uma foto com toda a estranheza que aquilo representava, é incrível, o tipo de coisa pra se ver – e talvez, justamente por isso, imersa em projetos que são novas desculpas para continuar a somar alguns novos megabytes de arquivos para o HD desse laptop velho. O que quero dizer sobre isso, é que começou em 2012 e ainda o considero inacabado. Levaram a minha câ-mera e ele está parado por um lado, fora que estou em um intercâmbio em Coimbra, o que facilitou a minha movimentação pela cidade – anda-se para tudo, ônibus só quando chove ou faz preguiça – e consequentemente me fez pará-lo, por outro lado. Então, talvez, só talvez mesmo, lembrando que de mãos dadas ao movimento há a espera, seja isso que eu quero dizer: não sei quando volto para ele e nesse estágio dele, entre platonismos, irritações e o dourado ora do Sol, ora dos postes, fico satisfeita com o trabalho conjunto de apresentação que será algumas das situações diagramadas pelo meu que-rido Luca, aqui, no coletivo A Caixa, mais um dos projetos que tive a sorte de acumular.

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Minha mão procura estar encaixada naquele ferro do banco, ela procura segurá-lo com força. Mas eu não consigo, algo não deixa que eu a encaixe ali. E essa rejeição por parte do banco me preocupa, só quero estar em um local estreito e essa mão livre sendo empurrada para fora me angustia até que ao virar para trás um senhor ri, pede desculpas e tira a mão dele. Eu rio, sou uma boba. Peço desculpas também e desisto de segurar o ban-co com a mão agora que posso, mesmo agora, que o senhor simpaticamente disse: “calma menina, o ferro é todo seu”. Desculpa desde-nhar, é que fazia um bom tempo que eu não chorava tanto.

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A perimetral fechou, a perimetral fe-chou e eu estou presa no fundão, todo mundo reclama “mas desde que a perimetral fechou” porque antes essa cidade tinha o quê: bebe-douro de Nesquik e Alfredo pra subir até o sé-timo andar levando papel higiênico duplex na bandeja. Merda de ponte do Saber, continuo presa nessa merda, merda. A fila não anda e essa cidade me cansa. Essa cidade não me quer mais e eu durmo com a cara amassada no banco da frente que nesses 43°C cola no suor da minha testa. Olha a chuva, graças a Deus, a chuva. Acordo em pleno rebuliço: é chuva. É cada gotão na minha cara, é lindo de se ver, é cada gotão grosso que dói. Gelado. Nunca fui mão de vaca, mas pagar R$3,10 pra ir da Uruguaiana para Cinelândia? Eu, nasci-

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da e criada em Cascadura, vir a pagar R$3,10 para ir daqui até ali depois de comer tanto sa-colé de Nesquik caminhando destemida pela Suburbana? Por isso, eu ignoro o trevo de três folhas que tenho em mãos e sigo andando feliz de paralelepípedo em paralelepípedo achando tanto cômico, tanto trágico, os vendedores re-colhendo as barracas, achando tanto cômico, tanto trágico, minha sandália prendendo nas brechas de paralelepípedo em paralelepípe-do. O pé escorrega e o couro ou pseudo-cou-ro fica com uma textura rugosa que roça nos calcanhares, um incômodo só, porque eu sou chata, mas tão chata. Ouvi sexta passada que a cidade está sitiada. “Isso aqui até parece faroeste”, foi o que ouvi. Minha sandália trava de parale-lepípedo em paralelepípedo, e estou sitiada. Sitiada na minha própria liberdade, imersa em pânico, dor, obsessiva nesse assunto de cair no vazio, desespero, estou é angustiada, é isso, angustiada. Sempre fui orgulhosa, nas raízes mais pejorativas do adjetivo. Não dou o braço a torcer. Não vou gastar R$3,10 pra ir apertada daqui-ali. Não vou gastar R$15,00 em um guarda-chuva produzido no subterrâ-neo da China por two cents. E quando a chuva aperta, eu nem penso mais, agora é só procu-rar uma marquise até parar em qualquer lugar para comer qualquer coisa e reparar que às 17 horas todos comem sozinhos; uma pessoa por

mesa e quatro cadeiras. Não há mais quem nos acompanhe para o lanche da tarde nessa cidade. E mesmo sem companhia para a ópe-ra, eu amo essa cidade. Porra, eu amo essa cidade. Esses dias, esbarrei com um mineiro de Montes Claros e ele estava horrorizado: “cheguei aqui e nunca vi tanta mulher ber-rando palavrão, toda hora era um ‘puta que pariu’, toda hora era um ‘caralho’ e ‘porra’ en-tão, ‘porra’ nem se fala”. Nós somos palavren-tas nessa cidade. Algumas até arrotam todos os palavrões à mesa, mas infelizmente nunca consegui aprender a fazer isso. Procura-se companhia para ensinar a arrotar. Quero tirar essa merda de aparelho e ver se reaprendo a assobiar, era divertido assobiar. Poderia cami-nhar na chuva e assobiar. Como ia ser bom, no meio dessa cidade, andar na chuva, com a minha sandália derrapando de poça em poça e assobiar.

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“Não perde noite de sono não porque isso daí você não tem como recuperar. Ah, eu nunca fui de perder noite de sono mesmo, até quando me arrumaram um emprego pra trabalhar de noi-te, numa boa, lá em numa fábrica em Magé, eu não quis. Sono, isso eu não perco: você não é de perder não né? Outra coisa, guarda o teu di-nheiro, não gasta em bebida. Eu, graças a Deus, nunca fui de chapar.”

Milton, ilustríssimo exemplo de ser humano – perspectivas – distribuindo conse-lho no 409 depois de xingar a esposa de filha da puta no telefone, afirmar que ela merece uns sopapos e dele aquela esperta não arranca um vintém, sendo assim, ele não ia comprar remédio nenhum pra ela não. Antes de com-partilhar sua sabedoria para com moi, ele dis-correu um pouquinho sobre o quanto a pena de morte deve ser implementada rapidamen-te, ainda mais nesses tempos de manifestação, “porque tem é que matar mesmo” pra depois terminar brilhantemente o seu monólogo com uma gossip quentíssima de que ele está traindo a esposa com a chefe que é uma viúva – loira também, “porque essas sim, essas são um perigo”. Finalmente em casa, penso em Milton: metade do copo com gin, completa a outra com água tônica e enfia uma rodela de limão para garantir a vitamina C.

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Maldita espinha, está exatamente no centro do meu queixo. Uma dorzinha leve, mais parece uma picadinha de mosquito, dói tão discretamente que até penso ser psicoló-gico, apenas o meu cérebro ansioso querendo se ocupar de eliminar uma pobre bolinha de nada. Sinto sono, mas não durmo por causa dela, passo meu dedo áspero por ela, trata-se de uma pele tão fina que até parece à parte. Estou descuidada e áspera, por isso tenho espinhas, por isso sinto sono nos momentos errados e como demais, por isso me atolo em ansiedad, e, principalmente, marco minha pele com a unha inutilmente, porque já tem tempos que sei que essa porra de dor interna não vai passar.

Depois de dez horas de viagem no trecho Inhotim-Rio de Janeiro, com paradas para comprar ora cachaça, ora coxinha, com o corpo pedindo ora festa, ora preguiça, acho que minha sonolência esses dias acaba sendo normal. Meus ideais de descanso são sequelar com o sacolejo do banco meio solto e sonhar

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com um banho quente em casa pra deixar a água cair sobre as costas como se fosse mas-sagem. Desabo de cara no banco da frente mesmo sabendo que vou marcá-la, averme-lhá-la. Sem querer, meu corpo é jogado para a senhora do lado que faz uma cara de merda, me desconforta e olho para rua: já estou no Centro. Olha só quanta gente atravessando quando o sinal deixa, eles estão desesperados com passos largos e apressados. As eternas executivas de saltos altos a caírem nos bura-cos e os funcionários públicos de blusa social e calça jeans. Os engravatados que são conta-dores, economistas e advogados a respirarem o mesmo ar de merda que os meninos que vagam pela Praça XV preparados para pedir as moedinhas que hoje não tenho. A cidade é democrática e o cheiro de merda está em qualquer lugar; na Praça XV, em Cascadura, no Fundão, no Jardim Botânico e na Praia Vermelha. Esse mesmo cheiro de merda a me perseguir com esses mesmos olhares de desa-provação. Os mesmos passos que me obrigam a correr para não ser pisoteada. Olho, cheiro e toco essa merda toda para só querer viajar de novo enquanto durmo por horas.

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Olho para os seus dedos fazendo mo-vimentos circulares no chaveiro da mochila, movimentos que não cessam porque sempre que as mãos parecem aptas a se desvencilhar da armadilha de elástico que está presa, é puxada de volta. A outra mão repousada no pano, se parece mais com as minhas, que es-tão repousadas e apáticas em cima da bolsa, um pulso por cima do outro, dedos mortos de medo de serem reconhecidos como amea-çados. Todo cachorro já sabe instintivamente o que demoramos anos para perceber, que o odor do medo é inconfundível, por isso ele senta ali com inúmeros outros lugares livres, conscientemente ou inconscientemente devia saber do medo que bate e acelera o coração, que tira a paz e nos deixa nus com a cabeça baixa, evitando encarar o nosso reflexo nos olhos um do outro. Find what you love and let it kill you, diria Bukowski.

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Mudei minha playlist pela quinta vez esta semana. Mudei minhas coisas de lugar, desarrumei e arrumei tudo mais de uma vez, fiquei cinco horas só para arrumar uma es-tante - que já estava arrumada. Mudo mi-nha vida inteira todas as semanas, mudo o ônibus que vou pegar, a porta que vou usar. Mudo o jeito de arrumar a minha mochila. Me pergunto se todo mundo tem um prazo de validade como eu, procurando um

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novo mundo para explorar; é como viver em um eterno desenho animado onde a perso-nagem tem que achar seus pertences e seus caminhos. Só que eu não tenho um mapa fa-lante e nem faço as crianças de idiotas. Quando conheço alguém, tudo em que consigo pensar é: “Nossa você é legal, mas em qual momento vou saber que não ligo mais para sua opinião? Que simples-mente não há mudanças o suficiente que me façam ficar?” Quando chego a um lugar novo, o mesmo pensamento me ocorre, e um momento doloroso que faço questão de atribuir à astrologia e a minha Lua em Es-corpião, ninguém mandou nascer com a lua no seu inferno astral. É como nascer com um aviso, um post-it amarelo colado na testa que diz que algo não vai funcionar bem. No meu caso, é um aviso prévio de que posso viver sozinha pra sempre se eu não mudar. Mudar... Lá vem a necessidade de mudança com os dois pés na minha porta. Ela não avi-sa quando vai chegar, vem sorrateiramente, e de repente, está me cercando por todos os la-dos, observando para ter certeza que vai me pegar no momento certo, para poder jogar na minha cara que estou no mesmo ponto desde o começo do dia, que não mudei nada – a não ser a cor do cabelo- desde os quinze anos. Tento ver as coisas de uma forma oti-mista, mas me fogem as palavras para des-crever como me sinto, então entendo que talvez não queira mudança nenhuma. Quero criar hábitos e manias, criar tradições e ter um lugar para onde possa voltar e fazer tudo igual de novo. Será que isso quer dizer que estou ficando velha? Que estou ficando ma-dura demais para a vida que estou levando? Que finalmente vou começar a entender as mentes que um dia foram um completo mis-tério para minha mente?

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Talvez eu realmente tenha amadure-cido sem nem perceber, as mudanças acon-teceram sem eu nem assinar seus Termos de Uso, talvez tenha ocorrido enquanto espera-va o metrô. Mas quando me olho no espelho ou vejo as anotações em minha agenda, vejo que sou a mesma, no mesmo lugar, sem ti-rar nem por. Então descido que, só por hoje, vou deixar passar essa vontade de mudança, vou deixar passar essa inquietação e todas as datas de validade possíveis. Vou continuar sendo a mesma de ontem por mais um dia e, quem sabe, pelo próximo também. Será que todos os jovens com seus quase vinte anos passam por isso? Essa falta de direção quando se sabe exatamente aonde se quer chegar? Ou será que sou a única pes-soa do mundo que precisa dessa constante: a necessidade de se sentir em movimento e mesmo assim ser parte de algo? Talvez eu tenha que parar de culpar a astrologia por tudo, a final de contas, quan-tas pessoas sentem as mesmas coisas que eu e quantas delas também nasceram com a Lua nos seus infernos astrais? Minha última dú-vida é se um dia vou conseguir encontrar um equilíbrio, um ponto onde possa conciliar a mudança constante em plena estagnação, mesmo já sabendo a resposta.

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Gostariamos de agradecer ao Centro Cultural Ovidor 63 e ao

Marcelo Ruivo, por nos ceder os espaço para os ensaios. Agradecer a todos os modelos envolvidos na produção dessa edição, a todos os

nossos colaboradores e a vocês, nossos leitores.

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