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MARIO FERREIRA PIRAGIBE MANIPULAÇÕES: ENTENDIMENTOS E USOS DA PRESENÇA E DA SUBJETIVIDADE DO ATOR EM PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS DE TEATRO DE ANIMAÇÃO NO BRASIL Tese apresentada ao Programa de Pós- graduação em Artes Cências da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, UNIRIO, como parte dos requisitos para obtenção do título de doutor em Artes Cênicas Linha de pesquisa: Processos e métodos de construção cênica Orientação: Professor Dr. José Da Costa Filho Rio de Janeiro 2011.2

MANIPULAÇÕES: ENTENDIMENTOS E USOS DA PRESENÇA E DA

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MARIO FERREIRA PIRAGIBE

MANIPULACcedilOtildeES

ENTENDIMENTOS E USOS DA PRESENCcedilA E DA SUBJETIVIDADE DO

ATOR EM PRAacuteTICAS CONTEMPORAcircNEAS

DE TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO NO BRASIL

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-

graduaccedilatildeo em Artes Cecircncias da Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO

como parte dos requisitos para obtenccedilatildeo do

tiacutetulo de doutor em Artes Cecircnicas

Linha de pesquisa Processos e meacutetodos de

construccedilatildeo cecircnica

Orientaccedilatildeo Professor Dr Joseacute Da Costa Filho

Rio de Janeiro

20112

2

3

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo em primeiro lugar ao constante perseverante apoio de minha famiacutelia que

foi um fator determinante para o alcance desta etapa de minha formaccedilatildeo Principalmente aos

meus filhos Pedro e Clarice inspiraccedilatildeo e estiacutemulo mesmo que a nossa separaccedilatildeo no momento

tenha proporccedilotildees continentais

Agrave UNIRIO minha casa e berccedilo dos meus pensamentos sobre teatro de animaccedilatildeo

Lugar que me proporcionou interlocuccedilotildees necessaacuterias e ricas feita com colegas e professores

que gostaria muito especialmente de agradecer e homenagear Em especial agradeccedilo a meu

orientador Joseacute da Costa Filho cuja disposiccedilatildeo para adentrar no universo dos bonecos e

infinita paciecircncia me suportaram e garantiram a existecircncia deste trabalho como ora se

apresenta

Agradeccedilo aos meus companheiros do teatro de animaccedilatildeo artistas produtores colegas

de companhias e organizadores de festivais que permitiram o aprofundamento e tornaram

relevantes as indagaccedilotildees que aqui abordo Em especial agradeccedilo agrave Cia PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo a meu diretor e amigo Miguel Vellinho pelo apoio e creacutedito mas tambeacutem

agradeccedilo aos companheiros Marcio Nascimento Marcio Newlands Liliane Xavier Marise

Nogueira Mara Cristina Rego Barros Carlos Alberto Nunes Marcos Nicolaiewski Mona

Vilardo e Renato Machado Somos muito bons juntos

Agradeccedilo tambeacutem ao amigo e companheiro de reflexatildeo sobre bonecos e animaccedilatildeo

Paulo Balardim Obrigado por dividir as duacutevidas e discordacircncias

Agradeccedilo em especial ao professor Doutor Valmor Nini Beltrame Pelo carinho pela

presenccedila pelo incentivo mas principalmente pelo fantaacutestico trabalho que realiza em favor da

reflexatildeo e do estudo acerco do teatro de animaccedilatildeo dentro da universidade ampliando os

espaccedilos para reflexatildeo e disponibilizando a produccedilatildeo e a troca de pesquisa em teatro de

animaccedilatildeo Sua importacircncia eacute inestimaacutevel e precisa ser constantemente louvada

Agradeccedilo em especial agrave Universidade Federal de Uberlacircndia meu novo lar e o espaccedilo

onde pude ter a chance de concluir e conduzir este trabalho Entre todas as pessoas que me

ajudaram e tornaram este momento possiacutevel sobressaem-se os amigos e companheiros

Narciso Telles e Paulo Ricardo Meriacutesio juntamente com a excelente equipe com a qual

ambos me permitiram trabalhar Mara Leal Fernando Aleixo Mariene Perobeli Ana Maria

Carneiro Vilma Campos Luiz Leite Rose Gonccedilalves Luiz Humberto Arantes Paulina Caon

4

Kalassa Lemos Maria de Maria Getuacutelio Goacutees Dirce Helena de Carvalho Ana Carolina

Mundim Irley Machado Maria do Socorro Calixto e Renata Meira Agrave UFU seus professores

e funcionaacuterios meu carinho e eterno agradecimento

Agrave Valeacuteria Gianechini meu amor e promessa de eterno companheirismo Obrigado

pelo incentivo pela presenccedila e pelo amor que espero poder retribuir sempre do modo como

merece

5

ldquoO marionetista deve ter em si tanto o tipo de ator positivo (aquele

que interpreta encontrar a si para trazer elementos de si mesmo em

sua personagem para projetar-se em sua personagem) e do tipo de

ator negativo (que interpreta para desaparecer para penetrar em outra

personalidade para buscar uma evasatildeo para criar aleacutem de si mesmo

para enriquecer-se na substacircncia de seu papel) Nesse sentido o

marionetista pode ser o ator ideal Ele atua para encontrar-se num

circuito que vai dele para o boneco e retorna do boneco a ele Ele

oferece a personagem a si mesmordquo

(GERVAIS apud BENSKY 2000)

ldquoPode ser perfeitamente possiacutevel que a metaacutefora do boneco esteja

mais presente no humano de que o fenocircmeno do boneco no teatro

humano Uma questatildeo fascinante surge dessa sugestatildeo seraacute que a

metaacutefora emerge da observaccedilatildeo do boneco ou seraacute que o boneco eacute

uma consequecircncia do reconhecimento dessa metaacutefora Ou para

apresentar a questatildeo de outa maneira a sensaccedilatildeo de que as pessoas e

os bonecos se parecem por terem sido criados e controlados por forccedilas

superiores surge da observaccedilatildeo de que o boneco eacute de fato criado e

controlado dessa forma ou a praacutetica de criar e controlar bonecos surge

da observaccedilatildeo de que as pessoas satildeo criadas e controladas dessa

formardquo

(TILLIS 1992)

6

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ndash UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ARTES CEcircNICAS

TESE DE DOUTORADO EM TEATRO

PIRAGIBE Mario Ferreira Manipulaccedilotildees entendimentos e usos da presenccedila e da

subjetividade do ator em praacuteticas contemporacircneas de teatro de animaccedilatildeo no Brasil Rio de

Janeiro 2011 397f + 1 DVD

Resumo

Esta tese se propotildee a investigar as transformaccedilotildees percebidas nas poeacuteticas cecircnicas do

que se convencionou chamar teatro de animaccedilatildeo ou de formas animadas agrave luz dos modos de

apresentaccedilatildeo e trabalho do ator operador compreendendo o recurso do ator agrave vista como uma

recorrecircncia nas praacuteticas das companhias de teatro de animaccedilatildeo brasileiras contemporacircneas

mais propensas a empreender investigaccedilotildees sobre a linguagem

Partindo de indagaccedilotildees acerca da especificidade do teatro de animaccedilatildeo como gecircnero

apartado do panorama geral da arte teatral o estudo considera as transformaccedilotildees recentes

percebidas nas praacuteticas de animaccedilatildeo como demonstraccedilotildees de um movimento de indefiniccedilatildeo

das fronteiras entre as modalidades de apresentaccedilatildeo em teatro Dessa forma o estudo se potildee a

indagar acerca das funccedilotildees e entendimentos do ator sobre a cena animada no que diz respeito

agrave sua contribuiccedilatildeo para a mobilidade dos conceitos em animaccedilatildeo mas tambeacutem naquilo que

toca aos motivadores temaacutetico-dramatuacutergicos que a sua presenccedila suscita e sobre as questotildees

de treinamento e teacutecnica que identificam eou afastam o seu trabalho da atuaccedilatildeo teatral

7

Abstract

The present thesis proposes to undertake an investigation about the transformations

perceived over the scenic poetics on the so-called animation theatre or animated forms

theatre taken from the deployments and works of the actor operator It also takes under

consideration the use of the operator on sight as a recurrence on the recent practices seen in

investigative puppetry companies works

Posing a general wonder about if puppetry can be seen as a specific and unique genre

in the scope of the theatrical arts this study considers the recent tranformations perceived

over the puppetry practices as examples to a movement towards the indefinition of the

frontiers that separate the different configurations on theatrical performance Therefore the

study investigates the actoracutes roles and understandings over the animated set as to consider

his contributions to animationsacute conceptual transformations but also on the thematic and

dramaturgic motivators raised by his presence and also over aspects of training and technic

that identify andor deviates the work of the actor in puppetry with the theatrical acting

Reacutesumeacute

Cette thegravese est destineacutee agrave entraicircner une investigation des transformations perccedilus sur

les poeacutetiques de scegravene dans le soi-disant theacuteacirctre dacuteanimation ou theacuteacirctre des formes animeacutees agrave

partir des modes de preacutesentation e emploi de lacuteacteur operateur Cette eacutetude comprend aussi le

recours de lacuteacteur met sur la visage du public comme une recurrence dans les pratiques des

companies breacutesiliennes contemporaines dans le theacuteacirctre dacuteanimations qui font des

investigations de language

Le travail part de lacuteenquecircte sua si le theacuteacirctre de marionnettes peut ecirctre compris comme

un comme un genre distinct du panorama geacuteneacuteral de lart theacuteacirctral leacutetude considegravere les reacutecents

changements dans les pratiques dacuteanimation comme deacutemonstrations dun mouvement qui

brouille les frontiegraveres entre les modes de preacutesentation dans le theacuteacirctre Ainsi leacutetude vise agrave

renseigner sur les fonctions et les compreacutehensions de lacteur sur la scegravene animeacutee agrave leacutegard de

leur contribution agrave la mobiliteacute des concepts dans lanimation mais aussi agrave lacuteeacutegard de la

motivation des theacutematiques et dramaturgies qui sa preacutesence soulegraveve et sur les questions de

technique et de formation qui permettent didentifier ou non le travail de lacuteacteur dans le

theacuteacirctre dacuteanimation et dans le theacuteacirctre dacuteacteurs

8

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

FIGURA 1 - Compagnie Philippe Genty La fin des terres helliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 25

FIGURA 2 - Compagnie Philippe Genty Boliloc p 25

FIGURA 3 - Pia Fraus Primeiras rosas (As margens da alegria) p 26

FIGURA 4 - Pia Fraus Primeiras rosas (O cavalo que bebia cerveja) p 26

FIGURA 5 - Robert Wilson The CIVIL warS helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 28

FIGURA 6 - Tadeusz Kantor The dead class helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 28

FIGURA 7 - Impeacuterio das meias verdades (ariz Fernanda Torres) p 29

FIGURA 8 - Terra em tracircnsito (atriz Fabiana Giugli) p 29

FIGURA 9 - Theacuteacirctre sur le fil Oiseau Vole p 34

FIGURA 10 - Phillip Huber no Festival de Teatro de Bonecos de Canela 2010 p 34

FIGURA 11 - Taffy (Phillip Huber) p 34

FIGURA 12 - PeQuod Peer Gynt ndash desvio de foco p 37

FIGURA 13 - PeQuod Peer Gynt ndash Festa de casamento p 37

FIGURA 14 - PeQuod Peer Gynt ndash Personagem Aslak p 37

FIGURA 15 - PeQuod Peer Gynt ndash A Noiva p 37

FIGURA 16 - Teatro Ventoforte Histoacuteria de Lenccedilos e ventos p 41

FIGURA 17 - Teatro Ventoforte A histoacuteria de um barquinho p 41

FIGURA 18 - Contadores de Estoacuterias O bode e a onccedila (1971) p 45

FIGURA 19 - Contadores de Estoacuterias Pas-de-deux (1982) p 45

FIGURA 20 - Teatro Giramundo Giz p 47

FIGURA 21 - Teatro Giramundo Giz p 47

FIGURA 22 - Teatro Giramundo Giz p 47

FIGURA 23 - XPTO Coquetel Clown (peixes) p 49

FIGURA 24 - XPTO Coquetel Clown (futebol) p 49

FIGURA 25 - Pia Fraus Gigantes do ar (1998) p 49

FIGURA 26 - Pia Fraus Bichos do Brasil (2001) p 49

FIGURA 27 - Wayang purwa sombras javanesas p 54

FIGURA 28 - Wayang golek boneco javanecircs de vara p 54

FIGURA 29 - Sombra indiana p 55

FIGURA 30 - Karagoumlz personagem de sombra turco p 55

9

FIGURA 31 - Mamulengos do nordeste brasileiro cena do degolado p 56

FIGURA 32 - Punch o bebecirc e Judy p 56

FIGURA 33 - Grupo Sobrevento O Theatro de brinquedo (1993) p 73

FIGURA 34 - Grupo Sobrevento Um conto de Hoffman (1998) p 73

FIGURA 35 - Muumlmmenchanz p 75

FIGURA 36 - Muumlmmenchanz p 75

FIGURA 37 - Bonecos de luva chineses da proviacutencia de Fujian p 82

FIGURA 38 - Pulcinella e Salvatore Gatto p 82

FIGURA 39 - Duas diferentes pegas para bonecos de luva p 82

FIGURA 40 - Munganga Teatro Terceira Margem p 85

FIGURA 41 - Munganga Teatro Terceira Margem p 85

FIGURA 42 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Manequim p 87

FIGURA 43 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Manequim p 87

FIGURA 44 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Gaiola p 87

FIGURA 45 - Cie Petits Miracles Les puces savantes p 92

FIGURA 46 - Steve Hansen (USA) Punch and Judy helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 97

FIGURA 47 - Cia Teatro Lumbra Saci Pererecirc a lenda da meia noite p 97

FIGURA 48 - Cia Navegante Teatro de Marionetes Musicircus p 97

FIGURA 49 - Bunraku visatildeo do palco de bonecos mais o espaccedilo do narrador e do

instrumentista

p 99

FIGURA 50 - Bunraku manipuladores p 99

FIGURA 51 - Mestre Zeacute de Vina p 99

FIGURA 52 - Mestre Zeacute Lopes p 100

FIGURA 53 - Bonecos feitos por Mestre Zeacute Lopes p 100

FIGURA 54 - Operador oculto Sesame Street (atriz Kathrin Mullen) helliphelliphellip p 109

FIGURA 55 - Operador aparente PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo Sangue Bom p 109

FIGURA 56 - Cia Teatro Lumbra Saci visto detraacutes da tela p 112

FIGURA 57 - Cia Truks E se as histoacuterias fossem diferentes p 112

FIGURA 58a - Manipulaccedilatildeo oculta inferior p 121

FIGURA 58b - Manipulaccedilatildeo oculta superior p 121

FIGURA 58c - Formas de manipulaccedilatildeo p 122

FIGURA 58d - Formas de manipulaccedilatildeo p 122

FIGURA 59a - Marionete ldquoagrave la planchetterdquo italiana p 124

10

FIGURA 59b - Marionete ldquoagrave la planchetterdquo p 124

FIGURA 60 - Teatro de bonecos Alemanha seacuteculo XVIII p 124

FIGURA 61 - Don Quixote destroacutei o teatro de bonecos helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 124

FIGURA 62 - Cia Truks Vovocirc p 127

FIGURA 63 - Morpheus Teatro Peacutes descalccedilos p 127

FIGURA 64 - Morpheus teatro O princiacutepio do espanto p 127

FIGURA 65 - Contadores de Estoacuterias Mansamente p 132

FIGURA 66 - Contadores de Estoacuterias Maturando Detalhe de manipulaccedilatildeo p 132

FIGURA 67 - Contadores de Estoacuterias Em concerto p 132

FIGURA 68 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo p 134

FIGURA 69 - Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo Muchas manos p 134

FIGURA 70 - Cia Truks Big Bang helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 134

FIGURA 71 - Catibrum Homem voa Neutralidade e expressividade p 137

FIGURA 72 - PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no Inferno p 137

FIGURA 73a - Catibrum Homem voa Forma e potecircncia de movimento p 137

FIGURA 73b - Catibrum Homem voa Forma e potecircncia de movimento p 137

FIGURA 74 - Punch and Judy ilustraccedilatildeo p 141

FIGURA 75 - Kasperle boneco de luva p 141

FIGURA 76 - Mamulengo Riso do Povo Mestre Zeacute de Vina Passagem de danccedila p 141

FIGURA 77 - Janeiro-Vai-Janeiro-Vem Mestre Zeacute Lopes p 143

FIGURA 78 - Esquema de S Eisenstein aplicaccedilatildeo de conflito por meio de

alteraccedilatildeo focal

p 153

FIGURA 79 - Foco alteraccedilatildeo de tema e ecircnfase na imagem por meio de distorccedilatildeo

focal

p 153

FIGURA 80 - Foco como emulaccedilatildeo do olhar p 155

FIGURA 81 - Atenccedilatildeo do operador sobre o boneco como orientaccedilatildeo focal p 155

FIGURA 82 - Convergecircncia focal entre ator e boneco p 155

FIGURA 83 - Focalizaccedilatildeo por contracenaccedilatildeo p 155

FIGURA 84 - Divisatildeo de foco por expressatildeo p 155

FIGURA 85 - Deslocamento e foco em trabalhos com materiais p 157

FIGURA 86 - Centro de focalizaccedilatildeo impliacutecito p 157

FIGURA 87 - O boneco como indicativo da personagem p 164

FIGURA 88 - Ceacuterbero PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no

Inferno

p 177

11

FIGURA 89 - Don Doro Hyaky Puppet Theatre helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 177

FIGURA 90 - Malabarista de fio p 181

FIGURA 91 - Maneacute Gostoso p 181

FIGURA 92 - Sobrevento Cadecirc meu heroacutei p 189

FIGURA 93 - Sobrevento Cadecirc meu heroacutei p 189

FIGURA 94 - Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto (ator JoatildeoArauacutejo) p 193

FIGURA 95 - Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto (ator JoatildeoArauacutejo) p 193

FIGURA 96 - Tabola Rassa (Espanha) El Avaro p 197

FIGURA 97 - Gats O patinho feio p 197

FIGURA 98 - Grupo Sobrevento Beckett (Ato sem palavras 1) p 199

FIGURA 99 - Grupo Sobrevento Beckett (O impromptu de Ohio) p 199

FIGURA 100 - Animasonho Bonecrocircnicas p 199

FIGURA 101 - Compagnie Philippe Genty Voyageurs Immobilles helliphelliphelliphelliphellip p 207

12

LISTA DE VIacuteDEOS

VIacuteDEO 1 - Impeacuterio das meias verdades

VIacuteDEO 2 - Teatro Hugo e Inecircs Cuentos Pequentildeos cena Baby blue

VIacuteDEO 3 - Teatro Hugo e Inecircs Cuentos Pequentildeos (joelho)

VIacuteDEO 4 - Masterclass Neville Tranter

VIacuteDEO 5 - Muppet Show Mahnah mahnah

VIacuteDEO 6 - Stuffes Puppets Nightclub (The old puppeteer)

VIacuteDEO 7 - Muumlmmenchanz tubo e bola

VIacuteDEO 8 - Teatro Munganga 20 anos

VIacuteDEO 9 - Lampiatildeo vai ao inferno buscar Maria Bonita (trabalho do conclusatildeo da

disciplina Teatro de Formas Animadas apresentada por Alba Valeacuteria Letiacutecia

Mariano e Nataacutelia Oliveira)

VIacuteDEO 10 - Ilka Schoumlnbein Metamorphosen

VIacuteDEO 11 - Frank Paris Amazing marionettes

VIacuteDEO 12 - String Pierrot at the Paul Daniels TV show

VIacuteDEO 13 - Cie Phillipe Genty La fin des terres

13

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO p 14

2 TEATRO DE BONECOS TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO p 21

21 Somos ainda marionetistas Uma provocaccedilatildeo p 21

22 Visotildees de um panorama p 38

23 Transformaccedilotildees p 46

231 O que eacute (e o que passou a ser) o boneco teatral p 53

232 Que formas e funccedilotildees podem ser atribuiacutedas ao artista de animaccedilatildeo p 93

2321 A questatildeo terminoloacutegica p 93

2322 Dois mirantes para o ator de animaccedilatildeo p 108

3 ATOR E OBJETO TOPOGRAFIA DE UM CAMPO DE BATALHA p 120

31 O foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituais p 151

32 Quem manda em quem Soberanias da cena de animaccedilatildeo p 162

321 Primeiro campo de batalha o sujeito da cena p 174

322 Segundo campo de batalha o lugar do teatro p 180

323 Terceiro campo de batalha a potecircncia metafoacuterica p 190

4 CONCLUSOtildeES p 208

5 REFEREcircNCIAS p 215

ANEXO A Rumo a uma esteacutetica do boneco (traduccedilatildeo do livro de Steve

Tillis)

p 224

ANEXO B Entrevista com Beto Andreetta (Cia Pia Fraus) p 375

ANEXO C Entrevista com Catin Nardi (Cia Navegante de Teatro de

Bonecos)

p 389

ANEXO D Entrevista com Alexandre Faacutevero (CiaTeatro Lumbra) p 394

ANEXO E DVD ndash trechos de viacutedeos mencionados na tese de acordo com

a Lista de Viacutedeos

14

1 INTRODUCcedilAtildeO

As alteraccedilotildees de escala a fusatildeo de meios ndash atores vivos junto

com atores com maacutescaras junto com bonecos ndash nos ajuda a

mover-nos por diferentes niacuteveis de realidade

Julie Taymor

A proposta de trabalho que esta pesquisa encerra diz respeito aos usos e configuraccedilotildees

do corpo humano dentro daquilo que se entende como a cena contemporacircnea do teatro de

animaccedilatildeo no Brasil A pesquisa c-se como um desdobramento direto quase obrigatoacuterio de

questotildees abordadas em minha dissertaccedilatildeo de mestrado aleacutem de indagaccedilotildees e vontades que me

acompanham desde aproximadamente quinze anos tanto no campo da pesquisa acadecircmica

quanto da praacutetica artiacutestica Trata-se da tentativa de pensar o teatro de animaccedilatildeo (bonecos

objetos sombras) identificando-a sob a forma de uma linguagem teatral que vem sendo

continuamente acessada por investigaccedilotildees recentes nos campos da encenaccedilatildeo da dramaturgia

e da interpretaccedilatildeo teatrais Isto equivale dizer que o teatro entendido a partir de uma

perspectiva mais ampla vem se sentindo mais e mais impelido a dialogar com as tradiccedilotildees de

formas e procedimentos do teatro de bonecos em busca de recursos e efeitos para

investigaccedilotildees modernas mas tambeacutem para transformar as formas e procedimentos

tradicionais dos teatros de bonecos a ponto de ampliar as possibilidades de entender e praticar

o teatro de animaccedilatildeo dos dias de hoje Eacute curioso notar o fato de que segundo pesquisadores

como Henryk Jurkowski (1991 1995) Bill Baird e Paul McPharlin (1969) o teatro de

bonecos ocidental era em finais do seacuteculo XIX considerada uma modalidade espetacular

divorciada do contexto da arte teatral ateacute que a partir de Ubu Rei de Alfred Jarry das peccedilas

provocativas de autores como Murice Maeterlink Federico Garcia Lorca e Michel de

Ghelderode e dos louvores de Gordon Craig e Vsevolod Meyerhold ao boneco como sendo

um modelo para o ator da modernidade o caminho integrativo entre o teatro e a arte da

marionete tornou-se contiacutenuo e inexoraacutevel Nos primeiros anos do seacuteculo XXI jaacute eacute possiacutevel

afirmar que num certo sentido essa aproximaccedilatildeo resultou em transformaccedilotildees e temas de

investigaccedilatildeo para as linguagens espetaculares tais que tratar em separado os teatros com e sem

bonecos resulta para se dizer o miacutenimo num trabalho delicado de escolha de palavras Outro

provaacutevel equiacutevoco de julgamento resulta da tentativa de se entender tal processo integrativo

como linear e direcionado Ocorre que o acompanhamento de investigaccedilotildees e resultados

artiacutesticos empreendidos por artistas e companhias atuais (tanto aquelas que se declaram

identificadas com a linguagem da de animaccedilatildeo quanto aquelas que se entendem mais

15

aproximadas do que seria tratado simplesmente como teatro ou teatro de atores1 ou teatro

vivo) sugere que o estudo das especificidades linguiacutesticas da arte da animaccedilatildeo de formas a

situa como sendo resistente agrave sua classificaccedilatildeo como uma modalidade espetacular autocircnoma

com foacutermulas e teacutecnicas especiacuteficas mas que aponta para a percepccedilatildeo de um acervo teacutecnico-

linguiacutestico incorporado e dedicado ao fazer e ao entender da arte teatral num sentido mais

amplo

Neste ponto algumas explicaccedilotildees fazem-se necessaacuterias O termo teatro de animaccedilatildeo

ou teatro de formas animadas foi criado com o intuito de dar conta da ampliaccedilatildeo de

possibilidades esteacuteticas e teacutecnicas surgidas para o teatro de bonecos a partir dos primeiros

anos do seacuteculo XX Ambos os termos foram bastante bem acolhidos por pensadores e artistas

brasileiros mas natildeo haacute um consenso de orientaccedilatildeo terminoloacutegica em outros idiomas como

nos exemplos theacuteacirctre de marionnettes em francecircs e puppetry em inglecircs2 O que faz a ideacuteia

de animaccedilatildeo parecer terminologicamente mais adequada e abrangente no que se refere a

experiecircncias de linguagem mais recentes eacute o fato de o termo animaccedilatildeo referir-se diretamente

a um verbo (animar) ao inveacutes de a um substantivo (boneco forma) Assim pode-se identificar

o traccedilo distintivo da linguagem em questatildeo como sendo uma determinada praacutetica ou postura

do sobrepara a cena que pode ou natildeo apresentar fisicamente um objeto ao inveacutes do fato da

presenccedila de um boneco um material ou um objeto que faria as vezes de uma personagem

teatral Algumas das questotildees sobre as quais o estudo se debruccedila eacute a de que o teatro de

animaccedilatildeo pode prescindir do uso de objetos inanimados ou bonecos construiacutedos para a cena e

de que o teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo incorporou diversas das questotildees que animam a

discussatildeo acerca do espetaacuteculo e da dramaturgia de nosso tempo entre elas aquelas que potildeem

em crise as noccedilotildees de accedilatildeo e personagem como constituintes inapelaacuteveis do evento teatral

A consideraacutevel ampliaccedilatildeo das formas de modelar animar inserir e fazer significar

bonecos e objetos sobre a cena teatral expandiram ateacute limites extremos o entendimento do que

seria o boneco teatral Deste modo formas antropomoacuterficas reduzidas grandes cabeccedilas

1 Eis um conceito que parece impreciso ou equivocado e com o qual tive que lidar durante a pesquisa que

resultou em minha dissertaccedilatildeo de mestrado O termo teatro de atores revelou certa eficaacutecia apenas para criar a

ideacuteia de oposiccedilatildeo ou diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao teatro de bonecos O emprego do termo torna-se um tanto

problemaacutetico na medida em que a reflexatildeo provoca a percepccedilatildeo de que tal diferenciaccedilatildeo tende a desaparecer nas

praacuteticas contemporacircneas O termo teatro de atores vem sendo no entanto amplamente empregado por autores

empenhados em refletir acerca de teatro de formas animadas como eacute o caso de Jurkowski (1995 p24) Plassard

(1995 p15) e Nina Dimitrova (apud BELTRAME 2001 p117) Reflexotildees mais recentes me fazem perceber

que o ideal seria a aboliccedilatildeo do termo complementar para referir-se ao teatro num contexto mais amplo mas

perde-se assim a capacidade de evidenciar durante uma argumentaccedilatildeo elementos contrastantes existentes entre

tipos de teatro que empregam animaccedilatildeo e outros que aplicam maior ecircnfase sobre o trabalho do ator 2 Embora deva-se reconhecer o emprego no caso do francecircs de termos como theacuteacirctre dacuteanimation e theacuteacirctre des

formes animeacutes

16

objetos de uso quotidiano transformados para a cena ou natildeo composiccedilotildees de objetos de

corpos humanos ou mesmo fragmentos de corpos humanos especificamente utilizados

adquirem estatuto de mateacuteria animaacutevel A essa heterogeneidade de formas e materiais alia-se

a colaboraccedilatildeo voluntaacuteria e especiacutefica de algueacutem que insere em contexto espetacular essas

formas num ato relacional natildeo obrigatoriamente manipulativo de transformaccedilatildeo dos

significados originais do material utilizado para o interior de uma cena teatral Este seria o

animador o ator-manipulador ou simplesmente o ator

Esta tese encerra ateacute certo ponto uma discussatildeo que envolve o entendimento da

funccedilatildeo e da definiccedilatildeo desse ator encarregado e preparado (ou natildeo) para apresentar o boneco

ou objeto num contexto teatral O termo manipulaccedilatildeo que se encontra com certo destaque no

tiacutetulo cumpre uma provocaccedilatildeo acerca do entendimento do ato de apresentar o boneco teatral

(manipular) e do artista encarregado dessa funccedilatildeo (manipulador) Em minha dissertaccedilatildeo de

mestrado realizei uma discussatildeo aprofundada do termo e da ideacuteia de manipulaccedilatildeo

(PIRAGIBE 2007 pp 35-51) que resultaram na percepccedilatildeo de que um entendimento

meramente etimoloacutegico do termo para o contexto contemporacircneo do teatro de animaccedilatildeo pode

conduzir a uma seacuterie de equiacutevocos tanto de leitura quanto de metodologia para o trabalho

praacutetico A compreensatildeo ndash inciada na pesquisa da dissertaccedilatildeo e ampliada neste estudo ndash do ato

de apresentaccedilatildeo da forma animada como sendo uma dinacircmica relacional natildeo hierarquizada

entre ator e objeto adiciona uma provocaccedilatildeo extra ao emprego do termo manipulaccedilatildeo que se

encontra exatamente no entendimento de que o boneco se mostra em cena como resultado de

uma dinacircmica que torna indefinidas as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo entre ator e

forma

A crescente participaccedilatildeo do ator sobre a cena do teatro de animaccedilatildeo natildeo apenas sob a

forma da exposiccedilatildeo do seu trabalho manipulativo mas tambeacutem por meio da incorporaccedilatildeo agrave

cena de recursos expressivos proacuteprios que natildeo passam obrigatoacuteria e exclusivamente pela

tarefa manipulativa de fazer atuar o objeto impotildee agrave cena de animaccedilatildeo dinacircmicas de

funcionamento e leitura que natildeo correspondem mais agraves concepccedilotildees tradicionais do teatro de

bonecos entendido como modalidade espetacular especiacutefica e divorciada do restante da arte

teatral

A observaccedilatildeo das programaccedilotildees de festivais dedicados ao teatro de animaccedilatildeo e das

experiecircncias das companhias mais inquietas do atual panorama relacionado a essa linguagem

no Brasil revela um processo iniciado em meados da deacutecada de 1970 e que vem desde entatildeo

se radicalizando no sentido de expor o ator encarregado da operaccedilatildeo das formas num

movimento que explora os limites da linguagem e apresenta problemas verificaacuteveis tanto no

17

campo da teoria do teatro de animaccedilatildeo quanto para o estabelecimento de princiacutepios praacuteticos

de treinamento de artistas e construccedilatildeo cecircnico-dramatuacutergicas O ator posto agrave mostra no teatro

de bonecos aciona questotildees que se refletem tanto na construccedilatildeo da narrativa espetacular

quanto na definiccedilatildeo do que eacute e onde estaacute o boneco teatral

Enfrentar o problema da consideraccedilatildeo das funccedilotildees e efeitos do ator sobre a atual cena

do teatro de animaccedilatildeo eacute um trabalho que impede o estudioso de entender essa linguagem

teatral como algo que natildeo seja extremamente permeaacutevel agraves combinaccedilotildees de expressotildees

artiacutesticas e se afirme de fato como um mecanismo de produccedilatildeo do heterogecircneo Dessa forma

a animaccedilatildeo se apresenta como sendo um gecircnero criacutetico que se compotildee da sua proacutepria

ausecircncia Se recorrermos agrave compreensatildeo de que mesmo as mais estabilizadas modalidades de

apresentaccedilatildeo com bonecos e formas natildeo hierarquiza de maneira precisa modos de significaccedilatildeo

narrativos escultoacutericos e espetaculares podemos talvez estar muito perto de nos indagar se

animaccedilatildeo seria de fato uma modalidade espetacular ou apenas um recurso um dispositivo

linguiacutestico ou uma ferramenta de integraccedilatildeo de vontades expressivas diacutespares em meio aos jaacute

tatildeo imprecisos domiacutenios da arte teatral

Essa primeira indagaccedilatildeo ainda que levante questotildees diversas e complicadas

estabelece um ambiente fundamental para uma consideraccedilatildeo mais atenta do papel

desempenhado pelo ator na atual cena animada uma vez que seraacute sob os auspiacutecios das

heterogenias acionadas pela animaccedilatildeo que poderemos compreender que funccedilotildees e

competecircncias satildeo exercidas em sua apresentaccedilatildeo mas sobretudo indagar de maneira pode o

ator relacionar-se com o boneco de modo a fazecirc-lo atuar ou ainda fazer parte de sua

constituiccedilatildeo fiacutesico-performativa

Ainda que exista clareza quanto ao fato de o ator posto agrave mostra se constituir no

problema a ser abordado pelos estudos da animaccedilatildeo na contemporaneidade natildeo haacute evidecircncias

nem densidade de reflexatildeo que escapem agrave consideraccedilatildeo apressada de que a exposiccedilatildeo do

artista se constitui no principal traccedilo distintivo das atuais indagaccedilotildees artiacutesticas apresentadas

pelo panorama da animaccedilatildeo A hipoacutetese com a qual escolho trabalhar lida com a investigaccedilatildeo

das transformaccedilotildees que o animador posto agrave mostra propicia agrave forma animada indicando uma

nova dinacircmica de estruturaccedilatildeo do boneco e natildeo apenas a exposiccedilatildeo do ator como sendo o

foco investigativo do ambiente brasileiro de animaccedilatildeo na atualidade

Indago tambeacutem se natildeo haveria e quais seriam os desafios teacutecnico-terminoloacutegicos a

serem empregados e aprofundados para os artistas interessados em lidar com as possibilidades

transdisciplinares da cena desdobrada do teatro de animaccedilatildeo que dispotildee uma narratividade

composta e modos muacuteltiplos e simultacircneos de figuraccedilatildeo dos seus sujeitos e conduccedilatildeo da sua

18

accedilatildeo Natildeo parece que o artista de animaccedilatildeo posto agrave vista do puacuteblico revele nessa accedilatildeo

aspectos especiacuteficos de sua lida afirmando assim sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao ator de teatro Eacute

possiacutevel que sua apresentaccedilatildeo acabe por solicitar recursos de atuaccedilatildeo de modo mesmo a que

as suas competecircncias especiacuteficas revelem menos um trabalho a favor de um gecircnero teatral

especiacutefico e mais uma condiccedilatildeo atual de teatro que se desdobra em multi e

transdisciplinaridades

De um modo mais amplo pretendo que algumas dessas minhas indagaccedilotildees e lacunas

de pensamento me conduzam a empreender um estudo mais aprofundado acerca das relaccedilotildees

que o teatro contemporacircneo propotildee entre objeto e ator entre animado e inanimado e entre o

ator e a cena de animaccedilatildeo Busco assim entender as motivaccedilotildees e modos de transposiccedilatildeo

cecircnica da animaccedilatildeo entendida como linguagem Pretendo buscar entender quais limites o atual

teatro de animaccedilatildeo tem traccedilado para si mesmo de modo a entender-se como modalidade

teatral especiacutefica Mas o faccedilo suportado ndash provocado diria melhor ndash pela hipoacutetese de que a

separaccedilatildeo outrora tatildeo clara entre teatro de bonecos e teatro de atores tende a dissipar-se nas

praacuteticas nos interesses e nas motivaccedilotildees de companhias e artistas do nosso tempo clamando

assim por novas concepccedilotildees teorias e terminologia que decircem conta do que vem sendo de fato

tentado e apresentado sobretudo no que diz respeito ao panorama brasileiro do teatro de

animaccedilatildeo

Dentro de uma perspectiva mais objetiva o trabalho se encontra dividido em dois

capiacutetulos com percursos distintos e complementares O primeiro capiacutetulo parte de um estudo

das transformaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo verificado a partir da deacutecada de 1970 ateacute hoje

tendo como provocaccedilatildeo a queixa recorrente entre alguns praticantes e estudiosos do teatro de

animaccedilatildeo de que os bonecos teriam desaparecido do teatro de bonecos cedendo espaccedilo a

apresentaccedilotildees vaidosas de artistas despreparados para lidar com a linguagem Essa

provocaccedilatildeo me conduz a lanccedilar alguns olhares pontuais sobre parte do percurso histoacuterico do

teatro de animaccedilatildeo dentro do periacuteodo mencionado para em seguida buscar aplicar um novo

olhar sobre conceitos que precisam ser reavaliados frente agraves recentes transformaccedilotildees tais

como boneco teatro de bonecos e manipulador

O segundo capiacutetulo se debruccedila de modo um pouco mais detido sobre as relaccedilotildees

possiacuteveis entre objeto e ator que a cena mais recente do teatro de animaccedilatildeo tecircm suscitado A

partir de um determinado momento busco traccedilar o que resolvi chamar de campos de batalha

que seriam os lugares da praacutetica e do entendimento postas em questatildeo em meio aos jogos de

ocultaccedilatildeo e aparecimento tanto da forma quanto do ator em cena Esse capiacutetulo levanta as

19

possibilidades de significaccedilatildeo e discurso que emergem desse jogo e busca lidar com alguns

conceitos teacutecnico-conceituais que movimentam tal dinacircmica

Optou-se neste trabalho por natildeo lidar com um estudo de caso especiacutefico mas lanccedilar

matildeo de exemplos variados de espetaacuteculos e companhias que tem ocupado certa centralidade

no panorama nacional da animaccedilatildeo ao longo das uacuteltimas quatro deacutecadas Ainda que se

entenda que esta eacute uma escolha arriscada e pode conduzir a recortes imprecisos ou a

pretensotildees generalizantes entendo que um estudo das funccedilotildees e configuraccedilotildees do ator sobre a

cena brasileira de animaccedilatildeo precisa se dar agrave luz das reverberaccedilotildees sentidas em trabalhos em

diferentes companhias e que natildeo eacute possiacutevel compreender a dinacircmica de influecircncias e

tendecircncias por meio de mergulhos ndash mais densos de fato ndash em micropoeacuteticas grupais A

confianccedila de que essa tentativa pode resultar bem decorre da experiecircncia acumulada ao longo

de mais de quinze anos me dedicando como estudante do teatro de animaccedilatildeo no Brasil e como

artista integrante de algumas companhias dedicadas agrave linguagem ao longo desse tempo De

qualquer forma algumas companhias seratildeo mencionadas com frequecircncia ao longo do

trabalho e isso se deve agrave importacircncia agrave longevidade e a capacidade que essas iniciativas

artiacutesticas tiveram de agregar interesse e apresentar discussotildees sobre a linguagem com

capacidade de reverberaccedilatildeo Algumas dessas companhias satildeo o Grupo Ventoforte os

Contadores de Estoacuterias o Grupo Giramundo o XPTO a Pia Fraus a Cia Truks o Grupo

Sobrevento a PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo a Caixa do Elefante a Cia Teatro Lumbra o

Teatro Munganga e o Morfeus Teatro Satildeo citados tambeacutem alguns artistas e companhias

estrangeiros escolhidos natildeo apenas por se constituiacuterem em exemplos eloquentes para os

pensamentos desenvolvidos mas tambeacutem por apresentarem alguma presenccedila no Brasil como

participantes constantes de festivais de temporadas ou simplesmente como referecircncias

recorrentes em discussotildees Satildeo alguns desses grupos e artistas a Cie Phillipe Genty (Franccedila)

o Teatro Hugo e Inecircs (Peru Seacutervia) Stuffed Puppets (Holanda) o Muppet Show (EUA) o

Muumlmmenchanz (Suiacuteccedila) El Chonchoacuten (Argentina) Taacutebola Rassa (Espanha) e a performer

alematilde Ilka Schoumlnbein

Ao longo dos capiacutetulos estatildeo dispostas fotografias e ilustraccedilotildees que possuem o

objetivo de exemplificar e ampliar as discussotildees contidas nos capiacutetulos natildeo apenas para situar

o leitor acerca das formas e espetaacuteculos mencionados mas como maneira de inserir uma

segunda voz de discussatildeo sobre o tema tratado Optou-se por natildeo empreender anaacutelises

iconograacuteficas aprofundadas justamente com o intuito de oferecer ao leitor um panorama

amplo e relacionado de referecircncias visuais que podem por vezes desdobrar uma discussatildeo

que o texto encaminhe sob um ponto de vista mais limitado Juntamente com as imagens

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seguem tambeacutem alguns registros em viacutedeo que desempenham de maneira enriquecida a

funccedilatildeo ilustrativas das imagens mas que servem tambeacutem para demonstrar uma parcela

importante do processo de pesquisa empreendido feito a partir do emprego da tecnologia de

acesso via Internet a materiais audiovisuais que se constitui em uma fonte valiosiacutessima de

dados e natildeo pode ser ignorada pelo pesquisador

Por fim eacute importante que se mencione que as discussotildees conduzidas dentro deste

trabalho se datildeo em diaacutelogo com trecircs profissionais e pesquisadores fundamentais para a

construccedilatildeo do meu pensamento dos quais concordo e discordo alternadamente agraves vezes com

maior ou menor veemecircncia mas que satildeo contribuiccedilotildees inestimaacuteveis ao pensamento

desenvolvido ao ponto de poder afirmar que esta tese natildeo eacute senatildeo uma tentativa de diaacutelogo

com eles

Primeiramente menciono o professor doutor Valmor Beltrame cuja tese acerca da

pedagogia do ator manipulador e as reflexotildees sobre princiacutepios formativos para o animador e a

noccedilatildeo de marionetizaccedilatildeo do ator foram fundamentais e tambeacutem o professor mestre Paulo

Balardim que apresenta discussotildees profundas sobre formaccedilatildeo do ator em animaccedilatildeo e

princiacutepios de atuaccedilatildeo com o boneco

Mas eacute a partir do escrito do pesquisador e artista de animaccedilatildeo norte americano Steve

Tillis que encontrei maior reverberaccedilatildeo acerca das impressotildees que colhi por praacutetica e

observaccedilatildeo Esta tese se apoia em grande parte sobre as discussotildees por ele apresentadas no

livro Toward an aesthetic of the puppet puppetry as a thetrical art (Rumo a uma esteacutetica do

boneco animaccedilatildeo como arte teatral) por vezes elaborando discordacircncias e reflexotildees

buscando compreender as suas formulaccedilotildees no panorama do teatro brasileiro e ateacute mesmo

construindo percursos argumentativos apoiados em sua metodologia

Por isso a traduccedilatildeo do livro citado que segue em anexo agrave tese eacute mais do que a

tentativa de disponibilizar uma obra ao leitor em portuguecircs ou identificar com mais clareza

uma fonte A traduccedilatildeo do livro eacute a caracterizaccedilatildeo deste trabalho sob a forma de um diaacutelogo O

discurso de Tillis se apoacuteia no incocircmodo de perceber a perda de validade de certos preceitos

teoacutericos e praacuteticos do teatro de bonecos vistos diante das recentes ampliaccedilotildees de

possibilidades apresentadas agrave linguagem Seu iacutempeto por propor alteraccedilotildees na terminologia e

na consideraccedilatildeo de certos lugares comuns relativos agrave arte da animaccedilatildeo faz dele um

interlocutor uacutenico para as minhas indagaccedilotildees

21

2 TEATRO DE BONECOS TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO

21 Somos ainda marionetistas Uma provocaccedilatildeo

No ano de 1984 foi publicado na revista Mamulengo editada pela Associaccedilatildeo

Brasileira de Teatro de Bonecos um texto curto do entatildeo Secretaacuterio Geral da UNIMA (Uniatildeo

Internacional da Marionete) Jacques Feacutelix (1923 ndash 2006) intitulado ldquoSomos ainda

marionetistasrdquo (1984) um texto curto e incisivo sob a forma de uma lamentaccedilatildeo ndash se natildeo de

uma queixa ndash abordando uma alegada tendecircncia de desaparecimento dos bonecos nos teatros

de bonecos A brevidade do texto e sua importacircncia para este estudo justificam que este seja

aqui transcrito em sua iacutentegra

Participando como espectador por meses e semanas em Festivais de

Marionetes haacute muitos anos tenho sido fortemente atingido por uma certa

evoluccedilatildeo na apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos chamados de marionetes Digo

bem ldquochamados de marionetesrdquo porque elas desaparecem mais e mais de

nossas cenas Agora eacute muito frequente que jaacute natildeo se nos apresente um teatro

de marionetes mas sim um teatro de atores com objetos maacutescaras e algumas

marionetes ou simplesmente um puacutenico boneco com atores

Assistimos pois a espetaacuteculos hiacutebridos onde o boneco tem apenas um

pequeno espaccedilo e constantemente eacute apenas uma figuraccedilatildeo E o puacuteblico ndash

Pois bem os que decidiram por este gecircnero de espetaacuteculo assistem a uma

peccedila de teatro e nem sempre um bom teatro O espectador assim frustrado se

faz entatildeo esta pergunta

- Por que as marionetes desaparecem no momento em que se reclama

sobre ela todas as coisas Complexo de marionetista que lamenta natildeo ser

tratado de comediante Ou simplesmente que o marionetista da deacutecada de

[19]80 natildeo eacute mais um verdadeiro manipulador um verdadeiro animador ou

natildeo tem mais imaginaccedilatildeo

Penso que todos devemos refletir a respeito eacute importante sobretudo

se natildeo queremos que nossa arte desapareccedila de novo completamente como

uma raccedila desapareceu pouco a pouco do globo

O ecircxito nem sempre estaacute proporcional com a grandeza do dispositivo

cecircnico O puacuteblico ama tambeacutem os pequenos teatrinhos pensem no enorme

ecircxito alcanccedilado por Waschinski Roser Hubert e Boerwinkel Acendamos

pois nossa imaginaccedilatildeo retornemos ao manipulador e voltemos a criar juntos

o verdadeiro teatro de marionetes para a maior alegria de nosso puacuteblico que

as reclama (FEacuteLIX 1984)

A escolha de um texto de Jacques Feacutelix para ser o provocador inicial desta reflexatildeo natildeo se daacute

por acaso Aleacutem de haver sido secretaacuterio geral da UNIMA Feacutelix eacute considerado figura

fundamental no processo de vitalizaccedilatildeo e modernizaccedilatildeo das artes da marionete ao longo

seacuteculo XX tanto no que diz respeito ao seu trabalho artiacutestico junto agrave Compagnie des Petits

Comeacutediens de Chiffons (Companhia dos Pequenos Atores de Trapos) quanto no vigor da sua

reflexatildeo e atuaccedilatildeo poliacutetica para a consideraccedilatildeo do teatro de bonecos dentro do panorama das

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artes cecircnicas de seu tempo Portanto iniciar uma discussatildeo a partir de uma reflexatildeo de

Jacques Feacutelix eacute tratar de um pensamento vindo de algueacutem profundamente engajado no

movimento do teatro de animaccedilatildeo e interessado em sua modernizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo Apoacutes essa

breve advertecircncia seguimos com o raciociacutenio

Segundo Feacutelix a cena de teatro de marionetes do seu tempo renegava cada vez mais a

apresentaccedilatildeo do boneco para apresentar ldquoum teatro de atores com objetos maacutescaras e

algumas marionetes ou simplesmente um uacutenico boneco com atoresrdquo(ibid)

Feacutelix temia que o manuseio de diferentes meios expressivos sempre mediados por

uma participaccedilatildeo efetiva do ator no teatro de marionetes o precipitasse rumo a uma

tendecircncia de crescente hibridizaccedilatildeo e perda de contato com os seus principais elementos

distintivos Isto poderia assim de acordo com Feacutelix conduzir a arte do boneco por uma trilha

de descaracterizaccedilatildeo e subsequente extinccedilatildeo De modo semelhante o historiador e teoacuterico

Henryk Jurkowski se indaga se o tempo em que o ator ou o performer participa de maneira

cada vez mais proeminente em relaccedilatildeo com o boneco natildeo ldquoseraacute o fim do teatro de marionetes

enquanto gecircnero teatral propriamente ditordquo (2000 p 157) Jurkowski menciona um desgaste

nas formas tradicionais de teatro de bonecos e indica a inserccedilatildeo bem sucedida de

procedimentos de teatro de marionetes em diferentes ldquoformas de um teatro poacutes-modernordquo

Tanto Feacutelix quanto Jurkowski tributam a forja da cena heterogecircnea e desvirtuada cada um ao

seu modo a transformaccedilotildees percebidas nas relaccedilotildees do artista de animaccedilatildeo com a cena e com

o boneco Feacutelix acusa a reduccedilatildeo da presenccedila da marionete em espetaacuteculos supostamente

dedicados a ela como resultado de provaacuteveis alteraccedilotildees em interesses e competecircncias por

parte dos marionetistas aos quais indaga se perderam o orgulho pela arte e pretendem

transformar-se em comediantes se perderam o contato com a tradiccedilatildeo e a capacidade teacutecnica

necessaacuteria ao seu bom desenvolvimento ou se simplesmente lhes falta imaginaccedilatildeo

O texto deixa bastante claro que sendo o marionetista (o artista que apresenta o

boneco) a vontade que impulsiona e daacute agrave arte da marionete a sua qualidade e caracteriacutesticas

particulares eacute nas criaccedilotildees e iniciativas desses artistas que o teatro de bonecos encontra sua

forccedila de permanecircncia bem como seus impulsos de transformaccedilatildeo Para Feacutelix em que pese o

tom admoestatoacuterio de seu artigo o esforccedilo que o marionetista deve empreender no sentido de

manter vivo o teatro de bonecos se encontra intimamente relacionado ao esforccedilo de

aprimoramento de sua capacidade teacutecnica ferramenta imprescindiacutevel para a afirmaccedilatildeo do

ldquoverdadeiro teatro de marionetesrdquo (ibid)

A defesa de Feacutelix por uma determinada maneira de se apresentar o boneco como

sendo aquilo que caracteriza o teatro de bonecos ldquocomo este deveria serrdquo natildeo eacute difiacutecil notar

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repousa sobre dois elementos bastante especiacuteficos e relacionados a tradiccedilatildeo e a teacutecnica A

decadecircncia teacutecnica dos artistas de teatro de bonecos somada a descuidos com as formas e

temas tradicionais e caracteriacutesticos ao gecircnero seriam os principais fatores a incitarem um

desejo de degeneraccedilatildeo nos criadores contemporacircneos que misturam bonecos com outros

materiais expressivos tais como maacutescaras objetos e atores substituindo assim o teatro de

bonecos por um hiacutebrido que como tal natildeo corresponde agraves expectativas do puacuteblico que acorre

aos teatros para assistirem a bonecos magistralmente manipulados

Outro resultado funesto desse processo de hibridizaccedilatildeo do teatro de bonecos seria a

interferecircncia crescente do ator resultado das vaidades negligecircncias teacutecnicas e falhas criativas

dos marionetistas de hoje Assim o desaparecimento do teatro de bonecos temido por Feacutelix e

indagado por Jurkowski seria resultado do descaso por parte de criadores com as formas e os

recursos de determinadas tradiccedilotildees de teatro de bonecos Assim sendo o interesse em

cruzamentos de linguagens e em mediaccedilotildees com outras competecircncias e materiais expressivos

retira de sua arte um tipo de identidade que reside sobre o domiacutenio de certo apanhado de

competecircncias (de construccedilatildeo de manipulaccedilatildeo de apresentaccedilatildeo) que daria a um determinado

entendimento do que seria teatro de bonecos uma clara qualidade distintiva

Este primeiro momento do trabalho se propotildee a usar o texto de Feacutelix como uma

provocaccedilatildeo e partir da hipoacutetese de que a arte da marionete se sustenta e caminha tal qual o

faz o boneco sob o impulso do artista de animaccedilatildeo discutir os entendimentos de termos e

procedimentos do atual teatro de animaccedilatildeo Parte tambeacutem do entendimento de que satildeo as

capacidades as vontades discursivas e os acordos criados em cena durante o ato da

apresentaccedilatildeo pelo artista que conduzem manteacutem e transformam o que pode ser considerado

teatro de bonecos bem como as manifestaccedilotildees decorrentes de suas mudanccedilas de postura

Tambeacutem pretendo me afastar do que defende Feacutelix no sentido de acreditar que as

transformaccedilotildees na arte do boneco propostas pela dinacircmica das diferentes posturas assumidas

pelo artista animador sobretudo a partir do que vem sendo observado no panorama do teatro

de animaccedilatildeo dos uacuteltimos quarenta anos natildeo o encaminha para a degeneraccedilatildeo e a extinccedilatildeo

mas o vitaliza o insere ainda mais no panorama geral das artes cecircnicas e explora

potencialidades existentes na linguagem que ao contraacuterio de descaracterizaacute-la refaz com

novo vigor os laccedilos existentes com os seus fundamentos

O artista de animaccedilatildeo exortado a ser o defensor de uma tradiccedilatildeo de formas e temas

subordinada diretamente ao domiacutenio teacutecnico e agrave observacircncia daquilo que poderia ser chamado

de teatro de bonecos se reposiciona diante do boneco e do seu teatro As transformaccedilotildees

observadas em seus modos de interferecircncia sobre a construccedilatildeo da cena de animaccedilatildeo

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operaram de modo mais pronunciado no sentido de dar maior visibilidade agraves possibilidades

transdisciplinares inerentes ao teatro de bonecos e persistentes em seu percurso atraveacutes do

tempo Eacute mais recente no entanto as inuacutemeras formas resultantes de arranjos

multireferenciais que vecircm provocando transformaccedilotildees sobre a natureza do teatro de bonecos

e tambeacutem na maneira como este se posiciona diante do panorama mais geral das artes cecircnicas

Percebe-se tanto nas praacuteticas de algumas companhias quanto no olhar de programadores e

curadores de festivas e eventos dedicados ao teatro de animaccedilatildeo ndash ao teatro de formas

animadas ndash a atenccedilatildeo para espetaacuteculos que se posicionam de maneira um tanto problemaacutetica

no que diz respeito agrave especificidade da linguagem Um dos exemplos mais eloquentes do que

se apresenta estaacute no trabalho da companhia do artista de animaccedilatildeo encenador e coreoacutegrafo

francecircs Philippe Genty cujos espetaacuteculos ocupam verdadeiramente uma ldquozona de

indefiniccedilatildeordquo entre a danccedila o teatro a animaccedilatildeo de formas e as artes circenses (Figuras 1 e 2)

Em recente espetaacuteculo da companhia de teatro de animaccedilatildeo Pia Fraus chamado Primeiras

Rosas contos de Guimaratildees Rosa foram apresentados com o emprego de bonecos objetos

sombras materiais brutos e recursos de viacutedeo (Figuras 3 e 4) A crescente presenccedila da

animaccedilatildeo de formas em propostas de encenaccedilatildeo interessadas em produzir um campo muacuteltiplo

de possibilidades de expressatildeo ou antes a crescente consideraccedilatildeo da animaccedilatildeo de formas

como ponto de encontro de uma expressividade muacuteltipla cria para uma determinada vontade

de compreensatildeo e classificaccedilatildeo um problema decorrente da dissoluccedilatildeo das fronteiras entre as

linguagens de expressatildeo artiacutestica que a animaccedilatildeo parece conseguir operar em diversas

experiecircncias Atuar como um ldquooperador de tracircnsitosrdquo entre manifestaccedilotildees de expressividade

cecircnicas plaacutesticas e sonoras situa a modalidade espetacular teatro de animaccedilatildeo ao menos

aparentemente num lugar de absoluta indefiniccedilatildeo sem que seus limites e fundamentos

possam ser identificados de modo a dar a ver um campo expressivo claro e codificado Some-

se a isso o fato de inuacutemeras manifestaccedilotildees em teatro de bonecos encontrarem-se solidamente

apoiadas em tradiccedilotildees de formas e de temas com procedimentos e caracteriacutesticas praticados e

transmitidos com rigor

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Figura 1 Compagnie Philippe Genty La fin des terres

Fonte (httpleighgillamwordpresscom20100412phillipe-genty)

Foto Pascal Franccedilois

Figura 2 Compagnie Philippe Genty Boliloc

Fonte (httpwwwdancetalkcoilp=340)

Foto Pascal Franccedilois

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Figura 3 Pia Fraus Primeiras Rosas (As margens da alegria)

Fonte (httpwwwflickrcomphotosfabianosouza3972110212inphotostream)

Foto Fabiano Souza

Figura 4 Pia Fraus Primeiras Rosas (O cavalo que bebia cerveja)

Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)

Foto Carlos Lagoeiro

As figuras minuacutesculas operadas sobre uma mesa satildeo filmadas em tempo real e tecircm suas imagens

projetadas em angulaccedilotildees e composiccedilotildees diferentes em uma tela ao fundo do palco

27

Parece assim que se estaacute diante de um problema ou de um equiacutevoco taxonocircmico e uma

soluccedilatildeo a ser considerada para tal impasse seria a proposiccedilatildeo de outro entendimento da

animaccedilatildeo e do emprego da forma animada Pois se entendemos o teatro de animaccedilatildeo como

algo que opera tanto em manifestaccedilotildees de riacutegida codificaccedilatildeo quanto em praacuteticas de

transdisciplinaridade artiacutestica e se entendemos que nesse segundo caso essa operaccedilatildeo

funciona em favor da indeterminaccedilatildeo de uma linguagem expressiva que seja especiacutefica ou

dominante sobre a cena talvez isto sugira um deslocamento que pode ter transformado um

gecircnero que se supunha uma manifestaccedilatildeo autocircnoma (e marginal) das artes teatrais num

conjunto de teacutecnicas dispositivos esteacuteticos e operaccedilotildees integradoras que passaria a poder ser

incorporado ao instrumental posto agrave disposiccedilatildeo da encenaccedilatildeo contemporacircnea Isto pode natildeo

ser complicado de considerar se pensarmos nos objetos projeccedilotildees e corpos estaacuteticos usados

em encenaccedilotildees de Robert Wilson e Richard Foreman nos manequins de Tadeusz Kantor e

ateacute mesmo nos bonecos e cenas de mutilaccedilatildeo feitas por Gerald Thomas em espetaacuteculos como

The flash and crash days (1992) Impeacuterio das meias verdades (1993) (Figura 7 Video 1) em

que a atriz Fernanda Torres aparece com sua cabeccedila sobre uma mesa como se fizesse parte de

um assado parcialmente devorado na versatildeo de Quarteto de Heiner Muller com Ney

Latorraca e Edy Botelho e Terra em TracircnsitoQueen Liar (2007) no qual a atriz Fabiana

Giugli contracena com um boneco de luva representando o pescoccedilo e a cabeccedila de um cisne

projetada para fora de uma das paredes do cenaacuterio (Figura 8)

Cariad Astles recorda e comenta um famoso vaticiacutenio de Henryk Jurkowski

Parece portanto que o conceito do termo ldquoteatro de bonecosrdquo foi alargado

de tal forma que a noccedilatildeo de interdisciplinaridade jaacute eacute inerente a ele Henryk

Jurkowski sugeriu em seu livro Metamorfose que a arte do teatro de bonecos

estaria possivelmente se tornando obsoleta em sua utilizaccedilatildeo no teatro vivo e

na relaccedilatildeo com outras formas artiacutesticas e que certamente o corpo do boneco

tornou-se diferente (ASTLES 2008 p54)

Para Jurkowski a anexaccedilatildeo do teatro de bonecos por parte do que ele chama de ldquoteatro

vivordquo eacute um caminho para a obsolescecircncia Astles jaacute entende esse teatro agrave luz dos cruzamentos

expressivos que propicia

A suposiccedilatildeo de uma dupla consideraccedilatildeo do teatro de bonecos como modalidade

espetacular autocircnoma e como linguagem incorporada ao teatro contemporacircneo eacute uma das

indagaccedilotildees que assombra este trabalho tendo como ponto de vista a consideraccedilatildeo da

animaccedilatildeo como ferramenta operativa de conjunccedilotildees transdisciplinares O estudo de cenas e

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Figura 5 Robert Wilson The CIVIL warS

Fonte (http123nonstopcompicturesRobert_Wilson_and_the_Civil_Wars)

Foto New Yorker Films

Figura 6 Tadeusz Kantor The dead class

Fonte (httpperfectionofperplexionwordpresscom20101102nyunnom-15)

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Figura 7 Impeacuterio das meias verdades (atriz Fernanda Torres)

Fonte (httpwwwfotologcombrleo221052164848)

Viacutedeo com esta cena disponiacutevel em lthttpvimeocom11676144gt (Viacutedeo 1)

Figura 8 Terra em tracircnsito (atriz Fabiana Giugli)

Fonte (httpgersonstevesbloguolcombrarch2006-10-01_2006-10-31html)

30

procedimentos artiacutesticos de companhias dedicadas ao teatro de animaccedilatildeo em atividade no

Brasil pretende demonstrar como a animaccedilatildeo pode estar presente em procedimentos de

encenaccedilatildeoainda que natildeo se possa reconhecer de imediato dois de seus elementos nucleares o

boneco e o manipulador Uma vez que o atual teatro de animaccedilatildeo natildeo anima apenas bonecos

mas outros elementos constitutivos da cena teatral tais como o espaccedilo a luz objetos e

materiais variados o enredo a accedilatildeo os atores ndash e partes de atores ndash decorre desse acreacutescimo

de possibilidades de formas animaacuteveis uma ampliaccedilatildeo consideraacutevel nos diferentes

procedimentos de manipulaccedilatildeo Pois seraacute exatamente no ato de manipular e nas maneiras

como esse ato ndash e essa postura relacional com a mateacuteria da cena ndash integra heterogeneidades

que se fundaraacute a vocaccedilatildeo interdisciplinar do teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo tendo como

local de articulaccedilatildeo um tipo de artista que participa do evento espetacular com a sua presenccedila

com o seu potencial expressivo e com a sua subjetividade do mesmo modo como participa

com suas habilidades manipulativas

Este trabalho se potildee a investigar o entendimento de que as principais transformaccedilotildees

verificadas na arte da animaccedilatildeo brasileira das uacuteltimas quatro deacutecadas natildeo apenas entendem o

artista de animaccedilatildeo como dinamizador dos questionamentos presentes em procedimentos

investigativos da linguagem da animaccedilatildeo mas tambeacutem aproveitaram suas diferentes maneiras

de participaccedilatildeo como um provocador de temas para o atual teatro de formas animadas Da

mesma forma o trabalho buscaraacute natildeo perder a atenccedilatildeo sobre a potecircncia de significaccedilatildeo da

forma animada a partir da compreensatildeo de que as recentes transformaccedilotildees verificadas no

entendimento e na apresentaccedilatildeo da mesma captam e transfiguram o ator e seu corpo ateacute um

modo de percepccedilatildeo que transforma atores em objetos no entendimento da audiecircncia

Como esforccedilo inicial recuo dez anos antes da missiva de Feacutelix a uma ediccedilatildeo anterior

da mesma revista Mamulengo do ano de 1974 A revista apresenta dois artigos que merecem

alguma atenccedilatildeo Natildeo apenas por seus conteuacutedos mas pelo fato de haverem sido publicados

naquela que era a publicaccedilatildeo brasileira mais importante em teatro de animaccedilatildeo da eacutepoca

editada e chancelada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos mas tambeacutem pela

maneira como esses artigos faziam reverberar o panorama momentacircneo do teatro de bonecos

no Brasil

O primeiro dos artigos mencionados foi escrito pelo escultor e artista de animaccedilatildeo

sueco Michael Meschke que em um texto com um teor aberto de criacutetica poliacutetica defende a

livre experimentaccedilatildeo em teatro de bonecos como meio de conferir agrave proacutepria linguagem mais

projeccedilatildeo e reputaccedilatildeo Meschke exorta seus leitores especializados a aprofundarem a discussatildeo

objetivando a definiccedilatildeo seacuteria de uma esteacutetica para a arte do boneco Tal discussatildeo seria

31

importante para a derrubada de preconceitos nos campos da criaccedilatildeo da teacutecnica e da proacutepria

consideraccedilatildeo dos fundamentos da linguagem Juntamente a essa necessidade Meschke evoca

o espiacuterito criador e o desejo de comunicaccedilatildeo do artista como elemento de fundamental

importacircncia para os percursos de compreensatildeo e transformaccedilatildeo da arte da animaccedilatildeo Em suas

palavras

A forma deve estar subordinada ao exato ideal que um artista deseja

comunicar ao seu semelhante E aprofundando mais a esteacutetica em puppetry3

acaba significando eacutetica exemplificada pela nossa escolha de repertoacuterio

(MESCHKE 1974 p 7)

Ou seja para Meschke a vontade de expressatildeo do artista de animaccedilatildeo ainda que natildeo seja

exatamente um componente da definiccedilatildeo do que seria o teatro de bonecos natildeo pode ser

tolhido por cacircnones esteacuteticos riacutegidos que carecem ser reavaliados De fato seriam esses

desejos e seus meios de satisfaccedilatildeo que lanccedilariam as bases para se pensar o teatro de bonecos

em termos mais precisos ou ateacute mesmo renovados

E se aquele era de fato o ldquotempo de se erguer uma laacutepide sobre a confusa filosofia

titiriteira de falsas definiccedilotildees e presunccedilotildees de exclusividaderdquo (id p8) Meschke natildeo evita a

polecircmica ao montar uma lista de permissotildees muitas das quais evocando as praacuteticas que

despertaram o desgosto de Feacutelix

Portanto estabeleccedilamos que natildeo eacute crime

misturar bonecos com atores vivos

usar bonecos muito grandes ou muito pequenos

misturar bonecos com maacutescaras com danccedila oacutepera drama cinema

music-hall muacutesica pop etc

reduzir bonecos a atores de tamanho menor para efeito de perspectiva

gostar de Punch amp Judy de Kasper de Guignol ou qualquer nome

tenham

mostrar ou natildeo mostrar o manipulador e sua teacutecnica durante o

espetaacuteculo

trabalhar meses para atingir a perfeiccedilatildeo esteacutetica de um boneco ou usar

um foacutesforo como boneco (id p10)

O que haacute de mais interessante no texto de Meschke eacute o seu caraacuteter inclusivo Natildeo se trata de

uma condenaccedilatildeo das formas tradicionais de teatro de bonecos para em seu lugar exaltar a livre

experimentaccedilatildeo e a reforma do boneco teatral A insistecircncia na constituiccedilatildeo de uma esteacutetica

3 A traduccedilatildeo do artigo de Meschke natildeo assinada prefere manter em inglecircs o termo puppetry que possui

transposiccedilatildeo complicada para o portuguecircs Pode-se entender puppetry de maneira mais ampla como sendo a

arte do boneco em diversas de suas feiccedilotildees incluindo o trabalho de modelagem e construccedilatildeo ateacute aspectos de

treinamento dramaturgia e apresentaccedilatildeo sem deixar de lado os contextos tradicionais de onde emergem as

diversas manifestaccedilotildees dessa linguagem espetacular Uma traduccedilatildeo simples para o portuguecircs seria teatro de

bonecos (natildeo se usam termos bonecaria ou bonecada) devido o variado escopo de aproximaccedilotildees e funccedilotildees que

o termo sugere No entanto cabe aqui a duacutevida quanto agrave eficaacutecia do termo motivada pela incerteza se as

manifestaccedilotildees artiacutesticas do tipo de boneco por ele evocado seriam de fato restritas ao teatro

32

para o teatro de bonecos tem como finalidade principal encontrar os princiacutepios que regem as

manifestaccedilotildees entendidas de uma forma ou de outra como tal propondo uma reflexatildeo acerca

de fundamentos que definam e harmonizem suas variadas formas

Seguindo adiante na mesma ediccedilatildeo de Mamulengo deparamo-nos com outro texto uacutetil

para o entendimento do contexto que suscitou a referida carta de Feacutelix Trata-se de uma

reflexatildeo sobre experimentaccedilotildees da companhia francesa Theacuteacirctre sur le fil feita por Charles

Monastier acerca do uso da manipulaccedilatildeo de bonecos e objetos em cena com manipuladores agrave

vista O texto de Monastier eacute proacutedigo em apontamentos e reflexotildees acerca de modos e

implicaccedilotildees do emprego do animador agrave vista sendo que duas das questotildees apontadas parecem

ser especialmente caras ao tipo de reflexatildeo que tento encadear no momento A primeira

questatildeo eacute uma informaccedilatildeo que apesar de apresentar acuidade questionaacutevel natildeo deixa de

apontar para questotildees importantes Monastier sugere uma data aproximada para a expansatildeo do

emprego do animador agrave vista em praacuteticas na Europa quando em 1974 declara que ldquohaacute mais

de quinze anos ele [o boneco] natildeo evolui mais em campo fechadordquo (MONASTIER 1974

p13) Assim de acordo com Monastier desde finais da deacutecada de 1950 pelo menos jaacute se

viam iniciativas artiacutestica em teatro de bonecos nas quais o boneco se apresentava fora da

estrutura do castelet4 levando o artista de manipulaccedilatildeo a aparecer diante do puacuteblico Essa

dataccedilatildeo eacute de certa maneira corroborada por Jurkowski que situa na mesma deacutecada de 1950 o

iniacutecio da ldquoruptura do teatro de bonecos com sua poeacutetica tradicionalrdquo (JURKOWSKI 2000

p56) Essa dataccedilatildeo parece ndash e de fato eacute ndash bastante questionaacutevel sobretudo se a apoiarmos

exclusivamente sobre o advento do manipulador agrave vista Eacute possiacutevel que o momento indicado

por Monastier e Jurkowski tenha de fato visto o surgimento de um conjunto de fatores dos

quais a exposiccedilatildeo do manipulador pode ser tanto causa como consequecircncia que levou

algumas companhias e artistas a fazer um teatro de bonecos capaz de indagar com maior

virulecircncia as concepccedilotildees e os meios de criaccedilatildeo e produccedilatildeo anteriores No entanto o mero

emprego do operador de bonecos agrave vista do puacuteblico eacute tatildeo antigo quanto o proacuteprio teatro de

bonecos seja no ocidente ou no oriente

Mais adiante em seu artigo Monastier menciona o modo como a plateia percebe o

boneco operado por artistas postos a vista

Agrave confissatildeo do homem que age corresponde a confissatildeo da materialidade do

boneco ele eacute um objeto e essencialmente mateacuteria bruta inerte isolada Sua

significaccedilatildeo nasce da intenccedilatildeo e do gesto do manipulador Havendo um

homem haveraacute certamente um objeto (idem)

4 A casinha ou aparato de ocultaccedilatildeo e apoio para cenaacuterios empregado mais usualmente para bonecos de luva No

Brasil pode adquirir os nomes de empanada ou tolda

33

Se isso eacute verdade entatildeo a apariccedilatildeo do ator operador5 de bonecos sobre a cena parece se dar

com a forccedila de um balde de aacutegua fria sobre as expectativas da plateia de maravilhar-se com a

impressatildeo de vida que se confere a figuras moacuteveis De fato se retornarmos agraves queixas de

Feacutelix podemos perceber que o que se propotildee aqui eacute uma alteraccedilatildeo na maneira como bonecos

satildeo percebidos em cena No teatro de bonecos acerca do qual Monastier discorre deixamos de

nos encantar com a impressatildeo de vida projetada sobre objetos para encantarmo-nos com outra

coisa ou natildeo nos encantarmos em absoluto No entanto eacute possiacutevel mesmo que haja potecircncias

a serem explicadas a respeito da exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo de objeto do boneco teatral

O trabalho do Theacuteacirctre sur le Fil companhia mencionada por Monastier e fundada por

ele e sua mulher Colette Monastier notabilizou-se como pode ser verificado em uma

passagem pelo Brasil no ano de 1973 pelo emprego de figuras bidimensionais apoiadas sobre

dois fios presos em paralelo atravessando a frente do palco e como os atores manipulando as

formas agrave vista do puacuteblico (Figura 9) Eacute claro que a percepccedilatildeo do caraacuteter de objeto nos

elementos trabalhados pelo Theacuteacirctre sur le Fil encontram-se mais em evidecircncia sobretudo se

percebidos em conjunto com o artista No entanto natildeo parece que o emprego do operador

aparente usado em meio a um processo de realce do caraacuteter de objeto do boneco perca em

validade se nos dispusermos a buscaacute-lo em trabalhos nos quais as formas dos bonecos se

aproximam das de figuras vivas encontradas na natureza Um exemplo que se afasta bastante

dos materiais e formas do Theacuteacirctre sur le Fil e por isso mesmo interessante eacute o trabalho do

artista de bonecos de fios Phillip Huber6(Figura 10) que em geral se apresenta de peacute sobre o

palco desprovido de cenaacuterio (mas iluminado de modo a enfatizar o boneco) e faz com que

variados tipos de cabareacute apresentem seus nuacutemeros individuais apoiados diretamente sobre o

chatildeo do palco Um de seus personagens mais populares eacute o do cachorrinho Taffy que

Curioso notar o quanto a exibiccedilatildeo do manipulador para os casos ateacute entatildeo abordados eacute

capaz de produzir uma percepccedilatildeo em movimento uma maneira de entender o boneco em

conjunccedilatildeo com diversos outros elementos que por vezes podem ateacute mesmo deixar de lado o

5 A escolha pouco usual do termo operador em lugar de termos mais usuais como manipulador animador

marionetista ou bonequeiro para designar o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco se daacute em primerio

lugar por empreacutestimo a Steve Tillis (1992) e se daacute a partir da necessidade de um emprego terminoloacutegico que

desse conta de identificar o tipo de artista abordado em meio a um questionamento acerca da pertinecircncia das

palavras mais usadas para identifica-lo Natildeo se trata de uma nova proposta de definiccedilatildeo e sim de um ldquotermo de

passagemrdquo que pudesse dar conta da funccedilatildeo abordada em meio a um exerciacutecio de discussatildeo de uma

terminologia em revisatildeo 6 O espetaacuteculo Huber Marionetes foi assistido em 2006 no teatro SESI da Av Paulista como parte das atraccedilotildees

do Festival SESI Bonecos do Brasil e do Mundo daquele ano

34

Figura 9 Theacuteacirctre sur le fil Oiseau Vole

Fonte (AMARAL Ana Maria Teatro de formas animadas Satildeo Paulo Edusp 1993 (Texto amp Arte 2) P148

Foto Monastier

Figura 10 Phillip Huber no Festival de Teatro de Bonecos de

Canela 2010

Fonte

(httpwwwipernitycomdoccaroani|RCA3Boff3D162r[vi

ew]=1)

Foto Carlos Roani

Figura 11 Taffy (Phillip Huber)

Fonte

(httpwwwpuppetrymuseumorgIPM-

exhibit12html)

35

proacuteprio boneco e que propotildee uma leitura desse sujeito da cena de modo a natildeo o estabilizar

numa forma ou num lugar cecircnico

Essa mesma percepccedilatildeo dinacircmica pode ser provocada por espetaacuteculos de companhias

que praticam o que se convencionou chamar de manipulaccedilatildeo direta7 por exemplo Peer Gynt

da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo nas quais os movimentos dos bonecos imitam de modo

intencional e com certo apuro o gesto humano Os manipuladores postos agrave vista do puacuteblico

tendem a criar uma narratividade dividida na qual a histoacuteria dos bonecos se soma agrave accedilatildeo dos

manipuladores de modo a produzir uma narrativa composta Essa mesma narrativa pode por

meio da qualidade da accedilatildeo dos atores que operam os bonecos fazer esses niacuteveis coincidirem

eventualmente A inevitaacutevel identificaccedilatildeo por parte do puacuteblico da personagem representado

pelo boneco com os manipuladores sobretudo aquele responsaacutevel pela vocalizaccedilatildeo da

personagem contribuem para tornar ainda mais complicada a tentativa de se entender a

personagem como uma forma cecircnica individualizada (Figura 12) Para o espectador entatildeo as

personagens mostradas na montagem transitam entre as diferentes possibilidades apresentadas

pela encenaccedilatildeo ndash ator boneco combinaccedilotildees entre atores bonecos e demais objetos de cena ndash

e a sua proacutepria imaginaccedilatildeo liberada que estaacute pela vertiginosa gama de modos de

entendimento A montagem em questatildeo se relaciona com a temaacutetica do boneco tornado coisa

diante da presenccedila do operador agrave mostra pois que lida com certa alternacircncia de usos de alguns

dos bonecos da peccedila ndash sobretudo aqueles que representam o protagonista do poema ibseniano

ndash entre a sugestatildeo de vida apresentada por meio de uma manipulaccedilatildeo esmerada e certa

qualidade indicativa como quando pousa inerte agrave frente ou sobre um dos ombros do ator que

o vocaliza para autorizaacute-lo a falar em seu nome De fato o Peer Gynt da PeQuod atende de

modo mais completo agraves indicaccedilotildees de Monastier quando ativa poeticamente determinados

objetos ao combinaacute-los aos atores para criar elementos percebidos como objetos compostos e

natildeo como atores caracterizados Assim ocorre com os convidados da festa de casamento

cujas cabeccedilas satildeo sacos de pano sem expressotildees faciais (Figura 13) assim ocorre com a noiva

abandonada montada de um grande veacuteu que pende do alto do teatro recobrindo a atriz que daacute

a entrever sua nudez por meio das camadas de renda franzida (Figura 15) assim ocorre com o

belicoso personagem Aslak um roupatildeo de lutador de boxe vestido por um ator posicionado

constantemente de costas para a plateia (Figura 14)

7 Esta seria uma forma de manipulaccedilatildeo de bonecos antropomoacuterficos em escala reduzida sem o emprego de varas

ou fios com os manipuladores podendo ser ateacute trecircs por boneco posicionados atraacutes dos bonecos Geralmente eacute

praticada sobre um balcatildeo Mas exemplos haacute como o de alguns espetaacuteculos do Grupo Contadores de Estoacuterias

nos quais os bonecos satildeo operados diretamente sobre o chatildeo do palco

36

Provocar a percepccedilatildeo do boneco como objeto pode assim estimular uma ampliaccedilatildeo de

possibilidades de leitura abrir ao puacuteblico a chance de participar de sua construccedilatildeo por meio

de escolhas particulares Ou como apresenta Monastier

Para noacutes natildeo se trata tanto de narrar uma histoacuteria a partir de elementos preacute-

construiacutedos como de oferecer propostas de animaccedilatildeo de figuraccedilatildeo de

situaccedilatildeo ldquosem nada que pese ou que se exibardquo As sugestotildees permanecem

em suspenso [] Trata-se de em vez de apresentar uma coisa acabada

propor o sorriso inacabado de Buda cabe a cada um completaacute-lo se quiser

com suas proacuteprias riquezas (idem)

O objeto visto como coisa aliado agrave visibilidade do artista que o opera ou ldquoque lhe daacute

significadordquo permite entatildeo que se apresentem enredos e sujeitos ainda por serem

completados insere lacunas que retiram a linearidade da apresentaccedilatildeo teatral e transforma a

figuraccedilatildeo dos sujeitos da narrativa em propostas e aleacutem disso propotildee uma percepccedilatildeo do ator

como sendo o objeto ou parte do objeto que atua Mas de que maneira isso ocorre

Prosseguimos investigando as transformaccedilotildees na arte do boneco tendo como ponto de

partida o problema apontado por Feacutelix Creio que neste momento para poder compreender

melhor os motivos que suscitaram a existecircncia do nosso ponto de partida argumentativo seraacute

importante antes de nos debruccedilarmos sobre os problemas e as transformaccedilotildees conceituais das

noccedilotildees de boneco teatral e teatro de bonecos olhar de relance para o panorama do teatro de

bonecos brasileiro agrave eacutepoca da admoestaccedilatildeo de Feacutelix de modo a buscar entender quais seriam

as manifestaccedilotildees e materiais que estariam sendo considerados ou desconsiderados como

teatros de bonecos e bonecos teatrais

37

Figura 12 PeQuod Peer Gynt ndash Desvio de foco (atores Maria Rego Barros Mario Piragibe e Marcio

Newlands)

Fonte DVD Peer Gynt (2006)

A divergecircncia de foco do ator que vai do boneco em direccedilatildeo ao puacuteblico durante a fala produz uma

duplicaccedilatildeo da percepccedilatildeo da personagem

Figura 13 PeQuod Peer Gynt ndash Festa de

casamento (atores Miona Vilardo Marcio

Nascimento Marcio Newlands e Liliane Xavier)

Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)

Figura 14 PeQuod Peer Gynt ndash Aslak (atores

Mario Piragibe Maria Rego Barros Liliane Xavier e

Marcio Newlands)

Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)

Figura 15 PeQuod Peer Gynt ndash A Noiva (atriz Maria Rego Barros)

Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)

38

22 Visotildees de um panorama

O ano de 1974 ano de publicaccedilatildeo dos artigos de Monastier e Meshke insere no

repertoacuterio teatral brasileiro uma montagem que lidou com absolutamente todos os pontos

centrais de argumentaccedilatildeo dos dois artigos mencionados E que de fato possui para o teatro de

animaccedilatildeo e para o teatro infantil feitos no Brasil uma importacircncia que extrapola em muito o

atendimento agraves demandas poeacuteticas apresentadas

A estreacuteia de Histoacuteria de Lenccedilos e ventos em maio daquele ano foi ldquoum divisor de

aacuteguas no teatro infantil feito no Rio de Janeiro e tambeacutem no paiacutesrdquo (VELLINHO 2009 p31)

A peccedila foi a primeira de um grupo teatral receacutem-formado dirigido por Ilo Krugli apoacutes um

retorno traumaacutetico do Chile quando o trabalho com uma companhia em Santiago foi

brutalmente interrompido pelo golpe pinochetista O retorno do argentino Krugli ao Brasil

onde jaacute possuiacutea um trabalho em artes e educaccedilatildeo consolidado foi marcado pelo trauma do

golpe e pelo encontro com uma realidade local igualmente violenta

Voltando do Chile com a sensaccedilatildeo do drama vivido a destruiccedilatildeo de sonhos

e de vidas um ator de meu grupo de teatro em Santiago que se chamava

Manos que quer dizer matildeos e irmatildeos um ator havia morrido e tambeacutem

tinham morrido os sonhos e ateacute um presidente eleito pelo voto direto do

povo [] Aqui voltando eu natildeo tinha grupo natildeo tinha nada Meu trabalho

com o grupo que tinha criado uma escola ndash o NAC ndash tinha acabado meu

trabalho de bonecos que era o Teatro de Ilo e Pedro8 tinha acabado soacute tinha

algumas poucas pessoas em volta que eram alunos ou companheiros de

aventura de vida e de vivecircncias como o Beto Coimbra o Caiacuteque [Botkay]

a Siacutelvia Aderne E assim em doze dias nasce explosivamente para levar a

um festival no Paranaacute o espetaacuteculo E nasce o grupo9

A maneira explosiva como o espetaacuteculo eacute montado combinado ao emprego de uma

esteacutetica artesanal e de ecircnfase sobre o trabalho das matildeos aplicada por Krugli em experiecircncias

anteriores como A histoacuteria de um barquinho de 1972 faz de Histoacuteria de Lenccedilos e ventos um

espetaacuteculo que prima pela invenccedilatildeo criando personagens com pedaccedilos de papel lenccedilos e

outros objetos livremente manuseados pelos atores

A histoacuteria trata de um pequeno lenccedilo azul de nome Azulzinha que levado pelo Vento

da Noite acaba prisioneira do Rei Metal Mau em sua fortaleza na Cidade Medieval Outro

personagem um pedaccedilo de jornal chamado Papel empreende uma jornada para resgatar

Azulzinha passando por perigos e ateacute mesmo a sua proacutepria imolaccedilatildeo ateacute retornar com o

lencinho ao quintal onde a histoacuteria comeccedilou

8 Ilo se refere aqui ao grupo que formou em parceria com o artista plaacutestico e ator argentino Pedro Turon

Dominguez chamado Teatro Ilo e Pedro 9 Programa do evento 10 anos de Ventoforte p 34

39

Esse enredo aparentemente simples mas que eacute repleto de citaccedilotildees e provocaccedilotildees ao

ambiente poliacutetico do momento10

eacute encenado com grande liberdade discursiva na qual os

atores empunham os objetos para atribuir-lhes falas e accedilotildees apresentam canccedilotildees e transitam

entre personagens e narradores de modo a apresentarem uma poeacutetica que se afasta de

qualquer expectativa mais usual para a apreciaccedilatildeo de teatro de bonecos de modo a propor ao

objeto em cena um estatuto surpreendente

Um dos (diversos) momentos do espetaacuteculo onde esse estatuto era exercido com

grande clareza era o momento em que se construiacutea o dragatildeo que levaria Papel agrave Cidade

Medieval para o confronto final com o rei Metal Mau Os lenccedilos aprisionados pelas forccedilas do

vilatildeo eram libertados pelos atores e com eles formava-se um dragatildeo com os panos e os atores

que os empunhavam ajudados por parte da plateia chamada a participar desse momento11

A construccedilatildeo de elementos momentaneamente criadas a partir de objetos disponiacuteveis

muitos deles industrializados que se refuncionalizam dentro do espetaacuteculo mediante a

necessidade da narrativa recriam a percepccedilatildeo do objeto que apesar de afirmar a sua

materialidade em seus aspectos intriacutensecos e em sua polivalecircncia semacircntica se abre em

diversas possibilidades de significaccedilatildeo produzindo assim para o espectador um novo estado

de surpresa que natildeo se relaciona mais com o espanto de uma aparecircncia de vida imaginada

Ainda ao tratar com os materiais como trata Krugli lanccedila questotildees interessantes sobre o

conceito de boneco teatral de modo a clarear ao leitor de certa forma um pouco da intenccedilatildeo

de Feacutelix na carta cuja menccedilatildeo abre este trabalho ao lamentar-se da ausecircncia de bonecos no

teatro de bonecos Parece que de certa forma o que Feacutelix chama de boneco natildeo eacute exatamente

a mesma coisa que chamaria Krugli ou mesmo Monastier

Malgrado a necessidade praacutetica de montar o espetaacuteculo em pouco tempo e com poucos

recursos disponiacuteveis a opccedilatildeo de Krugli pelo investimento em uma poeacutetica de despojamento e

sugestatildeo em oposiccedilatildeo ao emprego de recursos mais notadamente figurativos natildeo se encontra

apenas condicionada a esses fatores sendo tambeacutem a expressatildeo de uma vontade esteacutetica

Provas do que se afirma estatildeo no fato de que diversos dos recursos referentes agrave composiccedilatildeo

das personagens e do manuseio de materiais empregados em Lenccedilos e ventos jaacute se

encontravam em um espetaacuteculo anterior A histoacuteria de um barquinho (VELLINHO 2009 p

34) Outro elemento que trata do uso dos lenccedilos e papeacuteis como uma escolha esteacutetica e natildeo

10

Uma anaacutelise detalhada de passagens e declaraccedilotildees que explicam o teor poliacutetico da peccedila pode ser encontrada

em VELLINHO 2008 pp 72-89 11

Uma descriccedilatildeo mais detalhada desse momento da peccedila encontra-se em VELLINHO 2009 pp84-5

40

apenas uma soluccedilatildeo praacutetica encontra-se justamente no iniacutecio da peccedila Vellinho descreve esse

momento nos seguintes termos

Na verdade haacute um outro espetaacuteculo de bonecos que deveria ser

apresentado Jaacute havia uma histoacuteria pronta para ser contada Poreacutem Manuel e

Manuela protagonistas dessa histoacuteria depois de danccedilas perseguiccedilotildees e gags

tiacutepicas do tradicional teatro de bonecos decidem encerrar-se em uma mala

[] finalizando bruscamente o evento teatral O motivo dado pelos dois

bonecos eacute o de que eles descobriram que haacute atores de verdade que iratildeo

compartilhar o espetaacuteculo com eles Diante disso a dupla indignada resolve

abortar a apresentaccedilatildeo trancando-se na mala (VELLINHO 2009 p 48)

Apoacutes a recusa dos bonecos em participar do espetaacuteculo os atores passam a se indagar o que

fazer e comeccedilam a retirar lenccediloacuteis e papeacuteis de lugares diferentes do espaccedilo de representaccedilatildeo

ldquocomo um jogo maacutegicordquo (KRUGLI 2000) e assim a linguagem da peccedila se estabelece diante

do puacuteblico afirmando os materiais empregados como elementos potentes para a representaccedilatildeo

em curso Ainda ao apresentar os lenccedilos em substituiccedilatildeo aos bonecos de luva que compotildeem

seu iniacutecio a peccedila dota esses materiais de um estatuto que os diferencia de partes de cenaacuterio

figurino ou mesmo de adereccedilos Os lenccedilos representam personagens da trama contada

aproximando-se assim muito mais do boneco teatral ndash ou de partes de bonecos teatrais ndash do

que de elementos indicativos empunhados pelos atores

Assim Histoacuteria de Lenccedilos e ventos empresta bastante clareza ao tipo de indagaccedilatildeo que

venho fazendo a respeito do suposto desaparecimento dos bonecos do teatro de bonecos natildeo

apenas devido ao evidente diaacutelogo que estabelece com os artigos de Meschke e Monastier ndash e

de certa forma de Feacutelix ndash mas tambeacutem pelo efeito que o espetaacuteculo causa no panorama do

teatro no Brasil adquirindo grande popularidade e fazendo escola em meio a outros artistas

interessados tanto em teatro para crianccedilas como em teatro de bonecos Miguel Vellinho

menciona as diversas criacuteticas favoraacuteveis ao espetaacuteculo aleacutem de haver conseguido dois feitos

dignos de nota O primeiro sendo a publicaccedilatildeo de um texto dedicado agrave peccedila pelo criacutetico Yan

Michalski que sendo ele o responsaacutevel pelo material dedicado a teatro para adultos do Jornal

do Brasil dimensiona a raridade do gesto sobretudo se levarmos em conta a proverbial

tendecircncia a se considerar o teatro para crianccedilas como uma vertente inferior da arte teatral12

A

segunda conquista foi uma recomendaccedilatildeo (em ldquocaraacuteter extraordinaacuteriordquo) ao espetaacuteculo por

parte da ACCT ndash Associaccedilatildeo Carioca de Criacuteticos de Teatro devido agrave sua excelecircncia e

competecircncia

12

Em seu livro O Teatro sob pressatildeo Michalski aponta Histoacuteria de Lenccedilos e ventos como sendo ldquouma pequena

obra primardquo em meio a uma temporada teatral (1974) onde ldquoo melhor forma os cenaacuteriosrdquo (MICHALSKI 1989

p 60-1)

41

Figura 16 Teatro Ventoforte Histoacuteria de lenccedilos e ventos (ator Ilo Krugli)

Fonte (CEDOCFunarte apud VELLINHO 2008)

Figura 17 TeatroVontoforte A histoacuteria de um barquinho Personagens Pingo I e Aranha

Fonte Programa Ventoforte 10 anos

As personagens dos espetaacuteculos do Ventoforte satildeo construiacutedos a partir de materiais brutos como papel tecidos

e objetos (tais como o guarda-chuva da Figura 16) A presenccedila dos atores eacute importante na configuraccedilatildeo das

personagens como se vecirc na Figura 17 em que as matildeos dos atores satildeo ou compotildeem as formas animadas

42

Os espetaacuteculos seguintes do grupo Ventoforte como De Metade do Caminho ao Paiacutes do

Uacuteltimo Ciacuterculo e As quatro chaves acompanharam os mesmos impulsos esteacuteticos expressos

em Lenccedilos e ventos Quando parte da companhia mudou-se do Rio de Janeiro para Satildeo Paulo

alguns integrantes remanescentes montaram o grupo Hombuacute que com espetaacuteculos como A

gaiola de Avatsiuacute e Fala palhaccedilo permaneceram montando espetaacuteculos com convivecircncias

entre bonecos atores e objetos

Deve-se nesse ponto deixar claro que Histoacuteria de Lenccedilos e ventos serve para esta

pesquisa como um ponto de localizaccedilatildeo de uma experiecircncia bem-sucedida e de ampla

repercussatildeo no panorama brasileiro de teatro de animaccedilatildeo capaz de despertar outras

iniciativas e provocar discussotildees acerca das possibilidades de emprego do boneco teatral

Seria precipitado e leviano buscar na peccedila algo como um marco histoacuterico para o emprego de

teacutecnicas e linguagens e ateacute mesmo redutor buscar reconhecer o valor da peccedila a partir de uma

perspectiva de desbravamento ou ineditismo O que suscitou no trabalho do Ventoforte o seu

poder de levantamento de questotildees e modelamento parcial do panorama do teatro para

crianccedilas e do teatro de bonecos feito no Brasil foi a qualidade de suas ideias e de sua poeacutetica

cecircnica capazes de dialogar em niacutevel direto com movimentos artiacutesticos e poliacuteticos em

processo dentro e fora do paiacutes ao mesmo tempo em que apresentavam de modo eficiente

alternativas para a forma de dispor sobre a cena o artista de animaccedilatildeo e o boneco teatral

Da mesma maneira eacute impreciso apontar o trabalho do Ventoforte como uma voz

solitaacuteria em meio a um panorama de todo aacuterido do teatro de bonecos feito no Brasil Um ano

antes da estreacuteia de Lenccedilos e ventos em 1973 eacute fundada a Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de

Bonecos ndash ABTB criada segundo nos conta Humberto Braga por um desejo maior de

integraccedilatildeo entre artistas e companhias brasileiras notada apoacutes experiecircncias colhidas pelas trecircs

ediccedilotildees anuais sucessivas do Festival de Marionetes e Fantoches do Rio de Janeiro (1966 a

1968) organizadas por Clorys Daly e Claacuteudio Ferreira (BRAGA 2007 p 253 amp 2009 p113

MAMULENGO 1973 p 11-3) Da criaccedilatildeo da associaccedilatildeo decorreu no mesmo ano a

primeira ediccedilatildeo da revista Mamulengo dedicada a informes da ABTB a divulgar material das

companhias brasileiras em atividade e a publicar artigos reflexivos e informativos de artistas

brasileiros e estrangeiros Em seu segundo ano de publicaccedilatildeo no terceiro nuacutemero a revista jaacute

trazia os artigos anteriormente referidos neste capiacutetulo O movimento criado pela associaccedilatildeo

conduziu a um esforccedilo que culminou anos depois no estabelecimento de um circuito de

festivais dedicados agrave linguagem no paiacutes e provocou em 1976 a criaccedilatildeo de um setor de teatro

de bonecos no antigo Serviccedilo Nacional de Teatro ndash SNT

43

Entre as companhias que se destacaram ao longo desse periacuteodo eacute importante

mencionar duas natildeo apenas porque continuam em atividade mas pelo fato de apresentarem

trabalhos de destaque e que de certa forma semelhantes ao Ventoforte serviram de

influecircncia para geraccedilotildees posteriores O Teatro Giramundo criado em 1970 em Belo

Horizonte por Aacutelvaro Apocalypse Terezinha Veloso e Maria do Carmo Martins com um

trabalho voltado para o apuro escultoacuterico e a chegada ao Brasil em 1972 do casal Marcos

Caetano e Raquel Ribas apoacutes fundarem em Nova York onde faziam seus estudos em danccedila e

artes visuais o Grupo Contadores de Estoacuterias com espetaacuteculos-eventos nos quais misturavam

bonecos gigantes atores muacutesicos e materiais variados Com a estreacuteia de Mansamente em

1980 os Contadores de Estoacuterias datildeo uma guinada na carreira do grupo mudando o tom dos

espetaacuteculos para eventos mais intimistas e desenvolvendo uma linguagem bastante proacutepria

em manipulaccedilatildeo direta Esse momento tambeacutem marca a mudanccedila do casal para a cidade de

Paraty ao sul do estado do Rio de Janeiro sediando-se desde entatildeo no Teatro Espaccedilo

Dos exemplos mencionados pode-se perceber uma maior familiaridade entre as

poeacuteticas cecircnicas do casal Ribas e de Ilo Krugli uma vez que a julgar pelos percursos

descritos pelas companhias a partir da anaacutelise de seus repertoacuterios os usos de bonecos e

objetos acompanham em ambos os casos um desejo de ampliaccedilatildeo de possibilidades luacutedicas e

figurativas sobre a cena teatral Ou seja muito mais um desejo de se lidar com alternativas de

representaccedilatildeo teatral do que de identificar-se com tradiccedilotildees de temas e teacutecnicas relativas ao

que se poderia chamar de teatro de bonecos ou de animaccedilatildeo Perguntado sobre as diferenccedilas

de linguagem entre os Contadores de Estoacuterias e o Giramundo Marcos Ribas responde

O Giramundo eacute um grupo de teatro de bonecos Eles manipulam realmente

muito bem se especializaram nisso Jaacute os nossos bonecos satildeo o que satildeo

porque precisavam ser (RIBAS amp RIBAS 2009 p 30)

Tanto no que diz respeito agrave relutacircncia em identificar o seu trabalho com o teatro de bonecos

quando ao apontamento do fato de que os bonecos do grupo satildeo feitos com o tino de atender a

uma certa necessidade poeacutetica Marcos Caetano aponta para um desejo de expressividade

teatral que suplanta aquele que se encerra na dedicaccedilatildeo agrave linguagem do boneco Mas que natildeo

deve contudo ser entendido como um movimento de rejeiccedilatildeo agrave linguagem da animaccedilatildeo seu

legado e suas formas Ilo declara em uma entrevista concedida em 1984

Todo esse meu situar na procura do teatro de bonecos foi muito importante

como processo Foi atraveacutes dele que descobri o meu caminho para o teatro

para a linguagem dramaacutetica Pois tudo que estaacute ligado ao boneco direta ou

indiretamente estaacute vinculado agrave toda uma tradiccedilatildeo artesanal de teatro que eacute a

matildeo do homem que expressa fazendo o boneco os gestos E isto eacute rico eacute

importante Que as pessoas se expressem com bonecos ou sem eles

(KRUGLI 1984 p13)

44

Ainda que os diferentes percursos evidenciem uma distacircncia entre os desejos artiacutesticos

que movem Krugli e o casal Ribas o entendimento de que haacute um desejo de expressatildeo que

antecede agrave vontade de se lidar com bonecos e objetos os define menos como artistas de teatro

de bonecos e mais como artistas de teatro para quem a animaccedilatildeo eacute uma alternativa expressiva

instigante e presente mas natildeo obrigatoacuteria

Quando Vellinho reconhece na esteacutetica de Lenccedilos e ventos relaccedilotildees do trabalho de

Krugli com ldquopressupostos de Brecht e Grotowski que era naquele periacuteodo a voz

instauradora de uma nova ordem do fazer teatralrdquo (VELLINHO op cit p20) busca apontar

para o fato de que Krugli antes de ser um artista de animaccedilatildeo era um artista de teatro atento

agraves questotildees que mobilizavam os impulsos transformadores do teatro de seu tempo Natildeo se

pode contudo ignorar as origens de Krugli ndash e de Rachel Ribas ndash no que diz respeito a sua

formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo em artes visuais o que nas deacutecadas de 1960 e 1970 encontrava uma

interface mais ampla com os movimentos de contracultura sobretudo no que diz respeito ao

questionamento do emprego de suportes estaacuteveis para as diferentes linguagens artiacutesticas

As influecircncias tanto de Ilo Krugli como de Marcos Caetano e Rachel Ribas sobre o

panorama do teatro de animaccedilatildeo no Brasil natildeo seratildeo vistas de imediato nos anos que se

seguiram agrave estreacuteia de Historia de Lenccedilos e ventos que ainda dependeraacute de uma estrutura de

circulaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos de animaccedilatildeo pelo Brasil o que iraacute acontecer

vagarosamente ao longo da deacutecada de 1970 mas com ligeiro crescimento ao longo da deacutecada

de 1980 Aleacutem disso as experiecircncias transmitidas por essas companhias seratildeo somadas agraves de

companhias norte americanas e europeias que visitaratildeo o paiacutes em meio ao processo de

consolidaccedilatildeo da rede de festivais e mostras dedicadas ao teatro de animaccedilatildeo

Confiante de que o contexto histoacuterico no qual se publica o artigo de Feacutelix esteja

suficientemente explicado ao menos a ponto de justificar o prosseguimento de uma anaacutelise

mais conceitual passemos pois a buscar entender alguns problemas teacutecnico-terminoloacutegicos

que as novas vontades mobilizadoras dos produtores de teatro de animaccedilatildeo trouxeram agrave tona

Primeiramente buscaremos entender o problema conceitual enfrentado pela manifestaccedilatildeo

teatral para em seguida buscar novas indagaccedilotildees para a compreensatildeo do que poderia ser

considerado boneco teatral

45

Figura 18 Contadores de Estoacuterias O bode e a onccedila (1971)

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

Figura 19 Contadores de Estoacuterias Pas-de-deux (1982)

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

46

23 Transformaccedilotildees

Haacute duas caracteriacutesticas ou eventos que parecem figurar entre os principais veiacuteculos

das transformaccedilotildees pelas quais passaram as artes do boneco desde as percepccedilotildees de

Jurkowski e Monastier presentes na queixa de Feacutelix e nas praacuteticas de Ilo Krugli no teatro do

casal Ribas e ateacute mesmo em alguns momentos do percurso do Giramundo Estas seriam as

questotildees do ldquodesaparecimento do boneco do teatro de bonecosrdquo sendo substituiacutedos por outras

formas e recursos de expressatildeo e do crescente emprego do operador agrave vista Se analisadas por

um determinado acircngulo pode parecer mesmo que essas duas caracteriacutesticas absorvem-se

mutuamente chegando a reduzirem-se a uma questatildeo uacutenica Satildeo poucas as vezes raras ateacute

em que uma praacutetica de diversificaccedilatildeo das formas e materiais animados natildeo eacute acompanhada

pelo emprego do artista de manipulaccedilatildeo agraves vistas do puacuteblico O espetaacuteculo Giz do Teatro

Giramundo apresenta bonecos em diversos tamanhos usualmente maiores que os

manipuladores que usam o espaccedilo do palco vazio sem aparatos de ocultaccedilatildeo de

manipuladores Muitos desses bonecos entram em cena apoiados em estruturas assemelhadas

a varais ou araras de figurino com ganchos e apoios para fios que os sustentam datildeo

operatividade agraves suas articulaccedilotildees (Figura 20) A maneira como se ocupa o espaccedilo da cena eacute

imposta pelas dimensotildees e estruturas manipulativas dos bonecos que solicita a exibiccedilatildeo do

operador13

Essa necessidade indissociavelmente teacutecnica e esteacutetica se impotildee de maneira

semelhante quando se emprega por exemplo objetos retirados diretamente do quotidiano

para serem inseridos em cena como elementos animaacuteveis ou formatos variados de construccedilatildeo

e operaccedilatildeo de formas animadas dentro de um mesmo espetaacuteculo

Ainda assim natildeo parece claro que o operador agrave vista seja indissociaacutevel agrave sensaccedilatildeo de

desaparecimento do boneco da cena de animaccedilatildeo e creio que as duas questotildees devam ser

tratadas separadamente

Jurkowski entende que juntamente com o emprego do manipulador agrave vista o teatro de

bonecos ocidental feito a partir da deacutecada de 1950 experimentou aquilo que ele chama de

ldquodiversidade dos meios de expressatildeordquo (JURKOWSKI 2000 p68) e seu exemplo mais

eloquente acerca dessa diversidade eacute a montagem feita em 1976 de Don Quixote dirigida por

Jan Krofta Na descriccedilatildeo da cena do flagelo do personagem central Jurkowski conta como a

encenaccedilatildeo combinava a accedilatildeo de atores com bonecos de diversos tamanhos e modos de

13

O espetaacuteculo Giz de fato pode ser considerado uma das experiecircncias mais ousadas do Giramundo que

mesmo sendo notabilizado pelo experimentalismo no desenho da cena e nos esforccedilos escultoacutericos nem sempre

excedeu os limites do palco montado para apresentaccedilatildeo e operaccedilatildeo de boneco com operadores ocultos

47

Figura 20 Teatro Giramundo Giz

Fonte (httpwwwgiramundoorgteatro

gizhtml)

Figura 21 Teatro Giramundo Giz

Fonte (httpwwwgiramundoorgteatro

gizhtml)

Figura 22 Teatro Giramundo Giz

Fonte (httpwwwflickrcomphotoslilianep2764016965inphotostream)

Foto Liliane Pelegrini

48

operaccedilatildeo e ainda objetos No Brasil encontramos bons exemplos de combinaccedilotildees de meios

expressivos em animaccedilatildeo nos jaacute mencionados trabalhos do Ventoforte mas haacute exemplos mais

recentes como as formas inusitadas de vestir e manipular que Osvaldo Gabrieli desenha para

trabalhos do grupo XPTO como por exemplo Coquetel Clown (1989) que emprega formas

que satildeo vestidas pelos atores podendo cobrir todo o seu corpo parte dele ou mesmo se dar

sobre a forma de apliques nas cabeccedilas ou membros Podemos mencionar tambeacutem as

experiecircncias com bonecos inflaacuteveis e artes circenses praticadas pela companhia Pia Fraus em

espetaacuteculos como Gigantes de ar (1998) e Bichos do Brasil (2001) Os inflaacuteveis trabalhados

pela Pia Fraus assumem formas e dimensotildees diferentes podendo ser maiores ou menores eu

seus manipuladores Mesmo as formas menores como as cobras de Bichos do Brasil (Figura

26) satildeo manipuladas agraves vistas e desprovidas de estruturas de apoio e controle agrave distacircncia

como varas ou fios Essa mesma companhia Pia Fraus no espetaacuteculo realizado em 2009

chamado Primeiras Rosas alterna momentos onde se empregam sombras animaccedilatildeo de

objetos bonecos de manipulaccedilatildeo direta e efeitos com viacutedeo Cabe notar que no exemplo de

Primeiras Rosas diferentemente do que ocorre na descriccedilatildeo de Jurkowski para o Quixote de

Krofta satildeo criados momentos especiacuteficos nos quais determinadas linguagens de animaccedilatildeo

satildeo trabalhadas O diretor da companhia Pia Fraus Beto Andreetta convidou outros trecircs

diretores ligados ao teatro de animaccedilatildeo solicitando que montassem cada um usando seus

estilos e competecircncias um quadro para o espetaacuteculo a partir de contos do livro Primeiras

Estoacuterias do escritor Joatildeo Guimaratildees Rosa14

O espetaacuteculo se organizou na disposiccedilatildeo

sucessiva das cenas trabalhadas em estilos e modos bastante diferentes entre si separadas por

uma espeacutecie de entreato montado por Wanderley Piras que sugeria a travessia de vales e rios

feitos por um boi um vaqueiro e seu cavalo com bonecos de manipulaccedilatildeo direta operados

sobre balcotildees moacuteveis com manipuladores agrave vista

As escolhas de Andreetta na disposiccedilatildeo dos discursos espetaculares em Primeiras

Rosas ampliam de certa forma as possibilidades descritivas do que Jurkowski aponta como

ldquovariedade de meios de expressatildeordquo Se por um lado pode-se argumentar (ainda que com

pequena chance de sucesso) que Primeiras Rosas dispotildee em sucessatildeo quadros

intrinsecamente homogecircneos e limitados em formas expressivas um pouco aos moldes do

teatro de variedades ao passo que o exemplo de Krofta dispotildee em simultaneidade suas

14

Assim consistiu a divisatildeo dos referidos quadros do espetaacuteculo 1 As margens da alegria direccedilatildeo de Alexandre

Faacutevero (Cia Teatro Lumbra) 2 A terceira margem do rio direccedilatildeo de Miguel Vellinho (PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo) 3 O cavalo que bebia cerveja direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro (Teatro Muganga)

49

Figura 23 XPTO Coquetel Clown

(peixes)

Fonte (httpwwwxptobrasilcom)

Foto Beto Speeden

Figura 24 XPTO Coquetel Clown (futebol)

Fonte (httpwwwxptobrasilcom)

Foto Beto Speeden

Figura 25 Pia Fraus Gigantes do ar (1998)

Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)

Foto Gil Grossi

Figura 26 Pia Fraus Bichos do Brasil (2001) Na foto Beto Andreetta (agrave esquerda) e Beto Lima

(abaixado)

Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)

Foto Paquito

50

possibilidades expressivas construindo assim uma cena mais radicalmente heterogecircnea por

outro pode-se perceber o quanto a dinacircmica de sucessatildeo de cenas estilisticamente muito

diferentes entre si promove cortes evidentes na dinacircmica perceptiva do espectador O

espetaacuteculo por certa quantidade de vezes se refaz retorna a um alegado princiacutepio despista a

expectativa da plateia desfaz-se para se refazer com outra configuraccedilatildeo Eacute nesse caso a

amplitude de possibilidades figurativas existente no teatro de animaccedilatildeo o que permite com

que o transporte de um momento a outro do espetaacuteculo se decirc com a intensidade com que

ocorre Ao cabo do primeiro quadro feito com sombras projetadas sobre uma rotunda branca

que cobre todo o fundo do teatro verticais e diaacutefanas inicia-se o segundo montado com

pequenos bonecos de manipulaccedilatildeo direta de materiais e traccedilos rudes num transporte abrupto

e produtor de estranheza

Eacute curioso notar com que desenvoltura o teatro de animaccedilatildeo abriga uma ampla gama de

possibilidades figurativas e meios de expressatildeo e produccedilatildeo que aumentam em variedade de

acordo com a ampliaccedilatildeo das possibilidades teacutecnicas e tecnoloacutegicas ao alcance dos artistas

Podemos assim supor que a disposiccedilatildeo de se apresentar materiais e elementos diferentes sobre

a cena de animaccedilatildeo conduza agrave sensaccedilatildeo jaacute mencionada de ausecircncia do boneco do teatro de

bonecos e que tal praacutetica talvez natildeo seja provocada ao menos num plano conceitual pelo

emprego do animador agrave vista De fato o ator que opera bonecos numa cena que dispotildee

variados recursos e formas de animaccedilatildeo uma vez posto agrave vista do puacuteblico consegue transitar

com mais conforto e eficiecircncia entre as diferentes maneiras de inserir as formas animaacuteveis na

cena O ator se encontra assim integrado ao heterogecircneo da cena ou como forma de buscar

terminologia mais adequada o ator amplia com sua presenccedila esse caraacuteter de

heterogeneidade

Da mesma maneira uma cena que se proponha a investigar num contexto de teatro de

animaccedilatildeo certa amplitude de possibilidades de figuraccedilatildeo e teatralidade dificilmente ignoraria

o potencial teatral da figura do ator em meio agraves demais formas apresentadas explorando essa

presenccedila natildeo apenas do ponto de vista do teatro mas da proacutepria animaccedilatildeo de formas Mas

ainda haacute outras questotildees a serem levantadas

Quando em Lenccedilos e ventos os bonecos Manuel e Manuela se recusam a participar da

peccedila obrigam os atores a trabalharem com os materiais disponiacuteveis Assim o elenco recorre a

composiccedilotildees sugestivas provisoacuterias apoiadas por narraccedilotildees e canccedilotildees feitas entre objetos

materiais e atores Natildeo parece que este caso diga respeito a um emprego alternativo de

elementos para inseri-los numa determinada linguagem que descreve um percurso inusitado

de heterogeneizaccedilatildeo dos seus meios Ou seja natildeo se trata de usar a linguagem da animaccedilatildeo

51

num processo de substituiccedilatildeo do boneco teatral por outra coisa Parece mais que isso

estarmos diante de um exemplo de aproveitamento de uma linguagem expressiva capaz em

seus fundamentos de abrigar o heterogecircneo de modo a alterar o estatuto perceptivo dos

materiais em jogo para que estes assim se aproximem para o observador como sendo aquilo

que pode ser visto e entendido como boneco teatral Se isso for verdade e se essa verdade for

capaz de ser observada em outras tantas manifestaccedilotildees o boneco natildeo estaria sumindo do

teatro de bonecos mas reformulando-se ampliando seu estatuto e permeabilizando-se de

modo a incorporar formas materiais e combinaccedilotildees diversas

Em um artigo de 2008 a professora britacircnica Carad Astles trata de como o teatro de

animaccedilatildeo contemporacircneo eacute entendido como sendo uma linguagem vocacionada agrave

transdisciplinaridade e de como esse atravessamento de competecircncias e meios de expressatildeo

provoca uma atitude de migraccedilatildeo da animaccedilatildeo anteriormente vista sob a perspectiva do

exerciacutecio do controle sobre um boneco ou forma que representa uma personagem dramaacutetica

ateacute uma postura dedicada agrave cena teatral como um todo e que dessa forma constroacutei um

discurso pautado pela visualidade pelo manuseio de materiais e pela transitoriedade das

formas manipulaacuteveis Astles se reporta a essa postura atual como contribuinte para um

movimento de ldquoperda do corpo do bonecordquo (ASTLES 2008 p 55) tornando penoso o

trabalho de localizaccedilatildeo do boneco no teatro de bonecos

Ao inveacutes disso o corpo do boneco tem sido substituiacutedo por um corpo

multiplamente articulado criado a partir de diferentes fontes que geram seu

proacuteprio significado Com isso quero dizer que a figura unificada do boneco

tem sido substituiacuteda em muitos casos por sombras projeccedilotildees e tecnologia

multimiacutedia por objetos por mateacuteria e por accedilatildeo cecircnica animada que criam

sua proacutepria percepccedilatildeo do ldquocorpo do bonecordquo (idem p 53)15

Malgrado a percepccedilatildeo de que as transformaccedilotildees verificadas no teatro de animaccedilatildeo das uacuteltimas

deacutecadas acompanham um crescimento significativo de uma determinada qualidade de

presenccedila do ator operador de bonecos sobre a cena parece nesse momento precipitado

categorizar esse recurso para muito aleacutem de algo que apenas aconteceu com certa constacircncia

Imaginar o manipulador agrave vista como sendo um recurso provocador um articulador conceitual

importante ou mesmo algo que investe contra um sentido de pureza do teatro de bonecos natildeo

15

Astles emprega como um dos principais exemplos ao que o seu artigo apresenta o trabalho da companhia

inglesa Improbable Theatre que iraacute apresentar grandes semelhanccedilas com o que se tem falado acerca das poeacuteticas

do Ventoforte e do Teacuteacirctre sur le fil nos termos que se seguem ldquoOs bonecos e as criaccedilotildees animadas que eles

usam em seus espetaacuteculos frequentemente satildeo construiacutedos a partir de material bruto no palco agrave vista do puacuteblico

Portanto os bonecos satildeo vistos como corpos temporaacuterios que podem ser feitos e destruiacutedos em segundos como

parte do que existe agrave sua volta O Improbable trabalha muito com improvisaccedilatildeo buscando criar teatro a cada

segundo no palco Um espetaacuteculo antigo do Improbable chamado 70 Hill Lane usava fita adesiva e objetos para

narrar a histoacuteriardquo (idem p 57)

52

deve se dar senatildeo agrave luz de algumas outras questotildees tatildeo ou mais fundamentais para o

entendimento daquilo que o teatro de animaccedilatildeo em sua heterogeneidade e descontinuidade

pode ou aspira ser

Precisamos no entanto iniciar essa verificaccedilatildeo formulando uma primeira pergunta

que diz respeito agrave concepccedilatildeo de boneco teatral e agraves suas provaacuteveis transformaccedilotildees verificadas

ao longo das uacuteltimas deacutecadas e experiecircncias

53

231 O que eacute (e o que passou a ser) o boneco teatral

Buscar responder a essa pergunta eacute tambeacutem esforccedilar-se por buscar algumas bases

conceituais de um elemento da cena teatral para o qual jamais houve a proposiccedilatildeo de uma

esteacutetica que fosse unacircnime ou suficientemente abrangente O boneco estaacute atrelado ao longo de

sua histoacuteria a formatos e estruturas tradicionais tatildeo vibrantes quanto descontiacutenuas Suas

formas seus modos de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo as naturezas e configuraccedilotildees dos

espetaacuteculos a ele consagrados satildeo tantos tatildeo variados e diferentes entre si que mesmo uma

apreciaccedilatildeo pouco cuidadosa seria suficiente para por em seacuterias questotildees a existecircncia de uma

maneira de fazer ou apresentar que pudesse se arrogar como sendo ldquoteatro de bonecos

propriamente ditordquo Pois entatildeo vejamos entre os diferentes teatros de bonecos eacute possiacutevel

encontrar estreitas relaccedilotildees temaacuteticas com escrituras sagradas e com rituais religiosos como eacute

o caso das sombras indianas dos bonecos javaneses e tambeacutem de bonecos e descriccedilotildees de

apresentaccedilotildees recolhidos por Paul McPharlin (1969) acerca de comunidades nativas da

Ameacuterica do Norte e de fetiches da naccedilatildeo inuit mas tambeacutem apresentaccedilotildees apoiadas sobre a

burla chegando a limites de violecircncia e licenciosidade como ocorre com o Punch and Judy

da Inglaterra o Karagoumlz turco e ateacute mesmo ndash ainda que se atribuam a ele origens religiosas

(SANTOS 1979) ndash o Mamulengo do nordeste do Brasil

Bonecos podem ser construiacutedos de modo a buscar assemelhar-se agrave forma humana em

detalhes com membros articulados e detalhes esculturais como tambeacutem trazer a simplicidade

da sugestatildeo podendo ser feitos de pedaccedilos de materiais diversos por imitaccedilotildees anatocircmicas

incompletas ou ateacute mesmo por objetos ou combinaccedilotildees entre objetos encontrados

aleatoriamente Seus meios de manipulaccedilatildeo podem buscar uma delicada simulaccedilatildeo do

comportamento humano como se vecirc geralmente em alguns bonecos de fio representar de

maneira altamente estilizada movimentos vigorosamente beacutelicos ou sensuais como se daacute de

maneira geral com bonecos de luva ou ateacute mesmo encontrarem-se hieraticamente imoacuteveis ou

com grandes limitaccedilotildees de movimento de modo a indicar uma presenccedila sobre cena

complementada por uma narrativa pontual uma trilha caracteriacutestica uma situaccedilatildeo especiacutefica

se tanto

Haacute bonecos que se apresentam para multidotildees e bonecos que se apresentam para

pouquiacutessimas pessoas Haacute bonecos que tentar ludibriar a ilusatildeo do espectador com a perfeiccedilatildeo

de suas formas ou com a surpresa de seu jogo e bonecos que se afirmam objetos desde o

primeiro momento em que aparecem Haacute velhos bonecos realiacutesticos e novos bonecos de

54

Figura 27 Wayang purwa sombras javanesas (na imagem Srikandi mulher confiante e Sumbadra mulher

submissa)

Fonte (Puppetry International no 9 Strafford UNIMA-US 2001 p10)

Figura 28 Wayang golek boneco javanecircs de vara

Fonte AMARAL 1993 p86

55

Figura 29 Sombra indiana

Fonte (httpwwwpuppetryindiaorg)

Figura 30 Karagoumlz personagem de sombra turco

Fonte (AMARAL 1993 p76)

56

Figura 31 Mamulengos do nordeste brasileiro cena do degolado (bonecos de Mestre Luiz da Serra)

Fonte Revista Mamulengo no 9 Belo Horizonte ABTBSNT 1980 Capa

Foto Tuacutelio Feliciano

Figura 32 Punch o bebecirc e Judy

Fonte httpbopressminiaturebookscom

57

formas abstratas Mas os opostos tambeacutem existem Sempre existiram Haacute bonecos esculpidos

com apuro e bonecos que satildeo tocos de madeira grosseiramente pintados Bonecos mudos e

bonecos falantes Haacute bonecos Sempre houve bonecos feitos e apresentados das mais

diferentes maneiras e suas tradiccedilotildees histoacutericas e locais natildeo apontam para qualquer tipo de

desenvolvimento contiacutenuo e unacircnime em termos de formas ou temas num movimento que se

suporia evolutivo ou degenerativo

Por isso causa algum espanto a exortaccedilatildeo ao resgate do que seria ldquoo verdadeiro teatro

de bonecosrdquo pois que essa ldquoverdaderdquo sugerida natildeo iraacute aderir a um gecircnero espetacular

estritamente codificado e identificado mas sim a uma seacuterie descontiacutenua e agraves vezes

contraditoacuteria de elementos espetaculares encontrados em uma infinidade de manifestaccedilotildees de

natureza teatral explodida em tempo e espaccedilo atravessando culturas (e por elas atravessada) e

se manifestando com as mais variadas formas e temaacuteticas A imensa variedade de

manifestaccedilotildees do teatro de bonecos daacute a ver que qualquer busca por algum tipo de pureza do

gecircnero natildeo se daacute senatildeo como decorrecircncia de ignoracircncia ou daquela vontade hierarquizante

proacutepria de quem considera a existecircncia de culturas superiores e inferiores

O problema teoacuterico do estabelecimento de uma esteacutetica ao mesmo tempo coesa e

abrangente que se apresenta diante da atestaccedilatildeo da grande variedade de formas do teatro de

animaccedilatildeo eacute fruto dos estudos de Tillis (1992) e Plassard (1991 1992) aleacutem de constituir-se

na pergunta (o que eacute o boneco teatral) para cuja resposta pretende-se apontar caminhos neste

momento do trabalho

Um primeiro momento dessa articulaccedilatildeo considera a apreciaccedilatildeo que Yvonne Jean faz

acerca das marionetes de fio da Antueacuterpia (1955) Seu estudo eacute cronologicamente anterior a

diversas reflexotildees e experimentaccedilotildees com o boneco teatral que norteiam o pensamento que

aqui se articula e constitui-se mesmo num exemplo claro da hierarquizaccedilatildeo e da segregaccedilatildeo

mencionadas e que se exprime na maneira como Jean qualifica os bonecos da referida

proviacutencia belga

Quais as razotildees que justificam um estudo pormenorizado dos teatrinhos de

bonecos da Beacutelgica ()

1ordm) Porque satildeo verdadeiras marionetes

2ordm) Porque satildeo marionetes genuinamente populares

3ordm) Porque satildeo marionetes obedecendo a uma tradiccedilatildeo autecircntica

Quer dizer que podem ser escolhidas como siacutembolos da marionete popular

tradicional (JEAN 1955 p 10)

Seria por demais demorado e digressivo comentar os problemas contidos na pretensatildeo de se

identificar o ldquogenuinamente popularrdquo ou mesmo a ldquotradiccedilatildeo autecircnticardquo Atenhamo-nos pois agrave

perseguiccedilatildeo daquilo que Jean iraacute identificar como ldquoverdadeira marioneterdquo Ao inveacutes de

58

apontar elementos de forma de estrutura de modo de operaccedilatildeo ou de gecircnero de apresentaccedilatildeo

sua definiccedilatildeo da ldquoverdadeira marioneterdquo se baseia na negaccedilatildeo do boneco teatral como sendo

ldquofiguras bastardas a meio caminho entre o ator de carne e osso e o boneco de cerardquo (idem)

Assim Jean investe contra um tipo de teatro de bonecos que se ocupa em demasia em imitar o

teatro feito com atores ignorando caracteriacutesticas que seriam especiacuteficas do teatro de bonecos

Para Jean o boneco teatral tem seus proacuteprios recursos expressivos compreendidos em parte

por meio das diferenccedilas inconciliaacuteveis que tem com o homem a quem sua forma muitas vezes

alude Curiosamente esse argumento em muito se assemelha com um texto bastante conhecido

de Meyerhod no qual satildeo contrapostos dois diferentes teatros de bonecos no primeiro se

buscava reproduzir com os bonecos o comportamento humano em todos os seus detalhes e no

segundo seu diretor percebeu haver mais encanto e expressividade no gesto do boneco que o

dava a entender como algo diferente do ser humano (MEYERHOLD 1991 p27) O texto do

encenador russo eacute de fato uma exortaccedilatildeo aos atores de seu tempo no sentido de buscarem

superar em suas apresentaccedilotildees a mera reproduccedilatildeo da vida em cena e a busca da simples

reproduccedilatildeo das determinaccedilotildees da dramaturgia e da encenaccedilatildeo postulando para o ofiacutecio do

ator uma autonomia da ordem da criaccedilatildeo artiacutestica Ainda assim possui a perspicaacutecia suficiente

para perceber que mesmo em seu primeiro exemplo natildeo haacute marionete que suceda em imitar a

figura humana sem transparecer suas limitaccedilotildees e peculiaridades de forma e natureza Em sua

descriccedilatildeo Meyerhold aponta que o desejo de imitar o comportamento humano eacute tal que o

diretor do seu primeiro teatro acaba por banir as marionetes e trabalhar com atores

Meyerhold num texto em que a princiacutepio poderia ser entendido como a corroboraccedilatildeo do

argumento de Jean simplesmente joga por terra sua definiccedilatildeo da ldquoverdadeira marioneterdquo pela

percepccedilatildeo de que natildeo haacute marionete cuja apresentaccedilatildeo natildeo seja inapelavelmente caracterizada

pelas peculiaridades que a distinguem do ator vivo Assim sendo usando o mesmo argumento

empregado por Jean toda marionete eacute verdadeira mesmo que busque (sempre em vatildeo)

parecer um ator de carne e osso

Jurkowski identifica o boneco como sendo o ldquoprincipal elemento distintivo do teatro

de bonecosrdquo (2000 p 68) Uma aproximaccedilatildeo inversa da afirmaccedilatildeo de Jurkowski conduziria

entatildeo ao reconhecimento de que teatro de bonecos seria aquele no qual o elemento central da

cena eacute o boneco teatral Jurkowski indica tambeacutem que o emprego da ldquoanimaccedilatildeo agrave vistardquo seria

algo que contraria e empana as convenccedilotildees tradicionais desse teatro De acordo com o

professor polonecircs o crescente emprego do animador aparente observado ao longo das uacuteltimas

deacutecadas propotildee novas caracteriacutesticas para o gecircnero mas sobretudo para o estatuto do boneco

teatral que tem alterada a forma como eacute percebido por parte da plateia pois este tem sido

59

alijado ndash ou ao menos sofrido incocircmoda interferecircncia ndash da sua condiccedilatildeo baacutesica de

representaccedilatildeo de uma personagem dramaacutetica (JURKOWSKI 2000 p68)

Em lugar de se concentrar no boneco enquanto personagem virtual trata-se

agora de privilegiar as relaccedilotildees que existem entre os signos dos personagens

e as forccedilas que os animam Eu afirmava em 1978 as relaccedilotildees vibrantes entre

o boneco e as fontes fiacutesicas de sua energia motora conduzem a mudanccedilas

importantes na percepccedilatildeo do boneco Num dado momento o equiliacutebrio da

dependecircncia entre o boneco e suas forccedilas motrizes mostrou-se mais duraacutevel

que os elementos desse equiliacutebrio (Jurkowski 2000)

Salta aos olhos na apreciaccedilatildeo de Jurkowski uma determinada leitura do que seria o

boneco teatral no sentido em que este busca distinguir com clareza o boneco das ldquofontes

fiacutesicas de sua energia motorardquo ou seja do ator que o opera Tillis discute ndash e refuta ndash diversas

definiccedilotildees de boneco teatral entre as quais algumas definiccedilotildees de Jurkowski das quais chama

a sua atenccedilatildeo a defesa do professor polonecircs de que ldquoo teatro de bonecos natildeo pode incorporar

qualquer parte do ator vivo ao bonecordquo (TILLIS 1992 p 26) Portanto segundo a apreciaccedilatildeo

que Tillis faz da descriccedilatildeo de Jurkowski o boneco seria um elemento teatral diferente e

exterior ao corpo do artista que o opera cuja finalidade eacute representar virtualmente uma

personagem dramaacutetica Jurkowski ainda menciona que o estatuto do boneco teatral se

encontra em mudanccedila desde as tensotildees relacionais recentemente estabelecidas por seus

encontros em cena com os atores agrave mostra e outras formas de expressatildeo mas ainda ele parece

defender que o estatuto proacuteprio da forma animada permanece inalterado e que o que ocorre

com o boneco eacute que ele passa a se relacionar sobre a cena com outros recursos que desafiam a

estrutura natildeo do boneco mas da cena de teatro de bonecos Ora se recuperarmos a afirmaccedilatildeo

vista por dois acircngulos que identifica o boneco como sendo o ldquoprincipal elemento distintivo

do teatro de bonecosrdquo natildeo parece cabiacutevel que a cena do teatro de bonecos se reestruture sem

que o seu elemento de definiccedilatildeo sofra por sua vez profundas transformaccedilotildees

No estudo empreendido por Steve Tillis em Toward an aesthetics for the puppet

(Rumo a uma esteacutetica do boneco 1992) o artista de animaccedilatildeo e pesquisador norte americano

realiza uma investigaccedilatildeo cuidadosa em torno de definiccedilotildees consagradas do boneco teatral de

modo a submetecirc-las a exemplos reais de diversas de suas manifestaccedilotildees Com isso apontou a

necessidade da articulaccedilatildeo de uma definiccedilatildeo que fosse a mais abrangente e vaacutelida possiacutevel

diante das inuacutemeras configuraccedilotildees do boneco O esforccedilo que se seguiu localizou trecircs

conjuntos de possibilidades significativas (que Tillis nomeia de sistemas de signos) que

estariam em processo na estrutura de qualquer boneco teatral sendo eles os sistemas de

forma movimento e fala Cabe aqui comentar que para Tillis tais sistemas apresentam-se em

todos os bonecos como se fossem qualidades expressivas e como tais dispotildeem diante do

60

espectador forccedilas de significaccedilatildeo mesmo quando essas natildeo estatildeo efetivamente presentes

Nesse caso um boneco imoacutevel ou de movimentos altamente limitados apresenta certa

qualidade e quantidade de signos de movimento O mesmo ocorre no que diz respeito agrave

atribuiccedilatildeo ndash ou natildeo ndash da fala ao boneco e das maneiras como isso se daacute bem como aos graus

de detalhamento e de esquematismo das formas e materiais de que se compotildee o boneco

Usemos como exemplo os animais inflaacuteveis usados pela companhia Pia Fraus no

espetaacuteculo Bichos do Brasil As suas formas ainda que maleaacuteveis devido agrave sua composiccedilatildeo

de plaacutestico moldaacutevel e ar apresentam possibilidades de movimentaccedilatildeo muito limitadas isso

quando haacute alguma A manipulaccedilatildeo agrave mostra das formas inflaacuteveis com os atores segurando

diretamente os corpos dos animais (Figura 26) sem fios bastotildees ou estruturas de funccedilatildeo

semelhante serve como sugestatildeo de movimento para os animais mostrados pelo espetaacuteculo

(cobras onccedilas e outros animais) e tal sugestatildeo se soma ao que se pode depreender da

percepccedilatildeo dos animais representados por suas formas

Para Tillis bonecos satildeo elementos teatrais e como tais podem ser compostos por

inuacutemeros materiais e combinaccedilotildees de outros elementos Assim rejeita veementemente a

defesa de Jurkowski de que o boneco precisa constituir-se inteiramente de mateacuteria inanimada

de modo a que nenhuma parte do corpo do artista possa ser incorporada agrave sua estrutura (idem

p 25) Essa noccedilatildeo professada por Jurkowski aliaacutes conduz a um trecho inusitado no qual o

historiador polonecircs potildee em questatildeo se o boneco de luva poderia ou natildeo ser considerado um

boneco O argumento eacute curioso a ponto de merecer transcriccedilatildeo como apresentado por Tillis

[] num ensaio acerca da histoacuteria do teatro de bonecos Jurkowski comenta

que ldquoo boneco de luva e o boneco de sombra situam-se fora da arte dos

bonecosrdquo (1967 [1965] 26) Ele natildeo chega a articular a sua objeccedilatildeo ao

boneco de sombra mas em outra passagem parafraseia o estudioso alematildeo

do princiacutepio do seacuteculo XX Fritz Eichler para o efeito de que ldquoo boneco de

luva natildeo deve ser considerado lsquopuramentersquo boneco pois eacute de fato a matildeo do

marionetista que eacute a sua alma O boneco de luva seria entatildeo um

lsquoprolongamentorsquo do ator [e deveria ser considerado] um prolongamento do

teatro de miacutemicardquo (1998 [1979] 21-22)

O argumento de Eichler como eacute apresentado por Jurkowski se apoacuteia na

ideacuteia de que a matildeo viva do operador no interior do boneco eacute o verdadeiro

foco da atenccedilatildeo da plateacuteia e que o que se percebe como sendo o boneco de

luva natildeo passa de uma fantasia para essa matildeo a figura natildeo estaacute ldquoseparada do

corpo de seu manipuladorrdquo e natildeo obedece agraves ldquosuas proacuteprias leis mecacircnicasrdquo

(1998 [1979] 22) Dessa forma Punch de fato natildeo eacute um boneco nem

mesmo nesse caso o seria Kermit que tambeacutem eacute pouco mais que a matildeo

vestida de seu operador Como seria possiacutevel resolver se bonecos de luva e

todos os outros bonecos apoiados na matildeo do operador satildeo ou natildeo satildeo

bonecos de fato (TILLIS 1992 p106 traduccedilatildeo minha)

61

De fato Tillis se apoiaraacute grandemente numa noccedilatildeo apresentada pelo artista russo

manipulador virtuoso Serguei Obrastzov que trata de como o boneco se estrutura por meio

da produccedilatildeo da impressatildeo da presenccedila de um corpo autocircnomo que causa na plateia Embora

se possa perceber no boneco de luva ndash ou em qualquer outro tipo de boneco ndash partes do corpo

do manipulador a lhe compor a estrutura fiacutesica o que sobreveacutem a essa evidecircncia eacute a

percepccedilatildeo apoiada fortemente na imaginaccedilatildeo de que aquele se trata de um corpo

independente em forma e desejo do homem que o opera Isso pode ser percebido nas cenas

curtas desenvolvidas pelo casal servo-peruano Hugo Suarez e Ines Pasic o Teatro Hugo e

Ines Na cena chamada Baby blue do espetaacuteculo Cuentos pequentildeos de 1990 Ines apresenta

um boneco que se trata de sua matildeo voltada com os dedos em direccedilatildeo ao chatildeo com olhos e

nariz encaixados no alto de seu punho e enfiada numa roupa azul de crianccedila (Video 2) A

atriz apresenta ao boneco uma bola com a qual entre entusiasmado e receoso potildee-se a

brincar Como hesitava em chutaacute-la Ines puxa a crianccedila pelo braccedilo (um de seus dedos saindo

pela manga da veste infantil) para encorajaacute-la A reaccedilatildeo do boneco eacute de medo e certa

indignaccedilatildeo Ergue os olhos em direccedilatildeo agrave atriz (uma dobra caracteriacutestica do punho posiciona os

olhos de modo a inclinarem-se para cima) como se dissesse ldquonatildeo faccedila mais issordquo Mesmo

diante da evidecircncia inapelaacutevel de que o boneco eacute feito de uma parte do corpo da atriz pois

que tal evidecircncia se acompanhava de claras limitaccedilotildees de movimento por parte da atriz para

manter a estrutura fiacutesica do bebecirc a sua forma o seu movimento e as reaccedilotildees que apresentava

produziam sobre a cena uma nova presenccedila Uma presenccedila diferente daquela criada

exclusivamente pela atriz solitaacuteria sobre o palco

Outro momento desse mesmo espetaacuteculo mostra Hugo apresentando um artista de rua

com nariz de palhaccedilo que toca um violatildeo por trocados (Video 3) O artista eacute feito do joelho do

ator com um nariz de palhaccedilo indicando as feiccedilotildees vestido com uma camisa e usando as

proacuteprias matildeos do ator para tocar seu pequeno violatildeo Num determinado momento o ator

posicionado atraacutes do joelho-palhaccedilo rouba a feacuteria usando a mesma matildeo empregada para tocar

o violatildeo num golpe que nos faz vecirc-la como pertencente ao ator e natildeo ao boneco Assim se faz

um arranjo alternado e impreciso a partir do qual natildeo haacute clareza acerca dos limites corporais

do boneco ndash e do ator Os bonecos de Hugo e Inecircs ndash assumamos que assim podemos chama-

los ndash natildeo apenas satildeo feitos de partes dos corpos dos atores mas assumem em suas

apresentaccedilotildees algo como um duplo pertencimento ou uma corporalidade transitoacuteria que

arrasta os corpos dos atores para dentro do que entendemos como sendo as formas dos

bonecos

62

Tillis iraacute buscar uma definiccedilatildeo para o boneco teatral que seja abrangente a ponto de

compreender suas mais variadas manifestaccedilotildees e formas Para tanto iraacute natildeo apenas buscar

ampliar seu campo de visatildeo em termos das diversas tradiccedilotildees e formatos mas conduziraacute sua

indagaccedilatildeo para a percepccedilatildeo do puacuteblico de modo a considerar boneco teatral natildeo aquilo que

se enquadra dentro dos limites das definiccedilotildees dos estudiosos mas aquilo que compreende ser

percebido pelo espectador como boneco

Em seguida por meio de um exerciacutecio de comparaccedilatildeo entre as definiccedilotildees de boneco

teatral encontradas em obras de estudiosos como Charles Magnin Bill Baird Paul McPharlin

e Henryk Jurkowski seguido por tentativas de submissatildeo dessas definiccedilotildees a exemplos

bastante variados de espetaacuteculos considerados teatros de bonecos Tillis articula uma

definiccedilatildeo preliminar na qual as qualidades perceptivas do puacuteblico ocupam centralidade

Ao juntarmos todas as nossas soluccedilotildees o caminho torna-se livre afinal para

respondermos a pergunta apresentada no iniacutecio deste capiacutetulo quando as

pessoas mencionam o boneco teatral estatildeo se referindo a elementos que satildeo

reconhecidos por uma plateacuteia como sendo objetos aos quais satildeo conferidos

forma movimento e frequentemente fala de uma maneira tal que a plateacuteia

os imagina como possuidores de uma vida (TILLIS 1992 p 28 ndash traduccedilatildeo

minha)

Claramente natildeo se trata de uma definiccedilatildeo simples tampouco acabada ou unacircnime No

entanto essa definiccedilatildeo alcanccedila um tipo de propriedade que nos permite pensar o boneco de

forma bastante abrangente e funcional tanto no que diz respeito agraves diversas manifestaccedilotildees do

boneco teatral nas suas relaccedilotildees com culturas tradicionais as mais diversas e distantes e das

possibilidades formais e performativas apresentadas por esse elemento teatral na perspectiva

das transformaccedilotildees de seus pressupostos conceituais para as artes verificados a partir dos

postulados das vanguardas modernistas e ainda em curso

Para Tillis o boneco teatral eacute em princiacutepio algo que pode ser percebido pela plateia

como sendo um objeto Essa construccedilatildeo apoiada como estaacute na percepccedilatildeo do espectador se daacute

de modo a diferenciar-se de uma outra definiccedilatildeo apresentada por Jurkowski na qual o

boneco seria de fato um objeto obrigatoriamente inanimado e como jaacute pudemos perceber

inteiramente exterior ao corpo do artista que o opera O deslocamento perceptivo que Tillis

propotildee o faz encontrar bonecos feitos em formatos e materiais mais diversos e variados

trazendo para dentro do seu campo de visatildeo elementos combinados natildeo apenas entre

materiais e recursos plaacutesticos mas abrindo a possiblidade de reconhecer-se o ator operador

como parte perceptiacutevel do boneco inserida por forccedila da sua capacidade de produccedilatildeo de

estiacutemulos sensiacuteveis na apresentaccedilatildeo

63

Dizer que algo eacute percebido como um objeto natildeo eacute dizer pouco No caso de Tillis fica

evidente que o termo eacute empregado com a finalidade principal de produzir uma distinccedilatildeo do

boneco em relaccedilatildeo ao que seria visto e entendido como a integridade um corpo vivo humano

ou animal Mas aleacutem disso o constante emprego de ferramentas semioloacutegicas para tratar das

definiccedilotildees leituras e explicaccedilotildees para o boneco teatral praticado por Tillis16

natildeo permite que

um esforccedilo analiacutetico que se proponha a dialogar com a sua obra se satisfaccedila em entender que

tal percepccedilatildeo se apresenta apenas como paracircmetro distintivo entre a percepccedilatildeo do boneco e a

do ator (do indiviacuteduo) vivente

Ocorre que a percepccedilatildeo do boneco como objeto (natildeo nos esqueccedilamos de que a mesma

expressatildeo eacute usada por Charles Monastier em seu artigo sobre o manipulador agrave vista) aponta

para possibilidades de entendimento a partir das quais essa percepccedilatildeo pode adquirir estatutos

os mais variados Uma maneira interessante de pensarmos o mecanismo da percepccedilatildeo do

boneco estaacute no manuseio de alguns dos fundamentos da semioacutetica de Charles Peirce que

postula que a percepccedilatildeo de um determinado objeto eacute o resultado de uma seacuterie de processos do

pensamento nos quais o que sobreveacutem natildeo depende apenas das caracteriacutesticas intriacutensecas do

objeto mas tambeacutem das suas condiccedilotildees de apreensatildeo

O boneco teatral visto como objeto emerge sobre nossa percepccedilatildeo a partir daquilo que

de forma inexoraacutevel ainda que por vezes elusiva ele natildeo eacute (ou seja um corpo vivo iacutentegro)

A apresentaccedilatildeo do boneco evolui sobre uma dinacircmica de emissatildeo de estiacutemulos perceptivos

ambiacuteguos haacute elementos que podem estar em sua movimentaccedilatildeo em sua relaccedilatildeo com a trama

do espetaacuteculo em sua forma de acordo com as caracteriacutesticas particulares desses elementos

que enviem ao espectador dados que o predisponham a imaginaacute-lo como tendo vida no

sentido direto em que a sua apresentaccedilatildeo produz a impressatildeo de uma presenccedila sobre a cena

Ao mesmo tempo satildeo dispostos pelo boneco em jogo elementos de significaccedilatildeo apontando no

sentido contraacuterio Elementos da forma da movimentaccedilatildeo da fala dos materiais constitutivos

que podem de acordo com as caracteriacutesticas particulares desses elementos reforccedilar o caraacuteter

de objeto inanimado do boneco

16

Natildeo se pode deixar de comentar que a escolha de termos e chaves de estudo apoiadas na semiologia por parte

de Tillis ocorre de modo a que o seu estudo se estabeleccedila em diaacutelogo frontal com as proposiccedilotildees de Henryk

Jurkowski numa dinacircmica quase constante de contradiccedilatildeo ao que propotildee o estudioso polonecircs Isto natildeo equivale

a dizer tudo uma vez que autores como Otakar Zich Jiri Veltruski e Petr Bogatyrev que servem de referecircncias

para ambos Jurkowski e Tillis jaacute haviam em um momento anterior utilizado a marionete como objeto de estudo

ou exemplo em seus escritos semioloacutegicos (GUINSBURG 1978)

64

Haacute a disposiccedilatildeo para consulta na Internet uma demonstraccedilatildeo de manipulaccedilatildeo indicada

como sendo uma masterclass do artista australiano Neville Tranter17

(Video 4) na qual um

dos alunos faz um exerciacutecio com um boneco chamado Zeno operado com uma das matildeos

dentro da cabeccedila para movimentaacute-la juntamente com a boca e a outra matildeo segurando uma

das matildeos do boneco de aproximadamente um metro de altura sentado em seu colo em

posiccedilatildeo semelhante agrave dos tradicionais bonecos usados em apresentaccedilotildees de ventriloquismo

Nessa demonstraccedilatildeo o aluno busca parodiar uma cena famosa do repertoacuterio do Muppet Show

de Jim Henson envolvendo uma muacutesica que ficou conhecida como Mahnah mahnah18

(Video

5) Durante a apresentaccedilatildeo o artista procurava executar a canccedilatildeo como se essa fosse um dueto

entre ele e o boneco e para isso operava alteraccedilotildees em seu timbre vocal buscava mover a

boca mais discretamente quando queria que acreditaacutessemos que era a vez do boneco cantar e

mais importante movimentava o boneco de forma caracteriacutestica aplicando sobre ele reaccedilotildees

e comportamentos que produziam uma forte impressatildeo de diferenccedila entre o corpo ndash e a

personalidade ndash do boneco e o seu Esse recurso sobrepunha-se agrave forte impressatildeo causada pela

evidente accedilatildeo do artista sobre o boneco sobre o dado aparente de que se o boneco se movia

o fazia por meio da intervenccedilatildeo de seu operador Num determinado momento o ator erra a

canccedilatildeo interrompe para comeccedilar de novo e na sequecircncia comete o mesmo erro Quando o

boneco abaixa a cabeccedila e cobre o rosto com a matildeo em sinal de desaprovaccedilatildeo a inevitaacutevel

percepccedilatildeo da matildeo do artista segurando a matildeo do boneco que executa o gesto de criacutetica

amplifica por meio da ambiguidade dos gestos sobrepostos tanto a surpresa quanto a

comicidade Ao fim da apresentaccedilatildeo o artista desvencilha-se delicadamente do boneco

deixando-o pousado sobre o banco Essa accedilatildeo simples e inevitaacutevel acaba por produzir uma

evidecircncia poderosa daquilo que vem sendo comentado acerca da percepccedilatildeo de objeto que se

tem do boneco A visatildeo do boneco Zeno sua cabeccedila inerte e seu corpo agora evidentemente

vazio sob a camisa combina o entendimento daquilo que a plateia sempre soube em

conjunccedilatildeo a um tipo de incocircmodo produzido pelo reconhecimento de uma potecircncia de vida

atribuiacuteda agravequela forma semidisforme

Haacute uma passagem do repertoacuterio da companhia Stuffed Puppets de Tranter especial

para este raciociacutenio O espetaacuteculo eacute The Nightclub de 1993 (Video 6) O cantor de cabareacute

Anthony apresenta em dueto com o mesmo Zeno do exemplo anterior a canccedilatildeo The old

17

Viacutedeo disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=eyLCIVdQR9Egt Consulta mais recente feita em

27022011 Neville Tranter eacute um artista de animaccedilatildeo australiano radicado na Holanda onde fundou e dirige a

companhia Stuffed Puppets 18

Duas versotildees dessa cena no Muppet Show tambeacutem estatildeo disponiacuteveis on line em

lthttpwwwyoutubecomwatchv=NA90IlymdZ4gt e lthttpwwwyoutubecomwatchv=Dx5v1z6L6Fwgt

Consulta mais recente feita em 27022011

65

puppeteer (o velho marionetista) No estilo musical proacuteprio do cabareacute alematildeo Anthony canta

a histoacuteria de um marionetista famoso e reconhecido juntamente com seu boneco Enquanto

canta eacute pontuado por intervenccedilotildees de Zeno (operado e vocalizado pelo proacuteprio ator) que

participa com especial ecircnfase no refratildeo tocado num ritmo ternaacuterio alegre e que tem as

seguintes palavras

Now Iacutem lying in the attic

In a dusty leather case

And Iacutem waiting for my partner

For his loving friendly face19

Zeno nessa parte da muacutesica que estaacute como que embalado no colo pelo cantor

Anthony canta como se fosse o boneco descrito na canccedilatildeo A segunda estrofe fala de como o

velho marionetista envelheceu perdeu prestiacutegio e acabou morrendo miseraacutevel e esquecido

Quando Anthony indica a deixa para o refratildeo Zeno natildeo consegue cantar aleacutem do primeiro

verso baixando a cabeccedila e assumindo uma postura que remete muito mais agrave imobilidade de

um objeto do que a uma contenccedilatildeo de sofrimento humano No entanto a imagem eacute clara e

intensa Enquanto vemos Anthony buscar retomar a canccedilatildeo dizendo alto palavras do refratildeo

como que exortando Zeno a retomar a apresentaccedilatildeo este encontra-se inapelavelmente

reconduzido agrave ineacutercia inanimizado pela dor

Esse uacuteltimo exemplo guarda uma peculiaridade poderosa acerca da ambiguidade

perceptiva do boneco A ineacutercia assumida por Zeno ao fim da canccedilatildeo funde o entendimento

de sua condiccedilatildeo de objeto com uma comunicaccedilatildeo tatildeo eficiente quanto sensiacutevel de um

sentimento pleno de humanidade Nada em toda a cena foi capaz de produzir sobre o

espectador um estiacutemulo imaginativo de autonomia existencial para aquele boneco do que o

momento em que provavelmente por escolha ele se entrega ao obliacutevio

Pois que eacute justamente a partir da percepccedilatildeo do boneco como objeto desprovido de

autonomia e voliccedilatildeo que se produz uma ruptura em sua estrutura perceptiva por meio da qual

somos capazes de perceber a sua qualidade de objeto inanimado (sua forma suas diferenccedilas

em relaccedilatildeo a um corpo vivo os indicativos de sua condiccedilatildeo original de ineacutercia) mas tambeacutem

nos permitimos perceber o boneco em termos daquilo que ele representa dentro (e para aleacutem)

do contexto da sua apresentaccedilatildeo (seria mais simples ou apenas redutor recorrermos ao termo

personagem dramaacutetica)

19

Traduccedilatildeo Agora estou guardado no poratildeo numa caixa de couro empoeirada Estou esperando por meu

companheiro por seu rosto amoroso e amigaacutevel Cena disponiacutevel em

lthttpwwwyoutubecomwatchv=7HcpBz8N8ZIgt Consulta mais recente feita em 27022011

66

Tillis iraacute usar o termo ldquovida imaginadardquo (1991 p 28) para buscar descrever o modo

como o puacuteblico se voluntaria a perceber o boneco sob a forma de uma presenccedila autocircnoma em

meio a uma dinacircmica perceptiva que alterna ilusatildeo e desilusatildeo Tillis tambeacutem menciona um

termo empregado por Coleridge para explicar a sua poesia de que esta encaminha o leitor a

empreender uma ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do descreacuteditordquo20

(apud Tillis 1992 p 47) A

indicaccedilatildeo de accedilatildeo voluntaacuteria que o termo imaginada dota o primeiro termo em conjunccedilatildeo

com o empreacutestimo que toma da expressatildeo do poeta inglecircs para buscar explicar o fasciacutenio

exercido pelo boneco teatral sobre seu puacuteblico ajudam a compreender o quanto Tillis estaacute

interessado em perceber essa ldquovidardquo do boneco posto em jogo na cena como algo conferido

em grande conta pela disposiccedilatildeo do espectador De qualquer forma natildeo se pode ignorar em

vista dos esforccedilos teoacuterico-terminoloacutegicos de Tillis o quanto a emprego de termos como vida e

alma para explicar a apresentaccedilatildeo do boneco constiuti-se num verdadeiro problema

Primeiramente porque a imensa maioria das apresentaccedilotildees com bonecos claramente natildeo tecircm

como objetivo e efeito primordiais a produccedilatildeo de uma ilusatildeo acabada de vida autocircnoma e em

segundo lugar porque ainda haacute que se determinar e concordar nos meios da praacutetica e do

estudo do teatro de animaccedilatildeo um termo que possa compensar o apelo a forccedila metafoacuterica e a

validade referencial de vida e alma

O semioacutelogo Tcheco Otakar Zich entende os modos de percepccedilatildeo do boneco em cena

como alternados o que equivale dizer que o entendimento do boneco enquanto objeto e a

imaginaccedilatildeo de uma presenccedila autocircnoma natildeo satildeo sensaccedilotildees que acometem o espectador

simultaneamente mas uma de cada vez momento a momento (apud TILLIS p 54) A leitura

de Zich pode ser e seraacute mais comentada adiante mas a sua mera apresentaccedilatildeo jaacute se presta a

reforccedilar o entendimento da percepccedilatildeo do boneco em cena a partir de uma dinacircmica de

construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo da aceitaccedilatildeo de sua autonomia o que parece claro demanda

esforccedilo e engajamento por parte do espectador Marco Souza complementa a ideacuteia da seguinte

maneira

Eacute possiacutevel considerar [] o ldquocaraacuteter ilusoacuterio-realrdquo do teatro de animaccedilatildeo

como a estabilidade de uma presenccedila cecircnica na qual concreto e abstrato

limites e referecircncias satildeo rompidos e rearticulados em uma dimensatildeo

simboacutelica onde se instaura uma percepccedilatildeo diferenciada em que jaacute natildeo haacute

mais uma distinccedilatildeo absoluta entre sujeito e objeto (SOUZA 2005 p26)

Souza aborda o teatro de animaccedilatildeo como uma manifestaccedilatildeo cultural na qual se percebe o

exerciacutecio de dotaccedilatildeo de significados abstratos a elementos concretos Nesse sentido a

impressatildeo de autonomia do boneco que o seu jogo cecircnico pode vir a produzir natildeo se daacute de

20

No original ldquowilling suspension of disbeliefrdquo

67

outra forma senatildeo por meio de uma conjunccedilatildeo de elementos dentre os quais ato de projeccedilatildeo

realizado pelo espectador eacute fundamental

Por isso eacute delicado e virtualmente problemaacutetico o entendimento de que se busca a

produccedilatildeo de uma ilusatildeo de vida por meio do jogo do boneco O emprego excessivo do termo

associado a outros tais como alma e magia21

precisam ser cuidadosamente verificados pois

ainda que forneccedilam metaacuteforas eficientes podem causar seacuterios problemas de entendimento

uma vez que se insinuem para dentro da pedagogia e da teoria do teatro de animaccedilatildeo

Se natildeo vejamos dentre as modalidades mais conhecidas de teatro de animaccedilatildeo

poucas satildeo aquelas que natildeo reforccedilam em seus meios de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo certa

estilizaccedilatildeo na forma e no movimento do boneco Desde o bunraku ateacute o mamulengo passando

pelas experiecircncias abstracionistas dos baleacutes triaacutedicos de Oskar Schlemmer dos experimentos

de Depero e Prampolini22

junto ao Teatro dei Piccoli dos heroacuteis populares da luvas de feira na

Europa ateacute mesmo no emprego de animatrocircnicos23

parece claro que o desejo expresso pelos

artistas que depuram suas teacutecnicas de construccedilatildeo e manipulaccedilatildeo natildeo passa ou passa distante

de uma necessidade de iludir a plateia no sentido de natildeo estar diante de uma forma animada

mas diante de um ser vivo Se o desejo fosse o de transmitir impressatildeo incontestaacutevel de vida

melhor seria que se trabalhasse diretamente com atores Grande parte do encanto do teatro de

animaccedilatildeo reside na produccedilatildeo dessa percepccedilatildeo turbada e descontiacutenua entre aceitaccedilatildeo e

negaccedilatildeo que conduz o espectador a uma experiecircncia especiacutefica de desvendamento constante

da forma

Mas se parece cabiacutevel defender que a noccedilatildeo de vida natildeo eacute aquela que norteia a

qualidade especiacutefica da apresentaccedilatildeo do boneco restam duas questotildees A primeira eacute seria

entatildeo a noccedilatildeo de vida algo que mereccedila ser abolida do entendimento do boneco teatral E a

segunda se a impressatildeo de vida natildeo explica com precisatildeo suficiente o que vemos no jogo do

boneco que noccedilotildees e termos viriam em sua substituiccedilatildeo e por quecirc

Giorgio Agamben chama a atenccedilatildeo para a separaccedilatildeo semacircntica empregada pelos

gregos antigos que definia dois diferentes conceitos de vida (2002 pp9-20) O termo zoeacute se

referia a uma qualidade geneacuterica de vivente como em oposiccedilatildeo ao que eacute morto e a palavra

biacuteos designava um tipo de vida qualificada capaz de definir o ser vivente a partir de suas

21

Estudos apoiados em apreciaccedilotildees eminentemente etimoloacutegicas de termos como animaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo

acabam por contornar o esforccedilo de se renovar o olhar sobre as praacuteticas e efeitos do teatro de animaccedilatildeo e suas

transformaccedilotildees optando por ater-se em definiccedilotildees que permitem pouca ampliaccedilatildeo ou questionamento 22

A colaboraccedilatildeo entre o tradicional marionetista Romano Vitorio Podrecca e os futuristas Fortunato Depero e

Enrico Prampolini eacute abordada em (LISTA 1993) e (JURKOWSKI 1991) 23

Este trabalho emprega a sugestatildeo feita por Tillis e respeita o uso observado por artistas brasileiros que define

como sendo animatrocircnico o boneco operado diretamente por um ou mais operadores por meio eletrocircnico e

remoto diferindo do autocircmato cuja construccedilatildeo jaacute encerra uma sequecircncia de movimentos preacute estabelecida

68

posturas atividades e mecanismos de relaccedilatildeo Agamben parte dessas definiccedilotildees de vida para

encadear um pensamento da poliacutetica contemporacircnea no qual avalia as consequecircncias e

dinacircmicas da politizaccedilatildeo daquilo que ele chama de ldquovida nuardquo24

Neste ponto do trabalho

busco-me valer de aspectos mais imediatos de consideraccedilatildeo de tais conceitos no intento de

emprega-los como ferramentas para o entendimento da impressatildeo de vida que a apresentaccedilatildeo

do boneco eacute capaz de produzir Assim sendo pode-se dizer a respeito do boneco ao menos

em primeira apreciaccedilatildeo que eacute incapaz de possuir uma vida a partir do que se entende pelo

primeiro termo (zoeacute) mesmo que em diversas ocasiotildees o comportamento que assume durante

a apresentaccedilatildeo se restrinja a oferecer agrave audiecircncia sinais que conduzam apenas ao

entendimento ndash agrave imaginaccedilatildeo ndash da existecircncia de uma vida autocircnoma25

em situaccedilotildees

extremamente simples das quais o encanto da apresentaccedilatildeo decorre exclusivamente de

observaacute-lo desempenhar uma uacutenica atividade tal como andar acenar ou danccedilar A vida que se

atribui ao boneco em meio agrave sua apresentaccedilatildeo decorre exclusivamente do caraacuteter teatral que

essa comporta natildeo podendo ser vida sem estar forccedilosamente atrelada ao contexto teatral no

qual se insere e que eacute capaz de conjurar em sua apresentaccedilatildeo26

e sem contar com a

indulgecircncia da imaginaccedilatildeo de quem o assiste Parece-nos assim que o problema do emprego

do termo vida associado agrave percepccedilatildeo do boneco decorre do entendimento da existecircncia de um

elemento capaz de transmitir certa qualidade de vida sem no entanto possuiacute-la em seu aspecto

mais fundamental Para o boneco a vida seraacute sempre teatral cecircnica ficcional e imaginada

Como poderemos verificar mais adiante grande parte do interesse que se extrai da

apresentaccedilatildeo do boneco decorre justamente da sua capacidade de transmitir certa qualidade de

vida que natildeo tem como suporte uma autonomia ontoloacutegica de fato

Por isso mesmo a tentativa de resposta que se monta para a primeira pergunta

formulada eacute delicada e complicada Evidentemente a impressatildeo causada pelas apresentaccedilotildees

de quase todos os bonecos ndash ateacute mesmo alguns cujas formas e movimentaccedilotildees satildeo estilizadas

em grande conta ndash faz o puacuteblico tomar o boneco em algum grau como algo possuidor de

24

Agamben emprega em Homo Sacer o poder soberano e a vida nua um excurso argumentativo no qual parte

das concepccedilotildees de vida mencionada e da recuperaccedilatildeo de uma figura do direito romano antigo ndash o homo sacer ndash

para empreender uma leitura proacutepria da biopoliacutetica foucaultiana de modo a identificar o campo de concentraccedilatildeo

nazista como sendo o paradigma politico da modernidade 25

Quando Jurkowski compara as diferentes relaccedilotildees com a dramaturgia entre bonecos e atores vivos evoca o

fato de que o ldquoo ator necessita apoiar-se em um mundo de ficccedilatildeo enquanto que o boneco pode contentar-se em

copiar a vidardquo (op citp 3) Assim o pesquisador polonecircs introduz a capacidade do boneco de conjurar

teatralidade agrave sua accedilatildeo 26

Aqui nos reportamos agrave capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade que possui a apresentaccedilatildeo do boneco Tal

capacidade seraacute suficientemente abordada ao longo desta tese mas por hora basta-nos entender que qualquer

accedilatildeo executada com razoaacutevel sucesso por um boneco eacute capaz de por si conter elementos de reconhecida

teatralidade e dramaticidade

69

certa vida Se entendemos os bonecos ndash quaisquer bonecos natildeo importa suas formas e

dinacircmicas em cena ndash como representaccedilotildees do ser humano em variados graus de detalhamento

e tipificaccedilatildeo eis que a vida como uma das prerrogativas fundamentais da humanidade estaacute

em jogo E como foi mencionado anteriormente ideacuteias tais como vida e alma emprestam natildeo

se pode negar metaacuteforas eficientes para descrever o tipo de relaccedilatildeo que se estabelece entre

espectador e boneco no decurso de uma apresentaccedilatildeo bem sucedida em animaccedilatildeo A

complexidade da questatildeo se daacute na exata medida em que natildeo podemos nos aproximar dela com

a radicalidade de quem se potildee a propor o abandono de uma noccedilatildeo empregada desde haacute muito

como se a sua longevidade natildeo fosse indicativo de potecircncia e clareza comunicativa Afinal

quem haveria de negar que um boneco que se pareccedila razoavelmente com uma pessoa

apresentado com maestria parece vivo A questatildeo eacute que se o boneco parece vivo ele de fato

natildeo estaacute (pelo simples fato de parecer) e que mesmo essa semelhanccedila de vida natildeo ocorre

sem a indulgecircncia da plateia que por seu lado o compreende dentro de uma dinacircmica

perceptiva que confronta a imaginaccedilatildeo de vida com a atestaccedilatildeo de uma condiccedilatildeo de inegaacutevel

falta de autodeterminaccedilatildeo Assim sendo como poderemos entender a ponto de nomear a

totalidade dessa dinacircmica de percepccedilatildeo Certamente natildeo parece que a melhor escolha seja

considerar um de seus aspectos como sendo a totalidade da experiecircncia de percepccedilatildeo Assim

nos lanccedilamos ao exerciacutecio de incerteza que eacute a tentativa de dar conta da segunda questatildeo

Ao assistirmos ao jogo que o aluno de Neville Tranter realiza com o boneco Zeno

cantando a canccedilatildeo dos Muppets salta aos olhos as dinacircmicas de dissociaccedilatildeo corporal

empreendidas pelo artista nesse processo Satildeo empregados nesse exerciacutecio alguns recursos

teacutecnicos de direcionamento de atenccedilatildeo que tecircm como objetivo imprimir a percepccedilatildeo de uma

separaccedilatildeo corporal e volitiva entre manipulador agrave mostra e boneco Quando o manipulador

volta o rosto para o lado oposto onde se encontra o boneco este o olha dando a impressatildeo de

que seu movimento natildeo eacute guiado mas que implica em certa subversatildeo ao padratildeo esperado de

controle do manipulador sobre o boneco Muito da dinacircmica da apresentaccedilatildeo do ventriacuteloquo

por exemplo estaacute baseada no jogo cocircmico da subversatildeo e da discordacircncia entre o boneco e

seu operador e a forjada rebeldia do boneco eacute a maior fonte de comicidade do ato A

animaccedilatildeo estaacute constantemente lidando com a construccedilatildeo de corpos rebeldes que se ocupam

em afirmar diferenccedilas de natureza estrutural e volitiva em relaccedilatildeo ao(s) corpo(s) que os

operam Claro pode-se argumentar que o sucesso das apresentaccedilotildees dessas personagens que

postulam autonomia em relaccedilatildeo aos seus movimentadores eacute tambeacutem a construccedilatildeo de uma

alteridade que aponta no final das contas para uma impressatildeo de vida Tal impressatildeo pode

70

ocorrer em diversas ocasiotildees mas sempre como resultado da produccedilatildeo de uma diferenccedila

fiacutesica da percepccedilatildeo de um outro corpo

Balardim (2004 p 93) chama de dissociaccedilatildeo de movimentos a competecircncia teacutecnica

que permite ao artista de animaccedilatildeo comportar-se de modo a simular uma divisatildeo corporal que

apresente estruturas e vontades distintas Voltando nossas atenccedilotildees para as apresentaccedilotildees do

duo Hugo Suarez e Ines Pasic ainda que os olhos dos espectadores natildeo consigam ser

ludibriados a ponto de perder de vista o fato de que os personagens satildeo construiacutedos a partir do

joelho e das matildeos dos artistas natildeo resta duacutevida de que suas cenas constroacuteem corpos diferentes

aos deles proacuteprios corpos que interagem e dialogam com os seus operadores-atores de uma

maneira tal que conduz o espectador a reconhecer na cena o surgimento de outra presenccedila e

que essa presenccedila conteacutem certa qualidade

Muito do que se conhece em termos de preceitos teacutecnicos aplicaacuteveis sobre diversas

modalidades de teatro de animaccedilatildeo lida com a produccedilatildeo uma presenccedila corporificada por meio

do boneco ou do objeto Ou seja diversos dos princiacutepios universais de trabalho e treinamento

do operador de bonecos relaciona-se diretamente com a capacidade de dar forma ao

personagem animado e de afirmar o corpo que se cria a partir daiacute como algo diferente do

corpo de seu manipulador em sua integridade Vejamos brevemente algo sobre as noccedilotildees de

eixo e foco27

Quando se menciona eixo em diferentes processos de treinamento e formaccedilatildeo

do manipulador de bonecos de diversos estilos trata-se de determinar a integridade estrutural

o centro de articulaccedilatildeo e a loacutegica de locomoccedilatildeo do boneco Nesse processo trata-se de

construir um corpo para o boneco que possa postular a si mesmo a capacidade de transmitir

autonomia Trata-se segundo Balardim de posicionar o boneco ou objeto de modo a dar a

entender a accedilatildeo de forccedilas gravitacionais sobre ele sendo esta ldquoa marca de toda forma vivardquo

(p 103) Beltrame complementa a ideacuteia chamando atenccedilatildeo para o fato de que a forma mal

conduzida em termos de manutenccedilatildeo de seu eixo ldquoevidencia que ela estaacute sendo manipuladardquo

(2009 p 293) Um manipulador de bonecos de luva por exemplo precisa fazer com que o

seu personagem se instado a virar para o lado oposto para onde se encontrava direcionado o

faccedila girando sobre o eixo da suposta espinha dorsal do boneco em vez de fazecirc-lo a partir da

conveniecircncia de movimento do corpo do operador ou seja de sua proacutepria coluna Se assim

fosse o que deveria ser uma virada a ser executada sobre o eixo do proacuteprio boneco

transforma-se num salto em giro de grande amplitude para um boneco em escala reduzida

pois que ao girar a partir da proacutepria coluna o operador conduziria o braccedilo para um ponto

27

Haacute um capiacutetulo deste trabalho dedicado agrave pedagogia e agrave teacutecnica do artista de animaccedilatildeo Os conceitos

apontados aqui seratildeo abordados mais amiuacutede nesse momento

71

bastante distante daquele onde deveria se originar o movimento do boneco Produzir a

impressatildeo de integridade de forma e locomoccedilatildeo ao boneco eacute importante para causar a

impressatildeo de dissociaccedilatildeo corporal a qual nos referiacuteamos Quanto ao foco conceito que ainda

renderaacute discussotildees ao longo deste trabalho pode-se dizer por enquanto que se refere

diretamente ao controle da atenccedilatildeo que se dedica ao boneco e ao modo como o espectador o

percebe Aperfeiccediloar num boneco a sua qualidade focal equivale a deixar claro ao espectador

em que parte do espaccedilo repousa a sua atenccedilatildeo Podemos afirmar que as principais etapas do

direcionamento focal do boneco no sentido de produzir nele uma impressatildeo de autonomia

seriam na ordem definiccedilatildeo do foco quando eacute possiacutevel identificar com clareza onde estaacute a

atenccedilatildeo e o interesse do boneco conferindo assim a aparecircncia de uma vontade expressa por

meio da conduccedilatildeo da atenccedilatildeo e divergecircncia quando eacute dado perceber que o boneco natildeo

direciona sua atenccedilatildeo agraves mesmas coisas que seu manipulador e o faz inclusive obedecendo a

um ritmo interno que natildeo eacute o mesmo de seu operador

Outra questatildeo a ser considerada que pode vir a complementar a escolha da noccedilatildeo de

presenccedila agrave de vida estaacute ligada ao poder de teatralizaccedilatildeo que possui a apresentaccedilatildeo do boneco

Eruli menciona o boneco como sendo um corpo fundamentalmente teatral dependente da

cena para existir (ERULLI 1991 pp 7-8) Dessa afirmaccedilatildeo decorre tambeacutem a questatildeo que

determina o jogo do boneco como sendo um recurso de irresistiacutevel capacidade de conjuraccedilatildeo

de teatralidade Onde quer que o boneco se apresente da maneira que o fizer transformaraacute

seu entorno imediato em cena posto que sua dinacircmica de apresentaccedilatildeo dinamiza

caracteriacutesticas de evidente espetacularidade associadas a tensotildees entre realidade e irrealidade

crenccedila e descrenccedila presenccedila e alusatildeo que apontam para um claro caraacuteter de dramaticidade

Quando Tillis em busca de explicaccedilotildees para o duradouro apelo que o boneco exerce sobre

plateias em diversos lugares e eacutepocas verifica os parentescos atribuiacutedos ao boneco teatral

com imagens religiosas e brinquedos infantis A base argumentativa que estabelece para

refutar veementemente as teses de ascendecircncia ou descendecircncia do boneco teatral com as

imagens de culto e as bonecas de crianccedilas se encontra apoiada na afirmaccedilatildeo do historiador

norte americano Paul McPharlin de que ldquoquando os bonecos se tornam vivos em seus teatros

o encanto arrebatador que exercem eacute da ordem do teatro e do teatro apenasrdquo (McPHARLIN

apud TILLIS 1991 p 47 traduccedilatildeo minha) Nesse como em diversos outros casos de uso da

forma animadas com finalidades que natildeo sejam evidentemente teatrais o que se percebe natildeo eacute

o emprego de formas aparentadas do boneco teatral em eventos de naturezas diversas e sim o

uso de um recurso teatral para outras finalidades

72

O boneco teatral seja ele construiacutedo para a cena ou adaptado a partir de combinaccedilotildees

de materiais eou objetos ldquoencontradosrdquo apenas pode ser considerado como tal quando em

meio agrave apresentaccedilatildeo teatral Isto equivale dizer que um boneco feito para a cena digamos

uma bailarina de fios posta em exposiccedilatildeo ou usada como objeto de decoraccedilatildeo pode aludir

dada a sua forma ao boneco teatral contido nela em potecircncia mas apenas o evento teatral que

seu jogo instaura no momento em que se instaura eacute capaz de tornar o objeto em boneco

teatral Erulli considera o boneco como ldquonada aleacutem de um efeito teatralrdquo (1991 p 7) e usa

essa definiccedilatildeo como complementaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de que ldquopor definiccedilatildeo o corpo da

marionete natildeo existerdquo (idem) Trata-se portanto de uma corporalidade transitoacuteria cuja

presenccedila se indissocia do estabelecimento da cena teatral

Se esse entendimento eacute correto talvez seja mais preciso imaginar que o jogo do

boneco animado esteja mais relacionado agrave produccedilatildeo de certa presenccedila qualificada que exerce

determinada funccedilatildeo em meio a uma apresentaccedilatildeo teatral do que propriamente a uma

impressatildeo de vida autocircnoma pois que essa impressatildeo de autonomia natildeo estaacute apenas

dificultada pelos signos de inanimidade dispensados por meio dos sistemas de significaccedilatildeo de

forma movimento e fala ela se encontra tambeacutem condicionada em grande parte pela

subordinaccedilatildeo dessa impressatildeo ao contexto de espetacularidade teatral ao qual o boneco em

jogo se encontra inapelavelmente atrelado

A presente argumentaccedilatildeo ganha em forccedila e possibilidades na medida em que nos

afastamos das formas que remetem de modo mais evidente agrave figura humana rumo a arranjos

mais proacuteximos agrave abstraccedilatildeo ou ateacute mesmo a tipos de bonecos com limitaccedilotildees de forma e

movimento mais acentuadas Dois bons exemplos do que se sugere seriam as figuras

bidimensionais estaacuteticas empregadas na modalidade de apresentaccedilatildeo chamada teatro de

brinquedo e algumas das formas distanciadas da imagem humana empregadas em atos da

companhia alematilde Muumlmmenchanz

O teatro de brinquedo28

ou teatro de papel emprega para a sua apresentaccedilatildeo figuras

pintadas em cartatildeo ou madeira que na imensa maioria dos casos natildeo apresenta nenhuma

possibilidade de movimento aleacutem do deslocamento lateral que a faz entrar e sair de cena

cumprir deslocamentos pontuais ou ser levemente movimentada de modo a indicar a accedilatildeo de

28

Teatro de brinquedo (Toy Theatre) remonta da Europa do seacuteculo XIX e eacute uma modalidade de teatro de

animaccedilatildeo criada para ser uma diversatildeo caseira Era feito em sua maioria em papel ou cartatildeo e costumava ser

vendido em kits em bancas de teatros e casas de oacutepera Assemelha-se ao modo de apresentaccedilatildeo em retaacutebulo

segundo descrita em Cervantes e consistia em uma caixa aberta em uma das faces (e vatildeos laterais para a

movimentaccedilatildeo das figuras) com espaccedilos para afixaccedilatildeo de cenaacuterios e outros elementos de cena As personagens

natildeo apresentam articulaccedilotildees e movimentam-se lateralmente sendo ligados a fios ou tiras de papel manipuladas

por meio dos vatildeos laterais da caixa-palco O grupo Sobrevento criou dois espetaacuteculos cuja esteacutetica empregou

elementos do Toy Theatre Um conto de Hoffman (1988) e O Theatro de Brinquedo (1993)

73

Figura 33 Grupo Sobrevento O Theatro de brinquedo (1993) Na foto Marco Aurecirch Sandra Vargas Luiz

Andreacute Cherubini e Miguel Vellinho

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Figura 34 Grupo Sobrevento Um conto de Hoffman (1988) Na foto Sandra Vargas e Miguel Vellinho

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Foto Luiz Andreacute Cherubini

74

fala da personagem Em casos de alteraccedilatildeo muito evidente da atitude ou da accedilatildeo de uma ou

mais personagens a figura pode ser removida da cena para ser substituiacuteda por outra figura da

mesma personagem em atitude correspondente Neste caso apesar de estarmos claramente

lidando com uma modalidade de teatro de animaccedilatildeo natildeo haacute nada (ou quase nada) na dinacircmica

da figura que indique uma autonomia Haacute no entanto a construccedilatildeo de uma corporeidade

indicativa de um determinado ente que compotildee a estrutura da apresentaccedilatildeo teatral bem como

de uma presenccedila especiacutefica e densamente determinada pelas condiccedilotildees discursivas e formais

dessa apresentaccedilatildeo Se podemos ou natildeo chamar a figura do teatro de brinquedo de boneco

teatral eacute especulaccedilatildeo que deixamos para fazer apoacutes considerar o segundo exemplo

Um dos atos mais ceacutelebres da companhia Muumlmmenchanz apresenta uma figura que

consiste num tubo articulado que em uma de suas extremidades exibe uma grande bola de

plaacutestico alaranjado (Video 7) A forma que de fato conta com um dos integrantes da

companhia no interior do tubo evolui de acordo com a sua proacutepria estrutura realizando

deslocamentos torccedilotildees e movendo a bola Num dado momento a bola se desprende do tubo

levando este a executar uma accedilatildeo semelhante a um movimento de succcedilatildeo para atraiacute-la

novamente A partir desse momento desenvolve-se em conjunto com a plateia um jogo no

qual a bola eacute arremessada por e para o tubo que demonstra prazer com o brinquedo Aqui

vemos a forma apresentar caracteriacutesticas comportamentais reconheciacuteveis e que apesar de em

aspecto mais geral natildeo assemelhar em nada com a figura humana apresenta certas qualidades

por meio das quais certa semelhanccedila pode ser surpreendida O modo como pende para a frente

a extremidade superior do tubo dando a entender uma fonte de foco ndash um ponto a partir do

qual forma parece projetar olhar e desejo o modo como reage agrave bola e agrave plateia (agraves vezes com

ansiedade outras com certa irritaccedilatildeo) deixando revelar algo de uma personalidade Neste

caso natildeo se pode negar que a construccedilatildeo da forma daacute a entender a forja de uma espeacutecie de

animal ou de ente dotado de individualidade Mas o que pode dizer a seu proacuteprio respeito a

pouquiacutessima semelhanccedila que a forma do Muumlmmenchanz tem em relaccedilatildeo a um ser vivo

reconheciacutevel

A figura de teatro de brinquedo se apresenta como uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo do

quanto a animaccedilatildeo natildeo precisa obrigatoriamente se dedicar a qualificar o movimento de

objetos de modo a sugerir-lhes vida autocircnoma Ainda que se algo surge na percepccedilatildeo do

espectador como indicativo de alguma autonomia existencial esta se daacute invariavelmente por

meio da funccedilatildeo desempenhada pelo objeto em questatildeo no interior de uma apresentaccedilatildeo

teatral Jaacute haacute algum tempo me avizinhava da ideacuteia de que a produccedilatildeo de impressatildeo de vida

que funciona parcialmente (e discutivelmente) para alguns tipos de bonecos teatrais seria de

75

Figura 35 Muumlmmnechanz Atriz Floriana Frassetto

Fonte Revista PUCK ndash La marionnette et les autres arts ano 1 n4 Charleville-Meacuteziegraveres Institut

International de la Marionnette 1991 p 20

Figura 36 Muumlmmenchanz

Fonte (httpwwwmidioramacombrworks2009994the-best-of-mummenschanz)

76

fato numa tentativa de propor uma condiccedilatildeo que almejasse certa universalidade para a arte da

animaccedilatildeo de formas um tipo de inserccedilatildeo de um objeto dentro e um contexto teatral O que

ainda estaria para ser respondido corresponde agrave forma dessa inserccedilatildeo que eacute inegavelmente

especiacutefica e qualificada Dizer que o boneco desempenha a funccedilatildeo da personagem dramaacutetica eacute

redutivo e insuficiente posto que o teatro de animaccedilatildeo para aleacutem da presente discussatildeo

acerca dos afastamentos e desencontros do teatro com a forma dramaacutetica nem sempre esteve

preocupado em dispor tramas lineares em progressatildeo temporal conduzidas pela interaccedilatildeo

entre personagens Aleacutem disso eacute impreciso afirmar que bonecos representam sempre

entidades responsaacuteveis ainda que parcialmente pela conduccedilatildeo de uma trama espetacular

Por isso parece ao menos neste momento que o que qualifica a inserccedilatildeo do boneco no

contexto da apresentaccedilatildeo teatral eacute certa qualidade de presenccedila a mesma qualidade que insere

o boneco no contexto do espetaacuteculo teatral Trata-se de um modelo ciacuteclico de

retroalimentaccedilatildeo para o qual tanto a noccedilatildeo de presenccedila quanto a de inserccedilatildeo na cena teatral

qualificam-se uma pela outra

Mas se isso eacute verdade como lidamos com a criatura tubular do

Muumlmmenchanz Que contribuiccedilotildees ndash ou que desvios ndash essa forma lega ao raciociacutenio que se

busca levar adiante nesse momento A evoluccedilatildeo dessa forma sobre o palco seu jogo com a

bola e a coerecircncia dos seus arranjos corporais movimentos e sons claramente contribuem

para o entendimento expresso de que o jogo do boneco eacute por si instaurador de certa

qualidade teatral Mas a produccedilatildeo de sua presenccedila se apoacuteia sobre que tipo de impressatildeo

Ainda que se possa argumentar que um tubo encimado por uma bola guarda pouca

semelhanccedila com a figura humana natildeo eacute segredo que haacute bonecos considerados mais

aproximados da forma humana cujas estruturas desafiam bem mais a compreensatildeo da

anatomia do que uma forma vertical apoiada sobre o chatildeo cuja extremidade superior iniciou

como uma esfera para em seguida constituir-se na extremidade do tubo ligeiramente virado

para baixo como claro indicador de visatildeo e projeccedilatildeo de desejo A produccedilatildeo de semelhanccedila

em animaccedilatildeo se daacute na exata conjunccedilatildeo dos sistemas listados por Tillis de forma movimento

e fala Um boneco de luva pode perfeitamente ser uma meia com ou sem elementos no topo

dispostos agrave guisa de olhos e ainda assim imprimir com bastante clareza a ideacuteia de uma figura

aproximada do humano

O problema que o tubo do Muumlmmnechanz traz para o desenvolvimento deste

raciociacutenio eacute que de fato natildeo haacute forma animada que natildeo remeta de um jeito ou de outro agrave

lembranccedila de um ente vivo autocircnomo Sejam bonecos de luva objetos apresentados como

ideacuteias abstratas como a solidatildeo ou a morte (uma vez que satildeo presentificaccedilotildees de tais ideacuteias)

77

cartotildees pintados deslizando lateralmente em um palco de teatro de brinquedo um bastatildeo na

matildeo de um ator que faz um barquinho ou mesmo um grande corte de tecido movido por

diversas pessoas de modo a revelar certo tipo de comportamento Todos esses elementos

afirmam em seu caraacuteter de forma animada alguma semelhanccedila de vida aleacutem de um

antropomorfismo peculiar que assalta a percepccedilatildeo do espectador no momento em que este

percebe no objeto alguma coerecircncia fiacutesica e a simulaccedilatildeo da projeccedilatildeo do desejo

Seguindo entatildeo creio ser possiacutevel avanccedilar no esforccedilo de definiccedilatildeo iniciado com a

tentativa de Tillis agrave qual me permito inserir alguns pensamentos O boneco teatral passa a ser

um elemento teatral percebido pela plateia como algo diferente da integridade de um corpo

vivo e que por meio dos sistemas de signos da forma do movimento e da fala integra-se a

um contexto espetacular na funccedilatildeo de produtor de um tipo de presenccedila fundamentalmente

teatral

Neste ponto deparamo-nos com outra questatildeo Que pode parecer de importacircncia

menor mas cuja consideraccedilatildeo aponta rumos claros para reflexatildeo e treinamento acerca do

teatro de animaccedilatildeo Essa questatildeo eacute a da terminologia e da traduccedilatildeo dos termos Pois perseguir

a definiccedilatildeo de boneco teatral proposta por Tillis esbarra num complicador terminoloacutegico que

precisa ser ao menos esclarecido

Quando se busca como estamos neste momento fazendo uma definiccedilatildeo para o boneco

teatral que seja ampla e funcional recorrendo a fontes escritas em diversos idiomas surgem

divergecircncias que se estendem para aleacutem da escolha vocabular Tillis busca em sua pesquisa

estabelecer novas indagaccedilotildees e paracircmetros para a reformulaccedilatildeo ndash ou a formulaccedilatildeo enfim ndash de

uma esteacutetica para o boneco teatral Ocorre que Tillis iraacute empregar recursos e usos de seu

idioma o inglecircs para definir termos e por conseguinte as definiccedilotildees as quais esses termos se

atrelam Consideremos portanto o termo em inglecircs puppet cuja traduccedilatildeo mais usual e mais

proacutexima do que seria preciso em portuguecircs seria boneco ou boneco teatral Quando Tillis

inicia seu esforccedilo de reconhecimento de uma definiccedilatildeo eficiente a essa palavra recorre

inicialmente a uma verificaccedilatildeo de etimologia e apoiando-se numa definiccedilatildeo fornecida por

Paul McPharlin

Puppet [Boneco] deriva de pupa termo em latim para ldquomeninardquo ou

ldquobonecardquo ou ldquopequena criaturardquo A partiacutecula ndashet a torna um diminutivo uma

pequena criatura pequena A palavra marionnette de origem italiana-

francesa [que significa] ldquopequena pequena Mariardquo natildeo difere do inglecircs

puppet em seu significado baacutesico ainda que possua um final em duplo

diminutivo (apud TILLIS 1992 p 16 Traduccedilatildeo minha)

78

A aproximaccedilatildeo geneacutetica entre os termos puppet e marionnette notada por McPharlin

natildeo parece se repetir na palavra boneco escolhida para expressar a figura em portuguecircs que

deriva da boneca recreativa29

e como foi visto anteriormente a comparaccedilatildeo entre o boneco

teatral e a boneca infantil evoca questotildees que natildeo satildeo interessantes a este estudo

Mas o que parece ser particularmente digno de atenccedilatildeo no emprego das postulaccedilotildees de

Tillis em um estudo realizado em liacutengua portuguesa diz respeito a como o autor aplica o

termo puppet para qualificar objetos de teatro de animaccedilatildeo para os quais ao menos no Brasil

vem-se buscando ao longo dos uacuteltimos anos outros mecanismos descritivos

Ana Maria Amaral apresenta o termo teatro de formas animadas (AMARAL 1993) e

menciona o Congresso da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos realizado em Ouro

Preto em 1979 quando se decidiu convencionar boneco como sendo o termo geneacuterico para

definir o objeto animado que represente a figura de um homem ou animal De fato esse termo

vem a ser cunhado dessa forma para que se possa em primeiro lugar abarcar termos

empregados para estruturas especiacuteficas de bonecos como quando se usa marionete para falar

do boneco operado por meio de fios ou fantoche como referecircncia ao boneco de luva A

escolha dos termos geneacutericos surge como reconhecimento da infinidade de possibilidades de

forma e mecacircnicas de movimentaccedilatildeo presentes ao boneco teatral e que um esforccedilo de

categorizaccedilatildeo que busque isolar e nomear todas essas possibilidades eacute natildeo apenas infinito

mas desprovido de um sentido Para este estudo eacute mais valiosa a compreensatildeo de que o termo

boneco vai identificar um esforccedilo figurativo de reproduccedilatildeo da imagem do homem ou do

animal que se daacute em reconhecimento ao fato de que a linguagem teatral em questatildeo vinha jaacute

haacute algum tempo relacionando-se com poeacuteticas e vontades artiacutesticas para as quais a figuraccedilatildeo

da forma humana ou animal natildeo era mais uma questatildeo Amaral responde a essa percepccedilatildeo da

ampliaccedilatildeo das possibilidades figurativas do teatro de bonecos em uma reflexatildeo na qual se

aproxima do termo forma animada Motivada por esse reconhecimento de ampliaccedilotildees e

integraccedilotildees da linguagem do teatro de bonecos mas tambeacutem impulsionada por discussotildees

semelhantes conduzidas em outros paiacuteses e idiomas30

e do termo performing object usado

pelo artista e antropoacutelogo norte americano Frank Proschan em um estudo sobre a semioacutetica de

objetos em apresentaccedilotildees rituais e sociedade (apud AMARAL 1997 pp 25-6)

29

Definiccedilatildeo fornecida pelo Dicionaacuterio Michaelis Online em lthttpmichaelisuolcombrmodernoportuguesgt

Acesso em 22 de abril de 2011 30

Amaral menciona um coloacutequio realizado em 1985 na Itaacutelia onde se discutiu o emprego do termo figura e suas

variantes grafo-terminoloacutegicas em diversos idiomas como meio identificar esse teatro para o qual as implicaccedilotildees

antropomoacuterficas do termo boneco jaacute natildeo davam mais conta da totalidade das manifestaccedilotildees disponiacuteveis (1993

pp 241-3)

79

Assim o pensamento mais recente acerca da linguagem da animaccedilatildeo no Brasil tem se

dado no sentido de aceitar e incorporar termos que se suponham mais abrangentes e que

escapem ao aspecto tradicionalista e figurativo existente no teatro de bonecos Foi exatamente

essa necessidade de se lidar com uma base conceitual que pudesse dar conta da amplitude de

configuraccedilotildees desdobramentos e aproximaccedilotildees do boneco teatral que Amaral propocircs o termo

forma animada empregado amplamente e aceito por estudiosos e praticantes do teatro de

animaccedilatildeo O termo compreende o que se entende de maneira mais corrente como sendo o

boneco teatral mas reconhece em outros formatos de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo princiacutepios e

efeitos comuns

Mais recentemente o termo teatro de animaccedilatildeo parece ser o preferido de parte

consideraacutevel dos artistas e pensadores dedicados agrave linguagem natildeo apenas por sua

abrangecircncia mas sobretudo por apresentar uma linguagem performativa que se define a partir

de uma qualidade de accedilatildeo ou atitude (a animaccedilatildeo) ao inveacutes da necessidade de presenccedila de um

determinado elemento (o boneco ou forma animada) Ou seja a noccedilatildeo de teatro de animaccedilatildeo

ao inveacutes de teatro de bonecos ou de formas animadas define-se por meio de certa forma de

constituiccedilatildeo da cena e das relaccedilotildees especiacuteficas que se estabelecem entre os inteacuterpretes por um

lado e o puacuteblico por outro com a potecircncia teatral e sugestiva de objetos materiais e demais

elementos sobre a cena sem que haja a necessidade de se identificar um elemento

caracteriacutestico sobre a cena que dominaria o fluxo de atenccedilatildeo e em torno de cujo esforccedilo de

operaccedilatildeo caracteriacutestica toda a cena teatral se fundaria Aqui comeccedilamos a entender em que

grau devemos estar atentos ao ato de ler o material apresentado por Tillis

Para Tillis ndash de fato para o idioma inglecircs ndash o termo puppet iraacute abrigar tranquilamente

todo objeto dramaticamente relevante em uma apresentaccedilatildeo de teatro de bonecos Aliaacutes para

o idioma inglecircs o emprego do termo animaccedilatildeo (no caso animation) supotildee algumas questotildees

de entendimento jaacute que este eacute empregado em profunda relaccedilatildeo agrave modalidade cinematograacutefica

da qual fazem parte a animaccedilatildeo em stop-motion o claymation31

o desenho animado e a

animaccedilatildeo computadorizada

Natildeo se pode querer usar o texto de Tillis como ferramenta para estabelecimento de

uma definiccedilatildeo para o boneco sem perder de vista o quanto as diferenccedilas entre os idiomas

ensejam movimentos epistemoloacutegicos quase opostos O pesquisador norte americano busca

entender tudo o que se abriga sob um termo poderosamente sinteacutetico ao passo que estudiosos

31

Teacutecnica de animaccedilatildeo em stop motion com o emprego de modelos em barro ou massa de modelar

80

e artistas brasileiros empreendem jaacute haacute mais de duas deacutecadas um esforccedilo de pesquisa no

sentido de nomear categorias abrigaacuteveis sob um ainda inexistente termo sinteacutetico consensual

Este estudo optou por empregar o termo teatro de animaccedilatildeo como categorizaccedilatildeo

geneacuterica agrave linguagem teatral da qual se ocupa mas empregaraacute o termo teatro de bonecos

sempre que estiver diante de uma noccedilatildeo anterior agraves transformaccedilotildees notadas a partir do iniacutecio

do seacuteculo XX quando estiver mencionando um autor que emprega o termo ou quando houver

referecircncias agrave abrangecircncia que o termo puppet possui para o pensamento de Tillis Como este

trecho do capiacutetulo apresenta uma reflexatildeo que se daacute a partir das postulaccedilotildees do norte

americano sempre que for empregado o termo boneco este seraacute em adesatildeo agrave amplitude de

significaccedilotildees que o termo puppet tem para Tillis

Isto posto prossigamos com as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do boneco

avaliando alguns pontos tatildeo delicados quanto recorrentes Retornemos assim agrave tentativa de

responder agrave pergunta deixada em aberto paraacutegrafos atraacutes sobre se a figura do teatro de

brinquedo poderia ser chamada de boneco teatral

A princiacutepio e sobretudo se levarmos em consideraccedilatildeo a definiccedilatildeo cunhada acima natildeo

deveria restar qualquer duacutevida de que a figura do teatro de brinquedo seria um boneco Essa

duacutevida aumenta claro se percebermos que no teatro de brinquedo as figuras recortadas

podem representar as personagens do drama contado mas constituir-se tambeacutem de elementos

de decoraccedilatildeo cecircnica tais como mobiliaacuterio fundos de cenografia nuvens revoadas de

paacutessaros e assim por diante Por outro lado eacute inegaacutevel a adesatildeo por parte de pensadores do

teatro de bonecos da noccedilatildeo muito bem expressa por Obrastzov de que ldquoO boneco foi criado

para ser moacutevel Apenas quando se move torna-se vivo e apenas nas caracteriacutesticas dos seus

movimentos ele adquire aquilo que chamamos comportamentordquo (apud TILLIS 1992 p 133)

Ao delicado impulso lateral concedido por vezes agraves figuras do teatro de brinquedo como

indicativo de fala ou de accedilotildees especiacuteficas podemos reconhecer muito pouco do tipo de

movimento professado por Obraztsov quando este afirma que ldquoem matildeos humanas qualquer

objeto () pode cumprir a funccedilatildeo de um objeto vivo na imaginaccedilatildeo associativa do homemrdquo

(idem p 23 traduccedilatildeo minha) Podemos tambeacutem encontrar pouca familiaridade entre esse tipo

de movimento de forte cunho indicativo e com pouca preocupaccedilatildeo mimeacutetica dos

movimentos graciosos dos bonecos de fio quando operados por exemplo por Phillip Huber

ou do vigor e virtuosismo das luvas chinesas da proviacutencia de Fujian estudadas por Roberta

Stalberg que se apresentam em lutas acrobaacuteticas (Figura 37)

A questatildeo que aqui se elabora eacute como aumentar a precisatildeo na descriccedilatildeo do boneco

por aquilo que este representa e como usar a convicccedilatildeo de que o movimento eacute um elemento

81

fundamental para tal definiccedilatildeo se estes podem variar enormemente em dinacircmica em intenccedilatildeo

e em resultado para o espectador Os bonecos para serem considerados como tais precisam

ser moacuteveis ou podem apresentar uma qualidade de movimento que natildeo se expressa em acircmbito

cineacutetico e articular Ampliemos a questatildeo a arte eacute capaz de produzir imagens que animizam

objetos e ideacuteias conferindo a elementos abstratos e inanimados uma suposta participaccedilatildeo no

desencadeamento de tramas e narrativas A chuva impede o encontro de amantes e uma

revoada de paacutessaros diz ao espectador que eacute veratildeo Um casaco eternamente pousado sobre

uma cadeira trata de uma ausecircncia que explica atitudes e conduz eventos a determinado

desfecho bem como um corvo imaginado pode pousar perto de Edgard Alan Poe para

sussurrar-lhe ldquonunca maisrdquo O teatro de animaccedilatildeo tem na consideraccedilatildeo dessas potecircncias um

de seus principais impulsionadores e tambeacutem algo que contribui para conferir um inegaacutevel

encanto aos sujeitos de seus dramas ainda que ndash mas provavelmente exatamente por que ndash

indefina seus contornos No teatro de animaccedilatildeo a humanidade natildeo surge como uma afirmaccedilatildeo

inescapaacutevel impressa na corporalidade de seus inteacuterpretes que relativiza sistematicamente os

contextos fantaacutesticos e imaginados que apresenta por outra brota como surpresa em meio aos

aacutepices estilizados do que se supunha uma escapada do humano

Talvez este momento da reflexatildeo possa ser sintetizado com o auxiacutelio de um

comentaacuterio de Veltruskyacute no qual o semioacutelogo apresenta uma escolha de palavras que merece

atenccedilatildeo

Os movimentos transmitidos pelos bonecos satildeo similares agravequeles dos seres

que representam Natildeo eacute uma questatildeo de ser uma formulaccedilatildeo mais ou menos

precisa um momento crucial da apresentaccedilatildeo do boneco estaacute em questatildeo

[] Os movimentos do boneco transmitem um significado de impulso

interno correspondente ao impulso que produz os movimentos dos seres

vivos e por contiguidade esse significado impliacutecito se reflete na proacutepria

mente do espectador tendendo assim atribuiacute-los uma vida proacutepria (apud

TILLIS p 133)

Aqui dois verbos satildeo de fundamental importacircncia transmitir e representar

Determinado a natildeo me desviar do propoacutesito de buscar entender o boneco pela forma como

este eacute percebido e natildeo pela forma como eacute feito para ser percebido sou forccedilado a reconhecer

que a transmissatildeo de um movimento em muito pode diferir da reproduccedilatildeo do mesmo Assim

tambeacutem ocorre quando confrontamos as diferenccedilas existentes entre reproduccedilatildeo e

representaccedilatildeo Se o movimento que o boneco transmite ao puacuteblico se relaciona diretamente

com a busca da compreensatildeo de um ldquoimpulso internordquo (da construccedilatildeo de uma autonomia) o

que passa a estar em jogo na apresentaccedilatildeo do boneco deixa de ser o caraacuteter de projeccedilatildeo

espacial do movimento para ser o exerciacutecio de um tipo de movimento que muito bem poderia

82

Figura 37 Bonecos de luva chineses da proviacutencia de Fujian

Fonte (httpwwwredbubblecompeopledavviart6374739-sock-puppet-of-south-fujian)

Foto davvi

A luva chinesa se notabiliza por movimentos acrobaacuteticos e vigorosos mostrando em geral cenas de lutade

danccedila e de operaccedilatildeo de objetos

Figura 38 Pulcinella e Salvatore Gatto

Fonte (httporiundinetsite)

Figura 39 Duas diferentes pegas para

bonecos de luva

Fonte Programa O Teatro do Sobrevento

83

estar caracterizado com fundamentos no conceito de accedilatildeo dramaacutetica presente nos escritos de

Constantin Stanislavski e muitos dos autores de alguma forma tocados por sua obra Ou seja

trata-se de um tipo de accedilatildeo (deslocamo-nos agora do termo anteriormente apresentado

movimento) que qualifica seu executante como partiacutecipe do intercacircmbio de desejos que

impulsionam o curso da trama Mas que qualifica o seu executante a partir do reconhecimento

de um impulso interior vital do qual suas atitudes e atividades se relacionam em decorrecircncia

direta Uma vez que esse impulso interior se caracteriza natildeo apenas por seu componente

volitivo mas como resultado da percepccedilatildeo de outras forccedilas tais como o senso criacutetico e a

capacidade afetiva passa a ser possiacutevel entender o movimento do boneco como uma

qualidade de estar em cena que lhe atribui caracteriacutesticas evocativas agrave condiccedilatildeo e ao

comportamento humanos

Isto equivale dizer que um elemento em cena poderia natildeo apresentar movimentaccedilatildeo e

nem forma assemelhadas ao ser humano mas se este estiver inserido na trama espetacular de

modo a fazer o puacuteblico entender que uma vida interior lhe produz certa vontade e que o

exerciacutecio dessa vontade potildee em movimento as accedilotildees que constituem a trama espetacular este

seria visto como um boneco

O Pulcinella executado pelo artista de bonecos de luva napolitano Salvatore Gatto

(Figura 38) eacute um objeto com forma movimento e fala que apresenta alguns aspectos de

semelhanccedila com o ser humano apesar dos claros recursos de estilizaccedilatildeo e deformaccedilatildeo

presentes nos trecircs aspectos listados32

Haacute poucas duacutevidas de que se trate de um boneco teatral

uma vez que pode ser adequadamente identificado com formas tradicionais remontando

mesmo aos finais do seacuteculo XVI na Europa As accedilotildees que executa em cena nos permite

identificar uma personagem dramaacutetica com motivaccedilotildees caracteriacutesticas fiacutesicas e

comportamentais que guardam alguma coerecircncia Nem sempre eacute capaz de nos iludir quanto a

possibilidade de possuir uma vida autocircnoma mas transmite ao puacuteblico indiacutecios de uma vida

imaginada subordinada ao contexto de sua apresentaccedilatildeo sem mencionar que seus atos de

espancamento assassinato e maquinaccedilotildees produzem consequecircncias importantes no

desenvolvimento da trama apresentada

Dada a profunda relaccedilatildeo do boneco teatral com a cena posto que sua vida imaginada

apenas pode ser atribuiacuteda em meio ao contexto teatral no qual se insere e que a apresentaccedilatildeo

de um boneco eacute suficiente para conjurar qualidades teatrais agrave apresentaccedilatildeo parece claro aqui

que o entendimento dessa vida imaginada e por conseguinte o ato de animaccedilatildeo que traz a

32

Gatto emprega um recurso de estilizaccedilatildeo vocal o swazzle Uma espeacutecie de apito rudimentar postado em geral

sob a liacutengua ou sob o palato de modo a conferir agrave voz do boneco um som esganiccedilado

84

reboque o proacuteprio entendimento de boneco teatral se encontra mais relacionada com a

participaccedilatildeo do boneco (ou do que ele representa) em uma trama espetacular do que

propriamente a sua capacidade de executar accedilotildees fiacutesicas no que diz respeito a movimento

articular e deslocamento espacial O que busca se afirmar aqui eacute que o boneco (e o ato que o

anima) se daacute na medida exata do tipo de participaccedilatildeo que este exerce sobre a cena e natildeo por

meio da observacircncia de qualidades intriacutensecas estabelecidas a priori da sua relaccedilatildeo com a

cena Se nos recordarmos dos trecircs sistemas de signos (de forma de movimento e de fala)

atribuiacutedos por Tillis como sendo inerentes ao boneco teatral cabe a atestaccedilatildeo de que natildeo se

pode localizar tais sistemas no boneco teatral senatildeo por meio de uma ampliaccedilatildeo da

compreensatildeo dos mesmo e no reconhecimento de que o boneco natildeo necessita para afirmar-se

como tal enviar agrave plateia signos claros e intensos pertencentes aos trecircs sistemas

simultaneamente Tillis admite a existecircncia de um tipo de movimento para o boneco que ele

chama de movimento impliacutecito (1992 p141) Para Tillis o movimento impliacutecito seria

extriacutenseco ao boneco e provocado por efeitos de cenografia e luz Ele exemplifica o seu

ponto com os dioramas religiosos do museu da comunidade restauracionista da cidade de Salt

Lake City nos Estados Unidos Ali um movimento de luz com alternacircncia de foco sobre

determinadas figuras estaacuteticas como estaacutetuas de cera indicaria que personagem seria o

emissor da fala apresentada no sistema de som do museu e sugeriria variaccedilotildees de expressatildeo

facial e pequenos gestuais por meio da alternacircncia de luz e sombra durante a apresentaccedilatildeo que

conta a histoacuteria do mormonismo na Ameacuterica do Norte

Ora o simples reconhecimento de que a noccedilatildeo de movimento para o boneco natildeo se

restringe a uma dinacircmica articular em conjunccedilatildeo com as demais questotildees aqui discutidas

conduzem a exemplos que parecem difiacuteceis de ser ignorados

O espetaacuteculo Terceira Margem apresentado no Rio de Janeiro em 200333

pelo grupo

de brasileiros radicados na Holanda Munganga com direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro apresentava

bonecos como peccedilas pouco articuladas sendo que algumas sequer possuiacuteam pontos de

articulaccedilatildeo (Figuras 40 e 41 Video 8) Entre elas destaca-se a peccedila uacutenica esculpida em

madeira que representava a personagem do Pai que no conto de Guimaratildees Rosa que inspirou

o espetaacuteculo decide largar a famiacutelia para viver dentro de uma canoa sendo levado pela

correnteza do Rio Satildeo Francisco Ainda que fosse apresentado como uma peccedila uacutenica natildeo

articulada e carregada no palco pelo ator a importacircncia da figura estaacutetica dentro da trama

contada a sua participaccedilatildeo na conduccedilatildeo da accedilatildeo do espetaacuteculo e da histoacuteria do conto

33

As referidas apresentaccedilotildees ocorreram em 16 e 17 de novembro de 2003 como parte das atraccedilotildees daquele ano

do festival riocenacontemporanea Essas apresentaccedilotildees constituiacuteram-se na estreia do espetaacuteculo

85

Figura 40 Munganga Teatro Terceira Margem (ator Carlos Lagoeiro)

Fonte (httpwwwmunganganl)

Foto Maarten Brinkgeve e Arijan van den Berg

Figura 40 Munganga Teatro Terceira Margem (ator Carlos Lagoeiro)

Fonte (httpwwwmunganganl)

Foto Maarten Brinkgeve e Arijan van den Berg

A apresentaccedilatildeo dos bonecos natildeo articulados sobre a cena se daacute por meio da relaccedilatildeo estabelecida pelo ator

com os mesmos

86

encenado satildeo de tal modo fundamentais que natildeo se pode escapar a atribuir agrave figura um

estatuto de personagem e por conseguinte de boneco teatral

O espetaacuteculo Isto natildeo eacute um cachimbo da companhia Truks eacute uma das poucas

incursotildees do grupo paulistano em teatro para adultos e se inspira na obra do pintor Reneacute

Magritte Haacute uma cena na qual um manequim com rodas vestido e com um par de seios agrave

mostra eacute operado alternadamente por uma atriz e um ator (Figuras 42 e 43) A cena aborda a

violecircncia contra a mulher com a atriz fazendo as vezes de um duplo para o manequim e o

ator seria algueacutem que a subjuga sexualmente com violecircncia Como a movimentaccedilatildeo conferida

agrave manequim se daacute sempre em meio a uma atitude de conduccedilatildeo da personagem apresentada por

cada um dos atores que com ela se relaciona natildeo se consegue atribuir ao seu deslocamento

um desejo autocircnomo da figura Esse movimento extriacutenseco e involuntaacuterio adere perfeitamente

agrave temaacutetica da cena fazendo da figura e da sua ineacutercia personagem central dessa passagem do

espetaacuteculo

Lidamos entatildeo com casos para os quais os signos de movimento do boneco natildeo podem

ser entendidos senatildeo em ampliaccedilatildeo agraves ideias de deslocamento e articulaccedilatildeo De fato natildeo

podemos chegar ao ponto de aferrarmos-nos a uma concepccedilatildeo de boneco teatral para a qual os

entendimentos de sua estrutura natildeo nos permitam perceber suas funccedilotildees teatrais

Tillis chega mesmo a vacilar no que diz respeito a esse modo de ver as coisas quando

ao tratar da apreciaccedilatildeo que Jurkowski faz sobre o Quixote de Joseph Krofta quando diz que

na cena em que o protagonista eacute pulverizado numa cena de espancamento entre um banco no

cenaacuterio um ator que reage agraves pancadas e um boneco de Don Quixote destruiacutedo por outros

atores que esse boneco seria natildeo mais que uma efiacutegie A aderecircncia da figura agrave personagem e

a sua importacircncia para a conduccedilatildeo da trama expressa natildeo apenas na obra de Cervantes mas

do espetaacuteculo teatral que dela faz uso natildeo nos permite lanccedilar matildeo de exigecircncias de certas

qualidades de movimento para atestar se este se trataria ou natildeo de um boneco Assim

entendemos o boneco teatral como uma figura inserida num contexto espetacular bem como

o ato de animar como sendo a estrutura relacional responsaacutevel por tal inserccedilatildeo

Tillis discute as diferenccedilas que considera existir entre o boneco teatral e o elemento

teatral que Proschan chama de performing objetct34

refutando a existecircncia de animaccedilatildeo em

diversas das ocasiotildees que constam da descriccedilatildeo de Proscham ldquobonecas de brincadeiras

infantis passando por paineacuteis e imagens acompanhadas por narrativas por peep shows e

objetos de maacutegica ateacute figurinos e adereccedilos de apresentaccedilotildees teatrais [] danccedilarinos

34

Uma traduccedilatildeo considerada satisfatoacuteria para o termo e que seraacute doravante empregada eacute objeto de

representaccedilatildeo

87

Figura 42 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo

Manequim (atriz Camila Prietto)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Figura 43 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo

Manequim (atriz Camila Prietto)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Figura 44 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Gaiola

Fonte (httpwwwtrukscombr)

A forma humana eacute evocada por semelhanccedila por movimento e por participaccedilatildeo na cena

88

mascarados devotos que carregam imagens em procissotildees e contadores de histoacuterias que

traccedilam imagens na areia ou na neverdquo (PROSCHAN apud TILLIS 1992 p78) Natildeo se pode

negar que a abrangecircncia das consideraccedilotildees de Proschan poderiam suscitar discussotildees acerca

de categorias especiais de apresentaccedilatildeo e dramatizaccedilatildeo tais como a brincadeira infantil a

procissatildeo e a marcaccedilatildeo sobre a areia ou a neve mas o argumento central empregado por Tillis

para descartar diversos exemplos do que eacute categorizado por Proschan (e pelo proacuteprio Tillis)

como sendo objeto de representaccedilatildeo eacute motivo de discordacircncia deste estudo Ao comentar uma

categoria de elemento de cena tratado por Jiri Veltruskyacute sob o termo objeto de encenaccedilatildeo35

Tillis natildeo a reconhece como possiacutevel forma animada no sentido em que a tais elementos natildeo

satildeo atribuiacutedos movimento ou fala de modo a forjar uma percepccedilatildeo de vida autocircnoma Ele

complementa o argumento afirmando que o puacuteblico natildeo consegue imaginar vida nesses

elementos vendo-os sempre e imutavelmente como os objetos que deveras satildeo (idem)

Aceitar o argumento de Tillis equivale a rebaixar a carranca que representa o Pai de Terceira

Margem e o manequim de Isto natildeo eacute um cachimbo a mobiacutelia cenograacutefica quando de fato natildeo

se pode negar que tais elementos participam da cena de modo preponderante com a mesma

intensidade com que satildeo capazes de produzir significados sobre a cena que versam acerca de

uma presenccedila que se abre agrave imaginaccedilatildeo de certa qualidade de vida Se acreditarmos que o ato

de animar estaacute invariavelmente relacionado agrave qualidade de participaccedilatildeo de um elemento sobre

a cena teatral e a importacircncia que este assume sobre a trama que a cena invoca natildeo seraacute

possiacutevel entender a forja de uma vida em cena que se decirc de outra maneira que natildeo em direta

relaccedilatildeo com as qualidades de narraccedilatildeo e figuraccedilatildeo da proacutepria cena Animar natildeo eacute dar a crer

que algo pensa e se move por si apenas eacute produzir uma participaccedilatildeo vital e integrada de um

elemento em uma cena teatral de modo a que ambos elemento e cena troquem entre si os

indiacutecios de uma presenccedila

Retornando agrave figura do teatro de brinquedo que natildeo apresenta possibilidades

articulares assemelhadas ao movimento humano com ainda menor poder de convencimento

acerca de possuir vida autocircnoma do que um boneco com mais recursos de movimentaccedilatildeo se

encontra inserido no contexto de uma trama espetacular de modo a transmitir ao seu

espectador (no que isso tem de distinto do ato ou tentativa de convencer ou iludir) a existecircncia

de uma vida interior que enseja accedilotildees capazes de impulsionar o desenvolvimento dos eventos

assistidos E eacute nesse ponto que o boneco do teatro de brinquedo se diferencia dos outros

35

Tillis recorre ao exemplo fornecido pro Veltruskyacute de uma porta e uma mesa mencionadas no Tartufo de

Moliegravere para as quais em determinados momentos da peccedila certas personagens direcionam falas e atitudes

tratando-as como iacutendices de outras personagens (op cit p 79)

89

recortes com funccedilatildeo mais notadamente cenograacutefica Ainda que natildeo se possa discordar de

certa qualidade teatral atribuiacuteda a uma cena que se compotildee a partir do entendimento de certa

essencialidade quando cada elemento contribui de maneira crucial para o estabelecimento e o

entendimento da obra nem todos esses elementos contribuem por meio da mobilizaccedilatildeo das

forccedilas que compotildeem a accedilatildeo de um espetaacuteculo teatral Um objeto em cena seraacute capaz de

mobilizar tais forccedilas por causa e resultado da evocaccedilatildeo de alguma qualidade humana que este

causa sobre a percepccedilatildeo da plateia

Retornamos assim a um dos exemplos usados anteriormente a combinaccedilatildeo tubo e bola

apresentada pelo grupo Muumlmmenchanz Sua forma natildeo remete senatildeo muito longinquamente a

uma figura humana por meio de certa postura ereta encimada por uma esfera o que poderia

tambeacutem evocar uma cabeccedila Muitos bonecos de luva conseguem perfeitamente transmitir uma

impressatildeo de antropomorfismo mais clara que a forma mencionada e ter no lugar da cabeccedila

uma esfera bastante semelhante De qualquer forma ainda que por vezes algo em sua forma

possa sugerir com um grande esforccedilo de imaginaccedilatildeo uma figura humana os acertos que

produzem tal impressatildeo satildeo provisoacuterios Natildeo leva muito tempo ateacute que a bola e o tubo

separem-se alterando para o puacuteblico a estrutura percebida do objeto ainda mais para o fim

da cena o tubo posta-se horizontalmente sobre a plataforma situada ao centro do palco unido

suas duas extremidades e assumindo a forma de um anel fechado Natildeo eacute portanto a evocaccedilatildeo

da forma humana o que produz a percepccedilatildeo desse objeto como um boneco teatral Natildeo haacute

tambeacutem nada em sua forma ou movimento que o identifique com alguma tradiccedilatildeo

reconhecida em teatro de bonecos Natildeo se parece com um boneco de luva de vara de

manipulaccedilatildeo direta de sombra Seguramente natildeo eacute uma maacutescara e creio natildeo haver argumento

que o caracterize como um figurino para o ator que o opera de dentro

Natildeo apresenta caracteriacutestica de fala a natildeo ser quando emite sons guturais na

imaginada tentativa de recuperar a bola separada do tubo

Seu movimento no entanto apresenta alguns indicativos mais claros Apresenta

direcionamento focal e dirige sua atenccedilatildeo no mais das vezes a partir do orifiacutecio superior do

tubo para pontos no espaccedilo com clareza e tensatildeo suficientes para produzir na plateia a

impressatildeo de que possui vontade e reage a estiacutemulos A extrema simplicidade do contexto no

qual se insere ndash o jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da bola pontuado pelo desejo de tecirc-la

proacuteximo a si ndash quase produz a percepccedilatildeo de que o objeto exibe sua autonomia de vida e

ldquoviverdquo independentemente do contexto mas eacute importante que natildeo nos iludamos Seraacute o

engajamento da forma num contexto ndash ainda que improvisado ndash a senha para a adesatildeo da

imaginaccedilatildeo da plateia Um boneco sem um motivo faz seus movimentos provocarem uma

90

percepccedilatildeo aleatoacuteria como um brinquedo de corda perde a capacidade de angariar atenccedilatildeo

apoacutes algumas repeticcedilotildees ou se tem seu deslocamento impedido por uma queda ou um

obstaacuteculo

Assim seja com bonecos cuja forma apresenta um desejo mais niacutetido de assemelhar-se

ao corpo humano seja com bonecos no qual a figura humana se encontra indicada por

algumas caracteriacutesticas visiacuteveis em meio a uma estrutura geral bastante estilizada ou numa

combinaccedilatildeo de elementos materiais sem a menos intenccedilatildeo inicial de evocar semelhanccedila

(mesmo porque os personagens dos dramas para bonecos podem perfeitamente natildeo serem

representaccedilotildees de seres humanos) apenas conseguiremos caracterizar um elemento numa

cena teatral como sendo um boneco se nele conseguirmos capturar qualquer qualidade

evocativa de humanidade Dessa forma passamos a abordar a existecircncia de um tipo de

semelhanccedila que ainda que natildeo seja de ordem fiacutesica pois que se faz identificaacutevel em signos de

movimento de relaccedilatildeo com a trama de emissatildeo de som ainda assim consegue operar sobre a

estrutura formal do elemento de cena suposto boneco produzindo assim para ele certa

qualidade que creio podermos dizer eacute antropomoacuterfica

Ora se somos capazes de concordar que seraacute uma qualidade de antropomorfismo o

que iraacute dar a entender um elemento em cena como um boneco teatral e se o consenso

alcanccedilado pelos fazedores e pensadores do teatro de animaccedilatildeo brasileiro foi de que seraacute

considerado boneco o elemento animado capaz de figurar um homem ou animal assim sendo

parece escapar ao seu propoacutesito a adoccedilatildeo de termos auxiliares para determinar o objeto

animaacutevel que natildeo eacute um boneco posto que o ato de animar poderaacute ser entendido como a

capacidade de conferir em algum niacutevel certa qualidade antropomoacuterfica ao elemento posto em

cena O que natildeo se pode ignorar no curso desta reflexatildeo no entanto eacute o quanto a busca de

uma terminologia mais abrangente para o objeto animado se situa na afirmaccedilatildeo de uma

ampliaccedilatildeo de possibilidades figurativas dadas ao boneco teatral e de como essa vontade

ampliadora aponta para desejos de apresentaccedilatildeo e discussatildeo do sujeito dramaacutetico que natildeo

estatildeo presentes em formatos considerados mais tradicionais do teatro de bonecos Por vezes a

produccedilatildeo de uma presenccedila qualificada sobre a cena pode se dar por meio de uma dinacircmica de

utilizaccedilatildeo de materiais cujos efeitos vatildeo e vecircm ao sabor da qualidade de seu manuseio ou do

curso da trama espetacular (como se daacute em espetaacuteculos do Ventoforte) ou pelo

estabelecimento de relaccedilotildees em cena que podem ateacute dispensar o objeto animaacutevel Em Les

91

Puces Savantes36

da companhia francesa Petits Miracles o casal de atores apresentava um ato

de pulgas amestradas sem que houvesse qualquer objeto representando os animais Os

espectadores postavam-se em torno de um picadeiro em miniatura com alguns objetos tais

como cadeiras um trapeacutezio e uma piscina Ainda que natildeo houvesse objetos para

representarem as pulgas artistas a atuaccedilatildeo do apresentador em conjunccedilatildeo com a

caracterizaccedilatildeo do espaccedilo e a disposiccedilatildeo dos truques efeitos e aspectos do relacionamento

entre o ator e as ldquopulgasrdquo provocavam no puacuteblico a imaginaccedilatildeo da presenccedila das pequenas

personagens na subordinaccedilatildeo que essa presenccedila estabelece com o contexto especiacutefico do

espetaacuteculo

Este uacuteltimo exemplo seria parece um caso claro e radical de o quanto o esforccedilo de

identificaccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo do boneco teatral ndash do objeto da figura da forma animada ndash

parece prescindir do reconhecimento de caracteriacutesticas intriacutensecas ao objeto Em substituiccedilatildeo

a isso segue-se o reconhecimento por parte do puacuteblico de meios e recursos de produccedilatildeo de

uma presenccedila qualificada sobre a cena feita em interaccedilatildeo com elementos teatrais tanto

dramatuacutergicos como plaacutestico-performativos e dos quais a dinacircmica dos atores pode ser

reconhecido como um dos mais proliacuteficos e recorrentes Essa afirmaccedilatildeo atinge mortalmente

aquela anteriormente mencionada de Jurkowski que vecirc o boneco como sendo o traccedilo

distintivo do teatro de bonecos Parece que natildeo haacute meio de aceitar a afirmaccedilatildeo de Jurkowski

sem levar em conta ao menos a existecircncia de questotildees acerca do estatuto do boneco teatral

que indeterminam seus contornos e suas diferenccedilas em relaccedilatildeo aos demais elementos da cena

teatral

A forma animada pode assim ser entendida como uma estrutura que se monta por

meio das relaccedilotildees teatrais que estabelece Dessas relaccedilotildees possiacuteveis a mais dinacircmica

recorrente e proliacutefica eacute sem sombra de duacutevida a que se estabelece com o artista que a opera

A relaccedilatildeo entre operador e objeto eacute o que na imensa maioria das vezes ditaraacute a dinacircmica

cecircnica do jogo da animaccedilatildeo pois a combinaccedilatildeo das duas entidades ndash objeto e operador ndash

impotildee a mecacircnica da estruturaccedilatildeo da forma da movimentaccedilatildeo da fala e da inserccedilatildeo da

personagem animada dentro do contexto do espetaacuteculo teatral Natildeo seria de se espantar a

afirmaccedilatildeo de que uma transformaccedilatildeo ampliaccedilatildeo ou mesmo reposicionamento conceitual do

que seria o boneco teatral ou a forma animada acarreta numa transformaccedilatildeo obrigatoacuteria na

consideraccedilatildeo na preparaccedilatildeo e no entendimento da funccedilatildeo do artista operador dentro do atual

36

A traduccedilatildeo literal para o tiacutetulo desse espetaacuteculo seria As pulgas espertas No entanto quando da sua

apresentaccedilatildeo na ediccedilatildeo de 2006 do festival SESI Bonecos do Mundo o espetaacuteculo recebeu o tiacutetulo em portuguecircs

de O circo de pulgas

92

teatro de animaccedilatildeo Natildeo eacute possiacutevel perceber uma alteraccedilatildeo na construccedilatildeo formal da

personagem animada sem que algo se altere no estatuto do artista e nas maneiras como a

integraccedilatildeo desse artista com o boneco engendra corpos Corpos esses que parecem em certas

praacuteticas mais recentes alterados em suas partes isoladas e no resultado das combinaccedilotildees que

monta tanto em termos de seus modos de estruturaccedilatildeo e relaccedilatildeo quanto na maneira como satildeo

percebidos pela plateacuteia

Assim formulamos a nossa segunda questatildeo que indaga os entendimentos as

apresentaccedilotildees e as competecircncias presumidas ao artista dedicado ao teatro de animaccedilatildeo

Figura 45 Cie Petits Miracles Les puces savantes (ator Jean-Dominique Kerignard)

Fonte (httpleminutemanaquaraycom)

93

232 Que formas e funccedilotildees podem ser atribuiacutedas ao artista de animaccedilatildeo

2321 A questatildeo terminoloacutegica

Iniciamos este momento buscando precisar um pouco mais qual seria o artista de

animaccedilatildeo que abordamos neste estudo com vistas a deixar de lado uma das diversas aacutereas de

indeterminaccedilatildeo formadas em torno dos entendimentos sobre o artista que se encarrega de lidar

com teatro de animaccedilatildeo seja a partir de uma escolha poeacutetica e profissional duradoura seja em

meio a uma experiecircncia momentacircnea Como em diversos momentos deste estudo buscaremos

partir de uma avaliaccedilatildeo da terminologia empregada

Alguns dos diversos termos empregados para descrever o artista do teatro de animaccedilatildeo

em portuguecircs satildeo bonequeiro marionetista fantocheiro titeriteiro ndash ou titereiro ndash (derivado

do castelhano) mamulengueiro (para o caso do artista dedicado a esse teatro em especial que

tambeacutem carregam as designaccedilotildees de mestre e de brincante) seguidos por outros termos que

como poderemos perceber logo adiante ocupam funccedilotildees ligeiramente distintas daquela das

primeiras palavras arroladas Satildeo os termos manipulador animador ator-manipulador ator-

animador operador Algumas outras palavras tambeacutem satildeo empregadas de modo a buscar

atender a funccedilotildees mais especiacuteficas tais como construtor e confeccionador

Ao virarmos nossa atenccedilatildeo para a primeira lista de palavras ainda que consigamos

identificar termos diretamente relacionados a formas determinadas dentro da linguagem do

teatro de animaccedilatildeo como satildeo os casos de fantocheiro37

e mamulengueiro esses termos

acabam por revelar-se por demais imprecisos para compreender a definiccedilatildeo do artista a partir

da sua funccedilatildeo de especialidade Termos tais como bonequeiro e marionetista podem ser

empregados indefinidamente para determinar o artista de teatro de bonecos no exerciacutecio da

funccedilatildeo da idealizaccedilatildeo da produccedilatildeo da construccedilatildeo dos bonecos e cenaacuterios bem como das

atividades relacionadas agrave operaccedilatildeo dos bonecos e agrave apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos

Essa indefiniccedilatildeo possui um motivo evidente pois o emprego desses termos se daacute de

modo a fazer referecircncia a uma certa qualidade de artista de teatro de animaccedilatildeo que apesar de

bastante difundido e presente em nosso imaginaacuterio como encarnaccedilatildeo mais emblemaacutetica e

tradicional desse artista natildeo estaacute presente em todas as manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo

Refiro-me aqui agravequele artista de teatro de bonecos solitaacuterio e autosuficiente senhor de todas

37

O termo fantocheiro se refere no mais das vezes ao artista dedicado ao trabalho com o fantoche termo que

em portuguecircs tende a designar o boneco de luva Fato eacute que a origem dessa palavra o termo italiano fantoccino

(no plural fantoccini) poder ser empregado para referir-se a bonecos teatrais em variadas formas e meios de

operaccedilatildeo e natildeo apenas agrave luva

94

as etapas da criaccedilatildeo apresentaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo do seu trabalho O artista que se encarrega

tanto do trabalho de construccedilatildeo quanto do de apresentaccedilatildeo do seu elenco valendo-se das

dimensotildees diminutas de muitos teatros de bonecos para encerraacute-lo numa mala e ldquoganhar o

mundordquo

Tillis em referecircncia agrave terminologia em liacutengua inglesa conta uma histoacuteria sobre o

emprego da palavra puppeteer cuja traduccedilatildeo aproxima-se em forma e significaccedilatildeo da

primeira parte da nossa lista de termos (TILLIS 1992 p 30) Tillis menciona Ellen Van

Volkenburg fundadora do Chicago Little Theatre que teria se saiacutedo com o vocaacutebulo por

inspiraccedilatildeo do termo empregado para o criador de mulas e condutor de charretes tracionadas

por esse animal muleteer (em portuguecircs muleteiro) Ainda que Tillis natildeo se aprofunde nos

motivos de Volkenburg parece ao menos curioso que o termo escolhido aleacutem da sonoridade

peculiar refira-se a uma funccedilatildeo dupla ou acumulada de criar e por as mulas para trabalhar A

referecircncia a essa funccedilatildeo muacuteltipla e acumulada para Volkenburg nos diz Tillis foi

considerado adequado devido ao seu caraacuteter de maleabilidade Um termo que abrigasse a

multicompetecircncia dos artistas que acorriam ao Chicago Little Theatre durante a primeira

deacutecada do seacuteculo XX que incorporaram um perfil a uma parte dos artistas de bonecos norte

americanos ndash e natildeo apenas norte americanos ndash que perdura ateacute nossos dias

Catin Nardi fundador e diretor artiacutestico da companhia Navegante de teatro de bonecos

define o que ele chama de marionetista como sendo ldquoum misto de ator diretor e artista

plaacutesticordquo (Nardi)38

De fato a explicaccedilatildeo de Nardi acompanha o entendimento do teatro de

animaccedilatildeo como sendo um processo de combinaccedilatildeo de meios expressivos ao menos no que se

refere agrave integraccedilatildeo entre criaccedilatildeo plaacutestica e criaccedilatildeo cecircnica Nardi explica

[] acho que tem um equiliacutebrio mesmo entre esses dois universos [da

construccedilatildeo e da apresentaccedilatildeo de bonecos] e satildeo dois universos inteiramente

diferentes [] porque na hora que vocecirc estaacute criando para construir

necessariamente vocecirc estaacute permanentemente pensando em cena [] Vocecirc

estaacute ali nesse universo de projeto de construccedilatildeo com uma finalidade teatral

cecircnica (Idem)

A imagem do artista de bonecos solitaacuterio e multicompetente estaacute de fato presente

com assiduidade na praacutetica e no pensamento ocidentais desde haacute muito tempo ainda que

longe de ocupar uma dominacircncia capaz de obliterar a consideraccedilatildeo de outras configuraccedilotildees

possiacuteveis para o artista de animaccedilatildeo Tillis recolhe a declaraccedilatildeo de um artista britacircnico David

Currel ldquoo marionetista eacute uma combinaccedilatildeo rara de escultor modelador pintor costureiro

eletricista carpinteiro ator escritor produtor desenhista e inventorrdquo (TILLIS apud Currel

38

Citaccedilatildeo extraiacuteda da entrevista que consta como anexo a esta tese

95

1987 p1) Entender esse tipo de artista ndash de funccedilatildeo artiacutestica ndash a partir de uma combinaccedilatildeo de

capacidades posta de modo a permitir tracircnsitos entre diferentes atividades e linguagens de

produccedilatildeo artiacutestica eacute algo que versa tanto a respeito do entendimento de um artista autocircnomo

no que toca a produccedilatildeo e gerenciamento de aspectos criativos e funcionais do evento teatral

quanto da forma como o teatro de animaccedilatildeo enseja e solicita a formaccedilatildeo de um artista que

consiga mostrar alguma operatividade multi e transdisciplinar de modo a atender as demandas

da proacutepria linguagem Cria-se assim o entendimento de um artista interessado e dedicado

ldquotanto agrave brincadeira propriamente dita quanto agrave sua preparaccedilatildeo e de seu espaccedilordquo39

Isto

permite a consideraccedilatildeo de que ldquopreparar o espaccedilo de jogordquo seria uma variaacutevel do proacuteprio

jogo Ou seja a animaccedilatildeo algo impossiacutevel de ser reduzida ao ato manipulatoacuterio do jogo de

apresentaccedilatildeo da forma diante do puacuteblico eacute algo que estaacute em operaccedilatildeo desde as suas etapas de

elaboraccedilatildeo

De fato se levarmos em consideraccedilatildeo a declaraccedilatildeo de Catim Nardi apresentada mais

acima deparamo-nos com a proposiccedilatildeo de um artista para o qual a integraccedilatildeo entre

linguagens e competecircncias eacute inerente ao proacuteprio meio de expressatildeo com o qual este lida Se

entendermos que segundo cremos estar contido nas palavras de Catim o teatro de animaccedilatildeo eacute

uma combinaccedilatildeo especiacutefica de linguagens expressivas cujo processo de criaccedilatildeo pode se dar

em provocaccedilatildeo muacutetua entre expressatildeo plaacutestica e expressatildeo cecircnica talvez seja liacutecito imaginar

o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco ou da forma animada como algueacutem capaz de

dinamizar estiacutemulos materiais e espetaculares e sobretudo de provocar um diaacutelogo

integrativo potente entre os aspectos expressivos contidos nos materiais e as qualidades

discursivas de estruturaccedilatildeo cecircnica

A discussatildeo eacute ampliada por meio daquilo que Alexandre Faacutevero fundador da Lumbra

Teatro de Animaccedilatildeo aponta como sendo as diferentes caracterizaccedilotildees do sombrista termo

por ele cunhado e desenvolvido para definir o artista dedicado agraves linguagem expressiva da

sombra de acordo com a linha de trabalho e pesquisa traccedilada por ele junto agrave Lumbra

eu posso dizer que existe o sombrista avanccedilado ou sombrista profissional

que eacute esse polivalente que eacute capaz de planejar uma obra de arte e executaacute-la

em todos os sentidos que isso possa abranger Depois tem os outros niacuteveis de

sombristas que eu considero que satildeo natildeo menores mas correspondentes ao

fazer teatral Entatildeo tem o sombrista teoacuterico que eacute o que especula que eacute o

que estuda que eacute o que busca na histoacuteria que coloca isso que traduz livros

que assiste espetaacuteculos que tem um senso criacutetico mas que no fundo no

fundo natildeo entende da mecacircnica da construccedilatildeo de um espetaacuteculo Depois a

39

Essa imagem resulta da adaptaccedilatildeo de uma frase semelhante dita pelo fundador da Companhia Caixa do

Elefante em um encontro entre a referida companhia e a PeQuod- Teatro de Animaccedilatildeo realizada em marccedilo de

2011 em Porto Alegre como parte do Projeto Rumos Itauacute Cultural A gravaccedilatildeo do debate que conteacutem a frase

consta nos anexos desta tese

96

gente pode passar para um outro tipo de sombrista que eacute um sombrista

curioso que aleacutem de pensar e se interessar ele experimenta coisas Ele pode

natildeo ganhar a vida com isso ele pode natildeo ser visto pelos outros como um

profissional mas ele experimentou ele testou ele brincou com isso Depois

tem um sombrista mais teacutecnico Ele entende o processo ele jaacute experimentou

ele consegue refletir ele tem referecircncias ele consegue criar de alguma

forma imagens complexas dentro dessa linguagem mas ele natildeo eacute capaz de

atuar Ele natildeo tem o trabalho ou talvez o interesse de se colocar em cena

em se expor como um ator da sombra E depois a gente vai ter entatildeo o

sombrista avanccedilado que eacute esse que consegue abarcar todas essas coisas E

se a gente tiver um ator que natildeo tenha algum desses aspectos do teoacuterico do

curioso do teacutecnico ele natildeo vai conseguir se desenvolver com uma

habilidade e uma performance adequada pelo menos hoje para trabalhar

dentro da nossa companhia Entatildeo eacute preciso ter essa soma de funccedilotildees

interesses habilidades e competecircncias para chegar num niacutevel onde eacute possiacutevel

criar uma obra de arte e se envolver em todos os aspectos (Faacutevero)40

Na declaraccedilatildeo de Faacutevero pelo menos trecircs questotildees satildeo caras agrave nossa discussatildeo A primeira

mais oacutebvia diz respeito agrave caracterizaccedilatildeo do que ele chama de ldquosombrista avanccediladordquo que se

daacute a partir da aquisiccedilatildeo de uma ldquopolivalecircnciardquo identificada natildeo apenas no tracircnsito entre

diferentes meios de expressatildeo mas na capacidade de engajar-se em todo o percurso de

criaccedilatildeo produccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de uma obra em teatro de sombras Na esteira da

caracterizaccedilatildeo da funccedilatildeo surge uma questatildeo que talvez a anteceda (ateacute mesmo no que essa

questatildeo se relaciona com o iniacutecio da presente discussatildeo) que eacute a da proacutepria necessidade que o

artista teve de cunhar um termo que definisse o artista em teatro de sombras O termo claro

estaacute se relaciona diretamente com o entendimento do teatro de sombras como sendo um meio

de expressatildeo em animaccedilatildeo que postula para si (ao menos segundo o entendimento de Faacutevero)

um conjunto de caracteriacutesticas de expressatildeo e teacutecnica que lhe sejam particulares Por fim

parece claro na declaraccedilatildeo de Faacutevero que a combinaccedilatildeo de competecircncias e possibilidades de

expressatildeo que caracterizam a polivalecircncia do ldquosombrista avanccediladordquo natildeo se restringem (ao

menos exclusivamente) agrave combinaccedilatildeo de uma discursividade plaacutestica com uma discursividade

cecircnica Nesse sentido e se podemos ampliar o entendimento expresso por Faacutevero para outras

modalidades de teatro de animaccedilatildeo (o que acreditamos ser cabiacutevel) parece mais adequado

supor que ao artista de animaccedilatildeo se supotildee uma atuaccedilatildeo transdisciplinar que natildeo se limita a um

cruzamento previsiacutevel entre a escultura e o teatro

40

Citaccedilatildeo extraiacuteda da entrevista que consta como anexo a esta tese

97

Figura 46 Steve Hansen (USA) Punch and Judy

Fonte AMARAL 1993 p 128

O marionetista como artista multicompetente e

responsaacutevel por todos os aspectos de criaccedilatildeo e

apresentaccedilatildeo

Figura 47 Cia Teatro Lumbra Saci Pererecirc a

lenda da meia noite

Fonte (httpwwwclubedasombracombr)

Foto Alexandre Faacutevero

O sombrista opera as formas e o equipamento da

apresentaccedilatildeo usando tambeacutem o seu corpo e

atuaccedilatildeo como matriz para as projeccedilotildees de sombras

Figura 48 Cia Navegante Teatro de Marionetes Musicircus (elaboraccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Catim Nardi)

Fonte (httpwwwatebemgcombr)

A elaboraccedilatildeo da apresentaccedilatildeo de um boneco se inicia jaacute nos processos de modelagem e definiccedilatildeo da

estrutura articular

98

No entanto natildeo se pode fechar os olhos para as manifestaccedilotildees de teatro de animaccedilatildeo

em que se divide e especializa funccedilotildees agraves vezes com grande detalhamento e sofisticaccedilatildeo O

exemplo mais evidente do que se afirma eacute sem duacutevida o bunraku (Figuras 50 e 51) A

separaccedilatildeo das suas funccedilotildees que obedece agrave estrita hierarquia natildeo se daacute apenas entre a equipe

encarregada da produccedilatildeo plaacutestica e os especialistas em apresentaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Haacute

divisotildees claras e riacutegidas mesmo dentro desses grupos maiores Eacute notoacuteria a divisatildeo que essa

forma de teatro japonesa estabelece entre os manipuladores dos bonecos que percorrem uma

trajetoacuteria longa de acuacutemulo de capacidades teacutecnicas e prestiacutegio desde a etapa de manipulaccedilatildeo

dos peacutes ateacute a mais honrada da cabeccedila do boneco passando pela manipulaccedilatildeo do braccedilo direito

e de personagens menores capazes de serem operados por apenas um manipulador Divisatildeo

mais criacutetica e evidente das funccedilotildees de representaccedilatildeo no bunraku se daacute no isolamento do

narrador que se apresenta num lugar separado do espaccedilo de representaccedilatildeo dos bonecos e

manipuladores e encarregando-se integralmente acompanhado pelo shemizen da

apresentaccedilatildeo vocal da narrativa e das vozes de todas as personagens do drama de origem

jocircruri Mesmo entre os construtores haacute riacutegida especializaccedilatildeo de funccedilotildees que encarregam

profissionais de partes especiacuteficas dos corpos dos bonecos e elementos de cena

Companhias mais recentes e afeitas a experimentaccedilotildees com a linguagem da animaccedilatildeo

usualmente dividem as funccedilotildees entre construtores e operadores das formas e haacute muito jaacute natildeo

eacute mais novidade a funccedilatildeo do encenador para o teatro de bonecos Aliaacutes pode-se afirmar com

grande seguranccedila que as caracteriacutesticas de forte visualidade e intercomunicaccedilatildeo entre

linguagens artiacutesticas e propostas figurativas observados em diversas companhias de animaccedilatildeo

fazem desse teatro um suporte proacutedigo para o desenvolvimento e a experimentaccedilatildeo da

encenaccedilatildeo como forccedila poeticamente propositiva Haacute mamulengueiros como Zeacute de Vina que

natildeo constroem seus bonecos Ganham ou compram de artesatildeos como Zeacute Lopes que por sua

vez constroacutei e apresenta o seu mamulengo41

Para buscar entender como essa variedade de funccedilotildees pode ter acompanhado o que se

supotildeem ser as transformaccedilotildees no modo de se fazer teatro de animaccedilatildeo no Brasil ao longo das

uacuteltimas deacutecadas foi feito um breve estudo de fichas teacutecnicas de algumas companhias

brasileiras dedicadas agrave linguagem Esse levantamento teve como objetivo tentar entender se

caracteriacutesticas de divisatildeo de tarefas e de nomeaccedilatildeo dos profissionais de animaccedilatildeo ao longo do

41

Os bonecos esculpidos para o mamulengo nordestino podem circular entre mestres ser vendidos emprestados

ou herdados A professora na UnB doutora Izabela Brochado no espetaacuteculo feito como parte da sua pesquisa

sobre formas e temas do mamulengo chamado Mariecircta a sabida usa em cena um boneco que lhe foi

presenteado por Mestre Sauacuteba A professora numa tentativa de recuperaccedilatildeo da origem do mesmo calcula que

tenha passado por outras matildeos de modo a possuir mais de 80 anos desde a sua confecccedilatildeo

99

Figura 49 Bunraku visatildeo do palco de bonecos mais o espaccedilo do narrador e do insstrumentista

Fonte Programa Bunraku Teatro Tradicional de Bonecos do Japatildeo

Foto Hisao Kawahara e Seisuke Miyake

Da esquerda para a direita vecirc-se os manipuladores (o mestre se veste de branco com a cabeccedila descoberta)

o gidayu (narrador) e o shemisen

Figura 50 Bunraku divisatildeo dos manipuladores

Fonte Revista PUCK ndash La marionnette et les autres arts Ano 3 no 7 Charleville-Meacuteziegraveres Institut

International de la Marionnette 1995

Da esquerda para a direita vecirc-se omozukai operador de cabeccedila e braccedilo direito (estaacutegio final de

treinamento) o ashizukai operador de peacutes e pernas (estaacutegio inicial) e o hidanzukai operador de braccedilo

esquerdo (estaacutegio intermediaacuterio)

100

Figura 51 Mestre Zeacute de Vina

Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil 2008

Foto Seacutergio Schnaider

Figura 52 Mestre Zeacute Lopes

Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil 2008

Foto Seacutergio Schnaider

Figura 53 Bonecos feitos por Mestre Zeacute Lopes

Fonte Curso de Teatro IARTEUFU

Foto Mario Piragibe

Personagens Praxeacutedio Caboclo de Pena e ldquoEspetorrdquo Peinha (alto) Pisa pilatildeo (mecanismo ao centro)

Violeiro Cobra Chibana e Velha (baixo)

101

tempo poderiam apontar para alteraccedilotildees no modo de entender e fazer teatro de animaccedilatildeo por

parte da companhias

Uma breve apreciaccedilatildeo de fichas teacutecnicas de espetaacuteculos das companhias Catibrum

Contadores de Estoacuterias Grupo Sobrevento e PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo revelaram maior

incidecircncia de diferenccedilas entre as equipes de confecccedilatildeo de bonecos e os elencos de atores

manipuladores do que convergecircncias ainda que essas existam parcialmente Dos grupos

verificados o que apresentou maior acuacutemulo de funccedilotildees foi a Catibrum de Belo Horizonte

que em seus primeiros espetaacuteculos (O dragatildeo que queria ver o mar ndash 1995 Andanccedilas ndash 1996)

discrimina funccedilotildees na ficha teacutecnica sem criar dissociaccedilotildees entre o elenco e a equipe de

confecccedilatildeo42

Em espetaacuteculos mais recentes a Catibrum pratica alternadamente a grafia de

equipes separadas a indicaccedilatildeo de que a confecccedilatildeo esteve a cargo do ldquoelencordquo e em seu

espetaacuteculo mais recente D Joatildeo inventa o Brasil de 2010 ndash num movimento bastante diverso

da praacutetica habitual da companhia as equipes estatildeo dividas com riqueza de especializaccedilatildeo

chegando a indicar responsaacuteveis pelos projetos dos bonecos pela criaccedilatildeo dos mecanismos

pela confecccedilatildeo pelo fabrico dos coletes de manipulaccedilatildeo ainda discriminando um elenco com

componentes que natildeo integram obrigatoriamente nenhuma das equipes encarregadas do

processo de construccedilatildeo dos bonecos e de suas mecacircnicas de movimentaccedilatildeo Cabe indicar

tambeacutem que a Catibrum dentre as companhias cujas fichas teacutecnicas foram estudadas eacute a

uacutenica que dedica uma entrada de sua lista de componentes ao elenco de bonecos

Os exemplos de maior separaccedilatildeo entre as equipes de apresentaccedilatildeo e construccedilatildeo foram

verificados em alguns espetaacuteculos do grupo Sobrevento como O Theatro de brinquedo de

1993 e Cadecirc meu heroacutei de 1998 Esses espetaacuteculos contaram com artistas especialmente

designados para a construccedilatildeo dos bonecos a serem usados na cena43

Em muitos casos no

Sobrevento a equipe de confecccedilatildeo eacute indicada de maneira elusiva ou sob forma resumida (O

Grupo) ou sob indicaccedilotildees ainda sutis tais como os indicativos de realizaccedilatildeo e concepccedilatildeo

(casos dos espetaacuteculos Bonecos Aqui Submundo e O anjo e princesa)

De modo mais geral o que se verificou nos casos estudados eacute a tendecircncia agrave divisatildeo

entre as equipes de construccedilatildeo de bonecos e de apresentaccedilatildeo mas tambeacutem se verifica a

incidecircncia de membros atuando em ambas a equipes criando trecircs diferentes qualidades de

envolvimento trabalho de acordo com a combinaccedilatildeo das duas funccedilotildees em questatildeo a do

42

A ficha teacutecnica do primeiro espetaacuteculo aponta apenas a equipe de confecccedilatildeo sem indicar os nomes do artistas

de manipulaccedilatildeo a do segundo indica os atores manipuladores (discriminados sobre a entrada elenco) sem no

entanto dedicar espaccedilo a indicar os confeccionadores dos bonecos 43

No primeiro caso a tarefa de desenhar as figuras do teatro de brinquedo foi de Gilson Motta e no segundo a

construccedilatildeo de bonecos de luva inspirados na modalidade chinesa foi do Mestre de mamulengo Sauacuteba

102

construtor e a do artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco permitindo ainda que alguns

elementos acumulem as duas funccedilotildees Frequentemente esses membros polivalentes satildeo

componentes fundadores ou tradicionais das companhias de teatro de animaccedilatildeo Natildeo eacute raro

que os diretores das companhias (isto foi verificado nos quatro exemplos levantados)

assumam em alguns trabalhos uma funccedilatildeo na equipe de construccedilatildeo

Esse raacutepido levantamento da divisatildeo de tarefas nas companhias de teatro de animaccedilatildeo

jaacute eacute suficiente para indicar o quanto a terminologia que se ocupa desses artistas eacute vaga O

levantamento natildeo daacute conta ndash e nem a isso se propotildee ndash de listar as especializaccedilotildees

contemporacircneas do trabalho no teatro de animaccedilatildeo mas buscar chamar atenccedilatildeo para a

ausecircncia no pensamento acerca do teatro de animaccedilatildeo de uma nomenclatura que decirc conta

das etapas de produccedilatildeo e apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo Isso talvez dificulte um pouco o trabalho

de pesquisa acerca das transformaccedilotildees da percepccedilatildeo e da funccedilatildeo do ator sobre a cena de

animaccedilatildeo Talvez permita ao pesquisador agir com menos cautela na proposiccedilatildeo de novas

terminologias (o que natildeo eacute a intenccedilatildeo deste trabalho) ou ainda auxilia-o a ter clareza da

verdadeira simplicidade escondida por traacutes da dificuldade em se conferir termos e descriccedilotildees

especiacuteficas a uma linguagem teatral que vem desde os iniacutecios do seacuteculo XX percorrendo um

trajeto rumo a uma crescente indissociaccedilatildeo do panorama mais geral do teatro

Se pensarmos no artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco em cena e sobretudo

para a funccedilatildeo que este desempenha o levantamento de fichas teacutecnicas do Grupo Sobrevento

pode revelar certas peculiaridades aleacutem de ensejar feacutertil discussatildeo Notaacutevel pela disposiccedilatildeo

em explorar diferentes formatos e estruturas de bonecos e formas animadas ao longo de seu

percurso o Sobrevento faz questatildeo nas listagens descritivas de seus espetaacuteculos de indicar

que propostas de animaccedilatildeo foram empregadas e combinadas em cada ocasiatildeo Isto desenha

um claro painel dos interesses de exploraccedilatildeo da variedade do teatro de animaccedilatildeo por parte da

companhia aleacutem de dimensionar o desafio aos quais seus membros se impotildeem O maior deles

eacute claramente o do desenvolvimento de competecircncias manipulativas que sejam satisfatoacuterias

diante da variedade de modos e teacutecnicas abordados Esse desafio eacute acompanhado pelo da

identificaccedilatildeo e reflexatildeo acerca da funccedilatildeo do inteacuterprete vivo sobre a cena de animaccedilatildeo

Percebe-se que a cada peccedila o grupo elege um termo para nomear o artista apresentador da

forma animada e que o termo escolhido iraacute buscar relacionar-se com a modalidade de

animaccedilatildeo empregada

Por exemplo nos espetaacuteculos Beckett e O Theatro de brinquedo os componentes do

elenco estatildeo identificados na ficha teacutecnica como interpretaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Em ambos os

espetaacuteculos haacute alternacircncia de manipulaccedilatildeo agrave vista (no caso de Beckett manipulaccedilatildeo direta

103

sobre balcatildeo e em O Theatro de brinquedo uma variaccedilatildeo em escala ampliada da

manipulaccedilatildeo de figuras bidimensionais pintadas sobre cartatildeo) e atuaccedilatildeo realizada pelos

mesmos artistas encarregados pela operaccedilatildeo dos bonecos44

A ficha teacutecnica do espetaacuteculo

Cadecirc meu heroacutei Identifica os inteacuterpretes apenas sob a entrada manipulaccedilatildeo Isto se deve ao

fato de o espetaacuteculo empregar na maior parte do tempo a manipulaccedilatildeo de bonecos de luva

assemelhado aos da tradiccedilatildeo chinesa da proviacutencia de Jiang com operadores ocultos Ainda

que a peccedila apresente um epiacutelogo no qual os manipuladores saem detraacutes do aparato

cenograacutefico este se constitui num curto momento com fins de arremate conciliatoacuterio natildeo

podendo ser entendido como algo que descaracterize a escolha do grupo pelo emprego do

animador oculto para esse espetaacuteculo

Uma escolha como a feita pelo Sobrevento conduz a um tipo de indagaccedilatildeo semelhante

ao do momento anterior deste trabalho em que foi abordado o objeto animaacutevel Se

reconhecermos que aquilo a que se convencionou chamar teatro de animaccedilatildeo se monta sobre

uma unidade instaacutevel um ajuntamento complexo de formas e procedimentos que abriga

manifestaccedilotildees tatildeo distintas e discrepantes entre si chega um momento no trabalho de anaacutelise

em que uma escolha se faz necessaacuteria Esta se situaria entre a busca dos traccedilos distintivos

universais capazes de dar a reconhecer o teatro de animaccedilatildeo como modalidade ndash ou

linguagem ndash teatral e o entendimento de que se estaacute diante de uma coleccedilatildeo inconciliaacutevel que

natildeo oferece ao pesquisador uma oportunidade de estudo consistente que natildeo se faccedila senatildeo por

meio da separaccedilatildeo e do entendimento de cada manifestaccedilatildeo do que se convencionou chamar

teatro de animaccedilatildeo como se cada uma fosse uma modalidade espetacular sem relaccedilatildeo com as

demais

Esse problema estaacute presente no estudo dos dois elementos centrais da apresentaccedilatildeo em

animaccedilatildeo que satildeo o objeto animado e o artista operador As indagaccedilotildees que levam a

considerar o emprego e o significado de termos como boneco forma animada figura entre

outros satildeo afinal de natureza semelhante agravequelas que se deteacutem sobre se termos como

manipulador animador e operador satildeo apenas sinocircnimos ou se conteacutem significados proacuteprios

e se constituem em separaccedilotildees no entendimento e na praacutetica da apresentaccedilatildeo do boneco em

cena

De qualquer forma ainda que se reconheccedilam na busca pelas caracteriacutesticas geneacutericas

do teatro de animaccedilatildeo algo de redutor devido agrave proacutepria natureza desse esforccedilo natildeo parece a

44

O espetaacuteculo Beckett apresenta trecircs peccedilas curtas de Samuel Beckett sendo que apenas em O impromptu de

Ohio os atores se potildee em cena apartados da funccedilatildeo de operaccedilatildeo de bonecos que desempenham no dois

momentos anteriores Ato sem palavras e Ato sem palavras II

104

melhor escolha renunciar agraves caracteriacutesticas universais e buscar compreender a animaccedilatildeo como

uma linguagem teatral compreendida sob o vieacutes da variedade Primeiramente porque uma

tentativa de separar os tipos de animaccedilatildeo em formatos independentes redundaria em um

fracasso justificado por sua imensa diversidade e pelo constante cruzamento entre modos de

operaccedilatildeo e de construccedilatildeo cecircnico-dramatuacutergica verificado natildeo apenas nas vontades artiacutesticas

mais agrave vanguarda mas tambeacutem ndash e talvez sobretudo ndash nas invenccedilotildees e transformaccedilotildees que

podemos verificar nas suas manifestaccedilotildees associadas a tradiccedilotildees populares Em seguida e a

reboque do primeiro motivo devido agraves similitudes linguiacutesticas que nos satildeo dadas a perceber

pela proacutepria dinacircmica de intercacircmbios estabelecida entre as modalidades de teatro de

animaccedilatildeo Isto aliaacutes no leva a pensar nos caminhos percorridos pela animaccedilatildeo de formas ateacute

o ponto atual em que ao menos de acordo com as provocaccedilotildees colhidas no iniacutecio deste

trabalho cresce a dificuldade em se reconhecer distinccedilotildees claras entre forma e operador tanto

no que diz respeito a uma divisatildeo de funccedilotildees entre esses dois elementos sobre a cena quanto

no que tange aos seus proacuteprios limites fiacutesicos e sensiacuteveis

Portanto ainda que se reconheccedila que o artista de animaccedilatildeo ramifica-se em diversas

funccedilotildees que podem ou natildeo ser acumuladas pelo mesmo indiviacuteduo fica claro aqui que o

objeto do nosso estudo para este momento eacute aquele artista que se ocupa da apresentaccedilatildeo do

espetaacuteculo de animaccedilatildeo operando bonecos e formas animadas ou mesmo estabelecendo tipos

de relaccedilatildeo com a cena que natildeo supotildeem o ato manipulativo

Por esse motivo mesmo este trabalho acabou elegendo o termo operador para

designar o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco ou forma animada tanto aquele cuja

formaccedilatildeo e disposiccedilatildeo se concentra apenas no trabalho de apresentaccedilatildeo quanto ao artista de

competecircncias combinadas em situaccedilatildeo performativa Essa escolha se daacute com a consciecircncia de

que o termo conteacutem certa carga de impessoalidade e pouca relaccedilatildeo com o trabalho criador

artiacutestico mas se mostra eficiente ao evitar a carga de significaccedilatildeo existente em termos mais

consagrados de modo a permitir maior clareza no curso de raciociacutenio que emprenndo a partir

deste momento

Em um trabalho anterior apresentei o entendimento de que operador e forma

constituem sobre a cena uma estrutura muacuteltipla natildeo-complementar um organismo

performativo combinado (PIRAGIBE 2007) que desempenharia sobre a cena a funccedilatildeo do

ator O entendimento dessa funccedilatildeo tem por base algumas definiccedilotildees apresentadas por Patrice

Pavis (1998 2008) e Anne Ubersfeld (2005)45

O caraacuteter notadamente semioloacutegico das

45

Essa aproximaccedilatildeo do ator como funccedilatildeo tambeacutem se encontra apoiada na loacutegica empregada por Michel Foucault

ao tratar de autoria em uma aula inaugural chamada ldquoO que eacute um autorrdquo (2002)

105

anaacutelises desses autores aponta para o entendimento do ator como sendo uma funccedilatildeo

desempenhada sobre a cena teatral que apresenta relaccedilatildeo ativa no desenvolvimento da accedilatildeo

espetacular ao mesmo tempo em que articula com sua apresentaccedilatildeo as separaccedilotildees e

aproximaccedilotildees entre vida objetiva e vida imaginada Esse olhar que desobriga o entendimento

do ator como sendo um indiviacuteduo aponta para a proposiccedilatildeo de atores vistos como estruturas

corporais combinadas corpos parciais virtualidades e objetos Ainda a articulaccedilatildeo operada

pelo ator entre vida objetiva e vida imaginada (entre personagem e personalidade)

mencionada por Pavis como sendo um traccedilo fundamental da definiccedilatildeo de ator fornece a senha

para o entendimento de um ator de corpo desdobrado Claro as diversas maneiras de

relacionar forma animada e operador (oculto ou aparente) natildeo permitem que o

desdobramento corporal mencionado ocorra de modo dispor de maneira estrita e linear

funccedilotildees e elementos O objeto natildeo representa sempre a personagem de ficccedilatildeo nem o operador

faz obrigatoriamente agraves vezes do artista narrador nem mesmo essas ideacuteias podem ser

separadas com precisatildeo entre os componentes da estrutura performativa O que importa aqui eacute

a proacutepria dinacircmica de cisatildeo e combinaccedilatildeo corporal capaz de conduzir a plateia a percepccedilotildees

de ambiguidade simultacircnea o que Jurkowski chama de ldquoefeito de opalizaccedilatildeordquo (2000 pp35-

6)

Outra dualidade interessante verificada no teatro de animaccedilatildeo e que o entendimento

desse organismo combinado evoca eacute aquela que distingue a estrutura de origem do

movimento fonte criadora volitiva e autocircnoma da accedilatildeo do boneco de outro corpo cuja

percepccedilatildeo impressatildeo de autonomia e sentido cecircnico satildeo conferidos por influecircncia da vontade

e criaccedilatildeo deste primeiro Mais uma vez eacute necessaacuterio mencionar que nem sempre eacute possiacutevel

reconhecer com clareza os limites e separaccedilotildees entre esses corpos (admitindo que haja

separaccedilotildees e limites) Um exemplo oacutebvio eacute o do operador oculto que daacute a ver ao puacuteblico

apenas o boneco mas podemos mencionar mais uma vez as combinaccedilotildees corporais do Teatro

Hugo e Inecircs que usa os corpos dos operadores para construir seus bonecos e o trabalho de

Oichi Okamoto agrave frente do Don Doro Hyaki Puppet Theatre que operava um boneco em

tamanho real enquanto usava uma maacutescara com o intento de produzir sobre o espectador a

incerteza sobre qual seria o boneco qual o operador

Portanto ao postarmos nosso olhar sobre aquele que se encarrega da apresentaccedilatildeo no

teatro de animaccedilatildeo o que encontramos de fato eacute um artista diante de uma seacuterie de desafios em

termos de formaccedilatildeo e acuacutemulo de competecircncias dados os atravessamentos linguiacutesticos

possibilitados pela animaccedilatildeo contemporacircnea que ao considerar mais e mais a sua pluralidade

liguiacutestica as combinaccedilotildees materiais e a performance corporal do operador solicita a esse um

106

maior preparo mas que tambeacutem precisa ser entendido agrave luz da impressatildeo que sua

apresentaccedilatildeo produz sobre a plateia Parece que natildeo basta buscar entender o artista que se

apresenta em um contexto de teatro de animaccedilatildeo como um acumulador de competecircncias

pensaacute-lo a partir da uma capacitaccedilatildeo formal uma vez que esta natildeo se daacute com outro fito que

natildeo o de produzir certa variedade e qualidade de efeitos sobre a cena E se tais efeitos satildeo o

que de fato caracteriza a linguagem da animaccedilatildeo e identifica suas formas tradicionais e

transformaccedilotildees natildeo se pode ignorar a variedade de meios disponiacuteveis para alcanccedilaacute-los

Esse levantamento panoracircmico e um tanto apressado das fichas teacutecnicas jaacute eacute suficiente

para mostrar termos como manipulador animador e ator-manipulador sendo empregados

juntamente com generalizaccedilotildees tais como o mero emprego do termo elenco que parece

adequar-se a espetaacuteculos que lidam com o artista agraves vistas do puacuteblico na mesma medida em

que solicitam desse elenco competecircncias que natildeo se limitam agrave manipulaccedilatildeo de formas Assim

vemos companhias que buscam nomear seus artistas de apresentaccedilatildeo de modo a construir para

eles um campo de atuaccedilatildeo especiacutefico juntamente com companhias que exercitam alguma

aproximaccedilatildeo ao menos terminoloacutegica da funccedilatildeo do operador de formas com a do ator O

termo elenco eacute usado pela Pia Fraus que regularmente combina elementos de teatro de

animaccedilatildeo danccedila e teacutecnicas circenses Neste caso a escolha terminoloacutegica acompanha a

intenccedilatildeo por parte da companhia de produzir um ambiente espetacular multidisciplinar para o

qual a participaccedilatildeo do inteacuterprete natildeo revela uma competecircncia especiacutefica mas se daacute de um

modo ampliado e por vezes natildeo especializado46

Tillis opta por encerrar discussatildeo

46

Haacute que se reconhecer o caso especiacutefico da companhia Pia Fraus no que esta apresenta em termos de estrutura

empresarial Observa-se uma grande circulaccedilatildeo de elencos para os espetaacuteculos da companhia que lida com uma

estrutura capaz de apresentar o mesmo espetaacuteculo simultaneamente em lugares diferentes devido ao emprego de

diversos elencos Na entrevista que segue como anexo a esta tese o diretor Beto Andreetta fala de como a

companhia se empenha em determinar uma marca esteacutetica que seja independente da presenccedila em cena de

determinados artistas ldquoOnde eu natildeo estou a Pia Fraus estaacute igual [] Entatildeo despersonalisou eacute um modelo de

grupo Natildeo eacute muito usual no Brasil geralmente eacute mais personalizado A gente virou quase uma marca assim

quase um modo de fazer teatrordquo (ANDREETTA 2010) Isto se deve em grande parte agrave centralidade que os

objetos exercem em diversos dos espetaacuteculos da companhia e da dinacircmica de encenaccedilatildeo e operaccedilatildeo dos mesmo

que natildeo requer grande periacutecia Diversas companhias de teatro de animaccedilatildeo no Brasil acompanharam a tendecircncia

verificada no panorama brasileiro do teatro de grupos a partir da deacutecada de 1990 e se constituiacuteram como

coletivos suportados pela presenccedila e pela poeacutetica de um encenador que conferiam identidade a esses

ajuntamentos variaacuteveis de atores Como a Pia Fraus a companhia XPTO apresenta dinacircmica semelhante

funcionado em torno do esforccedilo criativo e das qualidades gregaacuterias do encenador Osvaldo Gabrieli Em ambos

os casos as identidades dos espetaacuteculos repousam bem mais sobre os objetos e a configuraccedilatildeo plaacutestica da cena do

que propriamente por meio da presenccedila de inteacuterpretes especiacuteficos No caso da Cia Lumbra dedicada ao teatro de

sombras eacute inegaacutevel a centralidade criativa de Alexandre Faacutevero ainda que este declare preocupaccedilatildeo e atenccedilatildeo

para a formaccedilatildeo de artistas competentes o suficiente para integrar os elencos de seus espetaacuteculos (FAacuteVERO

2011) Outro caso eacute o da Cia PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo que tal qual as mencionadas eacute criada e sustentada

em torno dos desejos artiacutesticos de seu diretor Miguel Vellinho mas que se vecirc diante de dificuldades quando

necessita substituir membros dos elencos de seu repertoacuterio pois que esses processos requerem um curva larga de

aprendizado especiacutefico nos modos manipulativos e a preocupaccedilatildeo com a queda de qualidade nos trabalhos eacute

verdadeira e constante

107

terminoloacutegica acerca do artista de apresentaccedilatildeo no teatro de animaccedilatildeo com a escolha do termo

operador para isolar a funccedilatildeo e diferenciaacute-la da evocaccedilatildeo agrave multicompetecircncia contida em

marionetista Este trabalho tem considerado tal opccedilatildeo apesar de entender que o termo eacute

redutor no que diz respeito agraves possibilidades teacutecnicas e poeacuteticas disponiacuteveis a esse artista que

trata de uma noccedilatildeo imprecisa de sua funccedilatildeo e atuaccedilatildeo

O emprego do termo generalizante elenco por parte natildeo apenas da Pia Fraus mas de

outras companhias como a PeQuod a Catibrum em fase mais recente e mesmo o emprego da

especificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e atuaccedilatildeo por parte do Grupo Sobrevento parece indicar ou

melhor reconhecer alguma semelhanccedila existente entre o trabalho do animador de bonecos e

formas e o trabalho do ator Se eacute possiacutevel reconhecer o crescente emprego de termos

generalizantes (elenco) ou de terminologias combinadas (ator-manipulador) para definir esse

artista natildeo se pode negar o quanto o emprego desses termos reconhece uma aproximaccedilatildeo

entre o operador de formas animadas e o ator de teatro Essa aproximaccedilatildeo embora bastante

evidente no ambiente multidisciplinar de aproveitamento contemporacircneo do operador posto agrave

mostra parece se dar nas diversas manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo

108

2322 Dois mirantes para o ator de animaccedilatildeo

Uma discussatildeo acerca dos entendimentos do artista de animaccedilatildeo como sendo um ator

jaacute se encontra presente nas vontades terminoloacutegicas recentes que cunha funccedilotildees tais como

ator manipulador ou ator bonequeiro O que se pretende nesse momento eacute verificar as

aproximaccedilotildees perceptivas e operativas dessas funccedilotildees de modo independente e anterior agraves

terminologias cunhadas para dar conta dos ambientes de multicompetecircncia contemporacircnea E

esta tentativa parte da consideraccedilatildeo de dois diferentes pontos de vista para a questatildeo Dois

locais de observaccedilatildeo que consideram respectivamente a funccedilatildeo e a presenccedila do artista sobre

a cena durante o proacuteprio ato da apresentaccedilatildeo e um entendimento do artista que se faz por

meio das competecircncias teacutecnico-linguiacutesticas que o qualificam para o exerciacutecio de suas

prerrogativas artiacutesticas e profissionais47

Esses dois lugares de observaccedilatildeo fornecem dados

para a postulaccedilatildeo de uma anaacutelise de caracteriacutesticas de atuaccedilatildeo presentes ou natildeo no trabalho do

operador de formas animadas

O primeiro desses mirantes eacute aquele do simples reconhecimento da presenccedila e da

influecircncia do artista sobre a cena Esse reconhecimento constroacutei o entendimento de que um

artista que participe de uma cena em teatro de animaccedilatildeo esteja ele oculto ou natildeo aos olhos do

puacuteblico desempenhando ou natildeo uma personagem em particular participando em maior ou

menor grau da operaccedilatildeo da forma preocupado mais ou menos com a apresentaccedilatildeo da

personagem ou com princiacutepios de operaccedilatildeo das formas possuindo formaccedilatildeo especiacutefica ou

natildeo estaraacute invariavelmente acionando em seu desempenho caracteriacutesticas proacuteprias de

atuaccedilatildeo

Para compreendermos melhor o que se afirma proponho que imaginemos trecircs

possibilidades distintas de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo na primeira delas vemos um boneco de

luva sendo mostrado do topo de uma empanada por um artista que o controla e eacute responsaacutevel

por sua vocalizaccedilatildeo O boneco tem uma voz que lhe eacute caracteriacutestica e volta e meia se refere

jocosamente agrave figura escondida atraacutes dos panos como algueacutem desagradaacutevel a quem este tem

que se submeter embora vez ou outra diga fazer o contraacuterio O segundo caso mostra trecircs

manipuladores atraacutes de um boneco de corpo inteiro que executa accedilotildees sobre um balcatildeo A

cena eacute silenciosa e cada um dos artistas ocupa-se exclusivamente de uma parte da anatomia do

47

Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado (PIRAGIBE 2007) proponho a compreensatildeo de um organismo

performativo combinado entre operador e forma como sendo a estrutura que desempenharia no teatro de

animaccedilatildeo a funccedilatildeo do ator teatral A discussatildeo posta aqui ainda que apresente uma seacuterie de pontos comuns

reporta-se ao ator como indiviacuteduo que desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica sobre a cena teatral capaz de produzir

certa qualidade de impressatildeo diante do espectador e como repositoacuterio de caracteriacutesticas e competecircncias

performativas

109

Figura 54 Operador oculto Sesame Street (atriz Kathrin Mullen)

Fonte Revista Puppetry International no 10 Strafford UNIMA-US 2001 p 12

Os olhos atentos ao monitor permitem ao artista operador verificar os efeitos do seu desempenho em

trabalhos para cinema e televisatildeo

Figura 55 Operador aparente PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo Sangue Bom (atores da esquerda para a

direita Marise Nogueira Liliane Xavier Marcio Nascimento e Marcio Newlands)

Fonte (wwwsesibonecoscombr)

Foto Seacutergio Schnaider

Destaque para a expressatildeo da atriz ao centro (Liliane Xavier) que acompanha as reaccedilotildees esperadas para

a personagem animada Ainda que nem sempre seja desejaacutevel agrave cena o envolvimento da expressatildeo facial do

ator operador esta indica o esforccedilo de atuaccedilatildeo realizado de modo a impulsionar as reaccedilotildees no boneco

110

boneco Nenhum deles estabelece qualquer relaccedilatildeo direta com a cena fazendo o possiacutevel

para que suas participaccedilotildees sejam discretas o suficiente para natildeo desviar a atenccedilatildeo do puacuteblico

do boneco Por fim imaginemos um artista que dispotildee detraacutes de uma tela uma sequecircncia de

objetos projetados por um foco luminoso enquanto outro conta uma histoacuteria Desses objetos

muitos desempenham uma funccedilatildeo que poderiacuteamos entender como mais aparentada da

cenografia tal como silhuetas de paisagens transparecircncias com fundos de cenas mas tambeacutem

formas que caracterizam as personagens do conto que eacute narrado simultaneamente pelo outro

O primeiro dos casos apresenta um ator que natildeo se mostra em cena posto que estaacute

oculto atraacutes de uma empanada mas que se encontra engajado numa apresentaccedilatildeo cujos

recursos expressivos encontram-se divididos entre os atributos formais a potecircncia de

movimentaccedilatildeo e a teatralidade conjurada pelo boneco com a operaccedilatildeo o entendimento da

cena e do jogo com o puacuteblico e a voz desse ator A personagem que se apresenta natildeo eacute uma

construccedilatildeo nem o resultado de qualquer dos dois em particular mas o substrato do

acionamento de propriedades sensiacuteveis desse artista em sua relaccedilatildeo com a cena com os

espectadores e com o boneco (em seus aspectos simboacutelicos e materiais) O segundo caso

apresenta um esforccedilo manipulativo dividido entre trecircs operadores que por estarem agrave vista do

puacuteblico comportam-se de modo a direcionar a atenccedilatildeo do mesmo no sentido desejaacutevel aos

propoacutesitos da cena em questatildeo Sua participaccedilatildeo encaminha por mais discreta que seja

determinada leitura da personagem e da situaccedilatildeo da cena e a sua irrefutaacutevel visibilidade por

parte dos espectadores faz desse artista um componente inapelaacutevel da cena em exibiccedilatildeo Em

ambos os casos ainda que certas diferenccedilas possam ser percebidas natildeo se pode negar a

participaccedilatildeo desses artistas na construccedilatildeo e na apresentaccedilatildeo das personagens bem como o

fato de que a exposiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo de suas interferecircncias eacute determinante na percepccedilatildeo das

cenas Esses artistas atuam isso natildeo se pode negar mas o fazem de modo a projetar

expressividade seja por esforccedilo solitaacuterio ou na conjunccedilatildeo com o trabalho de outros de modo

a complementar e qualificar a apresentaccedilatildeo do boneco Trata-se de um ator que natildeo usa a

forma para expressar-se mas que combina o seu esforccedilo com o de outros atores mais o

boneco no sentido de produzir uma apresentaccedilatildeo composicional O terceiro caso eacute mais

complexo uma vez que natildeo se pode entender na dinacircmica de troca ou de operaccedilatildeo de lacircminas

ou de silhuetas um esforccedilo solitaacuterio ou combinado de apresentaccedilatildeo de uma personagem

dramaacutetica Nossa compreensatildeo se constroacutei nesse caso por meio do reconhecimento de uma

atividade presente nos dois exemplos anteriormente mencionados mas ainda natildeo comentadas

e que talvez forneccedila dados mais soacutelidos para o entendimento das aproximaccedilotildees entre o ator e

o operador de formas animadas A participaccedilatildeo imediata e presencial de um operador de

111

formas que dispotildee personagens e encadeia diretamente os dados de uma determinada

narrativa o qualifica como uma espeacutecie de narrador que deve harmonizar a sua dinacircmica de

disposiccedilatildeo de quadros e figuras com a narrativa verbal mencionada A exibiccedilatildeo de uma figura

que desempenhe uma personagem na trama narrada o poraacute de imediato no mesmo patamar de

atuaccedilatildeo que os exemplos anteriores mas a disposiccedilatildeo de quadros e elementos fixos ou moacuteveis

que auxiliam a contar ou comentam a histoacuteria do narrador podem de acordo com a

complexidade dos elementos e o grau de interaccedilatildeo destes com a histoacuteria aproximar ou afastar

a sua participaccedilatildeo do que podemos entender como atuaccedilatildeo De qualquer forma eacute possiacutevel

identificar algumas caracteriacutesticas de narrador em seu desempenho o que podemos considerar

como algo que apresenta caracteriacutesticas claras de atuaccedilatildeo

Assim sendo ainda que natildeo possamos reconhecer certas qualidade especiacuteficas do

operador de formas em relaccedilatildeo ao ator natildeo se pode negar o reconhecimento certos pontos

comuns sobretudo no que diz respeito agrave qualidade de atuaccedilatildeo dos seus trabalhos e que se

ampliam agraves vista da audiecircncia que tenderaacute invariavelmente a entender como ator toda

presenccedila e participaccedilatildeo operativa sobre a cena

Esse modo de reconhecimento eacute semelhante agravequele que determina como boneco teatral

todo objeto visto pela plateia como tal natildeo importa se esta conteacutem caracteriacutesticas estruturais

que o identifiquem como boneco ou se obedece a descriccedilotildees preacutevias cunhadas por estudiosos

Os sentidos da plateia satildeo a chave de determinaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo chave essa que

amplia o seu alcance na consideraccedilatildeo dos modos de ocultaccedilatildeo do operador mas que retorna agrave

primeira proposiccedilatildeo na simples atestaccedilatildeo de que o operador se faz presente na forma que

opera

A outra aproximaccedilatildeo que norteia a discussatildeo acerca das caracteriacutesticas de atuaccedilatildeo

perceptiacuteveis no trabalho do artista de animaccedilatildeo se daacute pelo ponto de vista da formaccedilatildeo Esse

mirante eacute aquele que identifica um percurso formativo especiacutefico na constituiccedilatildeo do qual satildeo

elencados princiacutepios de treinamento e competecircncias operativas que satildeo particulares ao artista

de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo de modo a reconhecer princiacutepios que sejam comuns

aparentados ou totalmente especiacuteficos

A aproximaccedilatildeo formativa natildeo rivaliza com a aproximaccedilatildeo perceptiva natildeo satildeo de fato

leituras excludentes e ambas possuem legitimidade cada uma a seu modo No entanto a

aproximaccedilatildeo formativa impotildee a estudiosos e praticantes mais desafios e questotildees do que a

outra pois se situa no exato ponto de formulaccedilatildeo das questotildees praacuteticas mais delicadas quando

tratamos do campo ampliado do teatro de animaccedilatildeo que busca princiacutepios de entendimento e

112

Figura 56 Cia Teatro Lumbra Saci visto detraacutes da tela

Fonte (httpwwwclubedasombracombr)

Figura 57 Cia Truks E se as histoacuterias fossem diferentes (ator Henrique Sitchin)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

As imagens projetadas satildeo produzidas de modo diferente do teatro de sombras (projeccedilatildeo de filmagem da

mesa de trabalho do ator) ainda que se perceba uma personagem operada em sobra sobre a tela No

entantoeacute possiacutevel reconhecer na atividade de manipulaccedilatildeo das imagens sobre a mesa qualidades de

atuaccedilatildeo de relaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo de discurso espetacular

113

criaccedilatildeo que sejam comuns agraves suas inuacutemeras manifestaccedilotildees ao mesmo tempo em que se

reconhece como campo de operaccedilotildees de transdisciplinaridade artiacutestica

Beltrame trata em sua tese de doutorado de questotildees relacionadas com aspectos

formativos do artista de formas animadas no Brasil Inicia apontando para o problema da

escassez de percursos formativos consistentes e consagrados para o artista de animaccedilatildeo no

Brasil resultando no entendimento de que a formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo se daacute no mais

das vezes dentro do de companhias por autodidatismo ou por meio de oficinas curtas que se

propotildeem a cobrir num curto espaccedilo de tempo uma gama ampla de competecircncias especiacuteficas

e complexas envolvendo aspectos de apresentaccedilatildeo e construccedilatildeo (BELTRAME 2001)

Beltrame complementa

Os cursos ou oficinas que se propotildeem a ensinar ldquoum pouco de tudordquo acabam

oferecendo um tipo de formaccedilatildeo rudimentar com pouca consistecircncia

Ensinando quase nada consolidam a visatildeo de que a profissatildeo do artista de

ator bonequeiro eacute pouco codificada e tem uma diversidade na definiccedilatildeo dos

postos podendo ser praticada por qualquer pessoa que tenha aprendido

alguns conhecimentos baacutesicos A passagem por um desses cursos jaacute permite

autoproclamar-se ldquoartistardquo (BOURDIEU 1996 p257) (BELTRAME 2001

p 49-50)

A necessidade que Beltrame identifica em se dar mais alternativas e consistecircncia agrave

formaccedilatildeo do artista de formas animadas no Brasil estaacute diretamente relacionada com a

preocupaccedilatildeo exposta na passagem citada expressa pelo professor da UDESC com a

qualidade dos trabalhos em animaccedilatildeo que se apresentam pelo Brasil e como muitas vezes a

linguagem eacute representada para puacuteblicos diversos muitos dos quais com poucas referecircncias

por meio de grupos de artistas pouco capacitados que se aproximam da linguagem com pouca

disposiccedilatildeo investigativa e apuro de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo quase ausentes A isto se

acrescentam as participaccedilotildees pontuais de bonecos em espetaacuteculos teatrais na sua imensa

maioria destinada ao puacuteblico infantil que se datildeo sem qualquer atenccedilatildeo a princiacutepios baacutesicos de

construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo do boneco teatral

A informalidade com que se trata questotildees de preparo e formaccedilatildeo dos artistas de

animaccedilatildeo o isolamento e a circunscriccedilatildeo do desenvolvimento de alguns trabalho a grupos

fechados natildeo raro pequenos nuacutecleos familiares e a ausecircncia de uma criacutetica e de uma esteacutetica

mais desenvolvida que busquem normalizar as praacuteticas e os pensamentos acerca do teatro de

animaccedilatildeo no Brasil ainda datildeo a ver uma linguagem pouco codificada e sujeita a ser

compreendida como fruto de uma artesania apressada e praacutetica de artistas pouco preparados48

48

Eacute fundamental que se mencione apesar da atualidade das declaraccedilotildees feitas que o panorama analisado por

Beltrame no ano de 2001 foi consideravelmente alterado desde entatildeo em grande parte por interferecircncia do

114

Natildeo se pode ignorar no entanto o quanto as iniciativas amadoras contribuem para a

sustentaccedilatildeo e o desenvolvimento da linguagem figurando sobretudo como ponto de partida

para o engajamento de profissionais em busca de consolidaccedilatildeo profissional e

aperfeiccediloamento Tambeacutem natildeo se pode ignorar que as estruturas nucleares de produccedilatildeo e

criaccedilatildeo em animaccedilatildeo satildeo mecanismos de garantia da variedade de formas e manifestaccedilotildees do

teatro de animaccedilatildeo que poderia sofrer algum tipo de abalo com a normalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo dos pensamentos e praacuteticas envolvidas com a linguagem Natildeo se pode ignorar

tambeacutem o fato de que algumas das companhias mais inquietas e influentes do panorama

brasileiro atual (Catibrum Giramundo Contadores de Estoacuterias e Sobrevento para citar os

casos mais ceacutelebres) se originaram de nuacutecleos familiares ou se apoiam em algum niacutevel nessa

estrutura

Outra questatildeo bastante delicada eacute a da atribuiccedilatildeo de qualidade artiacutestica a trabalhos que

apresentam maior ou menor apuro teacutecnico Deve-se partir do entendimento de que a pesquisa

e o treinamento sistemaacuteticos podem dar a reconhecer iniciativas artiacutesticas cuidadosas seacuterias e

consolidadas por praacutetica e reflexatildeo mas natildeo eacute capaz de atribuir de modo inapelaacutevel a uma

apresentaccedilatildeo atributos de excelecircncia artiacutestica servindo mais como uma credencial de

intenccedilotildees do que a garantia de uma capacidade de agradar por subjetiva que esta uacuteltima se

configura Natildeo deixemos de lado tambeacutem que a defesa de que uma manifestaccedilatildeo artiacutestica

consolide seu espaccedilo em meio a um determinado panorama cultural e mercadoloacutegico

pressupotildee a criaccedilatildeo e a oferta de obras em quantidade e variedade mostrando diferentes

estaacutegios de apropriaccedilatildeo da linguagem e de intenccedilotildees artiacutesticas

Sendo assim faz-se necessaacuterio estimular o desenvolvimento da formaccedilatildeo do artista de

animaccedilatildeo e refinar a discussatildeo acerca da linguagem em acircmbito acadecircmico mas sem deixar de

reconhecer como parcela obrigatoacuteria desses estudos a variedade de manifestaccedilotildees da

linguagem e o empirismo dos processos autodidatas Um estudo que se proponha seacuterio no

sentido do levantamento de princiacutepios de formaccedilatildeo e treinamento para o artista de animaccedilatildeo

proacuteprio Beltrame Nota-se no ano de 2011 em comparaccedilatildeo com o quadro da deacutecada anterior a proliferaccedilatildeo de

cursos e profissionais de animaccedilatildeo figurando como professores e pesquisadores poacutes-graduados dentro de

instituiccedilotildees de ensino superior como satildeo os casos do professor doutor Valmor Beltrame e do professor

doutorando Paulo Balardim na UDESC da professora doutora Izabela Brochado na UnB da professora doutora

Adriana Schneider Alcure na UFRJ do professor mestre Miguel Vellinho na UNIRIO do professor mestre

Taacutecito Borralho na Universidade Federal do Maranhatildeo dentre outros Nota-se tambeacutem a criaccedilatildeo e a

consolidaccedilatildeo de festivais nacionais importantes dedicados agrave linguagem como satildeo os casos do FITB Festival

Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte produzido pela Cia Catibrum do SESI Bonecos do Brasil

e do Mundo e do Festival de Formas Animadas de Jaraguaacute do Sul promovido pela SCAR e pela UDESC que

comporta tambeacutem um seminaacuterio de estudos sobre teatro de formas animadas e que ensejou a criaccedilatildeo e

publicaccedilatildeo da revista Moacutein-moacutein de estudo de teatro de formas animadas

115

deve levar em consideraccedilatildeo o que se levanta por meio dos processos intuitivos de artistas

populares e das foacutermulas bem-sucedidas de formatos anteriores

Balardim conduz uma reflexatildeo que contrapotildee proposiccedilotildees dos estudiosos Dominique

Houdart e Franccedilois Lazaro49

naquilo que estes defendem acerca da necessidade da instituiccedilatildeo

de uma ldquogramaacuteticardquo para o trabalho em animaccedilatildeo Segundo Balardim ao passo que Lazaro

defende a instituiccedilatildeo de uma gramaacutetica traccedilada a partir da percepccedilatildeo Houdart chama a

atenccedilatildeo para um esforccedilo de codificaccedilatildeo teacutecnica e linguiacutestica que ultrapasse os limites de

manifestaccedilotildees consagradas por um olhar eurocecircntrico no sentido de buscar princiacutepios que

compreendam as diversas formas da animaccedilatildeo

Balardim tambeacutem diz que esses olhares natildeo se excluem mas reconhece que a simples

confrontaccedilatildeo das opiniotildees de Lazaro e Houdart datildeo luz a duas questotildees importantes sendo a

primeira o fato de que natildeo existe um meacutetodo formativo reconhecido para artistas de animaccedilatildeo

que contemple a variedade das suas manifestaccedilotildees e a segunda sendo justamente a dimensatildeo

do esforccedilo de generalizaccedilatildeo necessaacuterio para se cunhar um coacutedigo com tal abrangecircncia

Jaacute foi mencionado neste trabalho o quanto alguns formatos de animaccedilatildeo requerem um

processo de treinamento especiacutefico e longo sedimentando a compreensatildeo de que essa

formaccedilatildeo mais geneacuterica guardaria profundas relaccedilotildees com o levantamento dos ldquoprinciacutepios que

retornamrdquo da Antropologia Teatral Eacute licito neste ponto questionar se tal esforccedilo poderia de

fato contribuir para a organizaccedilatildeo de percursos formativos ou se ganharia contornos

geneacutericos em demasia para apontar com clareza procedimentos operativos

A necessidade de se lidar com princiacutepios de formaccedilatildeo mais amplos em suas aplicaccedilotildees

jaacute lanccedilou artistas e professores ao desafio de produzir relaccedilotildees apoiadas nas suas proacuteprias

experiecircncias Com vistas a entender elementos geneacutericos e especiacuteficos na atual compreensatildeo

dos processos de formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo no Brasil e de localizar como esses

processos situam as capacidades de atuaccedilatildeo dentro do trabalho do artista de aniaccedilatildeo passo

agora a tratar de duas dessas listagens pensadas feitas aplicadas e publicadas por brasileiros

a saber Paulo Balardim e Valmor Beltrame50

Primeiramente disporei lado a lado as duas listas organizadas apenas com os tiacutetulos

dos princiacutepios arrolados por ambos51

49

Colhida em Blog Intercacircmbio Caixa do Elefante e PeQuod lthttpwwwceartudescbr

ppgtpublicacoes_moinmoinhtmlgt Consulta feita em 20082011 50

Essas listagens encontram-se respetivamente em BALARDIM 2004 e BELTRAME 2009 51

Reconheccedilo que o estudo comparativo entre as duas listagens em relaccedilatildeo com praacuteticas de aula e processos

formativos de companhias enseja um estudo bem mais amplo e detalhado Parte desses esforccedilos estaacute sendo

ensaiada no trabalho de coordenaccedilatildeo de alunos bolsistas em Iniciaccedilatildeo Artiacutestica (bolsa PINAUFU) de

levantamento comparaccedilatildeo e criacutetica de princiacutepios formativos para o artista de animaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo do

116

BALARDIM BELTRAME

Efeito retoacuterico

Decupagem de movimentos

Dissociaccedilatildeo de movimentos

Movimento eacute frase

Partitura de gestos e accedilotildees

Economia de meios

A teacutecnica do ator Subtexto

Neutralidade

Neutralidade

Eixos (interno e externo) Eixo do boneco e sua manutenccedilatildeo

Controle atencional Olhar como indicador da accedilatildeo

Desvio e foco de atenccedilatildeo Relaccedilatildeo frontal

Teacutecnica indutiva Foco

Triangulaccedilatildeo

Reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas

Respiraccedilatildeo do boneco

Contraste e intensidade

Hipertactibilidade

A comparaccedilatildeo e a criacutetica desses levantamentos de princiacutepios seria tatildeo interessante e

uacutetil a uma discussatildeo da formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo quanto densa e demorada O que

empreendo neste momento eacute um breve apontamento e explicaccedilatildeo de toacutepicos selecionados com

vistas a perceber qualidades de atuaccedilatildeo no trabalho do artista de animaccedilatildeo sob a perspectiva

da abrangecircncia que norteia a construccedilatildeo das listas

As listas se encontram dispostas de modo a aproximar conceitos e princiacutepios que

sejam de alguma maneira aparentados Assim sendo ainda que natildeo corresponda agrave disposiccedilatildeo

original dos dois autores o termo neutralidade por exemplo encontra-se disposto na mesma

linha em ambas as tabelas ainda que refiram-se nas explicaccedilotildees de cada autor a conceitos

com algumas (poucas) diferenccedilas52

Ainda foram agrupados princiacutepios que segundo se

entendeu guardam maiores semelhanccedilas entre si (mesmo que em diversos casos perceba-se a

apresentaccedilatildeo de princiacutepios cujos conceitos satildeo muito proacuteximos ou desdobramentos de um

princiacutepio em dois ou mais na verificaccedilatildeo de uma lista para outra) Nesse estudo foram

deixados em destaque quatro princiacutepios ou dois grupos de princiacutepios aparentados53

O

curriacuteculo da disciplina que ministro no Curso de Teatro da UFU chamado Toacutepicos Especiais em Teacutecnicas

Artiacutesticas ndash Teatro de Formas Animadas e na estruturaccedilatildeo da metodologia do grupo de estudos sobre

expressividade com sombras corporais conduzido em parceria com a companhia teatral Trupe de Truotildees de

Uberlacircndia MG O que faccedilo aqui eacute levantar alguns aspectos que considero mais relevantes agrave indagaccedilatildeo que

conduz este momento do trabalho 52

A questatildeo da neutralidade para o artista de animaccedilatildeo eacute comentada em maior profundidade no capiacutetulo seguinte

desta tese no subtiacutetulo ldquoO foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituaisrdquo 53

Compreendo que outros princiacutepios que natildeo foram destacados seriam uacuteteis ao ponto de discussatildeo apresentado

tais como efeito retoacuterico ou partitura de gestos e accedilotildees Mas atenho-me aos escolhidos pelo bem de uma clareza

de comunicaccedilatildeo de fluecircncia de leitura e por consideraacute-los suficientes para o ponto que aqui se apresenta

117

primeiro grupo diz respeito agrave linha que dispotildee respectivamente a teacutecnica do ator na listagem

de Balardim e subtexto na de Beltrame Os princiacutepios expostos aderem na simples menccedilatildeo

dos termos que os nomeia a defesa da existecircncia de profundas semelhanccedilas teacutecnicas entre a

atuaccedilatildeo e a operaccedilatildeo de formas e bonecos seja na atestaccedilatildeo direta feita por Balardim do

emprego de uma teacutecnica de atuaccedilatildeo54

quanto no acionamento feito por Beltrame de um termo

que nomeia um princiacutepio capital para o estudo da atuaccedilatildeo realista sendo ldquouma criaccedilatildeo interna

do atorrdquo (BELTRAME 2009 p 293) Curiosamente as definiccedilotildees contextuais dos termos

apresentados por Beltrame e Balardim acabam justamente por apontar questotildees especiacuteficas do

trabalho com animaccedilatildeo como o entendimento expresso por Balardim de que a atuaccedilatildeo com o

objeto eacute o resultado de um esforccedilo de projeccedilatildeo de expressividade que combina a accedilatildeo direta

do ator com a avaliaccedilatildeo dos efeitos expressivos que a apresentaccedilatildeo da forma animada produz

sobre a percepccedilatildeo do puacuteblico que percebe a atuaccedilatildeo por meio da maneira como o ator faz o

boneco representar ou melhor atua junto com o boneco Para Beltrame o trabalho com o

subtexto estaacute diretamente relacionado agrave potecircncia discursiva do gestual do boneco que eacute capaz

de suplantar em constacircncia e relevacircncia o seu discurso verbal Eacute verdade que o mesmo pode

ser dito acerca da expressividade do ator vivo mas natildeo se pode negar que a boneco ou forma

animada se constitui numa caso especial posto que a sua discursividade gestual natildeo emana

apenas da reproduccedilatildeo do gestual humano mas das suas possibilidades especiacuteficas de

deslocamento e articulaccedilatildeo Nesse sentido entendemos a existecircncia de uma discursividade

gestual que eacute especiacutefica e proacutepria ao boneco teatral fazendo do subtexto como apresentado

por Beltrame em seu contexto particular uma caracteriacutestica que afirma a especificidade da

linguagem da animaccedilatildeo

A dupla seguinte de princiacutepios relacionados a respiraccedilatildeo do boneco na lista de

Berltrame e reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas na relaccedilatildeo de Balardim tratam de recursos e

atenccedilotildees que contribuem para causar impressatildeo de autonomia ontoloacutegica do boneco em

relaccedilatildeo ao artista que o opera A discussatildeo de Balardim eacute ampliaacutevel a variados recursos de

produccedilatildeo de impressatildeo de vida independente ao boneco ao passo que Beltrame encontra na

respiraccedilatildeo o elemento principal que iraacute nortear essa atenccedilatildeo A discussatildeo de Beltrame

identifica de modo claro a reproduccedilatildeo do movimento da respiraccedilatildeo como um recurso

fundamental para a jaacute mencionada transferecircncia de expressividade que pauta a atuaccedilatildeo com o

boneco pois que emoccedilotildees podem ser atribuiacutedas a uma determinada personagem por meio do

ritmo e da intensidade com que esta parece respirar (BELTRAME 2009 p 294) mas se

54

ldquoAo desejar que o puacuteblico creia haver vida onde natildeo haacute o ator-manipulador passa a representar com o seu

corpo a vida do objeto inanimadordquo (BALARDIM 2004 p84)

118

refere tambeacutem agrave respiraccedilatildeo como um recurso de integraccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo do boneco e a

atuaccedilatildeo do operador Ainda que natildeo se trate de um exerciacutecio de imaginaccedilatildeo muito exigente

aquele que parte da afirmaccedilatildeo de que haacute diversos bonecos objetos e formas que natildeo imitam

em suas apresentaccedilotildees a respiraccedilatildeo humana por meio de uma constante ritmada e sutil

ampliaccedilatildeo e recolhimento da provaacutevel caixa toraacutexica pode-se perfeitamente entender essa

respiraccedilatildeo como indicativo geneacuterico para toda sutil aplicaccedilatildeo de tensatildeo e alteraccedilatildeo de estado

no objeto de modo a fazer supor nele a presenccedila de uma vitalidade proacutepria O percurso de

Balardim escolhe abordar a questatildeo da reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas ndash das quais o ato

de respirar figura entre as principais ndash a partir do entendimento de que a impressatildeo de vida

autocircnoma natildeo se produz por meio de qualquer movimento mas de um movimento

qualificado capaz de auxiliar a uma percepccedilatildeo caracteriacutestica da forma animada

O movimento do objeto animado deve ser portador de uma intenccedilatildeo (desejo

accedilatildeo) consciecircncia (um olhar que segue um movimento) ou um miacutenimo de

vida bioloacutegica (respiraccedilatildeo) O movimento associado agrave vida eacute imperativo

(BALARDIM 2004 p 105)

Em que pese o questionamento feito por este estudo acerca do movimento e da sua devida

conceitualizaccedilatildeo para o teatro de animaccedilatildeo salta aos olhos no trecho de Balardim a

participaccedilatildeo do artista de operaccedilatildeo de formas como uma forccedila autocircnoma criativa e disponiacutevel

ao jogo relacional com o boneco e com a cena

Esse exerciacutecio de anaacutelise por curto que possa parecer se presta a esclarecer que o

acionamento de propriedades de atuaccedilatildeo por parte de artistas de animaccedilatildeo natildeo eacute acidental

circunstancial ou mesmo uma invenccedilatildeo das recentes derrubadas de barreiras entre

modalidades espetaculares Trata-se de um recurso presente e inalienaacutevel ao trabalho e agrave

apreciaccedilatildeo do jogo do artista de animaccedilatildeo

Por outro lado o reconhecimento da existecircncia de princiacutepios e recurso que satildeo

especiacuteficos da linguagem ndash e das linguagens ndash de animaccedilatildeo nos modos de percepccedilatildeo e nos

percursos formativos desses artistas o identificam natildeo como um ator mas como um tipo

determinado de ator capaz de acionar competecircncias de atuaccedilatildeo em atendimento agraves demandas

de uma cena composta e plural Cariad Astles avalia essa demanda sob a perspectiva de que

o teatro de bonecos tem sido visto mais como uma aptidatildeo extra no curriacuteculo

do ator do que como um campo do bonequeiro especialista e o que eacute visto

como teatro de bonecos na cena eacute cada vez menos definido (ASTLES 2008

p 54)

A leitura mais precisa seria aquela que se faz a partir do entendimento de que o artista

desse teatro de animaccedilatildeo que sobrepotildee linguagens e busca acompanhar as tendecircncias de

pluralidade de meios das artes do seu tempo natildeo amplia seu cabedal de competecircncias e

119

funccedilotildees nem adquire um parentesco mais aproximado com o ator teatral como resultado de

uma transformaccedilatildeo no seu estatuto fundamental mas sim tem essas caracteriacutesticas

intemporais tornadas mais visiacuteveis por obra das transformaccedilotildees verificadas na cena de

animaccedilatildeo

Isto equivale dizer que mesmo que natildeo seja possiacutevel perceber um padratildeo de

comportamento e formaccedilatildeo do artista de apresentaccedilatildeo do teatro de animaccedilatildeo (manipulador

animador ou operador) natildeo se pode negar a existecircncia de qualidades e competecircncias de

atuaccedilatildeo no exerciacutecio de sua funccedilatildeo natildeo importa o quanto essa funccedilatildeo possa estar ou natildeo

adequada a paracircmetros de excelecircncia em desempenho

Se no iniacutecio do seacuteculo XX foi percebida no teatro ocidental a proliferaccedilatildeo de meacutetodos

de treinamento e escolas de formaccedilatildeo para atores bem como de teorias sobre o ator que

fizeram conviver entendimentos variados sobre a sua funccedilatildeo e formaccedilatildeo descrevendo um

percurso de ampliaccedilatildeo na quantidade e variedade de propostas daquilo que se entende como

sendo o ator teatral parece um tanto deslocada a ideacuteia de que o artista de animaccedilatildeo seria uma

outra espeacutecie de artista a partir do argumento de que este lidaria com alguns princiacutepios de

formaccedilatildeo e treinamento diferenciados

Reconhecer o artista de animaccedilatildeo como ator eacute sobretudo atentar para a sua

capacidade de produccedilatildeo de presenccedila e sentido sobre a cena teatral e reconhecer o caraacuteter de

atuaccedilatildeo em sua apresentaccedilatildeo ainda que esta ocorra em favor de conferir relevacircncia cecircnica a

outros elementos

Talvez agora possamos nos reaproximar da questatildeo que abriu este capiacutetulo com

clareza ampliada Quanto agrave pergunta de Jacques Feacutelix sobre se somos ainda marionetistas

parece claro que essa resposta jamais deixaraacute de ser afirmativa ainda que necessite ser

verificada agrave luz das transformaccedilotildees percebidas no proacuteprio estatuto da marionete e por

conseguinte da cena de animaccedilatildeo Parece que mesmo marionetistas somos atores por sempre

havermos sido e como tal afirmamos essa funccedilatildeo no sentido em que construiacutemos uma

apresentaccedilatildeo feita em diaacutelogo com o material Natildeo no sentido de comunicar por meio do

material mas comunicar juntamente com ele As transformaccedilotildees sofridas no estatuto da forma

animada e da cena de animaccedilatildeo exigem do artista que o apresenta a busca por novas formas

de relaccedilatildeo com o objeto natildeo para que este possa assumir novas funccedilotildees mas como resposta a

uma demanda encaminhada pelo proacuteprio material e suas possibilidades expressivas

120

3 ATOR E OBJETO TOPOGRAFIA DE UM CAMPO DE BATALHA

Nosso teatro de bonecos pode ter cenaacuterio figurino e

iluminaccedilatildeo

Ou natildeo

Pode ter teacutecnicos e direccedilatildeo

Ou natildeo

Como o teatro de atores

Ao contraacuterio do teatro de atores poreacutem pode natildeo ter atores

Ou natildeo

Grupo Sobrevento55

Passemos a partir deste momento a analisar questotildees relativas agraves tensotildees e

transformaccedilotildees percebidas nos tipos de relaccedilotildees que podem existir em cena entre o artista de

animaccedilatildeo e o boneco A arte da animaccedilatildeo com suas inserccedilotildees diversas nos contextos teatrais

mais variados sempre permitiu que se estabelecessem diferentes acordos relacionais entre

operador e objeto Tais acordos tem seus fundamentos e resultados cecircnicos apoiados nos

modos como esses dois elementos satildeo dados a perceber e dividem a atenccedilatildeo do puacuteblico sobre

a cena Uma maneira bastante objetiva de organizar os diferentes modos de apresentaccedilatildeo

conjunta de ator e marionete pode se dar sob o pretexto de uma ilustraccedilatildeo que conduza a uma

discussatildeo mais pormenorizada Portanto comecemos imaginando que haacute dois grandes grupos

de modos de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo um onde o manipulador se encontra oculto das vistas

da plateacuteia e outro no qual o puacuteblico pode seja por impositivos teacutecnicos ou escolhas artiacutesticas

apreciar o trabalho do manipulador e incorporar essa percepccedilatildeo agrave totalidade do espetaacuteculo

Tal divisatildeo isso precisa ficar claro eacute arbitraacuteria circunstancial e natildeo eacute acompanhada por

outras chaves taxonocircmicas empregadas para o estudo do teatro de animaccedilatildeo tais como

formas materiais modos de operaccedilatildeo movimentaccedilatildeo e qualidades discursivas Sua escolha eacute

mais uma ferramenta argumentativa do que propriamente uma tentativa de classificaccedilatildeo

Como ponto de entrada para o estudo das possibilidades relacionais entre manipulador e

objeto a escolha por esta divisatildeo se daacute na esperanccedila de construir um raciociacutenio que a

desmonte ndash a classificaccedilatildeo ndash de dentro para fora mostrando suas inconsistecircncias e

impossibilidades mas montando um percurso reflexivo consistente no caminho

Pode-se supor portanto que um manipulador atraacutes de um pano ou de qualquer outra

estrutura de ocultaccedilatildeo estaacute trabalhando com a intenccedilatildeo de permitir ao boneco assumir a

centralidade da cena anulando aos sentidos da audiecircncia a sua participaccedilatildeo e contribuindo

assim para que se instaure mais facilmente uma impressatildeo de vida autocircnoma para o boneco

Ainda que seja comum a compreensatildeo de que a tendecircncia da ocultaccedilatildeo do manipulador por

55

Programa O teatro do Sobrevento

121

Figura 58a Manipulaccedilatildeo oculta inferior com bonecos de luva e de vara

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

Figura 58b Manipulaccedilatildeo oculta superior com boneco de tringle (bengala) + fio e com boneco de fio

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

122

Figura 58c Formas de manipulaccedilatildeo teatro negro fantoche com cabeccedila boneco habitaacutevel e manipulaccedilatildeo

com os peacutes africana

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

Figura 58d Formas de manipulaccedilatildeo boneco sobre balcatildeo e manipulaccedilatildeo direta boneco sobre balcatildeo com

varas bonecos de ventriacuteloquo de boca articulada com gatilho e sem gatilho

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

123

traacutes de empanadas janelas e panos se identifica com as mais remotas tradiccedilotildees do teatro de

bonecos tal recurso nunca se configurou de fato num elemento unificador da performance

com teatro de bonecos anterior agraves uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX56

(Aliaacutes recordemo-nos

que de acordo com Steve Tillis natildeo haacute um traccedilo teacutecnico ou estiliacutestico capaz de normalizar o

que se compreende por teatro de bonecos) Se decidirmos ampliar nosso olhar para aleacutem de

formas consagradas na Europa em periacuteodos posteriores aos iniacutecios do seacuteculo XVII (e

precisamos fazecirc-lo pelo bem de um entendimento mais amplo) eacute possiacutevel mencionar agrave guisa

de uma raacutepida ilustraccedilatildeo os chamados marionetes de prancha (ou agrave la planchette) (Figuras

60a e 60b) que executavam alguns movimentos simples por meio de um fio preso agrave perna do

manipulador que precisava ter as matildeos livres para tocar o instrumento que produziria a

muacutesica que embalaria o quadro ou que guiaria a danccedila dos bonecos presos a uma pequena

prancha de madeira tendo o referido fio atravessado em seu corpo de modo a produzir sua

movimentaccedilatildeo Tillis nos oferece uma descriccedilatildeo de teatros de sombras javaneses e tailandeses

nos quais natildeo apenas eacute permitido ao puacuteblico posicionar-se na parte posterior da tela de

projeccedilatildeo como em alguns casos os proacuteprios bonecossilhuetas57

satildeo manipulados diante da

tela de sombras dando a ver consequumlentemente os seus operadores Haacute ainda outro tipo de

exemplo que nos eacute uacutetil no sentido em que nos ajuda a compreender como certos processos de

apresentaccedilatildeo dos bonecos em cena satildeo capazes de ampliar a proacutepria noccedilatildeo de animaccedilatildeo

Trata-se de entender que a interpretaccedilatildeo vocal seja esta por meio de atribuiccedilatildeo direta de uma

voz ao personagem representado pelo boneco seja pela apresentaccedilatildeo de uma narrativa para a

qual os bonecos servem de ilustraccedilatildeo ou comentaacuterio se configura num modo de identificaccedilatildeo

do boneco como partiacutecipe ativo da cena teatral Assim sendo eacute possiacutevel recorrer a pelo

menos dois outros exemplos que seriam o do bunraku que dispotildee o narrador num espaccedilo

especiacutefico do edifiacutecio teatral de modo a que a apreciaccedilatildeo de sua recitaccedilatildeo da narrativa jocircruri

acompanhada pelo shamisen possa ser combinada agrave das accedilotildees dos bonecos A famosa

passagem de Don Quixote58

(Figura 62) na qual o Cavaleiro da Triste Figura investe contra

uma apresentaccedilatildeo de bonecos descreve um retaacutebulo um tipo de apresentaccedilatildeo na qual

56

Se quisermos compreender a aproximaccedilatildeo de alguns elementos chave das vanguardas artiacutesticas europeacuteias

desse periacuteodo como um evento importante para o desencadeamento de transformaccedilotildees e intercacircmbios que se

percebem ainda hoje na linguagem da animaccedilatildeo de formas 57

Tais elementos satildeo em geral feitos e manuseados de modo a que o que se apresenta para o puacuteblico natildeo eacute ao

menos em uma primeira apreciaccedilatildeo o objeto mas sua projeccedilatildeo em sombra sobre uma tela Haacute discussotildees sobre

se o objeto manuseado entre a fonte de luz e a tela poderia ser considerado um boneco jaacute que o que se apresenta

eacute transformado pela influecircncia da luz e da superfiacutecie de projeccedilatildeo Nos casos descritos por Tillis a discussatildeo se

adensa uma vez que o posicionamento do puacuteblico por todos os lados da tela permite que se aprecie tambeacutem a

apresentaccedilatildeo do objeto manipulado e natildeo apenas da sua sombra projetada 58

Segunda Parte capiacutetulos XXV e XXVI (SAAVEDRA 2005 pp330-59)

124

pequenas figuras com movimentos limitados (algo semelhantes agraves figuras bidimensionais do

teatro de brinquedo)

Figura 59a Marionete ldquoagrave la planchetterdquo

italiana

Fonte BOEHN 1972 p 57

Gravura de J Dumont 1739

Figura 59b Marionete ldquoagrave la planchetterdquo

Fonte BOEHN 1972 p 58

Gravura francesa anocircnima aprox 1800

Figura 60 Teatro de bonecos Alemanha seacuteculo XVIII

Fonte BOEHN 1972 p 60

Figura 61 Don Quixote destroacutei o teatro

de bonecos

Fonte BOEHN 1972 p 63

Gravura de uma ediccedilatildeo francesa do livro

seacuteculo XVIII

125

satildeo apresentados dentro de uma caixa decorada com uma das faces abertas enquanto um

narrador posicionado diante do puacuteblico conta (ou canta) a histoacuteria para a qual os quadros

moacuteveis feitos pelos bonecos servem de ilustraccedilatildeo

Deve estar claro que o recurso da ocultaccedilatildeo do operador de bonecos natildeo pode ser

entendido como indicativo de praacuteticas superadas de arraigamento a valores retroacutegrados ou

mesmo como algo que impeccedila o desenvolvimento e a apresentaccedilatildeo de relaccedilotildees interessantes

entre ator e boneco De fato a ocultaccedilatildeo do ator ndash por diversos motivos ndash natildeo impede a sua

participaccedilatildeo na cena

Paulo Balardim tem algo a dizer a esse respeito

Agraves vezes o perceptiacutevel natildeo eacute visto mas sentido de outra forma Da mesma forma

o ator-manipulador oculto muitas vezes passa a ser mais percebido do que o

proacuteprio objeto visiacutevel mesmo encoberto pela escuridatildeo tapadeiras negras ou uma

tela de sombras O que ocorre eacute que natildeo basta para neantizar a proacutepria presenccedila

ocultar-se visualmente (BALARDIM 2004 p89)

Balardim prossegue referindo-se agrave importacircncia do trabalho de neutralizaccedilatildeo da expressividade

do operador de bonecos como fundamento importante para a sua formaccedilatildeo59

Com isto define

esse modo de aparecer mesmo estando oculto como sendo o resultado de uma imprecisatildeo

teacutecnica A passagem natildeo permite ignorar no entanto que da mesma forma como um

manipulador oculto pode ser percebido pela plateacuteia por meio de imprecisotildees de postura e

teacutecnica manipulativa este pode ser dado a ver por meio de escolhas poeacuteticas Eacute um recurso

usual em algumas companhias como por exemplo a Truks e a Morpheus Teatro60

(Figuras 63

e 64) o estabelecimento de um diaacutelogo entre o boneco e os seus manipuladores muitas vezes

o proacuteprio ator ou atriz que vocaliza a personagem No espetaacuteculo para crianccedilas Peacutes descalccedilos

da Morpheus Teatro os personagens principais satildeo duas crianccedilas que brincam numa caixa de

areia Florecircncia e Rodolfo representadas por bonecos Esses bonecos interagem com os atores

em momentos como o da entrada do menino Rodolfo que vem carregado no colo por uma

atriz que dialoga com ele assumindo a personagem da sua matildee (o boneco eacute vocalizado por

outro ator) mas haacute outra maneira de interaccedilatildeo que aborda diretamente a manipulaccedilatildeo dos

59

Em um encontro entre as companhias PeQuod e Caixa do Elefante realizado entre os dias 7 e 13 de marccedilo de

2011 em Porto Alegre como parte do projeto Itauacute Cultural Balardim declarou estar revendo tal consideraccedilatildeo

preferindo no momento aproximar-se da questatildeo da neutralidade a partir do conceito de foco como este eacute

empregado para descrever propriedade teacutecnicas do manipulador Mais a esse respeito ainda seraacute dito neste

capiacutetulo 60

Esta segunda foi criada a partir de um desdobramento da Truks quando o ator Joatildeo Arauacutejo comeccedilou a

trabalhar em 2002 num um projeto solo que posteriormente tonou-se o espetaacuteculo O princiacutepio do espanto

Atualmente a companhia conta com outros integrantes que anteriormente foram da Truks como eacute o caso de

Verocircnica Gerchman

126

bonecos quando os bonecos se reportam aos operadores diretamente solicitando objetos e

fazendo comentaacuterios

Os efeitos de metateatralidade possiacuteveis com esse recurso satildeo diversos como ocorre

na cena final de Filme Noir da companhia PeQuod em que o personagem Detetive percebe

os manipuladores que o seguram e luta em vatildeo para livrar-se das matildeos que o conteacutem e o

movimentam Outro espetaacuteculo que apresenta um momento semelhante eacute O princiacutepio do

espanto que constroacutei uma sequumlecircncia tocante da descoberta do operador por parte do boneco

(Figura 65) Desta forma nos encaminhamos tambeacutem para a percepccedilatildeo de posturas em cena e

procedimentos de

atuaccedilatildeo suplantam os aparatos teacutecnico-cenograacuteficos no que toca a sua participaccedilatildeo na cena

O trabalho do manipulador a movimentaccedilatildeo do boneco a vocalizaccedilatildeo o uso do espaccedilo dos

ritmos e da representaccedilatildeo das personagens e situaccedilotildees faz com que este se insinue sobre a

cena fazendo do boneco um meio de percepccedilatildeo de sua presenccedila O manipulador se faz

presente na accedilatildeo do boneco e essa presenccedila eacute parte indissociaacutevel da apresentaccedilatildeo

Isto natildeo quer dizer entretanto que o boneco eacute pouco mais que um canal de expressatildeo

para o ator que o apresenta Natildeo eacute correto entender que a interpretaccedilatildeo do manipulador se daacute

de modo a usar o boneco como um apoio ou trampolim para a sua expressatildeo Felisberto

Sabino da Costa declara que ldquono teatro de animaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo que se estabelece com a

plateacuteia eacute intermediada pelo objeto ao passo que no teatro de ator natildeo haacute tal elemento de

intermediaccedilatildeordquo (COSTA 2001 p12) e Joseacute Parente escreveu que ldquoo que diferencia o ator do

ator-manipulador ou ator-bonequeiro eacute que enquanto o primeiro encarna ele mesmo o

personagem o segundo utiliza algum elemento material externo a ele (maacutescara boneco ou

objeto) para se expressarrdquo (PARENTE 2005 p113) Aliaacutes a noccedilatildeo apresentada por Sabino

da Costa qualificando o boneco em apresentaccedilatildeo como ldquoobjeto interpostordquo seraacute mencionada

em obras posteriores como por exemplo no cuidadosos trabalho feito por Marco Souza

(2005) no qual discute as relaccedilotildees entre corpos de atores e bonecos no teatro de animaccedilatildeo

pensando a partir do teatro Kuruma Ningyo do Japatildeo Mesmo tendo em vista o amplo alcance

do trabalho de Souza e a densidade das questotildees que apresenta eacute preciso olhar com certa

cautela a questatildeo da aceitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de boneco teatral como objeto interposto entre ator e

puacuteblico

Natildeo eacute possiacutevel compreender todas as trocas formais e semacircnticas passiacuteveis de serem

estabelecidas entre objeto e ator se a forma animada for tratada como um canal por meio da

qual a apresentaccedilatildeo do ator adquire certas qualidades Esta seria claramente numa atitude de

hierarquizaccedilatildeo das capacidades expressivas e de estabelecimento de uma escala de valores

127

Figura 62 Cia Truks Vovocirc

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Bonecos dirigindo-se aos atores que os operam

Figura 63 Morpheus Teatro Peacutes descalccedilos

Fonte (httpwwwflickrcomphotoszzzanotti

5607762523)

Foto Mariana Zanotti de Oliveira

Figura 64 Morpheus teatro O princiacutepio do espanto A descoberta do manipulador (ator Joatildeo Arauacutejo)

Fonte httpwwwflickrcomphotoseneas999573230847

Foto Eneas Lopes

128

estaacutetica no que se refere agrave apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo O boneco (objeto material forma)

possui uma seacuterie de qualidades formais cineacuteticas e simboacutelicas que postulam para si uma

importacircncia incontestaacutevel sobre a composiccedilatildeo da representaccedilatildeo Tillis se apoacuteia em estudiosos

como Otakar Zich Petr Bogatyrev e Henryk Jurkowski para dinamizar essas qualidades no

interior de trecircs sistemas de signos (forma movimento e fala) Eacute preciso perceber que sem

recuperar o discurso ultrapassado de sacralizaccedilatildeo do boneco e de atribuiccedilatildeo obrigatoacuteria de

propriedades maacutegicas agrave sua apresentaccedilatildeo o valor de sua presenccedila em cena se faz na

conjunccedilatildeo dos seus dois fundamentos performativos Ainda natildeo se pode em nenhum

momento desse tipo de estudo ceder agrave tentaccedilatildeo da generalizaccedilatildeo e fechar os olhos agrave

desconcertante variedade de modos de apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo nas quais as

relaccedilotildees entre objeto e ator podem conferir importacircncias variaacuteveis entre ambos com

dinacircmicas e trocas que podem se realizar no interior de uma mesma apresentaccedilatildeo

Manipulador e boneco fazem parte de uma estrutura performativa combinada e

instaacutevel sobre a qual se funda a linguagem e a teacutecnica do teatro de animaccedilatildeo Por ser instaacutevel

essa combinaccedilatildeo de componentes significantes sobre a cena pode se dar de diversas maneiras

mesmo dentro de uma mesma apresentaccedilatildeo ou espetaacuteculo As dinacircmicas dessas relaccedilotildees satildeo

guiadas pela administraccedilatildeo das tensotildees expressivas existentes entre esses dois componentes

da performance de animaccedilatildeo ator e forma

Creio que um bom exemplo do que se afirma pode ser verificado no trabalho do Grupo

Contadores de Estoacuterias mais especificamente na linha de atuaccedilatildeo que adotaram a partir do

iniacutecio dos anos 1980 Os Contadores de Estoacuterias iniciaram seus trabalhos com espetaacuteculos

feitos para a rua nos quais eram dispostos sobre a cena diversos elementos de caracterizaccedilatildeo

de personagens como cabeccedilas gigantes figuras de danccedilas dramaacuteticas brasileiras uso de

materiais diversos e narrativa fortemente pontuada pela muacutesica Classificado pelo grupo como

ldquoextravaganza em praccedila puacuteblicardquo61

o tipo de espetaacuteculo que caracteriza a primeira deacutecada de

existecircncia dos Contadores de Estoacuterias difere em muito da linha trabalho inaugurada com

Mansamente de 1980 A peccedila eacute composta por quadros independentes embora tematicamente

relacionados ndash flagrantes da vida interiorana do Brasil ndash sem palavras e com um tipo de

animaccedilatildeo que foi descrita da seguinte maneira pelo entatildeo criacutetico de teatro do Jornal do Brasil

Yan Michalski

A ousadia maior [do espetaacuteculo] fica por conta da concepccedilatildeo dos bonecos e

da teacutecnica de sua manipulaccedilatildeo As figuras tecircm o tamanho aproximado das

bonecas de crianccedilas consequumlentemente o cenaacuterio eacute construiacutedo de objetos

61

Programa do espetaacuteculo Museu Rodin Vivo apresentado no SESC Ipiranga SP entre 7 e 9 de julho de 1995

129

que parecem brinquedos A manipulaccedilatildeo prescinde de quaisquer recursos

de intermediaccedilatildeo como linhas fios ou paus Os dois manipuladores

tambeacutem responsaacuteveis pela criaccedilatildeo dos bonecos Raquel e Marcos Caetano

Ribas vestidos de malha e capuz negros movimentam os pequeninos

atores diretamente com as matildeos esculpindo praticamente as suas atitudes

corporais e os seus deslocamentos no espaccedilo (MICHALSKI 1980)

Diferentemente de outras companhias que lidam com manipulaccedilatildeo direta e anterior de

bonecos de corpo inteiro como a companhia PeQuod o grupo Sobrevento a companhia

Truks a Catibrum e tambeacutem (em alguns espetaacuteculos) o grupo Giramundo natildeo haacute em parte

consideraacutevel do trabalho dos Contadores de Estoacuterias o uso de um balcatildeo ou aparato sobre o

palco Os bonecos satildeo operados sobre o chatildeo com os manipuladores postados atraacutes dos

mesmos A ausecircncia desse palco suplementar no qual o balcatildeo para manipulaccedilatildeo direta se

transforma acaba por ampliar a visibilidade do ator-manipulador para o puacuteblico Ainda que

cobertos com roupas e maacutescaras pretas a manipulaccedilatildeo sobre o chatildeo praticada por Marcos e

Raquel Ribas aproxima bastante os corpos de manipuladores e bonecos Tal se daacute pela

ausecircncia da cobertura parcial que um balcatildeo ou palco elevado pode propiciar aleacutem de exigir

que o manipulador assuma posturas que podem interferir na apresentaccedilatildeo e no deslocamento

do boneco Em uma entrevista concedida no ano de 2009 Marcos explica a forma e a eficaacutecia

do procedimento de concessatildeo de ecircnfase ao boneco que emprega

No nosso espetaacuteculo a gente se veste de preto mas o fundo eacute azul Eu natildeo tento

me esconder porque se eu tentar vou aparecer o tempo todo natildeo tem jeito Entatildeo

prefiro que vocecirc se acostume com a minha presenccedila e preste atenccedilatildeo na histoacuteria

(2009)

Mas seraacute possiacutevel ao espectador ldquoacostumar-serdquo em meio agrave apreciaccedilatildeo da

representaccedilatildeo teatral agrave presenccedila do ator-manipulador que impulsiona o boneco e o supera em

iacutempeto e dimensotildees Talvez seja impossiacutevel para quem assiste ignorar absolutamente a

presenccedila do ator-manipulador aparente o que dificulta o entendimento de que tal presenccedila

natildeo seja capaz de

interferir negativamente na percepccedilatildeo da trama que o espetaacuteculo apresenta A esse respeito

Marcos Ribas e Yan Michalski parecem concordar pois a apreciaccedilatildeo que o criacutetico fez de

Mansamente produziu a seguinte percepccedilatildeo

Aos poucos a matildeo do manipulador em primeiro plano e do seu corpo por traacutes do

boneco se vai diluindo na mente do espectador embora nunca se pretenda

camuflaacute-la e o boneco vai adquirindo uma estranha vida autocircnoma como se

130

recebesse dos dedos que cada vez mais imperceptivelmente o movimentam uma

injeccedilatildeo de humanidade (1980)

O comentaacuterio de Michalski deixa claros alguns elementos que satildeo fundamentais para o

entendimento de como se percebe o ator operador de forma animada posto agrave vista do puacuteblico

no caso mencionado O primeiro destes a ser comentado eacute a impossibilidade da criaccedilatildeo de

uma impressatildeo de total desaparecimento por parte do manipulador e portanto a aceitaccedilatildeo do

espectador de sua presenccedila ainda que esta natildeo se decirc de modo a impedir o acompanhamento

da trama representada pelas accedilotildees dos bonecos outra questatildeo eacute a de que tal qualidade de

direcionamento da atenccedilatildeo natildeo se daacute de outra maneira que natildeo por meio de uma construccedilatildeo

gradual da aceitaccedilatildeo do espaccedilo ocupado pelo manipulador dentro da cena na qual a percepccedilatildeo

do espectador participa de uma suave negociaccedilatildeo acerca da conduccedilatildeo da sua atenccedilatildeo Essa

negociaccedilatildeo se estabelece inapelavelmente entre o espectador o manipulador e o boneco A

aceitaccedilatildeo de tais produtos da cena nos permite pensar com clareza que essa negociaccedilatildeo eacute

guiada por uma maneira especiacutefica do ator-manipulador se comportar em cena tanto no trato

com o boneco quanto na consideraccedilatildeo do puacuteblico Portanto trata-se do emprego de uma

determinada postura teacutecnica que daacute a ver uma maneira de o manipulador relacionar-se com o

boneco em cena

Jurkowski emprega o termo opalizaccedilatildeo para tratar da caracteriacutestica da apresentaccedilatildeo do

boneco por meio da qual o puacuteblico o percebe simultaneamente como mateacuteria inerte e como

sugestatildeo de vida ou seja ldquoalternacircncia entre o caraacuteter e a materialidade da figurardquo

(JURKOWSKI 2001 p35) O termo se refere agrave percepccedilatildeo simultacircnea de muacuteltiplos feixes de

luz incidindo sobre um mineral multifacetado ou seja a apresentaccedilatildeo do boneco encaminha

ao espectador

simultaneamente percepccedilotildees distintas e por vezes antagocircnicas de autonomia e

impressatildeo de vida Jurkowski elabora e aprofunda essa noccedilatildeo em diversos de seus textos

como o que se segue62

Haacute todavia algo mais ndash o efeito que decidi chamar ldquoopalizaccedilatildeordquo Quando o

movimento domina completamente um objeto sentimos que o personagem

nasce e se apresenta em cena Quando eacute a natureza do objeto o que a domina

continuamos a ver o objeto O objeto permanece sendo o objeto e a

personagem ao mesmo tempo Agraves vezes no entanto essa unidade se rompe

62

Vamos encontrar na reflexatildeo de George Didi-Huberman uma imagem semelhante ldquoA obra eacute um cristal mas

todo cristal se move sob o olhar que ele suscita Ora esse movimento natildeo eacute outro senatildeo o de uma cisatildeo sempre

reconduzida a danccedila do cristal em que cada faceta inelutavelmente contrasta com a outrardquo (DIDI-

HUBERMAN 2005 p 118)

131

por um curto espaccedilo para ser recuperada apoacutes um instante Isto eacute a que me

refiro como sendo ldquoopalizaccedilatildeordquo (JURKOWSKI 1990[1988] p53)63

Haacute o que se discutir acerca do modo como Jurkowski subordina impressatildeo de vida e

ldquodomiacutenio do movimentordquo na apresentaccedilatildeo da forma animada Ainda assim natildeo resta duacutevida

que reside exatamente nessa dupla percepccedilatildeo uma das mais fundamentais qualidades da

apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo E assim podemos nos referir agrave participaccedilatildeo do ator operador da

forma como um indicativo duplo de ineacutercia e vida para o objeto animado A percepccedilatildeo da sua

influecircncia sobre o boneco seja por meio da visatildeo da sua atuaccedilatildeo ou por meio de indiacutecios mais

sutis (intencionais ou acidentais) entendidos em meio aos aparatos de apoio e ocultaccedilatildeo

apontam para a dependecircncia do boneco por meio da simples revelaccedilatildeo da estrutura que o

opera mas tambeacutem resta sobre a cena como sendo a forccedila vital ndash o eacutelan ndash emprestada ao

boneco natildeo apenas por meio da movimentaccedilatildeo conferida pelas accedilotildees da operaccedilatildeo mas

tambeacutem pelo que eacute indicado e projetado ao boneco por meio da proacutepria presenccedila (vista ou

subentendida) do ator operador pela troca que se estabelece entre dois elementos distintos em

cena com o intento de constituir um ou mais corpos teatrais

Pode-se assim dizer que os modos de dar a ver em cena o boneco e o manipulador

encontram-se apoiados por estruturas sutis de estabelecimento de relaccedilotildees e conduccedilatildeo de

expressividade de ambos ainda que natildeo estejam suportados por estruturas teacutecnico-

cenograacuteficas de ocultaccedilatildeo do ator operador A companhia argentina Taller de Tiacuteteres

Triaacutengulo (do diretor Carlos Martinez) em um espetaacuteculo chamado Muchas Manos64

usava

uma empanada para bonecos de luva como mecanismo de ocultaccedilatildeo do elenco A escolha por

construir seus bonecos a partir de luvas (a peccedila de vestuaacuterio) que poderiam ser vestidas pelos

dois atores ou enchidas e operadas por meio de varas em diversas posiccedilotildees dispunha

variadas interpretaccedilotildees para a percepccedilatildeo do formato da matildeo humana que ocorria de

representar tanto o manipulador quanto os bonecos que compunham o espetaacuteculo e ainda em

jogos de enganos nas vezes em que o puacuteblico era logrado a entender o boneco-luva como

sendo um determinado personagem que posteriormente se mostrava como sendo a matildeo do

ator e vice e versa Ainda ocultando os manipuladores (durante grande parte do espetaacuteculo)

por traacutes da empanada o espetaacuteculo usava a forma da matildeo humana como uma senha para

63

Tillis vai empregar o termo ldquovisatildeo duplardquo(1992 p64) preferindo este ao de Jurkowski por consideraacute-lo

menos barroco Mas sobretudoo tendo em vista contrapor-se agrave proposiccedilatildeo de Otakar Zich na qual a percepccedilatildeo

do boneco se daacute em alternacircncia entre objeto e vida ao inveacutes da percepccedilatildeo composta e simultacircnea que as

terminologias de Tillis e Jurkowski sugerem 64

O espetaacuteculo foi assistido por mim no ano de 1994 no Festival Internacional de Teatro de Animaccedilatildeo realizado

no SESC Ipiranga SP

132

Figura 65 Contadores de Estoacuterias Mansamente

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

Foto Luciana Serra

Figura 66 Contadores de Estoacuterias

Maturando

Fonte

(httpwwwecparatyorgbr)

Foto JB

Figura 67 Contadores de Estoacuterias Em concerto

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

Foto Luciana Serra

133

indicar a presenccedila em cena dos manipuladores e ainda considerar a sua interferecircncia na trama

da peccedila

Dispositivos teacutecnico-cenograacuteficos de ocultaccedilatildeo da figura do ator que opera o boneco

haacute inuacutemeros que podem variar de acordo com a forma o tamanho e o modo de apresentaccedilatildeo

dos bonecos mas que tambeacutem podem estar relacionado a questotildees de uso do espaccedilo

disponiacutevel ou consagrado agrave representaccedilatildeo e tambeacutem a diferentes modos de apresentaccedilatildeo da

trama e de disposiccedilatildeo da dramaturgia Ainda podemos perceber que recursos de ocultaccedilatildeo

podem ser de natureza teacutecnico-cenograacutefica como eacute o caso de empanadas palcos paineacuteis

fossos fundos falsos vestuaacuterio e recursos de iluminaccedilatildeo mas tambeacutem podem ser de natureza

procedimental-performativa do trabalho do operador que compreende o trabalho de

suavizaccedilatildeo de reaccedilotildees faciais e corporais contenccedilatildeo gestual direcionamento da atenccedilatildeo do

manipulador na direccedilatildeo do boneco e outras posturas relacionadas Cabe dizer como

complemento obrigatoacuterio ao comentaacuterio feito agrave citaccedilatildeo de Paulo Balardim e ao entendimento

dos casos dos Contadores de Estoacuterias e do Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo que nenhum

dispositivo teacutecnico-cenograacutefico seraacute bem sucedido em suavizar a participaccedilatildeo do ator-

manipulador sobre a cena se natildeo for acompanhado adequadamente por um

dispositivo procedimental-performativo Natildeo se pode relutar em acreditar que as estruturas

teacutecnico-cenograacuteficas de ocultaccedilatildeo do manipulador servem como reforccedilos para os coacutedigos

relacionais de troca de ecircnfase cecircnica natildeo seus fatores de determinaccedilatildeo Talvez seja mesmo

possiacutevel acreditar que o emprego de panos e empanadas seja mais motivado por escolhas de

natureza teacutecnico-logiacutesticas do que por decisotildees esteacuteticas e narrativas da cena Os efeitos que

essas escolhas produzem sobre o modo de percepccedilatildeo da cena no entanto seguem um

caminho bastante diverso

A procura pela base teacutecnico-conceitual de definiccedilatildeo ou regecircncia do dispositivo

procedimental mencionado conduziu a um fundamento teacutecnico apresentado com ligeiras

distinccedilotildees tanto por Balardim quanto Beltrame identificado sob o termo neutralidade Trata-

se de um fundamento teacutecnico por meio do qual o ator se permite conferir expressividade ao

boneco ou forma animada partindo obrigatoriamente de uma atitude de atenuaccedilatildeo dos efeitos

da proacutepria presenccedila

134

Figura 68 Cia Truks Isto natildeo eacute um

cachimbo

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Ator oculto pela proacutepria estrutura da forma

animada que incorpora os seus braccedilos

Figura 69 Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo Muchas manos

Fonte (httpwwwtriangulo-titerescomar)

Figura 70 Cia Truks Big Bang

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Boneco feito com saco plaacutestico O material eacute feito boneco pelo modo de operaccedilatildeo e pela relaccedilatildeo

estabelecida na cena com os atores operadores

135

sobre a cena Beltrame o trata como sendo a ldquopredisposiccedilatildeo do ator-animador para estar a

serviccedilo da forma animada tornar-se lsquoinvisiacutevelrsquo em cena atenuar sua presenccedila para valorizar a

do bonecordquo (BELTRAME 2009 p 294) e Balardim iraacute buscar referecircncias nos estudos da

psicologia para tratar a neutralizaccedilatildeo como um processo de despersonalizaccedilatildeo do inteacuterprete

por meio da supressatildeo de um comportamento que revele impulsos personalizantes (2004

pp88-9) De qualquer forma parte-se do entendimento de que ldquoeliminar caretas suspiros

olhares e economizar gestosrdquo seriam fundamentais ao ator operador de formas animadas para

que a afirmaccedilatildeo de sua presenccedila natildeo finde por obliterar a do boneco

O princiacutepio que rege a exortaccedilatildeo da neutralidade como atributo fundamental a uma

apresentaccedilatildeo bem sucedida em teatro de animaccedilatildeo eacute clara a presenccedila do inteacuterprete vivo seria

mais atraente do que a do boneco que luta para transmitir impressotildees de autonomia em meio a

uma forma que transparece a sua ineacutercia primordial a uma movimentaccedilatildeo que oscila entre a

imobilidade e o maquinal e uma voz que ainda que a ele atribuiacuteda natildeo eacute emitida pelo

boneco Lehman ainda que natildeo esteja tratando das diferenccedilas perceptivas entre a figura do

ator e a do boneco define de modo oportuno a potecircncia de significaccedilatildeo do corpo vivo em

cena

O corpo vivo eacute uma complexa rede de pulsotildees intensidades pontos de

energia e fluxos na qual processos sensoacuterio-motores coexistem com

lembranccedilas corporais acumuladas codificaccedilotildees e choques (LEHMAN 2007

p332)

Balardim estaacute justamente tratando das ldquolembranccedilas corporaisrdquo mencionadas por Lehman ao

mencionar que os gestos humanos satildeo resultados de anguacutestias e processos internos produtores

de experiecircncias afetivas Essa leitura encaminha o entendimento do gestual do ator vivo como

resultado ao menos parcial de um histoacuterico afetivo particular que adquire operatividade

cecircnica em negociaccedilatildeo direta com os termos de constituiccedilatildeo da narrativa espetacular

(dramaturgia composiccedilatildeo de personagem contracenaccedilatildeo encenaccedilatildeo) Isto equivale dizer que

o corpo do ator e seu comportamento dispotildeem diante do espectador caracteriacutesticas de

discursividade que antecedem e aderem ao proacuteprio discurso espetacular A combinaccedilatildeo dessas

duas instacircncias discursivas ndash o contexto da apresentaccedilatildeo teatral e a(s) narrativa(s) pessoal(is)

que transparecem por meio de caracteriacutesticas comportamentais dos atores ndash adensa e amplia

em possibilidades a leitura do espetaacuteculo tecendo personagens e situaccedilotildees que se comunicam

por meio de esquemas comportamentais compostos tambeacutem por reaccedilotildees furtivas

microexpressotildees e gestos involuntaacuterios cuja sutil expressividade pode tanto corroborar

quanto por em duacutevida ou ateacute mesmo negar uma construccedilatildeo dentro da narrativa espetacular

136

Natildeo cabe a discussatildeo da intencionalidade do gesto neste caso posto que tratamos ao mesmo

tempo de expressotildees de subjetividade que podem apresentar um grau de sutileza tal que

escapa ndash ou adere ndash a um processo consciente de construccedilatildeo cecircnica e sobretudo daquilo que

natildeo importa se intencional ou acidental atinge a percepccedilatildeo da plateia de modo a permitir uma

leitura do espetaacuteculo em perspectivas variadas mas vale mencionar que eacute possiacutevel que a

inserccedilatildeo inconsciente ou pouco refletida da expressividade do ator sobre a cena pode produzir

divergecircncias de leitura pouco desejaacuteveis

No boneco o gestual eacute resultado do impulso que o ator lhe confere Sua natureza

particular eacute oacutebvio dizer natildeo permite o envio de elementos de preacute discursividade por meio do

gestual pois que tais elementos no boneco advecircm exclusivamente de caracteriacutesticas de forma

podendo ser relacionados com estrutura e traccedilos fisionocircmicos os materiais de que eacute feito65

e

tambeacutem a potecircncia de movimento contida em seu formato66

(suas possibilidades de

movimentaccedilatildeo e pontos de articulaccedilatildeo) Essas caracteriacutesticas apesar de possuiacuterem vasta

potecircncia de significaccedilatildeo natildeo portam os elementos de memoacuteria pessoal e de autonomia

subjetiva transmitidos por meio do gesto de modo a serem combinadas aos elementos da

narrativa espetacular Um exemplo eloquente para a relaccedilatildeo entre forma e potecircncia de

movimento estaacute no espetaacuteculo da Cia Catibrum Homem Voa montada a partir do livro de

histoacuteria em quadrinhos Santocirc e os pais da aviaccedilatildeo de Joatildeo Spacca Os bonecos da histoacuteria

que trata da vida e das realizaccedilotildees e Alberto Santos Dumont foram feitos de modo a

reproduzir as ilustraccedilotildees do autor desenhista replicando a escolha de que alguns personagens

tem seus corpos combinados a maacutequinas e mecanismos (canhatildeo mola locomotiva balatildeo) de

acordo com os seus significados dentro da histoacuteria contada (Figuras 72 74a e 74b)

Assim sendo aquilo que o boneco porventura apresentar de gestualidade suplementar

ou involuntaacuteria natildeo ocorreraacute como transbordamento de uma subjetividade proacutepria mas como

revelaccedilatildeo da subjetividade do ator e muitas vezes como resultado de imprecisotildees

manipulativas Cabe aqui ressaltar que este estudo natildeo se propotildee a identificar ou advogar a

favou ou contra o apuro no desenvolvimento das teacutecnicas manipulativas tampouco exortar o

emprego deste ou daquele procedimento como mais ou menos desejaacuteveis para o

comportamento e a formaccedilatildeo do artista de teatro de animaccedilatildeo Reconhece isso sim que tudo

65

Haacute uma clara diferenccedila entre o emprego e a comunicaccedilatildeo de um material Bom exemplo disso estaacute na peccedila ldquoA

chegada de Lampiatildeo no Infernordquo da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo em que bonecos foram feitos em laacutetex mas

moldados e pintados de modo a darem a impressatildeo de serem bonecos de barro feitos no estilo do Mestre

Vitalino (Figura 73) 66

Aqui trata-se de forma ao falar de potecircncia de movimento Um boneco eacute capaz de transmitir ao puacuteblico certa

expectativa sobre o seu movimento apenas pela exposiccedilatildeo de sua forma Isto ocorre de modo bastante claro com

o boneco de luva mas pode ocorrer com praticamente todas as modalidades de bonecos ou formas animadas A

subversatildeo dessa expectativa trata exatamente de sua construccedilatildeo em um primeiro momento

137

Figura 71 Cia Catibrum Homem voa Neutralidade e expressividade

Fonte (httpwwwcatibrumcombr)

O ator agrave esquerda (Amaury Borges) reage ao personagem com a expressatildeo facial ao passo que o ator ao

centro (Lelo Silva) esforccedila-se para manter-se ldquoneutrordquo Natildeo eacute raro uma postura de neutralidade forccedilada

produzir mais divergecircncias de leitura da cena do que o envolvimento expressivo

Figura 72 PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no

inferno

Foto Simone Rodrigues

Bonecos em tecido e laacutetex imitando a

modelagem em barro de Mestre Vitalino

Figura 73b Cia Catibrum Homem voa Forma e potecircncia

de movimento

Fonte (httpwwwcatibrumcombr)

Figura 73b Cia Catibrum

Homem voa Forma e

potecircncia de movimento

Fonte

(httpwwwcatibrumcombr)

138

o que se mostra sobre a cena natildeo importa a sua motivaccedilatildeo ou origem eacute um componente

inalienaacutevel da mesma e a partir desse reconhecimento busca entender quais qualidades e

relaccedilotildees se estabelecem Foi escolhido conduzir este raciociacutenio a partir da consideraccedilatildeo de

algo entendido como um princiacutepio teacutecnico-pedagoacutegico (a neutralidade) com vistas investigar

sua validade e seus limites e na tentativa de assim justificar seu emprego ou apontar

alternativas teacutecnico-conceituais viaacuteveis

A neutralidade eacute tratada tanto por Beltrame como por Balardim como um

comportamento a ser cultivado pelo ator operador de formas animadas que possibilite ao

boneco ou objeto exercer a sua potencialidade expressiva sem que esta seja empanada pela

expressividade e poder de atraccedilatildeo que satildeo intriacutensecos agrave apresentaccedilatildeo do corpo vivo do ator

Mais que isso a neutralidade seria o estado original a partir do qual o ator permitiria que a

atuaccedilatildeo realizada junto com o boneco se fizesse de modo a encaminhar caracteriacutesticas de

atuaccedilatildeo resultantes de um diaacutelogo eficiente entre a potecircncia de accedilatildeo e expressatildeo do ator e os

elementos de significaccedilatildeo contidos na forma do boneco e naquilo que ele representa em cena

Balardim complementa a sua visatildeo acerca da neutralidade de uma forma que nos

serviraacute de partida para o aprofundamento de algumas questotildees

A neutralidade talvez seja a palavra-chave para uma boa manipulaccedilatildeo pois

ela eacute a base de todo um mecanismo psicoloacutegico acionado pelo ator-

manipulador que iraacute sobrecair sobre o puacuteblico A verdadeira neutralidade

implica ldquoestar neutrordquo e estar neutro eacute uma espeacutecie de natildeo-ser Estar neutro

eacute esvaziar-se de qualquer coisa que possa ser ao mesmo tempo em que o

objeto eacute Pois o objeto sendo eacute ele que assumiraacute toda a importacircncia no

momento em que eacute o foco da atenccedilatildeo Estar neutro neste momento eacute

concordar que nada mais importa aleacutem daquele objeto naquele momento

Neutralizar-se significa anular-se eliminar qualquer resquiacutecio da proacutepria

personalidade e do proacuteprio corpo para deixar que o objeto-personagem

imponha sua vontade sobre o corpo vencido do ator-manipulador

(BALARDIM 2004 p 89)

Parece ser neste ponto que a neutralidade tanto como chave analiacutetica quanto como

ferramenta teacutecnica deixa de servir a uma clara compreensatildeo e praacutetica das possibilidades

expressivas no teatro de animaccedilatildeo A anulaccedilatildeo da expressividade do ator operador sobre a

cena de animaccedilatildeo eacute vatilde como tentativa pouco feacutertil como opccedilatildeo poeacutetica e quase ausente

(mesmo sob a forma de tentativa) da cena contemporacircnea

Este estudo apresenta juntamente com a investigaccedilatildeo das possibilidades poeacuteticas do

animador aparente um questionamento um tanto agudo dos procedimentos de ocultaccedilatildeo do

ator-manipulador trata-se de um questionamento que supera a indagaccedilatildeo se a neutralizaccedilatildeo

da expressividade do ator que manipula o boneco pode ser entendida da forma como eacute

apresentada como um recurso teacutecnico de fato fundamental para uma percepccedilatildeo adequada da

139

apresentaccedilatildeo da forma animada e da cena teatral que a compreende O que indago aqui eacute se eacute

possiacutevel de fato lidar com a noccedilatildeo de neutralizaccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo do ator tanto no que esta se

refere a um componente da teoria do teatro de animaccedilatildeo quanto no sentido de uma proposiccedilatildeo

teacutecnico-pedagoacutegica67

Ainda assim nos dois autores mencionados se percebe que a adesatildeo agrave noccedilatildeo de

neutralidade natildeo eacute incondicional sequer desprovida de suporte em experiecircncia e reflexatildeo

Valmor Beltrame reconhece o campo delicado sobre o qual o termo repousa

Este princiacutepio [da neutralidade] tem gerado muitas controveacutersias porque eacute difiacutecil

conceber a ideacuteia de presenccedila neutra na cena uma vez que tudo o que estaacute no palco

adquire significado A ldquoneutralidaderdquo eacute aqui concebida como predisposiccedilatildeo do

ator-animador para estar a serviccedilo da forma animada tornar-se ldquoinvisiacutevelrdquo em

cena atenuar sua presenccedila para valorizar a do boneco (BELTRAME 2008 p36)

Poderiacuteamos para efeito desta reflexatildeo ampliar a declaraccedilatildeo de Beltrame e dizer que tudo o

que estaacute no palco bem como tudo aquilo cuja atuaccedilatildeo provoca uma reverberaccedilatildeo expressiva

que alcanccedila o que se pode perceber sobre o palco adquire significado A afirmaccedilatildeo proposta

tem em vista trazer agrave tona a percepccedilatildeo de que a accedilatildeo de um animador oculto das vistas do

puacuteblico por um aparato teacutecnico-cenograacutefico ao manipular uma forma animada projeta sua

presenccedila sobre a performance do boneco que traz em sua dinacircmica elementos combinados do

boneco e do ator-manipulador Ainda a afirmaccedilatildeo abre-se de forma provocativa no sentido de

sugerir que a produccedilatildeo de estiacutemulos sensiacuteveis sobre o palco (efeitos de luz de som de contra

regragem) natildeo podem se furtar a evidenciar a accedilatildeo de um indiviacuteduo posicionado fora do

campo de percepccedilatildeo imediato do espectador e que pode ser entendido como um trabalho de

animaccedilatildeo uma vez que a sua funccedilatildeo produza efeitos sobre a cena que se mostrem como tendo

certo tipo de participaccedilatildeo na narrativa espetacular numa interaccedilatildeo direta entre a

intencionalidade do operador e as possibilidades expressivas especiacuteficas dos materiais e

recursos empregados Logo a busca do estado neutral entendida a partir de uma pretensatildeo de

ldquonatildeo-serrdquo em cena esbarra a princiacutepio no proacuteprio boneco cuja apresentaccedilatildeo combina

elementos da forma e do ator

67

Haacute um comentaacuterio que merece ser feito ainda que natildeo valha como ressalva ao que se afirma A acorrida de

artistas com formaccedilatildeo preacutevia em teatro a companhias de teatro de animaccedilatildeo bem como o recente crescimento de

disciplinas e profissionais de animaccedilatildeo em cursos de formaccedilatildeo de atores vem apresentando aos processos de

formaccedilatildeo e treinamento especial atenccedilatildeo ao processo de transferecircncia de expressividade e suavizaccedilatildeo da

impressatildeo causada em cena pelo ator operador A estrateacutegia formativa de ressaltar a necessidade de uma postura

mais ldquoneutrardquo a artistas e artistas em formaccedilatildeo acostumados a diferentes gerenciamentos do seu potencial

expressivo eacute o que tem sido identificado no processo de pesquisa que resultou neste trabalho como sendo

neutralidade como provocador pedagoacutegico

140

Eacute claro que o resultado obtido ainda que revele o operador tanto em presenccedila quanto

em participaccedilatildeo pode conduzir a criaccedilatildeo de outras presenccedilas teatrais Steve Tillis aborda ao

longo de sua proposta de reformulaccedilatildeo conceitual para o boneco dramaacutetico (TILLIS 1992)

diversas questotildees relativas ao jogo relacional entre o animador e o boneco Uma dessas

passagens eacute aquela em que Tillis trata da liberdade de expressatildeo que o boneco propicia ao

artista quando se trata de trabalhar com a saacutetira e a criacutetica dos costumes e da poliacutetica A

apresentaccedilatildeo da questatildeo revela um aspecto no miacutenimo curioso da construccedilatildeo relacional que se

daacute entre manipulador e boneco

O teatro de bonecos tambeacutem oferece ao artista a licenccedila do boneco para agir e

falar com uma liberdade impressionante O boneco natildeo sendo uma pessoa viva

natildeo pode assumir a responsabilidade por suas accedilotildees mas tais accedilotildees e palavras natildeo

pertencem diretamente ao artista de teatro de bonecos e assim ele nem ela

parecem possuir responsabilidade sobre o boneco (TILLIS 1992 p33)

Tillis ainda nos apresenta ainda um exemplo em tom fabulesco recolhido por Petr

Bogatyrev de um marionetista que intimado por ter feito ataques poliacuteticos entendidos como

subversivos em sua apresentaccedilatildeo vai a juiacutezo com o heroacutei Kasparek em sua matildeo para

argumentar que a culpa natildeo eacute dele mas do boneco Satildeo comuns tambeacutem relatos de

espectadores que sendo alvos de pilheacuteria por parte dos bonecos em brincadeiras de

mamulengo direcionam sua fuacuteria na direccedilatildeo do boneco-personagem e natildeo do mestre

mamulengueiro

Se dermos creacutedito ao relato de Bogatyrev e ainda assim relevarmos o fato de que eacute

possiacutevel que o marionetista da passagem estivesse argumentando apenas com ironia torna-se

plausiacutevel a consideraccedilatildeo de que em cena boneco e manipulador se constituem numa estrutura

combinada que natildeo exclui nem isola nenhum dos dois mas que encaminha a percepccedilatildeo de

uma presenccedila que ainda que reconheccedila sua participaccedilatildeo difere da do operador O exemplo

extraiacutedo do mamulengo reforccedila o entendimento de que o boneco por si soacute natildeo eacute capaz de

tornar-se alvo do ressentimento da viacutetima de zombaria inanimado que eacute mas tampouco o

mamulengueiro pode ser solitariamente imputado das provocaccedilotildees ditas do alto da empanada

Izabela Brochado relata casos de provocaccedilotildees feitas em meio a funccedilatildeo do mamulengo nas

quais a ira do espectador troccedilado projeta-se inteiramente sobre o boneco e natildeo sobre o

brincante por meio de xingamentos respostas e tentativas de agressatildeo Tambeacutem relata sobre

casos de excitaccedilatildeo sexual do puacuteblico masculino diante da danccedila das Quiteacuterias (BROCHADO

2007)

141

Figura 74 Punch and Judy ilustraccedilatildeo

Fonte (httpbabylonbaroquewordpresscom

categorypunch-judy)

Figura 75 Kasperle boneco de luva

Fonte BOEHN 1972 p145

Punch Kasperle Kasparek Petruchka Guignol Heroacuteis populares sob a forma de bonecos com licenccedila

para acusar autoridades e usar de violecircncia com seus indefectiacuteveis bastotildees

Figura 76 Mamulengo Riso do Povo Mestre Zeacute de Vina Passagem de danccedila

Fonte (httpaltaculturawordpresscom20100707mamulengo-riso-do-povo)

142

Aquilo que Tillis identifica como sendo a licenccedila concedida pelo boneco ao

manipulador para dizer verdades delicadas criticar os costumes ou agir com excesso de

violecircncia e licenciosidade natildeo parece tambeacutem apresentar a forma animada como sendo um

simples veiacuteculo ou suporte para a expressatildeo do ator-manipulador O boneco natildeo pode ser

entendido apenas como um canal de expressatildeo do ator ainda que o artista que o opera creia

nisso Sem argumentarmos acerca de qualidades de forma de movimentaccedilatildeo fala e inserccedilatildeo

na accedilatildeo teatral que satildeo exclusivos de cada tipo de forma animada eacute possiacutevel entender a

licenccedila como um fator de transformaccedilatildeo da capacidade de expressatildeo e articulaccedilatildeo temaacutetica do

artista de animaccedilatildeo Quem fala nesse caso ndash e para afirmar isto natildeo preciso citar a potecircncia

do boneco como ativador de processos inconscientes o

que seria certamente tanto vaacutelido como rico para discussatildeo ndash natildeo eacute o operador apoiado no

boneco e sim a combinaccedilatildeo de permissotildees impulsos improvisacionais e acolhimentos

estabelecidos entre o boneco e o artista vivo

Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado parti da tentativa de definir o que cumpriria a

funccedilatildeo de ator no teatro de animaccedilatildeo para chegar ao entendimento da existecircncia de um ente

performativo dinacircmico resultante da combinaccedilatildeo da forma-boneco com o ator-manipulador

Um dos meus pontos de partida foi o entendimento de que a tentativa de se criar uma

correlaccedilatildeo direta de funccedilotildees identificando o manipulador com o inteacuterprete e o boneco com a

personagem se mostra uma maneira um tanto apressada e portanto imprecisa de exercitar a

percepccedilatildeo de manifestaccedilotildees

performativas do teatro de animaccedilatildeo num contexto mais amplo da arte teatral68

Levando-se

em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo conduzida ateacute agora neste capiacutetulo creio que natildeo seja um

problema lidar com a afirmaccedilatildeo de que desde suas origens o teatro apresentado com bonecos

e formas animadas dispotildee uma personagem criticamente desdobrada em transito constante

entre a identificaccedilatildeo com a ficccedilatildeo na qual se insere e seu rompimento por meio da burla do

comentaacuterio e da proacutepria condiccedilatildeo de objeto do boneco Isto pode ser percebido por exemplo

em situaccedilotildees nas quais o animador lanccedila matildeo de um recurso cocircmico proacuteprio da forma ou do

movimento especiacutefico do boneco muitas vezes rompendo com o proacuteprio fluxo da trama

apresentada Devido a sua estrutura de criaccedilatildeo livre muitos exemplos desse tipo podem ser

verificados em brincadeiras de mamulengo como o caso do personagem Janeiro69

(Figura

68

Pode-se indagar se o exerciacutecio de relacionar manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo com a de outras formas de

apresentaccedilatildeo teatral seria algo de fato necessaacuterio mas este trabalho pretende demonstrar que o uso desta

ferramenta para o entendimento de alguns processos teacutecnicos e criativos do teatro de animaccedilatildeo natildeo eacute de todo

despreziacutevel 69

Outro nome para esse boneco muito usado pelo Mestre Zeacute de Vina eacute Janeiro-vai-janeiro-vem

143

78) um negro que se abisma com tudo o que vecirc e demonstra essa disposiccedilatildeo erguendo o

pescoccedilo especialmente construiacutedo para ser estendido ateacute aleacutem do limite maacuteximo de altura da

empanada De acordo com a receptividade que obteacutem do puacuteblico o improviso do mestre

mamulengueiro pode inventar justificativas para repetir tantas vezes quanto julgar eficiente o

recurso de erguer o pescoccedilo de Janeiro Outro exemplo pode ser percebido em um dos textos

recolhidos por Hermilo Borba Filho em sua pesquisa sobre o Mamulengo (1987) Na peccedila As

aventuras de uma viuacuteva alucinada recolhida do mestre Ginu num determinado momento a

personagem Viuacuteva retruca que natildeo aceita o convite feito a ela pelo Professor Tiridaacute devido a

sua condiccedilatildeo de viuacuteva A fala recolhida sugere um efeito de manipulaccedilatildeo que a acompanha

Natildeo quero natildeo cumpadre De jeito nenhum Olhe o dedinho dizendo que natildeo Taacute

vendo Natildeo quero natildeo (Idem p108)

Figura 77 Janeiro-Vai-Janeiro-Vem Mestre Zeacute Lopes

Foto Mario Piragibe

144

O trecho em que a Viuacuteva chama a atenccedilatildeo para o ldquodedinhordquo muito provavelmente foi

dito acompanhado por um movimento caracteriacutestico e cocircmico do braccedilo do boneco Chance haacute

tambeacutem

de que esse movimento seja especiacutefico e proacuteprio do boneco em questatildeo A repeticcedilatildeo da

negativa eacute de fato desnecessaacuteria para o entendimento da passagem (a fala em questatildeo eacute

complementar a uma fala anterior na qual a personagem jaacute explicita sua disposiccedilatildeo) e essa

ecircnfase pode ser entendida como a repeticcedilatildeo do efeito cecircnico especiacutefico provavelmente um

modo inusitado e cocircmico de mover o braccedilo do boneco em sinal de negativa

Esse tipo de comportamento pode ser entendido como resultado de um movimento de

separaccedilatildeo entre manipulador e boneco pois que o mestre mamulengueiro faz uso do boneco

em uma dimensatildeo eminentemente material produzindo assim um comentaacuterio jocoso sobre a

condiccedilatildeo de inanimado do boneco de modo a apresentar uma piada de metalinguagem Se nos

reportarmos agraves noccedilotildees de opalizaccedilatildeo defendida por Jurkowski e de visatildeo-dupla apresentada

por Tillis temos aqui uma passagem atraente e estimulante provocada justamente pela

simultaneidade de percepccedilatildeo do boneco em cena como objeto e como imaginaccedilatildeo de vida

autocircnoma

Podemos localizar nesse comportamento alguma semelhanccedila com o recurso dos

comediantes populares que a professora Neyde Veneziano chama de desdobramento (2004)

Esse recurso eacute um modo de transitar entre a interpretaccedilatildeo da personagem e a assunccedilatildeo da

personalidade do ator diante do puacuteblico como parte de um ldquopactordquo de reconhecimento e

comunicaccedilatildeo direta por meio do qual as ilusotildees da ficccedilatildeo teatral satildeo estranhadas ou

deslocadas para permitir um encontro direto entre o puacuteblico e seu ator preferido bem como

para inserir um comentaacuterio xistoso ou explicaccedilatildeo agrave accedilatildeo em curso O procedimento eacute

relativamente simples e bastante conhecido o ator suspende momentaneamente o curso da

accedilatildeo para fazer um comentaacuterio como que deixando de lado a personagem e agindo como ele

mesmo

Como arte com origens e formas notadamente populares o teatro de bonecos

apresenta em diversas das suas manifestaccedilotildees o emprego desses apartes comentaacuterios xistes

metalinguiacutesticos suspensotildees de accedilatildeo e intervenccedilotildees improvisadas Esses momentos satildeo

exemplos claros de aproveitamento do efeito de opalizaccedilatildeo ou visatildeo-dupla ainda que uma

noccedilatildeo natildeo seja redutiacutevel agrave outra No caso do teatro de animaccedilatildeo pode-se imaginar uma

modalidade de desdobramento que leva em consideraccedilatildeo a composiccedilatildeo ator e objeto

ampliando o entendimento dos limites corporais do binocircmio personagem-inteacuterprete e

propiciando dessa forma certa variedade de combinaccedilotildees

145

Quando o mestre de mamulengos deseja endereccedilar-se diretamente agrave plateia como ele

mesmo e natildeo por meio de um de seus personagens (para indicar uma pausa o fim da funccedilatildeo

ou para dar um aviso que natildeo se relacione diretamente com a brincadeira) este raramente se

desloca de traacutes da empanada para dar-se a ver mas passa a falar com uma voz despida das

caracteriacutesticas estilizadas de seus personagens e muitas vezes ainda exibe o boneco no vatildeo

da janela que se move caracteristicamente acompanhando o ritmo da fala do artista

Diferentemente do efeito de opalizaccedilatildeo o desdobramento supotildee uma disposiccedilatildeo

alternada entre personagem e inteacuterprete70

numa alternacircncia cadenciada de centralidades Ora

a personagem do drama estaacute mais agrave vista ora a personagem elaborada a partir da suposta

personalidade do inteacuterprete se mostra mais claramente Ainda que essa dinacircmica alternada

deixe resiacuteduos das duas fontes discursivas uma na outra natildeo se trata aqui de criar uma

percepccedilatildeo simultacircnea mas de se lidar com trocas ritmadas com finalidades cocircmicas

Para a animaccedilatildeo o desdobramento eacute intencional e posterior agrave opalizaccedilatildeo posto que

esse efeito eacute considerado intriacutenseco agrave proacutepria natureza da apresentaccedilatildeo da forma animada e se

realiza em acircmbito corporal dando a perceber os espaccedilos ocupados por forma e operador

Quando em Cuentos Pequenotildes Hugo Suarez retira o proacuteprio braccedilo de dentro da

camisa usada para compor a forma do palhaccedilo violonista feito a partir do seu proacuteprio joelho

juntamente com a clareza de comunicaccedilatildeo que daacute a entender a transferecircncia do controle do

braccedilo da personagem para o operador produz-se um efeito cocircmico que decorre justamente da

fraacutegil determinaccedilatildeo acerca desse controle Esse mesmo braccedilo usaraacute o violatildeo tocado pela

personagem para golpeaacute-lo e fazer o ator aproveitar-se da feacuteria conquistada pelo boneco feito

a partir do joelho do ator e de um nariz de palhaccedilo Sempre perceberemos a personagem feita

pelo joelho de Hugo em uma disposiccedilatildeo simultacircnea de objeto e vida mas tambeacutem por meio

de uma dinacircmica de trocas por meio da qual seu corpo se rearranjaraacute em combinaccedilotildees

constantes ora expandindo o corpo do animador ora da personagem e sempre identificando

aacutereas de controle comum ou indeterminado

Por isso a busca por se definir uma hierarquia estaacutevel entre manipulador e boneco em

termos de relevacircncia para a cena e expressividade seria se natildeo uma impossibilidade um

grande problema O presente estudo que tem como ponto de atenccedilatildeo os entendimentos e usos

da presenccedila e da subjetividade do ator-manipulador em praacuteticas contemporacircneas de teatro de

animaccedilatildeo no Brasil parte da aceitaccedilatildeo dessa estrutura como algo que se daacute como uma

70

Natildeo se pode ignorar aqui que a maneira como essa dualidade se expressa suscita algum questionamento pois

que natildeo se pode considerar sem ressalvas que um ator em cena possa de fato apresentar-se despido de qualquer

forma de composiccedilatildeo teatral mesmo que se apresente como sendo ldquoele mesmordquo

146

combinaccedilatildeo tensa para localizar aspectos e efeitos construiacutedos na radicalidade das

possibilidades de estabelecimento desse ente relacional Para que isso ocorra faz-se necessaacuteria

buscar aplicar um olhar renovado sobre aspectos de fundamentais da linguagem da animaccedilatildeo

como o que ora se apresenta da possibilidade de exclusatildeo da influecircncia do animador sobre a

apresentaccedilatildeo do boneco

Uma argumentaccedilatildeo que busco construir eacute a de que o proacuteprio ato de manipular

entendido como uma accedilatildeo do ator que implica ou natildeo na movimentaccedilatildeo do boneco que serve

para conferir ao objeto participaccedilatildeo relevante em um contexto de espetaacuteculo teatral por meio

da produccedilatildeo de uma presenccedila qualificada elaborar ou potildee em questatildeo o jogo da animaccedilatildeo

como sendo algo que se estabelece em diaacutelogo com a presenccedila do operador Afinal o aparato

que retirar a capacidade de o puacuteblico perceber o manipulador com perfeiccedilatildeo teacutecnica criando a

ilusatildeo completa de que o boneco se move e entra na cena totalmente por sua conta seraacute

tambeacutem um dispositivo teatral ndash teacutecnico ou dramatuacutergico ndash que natildeo conseguiraacute escapar ao

tema da ausecircncia do manipulador Desta forma teremos uma qualidade de presenccedila construiacuteda

diante de uma impressatildeo de ausecircncia O boneco em suas caracteriacutesticas de forma de

movimento de apresentaccedilatildeo de fala e de inserccedilatildeo no espetaacuteculo teatral trata inapelavelmente

de sua condiccedilatildeo de objeto e por conseguinte da existecircncia de um operador

Assim podemos concluir que a opccedilatildeo por usar um aparato de ocultaccedilatildeo dos atores-

manipuladores das vistas do puacuteblico natildeo eacute nem pode ser uma tentativa de criaccedilatildeo de uma

ilusatildeo de vida autocircnoma dos bonecos ndash ao menos natildeo uma tentativa cuidadosamente

considerada ndash da mesma forma que a exibiccedilatildeo do manipulador durante a apresentaccedilatildeo natildeo

pode ser seriamente subordinada a uma exibiccedilatildeo de periacutecia que conduziraacute a plateacuteia a perder

totalmente a impressatildeo de sua presenccedila

Aqui retomamos agraves ressalvas anteriormente feitas agrave noccedilatildeo de neutralidade como

desaparecimento e modo de o operador ldquonatildeo-serrdquo em cena Jaacute tratamos da impossibilidade

desse desaparecimento e de como da percepccedilatildeo de caracteriacutesticas do operador adveacutem

elementos que compotildeem a apresentaccedilatildeo da forma animada Tratamos tambeacutem desse efeito

intriacutenseco agrave animaccedilatildeo que eacute o conceito de opalizaccedilatildeo desenvolvido por Henryk Jurkowski

para o qual a percepccedilatildeo dupla e simultacircnea do boneco como objeto inerte e vida autocircnoma

pressupotildee a percepccedilatildeo da participaccedilatildeo do operador mesmo oculto

Ainda que possa a princiacutepio surtir algum efeito praacutetico preocupa em termos de clareza

e eficiecircncia o emprego da neutralidade como termo e como procedimento com vistas a

fornecer paracircmetros teacutecnicos que chamem a atenccedilatildeo de artistas em treinamento para uma

dosagem eficiente da expressividade do ator que se potildee a representar juntamente com a forma

147

animada Faz-se necessaacuterio para a compreensatildeo a comunicaccedilatildeo e o treinamento de uma

postura consciente acerca das atenccedilotildees necessaacuterias para a operaccedilatildeo de trocas vivas entre ator e

forma animada um fundamento teacutermino-procedimental que decirc conta justamente dessas

atenccedilotildees

Parece que a noccedilatildeo que se busca deve abordar com certa clareza a dinacircmica de

alternacircncias de ecircnfase de atenccedilatildeo entre manipulador e boneco ao longo da representaccedilatildeo

Tanto oculto atraacutes da empanada ou posto agrave vista do espectador o manipulador exerce certo

controle sobre o andamento da alternacircncia do foco que se move dele para o objeto Assim

entendemos a janela da empanada menos como esconderijo e mais como moldura por meio

da qual os estiacutemulos natildeo satildeo segregados mas ordenados de modo a encaminhar as escolhas e

ecircnfases que compotildeem narrativa espetacular Essa condiccedilatildeo atenta para alguns pontos

importantes e que de certa forma jaacute foram abordados os recursos de ocultaccedilatildeo satildeo tanto de

natureza teacutecnico-cenograacutefica (empanadas janelas figurino) como procedimental-

performativa mas estaacute claro que a eficaacutecia do primeiro recurso quando empregado encontra-

se inapelavelmente subordinado ao modo de emprego do segundo Esse segundo tipo de

recurso (o que envolve o comportamento do ator) permite um transito livre de aplicaccedilatildeo de

recursos e de gradaccedilatildeo de desdobramento presente nos diferentes modos de disposiccedilatildeo

corporal de ator e forma animada Outro ponto eacute a evidente limitaccedilatildeo do controle que mesmo

o mais dotado dos inteacuterpretes tem sobre a percepccedilatildeo da plateacuteia A por vezes incocircmoda mas

sempre estimulante certeza que natildeo se pode mandar na vontade do espectador e que a atenccedilatildeo

sobre as ecircnfases e focos sobre a cena podem ser sugestotildees de encaminhamento da atenccedilatildeo

mas jamais imposiccedilotildees

Outro ponto que merece atenccedilatildeo no que toca ao entendimento dos usos da ocultaccedilatildeo

do ator eacute a tentativa de se estabilizar dentro do possiacutevel a identidade visual ou a unidade

figurativa de um determinado espetaacuteculo de animaccedilatildeo A visatildeo do corpo do operador aqui natildeo

se daacute em prol do estabelecimento de uma ilusatildeo de vida autocircnoma mas de uma unidade

esteacutetica que pretende entregar ao espectador uma proposta artiacutestica que se pretenda

razoavelmente iacutentegra Um mundo habitado por pessoas com cabeccedila de madeira e corpos de

xita estampada estaria assim apresentado de maneira irregular se fosse constantemente

aborrecido pela intervenccedilatildeo de criaturas de carne e osso Outro belo exemplo seria o

espetaacuteculo Filme Noir da PeQuod no qual se buscava recriar a atmosfera dos filmes de

detetive em preto-e-branco Para isso os bonecos foram pintados e vestidos em escala de

cinza e toda a iluminaccedilatildeo foi pensada e feita de modo a natildeo escapar agrave palheta proposta O

diretor da montagem Miguel Vellinho menciona o emprego de filtros sobre os refletores de

148

modo a impedir a projeccedilatildeo do brilho amarelado proacuteprio dos filamentos das lacircmpadas

(VELLINHO 2005) Vellinho comenta entatildeo o encaminhamento das escolhas relativas agrave

caracterizaccedilatildeo dos atores na peccedila

Durante uma etapa do processo de montagem apresentamos um esboccedilo do

que seria o espetaacuteculo Foi aiacute que eu percebi que a cena natildeo imprimia o que

eu almejava justamente por estarem presentes os rosados rostos dos

manipuladores os vaacuterios tons castanhos de seus cabelos e uma infinita

variaccedilatildeo de cores que esmaeciam a proposta inicial Pela primeira vez fomos

obrigados a esconder matildeos e rostos dos manipuladores a fim de apagar

aquela invasatildeo de cores Necessariamente a cor teve que ser a preta por sua

absorccedilatildeo de luz e neutralidade absoluta (idem pp183-4)

E assim Filme Noir apresenta atores operadores de formas animadas vestidos

inteiramente de preto e parcialmente ocultos pela iluminaccedilatildeo recortada de Renato Machado

mais pelo bem de uma escolha de encaminhamento da narrativa esteacutetica do que pela

necessidade de permitir ao boneco expressar-se sem a competiccedilatildeo com a expressividade

inerente agrave presenccedila do ator humano ou mesmo por uma tentativa de criar a ilusatildeo de vida

autocircnoma

Cabe portanto buscar compreender que princiacutepio mais preciso e abrangente

substituiria a noccedilatildeo de neutralidade tanto para a compreensatildeo quanto para o lanccedilamento de

bases procedimentais para o artista de animaccedilatildeo Balardim e Beltrame parecem fornecer

indicativos bastante valiosos para essa perseguiccedilatildeo nas proacuteprias definiccedilotildees que elaboram

sobre a neutralidade Ainda dentro de uma perspectiva de anulaccedilatildeo da expressividade do ator

Balardim em dado momento menciona que a neutralidade consiste em ldquoabrir uma porta de

comunicaccedilatildeo com o inanimadordquo (2004 p88) estabelecendo uma qualidade oacutetima de atenccedilatildeo

do ator para com a forma que anima Nesse momento ele estaacute justamente tratando do

gerenciamento de atenccedilatildeo necessaacuterio ao ator operador de formas necessaacuterio para que esse

possa conjugar caracteriacutesticas e esforccedilos de modo obter o maacuteximo de rendimento da estrutura

conjugada que eacute criada juntamente com o boneco A partir dessa atenccedilatildeo o ator adquire maior

autonomia expressiva e amplia a consciecircncia acerca das possibilidades significativas que a

atuaccedilatildeo conjunta do organismo performativo composto permite Ou seja comunicar-se com a

forma natildeo consiste aqui num processo mistificado de se estabelecer um contato sutil com

vibraccedilotildees vitais encerradas dentro do objeto inanimado mas compreender quais novas

possibilidades de comunicaccedilatildeo de ritmo e de expressividade satildeo abertas a partir da

constituiccedilatildeo de um corpo rearranjado para onde nesse corpo a atenccedilatildeo ndash do ator e do puacuteblico

ndash converge e como se deve portar para que o foco dessa atenccedilatildeo esteja claro e pronto para

149

estabelecer o tipo de comunicaccedilatildeo desejada Beltrame parece acompanhar essa leitura ao

mencionar que na neutralidade abre-se a possibilidade de ldquover aleacutem do aparente olhar mais

profundamente e ver a possibilidade do movimento o lsquovir a serrsquo contido em cada objeto ou

bonecordquo (BELTRAME 2005 p294)

Noutra passagem Balardim defende o trabalho sobre a neutralidade como indicativo de

uma apresentaccedilatildeo cuidada em animaccedilatildeo afirmando que ldquotanto mais ela estaraacute presente quanto

mais atenccedilatildeo (a-tensatildeo relaxamento) do puacuteblico o objeto-personagem puder captarrdquo (idem

p90) Neste trabalho jaacute se falou ndash e ainda se falaraacute ndash das experiecircncias em animaccedilatildeo nas quais

a atenccedilatildeo da plateia natildeo repousa exclusivamente sobre a forma animada natildeo apenas pelas

impossibilidades jaacute mencionadas mas sobretudo pelas escolhas poeacuteticas que as norteiam

Portanto natildeo cabe aqui determo-nos sobre a criacutetica da definiccedilatildeo de um teatro de animaccedilatildeo no

qual a atenccedilatildeo recai toda sobre o ldquoobjeto-personagemrdquo71

mas atentar para o fato de que o

principal objetivo perseguido por meio do recurso da neutralidade eacute o de captar a atenccedilatildeo do

puacuteblico ainda que ao combinar a noccedilatildeo de atenccedilatildeo agrave de relaxamento Balardim esteja

evocando uma qualidade na clareza comunicativa da apresentaccedilatildeo do boneco com a qual este

trabalho em diversas passagens e de diversas formas natildeo compactua Beltrame menciona que

na neutralidade exercita-se a ldquoconsciecircncia de estar em cenardquo o que natildeo pode ser entendido de

outra maneira que natildeo a percepccedilatildeo exata dos efeitos produzidos pelas accedilotildees realizadas em

cena e por conseguinte a busca por uma disposiccedilatildeo eficiente das atenccedilotildees e dos focos

Eacute inegaacutevel neste ponto a importacircncia dos pensamentos de Balardim e Beltrame para o

percurso reflexivo aqui empreendido que parte da contribuiccedilatildeo de ambos no sentido de uma

sistematizaccedilatildeo dos estudos teacutecnicos do teatro de animaccedilatildeo feito no Brasil jaacute devidamente

apresentado em um contexto ampliado de possibilidades poeacutetico-operativas Os escritos de

ambos adquirem sua importacircncia no sentido exato em que apontam para a exortaccedilatildeo de uma

apropriaccedilatildeo consciente e responsaacutevel de um cabedal teacutecnico que permita ao artista de

animaccedilatildeo a devida exploraccedilatildeo das possibilidades da linguagem e lanccedilam bases

imprescindiacuteveis para um modelo pedagoacutegico em animaccedilatildeo moderno e comprometido com a

investigaccedilatildeo artiacutestica

Mesmo com as ressalvas apontadas parece que esses exerciacutecios de definiccedilatildeo de

neutralidade encaminham para a consciecircncia de que o controle da expressividade do ator

71

Sabemos que mesmo essa criacutetica apresenta seus enganos Se pensarmos numa concepccedilatildeo ampliada de forma

animada que inclui as corporalidades combinadas e ateacute mesmo a potecircncia de marionetizaccedilatildeo do corpo humano

em alguns contextos espetaculares imaginar o ldquoobjeto-personagemrdquo mencionado por Balardim a partir de uma

concepccedilatildeo estaacutetica de boneco teatral formalmente definido e exterior ao corpo do operador pode ser um

equiacutevoco

150

operador de formas sobre a cena se daacute ndash ou resulta ndash como um mecanismo de orientaccedilatildeo das

ecircnfases que iratildeo conferir certa qualidade agrave narrativa espetacular Deixa assim de ser uma

busca pela anulaccedilatildeo para tornar-se um gerenciamento de expressividades que opera como

focalizador um guia das possiacuteveis leituras de uma cena em trecircs dimensotildees que dispotildee planos

narrativos concomitantes e enreda os sentidos do espectador em meio a uma variedade

desnorteante de combinaccedilotildees expressivas

Haacute de fato um fundamento teacutecnico-reflexivo presente nos levantamentos jaacute

mencionados de Balardim e Beltrame que parece aproximar-se do presente encaminhamento

da reflexatildeo mas que pode suscitar diferentes leituras e aplicaccedilotildees Curiosamente todas nos

servem ainda que precisem ser devidamente isoladas consideradas e comparadas

151

21 O Foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituais

A compreensatildeo usual do que seria o foco se estende por uma quantidade razoaacutevel de

elementos e eventos Em oacutetica o foco pode ser tanto o ponto para o qual converge um ou mais

feixes de luz quanto o ponto a partir do qual um feixe de luz diverge em direccedilatildeo e variedade

Ainda pode ser entendido como o proacuteprio feixe colimado compreendendo assim seus pontos

de origem e convergecircncia O foco de luz teatral relaciona-se obviamente com o refletor

luminoso de onde se origina o feixe mas parece ser livre de equiacutevocos a afirmaccedilatildeo de que sua

forma e funccedilatildeo se exercem em relaccedilatildeo ao seu ponto de chegada ou seja a aacuterea da cena a ser

iluminada oferecida no mais das vezes agrave percepccedilatildeo visual do espectador contribuindo assim

de maneira importante para o esquema de sugestatildeo da orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo que participa da

poeacutetica da encenaccedilatildeo

Para a teacutecnica fotograacutefica o foco pode ser entendido tanto como sendo o processo de

escolha da composiccedilatildeo do quadro que tende a selecionar temas por efeitos de centralizaccedilatildeo

ou distanciamento quanto o recurso por meio do qual ao realccedilar ou ampliar a nitidez da

percepccedilatildeo dos contornos de um dado elemento este se oferece agrave percepccedilatildeo visual com maior

ou menor dificuldade Curioso notar que ao tratarmos de qualidades visuais natildeo

abandonamos em momento nenhum a dinacircmica de convergecircncia e divergecircncia de feixes

luminosos A relaccedilatildeo do foco com a visatildeo nos faz entender que este se situa no centro de uma

dinacircmica perceptiva que lida com o direcionamento do olhar Trata-se de uma dinacircmica de

seleccedilatildeo que propotildee a organizaccedilatildeo de um discurso visual e ergue uma instacircncia intermediaacuteria

entre o objeto percebido e o observador deformando e refazendo o objeto no processo

Susan Sontag consegue exprimir com clareza o efeito perceptivo da seletividade

fotograacutefica

Atraveacutes da fotografia o mundo se torna uma seacuterie de partiacuteculas livres natildeo

relacionadas entre si e a histoacuteria passado e presente satildeo um conjunto de

anedotas e faits divers A cacircmera torna a realidade atocircmica manuseaacutevel e

opaca Eacute uma visatildeo do mundo que nega a inter-relaccedilatildeo e a continuidade mas

confere a cada momento o caraacuteter de misteacuterio (SONTAG apud BERGER

2003 p54)

Essa seletividade tem a capacidade de refundar o sensiacutevel ou ao menos propor o

estabelecimento de novas aproximaccedilotildees com ele Eacute uma fonte de narratividade o foco por ser

a partir dele e em relaccedilatildeo a ele que os elementos da percepccedilatildeo iratildeo se organizar de modo a

orientar uma leitura

152

O teatro como se sabe natildeo possui a mesma eficaacutecia (ou vontade) da fotografia no que

diz respeito ao isolamento dos elementos que compotildeem o discurso do que se apresenta De

fato eacute da natureza mesmo da arte teatral a disposiccedilatildeo simultacircnea de elementos de diferentes

sistemas de significaccedilatildeo (atores discurso dramatuacutergico efeitos iluminoteacutecnicos sonoros

accedilotildees simultacircneas microreaccedilotildees contaminaccedilatildeo de informaccedilotildees vindas de fora da aacuterea de

representaccedilatildeo entre outros) que ora propotildeem leituras resultantes das combinaccedilotildees

estabelecidas ora simplesmente restam como ruiacutedos que significam isoladamente e ateacute

mesmo propotildeem combinaccedilotildees inusitadas Assim sendo o foco no teatro cumpre uma funccedilatildeo

muito mais de sugerir a conduccedilatildeo da atenccedilatildeo do espectador do que propriamente produzir um

ponto de vista segregado e atomizado apontado por Sontag como sendo proacuteprio da fotografia

Pavis apresenta a questatildeo da focalizaccedilatildeo como sendo um recurso empregado pelo

autor de conferir maior visibilidade e impacto de um determinado tema em meio agrave sequecircncia

de eventos que constitui a accedilatildeo dramaacutetica (1998 pp208-9) Sem mencionar exemplos Pavis

atribui um caraacuteter notadamente eacutepico ao recurso Acompanhar o raciociacutenio do professor

francecircs identifica o recurso como uma teacutecnica de seleccedilatildeo de informaccedilotildees em meio a diversas

disponiacuteveis como quem conduz uma lanterna em meio a um quadro direcionando nosso

olhar para aquilo que interessa ser mostrado Determinadas aacutereas destacam-se pela

centralidade que ocupam na aacuterea iluminada e ainda que algo possa restar na completa

obscuridade seraacute possiacutevel enxergar muito do que estaacute em torno do centro da atenccedilatildeo sugerida

e muito ainda poderaacute ser visto por efeitos de rebatimento luminoso Ainda e sem abandonar a

analogia proposta Pavis reconhece tambeacutem a focalizaccedilatildeo a partir da consideraccedilatildeo de quem

segura e conduz a lanterna Um claro recurso de revelaccedilatildeo de um

componente de subjetividade na construccedilatildeo do discurso dramaacutetico Seguindo aleacutem e

considerando uma determinada perspectiva de criaccedilatildeo em teatro pode-se empregar a mesma

loacutegica para se identificar a poeacutetica da encenaccedilatildeo como algo que insere (sobrepotildee talvez seja

mais adequado) um ou mais pontos de focalizaccedilatildeo sobre a sequecircncia de eventos dispostos

diante do espectador

O foco organiza e provoca a percepccedilatildeo Estaacute presente tanto na instacircncia interna de

organizaccedilatildeo do discurso na sua produccedilatildeo mesmo quanto na instacircncia externa aquela que se

funda na percepccedilatildeo do espectador Haacute uma passagem ceacutelebre na obra reflexiva de Sergei

Eisenstein na qual eacute demonstrada como a alteraccedilatildeo da angulaccedilatildeo da cacircmera na captaccedilatildeo da

imagem de um objeto (no caso uma maacutescara) eacute capaz de produzir sensaccedilotildees diversas de

estatismo e movimento (2002 pp5760) (Figura 79)

153

Figura 78 Esquema de Serguei Eisenstein aplicaccedilatildeo de conflito por meio de alteraccedilatildeo focal

Fonte EISENSTEIN 2002 p 57

Figura 79 Foco alteraccedilatildeo de tema e ecircnfase na imagem por meio de distorccedilatildeo focal

Fonte (httpwwwzhpcombrdicasfoco-ou-a-falta-de-na-composicao-fotografica)

Foto Henrique Pimentel

154

Para se pensar a funccedilatildeo do foco no teatro de animaccedilatildeo deve-se em primeiro lugar

entender os processos teacutecnico-linguiacutesticos de emprego que lidam com modos e efeitos do

direcionamento da atenccedilatildeo e como a ativaccedilatildeo consciente e rigorosa dos efeitos de focalizaccedilatildeo

ordena o discurso da cena e permite a criaccedilatildeo da sensaccedilatildeo de autonomia imaginada e relaccedilatildeo

do objeto com o contexto espetacular Mas natildeo se pode perder de vista sobretudo ao lidarmos

com as vontades percebidas em empreendimentos artiacutesticos das uacuteltimas cinco deacutecadas

questotildees relativas agrave transposiccedilatildeo da questatildeo teacutecnica para o campo temaacutetico onde o teatro de

animaccedilatildeo indaga a sua proacutepria especificidade formal e lida com a questatildeo da focalizaccedilatildeo em

uma dinacircmica de alternacircncias e indefiniccedilotildees propositais produzindo focos elusivos

distorcidos e muacuteltiplos acompanhando de certa maneira natildeo apenas as vontades que

produzem um discurso menos formalizado mas tambeacutem a reorganizaccedilatildeo dos limites fiacutesicos

do boneco teatral Para que tal se decirc o percurso reflexivo deveraacute ser cuidadoso e detido

Vamos a ele

Em teatro de animaccedilatildeo existe uma compreensatildeo da noccedilatildeo de foco expressa por meio

de um princiacutepio teacutecnico recorrente em salas de ensaio Seria grosso modo a capacidade que o

ator que opera o boneco desenvolve de fazecirc-lo mostrar possibilidades de percepccedilatildeo e

sensibilidade Beltrame deixa clara essa noccedilatildeo ao afirmar que ldquoa noccedilatildeo de foco pode ser

exemplificada em momentos em que o boneco projeta o seu olhar para o objeto ou

personagem com que contracenardquo (2009 p292) Esta seria uma qualidade importante para a

dinacircmica perceptiva do boneco teatral uma vez que dirigir-se com precisatildeo espacial ao seu

interlocutor ou indicar acuradamente a percepccedilatildeo de elementos que lhe chamam a atenccedilatildeo

produz um efeito que contribui para a imaginaccedilatildeo de autonomia da forma animada ao

produzir o entendimento do objeto como possuidor de uma capacidade de percepccedilatildeo criando

dessa forma uma potecircncia de relaccedilatildeo

Em treinamentos e ensaios eacute recorrente a associaccedilatildeo do direcionamento focal com a

emulaccedilatildeo do olhar Mas Beltrame amplia a questatildeo ao tratar o olhar como recurso de

exemplificaccedilatildeo do foco ao inveacutes de sugerir uma relaccedilatildeo obrigatoacuteria entre focalizaccedilatildeo e

emulaccedilatildeo da visatildeo A variedade de formas materiais e dinacircmicas de movimentaccedilatildeo

apresentadas pelos elementos presentes no teatro de animaccedilatildeo fazem questionar a relaccedilatildeo

obrigatoacuteria entre focalizaccedilatildeo e olhar jaacute que certos bonecos simplesmente natildeo possuem olhos

nem se pode fazer uma correlaccedilatildeo direta entre a sua estrutura fiacutesica e um corpo humano ou

animal Pode-se buscar entatildeo para explicar a noccedilatildeo de foco a aproximaccedilatildeo com conceitos

tais como emulaccedilatildeo de percepccedilatildeo e imaginaccedilatildeo de projeccedilatildeo de interesse Quando Beltrame

mais adiante menciona o preceito corrente de que ldquoo boneco olha com a cabeccedila inteirardquo

155

Figura 80 Foco como emulaccedilatildeo do olhar

(Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto)

Foto Karim Sauro

Figura 81 Atenccedilatildeo do operador sobre o boneco como

orientaccedilatildeo focal (Cia Truks Vovocirc)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Figura 82 Convergecircncia focal entre ator e

boneco (PeQuod Peer Gynt ndash ensaio)

Foto Mario Piragibe

Figura 83 Focalizaccedilatildeo por contracenaccedilatildeo (El

Chonchoacuten Juan Romeo amp Julieta Maria ator Carlos

Pintildeeiro)

Fonte httpwwwsalta21comEl-Chonchon-

buenisimo-Destacadoshtml

Figuras 84a e 84b Divisatildeo de foco por expressatildeo (detalhes das Figuras 56 e 72)

156

(idem p 293 grifo meu) trata de como a impressatildeo do direcionamento focal se daacute em

movimentaccedilotildees que comprometem toda a estrutura da forma animada e natildeo por meio apenas

de uma conduccedilatildeo discreta e isolada do centro de percepccedilatildeo Isto contribui para o

entendimento de que o olhar ainda que possa ser uma referecircncia uacutetil na compreensatildeo e

execuccedilatildeo do direcionamento focal no boneco natildeo daacute conta do que seria o foco tanto em

termos conceituais quanto praacuteticos (ainda por que ao menos nesse caso o entendimento

separado entre conceito teoacuterico-reflexivo e fundamento praacutetico eacute falsa)

De toda maneira em casos como por exemplo na jaacute mencionada combinaccedilatildeo de tubo

articulado e bola do Muumlmmenchanz um direcionamento focal preciso eacute capaz de conduzir a

plateia a imaginar uma relaccedilatildeo eficiente entre a estrutura da forma animada e um corpo

iacutentegro e autocircnomo

Na disciplina optativa ministrada por mim no segundo semestre de 2010 para os

cursos de bacharelado e licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Uberlacircndia foi

trabalhado um exerciacutecio no qual os alunos deveriam propor accedilotildees sobre pedaccedilos de tecidos

roupas velhas e pedaccedilos de papel amassado de modo a que estes pudessem ser entendidos

como formas animadas A questatildeo principal apresentada agrave turma era como e quando a peccedila de

material trabalhada deixava de ser apenas um retalho ou pedaccedilo de jornal e cedia espaccedilo para

a imaginaccedilatildeo de uma determinada presenccedila O que se percebeu foi que a identificaccedilatildeo de um

centro de percepccedilatildeo72

eacute fundamental para produzir a imaginaccedilatildeo de presenccedila e autonomia que

traccedila a linha entre apenas pano e pano usado como boneco Ainda que seja curioso perceber

que muitos alunos acabaram optando por moldar em seus materiais formas que se

assemelhassem a partes de corpos (pernas cabeccedilas narizes) uma operaccedilatildeo atenta ao

direcionamento focal da forma animada permitia que se imaginasse integridade corporal em

formas esquemaacuteticas parciais em objetos com pouca semelhanccedila com a forma humana

(Video 9) ou que evitavam a reproduccedilatildeo reconheciacutevel de membros ou traccedilos de feiccedilatildeo

Assim sendo eacute possiacutevel entender o foco como um componente teacutecnico-conceitual que

atua na emulaccedilatildeo da autonomia da forma animada mas natildeo se pode perder de vista a sua

importacircncia para a ordenaccedilatildeo do discurso espetacular em teatro de animaccedilatildeo De fato essas

duas funccedilotildees ndash emulaccedilatildeo de autonomia e ordenaccedilatildeo de discurso cecircnico ndash estatildeo imbricadas por

meio da noccedilatildeo anteriormente mencionada de como a percepccedilatildeo da forma animada se daacute

forccedilosamente a partir da instauraccedilatildeo de uma teatralidade

72

Por centro de percepccedilatildeo identifico o ponto na estrutura do boneco que reage e se direciona ao que se pretende

fazer a forma perceber e assim orientar a sua loacutegica de movimentaccedilatildeo

157

Figura 85a 85b 85c 85d Deslocamento e foco em trabalhos com materiais Aula Teatro de Formas

animadas (IARTE-UFU) Alunos Victor Rodrigues Viniacutecius Fonseca Gabriela Martins e Ana Claacuteudia

Zumpano

Foto Mario Piragibe

Figura 86 Centro de focalizaccedilatildeo impliacutecito Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo

Fonte (httpwwwtrukscombr)

158

Beltrame menciona um princiacutepio teacutecnico-conceitual nomeado ldquoolhar como indicador

da accedilatildeordquo (idem) que parece apresentar com clareza a integraccedilatildeo entre a emulaccedilatildeo da

autonomia e a ordenaccedilatildeo do discurso da cena O princiacutepio trata de como o direcionamento

focal do boneco orienta

o espectador a dar-se conta dos dados e elementos que satildeo fundamentais para o

acompanhamento desejado da cena apresentada Aqui o direcionamento do foco do boneco

estaacute contribuindo conjuntamente para a percepccedilatildeo da autonomia do boneco e para o

ordenamento das ecircnfases da cena apresentada

Balardim em sua relaccedilatildeo de preceitos teacutecnicos para o ator de animaccedilatildeo natildeo relaciona

o foco em seu rol de princiacutepios mas trata da noccedilatildeo em uma perspectiva especiacutefica que parte

da concepccedilatildeo do que ele chama de ldquocontrole atencionalrdquo (2004 pp98-100) Sua preocupaccedilatildeo

maior repousa na conduccedilatildeo da atenccedilatildeo do puacuteblico e ainda que defenda o quanto o rigor no

endereccedilamento dos pontos focais da cena contribui para ldquoorientar o olhar do puacuteblico em

direccedilatildeo ao que precisa ver [a forma animada] para encontrar o que quer verrdquo (idem p100

grifos do autor) Balardim parece entender o esforccedilo de imprimir a forma animada como

sendo uma presenccedila qualificada dissociada do esforccedilo de ordenaccedilatildeo dos assuntos e ecircnfases da

cena na qual ela se insere A convicccedilatildeo expressa neste trabalho de que o boneco pelas

qualidades de convocaccedilatildeo de teatralidade existentes na sua apresentaccedilatildeo provoca uma relaccedilatildeo

de indissociabilidade entre concepccedilotildees e recursos de ordenamento do discurso cecircnico e de

emulaccedilatildeo de autonomia e presenccedila

A esse respeito pode ser mencionado um procedimento natildeo tratado por Belatrame e

Balardim que lida com o foco em casos de apresentaccedilatildeo de bonecos com atores operadores agrave

mostra Trata-se do direcionamento do olhar do animador durante a atuaccedilatildeo com o boneco

Percebe-se que quando o olhar do ator se encontra claramente direcionado sobre o boneco que

opera se produz na percepccedilatildeo do espectador um efeito eficiente de transferecircncia de atenccedilatildeo

que contribui para a imaginaccedilatildeo de autonomia e atenccedilatildeo detida sobre as accedilotildees do boneco

(Figura 82) Isto vale mesmo para bonecos operados agrave vista por mais de um ator Ocorre uma

orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo que parte do ator em direccedilatildeo ao boneco e em seguida a partir do

boneco na direccedilatildeo de seu foco Se por acaso a atenccedilatildeo do ator desviar-se diretamente para o

foco final do boneco e ali pousar cria-se por forccedila desse direcionamento uma divisatildeo de

atenccedilatildeo que produz um efeito que tende a fazer com que boneco e ator dividam a centralidade

da atenccedilatildeo por efeito do foco comum e em casos extremos excluir o boneco do quadro de

atenccedilatildeo Ainda se a atenccedilatildeo do ator diverge em uma direccedilatildeo diversa do foco do boneco no

mais das vezes produzir-se-aacute uma ecircnfase em contraponto uma tensatildeo divergente que tende a

159

aplicar uma forccedila de atraccedilatildeo por instantes mais poderosa do que a do foco dirigido pelo

boneco Deve-se atentar no entanto que tais efeitos satildeo obtidos mais por forccedila da dinacircmica

de divergecircncia e convergecircncia da atenccedilatildeo do que propriamente como comprovaccedilatildeo da

atratividade superior do ator vivo em relaccedilatildeo ao boneco originalmente inerte Esse jogo de

divergecircncias e convergecircncias da atenccedilatildeo aponta para as diversas possibilidades de uso da

focalizaccedilatildeo com operador agrave vista partindo e multiplicando pontos de vista Natildeo eacute a intenccedilatildeo

deste estudo condenar os procedimentos de divergecircncia mas mais que isso perceber o quanto

de possibilidades de significaccedilatildeo estes permitem

Em termos objetivos a noccedilatildeo de foco como recurso de operaccedilatildeo por meio do qual se

emula no boneco um centro sensorial Os diversos empregos e noccedilotildees do foco para o teatro de

animaccedilatildeo aqui apresentados lidam com diferentes origens do direcionamento focal (o foco do

boneco o foco do ator o foco do espectador o foco da cena) e pontos de chegada no

miacutenimo avizinhados se natildeo idecircnticos Curioso notar que o destino final do foco no teatro de

animaccedilatildeo natildeo seja exatamente a forma animada mas os componentes discursivos da cena que

ela instaura no modo como se dispotildeem diante do espectador Essa disposiccedilatildeo natildeo significa

em momento algum a obrigatoriedade da instauraccedilatildeo de um discurso linear mas permite

simultaneidade e divergecircncia uma vez que a cena de animaccedilatildeo eacute suportada na percepccedilatildeo do

espectador pelo escoramento muacutetuo da autonomia da forma e da integridade da cena

Ainda podemos perceber que a aceitaccedilatildeo do princiacutepio do foco parece desalojar do

nosso campo de consideraccedilotildees a neutralidade como norteador para reflexatildeo e treinamento

Poderiacuteamos insistir na jaacute mencionada incapacidade de desaparecimento do ator na cena de

animaccedilatildeo mas parece-nos mais conveniente a consideraccedilatildeo de que a seleccedilatildeo perceptiva

operada por meio de recursos de focalizaccedilatildeo natildeo apenas reconhece os elementos perifeacutericos

ao centro focal mas contribui para a sua manutenccedilatildeo Ou seja a focalizaccedilatildeo natildeo ocorre por

meio da supressatildeo de elementos da cena mas pelo encaminhamento de signos que faz o

espectador reconhecer o status ocupado por cada um deles dentro da cena e o direcionamento

da atenccedilatildeo que aponta para seus nuacutecleos focais Isto equivale dizer que o natildeo ignoramos o que

eacute perifeacuterico mas usamos a percepccedilatildeo desses elementos como guia para o direcionamento da

atenccedilatildeo Eugecircnio Barba menciona algumas figuras do teatro oriental nas quais os atores se

encarregam de interpretar a ausecircncia Descreve os casos em que se emprega uma refinada

teacutecnica corporal para transmitir a impressatildeo de exterioridade agrave cena e desaparecimento da

personagem

[] o waki o ator secundaacuterio no Nocirc que frequumlemente expressa seu proacuteprio

natildeo-ser Ele coloca em accedilatildeo uma complexa teacutecnica corporal extracotidiana

160

para expressar-se a si mesmo mas chama atenccedilatildeo para a sua habilidade em

satildeo se expressar [] O kokken homem vestido de preto que auxilia o ator

principal no Nocirc e Kabuki eacute tambeacutem chamado a ldquorepresentar sua ausecircnciardquo

Sua presenccedila que expressa ou representa nada [] (BARBA amp

SAVARESE 1995 p10)

A descriccedilatildeo de Barba daacute a entender com razoaacutevel clareza que natildeo se trata nesses casos de

empregar uma teacutecnica para natildeo fazer-se notar mas sim dar-se a ver como algo exterior agrave accedilatildeo

dramaacutetica O esforccedilo dos artistas aqui natildeo repousa sobre o proacuteprio desaparecimento mas

sobre o direcionamento de atenccedilatildeo desejado seguindo coacutedigos estritos de comportamento

cecircnicos compreendidos por artistas e puacuteblico

Eacute por isso que se propotildee o entendimento de que seria mais preciso do ponto de vista

conceitual e mais funcional do ponto de vista da praacutetica que a noccedilatildeo de neutralizaccedilatildeo fosse

substituiacuteda pela de focalizaccedilatildeo Deixariacuteamos assim de incorrer em equiacutevocos de reflexatildeo e

treinamento e voltariacuteamos nossos olhos para possibilidades teacutecnico-conceituais que

considerassem a cena de animaccedilatildeo a partir da sua variedade de recursos figurativos e

possibilidades discursivas O foco tambeacutem resta como conceito rico que permite entender e

visualizar a integraccedilatildeo entre boneco e accedilatildeo teatral definindo-se como a produccedilatildeo de uma

sensibilidade dentro da cena de animaccedilatildeo que sustentaraacute ao mesmo tempo a imaginaccedilatildeo de

autonomia da forma animada e a integridade da cena teatral

Pelo cumprimento das funccedilotildees aqui mencionadas podemos eleger o foco como sendo

o principal fundamento teacutecnico-reflexivo a nortear o entendimento e o preparo do ator de

apresentaccedilatildeo em formas animadas A atenccedilatildeo ao foco eacute o que permite realizar a apresentaccedilatildeo

da forma animada e a construccedilatildeo da cena que esta instaura mesmo em meio a uma cena de

animaccedilatildeo que opta por dispensar a linearidade do discurso e de uma forma animada que tem

seus contornos tornados indecisos por efeito das relaccedilotildees ambiacuteguas e provisoacuterias que

estabelece com materiais e corpos de atores O alcance e a presenccedila desse preceito sobre a

cena animada tambeacutem pode nos ajudar a pensar acerca de uma das principais caracteriacutesticas

do recurso do animador aparente que apesar de ser facilmente percebida durante a

experiecircncia praacutetica tem a sua definiccedilatildeo dificultada por palavras e argumentos que insistem

em esconder-se Quando Jurkowski comenta uma montagem de Don Quijote dirigida por

Josef Kofta em 1977 refere-se ao emprego do animador aparente como operando sobre a cena

ldquodiferentes meios de expressatildeordquo (JURKOWSKI 1990 p64) que dispunham

simultaneamente variados meios de figuraccedilatildeo de personagens e situaccedilotildees (personagens

representados por bonecos e atores ao mesmo tempo objetos simbolizando personagens

diferentes tipos de bonecos representando o mesmo personagem recursos sonoros indicando a

161

presenccedila e a accedilatildeo de um determinado personagem) A cena se tornava assim segundo

Jurkowski num conjunto de ldquoaacutetomos cecircnicosrdquo dispostos ao mesmo tempo O ator aparente

natildeo era apenas o elemento capaz de estabelecer e evidenciar tais diferenccedilas Sua visibilidade

bem como sua possibilidade de interferecircncia ativa era o elemento capaz de operar dar

sentido e por conseguinte constituir uma cena com essa combinaccedilatildeo de diferentes traccedilos

O tracircnsito do ator em meio agraves formas de materiais traccedilos e escalas variadas eacute o

elemento capaz de impor agrave cena um ordenamento discursivo que natildeo se daacute apenas por

recursos de direcionamento do olhar mas de interaccedilatildeo operaccedilatildeo e narraccedilatildeo Sua influecircncia

natildeo ordena o discurso da cena num sentido da implementaccedilatildeo de uma sequecircncia loacutegica nem

do estabelecimento de conexotildees racionais entre eventos e figuras mas de uma aproximaccedilatildeo

criada por meio da relaccedilatildeo que dinamiza a percepccedilatildeo e a interconexatildeo dos elementos da cena

heterogecircnea O ator dessa forma opera como um catalisador de elementos que satildeo dessa

maneira oferecidos agrave percepccedilatildeo em uma potecircncia de significaccedilatildeo ampliada

Por isso a opccedilatildeo pelo ator operador de formas posto agrave vista tambeacutem abre a

possibilidade para uma cena na qual a heterogeneidade formal e narrativa caracteriacutesticas do

teatro de animaccedilatildeo se apresente em evidecircncia radical O artista de animaccedilatildeo aparente natildeo

opera apenas o boneco opera a organizaccedilatildeo espacial temporal e formal do espetaacuteculo num

tipo de desdobramento que lhe confere certo status de narrador ou construtor da realidade

apresentada Nas palavras de Didier Plassard

Alternadamente narrador e personagem sobrepondo-se agrave accedilatildeo e deslizando nela o

ator torna-se o lugar de uma dissociaccedilatildeo entre os diferentes planos da

representaccedilatildeo ao mesmo tempo em que sua forma pode fazer desaparecer os

inteacuterpretes de seu drama (PLASSARD 1995 p19)

Estamos diante da tarefa de nos debruccedilarmos sobre aspectos relacionais de dois

elementos que possuem uma carga teatral poderosa ator e marionete A combinaccedilatildeo entre

esses elementos nunca produz sobre a cena acomodaccedilotildees ou unidades pelo contraacuterio Eacute da

constante fricccedilatildeo entre seus potenciais expressivos que surge uma das dimensotildees mais

encantadoras e diversas da arte teatral dimensatildeo esta que adere de maneira inapelaacutevel sobre

teorias e praacuteticas para o ator e para a cena de nosso tempo

162

32 Quem manda em quem Soberanias da cena de animaccedilatildeo

Vocecirc natildeo o movimenta vocecirc o deixa mover-se essa eacute a

arte

E G Craig

Jaacute foi comentado neste trabalho o fato de que em termos gerais natildeo se pode

estabelecer uma hierarquia estaacutevel para determinar a relevacircncia que ator e boneco exercem

sobre a cena um em relaccedilatildeo ao outro sobretudo nas ocasiotildees em que o ator operador da

forma se apresenta agraves vistas do puacuteblico A dificuldade de se precisar qual desses dois ocuparia

a centralidade do ato artiacutestico no que diz respeito a seus processos criativos e a seus modos

de recepccedilatildeo podem ser explicados pela combinaccedilatildeo de alguns argumentos Em primeiro lugar

podemos (sempre para quase todas as questotildees de entendimento acerca da arte em questatildeo)

evocar a grande diversidade de processos efeitos e manifestaccedilotildees relacionadas ao teatro de

animaccedilatildeo Podemos perceber que a maneira como se trabalha e se percebe a integraccedilatildeo entre

animador e boneco varia bastante entre formatos tais como o teatro de sombras indiano que

dispotildee seus espectadores dos dois lados da tela de projeccedilatildeo pondo seus operadores agrave mostra a

manipulaccedilatildeo de ateacute trecircs operadores por boneco do bunraku que isola e revela o narrador

vocalizador e que ainda que apresente a maioria dos seus operadores trajados em coberturas

negras exibe o operador mais experiente em branco e com a cabeccedila descoberta o uso da

empanada para bonecos de luva como nas apresentaccedilotildees do Punch and Judy onde se joga

constantemente por meio de chistes e jogos verbais com a existecircncia do manipulador e que

usualmente apresenta outro artista diante da empanada para provocar dinacircmicas de integraccedilatildeo

com o puacuteblico (essas caracteriacutesticas satildeo encontradas tambeacutem com muita forccedila no

mamulengo) ou as apresentaccedilotildees de narrativas ilustradas como se verifica em apresentaccedilotildees

nas quais satildeo contadas histoacuterias pontuadas pelo emprego de objetos e o jaacute mencionado

formato de retaacutebulo descrito por Cervantes na famosa passagem de Don Quixote

Em todos os exemplos mencionados se verifica que a apresentaccedilatildeo do boneco se daacute

em relaccedilatildeo ao ator que o opera de uma maneira que suplanta a funccedilatildeo da movimentaccedilatildeo O

suposto problema apresentado a partir do fato de que o operador natildeo pode distanciar-se do

boneco para operaacute-lo faz do ator uma espeacutecie de apecircndice obrigatoacuterio continuaccedilatildeo ou

duplicaccedilatildeo corporal Mas essa percepccedilatildeo conjunta se daacute bem menos pela proximidade fiacutesica

do que pelo fato de que a apresentaccedilatildeo do boneco teatral pressupotildee tambeacutem uma atuaccedilatildeo

desdobrada na qual recursos expressivos satildeo trocados entre operador e forma animada

163

produzindo aproximaccedilotildees (no engajamento na accedilatildeo da cena na funccedilatildeo de transmissatildeo de um

sujeito teatral) e diferenccedilas (de forma de corpo de origem da voz)

Alcanccedilamos assim outro argumento interessante e que pode ser verificado Ator e

marionete se constituem numa unidade que se constroacutei e desconstroacutei constantemente diante da

plateacuteia num arranjo fundamentalmente tenso Haacute de fato como jaacute mencionamos uma

dinacircmica de percepccedilatildeo muacuteltipla e simultacircnea na apresentaccedilatildeo do boneco que Jurkowski

chama de efeito de opalizaccedilatildeo mas tambeacutem eacute verdade que em cena operador e boneco

podem alternadamente e de acordo com particularidades da apresentaccedilatildeo chamar para si a

centralidade da accedilatildeo mais significativa da cena

As trocas e diaacutelogos entre operadores e bonecos observados em alguns momentos da

Cia Truks (o espetaacuteculo Vovocirc por exemplo) integra na accedilatildeo direta da cena os atores

operadores para em seguida fazecirc-los retornar ao segundo plano de atenccedilatildeo (tendo o boneco

ocupando o centro da zona focal) Satildeo dinacircmicas de perguntas reaccedilotildees e piadas nas quais por

um instante os manipuladores interagem em contra-cena com o boneco provocando breves

alteraccedilotildees no status cecircnico do operador Jaacute em Peer Gynt da cia PeQuod em momentos

como o que o ator descreve as condiccedilotildees de seu banimento segurando sem cuidados

manipulativos o boneco da personagem central apenas para indicar representa aquela

personagem lida-se com um status cecircnico para o ator que alcanccedila o limite do alijamento do

boneco da condiccedilatildeo de forma animada para mostraacute-lo apenas como iacutendice da personagem

teatral Em dado momento boneco eacute acomodado no joelho do ator que se abaixa para

prosseguir com a cena operando-o agrave vista A dinacircmica de status de cena aqui opera outras

variaccedilotildees sobre a percepccedilatildeo de ator e boneco que se desdobram em torno de uma mesma

personagem produzindo variaccedilotildees de possibilidades diferentes das do primeiro exemplo

Ana Maria Amaral apresenta sua versatildeo acerca da questatildeo de poderes entre

manipulador e boneco em um contexto mais tradicional de apresentaccedilatildeo e usa para tal o

verbo servir73

No teatro o ator cria o personagem cria a imagem do seu personagem No teatro

de bonecos a imagem do personagem jaacute vem pronta e o ator-manipulador apenas

serve o bonecordquo (AMARAL 1993 p73)

Para Amaral a questatildeo natildeo reserva surpresas e ainda que possa estar se referindo a um

modo mais tradicional de apresentaccedilatildeo com o boneco (o que talvez natildeo seja o caso) evoca

73

ldquoNo teatro o ator cria o personagem cria a imagem do seu personagem No teatro de bonecos a imagem do

personagem jaacute vem pronta e o ator-manipulador apenas serve o bonecordquo (AMARAL 1993 p73) A escolha de

palavras nessa passagem eacute fundamental para o entendimento que nesta obra a autora entende como resolvida a

questatildeo de dominaccedilotildees em se tratando do teatro de bonecos tradicional

164

Figura 87a 87b 87c 87d O boneco como indicativo da personagem PeQuod Peer Gynt

Fotos Simone Rodrigues

165

uma distribuiccedilatildeo de tarefas simples e direta harmoniosa A personagem assim pode ser

reduzida agrave sua imagem restando ao manipulador no que toca agrave construccedilatildeo da personagem

serviacute-la

Ana Maria Amaral evoca no texto duas possiacuteveis significaccedilotildees para a noccedilatildeo de servir

e assim permite que natildeo se perca de vista certa relaccedilatildeo de servidatildeo do ator para com o boneco

teatral No entanto amplia a leitura do termo com a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo empregando o

verbo em alusatildeo ao serviccedilo do garccedilon que atende ao cliente mas que tambeacutem apresenta e

dispotildee diante dele o prato solicitado Para Amaral o ator natildeo serve ao boneco ele serve o

boneco no sentido de apresentar oferecer agrave percepccedilatildeo Agrave primeira vista pode parecer que esta

leitura se posiciona de maneira bastante clara acerca de conferir a centralidade da cena ao

boneco que seria tambeacutem o sustentaacuteculo da ilusatildeo cecircnica e o portador das informaccedilotildees

referentes agrave personagem dramaacutetica No entanto parece que a escolha de palavras feita por

Amaral remete a uma dinacircmica de insurgecircncia como um motim de serviccedilais Aquele que

serve o manipulador tambeacutem entrega aos sentidos ndash em sacrifiacutecio em refeiccedilatildeo ndash do puacuteblico

o boneco que apenas consegue afirmar seu poder de dominar as atenccedilotildees mediante a entrega

de seu controle a outro Dessa maneira evolui o jogo de poder sobre a cena de animaccedilatildeo

concessatildeo como estrateacutegia de dominaccedilatildeo e traiccedilatildeo ao outro como meio para entronizaacute-lo

Tillis recolhe e comenta de Jurkowski uma aproximaccedilatildeo mais criacutetica da questatildeo da

servidatildeo entre ator e boneco Usando como exemplos as apresentaccedilotildees em formato de

retaacutebulo (como no teatro de Mestre Pedro descrito por Cervantes em Don Quixote) e dos

intermediaacuterios entre boneco e plateia (como ocorre no Petrushka no Punch and Judy e no

mamulengo) (TILLIS 1992 pp 69-70) Para Jurkowski em apresentaccedilotildees nas quais a forma

animada se apresenta como suporte ou ilustraccedilatildeo para uma narraccedilatildeo verifica-se uma situaccedilatildeo

de servidatildeo do boneco em relaccedilatildeo ao ator narrador mas quando o ator eacute um intermediaacuterio

entre o boneco protagonista e o puacuteblico esse status de serviccedilo estaria invertido

Pode-se argumentar que os casos usados como exemplo natildeo se constituem em relaccedilotildees

claras entre boneco e ator operador uma vez que natildeo se verifica uma relaccedilatildeo manipulativa

clara entre artista e forma Mas se retornarmos ao capiacutetulo anterior no qual foi observado que

a atuaccedilatildeo do trabalho do animador consiste em inserir o objeto dento do contexto de

representaccedilatildeo teatral podemos sim localizar qualidades de interaccedilatildeo passiacuteveis de se

estabelecer para este estudo ao menos uma relaccedilatildeo entre forma e operador

Ainda assim cabe a observaccedilatildeo da questatildeo da servidatildeo em situaccedilotildees de relaccedilatildeo

manipulativa mais evidente Busquemos novamente a passagem de Peer Gynt da PeQuod

descrito anteriormente Ao iniacutecio da cena da descriccedilatildeo do banimento pode-se afirmar que a

166

funccedilatildeo de iacutendice da personagem cumprido pelo boneco caracteriza um estatuto de serviccedilo nos

termos apresentados por Jurkowski do boneco para o ator Mas no momento seguinte quando

o boneco eacute acomodado no joelho do ator que passa a operaacute-lo de modo a oferece-lo ao centro

focal da cena o estatuto se inverte

Se entendemos o fenocircmeno da apresentaccedilatildeo do boneco teatral numa dinacircmica de

percepccedilatildeo simultacircnea a dinacircmica de dominacircncias da centralidade focal eacute alternada De fato eacute

fundamental o estabelecimento da primeira circunstacircncia para que a dinacircmica de dominacircncias

adquira o seu ritmo e a sua significacircncia

Observa-se sobretudo em manifestaccedilotildees mais recentes de teatro de animaccedilatildeo uma

intermitecircncia na maneira como se percebe o boneco uma vez que haacute tambeacutem uma dinacircmica

de arranjos provisoacuterios no ato de formaacute-lo e apresenta-lo Como jaacute foi mencionado a proacutepria

sugestatildeo de vida imaginada de sua apresentaccedilatildeo a sua presenccedila qualificada se apoacuteia sobre

uma significaccedilatildeo dupla opalizada Ocorre que em manifestaccedilotildees mais recentes os temas e as

configuraccedilotildees sensiacuteveis do boneco teatral adicionaram a essa percepccedilatildeo jaacute ambiacutegua de sua

apresentaccedilatildeo uma dinacircmica de usurpaccedilotildees e dominacircncias tanto da atenccedilatildeo do espectador

quanto da capacidade propositiva que guia a criaccedilatildeo em cena Este momento do trabalho se

dedica a analisar de dentro a relaccedilatildeo entre manipulador e forma animada em meio agraves

transformaccedilotildees de estrutura fiacutesica do boneco e das escolhas temaacuteticas nas manifestaccedilotildees

contemporacircneas de teatro de animaccedilatildeo tendo como provocador da discussatildeo a sugestatildeo de

que o equiliacutebrio tenso existente entre animador e boneco eacute o resultado de uma dinacircmica de

poderes que atuam nas duas maneiras de abordar a relaccedilatildeo que se daacute sobre a cena entre ator e

objeto o aspecto da constituiccedilatildeo da apresentaccedilatildeo e o da percepccedilatildeo da mesma

Sobre o primeiro desses aspectos o que se trata eacute justamente a tentativa do

entendimento dos poderes que atuam nos modos como o ato da animaccedilatildeo se daacute ou seja quais

poderes se potildeem em causa durante o ato manipulativo que centraliza uma apresentaccedilatildeo com

bonecos Ou seja qual eacute o conjunto de forccedilas que define e localiza o exerciacutecio do controle no

ato de animar

Parece quase evidente a afirmaccedilatildeo de que o operador exerce um tipo de poder

inapelaacutevel sobre o boneco teatral uma vez que seraacute a partir da accedilatildeo do manipulador sobre o

boneco que este poderaacute exercer sua prerrogativa de participaccedilatildeo qualificada sobre a cena

Assim seria muito simples entender que o controle exercido pelo operador sobre a forma eacute

uma espeacutecie de ato subordinativo no qual se vecirc claramente a aplicaccedilatildeo de uma vontade sobre

um objeto exercido em sentido uacutenico e de modo indefensaacutevel No entanto a natureza da

forma animada e em um sentido mais amplo da cena teatral com seus aspectos constitutivos

167

particulares e suas condiccedilotildees de estabelecimento complexificam essa atribuiccedilatildeo de controle e

subverte fluxos de dominacircncias aparentemente estaacuteveis

Busquemos entatildeo uma ferramenta que pareccedila uacutetil para o entendimento do controle

como sendo um fluxo de poderes que mostre tambeacutem algumas concepccedilotildees que possam ser

verificadas em meio ao jogo da animaccedilatildeo ainda que isto natildeo sirva para fazer mais que um

exerciacutecio reflexivo ou buscar metaacuteforas ricas para tratar de teatro de bonecos agrave luz de outros

saberes A ferramenta escolhida eacute uma seacuterie de concepccedilotildees acerca do poder e do ordenamento

juriacutedico ocidental apresentado por Michel Foucault (1998-II) e tambeacutem desdobramentos

feitos por Giorgio Agamben de algumas questotildees apresentadas pelo mesmo Foucault acerca

de soberania e de mecanismos de poder (2002 2005) Desse esforccedilo decorre uma tentativa de

localizar caracteriacutesticas de dominacircncia que possam dar a ver a estrutura relacional que

sustenta o ente performativo combinado ator-boneco mas tambeacutem vislumbrar os possiacuteveis

reflexos que o controle no jogo da animaccedilatildeo (seus entendimentos e mecanismos) visto como

uma economia de poderes produz na condiccedilatildeo e no comportamento humano

Primeiramente nos debruccedilamos sobre o tipo de relaccedilatildeo apontado por Foucault

exercido entre o poder monaacuterquico e o ordenamento juriacutedico de onde emanava a autoridade

do rei e ao qual ele se submetia Foucault aponta que ldquoeacute a pedido do poder real em seu

proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificaccedilatildeo que o edifiacutecio juriacutedico de nossas

sociedades foi elaboradordquo (2008-II p 180) Dessa forma esse ordenamento montado em

torno da autoridade do rei tambeacutem funciona como instacircncia limitadora na medida exata em

que determina as condiccedilotildees do exerciacutecio de sua autoridade O limite era assim um

componente fundamental para estabelecer o estatuto por meio do qual o poder do rei era

reconhecido Agrave condiccedilatildeo de exerciacutecio do poder real dos sistemas sobre o qual seu poder se

permitia reconhecer Foucault daacute o nome de soberania

Se entendermos por soberania um sistema de legitimaccedilatildeo de poder que natildeo emana de

uma fonte uacutenica e estaacutevel mas que necessita de um sistema de outorga que confere aos

proacuteprios suacuteditos uma parcela desse poder sob a forma do reconhecimento da autoridade entatildeo

talvez seja possiacutevel imaginar que para o nosso caso a proacutepria concepccedilatildeo de controle natildeo se

possa desenhar de outra forma senatildeo como um feixe de linhas bidirecionais das quais emana

para os dois lados forccedilas de controle e forccedilas de permissatildeo

O poder do operador de bonecos eacute subordinado a um sistema de forccedilas de controle que

satildeo exercidos em sentido contraacuterio pois se vecirc limitado simultaneamente e como dupla

manifestaccedilatildeo de um mesmo fenocircmeno pelas condiccedilotildees de apresentaccedilatildeo da forma animada e

168

pelo esforccedilo de instauraccedilatildeo da cena teatral o que muitas vezes pode se dar apenas pelo modo

de apresentaccedilatildeo da forma animada

O conhecimento e o respeito agrave estrutura do boneco e da cena na qual este se insere eacute

fundamental para que se estabeleccedila o ato de animaccedilatildeo Natildeo basta ao operador movimentar um

boneco ou forma para que este adquira significaccedilatildeo teatral Faz-se necessaacuterio que essa

operaccedilatildeo se decirc em relaccedilatildeo aos atributos do boneco e da cena Em muitos casos o

estabelecimento dessa relaccedilatildeo natildeo se daacute sem a apropriaccedilatildeo de competecircncias teacutecnico-

perceptivas que parte obrigatoriamente do entendimento e do respeito agraves naturezas

especiacuteficas tanto da forma quanto da cena

Por exemplo bonecos de fios em geral possuem uma qualidade de movimentaccedilatildeo que

exige do seu operador mais respeito agrave sua estrutura do que a imposiccedilatildeo de um desejo de

movimentaacute-lo Dependendo da extensatildeo do fio do peso do boneco e da natureza do

movimento (em geral giros e torccedilotildees) seraacute necessaacuterio ao operador provocar o movimento

pouco antes do momento em que este deveraacute ser percebido pela plateia Isto ocorre por forccedila

do tempo necessaacuterio para que o estiacutemulo atravesse o fio e impulsione a parte do corpo do

boneco a ser movimentada Bonecos de fio tambeacutem podem apresentar dificuldades no que

toca ao teacutermino de certo gestual Pode-se determinar com a forccedila exercida sobre o fio o

momento em que certos movimentos (em geral de trajetoacuteria pendular) satildeo iniciados mas

dependeraacute da accedilatildeo da gravidade do peso e das relaccedilotildees de atrito exercidas no proacuteprio boneco

o momento em que o movimento cessaraacute Assim a accedilatildeo do operador transita entre o exerciacutecio

de uma vontade a obediecircncia agrave natureza proacutepria do boneco e nunca nos esqueccedilamos das

demandas especiacuteficas da cena na qual se insere a apresentaccedilatildeo do boneco

Pode-se comeccedilar a imaginar que a atribuiccedilatildeo de poderes para a cena de animaccedilatildeo se daacute

em alternacircncias entre a capacidade de movimentaccedilatildeo do operador e os impositivos de forma e

movimento contidos no boneco A cena teatral como lugar de instauraccedilatildeo dessa dinacircmica de

dominacircncias e como resultado obrigatoacuterio dela passa a ser o objetivo e a condiccedilatildeo de

atribuiccedilatildeo dos poderes que emanam do operador e do boneco posto que fora dela (da cena)

ambos perdem forccedilosamente as caracteriacutesticas que os definem

Giorgio Agamben apresenta a questatildeo da soberania como algo que se assenta sobre

um paradoxo posto no entendimento da exceccedilatildeo como um componente inapelaacutevel da norma

juriacutedica Pois uma vez que para Agamben ldquoo soberano estaacute ao mesmo tempo dentro e fora

do ordenamento juriacutedicordquo (p 23) passa a ser da natureza da soberania destacar-se do

ordenamento que a compreende para criar um espaccedilo de definiccedilatildeo das exceccedilotildees bem como

169

para abrigar por meio de uma ldquoexclusatildeo inclusivardquo aquilo que estaacute fora (ou que eacute banido) da

norma

Para nosso estudo o paradoxo da soberania encontra logo de saiacuteda diaacutelogos possiacuteveis

com o jaacute mencionado efeito de opalizaccedilatildeo mas mais talvez por sua composiccedilatildeo paradoxal do

que por dar a ver aspectos internos do controle no ato da animaccedilatildeo Ainda assim talvez seja

possiacutevel reconhecer uma dinacircmica de inclusotildees e exclusotildees no endereccedilamento de

expressividade feito na direccedilatildeo do boneco por parte do ator operador Nesse sentido o controle

pode ser entendido a partir do ato de transferecircncia de expressividade naquilo em que retira

relevacircncia cecircnica do ator operador para dar ao espectador algo que o exclui mas que

apresenta evidentes elementos de atuaccedilatildeo que se datildeo por meio da accedilatildeo do animador

Compreender que manipular eacute representar juntamente com a forma faz da diferenccedila fiacutesico-

formal notaacutevel entre ator e objeto algo que natildeo se daacute a ver senatildeo em simultaneidade com a

percepccedilatildeo de um organismo performativo que os compreende obrigatoriamente

O ator operador de formas animadas assim se encontra nesse entre-espaccedilos de

produzir uma apresentaccedilatildeo que lhe eacute fisicamente exterior mas por meio de uma dinacircmica

operativa que o compreende natildeo apenas do ponto de vista de sua funccedilatildeo de operador mas por

meio da expressividade e da subjetividade que constroem e datildeo a ver a atuaccedilatildeo Por sua vez a

forma animada exerce na proacutepria dualidade de objeto inerte e vida imaginada a sua potecircncia

expressiva Nenhum dos dois sintetiza a estrutura de apresentaccedilatildeo tampouco se encontra em

condiccedilotildees de se por totalmente alheio a esta sob a pena de suspensatildeo do proacuteprio estatuto da

teatralidade sob o qual se fundam os termos da sua atuaccedilatildeo em relaccedilatildeo

Assim se nossa ferramenta analiacutetica foi escolhida e empregada com razoaacutevel eficaacutecia

podemos passar a entender o controle o jogo de forccedilas que tem lugar na produccedilatildeo da

apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo como um fluxo de dominacircncias em duas direccedilotildees sendo que a

subordinaccedilatildeo a um fluxo legitima a dominacircncia em sentido oposto e vice e versa Vimos

tambeacutem que os dois elementos do organismo performativo combinado ator e forma

encontram-se simultaneamente dentro e fora deste produzindo uma estrutura expressivamente

potente por sua fragilidade

Uma apresentaccedilatildeo com bonecos dispotildee diante do espectador um tecido dinacircmico e um

tanto complexo de dominacircncias nas quais tanto ator quanto objeto satildeo ao mesmo tempo e a

seu proacuteprio modo soberanos e subordinados O ator operador personifica o domiacutenio da

vontade sobre a mateacuteria do animado sobre o inanimado determinando com suas matildeos os

movimentos do boneco Ao boneco compete ao menos em primeira apreciaccedilatildeo um domiacutenio

170

inapelaacutevel do espaccedilo instaurado a partir da cena teatral no qual estaacute inserido e do qual eacute

criador e mantenedor por efeito de sua apresentaccedilatildeo

A percepccedilatildeo dessas dominacircncias exercidas por meio de trocas alternacircncias e

subversotildees na cena de animaccedilatildeo chama atenccedilatildeo para uma das precauccedilotildees metodoloacutegicas

acerca da consideraccedilatildeo do poder apontadas por Foucault a terceira delas

O poder deve ser analisado como algo que circula ou melhor como algo que

soacute funciona em cadeia Nunca estaacute localizado aqui ou ali nunca estaacute nas

matildeos de alguns nunca eacute apropriado como uma riqueza ou um bem O poder

funciona e se exerce em rede Nas suas malhas os indiviacuteduos natildeo soacute

circulam mas estatildeo sempre em posiccedilatildeo de exercer este poder e de sofrer sua

accedilatildeo nunca satildeo o alvo inerte ou consentido do poder satildeo sempre centros de

transmissatildeo Em outros termos o poder natildeo se aplica aos indiviacuteduos passa

por eles (2002 p 183)

Acreditar que a dinacircmica de dominaccedilotildees na relaccedilatildeo da construccedilatildeo da apresentaccedilatildeo da forma

animada se processa tal como Foucault projeta para outras circunstacircncias em rede pode ser

capaz de desarmar concepccedilotildees estaacuteticas acerca dos modos pelos quais os poderes satildeo trocados

na cena de animaccedilatildeo Isto equivale a compreender com mais clareza o quanto o boneco pode

ser coautor da sua apresentaccedilatildeo e tambeacutem como as trocas de dominacircncias entre ator e forma

natildeo devem ser vistas apenas pelo vieacutes do embate e da usurpaccedilatildeo mas como exerciacutecios

variados de um mesmo poder Ainda o entendimento de um poder que atravessa os

indiviacuteduos ou os elementos constitutivos da apresentaccedilatildeo ao inveacutes de deles emanar em

sentidos limitados pode apontar para uma variaccedilatildeo da capacidade de produzir significados na

apresentaccedilatildeo da forma animada que se diferencia substancialmente da metaacutefora recorrente do

controle determinista exercido pelo puxador de fios sobre o indiviacuteduo aprisionado por

circunstacircncias superiores a ele74

Com um objetivo comum a constituiccedilatildeo da cena teatral boneco e manipulador se

encontram ligados numa noccedilatildeo de controle que compreende poderes comuns e que natildeo

precisa um foco claro de emanaccedilatildeo Entretanto natildeo se pode dizer que a teia que os conecta

assume a forma de uma colaboraccedilatildeo

Como jaacute foi mencionado haacute um movimento revoltoso no interior da estrutura

combinada entre ator e boneco no ato da apresentaccedilatildeo que produz uma dinacircmica perceptiva

peculiar Nunca pacificada a dinacircmica expressiva da cena de animaccedilatildeo apresenta um

paradoxo no efeito de opalizaccedilatildeo e produz em diversas das experiecircncias mais recentes uma

alternacircncia proposital de relevacircncia cecircnica indo do ator ao boneco e a ele retornando Isto se

caracteriza sob a forma de uma alternacircncia de usurpaccedilotildees e de acordos instaacuteveis Essa

74

Essa questatildeo seraacute vista mais de perto no subcapiacutetulo que trata das potecircncias metafoacutericas do boneco

171

dinacircmica se potildee a favor de uma cena que favorece o jogo de esconder empreendido por

boneco e manipulador ao mesmo tempo em que eacute por esse jogo alimentada

Exemplos do que se afirma satildeo os muitos espetaacuteculos teatrais que fazem conviver

performances de atores e bonecos os quais demandam do ator um rendimento que o faccedila

valer-se natildeo apenas de sua capacidade de tornar o boneco cenicamente expressivo mas que

use a sua proacutepria expressatildeo (e as suas proacuteprias expressotildees) em favor da cena Em diversos

desses casos quando eacute dado ao espectador presenciar a accedilatildeo dos bonecos simultaneamente agrave

accedilatildeo dos atores que os movimentam os espetaacuteculos satildeo formados por combinaccedilotildees de mais

de um niacutevel de ficccedilatildeo criando relaccedilotildees mais complexas de encadeamento dramatuacutergico

moldando e recombinando discursos simultacircneos para os quais a implosatildeo de uma instacircncia

ficcional natildeo resulta na suspensatildeo da apresentaccedilatildeo mas apenas num golpe teatral que ainda

que discuta o instituto da ilusatildeo teatral natildeo suspende o discurso espetacular Esses niacuteveis de

ficccedilatildeo ndash a accedilatildeo dos bonecos a accedilatildeo dos manipuladores ndash podem de fato apresentar-se em

planos distintos apesar de simultacircneos da mesma maneira como podem combinar-se em

interaccedilotildees que podem se processar de diversas maneiras

A Cia Truks de teatro de bonecos se vale em diversos de seus espetaacuteculos da

expressatildeo facial dos manipuladores para fazer comentaacuterios acerca da accedilatildeo dos bonecos

assentindo incentivando ou reprovando suas atitudes Essas expressotildees podem ser

endereccediladas apenas agrave plateacuteia ou ao boneco numa espeacutecie de diaacutelogo silencioso O jaacute

mencionado espetaacuteculo Cuentos Pequentildeos da companhia servo-peruana Hugo e Inecircs

apresenta bonecos montados com combinaccedilotildees de roupas e adereccedilos com partes do corpo do

ator em cena criando esquetes cocircmicos nos quais esses personagens contracenam com o

proacuteprio animador O efeito cocircmico eacute amplificado pela percepccedilatildeo do duplo envolvimento do

ator nos pequenos conflitos mostrados como eacute o caso da cena que mostra um muacutesico de rua

feito a partir do joelho dobrado do ator com um nariz de palhaccedilo preso a ele O personagem se

potildee a tocar um pequeno violatildeo e recebe alguns trocados em retribuiccedilatildeo mas eacute secretamente

roubado pelo proacuteprio animador A cena resulta em grande parte devido ao jogo de integraccedilatildeo

e dissociaccedilatildeo corporal entre manipulador e forma animada uma vez que o par de matildeos que

executa a peccedila ao violatildeo e gesticula de espanto ao perceber que foi roubado eacute o mesmo que

subtrai a feacuteria do chapeacuteu posto diante do personagem-artista de rua

Em Peer Gynt da companhia PeQuod haacute vaacuterios momentos em que atores suspendem

a accedilatildeo de manipular os bonecos para assumirem eles mesmos as vezes da personagem

representada pelo boneco Para casos como o descrito o manipulador enfraquece

deliberadamente a importacircncia do boneco como representante da personagem para tomar a

172

sua frente ainda que a totalidade do espetaacuteculo e certos laccedilos de semelhanccedila (de

caracterizaccedilatildeo de gestual de discurso) permitem agrave plateacuteia natildeo desfazer o elo que torna ator e

boneco partes indissociaacuteveis do conjunto performativo encarregado de mostrar a personagem

Neste ponto ocorre o entrelaccedilamento dos aspectos de percepccedilatildeo da accedilatildeo dos poderes

sobre a cena de animaccedilatildeo O primeiro jaacute abordado foi o aspecto constitutivo da apresentaccedilatildeo

em animaccedilatildeo Passamos agora a nos debruccedilar sobre o aspecto de percepccedilatildeo da cena ou seja

quais forccedilas satildeo postas em jogo de modo a dar maior ou menor centralidade da cena para o

boneco ou para o ator que o opera e que campos essa dinacircmica perceptiva se revela mais

significativa

Neste momento do estudo a noccedilatildeo de soberania sobre a cena de animaccedilatildeo passa a ser

considerada como a capacidade de angariar a atenccedilatildeo do espectador bem como de sustentar e

conduzir as caracteriacutesticas esteacuteticas e discursivas sobre as quais se assenta a cena teatral

Para este caso percebe-se de fato a apresentaccedilatildeo da forma animada sob a forma de

uma disputa constante que se estabelece entre duas forccedilas produtoras de sentido revelada e

dinamizada por efeitos de focalizaccedilatildeo Considerando essa alternacircncia focal por meio da

percepccedilatildeo de uma disputa posta em questatildeo ainda por que a potecircncia produtora de sentido da

percepccedilatildeo sobreposta de ator e forma animada se daacute sem acomodaccedilotildees ou harmonizaccedilotildees

passo a buscar entender essa alternacircncia de centralidade focal e desdobramento corporal da

forma animada entre ator e objeto por meio da tentativa de identificar o que seria um certo

exerciacutecio de poder ou soberania na cena de animaccedilatildeo

As dinacircmicas de apresentaccedilatildeo dessa soberania parecem poder ser percebidas atuando

sobre trecircs diferentes campos de problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre ator e forma ou em

obediecircncia ao rumo terminoloacutegico que essa discussatildeo vem assumindo trecircs diferentes campos

de batalha que poderiam tambeacutem ser tidos como lugares a partir dos quais se produzem

entendimentos e acordos procedimentais para a percepccedilatildeo da relevacircncia cecircnica do emprego da

animaccedilatildeo e da determinaccedilatildeo dos recursos teacutecnico-linguiacutesticos que estabelecem essa

percepccedilatildeo

O primeiro desses lugares eacute aquele onde se determina que estruturas estaacuteveis ou

combinadas representam sujeitos na cena teatral Quais formas e procedimentos constroem e

datildeo a ver algo como uma personagem dramaacutetica na combinaccedilatildeo entre ator e boneco e como

esses dois elementos organizam a dinacircmica de percepccedilatildeo dessas estruturas de discurso a partir

de uma corporalidade desdobrada O segundo campo eacute o lugar onde se trata da interferecircncia

maior ou menor que cada um desses corpos exerce alternadamente sobre a construccedilatildeo da

cena teatral Ou seja como animador e boneco conduzem o espectador no sentido de

173

estabelecer um acircmbito discursivo especiacutefico que contribua em maior ou menor grau para a

instauraccedilatildeo de certa teatralidade Sobre quais bases essa cena se estabelece e como o corpo de

sobreposiccedilotildees instaura uma narrativa teatral especiacutefica de modo a lidar com um tipo de

representaccedilatildeo que se apoacuteia num caraacuteter de heterogeneidade O terceiro campo eacute o que trata

das potecircncias semacircnticas do corpo desdobrado em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees e concepccedilotildees do

sujeito na contemporaneidade Quais metaacuteforas de poder e comportamento essa estrutura

indica e como a sua dinacircmica dialoga com percepccedilotildees atuais acerca de indiviacuteduo sociedade

poder e dominacircncias

Os trecircs campos de disputa de soberania satildeo interdependentes e simultacircneos A

apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo ativa essas trecircs modalidades de disputa que ocorrem

sempre uma a reboque da outra ainda que por vezes apenas uma ou duas delas possam ser

mais claramente percebidas

Se no primeiro capiacutetulo chegamos ao entendimento de que o principal agente da

apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo eacute de fato o boneco ou a forma animada cuja estrutura

percebida desdobrou-se para atrair elementos heterogecircneos ao ponto de incorporar o proacuteprio

ator operador (oculto ou posto agrave vista) nesse momento repomos em jogo essa consideraccedilatildeo

para olhar mais de perto os limites e integraccedilotildees percebidos entre ator e forma animada A

combinaccedilatildeo que se vecirc em cena entre ator e boneco ergue uma estrutura que por dinacircmica e

multiforme que eacute constitui-se no repositoacuterio de tensotildees e disputas que caracteriza o

espetaacuteculo de animaccedilatildeo Outros agentes seratildeo admitidos e teratildeo suas importacircncias

reconhecidas oportunamente mas por hora dediquemo-nos a explicar os campos ndash ou os

tabuleiros tablados ndash de disputa de poder e exerciacutecio de soberania na cena de animaccedilatildeo

174

321 Primeiro campo de batalha o sujeito da cena

De modo geral e um tanto simplificador eacute possiacutevel entender que a forma animada em

cena representa uma personagem dramaacutetica75

O aparato que oculta a visatildeo do manipulador ao

puacuteblico contribui com a funccedilatildeo de oferecer ao espectador o boneco como sendo o que haacute de

sensiacutevel na personagem ou seja a sua integridade A voz que sai de traacutes da empanada pode

ser facilmente atribuiacuteda ao personagem cuja aparecircncia eacute representada pelo boneco A

aceitaccedilatildeo de uma convenccedilatildeo teatral simples permite que se reconheccedila a voz do animador

como pertencente ao boneco que realiza a movimentaccedilatildeo caracteriacutestica agrave pontuaccedilatildeo do ritmo

e das ecircnfases da fala Ou seja numa peccedila de teatro de animaccedilatildeo natildeo resta duacutevida de que o

boneco eacute o que representa a personagem do drama cabendo ao manipulador permitir ao

boneco apresentar-se como tal sem interferecircncias que comprometam a ilusatildeo teatral A loacutegica

parece perfeita mas se pensarmos que basta ao manipulador uma pequena manifestaccedilatildeo de

auto desvelamento tanto intencional como resultado de imperiacutecia para que o entendimento ndash

e tambeacutem a estrutura ndash da personagem que se vecirc sobre a cena se desfaccedila ou ganhe em

complexidade ndash e talvez em interesse Jaacute falamos sobre a impossibilidade do desaparecimento

do ator operador ainda que oculto agora talvez seja vaacutelido tratar um pouco dos resultados

oferecidos por essa impossibilidade

A identificaccedilatildeo de uma personagem dramaacutetica (ainda estamos falando da personagem

dramaacutetica) com o ator que a interpreta eacute isto bem sabemos realizaacutevel em diversos niacuteveis de

aproximaccedilatildeo que pode ir desde a busca pela indiscernibilidade entre personagem e inteacuterprete

(de eficaacutecia discutiacutevel) ateacute o emprego intencional de mecanismos de dissociaccedilatildeo como a

criacutetica ou a narraccedilatildeo Em grande parte dessas praacuteticas interpretativas o que se observa eacute a

busca por um encaixe nunca perfeito de uma personagem sobre um inteacuterprete Eacute bem sabido

que diversas iniciativas artiacutesticas mais recentes tanto no campo da encenaccedilatildeo quanto da

dramaturgia tecircm levado a estaacutegios bem mais criacuteticos a relaccedilatildeo entre inteacuterprete e personagem

conduzindo por vezes agrave elipse ou esvaziamento de uma dessas duas estruturas Basta recordar

a duplicaccedilatildeo das personagens Ela entre Fernanda Torres e Fernanda Montenegro em The

75

Pode-se fazer acerca dessa afirmaccedilatildeo uma espeacutecie de objeccedilatildeo ciricular Ou seja a capacidade de conjuraccedilatildeo

de teatralidade da apresentaccedilatildeo do boneco (mateacuteria discutida neste trabalho em mais de um momento) contribuiu

para que as histoacuterias de suas manifestaccedilotildees se contassem sem reportar uma relaccedilatildeo de proximidade com a do

desenvolvimento de um acervo dramatuacutergico especiacutefico e sobretudo com matrizes textuais que mantivessem

caracteriacutesticas proacuteprias da forma dramaacutetica Por outro lado essa capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade

mencionada potildee em jogo elementos do drama como forma que parecem ser inescapaacuteveis (accedilatildeo em tempo

presente accedilatildeo que se revela em trocas interpessoais tensatildeo entre forccedilas) Daiacute decorre que a apresentaccedilatildeo do

boneco teatral natildeo precisa estar apoiada em um texto dramaacutetico apesar de ndash ou em parte por que ndash a sua

apresentaccedilatildeo por si conteacutem evidentes elementos de dramaticidade

175

Flash and Crash Days de Gerald Thomas ou mesmo aludir agrave escrita de Valeacutere Novarina que

em textos como O animal que habita o tempo ou Diante da Palavra escreve num fluxo

discursivo contiacutenuo lidando com a dinacircmica textual e o vocabulaacuterio de modo a afastar-se o

suficiente da escritura dramatuacutergica consagrada para que se perca de vista a presenccedila de falas

de sujeitos falantes e de accedilatildeo dramaacutetica

Com o teatro de animaccedilatildeo o que ocorre eacute que a as accedilotildees de desvelamento do

manipulador que podem muitas vezes ocorrer a partir da mera atestaccedilatildeo de que natildeo haacute de sua

parte a possibilidade de um alheamento absoluto da accedilatildeo do espetaacuteculo abrem espaccedilo para

que o meio de expressatildeo da personagem dramaacutetica seja uma estrutura criticamente

desdobrada que pode muitas vezes ao mesmo tempo produzir pulverizaccedilotildees da personagem

como quando separa voz e corpo ou accedilatildeo e forma como criar reverberaccedilotildees de figuras

duplicadas ou desdobradas em diferentes possibilidades simultacircneas

Em Terceira Margem adaptaccedilatildeo do grupo Munganga (direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro) ao

conto A terceira margem do rio de Guimaratildees Rosa a encenaccedilatildeo usava figuras estaacuteticas algo

semelhantes agraves carrancas de barcos do rio Satildeo Francisco para representar alguns dos

personagens do conto principalmente o do Pai aquele que decide viver sobre uma canoa

sendo levado pelo rio O estatismo das esculturas de madeira carregadas pelo ator em algumas

situaccedilotildees duplicava para o espectador a percepccedilatildeo dessas personagens que entendiam tanto a

forma e a presenccedila dos objetos esculpidos como algumas reaccedilotildees e falas do elenco como

vestiacutegios a serem combinados para produzir a percepccedilatildeo de uma estrutura participante da accedilatildeo

do conto Em espetaacuteculos como O Velho da Horta da Cia PeQuod Homem Voa da Cia

Catibrum e grande parte do repertoacuterio da Cia Truks a leitura que o puacuteblico faz da personagem

eacute uma combinaccedilatildeo da forma e dos movimentos do boneco com as falas e reaccedilotildees dos atores

que os operam e vocalizam O olhar do espectador oscila sem traumas entre o boneco e a

expressatildeo dos atores produzindo com essa combinaccedilatildeo um entendimento da personagem

Essa dinacircmica que por vezes pulveriza e por outras duplica e faz reverberar a

personagem produz um determinado nuacutemero de aacutereas de atrito e campos de disputa entre

boneco e ator que satildeo perceptiacuteveis tanto nos processos de construccedilatildeo do espetaacuteculo quanto

nos modos como as personagens satildeo recebidas pela audiecircncia

Quando aqui se defende a animaccedilatildeo como um estatuto relacional estabelecido entre

ator-manipulador e boneco o se que pretende afirmar eacute que haacute uma maneira sutil de proceder

no contato que se daacute entre os dois que produz efeitos claramente perceptiacuteveis e que nem

sempre podem ser obtidos por emprego de teacutecnicas evidentes Na questatildeo de dominacircncia que

trata da conduccedilatildeo da personagem pode-se notar que reside em pequenos ajustes

176

procedimentais e que natildeo se relacionam apenas com procedimentos claros muito menos no

emprego da forccedila sugestiva de recursos teacutecnicos como iluminaccedilatildeo e sonoplastia para que a

cena de Em Concerto dos Contadores de Estoacuterias na qual se mostra uma jovem iacutendia

banhando-se tenha como tema central o banho da jovem ao inveacutes de algueacutem que movimenta

um boneco Existe a construccedilatildeo de um estado de atuaccedilatildeo em relaccedilatildeo que cria por forccedila de sua

dinacircmica particular separaccedilatildeo e indiscernibilidade entre os sujeitos mostrados por boneco e

ator que se oferecem agrave percepccedilatildeo num fluxo de alternacircncias contiacutenuas Em discussatildeo

conduzida num intercacircmbio entre as companhias PeQuod e Caixa do Elefante chegou-se a

definir o trabalho do ator em formas animadas a partir da proposiccedilatildeo de ldquodizer com ele [o

boneco]rdquo76

Em A chegada de Lampiatildeo no Inferno da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo a figura

miacutetica do catildeo de trecircs cabeccedilas Ceacuterbero guardiatildeo da porta do inferno eacute feito pela integraccedilatildeo

corporal de trecircs atores cada um manipulando uma das cabeccedilas do catildeo (Figura 89) O efeito eacute

anti ilusionista posto que os atores satildeo postos agrave mostra sendo possiacutevel inclusive e apesar da

dinacircmica de deslocamento integrado que empregam discerniacute-los individualmente Mas a

personagem que jaacute se notabiliza pela forma composta das trecircs cabeccedilas se percebe tambeacutem

pelas expressotildees dos atores e por sua corporalidade combinadas pelos trecircs atores e pela

integraccedilatildeo entre corpo humano e boneco

No exemplo jaacute mencionado do Don Doro Hyaki Puppet Theatre (Figura 90) o efeito

da combinaccedilatildeo entre ator e boneco alterna a percepccedilatildeo em separado do guerreiro banido e da

amante que o segue para o exiacutelio com o de um fardo uniforme representando em si o estatuto

do banimento O ator Oichi Okamoto atua com uma maacutescara e um boneco em tamanho

natural que representa em princiacutepio uma mulher (a amante do fragmento de drama Nocirc

abordado no espetaacuteculo) Seu modo de operar a boneca metaforiza por meio do ato de

manipulaccedilatildeo a conduccedilatildeo feita pelo homem agrave mulher no contexto histoacuterico-social especiacutefico

Mas o ator e bailarino japonecircs se vale da dificuldade de distinccedilatildeo entre os corpos para

produzir um golpe cecircnico significativo Proacuteximo ao final do espetaacuteculo as maacutescaras satildeo

retiradas de modo a mostrar que num determinado momento da accedilatildeo os papeacuteis se inverteram

Diferentemente do arranjo do iniacutecio do espetaacuteculo no momento da retirada das maacutescaras

pode-se ver que quem estava desempenhando a mulher era Okamoto e que a maacutescara do

guerreiro estava no boneco Quando a troca se deu natildeo se sabe Sem mencionar as pertinentes

76

Postagem de 9 de marccedilo de 2011 do blog Intercacircmbio PeQuod e Caixa do Elefante

(httpcaixadoelefantepequod2011blogspotcom) como parte das atividades propostas pelo Programa Rumos

Itauacute Cultural

177

Figura 88 Ceacuterbero PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no Inferno

Foto Simone Rodrigues

Figura 89 Don Doro Hyaky Puppet Theatre

Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2008

178

implicaccedilotildees de criacutetica comportamental suscitadas por esse efeito o que a periacutecia corporal e

manipulativa de Okamoto nos aponta eacute a possibilidade de se criar um efeito eficiente de

indiscernibilidade entre operador e forma por meio de uma dinacircmica integrativa de atuaccedilatildeo

Ainda que se possa argumentar que a apresentaccedilatildeo de Okamoto possa ser resultado de uma

aplicaccedilatildeo rigorosa de recursos teacutecnicos e trabalho corporal objetivo sem que haja a

necessidade de construir uma relaccedilatildeo especiacutefica entre ator e objetos no interior do ato

performativo esta resta como uma demonstraccedilatildeo de rompimento hieraacuterquico e funcional entre

ator e forma animada na qual natildeo eacute possiacutevel reconhece-los por meio de posturas ocupaccedilotildees e

atitudes De fato o que Okamoto faz eacute em grande parte fazer com que seu corpo associado

aos apecircndices de vestimenta e mascaramento ndash e na proacutepria incapacidade de perceber onde

comeccedila o seu corpo e o do boneco ndash seja tratado como parte ou todo de uma forma animada

O corpo do ator operador de formas posto agrave vista natildeo estaacute de todo livre da atuaccedilatildeo de forccedilas

de manipulaccedilatildeo

Outro exemplo que pode nos ajudar estaacute em um dos viacutedeos para Internet da seacuterie

Metamorphosen idealizado e executado pela performer marionetista e encenadora alematilde Ilka

Schoumlnbein77

(Video 10) Nele a artista que produziu seus materiais a partir de moldes de seu

proacuteprio corpo mostra em um camarim de teatro uma crianccedila crescida e deformada (ou uma

anatilde) sentada no colo de uma mulher de postura hieraacutetica com o rosto coberto por uma espeacutecie

de maacutescara neutra feito de modo rude a ponto de revelar mesmo de longe uma tez bastante

irregular A meninaanatilde usa um velho vestido amarelado e puiacutedo O modo como se posta no

colo da figura estaacutetica e enlutada sugere dependecircncia ou incapacidade Ao som de uma

cantiga em que uma voz infantil canta acompanhada por um acordeatildeo ou realejo a figura

infantilizada faz evoluccedilotildees entre o luacutedico e o grotesco sem que a mulher que a sustenta esboce

qualq uer reaccedilatildeo Ateacute que num determinado momento um meneio de cabeccedila feito pela

mulher vestida de preto eacute acompanhado por uma reaccedilatildeo de repreensatildeo e medo da menina que

solicita e recebe um afago no encontro dos dois rostos

Pouco tempo de observaccedilatildeo nos permite perceber que a atriz veste a maacutescara em seu

rosto e opera a cabeccedila da menina com uma das matildeos Grande parte do que nos faz ver seus

corpos como sendo distintos estaacute no tom e na cobertura da roupa Os peacutes que balanccedilam sem

tocar o chatildeo satildeo atribuiacutedos agrave menina mas Schoumlnbein se vale dos complementos corporais e

das roupas para produzir a sensaccedilatildeo de duas presenccedilas distintas Aqui tambeacutem natildeo se percebe

uma relaccedilatildeo clara entre operador e boneco embora se possa admitir que haacute uma posiccedilatildeo que

77

Viacutedeo disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=wU_tSc51_ksampfeature=relatedgt

179

define um estatuto hieraacuterquico e uma situaccedilatildeo de controle entre as duas figuras da cena Ainda

que se possa argumentar que a impressatildeo das presenccedilas sobre a cena estatildeo solidamente

apoiadas sobre o aparato construiacutedo e nos jogos de dissimulaccedilatildeo do corpo da artista natildeo se

pode negar que a percepccedilatildeo dos sujeitos da cena realizam-se em plenitude no ato e na

potecircncia de relaccedilatildeo entre ambos

O sujeito da cena no teatro de animaccedilatildeo eacute por aquilo que se oferece agrave percepccedilatildeo do

espectador o resultado de uma seacuterie de acordos (e subversotildees) bastante sutis eminentemente

relacional Essa presenccedila qualificada surge portanto subordinada agraves relaccedilotildees que com ela se

estabelece em um fluxo do que determino como sendo disputas e eacute isso o que a define e

molda como fenocircmeno da cena teatral A atribuiccedilatildeo do sujeito da cena sobre uma estrutura

corporal estaacutevel sucumbe ante a variedade de combinaccedilotildees de forma e de forccedilas de atenccedilatildeo e

relaccedilatildeo que podem envolver natildeo apenas boneco e ator mas qualquer recurso produtor de

sentido sobre a cena teatral

180

322 Segundo campo de batalha o lugar do teatro

Natildeo podemos jamais aplicar os mesmos padrotildees ao ser

humano e ao boneco O boneco natildeo pode nunca viver a

menos que represente O homem natildeo jamais representar a

menos que viva

Alexandre Bakshi

Tillis resgata uma noccedilatildeo apresentada pelo artista de animaccedilatildeo norte americano Basil

Milovsorof de que o boneco seria possuidor de uma ldquoteatralidade inatardquo (1992 p 65 67) e a

emprega para discutir bonecos cujas apresentaccedilotildees satildeo de tal maneira esquemaacuteticas e simples

que seria difiacutecil reconhecer nelas qualidades de apresentaccedilatildeo teatral Seriam bonecos feitos

para executar uma accedilatildeo determinada como jogar malabares evoluir em barras agraves quais estatildeo

presos ou movimentar seus corpos de modo a sugerir uma danccedila78

Tillis acompanha

Milovsorof no entendimento de que toda apresentaccedilatildeo com boneco encerra devido agrave presenccedila

do boneco um caraacuteter inapelaacutevel de teatralidade que se daacute por meio de uma relaccedilatildeo que esta

estabelece com alguns elementos da forma dramaacutetica

Em todos os casos a tentativa envolve a representaccedilatildeo de uma ilusatildeo

Assim mesmo se o contexto da representaccedilatildeo envolve um malabarista vivo

em oposiccedilatildeo ao teatro a pretensa vida do boneco malabarista se daacute em uma

personagem de um malabarista vivo Ainda que seja apenas um ldquoobjetordquo

seus signos abstratos nesse caso os movimentos caracteriacutesticos do

malabarismo levam a plateia a imaginar que este possui a ldquovidardquo de um

malabarista Essa pretensatildeo cria ao menos um tipo rudimentar de drama ldquoa

apresentaccedilatildeo de um malabaristardquo (TILLIS 1992 p 68 traduccedilatildeo minha)

No momento em que faz essa afirmaccedilatildeo Tillis estaacute num esforccedilo de reconhecer a existecircncia do

efeito de ldquovisatildeo-duplardquo uma variante da opalescecircncia jurkowskiana em toda apresentaccedilatildeo

com bonecos79

e parece apoiar sua argumentaccedilatildeo sobre um caraacuteter de representaccedilatildeo que

conferiria a esse ldquofaz-de-contardquo certo estatuto ficcional ou em suas palavras ldquode uma ilusatildeordquo

Jurkowski amplia a discussatildeo acerca da teatralidade inata da forma animada ao

justificar a descontinuidade de uma produccedilatildeo literaacuteria para a cena de bonecos devido ao fato

de que este natildeo precisa se apoiar numa escrita dramatuacutergica convencional para produzir uma

situaccedilatildeo teatral uma vez que ldquocriar vida com o auxiacutelio de marionetes toca de uma certa

maneira a ficccedilatildeordquo (1991 p3)

78

Bons exemplos de manifestaccedilotildees mais recentes dessa forma de apresentaccedilatildeo satildeo os artistas de bonecos de fios

norte americanos Frank Paris (1914-1984) (Video 11) e Philip Huber (Figura 10) Apresentaccedilotildees sob a forma de

espetaacuteculos de variedades com bonecos geralmente executando nuacutemeros de canto e danccedila Acerca de Paris haacute

um viacutedeo de uma de suas performances em lthttpwwwyoutubecomwatchv=rJ0u6sfuO-Yampfeature=relatedgt

Huber tem viacutedeos e imagens de seus trabalhos postados no website lthttpwwwhubermaironetescomgt 79

Cabe aqui a recordaccedilatildeo de que Tillis natildeo emprega em seu estudo termos ampliados como forma animada

preferindo ao inveacutes disso propor uma ampliaccedilatildeo da definiccedilatildeo da palavra puppet para compreender outros

arranjos e consideraccedilotildees

181

Figura 90 Malabarista de fio

Fonte (Puppetry International no 9

Strafford UNIMA-US 2001 p44)

Figura 91 Maneacute Gostoso

Fonte (httpwwwartesolorgbr)

Esse boneco comum como brinquedo popular faz evoluccedilotildees

sobre os bastotildees como se fosse um ginasta ou acrobata

182

Podemos ampliar essa discussatildeo com a ajuda dos conceitos de opalizaccedilatildeo de

Jurkowski e de visatildeo-dupla de Tillis ao afirmar que uma apresentaccedilatildeo com formas animadas

eacute capaz de conjurar teatralidade por meio de recursos que tocam necessariamente a tensatildeo da

percepccedilatildeo simultacircnea do boneco como objeto inerte e como vida imaginada Essa capacidade

jaacute foi comentada em nosso primeiro capiacutetulo e pode nesse momento ter sua apreciaccedilatildeo

ampliada por meio da consideraccedilatildeo de que a simultaneidade perceptiva da forma opalizada do

boneco produz mesmo quando a apresentaccedilatildeo se limita a reproduccedilatildeo de uma danccedila uma

dinacircmica perceptiva criacutetica que guarda algumas caracteriacutesticas de dramaticidade das quais a

mais importante eacute a disposiccedilatildeo de um embate tenso e direto entre as duas instacircncias de

ontologia dispostas simultaneamente pela apresentaccedilatildeo do boneco Essa questatildeo eacute capaz de

ser ampliada de modo consideraacutevel se entendermos a forma do boneco com algo possuidor de

uma discursividade peculiar e potente

O antagonismo dramaacutetico nesse caso migra para o interior de forccedilas em embate postas

em jogo ndash e realizadas em grande parte nos sentidos do espectador ndash nas contradiccedilotildees

dispostas pela aparecircncia de autonomia que a apresentaccedilatildeo do boneco teatral faz sugerir Pode-

se afirmar que ao ator vivo faz-se necessaacuteria certa quantidade de condiccedilotildees e caracteriacutesticas

para que a sua atuaccedilatildeo possa ser entendida como espetacular ao boneco basta apresentar o

misteacuterio e a maravilha do encadeamento de passos ou a impressatildeo de deter sua atenccedilatildeo sobre

algo

Entendemos assim que o teatro de animaccedilatildeo possui uma capacidade inata de conjurar

certa espetacularidade segregando tempo e espaccedilo de modo a instaurar a partir da

apresentaccedilatildeo do boneco a cena teatral De fato essa teatralidade inata pode ser tambeacutem

bastante afetada pela mobilidade relacional e pelas dinacircmicas focais que se verificam entre

ator e objeto Variaccedilotildees dessas relaccedilotildees possiacuteveis podem afetar a percepccedilatildeo do espaccedilo o

entendimento da trama exposta o sentido de representaccedilatildeo e os focos de narratividade do

espetaacuteculo Passemos agora a explorar algumas das maneiras pelas quais o teatro de bonecos

explora recursos especiacuteficos de teatralidade e como a dinacircmica relacional do ator pode

dinamizar e refletir-se sobre a constituiccedilatildeo e percepccedilatildeo desses recursos

Steve Tillis encaminha uma reflexatildeo acerca da capacidade que o boneco possui de

evocar e dar corpo a realidades fantaacutesticas Dentre os autores que menciona chama atenccedilatildeo

um fragmento de texto de Michael Malkin no qual se apresenta um conceito caro ao teatro de

animaccedilatildeo

O teatro de bonecos desempenhou um papel vital no desenvolvimento do que

pode ser considerado o conceito dramaacutetico de impossiacutevel plausiacutevel [Este] eacute o elo

183

entre o mundo real e o reino da pura fantasia Eacute nesse sentido que o que o teatro

de bonecos representa um conceito teatral baacutesico representa a imaginaccedilatildeo

dramaacutetica em uma de suas formas mais fluidas (MALKIN apud TILLIS 1998

p37)

A ideacuteia apresentada por Malkin de ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo eacute um recurso valioso para

dar credibilidade a accedilotildees executadas por bonecos tanto as mais realistas quanto as mais

fantaacutesticas e tambeacutem eacute empregado em algumas linguagens fiacutesicas de expressatildeo como a

miacutemica Trata-se a princiacutepio de simular subordinaccedilotildees de natureza fiacutesica atuando sobre corpos

sobre as quais elas natildeo se aplicam A aplicaccedilatildeo desse princiacutepio domina grande parte dos

processos de educaccedilatildeo treinamento e ensaio de atores-manipuladores que precisam lidar

como o boneco como se este estivesse sujeito por exemplo agrave lei da gravidade Para fazer um

boneco saltar por exemplo a simples retirada de seus peacutes do chatildeo e a sua movimentaccedilatildeo ateacute o

ponto de chegada natildeo satildeo suficientes para deixar sobre a plateacuteia a impressatildeo de que o que

assistiram foi um salto Faz-se necessaacuterio que o corpo do boneco se aproxime do chatildeo com

uma dobra dos joelhos dando a impressatildeo de que eacute necessaacuterio tomar impulso que a

decolagem acompanhe o esticamento de pernas e tronco mediado pelo movimento de braccedilos

caracteriacutestico da mediaccedilatildeo de equiliacutebrio que fazemos para saltar e finalmente aterrissar com

os peacutes adiante do corpo seguido por nova dobra dos joelhos e aprumo final do corpo O

boneco manipulado natildeo estaacute submetido agrave gravidade como o corpo humano estaacute mas imitar

essa subordinaccedilatildeo com o boneco garante natildeo apenas a inteligibilidade de suas accedilotildees mas

sobretudo uma qualidade de atenccedilatildeo dispensada pelo espectador que segundo Tillis eacute uma

das causas principais pela atraccedilatildeo especial que a apresentaccedilatildeo com bonecos exerce sobre a

plateacuteia Quanto mais simples e limitado em movimentos eacute o boneco como eacute o caso da luva a

aplicaccedilatildeo desse princiacutepio acompanha a produccedilatildeo de efeitos de grande comicidade Mas o

conceito de impossiacutevel plausiacutevel natildeo se aplica apenas agrave mimetizaccedilatildeo de atitudes realiacutesticas Eacute

quando tratamos de situaccedilotildees de fato fantaacutesticas quando as atitudes do boneco extrapolam os

limites do corpo humano eacute que se obtecircm as impressotildees mais intensas sobre a plateacuteia Nesses

casos o impossiacutevel plausiacutevel consiste na aplicaccedilatildeo de alguns procedimentos de subordinaccedilatildeo agrave

fiacutesica que ainda que natildeo bastem para identificar como humanamente possiacutevel que um homem

voe ou que seja atingido por um cofre sem perder a vida imprimam na atitude corporal do

boneco um certo envolvimento com o evento fantaacutestico Eacute preciso afinal tomar impulso e

erguer os braccedilos antes de levantar vocirco

O espetaacuteculo Sangue Bom da Cia PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo apresenta alguns bons

exemplos de aplicaccedilatildeo do impossiacutevel plausiacutevel sobretudo nas passagens abertamente

184

inspirada em desenhos animados Num dado momento o Caccedilador tenta aprisionar o Vampiro

jogando uma rede sobre ele Desastradamente o Caccedilador acaba prendendo a si mesmo e na

tentativa de livra-se daacute alguns passos para traacutes saindo assim de cima do balcatildeo que lhe faz as

vezes de chatildeo Sem saber que perdeu o apoio paira suspenso no ar por alguns instantes ateacute

que se daacute conta de que natildeo haacute chatildeo sob seus peacutes Essa situaccedilatildeo impossiacutevel eacute seguida por um

movimento intencionalmente realizado pelos manipuladores do boneco que representa o

Caccedilador de fazer o tronco do boneco ultrapassar seus braccedilos que seguem como que erguidos

devido a observacircncia do fato de que em uma queda estendida os braccedilos por serem mais leves

que o tronco caem por uacuteltimo

Tillis natildeo demora a afirmar que o impossiacutevel plausiacutevel natildeo eacute um conceito exclusivo da

animaccedilatildeo apesar de ser um princiacutepio essencial para sua estruturaccedilatildeo teacutecnica e uma das

pedras fundamentais da linguagem que usa o fantaacutestico como um de seus temas centrais e

que emprega de grande apuro teacutecnico e esforccedilo de atenccedilatildeo para representar a vida mais

corriqueira Natildeo eacute de se admirar portanto que para o teatro de animaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma

ilusatildeo seja algo tatildeo central para a linguagem e um campo onde se trafega entre combinaccedilotildees

complexas pois que a simples instauraccedilatildeo de uma impressatildeo de autonomia eacute suportada e

atravessada por diversas forccedilas de instabilizaccedilatildeo o resultado de uma elaboraccedilatildeo da qual

participam diversas forccedilas concorrentes

O impossiacutevel plausiacutevel eacute um recurso por meio do qual o teatro de animaccedilatildeo dispotildee

diante do espectador uma realidade espetacular posta em destaque Amplia assim a percepccedilatildeo

simultacircnea da visatildeo-dupla na accedilatildeo do boneco teatral para o ambiente ampliado dos provaacuteveis

limites da encenaccedilatildeo com seus coacutedigos e sua combinaccedilatildeo mais sofisticada de elementos de

teatralidade Vemos dessa maneira essa percepccedilatildeo opalizada figurar tambeacutem em recursos de

ordem de encenaccedilatildeo e dramaturgia

A obra de Roger-Daniel Bensky acerca da dramaturgia francesa para marionetes

(1969) aponta a existecircncia de duas correntes temaacuteticas dominantes em espetaacuteculos com

bonecos a fantasia (feeacuterie) e a caricatura social Ambos os casos lidam de modo bastante

pronunciado com a suplantaccedilatildeo de limites da realidade seja por meio da superaccedilatildeo de seus

limites ou pela deformaccedilatildeo constituindo-se em terreno vaacutelido para o emprego de um

elemento teatral cuja percepccedilatildeo se desdobra entre a evocaccedilatildeo agrave vida e o pertencimento ao

mundo dos objetos A apresentaccedilatildeo com o boneco segrega um espaccedilo que se afirma

eminentemente teatral na medida exata em que transforma os signos de realidade que busca

representar para dentro de um acircmbito de inescapaacutevel simbolismo Em obra mais recente o

mesmo Bensky aponta

185

Contudo podemos dizer de maneira geral que por oposiccedilatildeo a uma

representaccedilatildeo realista ou ldquofisioplaacutesticardquo da natureza o siacutembolo comporta

uma representaccedilatildeo ldquoideoplaacutesticardquo do real O siacutembolo exprime a realidade por

meio de uma transfiguraccedilatildeo do ser em signo A marionete devido a sua

plasticidade e sua capacidade transformadora enquadra-se claramente dentro

de tais criteacuterios Podemos assim formular uma primeira lei esteacutetica o teatro

de bonecos permite uma representaccedilatildeo simboacutelica da realidade (BENSKY

2000 p 28 ndash traduccedilatildeo minha)

Curioso eacute notar que essa realidade alterada destacada simboacutelica natildeo se instaura se

natildeo por meio de uma dinacircmica de visatildeo-dupla ou seja da percepccedilatildeo simultacircnea de

plausibilidade e impossibilidade Uma realidade posta em crise desde seu interior pelas

forccedilas que a constituem Os mesmos fundamentos que datildeo forma ao esse domiacutenio

ldquoideoplaacutesticordquo mencionado por Bensky satildeo aqueles que o revelam como uma impossibilidade

ou quem sabe como uma realidade circunscrita pelos limites da representaccedilatildeo teatral

Haacute nessa dinacircmica de crenccedila e descrenccedila um elemento central apontado por Bensky e

Balardim que eacute absolutamente impossiacutevel de ser ignorado O fundamento primordial dos

campos de batalha aqui arrolados que eacute a percepccedilatildeo do espectador Natildeo seraacute possiacutevel

prosseguir na avaliaccedilatildeo das condiccedilotildees de segregaccedilatildeo do real na dinacircmica relacional entre ator

e boneco sem inserir na questatildeo a disponibilidade agrave percepccedilatildeo do puacuteblico

Segundo Bensky ldquodevido a sua irrealidade primitiva a marionete poderaacute apenas

adquirir o poder de evocar o real graccedilas a uma cumplicidade ativa por parte do espectadorrdquo

(idem p36) Ou seja a potecircncia significativa da forma animada natildeo se realiza por forccedila

exclusiva das instacircncias produtoras do espetaacuteculo e depende que o seu puacuteblico aceite o jogo

proposto Cabe ao artista ndash e agrave forma ndash lanccedilar matildeo de recursos de atraccedilatildeo e esperar poder

sugerir uma cumplicidade criativa

Balardim aponta a existecircncia de uma predisposiccedilatildeo ao jogo que parte do espectador

mas ressalta que essa predisposiccedilatildeo deve ser incentivada por recursos de induccedilatildeo e

direcionamento da atenccedilatildeo presentes nos modos e qualidades de operaccedilatildeo da forma animada

Se imaginarmos que tais recursos de incentivo agrave predisposiccedilatildeo do espectador repousam

evidentemente sobre caracteriacutesticas de periacutecia manipulativa mas tambeacutem sobre modos de

conduccedilatildeo da narrativa espetacular (dos quais alguma periacutecia manipulativa faz parte mas que

pode variar em termos de direcionamento de atributos teacutecnicos de acordo com caracteriacutesticas

do espetaacuteculo e da maneira como a forma animada nele se insere) estamos levando em

consideraccedilatildeo que o trabalho de instauraccedilatildeo de realidade segregada especiacutefica em determinado

espetaacuteculo de animaccedilatildeo requer do ator a accedilatildeo de qualidades manipulativas natildeo apenas da

forma animada mas de todos os elementos que compotildeem a cena Mas o que isto equivaleria a

186

dizer a essa altura da reflexatildeo Que o ator em teatro de animaccedilatildeo dispensa sensibilidade e

teacutecnica manipulativa a todos (ou quase todos) os componentes da representaccedilatildeo ou que a

cena de animaccedilatildeo seria aquela em que todos os componentes da representaccedilatildeo conteacutem de

certa forma alguma qualidade de forma animada

Mas em que niacutevel a participaccedilatildeo do ator-manipulador pode vir a interferir na conduccedilatildeo

dessa narrativa ideoplaacutestica da cena de animaccedilatildeo e de que maneiras a sua participaccedilatildeo

qualifica a segregaccedilatildeo do real que se opera Ora fica claro desde jaacute que a percepccedilatildeo do ator

por parte da plateacuteia necessariamente impotildee caracteriacutesticas agrave narrativa espetacular que

forccedilosamente o incorpora agrave sua estrutura Por exemplo um manipulador que interfira na accedilatildeo

da cena de bonecos por efeito de uma imperiacutecia tem grande possibilidade de deformar a accedilatildeo

dramaacutetica de maneira indesejaacutevel alterando tambeacutem o modo como a plateacuteia percebe e aceita o

espetaacuteculo O efeito provocado por uma interferecircncia mal calculada pode vir a se refletir de

diversas formas sobre o jogo de crenccedila e descrenccedila que se estabelece entre a plateia e a cena

Os arranjos relacionais que se estabelecem em cena entre manipulador e boneco

assumem grande influecircncia sobre o modo de recepccedilatildeo do espetaacuteculo Assim sendo um

espetaacuteculo que lide com a ocultaccedilatildeo dos manipuladores e opte por natildeo envolvecirc-los na trama

central da peccedila tende a lidar com a conduccedilatildeo de uma narrativa com alguma estabilidade ainda

que a jaacute comentada inevitabilidade na consideraccedilatildeo da presenccedila do ator operador mesmo

oculto encaminhe a percepccedilatildeo do espectador a entender as accedilotildees de bonecos e atores como

sendo distintas e simultacircneas Uma vez posto agrave mostra como ocorre com espetaacuteculos de

manipulaccedilatildeo direta ou em espetaacuteculos que apresentam uma combinaccedilatildeo de participaccedilotildees de

atores e bonecos o ator passa a integrar a cena de modo a poder assumir outras possibilidades

de interaccedilatildeo com a accedilatildeo espetacular e com as formas animadas No espetaacuteculo Sangue Bom

da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo na qual ainda que natildeo se perceba uma interaccedilatildeo entre

manipulador e boneco que sugira uma dinacircmica de contracenaccedilatildeo haacute no figurino e na atitude

dos manipuladores a montagem de um dinacircmica relacional que se daacute entre os personagens

representados pelos bonecos e a sugestatildeo de que os manipuladores formam uma equipe de

estivadores medievais vestidos em trapos que agem como serviccedilais sinistros da accedilatildeo da peccedila

O espetaacuteculo natildeo faz dialogarem ou relacionarem-se diretamente atores e bonecos mas a

disposiccedilatildeo simultacircnea das accedilotildees de bonecos e atores operadores eacute fundamental para

caracteriacutesticas do espetaacuteculo no que diz respeito a questotildees de ritmo tensotildees apresentaccedilatildeo de

personagens e recursos de comicidade

Diversas possibilidades de relaccedilatildeo se abrem a partir do partido cecircnico do animador

aparente O que se pode perceber no entanto eacute que a opccedilatildeo por tal partido cecircnico torna mais

187

agudas as questotildees de soberania mencionadas neste capiacutetulo que precisam ser vistas com

atenccedilatildeo uma vez que alteram consideravelmente a maneira como se percebe a cena de

animaccedilatildeo e assim demandam atitudes calculadas no sentido de preservar as ecircnfases

pretendidas ao espetaacuteculo

O Grupo Sobrevento possui um espetaacuteculo para crianccedilas chamado Cadecirc meu heroacutei

Nele se usa um texto do argentino Horacio Tignanelli e eacute apresentado com bonecos de luva

aproximados aos da teacutecnica de luva chinesa80

A histoacuteria de como a Princesa Colherzinha de

Mel busca se livrar das garras de seu algoz e apaixonado Baratildeo recorrendo ateacute mesmo agrave

Internet para contratar heroacuteis de encomenda eacute mostrada sobre uma grande estrutura de

empanadas combinadas que descreve as ameias e janelas do castelo do vilatildeo O espetaacuteculo

lida com os atores operadores ocultos atraacutes da estrutura cenograacutefica e natildeo se estabelece

qualquer tensatildeo de identidade entre boneco e operador ateacute o final do espetaacuteculo quando a

Princesa finalmente se sensibiliza aos apelos amorosos do Baratildeo Assim que selam seu

compromisso os dois bonecos entatildeo se comprometem a promover o encontro entre duas

pessoas que vivem sob eles e que tambeacutem demonstram certa amargura solitaacuteria Saem entatildeo

detraacutes das empanadas os bonecos com os manipuladores que os vestem Luiz Andreacute

Cherubini e Sandra Vargas O diaacutelogo que se segue passa a confundir os limites entre

manipulador e boneco natildeo se pode mais ter total clareza de qual das partes emite a fala

proferida alternadamente pelos dois atores pois que boneco e manipulador confundem-se no

exato momento em que a apariccedilatildeo dos dois atores tambeacutem produz um desmonte do conto de

aprisionamento da donzela Passamos assim a ter uma apresentaccedilatildeo que prima por um

encontro mais proacuteximo entre atores e puacuteblico deixando o conto de fadas no longiacutenquo de uma

lembranccedila ou sugestatildeo Se direcionarmos a atenccedilatildeo aos bonecos animados permitimos que

estes habitem um espaccedilo agrave parte de uma ficccedilatildeo envolvente e maravilhosa mas parece que dar

a cena ao ator eacute tambeacutem transformaacute-la no caso do teatro de animaccedilatildeo num espaccedilo de

dissociaccedilatildeo ficcional uma encruzilhada de possibilidades de envolvimento que exacerba o

caraacuteter luacutedico e o pacto com a plateacuteia para o estabelecimento da verdade da cena Eacute claro que

a cena de animaccedilatildeo natildeo pode se dar ao luxo de fundar sua ficccedilatildeo numa ou noutra

prerrogativas Seu efeito final eacute o resultado do fluxo incessante de dominaccedilotildees e partilhas

produzido pela dinacircmica do organismo performativo combinado

80

Os atores da companhia fizeram um treinamento da referida teacutecnica com o mestre chinecircs Yang Feng A luva

chinesa difere da luva ocidental entre outras coisas em detalhes de sua empunhadura que permite ao boneco

movimentos de giro e salto mais facilmente A luva chinesa eacute conhecida por sua dinacircmica e leveza e por ser

especializada para realizar cenas de lutas e danccedilas acrobaacuteticas aleacutem de permitir ao menos nas matildeos de grandes

mestres como Yang Feng realizar movimentos extremamente especializados e raros para esse tipo de boneco

como o manuseio de pequenos objetos e malabarismos

188

Outro exemplo que serve a esta reflexatildeo eacute o jaacute citado espetaacuteculo Homem Voa da

Companhia Catibrum de teatro de bonecos de Belo Horizonte A montagem emprega

preferencialmente a manipulaccedilatildeo direta sobre balcatildeo em combinaccedilatildeo com projeccedilotildees e

sombras Diferentemente de exemplos anteriormente mencionados nos quais haacute momentos

pontuais de diaacutelogo entre atores operadores e bonecos ou do Sangue Bom da PeQuod em que

a visibilidade dos atores acompanha uma tentativa proposital de incorporaccedilatildeo agrave ambiecircncia do

espetaacuteculo Homem Voa lida com os operadores agrave mostra a partir de uma clara adesatildeo da

neutralidade como estrateacutegia de conduccedilatildeo focal do espetaacuteculo e empregando uma orientaccedilatildeo

procedimental clara sobre a busca por esse efeito que se verifica pelas posturas impassiacuteveis e

atentas dos atores em vestes escuras e com os rostos descobertos e olhos voltados para os

bonecos Curioso eacute notar que ainda que do ponto de vista da orientaccedilatildeo focal o modo de

apresentaccedilatildeo dos atores em Homem Voa encaminhe a

189

atenccedilatildeo do puacuteblico para a accedilatildeo eleita pela encenaccedilatildeo como sendo central esta pode se

caracterizar como uma atitude de renuacutencia agrave participaccedilatildeo no espetaacuteculo Jaacute foi comentado

neste trabalho que tudo aquilo que faz parte do campo perceptiacutevel do espetaacuteculo teatral se

encontra inapelavelmente incorporado a ele Nesse sentido as escolhas de interaccedilatildeo entre ator

e forma natildeo devem ignorar o fato de que nenhum desses elementos eacute capaz de se alijar da

constituiccedilatildeo do espetaacuteculo num fluxo incessante de produccedilatildeo de relaccedilatildeo e sentido Abrir matildeo

dessa prerrogativa eacute cedecirc-la a outrem

Figura 92 Sobrevento Cadecirc meu heroacutei(atores Sandra Vargas e Luiz Andreacute Cherubini)

Fonte (httpwwwsobreventocombrfichatec_heroihtm)

Figura 93 Sobrevento Cadecirc meu heroacutei

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

190

323 Terceiro campo de batalha a potecircncia metafoacuterica

A ideacuteia de que bonecos satildeo criaturas inanimadas controladas

por seres humanos eacute incorreta e a posiccedilatildeo eacute exatamente o

oposto o artista estaacute agrave mercecirc de seus bonecos

Walter Wilkinson

O terceiro dos campos de batalha das relaccedilotildees entre ator e objeto na cena de animaccedilatildeo

eacute talvez o mais vasto e delicado de ser abordado Primeiramente porque a potecircncia de

significaccedilatildeo do boneco ndash do ato da animaccedilatildeo e das condiccedilotildees de animador e animado ndash resulta

em mateacuteria que se assenta nas origens da expressividade com a forma animada antecedendo

em tempo e relevacircncia agraves discussotildees teacutecnico-esteacuteticas que vinham sendo conduzidas ateacute o

momento O poder do teatro de animaccedilatildeo de metaforizar o humano em suas condiccedilotildees

existenciais nas formas que assumem as suas relaccedilotildees nas ligaccedilotildees que este estabelece

coletivamente e no modo como elabora aquilo que lhe eacute inapreensiacutevel talvez seja o motivo

fundamental da existecircncia e longevidade de uma manifestaccedilatildeo artiacutestica que se encarrega de

promover uma imaginaccedilatildeo de vida em algo que se percebe primordialmente como um objeto

Em segundo lugar porque a jaacute mencionada variedade de manifestaccedilotildees em teatro de animaccedilatildeo

produz desdobrando-se em tempo e espaccedilo inuacutemeras leituras da condiccedilatildeo individual do ser

humano assumindo feiccedilotildees antagocircnicas entre si e assentando-se sobre diversas concepccedilotildees e

filosofias

Finalmente a tentativa de entender o quanto os arranjos perceptivos que se

estabelecem entre ator e forma sobre a cena dialogam com concepccedilotildees correntes acerca da

condiccedilatildeo do homem na contemporaneidade e das relaccedilotildees que este estabelece consigo e com

o coletivo lida com um esforccedilo de entendimento de um presente imediato cuja extrema

proximidade o torna esquivo ao olhar dificultando seu entendimento tambeacutem pelo fato de em

diversas ocasiotildees produzir sentidos que se relacionam de maneira nem sempre harmoniosa

entre as suas condiccedilotildees de produccedilatildeo e os seus modos de recepccedilatildeo

Quando pensamos nas formas mais recentes de exploraccedilatildeo cecircnica a partir das relaccedilotildees

possiacuteveis entre ator e forma animada uma figura se sobressai Sobretudo com o emprego do

aproveitamento da expressividade do operador aparente verificamos que os temas para

espetaacuteculos de animaccedilatildeo se desenvolvem apoiados em grande parte sobre recursos de

metateatralidade dos quais podemos considerar como situaccedilatildeo mais comum aquela que

mostra o boneco que adquire consciecircncia dos fios que o susteacutem e variaccedilotildees do mesmo tema

de acordo com diferentes estruturas de bonecos e modos de abordagem

191

O final de Filme Noir da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo mostra uma luta tragicocircmica

entre a personagem central da trama ndash o Detetive ndash e seus manipuladores O espanto

produzido pela revelaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo de boneco e o consequente esforccedilo para libertar-se

das matildeos dos operadores termina com a afirmaccedilatildeo da condiccedilatildeo de objeto do boneco Deixado

inerte sobre uma prateleira as reflexotildees da voz em off que ateacute pouco antes eram atribuiacutedas a

ele selam a ruptura entre o discurso e a forma da personagem na alegaccedilatildeo de que ldquonatildeo passa

de uma voz gravadardquo81

Haacute uma apresentaccedilatildeo com um boneco que representa um pierrocirc operado por fios

atribuiacuteda ao artista de animaccedilatildeo e encenador francecircs Philippe Genty82

apresentada no

programa televisivo do maacutegico britacircnico Paul Daniels83

(Video 12) no qual apoacutes realizar

alguns volteios e caminhadas o boneco percebe a presenccedila do operador e vai aos poucos se

dando conta do cordame que o sustenta e que o movimenta Tal tomada de consciecircncia eacute

seguida por um movimento de cobrir o rosto com o braccedilo e movimentar a cabeccedila indicativo

de choro Em seguida o boneco passa a retirar as cordas nas quais se prende perdendo

sucessivamente o movimento de cada articulaccedilatildeo que solta do fio Ainda que vaacute aos poucos

empilhando-se sobre si mesmo perdendo ao mesmo tempo a capacidade de mover-se e a de

produzir imaginaccedilatildeo de vida o boneco segue em seu intento ateacute que reste sobre o chatildeo de

modo a natildeo permitir a distinccedilatildeo de suas partes corporais Apoacutes o uacuteltimo fio ser retirado a matildeo

do boneco pousa sobre o chatildeo e vira-se indicando sua morte Quando o foco luminoso se abre

o operador natildeo estaacute mais sobre o palco apenas o que antes foi o pierrocirc amontoado

Outro espetaacuteculo que merece menccedilatildeo eacute O princiacutepio do espanto (2002) da Morpheus

Teatro de bonecos O ato realizado com um boneco de manipulaccedilatildeo direta eacute conduzido por

apenas um ator (Joatildeo Arauacutejo) e traz como curiosidade ao fato de se haver desenvolvido uma

pega para a sua boca na parte posterior da cabeccedila do boneco deixando os dois braccedilos livres

para a operaccedilatildeo de um boneco que usualmente requer trecircs condutores O espetaacuteculo eacute

inspirado ndash a ponto de ser citado na apresentaccedilatildeo e figurar no tiacutetulo do espetaacuteculo ndash num

trecho inicial das Elegias de Duiacuteno de Rainer Maria Rilke

Quem se eu gritasse

Entre as legiotildees de Anjos me ouviria

E mesmo se inesperadamente um deles me acolhesse ao coraccedilatildeo

Eu sucumbiria perante sua existecircncia mais forte

81

A referida sequecircncia se encontra descrita e melhor comentada em PIRAGIBE 2007 pp 73-84 82

Atribuiccedilatildeo natildeo confirmada 83

Disponiacutevel na Internet em lthttpwwwyoutubecomwatchv=SphHaiW7fzggt Haacute de fato poucas referecircncias

acerca do viacutedeo sem data ou mesmo uma informaccedilatildeo clara se o operador se trataria de fato de Philippe Genty

Paul Daniels conduziu um programa de maacutegica e variedades exibido pela rede de televisatildeo britacircnica BBC entre

os anos de 1979 e 1994 chamado The Paul Daniels Magic Show

192

Pois o belo natildeo eacute senatildeo o princiacutepio do espanto

Que mal conseguimos suportar

E ainda assim o admiramos pois

Sereno deixa de nos destruir84

O trecho de Rilke eacute tratado de maneira ambiacutegua no espetaacuteculo uma vez que se percebe certa

subversatildeo do entendimento oacutebvio do controle do ator sobre o boneco A partir do momento

em que o boneco manipulado pelo ator entra em cena o vemos criar uma seacuterie de accedilotildees

envolvendo objetos que os cercam inclusive uma relaccedilatildeo comicamente narciacutesica com um

quadro numa moldura que depois eacute dado a ver tratar-se de um espelho O trecho final do

espetaacuteculo aborda o reconhecimento por parte do boneco da presenccedila e da accedilatildeo do operador

conduzindo-o do espanto a uma tentativa violenta de libertaccedilatildeo e culminando em aceitaccedilatildeo e

o reconhecimento por parte do boneco de que sua existecircncia eacute algo forjado O espetaacuteculo

termina com o boneco reagindo de modo a aceitar a morte em conjunto com o ator O uacuteltimo

movimento da peccedila de apagar uma vela eacute executado por ambos e ambos desaparecem

Tanto o boneco movido pelo ator quanto o ator que subordina seu ldquosentido de serrdquo no boneco

que anima

A potecircncia de significaccedilatildeo e envolvimento contida em cenas como as descritas diz

respeito exatamente ao modo como eacute possiacutevel reconhecer alguns aspectos da condiccedilatildeo

humana ou pelo menos de como certas correntes de pensamento abordam questotildees da

condiccedilatildeo humana como algo duramente subordinado a forccedilas que lhe suplantam e das quais

muitas vezes natildeo se tem consciecircncia Aqui o operador natildeo representa o humano que passa a

ser mostrado por meio do estado e do comportamento do boneco Ator e boneco natildeo se

mostram como forccedilas integradas e interdependentes mas como entes separados que ocupam

posiccedilotildees muito definidas em uma cadeia de hierarquia e subordinaccedilatildeo A forccedila controladora

se encontra exterior ao que eacute controlado mas impondo a esse um tipo de dominacircncia para a

qual a tentativa de libertaccedilatildeo equivale agrave renuncia agrave existecircncia A atitude do boneco de romper

com seus fios pode ser entendida tanto como uma afirmaccedilatildeo da liberdade ainda que agrave custa

da proacutepria vida ou uma discussatildeo sobre a inconsciecircncia da humanidade acerca de seus

proacuteprios mecanismos de existecircncia levando-a a investir agraves cegas contra aquilo que a sustenta

De qualquer forma a cena do pierrocirc de fios versa indiscutivelmente sobre uma condiccedilatildeo

humana de subordinaccedilatildeo quase irrecorriacutevel apresentando boneco e operador como indicativos

da fragilidade do arbiacutetrio humano e de forccedilas de determinaccedilatildeo que podem ser de natureza

divina ataacutevica ou social

84

Citaccedilatildeo retirada do programa do espetaacuteculo

193

Figura 94 Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto ator JoatildeoArauacutejo

Fonte (httpwwwmorpheusteatrocombr)

Foto Henrique Sitchin

Figura 95 Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto ator JoatildeoArauacutejo

Fonte (httpwwwmorpheusteatrocombr)

Foto Henrique Sitchin

194

O retrato da vida humana como presa de forccedilas de determinaccedilatildeo contra as quais natildeo

se pode investir animou quase toda a tragediografia grega e estaacute presente em diversos temas

da criaccedilatildeo dramatuacutergica muitas vezes transfigurada sob a forma das relaccedilotildees do homem com

o poder como se vecirc constantemente o indiviacuteduo apresentado por Shakespeare como sendo um

ldquojoguete do destinordquo (Ricardo III Henrique VI McBeth Medida por Medida dentre outras)

mas tambeacutem sob o jugo da complexidade e dos preconceitos das estruturas sociais o que

aparece em diversas obras da literatura romacircntica (Madame Bovary A dama das cameacutelias)

ou mesmo por uma combinaccedilatildeo pouco tolerante de atavismo e regras sociais como estaacute

retratado por Garcia Lorca em obras como Yerma e Bodas de Sangue

Eacute inegaacutevel entatildeo que essa visatildeo da marionete como metaacutefora do homem preso a

determinismos de variadas origens natildeo apenas se mostra em arranjos simples de estruturaccedilatildeo

da cena de animaccedilatildeo como tem claras relaccedilotildees com temas do teatro e da literatura expostos

em algumas obras de qualidade e vigor significativos No entanto natildeo parece que o teatro de

animaccedilatildeo contemporacircneo se satisfaccedila em apenas empregar efeitos de metateatralidade de

relaccedilatildeo entre operador e forma para tratar de um indiviacuteduo aprisionado por cordas de controle

inexoraacutevel Parece isso sim que o recurso ao humor e agrave ironia para tratar da questatildeo da

subordinaccedilatildeo os jogos de indiscernibilidade da origem do controle e a crescente cooptaccedilatildeo do

corpo do ator para dentro da cena de animaccedilatildeo em arranjos de composiccedilatildeo corporal e de

objetificaccedilatildeo do corpo do ator apresenta novas possibilidades de disposiccedilatildeo relacional entre

ator e boneco aleacutem de trazer agrave baila uma discussatildeo menos fatalista e simplificada das relaccedilotildees

do homem com as forccedilas de determinaccedilatildeo

Tillis aponta que as metaacuteforas mais usuais na apresentaccedilatildeo com a forma animada satildeo

aquelas relacionadas a criaccedilatildeo e controle (p 160) Para isso inicia a sua verificaccedilatildeo com os

jogos teatrais observados mesmo no objeto ritual e no brinquedo infantil De fato essas duas

circunstacircncias de emprego da figura assemelhada agrave forma animada (tornada boneco por meio

da sua capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade) lidam cada uma a seu modo com a

apresentaccedilatildeo de um estatuto que determina uma dinacircmica de controle Seja por meio da

ineacutercia que solicita uma atuaccedilatildeo de autoridade e cuidado maternal pelo estatismo hieraacutetico

que suplanta a humanidade e sugere reverecircncia ou outras relaccedilotildees possiacuteveis De fato parece

ser liacutecito supor que a relaccedilatildeo entre objeto e indiviacuteduo nos contextos de jogo ou ritual apenas

sugerem as relaccedilotildees de controle e criaccedilatildeo quando adquire nela mesma alguma caracteriacutestica

teatral seja por meio de componentes espetaculares de evocaccedilatildeo de certa visualidade

sugestiva ou por meio do estabelecimento de uma tensatildeo relacional destacada ao menos em

parte da realidade imediata para repor em jogo identidades e situaccedilotildees

195

A potecircncia metafoacuterica da relaccedilatildeo entre operador e forma torna-se de acordo com a

construccedilatildeo da reflexatildeo deste trabalho num campo de batalha na medida direta em que essa

relaccedilatildeo ao inveacutes de abandonar os temas nucleares de criaccedilatildeo e controle apontados por Tillis

vale-se das variaccedilotildees integrativas entre ator e forma das transformaccedilotildees na consideraccedilatildeo do

boneco teatral e na ampliaccedilatildeo de possibilidades de atuaccedilatildeo do ator operador para ampliar as

formas de abordagem dos temas nucleares com a construccedilatildeo de discursos ambiacuteguos criacuteticos

e mesmo subversivos

Se nos reportarmos a jaacute mencionada Filme Noir da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo

podemos perceber que mesmo apoacutes a mal sucedida tentativa do boneco Detetive de libertar-se

de seus manipuladores sendo posto inerte sobre uma prateleira a voz em off atribuiacuteda agrave

personagem natildeo cessa O texto dito desmonta o fatalismo da accedilatildeo anterior de modo a natildeo ser

mais possiacutevel entender a voz como componente de uma construccedilatildeo estaacutevel de personagem

Por uma convenccedilatildeo qualquer esta voz deve parecer que estaacute na minha

cabeccedila que satildeo os pensamentos de algueacutem Os meus pensamentos Este foco

de luz assim tambeacutem daacute esta impressatildeo E vocecirc aiacute na cadeira acredita nisso

Ei isso eacute uma voz gravada Soacute isso Eacute soacute uma voz gravada85

Nesse sentido o uso da ironia desfaz tanto o aspecto traacutegico da sujeiccedilatildeo do boneco mas

tambeacutem contribui para produzir uma duacutevida acerca da proacutepria integridade da personagem que

passa a ser visto ironicamente como uma combinaccedilatildeo acidental de elementos

O uso da ironia aqui produz natildeo apenas uma espeacutecie de desmontagem subversiva da

condiccedilatildeo traacutegica da sujeiccedilatildeo mas tambeacutem aponta para algo que seraacute fundamental para a

discussatildeo de questotildees mais recentes em animaccedilatildeo que anima tambeacutem grande parte da criaccedilatildeo

teatral sobretudo no que diz respeitos a novas concepccedilotildees de dramaturgia e personagem O

retorno cocircmico agrave questatildeo do controle refaz e adensa o proacuteprio mecanismo desse controle

detonando feixes em direccedilotildees opostas e produzindo com isso sujeitos sem contornos

definidos espalhados entre corpos A produccedilatildeo espanhola El Avaro do grupo Taacutebola Rassa

(Figura 97) possui um momento que explica bem o que se afirma Trata-se de uma

interpretaccedilatildeo do Avarento de Molieacutere feito com boneco criados a partir de torneiras e peccedilas

de hidraacuteulica manipulados sobre balcatildeo com o ator operador segurando a torneira que faz as

vezes de cabeccedila da personagem com uma das matildeos e usando a outra como matildeo da proacutepria

personagem Na passagem em que Harpagatildeo sofre de deliacuterios paranoicos de que estariam

atraacutes de sua fortuna o boneco se daacute conta da presenccedila do ator operador o que amplia o seu

85

VELLINHO Miguel Filme noir Mimeo A narraccedilatildeo do texto apresentada em off durante as apresentaccedilotildees

do espetaacuteculo Filme noir eacute feita pelo ator Renato Peres

196

desespero pois passa a supor a existecircncia de um monstro querendo roubar-lhe Apoacutes mais um

tempo o boneco vira-se para o ator e faz um jogo de verificaccedilotildees do qual decorre o

entendimento de que a sua voz eacute emitida pelo operador Em seguida o boneco acalma-se e diz

ldquoEste natildeo eacute um monstro este sou eurdquo

O exemplo de El Avaro apresenta tambeacutem uma questatildeo que foi mencionada em outros

momentos deste trabalho que eacute o emprego de partes do corpo do manipulador para compor a

forma do boneco nesse caso o compartilhamento da terminaccedilatildeo de um dos braccedilos e da matildeo

Esse uso natildeo eacute exclusivo da montagem em questatildeo O espetaacuteculo O patinho feio da

companhia catarinense Gats (Figura 98) apresenta as aves do conto de Andersen combinando

os braccedilos das atrizes a complementos de seu figurino podendo ser mangas bufantes ou

sacolas plaacutesticas Jaacute foram citados outros empregos semelhantes em trabalhos de Hugo e Inecircs

Ilka Schoumlnbein e tantos outros sem mencionar a objeccedilatildeo formulada por Tillis acerca da

proposta de desconsideraccedilatildeo da luva como boneco teatral por Jurkowski devido ao fato de

esta ser de fato uma matildeo adereccedilada

A combinaccedilatildeo de partes do corpo do ator operador agrave estrutura visiacutevel do boneco

amplia a problemaacutetica da discernibilidade entre os dois tornando ainda mais esquiva agrave

percepccedilatildeo a sujeiccedilatildeo do boneco pelo ato de controle uma vez que amplia a ambiguidade

corporal da personagem mostrada pelo ente combinado A visagem de uma relaccedilatildeo de

sujeiccedilatildeo se perde em meio a um jogo de atuaccedilatildeo compartilhada na qual natildeo se consegue mais

perceber a forma do boneco como algo independente ao corpo do ator

De fato esse recurso faz um pouco mais que dissipar impressotildees de subordinaccedilatildeo ele

atrai o corpo do ator (ao menos as partes envolvidas) para o interior do que se pode considerar

como sendo a forma animada Transforma o braccedilo em boneco (ou em uma parte dele) faz o

que eacute percebido invadir o terreno daquilo que eacute mecanismo interno de produccedilatildeo da

apresentaccedilatildeo na exata medida em que nos mostra um braccedilo manipulando a si proacuteprio na

relaccedilatildeo que este estabelece com o a personagem que o boneco representa

Esse tipo de efeito traz ator e marionete para uma espeacutecie de terreno comum de

atuaccedilatildeo Ainda que se perceba com muita forccedila o quanto a relaccedilatildeo de manipulaccedilatildeo produz

significados e divide estaacutegios semacircnticos dentro do espetaacuteculo86

percebe-se na realizaccedilatildeo de

que atores postos agrave vista passam a integrar o campo visiacutevel do espetaacuteculo uma tentativa de

86

Como por exemplo em Sangue Bom da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo em que mesmo que se perceba

alguns jogos de integraccedilatildeo entre operadores e bonecos estaacute dada com clareza a separaccedilatildeo dos diferentes estaacutegios

do espetaacuteculo do qual cada um dos grupos participa Homem Voa da Cia Catibrum aplica certa ecircnfase nessa

separaccedilatildeo investindo numa atitude de neutralidade que se revela pouco eficaz como tal devido agrave postura

197

Figura 96 Tabola Rassa (Espanha) El Avaro (atores Asier Saenz e Olivier Benoit)

Fonte (httpwwwtabolarassacom)

Figura 97 Gats O patinho feio

Fonte (Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2008)

excessivamente alheada dos atores operadores de formas Aqui mais que no primeiro exemplo a decalagem

entre os ldquoestaacutegiosrdquo da representaccedilatildeo

198

estilizaccedilatildeo da participaccedilatildeo dos atores o que desnaturaliza seus comportamentos levando-os

assim a serem entendidos como figuras de naturezas natildeo muito afastadas dos bonecos que

operam

Podemos para este momento mencionar uma boa quantidade de exemplos eficazes os

chapeacuteus de abas largas usados pelos atores do Sobrevento em Beckett (Figuras 99 e 100) e em

O princiacutepio do espanto os andrajos que cobrem os corpos de operadores em Sangue Bom e

ateacute mesmo a singeleza dos oacuteculos escuros vestidos pela dupla de manipuladores do Grupo

Animasonho em Bonecrocircnicas87

(Figura 101) Mas essa desnaturalizaccedilatildeo pode estar presente

em esforccedilos de comportamento neutro como ocorre em peccedilas como O patinho feio da Gats e

Homem voa da companhia Catibrum mas parece que essa consideraccedilatildeo adquire feiccedilotildees de

maior radicalidade efeitos de confusatildeo do corpo do ator com o objeto

O espetaacuteculo La fin des terres da companhia Philippe Genty (Video 13) mostra num

determinado momento uma bailarina que move casas em miniatura de um ponto a outro do

palco Retira alguma delas de uma elevaccedilatildeo que daacute ao espectador a impressatildeo de ser um

morro feito de uma forraccedilatildeo qualquer coberto por um tecido azul Apoacutes todas as casas serem

retiradas dessa pequena elevaccedilatildeo sobre o palco num determinado momento e com uma

movimentaccedilatildeo precisa mostra-se ao puacuteblico que de fato aquela elevaccedilatildeo era composta por

um grupo de bailarinos posicionados de modo a conferir a impressatildeo caracteriacutestica A

primeira cena de Peer Gynt da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo eacute toda feita de modo a dar a

centralidade da cena para a relaccedilatildeo dos bonecos (o protagonista Peer Gynt e sua matildee de

nome Aase) ainda que apresente atores operadores agrave mostra Em um determinado momento

quando a personagem da matildee anuncia que natildeo permitiraacute que Peer Gynt arruiacutene a festa de

casamento da filha do latifundiaacuterio local a atriz vocalizadora da personagem Aase eacute iccedilada

pelo ator vocalizador de Peer Gynt88

por meio de um sistema de cabos e roldanas Percebe-se

uma clara alteraccedilatildeo na forma da cena que deixa apresentar as personagens por meio dos

bonecos para lidar com representaccedilotildees dos atores mas cabe ressaltar que no iccedilamento da atriz

que passa a apresentar a personagem sem o jogo direto com o boneco parece que se dota os

atores com certa qualidade marionete antes de dar-lhes a centralidade da cena

Curioso notar que por variados mecanismos percebe-se em diversas manifestaccedilotildees

um movimento de cooptaccedilatildeo do ator para dentro de um entendimento deste como forma

87

O grupo gauacutecho Animasonho foi criado em 1984 pelos gecircmeos Tiaraju e Ubiratan Carlos Gomes

Bonecrocircnicas eacute uma sucessatildeo de quadros variados com bonecos de luva e manipulaccedilatildeo direta e estaacute no

repertoacuterio da companhia desde a sua fundaccedilatildeo Apoacutes a morte de Tiaraju Ubiratan tem apresentado o espetaacuteculo

sendo acompanhado pelo artista de animaccedilatildeo Carlos (Cacaacute) Senna 88

Essa distinccedilatildeo se faz necessaacuteria devido ao fato de que no espetaacuteculo em questatildeo os bonecos satildeo operados por

mais de um ator

199

Figura 98 Grupo Sobrevento Beckett (Ato

sem palavras 1)

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Figura 99 Grupo Sobrevento Beckett (O impromptu de

Ohio)

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Figura 100 Animasonho Bonecrocircnicas (atores Cacaacute Senna e Ubiratan Carlos Gomes)

Fonte (Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2010)

Foto Seacutergio Schnaider

200

animada Esse movimento de cooptaccedilatildeo contribui para estabelecer entre ator e boneco um

estatuto relacional mais aproximado a um estado de equivalecircncia do que da sujeiccedilatildeo de um

pelo outro

Quando Valmor Beltrame identifica em parte do movimento teatral ocidental a partir

de fins do seacuteculo XIX a tendecircncia que ele identificaraacute como marionetizaccedilatildeo do ator (2005)

estaacute de fato apontando para o modo como alguns pensadores e realizadores de teatro usaram o

boneco como modelo para propor uma reforma no modo de atuaccedilatildeo que dominava os palcos

da Europa nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX

Se pensarmos nos estilos de representaccedilatildeo dos atores europeus sobretudo aqueles que

dominaram os teatros neoclaacutessico e romacircntico89

eacute possiacutevel perceber ateacute mesmo por meio das

criacuteticas feitas aos seus estilos de representaccedilatildeo por precursores da encenaccedilatildeo tais como

Edward Gordon Craig e Constantin Stanislavski e pelo historiador e criacutetico teatral italiano

Silvio DacuteAmico90

a dominacircncia de um modo de representar que se valia de recursos

declamatoacuterios e lugares comuns de gestual e expressatildeo e que tambeacutem permitia que o ator

intrometesse sua personalidade no modo de apresentaccedilatildeo da personagem que era eivada de

apartes comentaacuterios interpelaccedilotildees ao puacuteblico repeticcedilotildees e preparaccedilotildees de grandes passagens

da peccedila O primeiro momento da era dos encenadores veio a ser tambeacutem aquele que clamou

por um ator que subordinasse seu trabalho em favor de uma proposta de espetaacuteculo unificado

e que dispensasse com maior cuidado sua atenccedilatildeo agrave apresentaccedilatildeo da personagem e agraves

determinaccedilotildees do encenador em detrimento agrave exibiccedilatildeo de dotes virtuosiacutesticos e demais

recursos que interrompessem a unidade da experiecircncia do espetaacuteculo

Natildeo por acaso muitos pensadores e encenadores desse periacuteodo viram no ensaio de

1810 de Heinrich Von Kleist intitulado ldquoSobre o teatro de marionetesrdquo uma provocaccedilatildeo que

permitiu a elaboraccedilatildeo de uma utopia para ator dos tempos modernos Entre outras tantas

questotildees Kleist aponta como vantagem do boneco de fios em relaccedilatildeo ao bailarino humano o

fato de o primeiro natildeo possuir afetaccedilatildeo o que em grande parte pode ser entendida como uma

insinuaccedilatildeo das vontades e caracteriacutesticas do corpo que se apresenta sobre os resultados da

mesma91

Ao indicar a accedilatildeo do manipulador e a forccedila da gravidade como os responsaacuteveis pela

produccedilatildeo de um movimento repleto de uma qualidade esteacutetica que ele identifica sob a noccedilatildeo

89

Faz-se necessaacuterio deixar claro aqui que tais estilos satildeo mencionados com o intuito de referir-se aos modos de

representaccedilatildeo de ator dominantes em seus respectivos periacuteodos e lugares de florescimento mais do que evocar

os pressupostos esteacuteticos e ideoloacutegicos de suas origens liacutetero-dramatuacutergicas 90

Beti Rabetti empreende uma anaacutelise clara da atualccedilatildeo criacutetica de D`Amico e de suas impressotildees acerca dos

atores de seu tempo no artigo Eleonora Duse por Silvio DacuteAmico a interpretaccedilatildeo que se esconde in Folhetim

no 20 Rio de Janeiro Teatro do Pequeno Gesto jul-dez 2004 pp 22-33 91

ldquoPois a afetaccedilatildeo aparece como o senhor sabe quando a alma (vis motrix) encontra-se em qualquer outro ponto

que natildeo seja o centro de gravidade do movimentordquo (KLEIST 2005 p20)

201

de graccedila Kleist sugere a produccedilatildeo de um corpo artiacutestico atravessado de tal forma pelo que o

cerca que sua apresentaccedilatildeo adquire uma essencialidade que tende ao divino A movimentaccedilatildeo

do boneco seria assim uma danccedila que exprime o universo ao inveacutes de um desejo pessoal de

expressatildeo e exibiccedilatildeo Para muitos dos autores encenadores que pensaram o teatro provocados

por Kleist92

a encenaccedilatildeo poderia ser entendida como essa totalidade que unifica e media os

diferentes componentes da cena teatral inclusive o trabalho do ator

A vontade que impulsionava nos primeiros anos do seacuteculo XX criadores em teatro a

obter maior domiacutenio sobre os resultados de seus processos suportada grandemente pelo

desejo de uma afirmaccedilatildeo artiacutestica da obra teatral se valia igualmente de uma leitura do

boneco feita a partir de uma determinada noccedilatildeo de controle Isto se apresentava no contexto

de um embate claro acerca de qual funccedilatildeo seria central para a apresentaccedilatildeo teatral se a

instacircncia de criaccedilatildeo momentacircnea e da relaccedilatildeo direta com a audiecircncia ndash a atuaccedilatildeo ou a da

criaccedilatildeo da apresentaccedilatildeo com pretensotildees de totalidade normalizada de modo a conservar e

repetir seus valores discursivos ndash a autoria do texto e da encenaccedilatildeo Helga Finter trata dessa

questatildeo a partir da construccedilatildeo de uma imagem eficiente para a cena normalizada

A cena como maacutequina de escrever superdimensionada cujo teclado possui

fios de arame postados diante dos olhos do autor-encenador encaminham

seus pensamentos que se organizam no espaccedilo eis uma utopia de teatro que

o futuro reserva Esse desejo de escritura dentro do espaccedilo se manifestaraacute

primeiramente atraveacutes de uma nova ideacuteia de corpo do ator Deste modo o

ator biomecanicizado taylorizado distanciado povoaraacute os projetos de um

novo teatro de Craig a Meyerhold dos futuristas a Brecht (FINTER 1991

p 25 ndash traduccedilatildeo minha)

A discussatildeo acerca da adoccedilatildeo da marionete como modelo pedagoacutegico para o ator de

um teatro em transformaccedilatildeo encontra apoio em outras questotildees que natildeo apenas a de uma

determinada leitura do efeito de controle A discussatildeo que Meyerhold levanta acerca do

ldquoTeatro de feirardquo93

assim o atesta Mas salta aos olhos o quanto a ideacuteia do boneco eacute

empregada para sugerir controle ndash do artista sobre seu corpo e seus recursos expressivos mas

principalmente da instacircncia criadora da unidade artiacutestica do espetaacuteculo teatral sobre os

elementos dispostos em cena Finter chega a mencionar os usos de corpos marionetizados em

performances poliacuteticas de estados totalitaacuterios (paradas e comiacutecios nazi-fascistas e stalinistas)

como aacutepice sombrio da apropriaccedilatildeo e desfiguraccedilatildeo espetacularizante do corpo humano (idem

p26) Seria possiacutevel aqui identificar um tipo de pensamento que associa o boneco ao uso do

92

Beltrame menciona em seu trabalho Maurice Maeterlink Alfred Jarry e Vsevolod Meyerhold Mas seria

possiacutevel adicionar a essa lista os nomes de Federico Garcia Lorca Michel de Ghelderode e Oskar Schlemmer 93

Mencionada no primeiro capiacutetulo desta tese (p 28)

202

corpo em espetaacuteculo como massa a serviccedilo de um poder que o desfigura e o reorganiza em

brasotildees frases e siacutembolos

Ocorre que se por um lado eacute liacutecito pensar ndash e empregar ndash o boneco como modelo de

reformulaccedilatildeo do comportamento do ator ndash e do indiviacuteduo ndash a partir do entendimento de um

controle normalizador disciplinar e unidirecional natildeo se pode ignorar outras potecircncias de

significaccedilatildeo e atuaccedilatildeo do boneco teatral que satildeo de fato regidas pela ambiguidade e pela

subversatildeo

Tillis alcanccedila uma questatildeo fundamental apresentada pelo teatro de animaccedilatildeo ao

comentar uma produccedilatildeo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste para a Sinfonia Claacutessica

de Sergei Prokofieff Para essa apresentaccedilatildeo o puacuteblico se depara com uma caixa de cena em

estilo rococoacute postada dentro do palco e diante dela uma plateia vestida agrave moda do seacuteculo

XVII silenciosamente postada de costas para o puacuteblico e tambeacutem uma orquestra igualmente

virada em direccedilatildeo agrave abertura da cena Reproduzo aqui a citaccedilatildeo que Tillis extrai da descriccedilatildeo

feita pelo diretor da companhia Peter Moacutelnar Gaacutel

Num palco de corte em estilo rococoacute (o palco dentro do palco) os bonecos

apresentam uma comeacutedia italiana tradicional com riacutegido convencionalismo

O teacutedio artificial e cortecircs eacute entretanto quebrado repetidas vezes pelas

apariccedilotildees [do boneco] de um gato no palco dentro do palco Ante essa visatildeo

um cachorrinho de madame mimado [pertencente a um ldquoespectadorrdquo e

presumivelmente vivo agrave sua proacutepria maneira] se enfurece e comeccedila uma luta

Os dois animais perseguindo-se vatildeo gradualmente destruindo esse mundo de

arte forjado Varas de luz satildeo quebradas as pernas do palco caem

instrumentos satildeo destruiacutedos de modo a revelar seus componentes mecacircnicos

no fosso da orquestra ateacute um espectador com uma peruca branca [que

imaginaacutevamos ser vivo] eacute abatido de modo a revelar que natildeo eacute senatildeo uma

casca oca devorada por cupins um boneco vazio (Gaacutel apud TILLIS 1992

p 165)

Tillis pauta seu comentaacuterio acerca da apresentaccedilatildeo da companhia de Budapeste pelo efeito

que esta produz em termos de desfazer as certezas do puacuteblico entre o que seria real Esse

golpe de certa forma investe muito mais em apresentar certa incerteza acerca da proacutepria

natureza da realidade do que tratar de questotildees de dominaccedilatildeo e controle A questatildeo do

controle se chega a ser em algum momento apresentado pela apresentaccedilatildeo apenas se daacute para

ser em seguida destruiacuteda por um ataque irocircnico e desnorteante que investe sobre uma

consideraccedilatildeo da realidade como algo transitoacuterio se natildeo enganoso

Por isso e por outras questotildees o boneco deixa de ser uma metaacutefora integral para o

comportamento fanaacutetico ou subordinado uma vez que haacute diversos elementos que

caracterizam a sua apresentaccedilatildeo (expressatildeo fixa gestualidade caracteriacutestica revelaccedilatildeo dos

203

meios de manipulaccedilatildeo teatralidade inerente) que tematizam a natureza da realidade e que satildeo

capazes de questionar seus meios de controle mesmo enquanto estes se exercem sobre ele

Nesse sentido pode ser possiacutevel desdobrar a dualidade da opalizaccedilatildeo jurkowskiana ndash objeto

inerte vida imaginada ndash a partir da suposiccedilatildeo de uma loacutegica de controle ndash sou comandado

comando94

e que se desdobra em real ndash irreal

Eis que assim o boneco entendido como corpo subordinado controlado traraacute como

resultado da sua proacutepria dinacircmica de apresentaccedilatildeo o democircnio transgressor dos chistes

licenciosos em praccedila puacuteblica da inversatildeo dos valores de morte e sexo da violecircncia cocircmica e

da suplantaccedilatildeo dos limites da mortalidade Pois que o boneco natildeo eacute capaz de transmitir a

subordinaccedilatildeo a uma dominaccedilatildeo sem deixar em resiacuteduo a impressatildeo de uma dominaccedilatildeo

efetuada em sentido contraacuterio ou ateacute mesmo a apreensibilidade de um fluxo estaacutevel de

dominaccedilatildeo

O boneco opaliza o proacuteprio fluxo de dominacircncias na produccedilatildeo de indeterminaccedilotildees de

controle O boneco se impotildee ao operador para que ambos sejam o que podem ser em cena

Natildeo haacute hierarquias visiacuteveis nem passiacuteveis de suportar uma reflexatildeo mais detida

Retorno aqui ao artigo de Helga Finter quando este trata da tendecircncia agrave maquinizaccedilatildeo

dos corpos de atores e bailarinos verificada a partir dos anos 1970 mas o faz partindo de um

olhar que a diferencia das apropriaccedilotildees em prol dos discursos totalitaristas Finter defende que

a mecanizaccedilatildeo dos corpos no teatro da poacutes-modernidade (seu estudo se encontra centrado nos

trabalhos dos encenadores Robert Wilson e Richard Foreman) se opotildee agrave dominaccedilatildeo totalitaacuteria

no sentido em que o espetaacuteculo outorga ao espectador uma liberdade de leitura que desmonta

os impositivos dos discursos de dominaccedilatildeo

A partir das accedilotildees fornecidas o espectador cria um espaccedilo que dobra a cena

que ele tem diante dos olhos ele a transforma construindo outra cena da

percepccedilatildeo onde o teatro acontece sem ser um lugar preciso O teatro propotildee

assim uma dioacuteptrica que interroga a faculdade do olhar que ouve e a de

ouvir com os olhos (FINTER 1991 pp 26-7)

Supor que o comportamento maquiacutenico dos corpos de atores e bailarinos nos espetaacuteculos de

Wilson e Foreman mencionados por Finter se relaciona de alguma forma com um aspecto de

marionetizaccedilatildeo eacute tambeacutem propor um entendimento desse efeitoprocesso de modo diferente

complementar talvez ao que Beltrame identifica como sendo a marionetizaccedilatildeo do ator Se

para o teatro da virada do seacuteculo XX havia importacircncia em associar o ator agrave marionete com

94

Jaacute foi mencionada a questatildeo da construccedilatildeo de uma impressatildeo de autonomia como sendo um preceito

linguiacutestico importante ao teatro de animaccedilatildeo Natildeo haacute de fato como inserir uma forma animada em uma cena

teatral sem conferir-lhe certa capacidade de transgressatildeo

204

vistas a propor uma atitude de atuaccedilatildeo onde se percebe maior subordinaccedilatildeo a outras instacircncias

de constituiccedilatildeo da cena a partir de certo momento mais aproximado agrave virada do seacuteculo XXI e

aleacutem pode-se supor que a noccedilatildeo de marionetizaccedilatildeo ou mesmo de objetualizaccedilatildeo do ator eacute

algo que versa sobre a representaccedilatildeo de uma identidade em movimento sobre uma abertura

perceptiva que natildeo eacute manipulada por efeito de uma dominaccedilatildeo mas que se oferece a

manipulaccedilotildees variadas ndash com os sentidos do espectador desempenhando um papel

fundamental ndash com vistas a ampliar-se a pluralizar-se a opalizar-se

Retornando aos exemplos da atriz iccedilada em Peer Gynt e aos bailarinos transformados

em morro de Philippe Genty mas tambeacutem lembrando dos bonecos fundidos aos corpos dos

atores no trabalho de Hugo Suarez e Inecircs Pasic e de Histoacuteria de lenccedilos e ventos com seus

tecidos papeacuteis atores e formas combinadas eis que a cena de animaccedilatildeo natildeo se esquiva em

transformar em marionete o que nela estiver Todo corpo toda mateacuteria posta em cena num

contexto de animaccedilatildeo eacute marionetizado (tornado marionete) por um efeito de estranhamento

que desloca a coisa da sua leitura habitual para em seguida confrontar essa leitura com novos

sentidos que satildeo adquiridos no contexto da apresentaccedilatildeo Parece natildeo haver potecircncia de

significaccedilatildeo em animaccedilatildeo que natildeo lide com a ambiguidade ontoloacutegica posta na percepccedilatildeo

simultacircnea de objeto inerte e vida imaginada

O pensamento de uma cena de animaccedilatildeo composta por diversos elementos

marionetizados em detrimento agrave identificaccedilatildeo de um boneco ou forma animada definida em

limites formais e potecircncia de significaccedilatildeo nos leva novamente ao iniacutecio deste trabalho

quando se discutia o suposto desaparecimento dos bonecos no teatro de bonecos Se o estatuto

do boneco teatral se alterou a ponto de abrigar virtualmente tudo o que se apresenta sobre a

cena em termos de potecircncia metafoacuterica a cena de animaccedilatildeo torna mais agudos os seus

caracteres vitalistas

A professora Cariad Astles trata de como o teatro de animaccedilatildeo afirmou-se

transdisciplinar a partir daquilo que ela chama de ldquoperda do corpo do bonecordquo (2008) Nesse

processo a crescente visibilidade do ator operador faz aderir a sua percepccedilatildeo o entendimento

desse boneco cujo corpo perdeu-se

Com esse crescimento da visibilidade do bonequeiro os significados no

teatro de bonecos passaram a se relacionar com a ideacuteia de criaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo no palco mais do que com a ficccedilatildeo dos bonecos enquanto

personagens [] No entanto o aspecto mais importante de ser observado

natildeo eacute de ver o bonequeiro como animador mas de vecirc-lo como um entre

vaacuterios corpos animados Sem duacutevida mais do que estar no comando o

bonequeiro com frequecircncia parece ser dominado e estar agrave mercecirc dos corpos

animados agrave sua volta (idem 2008 p56)

205

Essa equivalecircncia no modo de se perceber o corpo do ator sobre a cena de animaccedilatildeo faz com

que Astles mencione as teorias animistas que atribui certa qualidade de vida a tudo o que nos

cerca Essa teoria vai ao encontro tambeacutem com a consideraccedilatildeo do lugar do homem no

mundo agrave luz das mais recentes posturas de conservacionismo ambiental e sustentabilidade

planetaacuteria para as quais o ser humano eacute apenas parte de uma cadeia de relaccedilotildees vitais

deixando de ser visto num lugar de dominaccedilatildeo sobre a natureza criada para servi-lo

Uma demonstraccedilatildeo do focirclego dessa temaacutetica para as artes contemporacircneas estaacute na

obra de James Cameron de 2009 o filme Avatar que apresenta a fantasia de um ecossistema

utoacutepico o planeta Pandora no qual suas formas de vida se conectam em encaixes neurais por

meio dos quais se acessa uma espeacutecie de consciecircncia compartilhada O nome do planeta eacute

sugestivo pois evoca algo ndash a caixa de Pandora ndash que deve permanecer encerrado em si

mesmo e para o que qualquer interferecircncia externa pode ser desastrosa Tambeacutem remete no

que se refere ao tema da interdependecircncia entre as coisas a um poder que natildeo se exerce na

separaccedilatildeo das individualidades mas na afirmaccedilatildeo do conjunto e na inexistecircncia de um poder

estaacutevel

Mas a discussatildeo mais interessante que o filme reserva agrave condiccedilatildeo atual do teatro de

animaccedilatildeo estaacute num dos seus mecanismos de maior efeito visual apresentada sob a forma dos

corpos clonados dos habitantes do referido planeta que satildeo habitados pelas consciecircncias dos

exploradores humanos por meio de um aparato tecnoloacutegico de controle O recurso atrai a

atenccedilatildeo ainda por que apresenta mecanismos de controle de corpos virtualizados que se datildeo

paralelamente na trama do filme e no seu proacuteprio processo de feitura na qual os atores

representavam juntamente com versotildees de seus corpos feitos em computaccedilatildeo graacutefica O

processo foi convenientemente incorporado agraves estrateacutegias de divulgaccedilatildeo do filme e

amplamente explorado pela imprensa em mateacuterias de bastidores A operaccedilatildeo da imagem

virtualizada tanto por teacutecnicos de efeitos visuais quanto pelos proacuteprios atores e o

detalhamento das personagens em computaccedilatildeo graacutefica (para as quais se pocircde atribuir sutilezas

de expressotildees faciais ainda natildeo vistas nesse tipo de animaccedilatildeo) chamam atenccedilatildeo para uma

qualidade de desdobramento corporal que apresenta algumas semelhanccedilas com o recurso

explorado pela ficccedilatildeo Pode-se dizer assim que natildeo satildeo apenas as personagens do filme que se

desdobram fisicamente em seus ldquoavataresrdquo isto tambeacutem ocorre com os atores

Neste ponto reencontramo-nos com a reflexatildeo de Astles acerca das novas formas de

constituiccedilatildeo corporal do boneco teatral no ponto em que esta indica a grande incidecircncia de

criaccedilatildeo e exploraccedilatildeo e corpos hiacutebridos resultados de combinaccedilotildees de materiais de

complementos corporais de intervenccedilotildees do corpo do animador sobre o objeto e vice-e-versa

206

Como jaacute foi mencionado neste trabalho tambeacutem Astles chama a atenccedilatildeo para a disposiccedilatildeo do

debate acerca de identidades que se apreende a partir do emprego desse recurso Para Astles a

heterogeneidade no emprego de materiais e formas para apresentar o boneco natildeo se presta

apenas para ldquotestar entendimentos culturais do corpo humanordquo (idem p 60) mas remete

especialmente ao entendimentos atuais de corpo e identidade como algo inseparaacutevel agrave

equipagem e agraves teacutecnicas de ornamento que se verificam e prosperam nos dias de hoje As

teacutecnicas de transformaccedilatildeo corporal com objetivos esteacuteticos e emblemaacuteticos (cirurgias

tatuagens percings implantes) assim como os dispositivos tecnoloacutegicos de comunicaccedilatildeo

(computadores chips telefones moacuteveis multifuncionais meacutetodos de operaccedilatildeo remota)

ampliam o alcance da percepccedilatildeo e da visibilidade do indiviacuteduo permitindo ateacute

desdobramentos virtuais e auto-ficcionalizaccedilotildees que podem ocorrer em ambientes de jogo e

vida virtual95

ou ateacute mesmo em redes sociais online Assim o boneco perde um corpo

apreensiacutevel e estaacutevel na medida em que joga com leituras possiacuteveis de uma corporalidade

individual cada vez mais composta e projetada Astles complementa essa ideacuteia da seguinte

maneira

O corpo do boneco pode ser visto como emblemaacutetico da mortalidade

vulneraacutevel e destrutiacutevel mas intrinsecamente ligado ao universo da mateacuteria e

das memoacuterias duradouras que restam nas coisas Nesse tipo de teatro o

boneco perdeu todos os vestiacutegios de si mesmo enquanto personagem ou

como algo completo O corpo do boneco transformou-se em identificaccedilatildeo

(idem)

Quando se comenta ao longo deste trabalho que se operou uma mudanccedila de estatuto no que

se pode considerar o boneco teatral natildeo se pode ignorar o quanto essa possiacutevel mudanccedila eacute

capaz de repor em jogo os modos como o boneco metaforiza o humano em diversas de suas

condiccedilotildees existenciais No campo de batalha das potecircncias significativas as cordas (ou

bastotildees luvas feixes de luz discursos e demais atribuiccedilotildees possiacuteveis) perdem o caraacuteter de

amarra controladora para tornar-se cada vez mais outro tipo de viacutenculo No jogo da

representaccedilatildeo conjunta e natildeo-harmocircnica dos corpos desdobrados boneco e ator satildeo

componentes de uma estrutura ideogramaacutetica elementos autocircnomos que se combinam para a

produccedilatildeo de uma leitura diversa e ampliada (EISENSTEIN 2002 p 35) que diz em

conjunccedilatildeo mas que se recusa a produzir um uniacutessono

95

Exemplos disso satildeo ambientes de experiecircncia virtual como o Second Life ltwwwsecondlifecomgt e jogos

MMORPG (Massive Multiplayer Online Role-Palying Game ndash Jogo de interpretaccedilatildeo de personagens online e em

massa) tais como World of Warcraft da empresa Blizzard Entertainment

207

Figura 101 Compagnie Philippe Genty Voyageurs Immobilles

Fonte (httpwwwscenewebfr201006philippe-genty-en-tournee-avec-voyageurs-immobiles)

Foto Pascal Franccedilois

208

4 CONCLUSOtildeES

O palco apesar de contar com a figura humana inteira em cena

tem a mais complexa de todas as tarefas a de transcender o

corpo

Gerald Thomas

Estivemos ao longo do uacuteltimo capiacutetulo tratando da questatildeo de criaccedilatildeo e da

apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo como sendo decorrecircncia das possibilidades relacionais e

de significaccedilatildeo entre o boneco ou forma animada e o artista que atua com ela (seja por meio

de uma accedilatildeo de controle ou pelo estabelecimento de um ato relacional) A dinacircmica e a

capacidade de estabelecimento de um tipo de tensatildeo produtora de efeitos opalizantes entre

esses dois agentes da cena de animaccedilatildeo componentes daquilo que este trabalho escolheu

chamar de organismo performativo combinado deflagra uma seacuterie de embates revelando em

seus processos de constituiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo algo que resolvemos tratar como sendo campos

de batalha ou seja espaccedilos de disputa ou fendas de visibilidade da ambiguidade estrutural do

boneco em animaccedilatildeo que revelam os atritos entre ator e objeto e fazem desses atritos pontos

de interesse do observador e de exploraccedilatildeo das possibilidades expressivas e de significaccedilatildeo da

linguagem teatral da animaccedilatildeo

Este momento do trabalho tem por objetivo buscar uma loacutegica integradora capaz de

relacionar os principais apontamentos produzidos no decurso das duas reflexotildees que o

compotildeem Eacute sobretudo o momento de se buscar a confirmaccedilatildeo da colaboraccedilatildeo reflexiva que

sempre julguei existir entre o esforccedilo de entender as funccedilotildees e as configuraccedilotildees do artista de

animaccedilatildeo no panorama atual do teatro brasileiro e a compreensatildeo dos embates relacionais

entre ator e forma que moldaram a configuraccedilatildeo da linguagem da animaccedilatildeo como esta vem

sendo percebida e praticada

Portanto sobrepondo-se ao trabalho de separaccedilatildeo e identificaccedilatildeo daquelas que

podemos chamar de as conclusotildees possiacuteveis a este percurso reflexivo urge que estas sejam

ampliadas e adensadas num exerciacutecio de estabelecimento de conexotildees e relaccedilotildees notaacuteveis

entre os dois percursos Desnecessaacuterio apontar que parte desse trabalho teve iniacutecio na proacutepria

labuta argumentativa enfrentada no interior dos dois capiacutetulos centrais da tese

Se haacute de fato um ponto de partida eficiente para o esforccedilo que agora se empreende

este parece ser com alguma seguranccedila a discussatildeo sobre o alegado desaparecimento do

boneco do teatro de animaccedilatildeo em favor de uma participaccedilatildeo crescente de um operador de

formas cada vez mais consciente das qualidades de atuaccedilatildeo que aciona e que de acordo com

as criacuteticas de Feacutelix e Jurkowski se apresenta mais propenso a dispensar o boneco em favor de

209

uma atuaccedilatildeo centrada no ator De fato o crescente aproveitamento dos recursos expressivos

do ator de animaccedilatildeo em cena que vem sendo apontado como caracteriacutestica importante das

investigaccedilotildees teacutecnico-linguiacutesticas do teatro de animaccedilatildeo brasileiro desde meados da deacutecada de

1970 (remontando a um pouco antes em paiacuteses da Europa e nos Estado Unidos) parece surgir

como um desejo de criaccedilatildeo de uma cena de animaccedilatildeo com possibilidades de expressatildeo

ampliadas O que se verifica eacute que a presenccedila e a expressividade do ator no teatro de

animaccedilatildeo desempenha uma funccedilatildeo importante nesse processo de criaccedilatildeo de uma cena mais

surpreendente e heterogecircnea Pode-se dizer do ator sobre a cena de animaccedilatildeo

apressadamente que este eacute um elemento de cataacutelise capaz de transformar a disposiccedilatildeo

heterogecircnea do moderno teatro de animaccedilatildeo numa composiccedilatildeo espetacular harmocircnica e

inteligiacutevel Pode-se ateacute mesmo negligenciar a reflexatildeo acerca do que seriam de fato essa

harmonia e inteligibilidade e acerca da necessidade da existecircncia de um agente desses

atributos para a produccedilatildeo de sentido em um espetaacuteculo teatral posto que essa suposiccedilatildeo se faz

problemaacutetica sob diversos outros aspectos Seguimos entatildeo com a evidecircncia de que a

exposiccedilatildeo do ator operador de formas pode ser entendida muito mais como um mecanismo de

provocaccedilatildeo de tensotildees e de cisotildees perceptivas do que propriamente como um agente a favor

de uma percepccedilatildeo harmonizada O ator posto agrave vista natildeo torna os corpos iacutentegros ele

participa de uma dinacircmica perceptiva de separaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo Isto se mostra nos corpos

compartilhados do Teatro Hugo e Inecircs na alternacircncia de modos de apresentaccedilatildeo das

personagens da PeQuod na atenccedilatildeo que o ator operador deposita sobre o boneco de modo a

conduzir o olhar da plateia Dessa afirmaccedilatildeo podemos com alguma seguranccedila discordar de

Tillis quando este propotildee que ldquosob os signos apresentados pelo ator a audiecircncia natildeo consegue

deixar de ver uma pessoa vivardquo (TILLIS 1992 p82) Talvez a plateia natildeo consiga deixar de

reconhecer alguns elementos da vitalidade inerente ao ator vivo mas creio jaacute termos

evidecircncia suficiente para declarar que essa percepccedilatildeo de vida ainda que inevitaacutevel em certos

aspectos natildeo eacute capaz de negar a produccedilatildeo de uma percepccedilatildeo em sentido contraacuterio que

estranha o corpo do ator em cena e lhe confere caracteriacutesticas de objeto Deste entendimento

decorre que o ator tanto em sua qualidade de propulsor da atividade manipulativa da

animaccedilatildeo quanto nas impressotildees que a sua exibiccedilatildeo sobre a cena de animaccedilatildeo produz eacute

tragado para dentro daquilo que o puacuteblico iraacute entender com forma animada Se eacute possiacutevel

reconhecer a exposiccedilatildeo qualificada do ator operador como traccedilo marcante nas experiecircncias

recentes em teatro de animaccedilatildeo esta natildeo se daacute no sentido do entendimento exclusivo de uma

valorizaccedilatildeo do trabalho do ator sobre uma cena heterogecircnea (ainda que essa questatildeo apresente

a sua importacircncia) mas sobretudo no sentido do entendimento de que o desejo de afirmar a

210

animaccedilatildeo a partir de um desejo de construccedilatildeo de heterogeneidades impocircs alteraccedilotildees ao

estatuto de percepccedilatildeo e entendimento da forma animada de modo a integrar em sua estrutura

o corpo a accedilatildeo e a subjetividade do ator que (tambeacutem) a opera

Ao lado desse entendimento encontra-se tambeacutem a aceitaccedilatildeo do efeito de opalizaccedilatildeo

(nos termos de Jurkowski) ou de visatildeo-dupla (nos termos de Tillis) como sendo o elemento

central de explicaccedilatildeo da dinacircmica perceptiva da forma animada A percepccedilatildeo do boneco em

apresentaccedilatildeo como sendo um objeto inerte e ao mesmo tempo vida que se imagina produz

uma percepccedilatildeo dinacircmica resultante do embate do envio de estiacutemulos que mesmo

contraditoacuterios sustentam a apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo O operador exposto amplifica a

percepccedilatildeo da ambiguidade ontoloacutegica do boneco posto que a imaginaccedilatildeo da autonomia eacute

sistematicamente perturbada pela visatildeo da origem do movimento

Contudo essa visibilidade amplifica tambeacutem o entendimento do ator como parte da

estrutura da forma animada Da vida imaginada ao objeto que emerge da dinacircmica relacional

entre forma e operador resulta tambeacutem alguma objetualizaccedilatildeo do ator que pode se dar por

meio dos recursos de focalizaccedilatildeo que por vezes concedem ao boneco a centralidade da cena

obrigando o ator a dosar a sua expressividade por meio da divisatildeo da expressividade entre

ator e forma que faz do ator parte da expressatildeo de uma subjetividade ficcional por meio do

compartilhamento de partes do corpo com a forma animada indefinindo limites e

estabelecendo desdobramentos corporais ou mesmo por meio do emprego de recursos de

narraccedilatildeo que posicionam o ator num lugar claramente exterior ao centro da accedilatildeo de onde

controla ou eacute controlado pela exposiccedilatildeo verbal da histoacuteria que a peccedila conta

Mas podemos tambeacutem nos deparar com recursos mais radicais de objetualizaccedilatildeo do

ator na cena de animaccedilatildeo que eacute quando este se comporta ou eacute levado pelas circunstancias da

cena a comportar-se como objeto Comentamos o exemplo da atriz que eacute iccedilada durante Peer

Gynt da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo mas podemos recorrer a uma grande variedade de

exemplos similares como os jogos de ilusionismo de Phillip Genty que datildeo a impressatildeo de

transformar bailarinos em silhuetas em Fin des Terres as coberturas proteacuteticas de Ilka

Schoumlnbein que restringem os movimentos da atriz de modo a forccedilar uma movimentaccedilatildeo

maquinal e os grandes objetos de vestir existentes em Coquetel Clown da XPTO que produz

sobre a cena corpos expandidos e multicoloridos

Parece entatildeo que o ator seu corpo e sua potecircncia expressiva se torna material para

construccedilatildeo de bonecos Essa consideraccedilatildeo enriquece a cena e as possibilidades de

entendimento das dinacircmicas de animaccedilatildeo Vejamos agora como tratar da expressividade do

ator com sendo material de criaccedilatildeo de formas animadas jaacute foi dito a respeito da importacircncia

211

do movimento para o ato de animar e tambeacutem de como natildeo se pode restringir o entendimento

desse movimento a deslocamentos e atividades articulares Optou-se por ampliar o conceito

apresentado por Tillis de movimento impliacutecito de modo a supor que a participaccedilatildeo qualificada

em uma trama espetacular eacute por si soacute produtora e reveladora de um impulso participante da

narrativa espetacular Ampliamos agora um pouco mais esse entendimento ao propor que a

dinacircmica de direcionamentos focais contidas na apresentaccedilatildeo do ator (e tambeacutem em recursos

teacutecnicos como os de som e de luz) pode determinar certa qualidade de movimento agrave forma

como tambeacutem qualifica essa forma em sua relaccedilatildeo com a trama espetacular Se recordarmos

do exemplo da cena com o manequim em Isto natildeo eacute um cachimbo da Cia Truks pode-se

perceber que a qualidade de inserccedilatildeo do objeto na cena natildeo se daacute apenas por meio de

produccedilatildeo de deslocamentos giros e ativaccedilotildees articulares mas tambeacutem em acordos relacionais

sutis como a busca por uma troca de olhares e quando se busca produzir um espelhamento de

atitudes entre o objeto e a atriz

O entendimento de que o ato de animar natildeo se relaciona obrigatoriamente com a

produccedilatildeo de um deslocamento ou de uma atividade articular natildeo apenas amplia a variedade

das possiacuteveis configuraccedilotildees do boneco teatral como tambeacutem amplia os entendimentos do ato

de animar ateacute possibilidades mais sutis e variadas de jogos relacionais entre ator e objeto Eacute

exatamente por esse motivo que este trabalho reconhece no operador de formas qualidades

operativas proacuteprias da atuaccedilatildeo e no princiacutepio do foco o elemento teacutecnico-conceitual

fundamental a partir do qual se desdobram e se desenvolvem as possibilidades para a

fundaccedilatildeo de uma gramaacutetica ampla e precisa do trabalho do ator de animaccedilatildeo em ambientes

multidisciplinares

Dentre os diversos entendimentos e usos da focalizaccedilatildeo arrolados neste trabalho

aquele que se define por meio da sugestatildeo de direcionamento da atenccedilatildeo do espectador como

produccedilatildeo das ecircnfases que organizam a narrativa da cena iraacute se relacionar com um princiacutepio

tambeacutem considerado fundamental quando se trata de atuaccedilatildeo em animaccedilatildeo que eacute a noccedilatildeo de

transferecircncia de expressividade O ator emprega recursos de expressividade proacutepria para

produzir uma apresentaccedilatildeo que ainda que natildeo busque (e natildeo consiga) em todas as ocasiotildees

transferir integralmente a sua expressividade para a apresentaccedilatildeo do boneco tampouco o faz

solicitando para si mesmo a centralidade da accedilatildeo Esse conceito que ajuda a definir a funccedilatildeo

do artista de animaccedilatildeo ressalta tambeacutem o caraacuteter de atuaccedilatildeo da sua atividade O

reconhecimento de competecircncias e funccedilotildees de atuaccedilatildeo no artista de operaccedilatildeo de formas

animadas parece estar corroborado no levantamento de princiacutepios pedagoacutegicos de escolas

212

dedicadas agrave linguagem da animaccedilatildeo feito por Beltrame (2001)96

dentre os quais figura com

destaque a preocupaccedilatildeo com uma formaccedilatildeo que contemple aspectos do trabalho do ator

Ainda em referecircncia ao trabalho de Beltrame a formulaccedilatildeo de que ldquoteatro de

animaccedilatildeo eacute teatrordquo (idem p 192) empresta agrave reflexatildeo acerca da formaccedilatildeo do artista de

animaccedilatildeo o entendimento de que este natildeo participa de uma modalidade espetacular separada e

altamente especiacutefica mas sim de uma arte teatral que como tal lida com princiacutepios e efeitos

comuns A afirmaccedilatildeo se relaciona intensamente com outro apontamento do qual se extrai que

ldquoo teatro de bonecos natildeo pode estar confinado em si mesmo como linguagem artiacutesticardquo (idem

p 193) Ao lado de corroborar a natureza eminentemente teatral do teatro de animaccedilatildeo essa

uacuteltima afirmaccedilatildeo lida tambeacutem com a sua vocaccedilatildeo integradora De fato posto que a linguagem

do teatro de animaccedilatildeo se estrutura sobre uma composiccedilatildeo de recursos expressivos que

transitam do teatral ao escultoacuterico aceitando em meio a essa dinacircmica tornar-se um local de

interseccedilatildeo entre diversas outras linguagens expressivas como a danccedila a muacutesica a pintura e as

artes em miacutedias digitais Curioso eacute notar que essa maneira de definir algo que seria demasiado

especiacutefico da linguagem da animaccedilatildeo toca de maneira bastante direta uma compreensatildeo que

se tem a respeito da arte do teatro partindo-se das suas caracteriacutesticas gregaacuterias e associativas

O artista de animaccedilatildeo por meio do direcionamento focal que resulta na transferecircncia

de expressividade encontra o seu especiacutefico na disposiccedilatildeo de ser entendido como objeto

Assim sendo o ator de animaccedilatildeo eacute aquele que se presta a um tipo de operaccedilatildeo manipulativa

seja ela feita por interferecircncia da sua proacutepria dinacircmica de atuaccedilatildeo pelas contribuiccedilotildees da

dinacircmica relacional estabelecida com o objeto ou pela maneira como este se insere em uma

determinada poeacutetica de encenaccedilatildeo

Aqui torna-se inescapaacutevel a consideraccedilatildeo da animaccedilatildeo a como algo desdobrado em si

para em seguida indagarmo-nos acerca da real existecircncia desse desdobramento O teatro de

animaccedilatildeo se caracteriza na sua variedade na sua irresistiacutevel aproximaccedilatildeo com outras

manifestaccedilotildees artiacutesticas na posiccedilatildeo que marca como ponto de encontro de expressividades

combinadas na faacutecil adesatildeo que assume a um ambiente de multidisciplinaridade e de

derrubada de fronteiras artiacutesticas como uma modalidade espetacular especiacutefica e ao mesmo

tempo como uma linguagem que se afirma num movimento de desaparecimento em meio agraves

alternativas expressivas que opera Ou seja o seu especiacutefico eacute o desaparecimento a

indefiniccedilatildeo E isto se afirma com a total consciecircncia de que o panorama atual do teatro de

96

Beltrame realiza para a pesquisa que resulta em sua tese de doutorado estudos relacionados agrave Eacutecole

Supeacuterieure Nationale des Arts de la Marionnette (Charleville-Meacuteziegraveres Franccedila) e da Escuela de Titiriteros del

Teatro General San Martin (Buenos Aires Argentina) aleacutem do levantamento de 18 instituiccedilotildees dedicadas agrave

formaccedilatildeo de profissionais de teatro de animaccedilatildeo em diversos paiacuteses

213

animaccedilatildeo natildeo exclui formatos severamente codificados com traccedilos temas e teacutecnicas

definidos e claros

Assim o teatro de animaccedilatildeo se entende como sendo um gecircnero teatral definido uma

manifestaccedilatildeo espetacular entendida no modo de dar agrave cena elementos que satildeo percebidos

como objetos mas que se escolhe imaginar como sendo agentes autocircnomos e independentes

de uma trama espetacular e ao mesmo tempo uma linguagem ou um conjunto de dispositivos

linguiacutesticos capaz de operar arranjos transdisciplinares sobre a cena teatral A discussatildeo se

estende ateacute o ponto em que se reconhece qualidades teatrais em todas as manifestaccedilotildees do

boneco como este eacute definido neste trabalho de modo a supor que mesmo as modalidades mais

tradicionais e codificadas do teatro de animaccedilatildeo (ou de bonecos) seriam a princiacutepio teatro

para as quais os recursos linguiacutesticos da animaccedilatildeo assumiriam alguma hegemonia em meio

aos recursos de constituiccedilatildeo da cena

Parece que essa percepccedilatildeo do teatro de animaccedilatildeo como uma linguagem sem aderecircncia

obrigatoacuteria a um estilo ou a um formato espetacular adquire maior radicalidade nas

experiecircncias de encenaccedilatildeo verificadas a partir da segunda metade do seacuteculo XX

desencadeando um movimento de matildeo dupla no qual natildeo se consegue ver ndash porque de fato

natildeo haacute ndash uma lideranccedila em termos de vontade artiacutestica ao passo que encenadores buscaram

acionar mais e mais elementos e dispositivos linguiacutesticos caros (por desejo ou coincidecircncia)

ao teatro de animaccedilatildeo muitos artistas de teatro de bonecos se imbuiacuteram de um desejo de

integraccedilatildeo de possibilidades expressivas forccedilando os limites da linguagem ateacute um ldquoponto de

encontrordquo de possibilidades expressivas O ambiente geral de questionamento acerca dos

limites entre as artes torna esse um movimento sem liacuteder ou ponto de partida Cada vez mais o

teatro de animaccedilatildeo eacute teatro posto que a proacutepria tendecircncia ao desaparecimento em meio aos

cruzamentos linguiacutesticos que se verifica nas suas caracteriacutesticas estruturais natildeo lhe eacute

exclusiva ou melhor derruba a rigidez dos formatos consagrados para mostra-lo sobre toda

cena em que se pretender acionar qualquer dos seus princiacutepios de linguagem

E assim reafirma-se o emprego do termo teatro de animaccedilatildeo em detrimento a outras

terminologias que subordinam a linguagem agrave presenccedila de um objeto especiacutefico O estatuto

ampliado do boneco teatral (ou da forma animada) que aqui se defende eacute aquele que entende

essa forma como resultado obrigatoacuterio do ato relacional estabelecido entre ator e objeto Essa

leitura permite o vislumbre de um boneco feito de materiais reagrupaacuteveis de combinaccedilotildees

transitoacuterias e de corpos criados a partir de conduccedilotildees de atenccedilatildeo (como no caso das jaacute

mencionadas Puces savantes) Da mesma maneira permite o entendimento de um ator

tornado objeto por meio de uma dinacircmica perceptiva que integra corpos e funccedilotildees O ator de

214

animaccedilatildeo passa assim a ser um ator de teatro marcado por uma multicorporalidade que o

permite desdobrar-se desaparecer e tornar-se objeto tudo isso como meio e resultado do ato

de animar

No que diz respeito ao ator no teatro de animaccedilatildeo parece justo afirmar tratar-se de um

artista diante de uma evidente demanda de atuaccedilatildeo que se caracteriza e se amplia em dois

sentidos complementares O primeiro deles eacute aquele que lida com a linguagem da animaccedilatildeo

entendida como definida e especiacutefica Parte do princiacutepio teacutecnico-conceitual da projeccedilatildeo de

expressividade e lida com capacidades de direcionamento focal apenas para citar os preceitos

mais abordados neste trabalho o segundo sentido eacute inalienaacutevel ao primeiro e trata justamente

da dinacircmica de interfaces artiacutesticas que define a linguagem da animaccedilatildeo e que entende o

artista de animaccedilatildeo como sendo um algueacutem instado a promover encontros entre linguagens e

competecircncias teacutecnico-artiacutesticas Nesse sentido o que se observa dentro das companhias eacute uma

demanda por artistas capazes de trabalhar natildeo apenas no entendimento da estrutura da cena

que lhe permita conduzir o fluxo de atenccedilotildees de modo consciente e dominado mas tambeacutem

de artistas capazes de operar com propriedade e autonomia os cruzamentos linguiacutesticos

solicitados pela proacutepria cena de animaccedilatildeo

Tratar do animador posto agrave vista no teatro de animaccedilatildeo do momento atual eacute tratar de

maneira obrigatoacuteria dos desafios teacutecnicos e dramatuacutergicos impostos a um artista disposto a

dominar e conduzir os fluxos de atenccedilatildeo com autonomia e criatividade num processo de

produccedilatildeo de indefiniccedilotildees formais e expressivas entre operador e forma

215

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VELLINHO Miguel Festivais de teatro de animaccedilatildeo no Brasil (2000-2009) Moacutein-moacutein

Revista de estudos sobre teatro de formas animadas ano 6 no 7 Jaraguaacute do Sul

SCARUDESC 2010 pp208-22

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VENEZIANO Neyde Revistando o bauacute revisteiro O Percevejo revista de teatro criacutetica e

esteacutetica ano 12 no 13 Rio de Janeiro PPGT-UNIRIO 2004 pp30-41

Teses e dissertaccedilotildees

ANDRADE Elza de Mecanismos de comicidade na construccedilatildeo da personagem

Propostas metodoloacutegicas para o trabalho do ator 2005 Tese (Doutorado em Teatro) ndash

Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Arte (CLA) Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro

BELTRAME Valmor Animar o inanimado a formaccedilatildeo profissional no teatro de

bonecos 2001 Tese (Doutorado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes Cecircnicas (CAC)

Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP) Satildeo Paulo

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Cecircnicas (CAC) Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Satildeo Paulo

COSTA Felisberto Sabino da A poeacutetica do ser e natildeo ser procedimentos dramatuacutergicos

do teatro de animaccedilatildeo 2001 Tese (Doutorado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes

Cecircnicas (CAC) Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Satildeo Paulo

PIRAGIBE Mario Ferreira Papel Tinta Madeira Tecido Um estudo da conjugaccedilatildeo de

elementos dramatuacutergicos e espetaculares no teatro contemporacircneo de animaccedilatildeo a

experiecircncia da companhia PeQuod 2007 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Teatro) ndash Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Artes (CLA) Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro

VIEIRA Miguel Vellinho Ilo Krugli e a construccedilatildeo de um novo espaccedilo poeacutetico para o

teatro infantil no Brasil 2008 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Teatro) ndash Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Artes (CLA) Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro

222

Entevistas

KRUGLI Ilo Entrevista com Ilo Krugli especial para a Revista Mamulengo entrevista

[maio de 1984] Mamulengo Revista da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos ano 11

n 12 Curitiba ABTB 1984 pp 11-4 Entrevista concedida a Fanny Abramovitch

RIBAS Marcos Caetano amp RIBAS Rachel ldquoNatildeo quero bater papo aqui forardquo entrevista [24

de outubro de 2009] Satildeo Paulo Suplemento de saacutebado do Jornal Brasil Econocircmico pp 27-

32 Entrevista concedida a Phydia de Athayde

VARGAS Sandra amp VELLINHO Miguel Sobrevento mudando os rumos do teatro de

animaccedilatildeo entrevista Folhetim n8 Rio de Janeiro set-dez de 2000 pp 60-92 Entrevista

concedida a Faacutetima Saadi

Programas de espetaacuteculos eventos e portfoacutelios

Programa do evento 10 Anos de Ventoforte 1984

Programa do espetaacuteculo Museu Rodin Vivo Satildeo Paulo SESC Ipiranga julho de 1995

Programa do espetaacuteculo Em Concerto Paraty Contadores de Estoacuterias 1998

O Teatro do Sobrevento Satildeo Paulo Grupo Sobrevento 2004

Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009

Bunraku Teatro tradicional de Bonecos do Japatildeo Fundaccedilatildeo JapatildeoSociedade Cultura

Artiacutestica 2002

Webites e Weblogs

A Caixa do Elefante Teatro de Bonecos lthttpwwwcaixadoelefantecombrgt

Catibrum Teatro de Bonecos lthttpwwwcatibrumcombrgt

CBTIJ ndash Centro Brasileiro de Teatro para a Infacircncia e Juventude lt httpwwwcbtijorgbrgt

Clube da sombra Cia Teatro Lumbra lthttpwwwclubedasombracombrgt

Cia Truks Teatro de Bonecos lthttpwwwtrukscombrgt

Giramundo Teatro de Bonecos lthttpgiramundoorggt

Grupo Contadores de Estoacuterias lthttpwwwecparatyorgbrindexhtmgt

223

Grupo Sobrevento lthttpwwwsobreventocombrgt

Morpheus Teatro lthttpwwwmorpheusteatrocombrgt

Intercacircmbio PeQuod e Caixa do Elefante 2001 lthttpcaixadoelefantepequod2011

blogspotcomgt

IPM ndash International Puppetry Museum lthttppuppetrymuseumorggt

Pequod ndash Teatro de Animaccedilatildeo ltwwwpequodcombrgt

XPTO Brasil lthttpwwwxptobrasilcomgt

Viacutedeos

GRUPO CONTADORES DE ESTOacuteRIAS TEATRO ESPACcedilO Grupo Contadores de

estoacuterias O teatro de bonecos de Paraty [Filme-viacutedeo] Realizaccedilatildeo Grupo Contadores de

Estoacuterias e Teatro Espaccedilo Paraty Espaccedilo Cultural Paraty 2009 1 disco DVDNTSC 104

min Color Son

RIBEIRO Mariacutelia Andreacutes SILVA Fernando Pedro da TAVARES Mariana Giramundo

Um histoacuteria de tiacuteteres e marionetes [Filme-viacutedeo] Coordenaccedilatildeo de projeto de Mariacutelia

Andreacutes Ribeiro e Fernando Pedro da Silva direccedilatildeo e roteiro de Mariana Tavares Belo

Horizonte CArte sd 1 cassete VHSNSTC 25 min Color Son

Peer Gynt Cia PeQuod de Teatro de animaccedilatildeo (110 min) 2006 DVD

Enciclopeacutedias e dicionaacuterios

JURKOWSKI Henryk amp FOUC Thieri (orgs) Encyclopeacutedie mondiale des arts de la

marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

PAVIS Patrice Diccionario del teatro dramaturgia estetica e semiologia (1ordf edicioacuten)

Barcelona Paidoacutes 1998

224

ANEXO A

RUMO A UMA

ESTEacuteTICA DO

BONECO

O BONECO COMO ARTE TEATRAL

Steve Tillis

Traduccedilatildeo de Mario Ferreira Piragibe

225

Ao meu avocirc materno Jacob Gelfland

226

SUMAacuteRIO

Prefaacutecio p 225

Introduccedilatildeo p 226

PARTE I DEFININDO E EXPLICANDO O BONECO

1 Definiccedilotildees consagradas p 237

2 Explicaccedilotildees consagradas p 250

3 Uma nova base para definiccedilatildeo e explicaccedilatildeo p 277

PARTE II DESCREVENDO O BONECO

4 Descriccedilotildees consagradas p 301

5 Uma nova base para descriccedilatildeo p 323

CODA ndash Metaacutefora e o boneco

p 363

227

PREFAacuteCIO

Eu natildeo me envolvi com bonecos por meio de um interesse de infacircncia e sim devido a

haver me empregado no Dr Edison Traveling Medicine Show (Show itinerante de medicina

do Dr Edison) uma trupe vagabunda com qual eu me lancei na estrada muitos anos atraacutes

Aquele show parou de viajar desde aquela eacutepoca mas meu envolvimento com os bonecos

prosseguiu por muitos anos como ator e agora ao que parece como estudioso Em todos

esses anos contraiacute diversas diacutevidas as quais natildeo terei como pagar inteiramente mas que

reconheccedilo de bom grado

Toby Grace o saudoso Ray Nelson Bob Brown Ken Moses e Bart P Roccoberton

Jr diretores de respeitaacuteveis companhias itinerantes me ensinaram quase tudo o que sei sobre

apresentaccedilotildees com bonecos sem as suas ajudas eu sequer teria iniciado este estudo Bob

Brown foi tambeacutem amaacutevel a ponto de me permitir acesso agrave sua biblioteca pessoal Cheryl

Koehler e Carol Wolfe experientes artistas de teatro de bonecos se dispuseram a discutir

muitas das ideacuteias aqui apresentadas

Karl Toepfer David Kahn e Ethel Walker professors da San Jose State University

ensinaram-me muito do que sei acerca de escrita acadecircmicasem as suas ajudas eu natildeo teria

como completar este estudo Karl Toepfer tambeacutem me auxiliou como orientador e foi o

Virgiacutelio do meu Dante no mundo arcano da teoria literaacuteria e dramaacutetica

Lou Furman da Washington State University e Doris Grubidge da Universidade de

Wisconsin Oshkohs forneceu criacuteticas valiosas e encorajamento vital Eu tambeacutem recebi

apoio de Henryk Jurkowski o principal estudioso em teatro de bonecos no mundo O leitor

logo notaraacute que eu discordo do professor Jurkowski em uma seacuterie de questotildees Quando tive a

ocasiatildeo de alertaacute-lo sobre dessas discordacircncias ele gentilmente respondeu ldquoAh mas somos

estudiosos Eacute nossa funccedilatildeo discordarrdquo Natildeo importa quais questotildees nos separem minha visatildeo

acerca de teatro de bonecos teria permanecido empobrecida natildeo fosse o estiacutemulo concedido

por aprender e discordar do professor Jurkowski

Marilyn Brownstein Maureen Melino Kellie Cardone Ruyh Adkins e Susan Baker

todos da Greenwood Press trabalharam com afinco sobre meus manuscritos amassados sem

a assistecircncia dessas pessoas e de seus diversos colaboradores eu natildeo teria sido capaz de

oferecer ao leitor um livro apreciaacutevel

Finalmente eacute com o maior prazer que eu aproveito esta oportunidade para agradecer a

minha mulher Adrienne Baker por seu apoio generoso concedidos de todas as maneiras e por

228

sua feacute inabalaacutevel que que eu poderia algum dia ter algo de uacutetil a dizer E tambeacutem gostaria de

agradecer ao nosso filho Sam Tillis por ter tido a dececircncia de tirar sonecas bastante regulares

e extensas

Apenas eu sou o responsaacutevel por toda e qualquer bobagem que o leitor encontrar neste

livro

229

INTRODUCcedilAtildeO

Bonecos tecircm sido usados em apresentaccedilotildees teatrais por todo o mundo e desde tempos

remotos Cada continente habitado ostenta sua proacutepria tradiccedilatildeo de bonecos sejam elas

associadas a culturas tribais ou citadinas a civilizaccedilotildees desenvolvidas ou com ambas Mas

apesar de sua ubiquumlidade o boneco tem recebido pouca atenccedilatildeo em estudos de teoria teatral

Este livro iraacute se dedicar a problemas fundamentais em teatro de bonecos com o

intento de estabelecer uma base teoacuterica e um vocabulaacuterio descritivo para uma esteacutetica geral do

boneco A amplitude de tais problemas e a aproximaccedilatildeo a ser utilizada em tal abordagem seraacute

explicada mais adiante nesta introduccedilatildeo mas seraacute melhor comeccedilarmos com algumas

evidecircncias da vasta amplitude de apresentaccedilotildees com bonecos

Na Nigeacuteria membros da tribo Ibabio ajuntam-se durante o dia ao ar livre numa aacuterea

arenosa Diante deles estatildeo lenccediloacuteis costurados um no outro e pendurados em trilhos de

madeira acima desse mural de lenccediloacuteis estatildeo figuras de um peacute de altura de homens e mulheres

cada uma construiacuteda a partir de alguns pedaccedilos de madeira esculpida e pintada As figuras

parecem mover-se e falar por si mesmas de fato satildeo movidas por meio de conjuntos de

varas e as suas vozes satildeo distorcidas e artificiais Mostram cenas cocircmicas e licenciosas de

ldquoeventos pontuais da cultura tribal [incluindo] cenas da vida domeacutestica assim como uma

quantidade de referecircncias satiacutericas dos sistemas dominantes dos governos tribal e colonialrdquo

(Malkin 1977 64-65 ver tambeacutem Proschan 1980 24 208)

Em Java aldeotildees sentam-se no frio da noite para celebrar algum evento local No

lugar da celebraccedilatildeo uma grande tela de tecido de algodatildeo branco eacute esticada em uma moldura

de madeira e detraacutes dela haacute um lampiatildeo aceso entretanto o termo ldquodetraacutesrdquo natildeo possui um

sentido real uma vez que os populares sentam-se diante de ambos os lados da tela Entre a

tela e o lampiatildeo estatildeo variadamente figuras de homens mulheres deuses animais e ateacute

mesmo exeacutercitos inteiros em marcha tais figuras satildeo cortadas e pintadas elaboradamente em

peccedilas de couro curtido de buacutefalo-da-aacutegua e variam em altura de meio peacute ateacute quatro peacutes A

maioria da plateacuteia assiste agraves sombras produzidas por essas figuras enquanto que o resto presta

atenccedilatildeo agraves proacuteprias figuras e pode perceber que tais figuras tecircm seus movimentos produzidos

por meio de varas por apenas uma pessoa que tambeacutem daacute as falas ricamente diferenciada de

personagem a personagem entretanto sem qualquer distorccedilatildeo que retire a naturalidade das

falas A muacutesica que acompanha eacute praticamente contiacutenua produzindo fundo canccedilotildees ou

alcanccedilando a frontalidade da representaccedilatildeo em intervalos da accedilatildeo As figuras apresentam uma

230

histoacuteria mitoloacutegica alternadamente cocircmica traacutegica heroacuteica a respeito de deuses a

apresentaccedilatildeo constitui-se numa parte integral da celebraccedilatildeo e duraraacute do pocircr do sol ateacute a

aurora (Brandon 1970 35-69 Ulbricht 1970 5-14)

Estes satildeo exemplos diferentes de teatro dramaacutetico a apresentaccedilatildeo nigeriana foi

presenciada no iniacutecio do seacuteculo [NT seacuteculo XX] e deriva de uma tradiccedilatildeo que de acordo com

a nossa fonte se manteacutem mas que natildeo remonta a um passado tatildeo distante a apresentaccedilatildeo

javanesa ocorreu na deacutecada de 1960 e deriva de uma tradiccedilatildeo de teatro de bonecos que

remonta talvez ao seacuteculo nono e seguramente ao seacuteculo onze (Brandon 1970 3) As

apresentaccedilotildees partilham a peculiaridade de apresentar objetos como se estivessem vivos O

termo usual para descrever tal figura eacute ldquobonecordquo

Em Londres Inglaterra um agrupamento de pessoas aproveitando o lazer no Regentacutes

Park se juntam diante de uma tenda oblonga seis peacutes de altura com uma abertura na frente

Dentro daquela abertura estatildeo figuras de seis peacutes que representam um corcunda e sua esposa

ambos feitos de tecido e madeira ambos parecendo mover-se e falar por sua proacutepria conta de

fato os movimentos e as falas lhes satildeo conferidos por um homem apenas escondido no

interior da tenda A fala da mulher eacute um falsete esganiccedilado poreacutem claro ao passo que a fala

do corcunda eacute distorcida e antinatural a esposa repete o que fala o corcunda para que assim

sejam compreendidas O corcunda iraacute em diversos momentos da apresentaccedilatildeo jogar o seu

bebecirc de uma janela matar um policial e confrontar-se com o democircnio trata-se de uma

comeacutedia (Speaight 1990 [1955] 208-18)

Em Washington D C crianccedilas de uma escola foram levadas em um ocircnibus escolar

ateacute o Kennedy Center for the Performing Arts no grande palco diante deles estatildeo partes

superdimensionadas de uma casa e um jardim e atraacutes desses dispositivos cecircnicos estatildeo trecircs

vocalizadores acompanhados pela Orquestra Sinfocircnica Nacional Um ator-cantor representa

uma crianccedila enquanto que diversas figuras satildeo apresentadas como sendo a matildee da crianccedila e

tambeacutem personagens da sua vida de fantasia A figura da matildee possui dez peacutes de altura

construiacuteda de fibras naturais e artificiais eacute movimentada por meio de mastros e varas por

meio da accedilatildeo oacutebvia de dois operadores sua voz eacute feita por uma das vocalizadoras Os

personagens fantasiosos entre os quais se incluem os nuacutemeros de um a nove satildeo feitos de

espuma de borracha satildeo manipulados visivelmente por operadores e suas falas satildeo

apresentadas pelos demais vocalizadores A fala de cada personagem eacute tatildeo natural quanto eacute

possiacutevel ser de acordo com as caracteriacutesticas da oacutepera O ponto fundamental da peccedila eacute uma

discussatildeo entre matildee e garoto e a subsequumlente fuga da crianccedila para o mundo de fantasia

231

Mais uma vez esses exemplos de teatro dramaacutetico satildeo um tanto diversos entre si A

apresentaccedilatildeo inglesa um ato de ldquoPunch and Judyrdquo feito por Percy Press Jr aconteceu em

1977 e deriva diretamente de uma tradiccedilatildeo de boneco que remonta ao seacuteculo XVII e

indiretamente de uma tradiccedilatildeo de teatro de atores que pode ser seguida ateacute a Roma Antiga

(Baird 1965 95) A apresentaccedilatildeo americana ocorreu em 1981 sob a direccedilatildeo de Bob Brown a

natildeo de corre de nenhuma tradiccedilatildeo em particular mas antes incorpora diversas praacuteticas do

teatro contemporacircneo Contudo tambeacutem compartilham a peculiaridade de apresentar as

figuras teatrais conhecidas como bonecos

No estado de Rajasthan India aldeotildees satildeo convidados agrave noite a irem ateacute os degraus do

templo local por uma casta de artistas que estendem um tecido brilhantemente colorido entre

dois postes e posicionam um lampiatildeo junto a cada lateral do pano Diante do pano estaacute

sentado um dos artistas tocando um tambor tambeacutem na frente estaacutes suspensa em uma vara

de bambu uma coleccedilatildeo de figuras cada uma com ateacute dois peacutes de altura feitas em madeira e

pano Quando chega o momento dessas figuras serem usadas satildeo soltas do bambu e assumem

accedilatildeo vigorosa seus movimentos obviamente controlados por fios que vatildeo das figuras ateacute

pessoas posicionadas acima Suas falas natildeo satildeo mais que ruiacutedos mas ruiacutedos cuidadosamente

articulados O tocador de tambor serve de tradutor clareando o que eacute apenas sugerido pelos

balbucios As figuras em accedilatildeo satildeo um palhaccedilo idiota e uma menina que se transforma num

ogre eles representam uma histoacuteria cocircmica de um amor frustrado (Baird 1965 46-55 Samar

1960 64-70)

Em Osaka Japatildeo pessoas daquela e de outras cidades visitam um salatildeo elaborado

dedicado a um estilo peculiar de teatro Sobre um palco largo estaacute uma plataforma baixa atraacutes

da qual estaacute um cenaacuterio e um fundo pintado em um dos limites da plataforma estatildeo sentados

dois homens um narrador e um instrumentista Sobre a plataforma estatildeo as figuras de um

homem e uma mulher essas figuras construiacutedas de muitas partes de madeira esculpida e

pintada estatildeo esplendidamente vestidas e adornadas com perucas e tecircm ateacute cinco peacutes de

altura Trecircs homens estatildeo visivelmente atraacutes cada uma das figuras obviamente conduzindo

seus movimentos por meio de contato direto com as matildeos e varas A fala das figuras eacute feita de

uma maneira estilizada ainda que natural pelo narrador apoiado pela execuccedilatildeo expressiva do

instrumentista o narrador e o instrumentista tambeacutem apresentam narraccedilotildees e muacutesicas mais

geneacutericas As figuras apresentam uma trama complexa que culmina no suiciacutedoo dos dois

amantes uma cortesatilde e um aprendiz (Adachi 1985 12-30)

Esses uacuteltimos exemplos satildeo os mais diacutespares entre si a apresentaccedilatildeo indiana foi

presenciada na deacutecada de 1950 e deriva de uma tradiccedilatildeo ldquocom seacuteculos de idaderdquo (Baird 1965

232

46) a apresentaccedilatildeo japonesa ocorreu em 1977 e deriva de uma tradiccedilatildeo datada do final do

seacuteculo XVI (Adachi 1985 3) Elas tambeacutem partilham a peculiaridade do boneco

Esses seis exemplos demonstram as extraordinaacuterias dimensotildees do fenocircmeno do

boneco Em cada um dos pares de exemplos apresentados encontramos diversos meios de

apresentaccedilatildeo Assim para se considerar apenas um aspecto limitado do espetaacuteculo nosso

exemplo nigeriano usa figuras tridimensionais operadas por varas ao passo que as figuras

javanesas ainda que operadas por varas natildeo satildeo tridimensionais mas planas e servem ao

propoacutesito de projetar sombras nosso exemplo inglecircs emprega figuras pequenas vestidas nas

matildeos de seus operadores enquanto que as figuras do exemplo americano satildeo na maior parte

dos casos maiores que seus operadores nosso exemplo indiano usa figuras simples operadas a

partir de um plano superior por meio de alguns poucos fios enquanto que as figuras japonesas

construiacutedas e articuladas de uma maneira tatildeo elaborada que solicitam ateacute trecircs operadores por

figura

Ainda em cada uma de nossas duplas de exemplos vemos contextos culturais de

apresentaccedilatildeo diversos Assim nossos exemplos da Nigeacuteria da Inglaterra e da Iacutendia satildeo

manifestaccedilotildees relativamente objetivas de cultura popular enquanto que os exemplos de Java

dos Estados Unidos e Japatildeo satildeo apresentaccedilotildees bem mais complexas que aspiram a ser e satildeo

entendidas como sendo arte

Esses satildeo apenas seis exemplos Inumeraacuteveis outros poderiam embora natildeo precisem

ser arrolados uma vez que os seis apresentados demonstram por si as dimensotildees do fenocircmeno

que se examina empregando diversos meios baseado na cultura popular ou em arte

sofisticada a figura teatral conhecida como boneco atravessa histoacuteria e geografia

Este livro no entanto natildeo analisaraacute o teatro de bonecos como este se manifesta em

termos geograacuteficos ou histoacutericos em nenhuma cultura em particular Estudos sobre bonecos

em muitas culturas ainda que natildeo o bastante jaacute existem e satildeo frequumlentemente bem sucedidos

em demonstrar os usos tradicionais do boneco Este livro natildeo faraacute uma relaccedilatildeo desses estudos

muito menos apresentaraacute uma histoacuteria e geografia do boneco Tais relaccedilotildees gerais tambeacutem jaacute

estatildeo disponiacuteveis mas tendem a ignorar os problemas teoacutericos relacionados agraves tentativas de

comparar e diferenciar as apresentaccedilotildees com bonecos Iremos contudo debruccedilarmo-nos

sobre o alcance vasto da atividade do boneco como uma tentativa de localizar o que haacute nela

de constante e de variaacutevel atraveacutes de todos os limites de tempo e espaccedilo

Aleacutem disso este livro natildeo iraacute analisar as praacuteticas teacutecnicas do teatro de bonecos tais

como modos de construccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Manuais dedicados agraves teacutecnicas apropriadas para

muitos embora natildeo todos dos estilos de teatro de bonecos estatildeo disponiacuteveis e satildeo

233

frequumlentemente bem sucedidos em explicar como construir e apresentar o boneco em cada

circunstacircncia Este livro natildeo iraacute listar esses manuais muito menos apresentar um guia para a

mecacircnica praacutetica do teatro de bonecos Tais listagens gerais tambeacutem estatildeo disponiacuteveis ainda

que tenham uma tendecircncia negligenciar quaisquer problemas de natureza teoacuterica Iremos no

entanto debruccedilar-nos sobre as maneiras com as quais bonecos satildeo feitos para apresentarem-

se numa tentativa de descobrir o que eacute constante e o que eacute variaacutevel nas possibilidades de

apresentaccedilatildeo com bonecos

O fenocircmeno do boneco tambeacutem existe numa variedade de contextos que satildeo

distinguiacuteveis para aleacutem dos limites de histoacuteria e da geografia e que lanccedilam matildeo de todos os

meios teacutecnicos agrave disposiccedilatildeo da arte do boneco

Este livro entretanto natildeo iraacute examinar o boneco como eacute encontrado no contexto da

religiatildeo onde serve como objeto de ritual ou de presenccedila sagrada Nem iraacute examinar o boneco

como eacute encontrado no contexto da educaccedilatildeo onde eacute encontrado como ferramenta de

aprendizado e jogo construtivo Nem finalmente iraacute examinar o boneco como o vemos no

contexto da terapia onde eacute encontrado como agente de cura e auto-exploraccedilatildeo A discussatildeo

do teatro de bonecos em qualquer desses contextos eacute tangencial ao nosso interesse imediato

que eacute o boneco no contexto do teatro onde serve primordialmente para entreter Nossa

discussatildeo pode se mostrar uacutetil para o estudo do boneco nesses outros contextos mas o estudo

de tais utilidades deveraacute ser delegado a outros

Este livro entatildeo eacute dedicado agrave observaccedilatildeo e anaacutelise transcultural da apresentaccedilatildeo do

boneco teatral ou para dizer de outra maneira dedica-se aos fundamentos da arte do boneco

como uma arte teatral Sendo assim nosso problema teoacuterico central eacute como poderemos

compreender o fenocircmeno do boneco como este se apresenta em suas vaacuterias manifestaccedilotildees

teatrais

Havendo jaacute circunscrito tatildeo severamente as limitaccedilotildees deste livro faz-se necessaacuterio

reduzir seu alcance ainda mais uma vez que as complexidades da apresentaccedilatildeo do boneco satildeo

tais que natildeo haveraacute espaccedilo para tratar de nenhum problema que natildeo decorra do proacuteprio

boneco Assim sendo problemas tais como aqueles que existem nas relaccedilotildees do boneco com

o texto da performance com a sua associaccedilatildeo agrave muacutesica com caracteriacutesticas metatextuais e

ateacute numa escala maior com o(s) artista(s) de animaccedilatildeo devem ser deixados para um estudo

futuro

Nosso problema aqui eacute o boneco em si Abordar essa questatildeo demandaraacute uma atenccedilatildeo

escrupulosa e embora tal atenccedilatildeo natildeo seja comum no que se escreve acerca do teatro de

bonecos ela natildeo eacute desconhecida de fato pode-se dizer que o tema foi abenccediloado pelo tempo

234

Uma referecircncia remota ao teatro de bonecos javanecircs pode ser encontrado na Meditaccedilatildeo de

Ardjuna composta pelo poeta da corte do Rei Airlangga (1035-1049 D C)

Haacute pessoas que choram satildeo bonecos tristes e exaltados observando-as

embora saibam que natildeo passam de pedaccedilos de couro recortado manipulados

e postos para falar Tais pessoas satildeo como os homens que sequiosos por

prazeres sensuais vivem em um mundo de ilusotildees natildeo percebem que as

alucinaccedilotildees maacutegicas que vecircem natildeo satildeo reais (citado em Brandon 1970 3)

Os elementos baacutesicos da arte do boneco elementos que satildeo constantes em todos os

exemplos apresentados anteriormente satildeo mencionados nessa passagem a figura esculpida o

movimento e a fala atribuiacutedos a essa figura e a plateacuteia que a reconhece como um instrumento

do teatro e que ainda assim participa da ilusatildeo que esta cria

Vamos olhar por um momento para os elementos relativos ao proacuteprio boneco que

tornam possiacutevel a resposta da plateacuteia O exame de tais elementos pode ser considerado um

estudo da semioacutetica do boneco um estudo dos signos por meio dos quais o boneco comunica

Como sugere a passagem acima e nossos exemplos anteriores demonstram trecircs tipos

de signos montam ou constituem o boneco signos de forma de movimento e de fala Pode-se

dizer que esses signos qualquer que seja a sua natureza especiacutefica emergem dos sistemas

siacutegnicos gerais de forma movimento e fala Os signos especiacuteficos que constituem o boneco

relacionam-se com signos que satildeo geralmente reconhecidos como signos de vida ou seja

com signos associados agrave presenccedila da vida Para dar um exemplo simples um boneco pode

possui uma boca assim como seres vivos possuem a boca pode ser feita para abrir e fechar

assim como ocorre em seres vivos e associado agrave boca pode haver a sugestatildeo da existecircncia de

fala assim como seres vivos falam Mas quando esses signos satildeo apresentados pelo boneco

deixam de significar a de fato existecircncia de vida Os signos encontram-se abstraiacutedos da vida

passando a ser apresentados por algo que natildeo possui uma vida autocircnoma

Eacute em resposta aos signos apresentados pelo boneco signos que normalmente

significam vida que a plateacuteia aceita no boneco sua suposta vida O estudo dessa relaccedilatildeo

dinacircmica entre o boneco e a sua plateacuteia pode ser considerado como um estudo da

fenomenologia do boneco o estudo do fenocircmeno da apresentaccedilatildeo do boneco como um evento

teatral

Este livro seguiraacute o exemplo do poeta da corte de Airlangga e tentaraacute cuidar do boneco

examinando como a apresentaccedilatildeo de signos abstratos criam uma ilusatildeo de vida que a plateacuteia

entende natildeo ser real e desenvolveraacute um conceito chamado visatildeo dupla o qual postula que

uma audiecircncia percebe o boneco de duas maneiras simultacircneas como um objeto apresentado

e como uma vida imaginada

235

O problema teoacuterico do boneco seraacute abordado diretamente Assim em nossa primeira

parte perguntamos como se pode definir o boneco ou o que pode ser considerado um

boneco Tambeacutem indaga como o boneco pode ser explicado ou qual eacute o fundamento da

atratividade do boneco atraveacutes de sua diversidade histoacuterica e geograacutefica Apoacutes discutir as

soluccedilotildees mais usuais dadas a esses problemas nos capiacutetulos 1 e 2 novas soluccedilotildees seratildeo

desenvolvidas e apresentadas no capiacutetulo 3 A segunda parte deste livro pergunta como o

boneco pode ser descrito ou que teoria taxonocircmica oferece um padratildeo satisfatoacuterio para

comparar e discriminar diversas apresentaccedilotildees de bonecos O capiacutetulo 4 discute as soluccedilotildees

mais conhecidas para esse problema ao passo que no capiacutetulo 5 uma nova soluccedilatildeo seraacute

desenvolvida e aplicada Como um tema recorrente para este estudo o uso do termo ldquobonecordquo

como uma metaacutefora seraacute examinado pois o poder de tal emprego metafoacuterico encontra-se

surpreendentemente iluminado pelas soluccedilotildees que conquistaremos

Este livro se destina a um puacuteblico hiacutebrido sob a premissa de que a praacutetica do boneco

pode contribuir para a formaccedilatildeo teatral enquanto que inversamente a formaccedilatildeo teatral pode

enriquecer a praacutetica do boneco Assim sendo este livro foi escrito tanto para os estudiosos do

teatro quanto para os praticantes da arte do boneco na esperanccedila de que membros de ambos

os grupos possam de suas proacuteprias perspectivas sobre a arte do boneco como arte teatral

tambeacutem foi escrito para o puacuteblico em geral pois que muitas dessas pessoas devem sentir-se

curiosas quanto a essa forma de arte ubiacutequa ainda que desdenhada Especialistas podem crer

que muito espaccedilo tem sido devotado a questotildees com as quais eles jaacute satildeo familiares

estudiosos entretanto precisam compreender que muitos leitores natildeo iratildeo encontrar tanta

familiaridade com termos como semioacutetica e fenomenologia ao passo que os praticantes Do

teatro de bonecos precisam reconhecer que muitos dos leitores teratildeo pouca informaccedilatildeo acerca

das muitas complexidades da apresentaccedilatildeo do boneco Leitores que natildeo sejam nem

estudiosos nem praticantes talvez se constitua na parte mais importante de nosso puacuteblico

pois satildeo em uacuteltima anaacutelise aqueles a quem os estudiosos se esforccedilam para iluminar e os

praticantes lutam para divertir A esses leitores devem ser disponibilizadas informaccedilotildees

detalhadas que bastem apresentadas numa maneira clara de modo a unir tanto os aspectos

praacuteticos como teoacutericos da arte do boneco

O modo geral de aproximaccedilatildeo deste livro seraacute pegando emprestados termos da

linguumliacutestica sincrocircnico no sentido daquilo que se opotildee ao que eacute diacrocircnico Uma aproximaccedilatildeo

diacrocircnica o estudo de uma mateacuteria por meio de seu desenvolvimento histoacuterico e geograacutefico

com consideraccedilatildeo aos detalhes de suas praacuteticas teacutecnicas pressupotildee que uma metodologia para

tal estudo exista Mas como veremos nenhuma teoria ou vocabulaacuterio satisfatoacuterios jaacute foram

236

criados para o boneco teatral Uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica o estudo dos princiacutepios

estruturais de uma mateacuteria busca o desenvolvimento de teoria e vocabulaacuterio necessaacuterios por

meio de uma esmerada observaccedilatildeo e anaacutelise isolamento e exploraccedilatildeo das constantes e

variaacuteveis fundamentais do boneco como estas se configuram em todas as suas manifestaccedilotildees

teatrais Assim o estudo sincrocircnico se mostra um proacutelogo valioso ainda que extenso a

qualquer estudo diacrocircnico rigoroso

Mas seria uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica apropriada ao estudo para o teatro de bonecos

Henryk Jurkowski um produtor e estudioso polonecircs que serviu com grande distinccedilatildeo como

secretaacuterio geral e presidente da UNIMA (Union Internationale de la Marionnette) tem seacuterias

duacutevidas

[Essa] aproximaccedilatildeo tem sido usada com relativa frequumlecircncia por estudiosos

contemporacircneos que discutem as caracteriacutesticas do teatro de bonecos A arte

do boneco para essas pessoas parece ser um monoacutelito sincronicamente

unificado ainda que o teatro de bonecos contemporacircneo seja uma rica e

variada totalidade servindo-se de elementos culturais de diferentes

proveniecircncias e eacutepocas (1988 [1983] 62)

De fato o ponto central do importante ensaio de Jurkowski ldquoOs sistemas siacutegnicos do

teatro de bonecosrdquo eacute o de que o boneco pode ser encontrado diversamente a serviccedilo de

ldquosistemas siacutegnicos vizinhosrdquo do ldquosistema siacutegnico do teatro viventerdquo do ldquosistema siacutegnico do

teatro de bonecosrdquo e de um teatro baseado na ldquoatomizaccedilatildeo de todos os elementos do teatro de

bonecosrdquo (1988 [1983] 68) Jurkowski argumenta que aproximaccedilotildees sincrocircnicas ignoram

essa variedade de empregos do boneco e assim inevitavelmente interpretam incorretamente

as realidades do boneco como existem em ldquoeacutepoca[s] teatra[is] concreta[s] determinada[s]

pela tradiccedilatildeo territorial e culturalrdquo (1988 [1983] 62)

Mais que isso ainda que uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica fosse viaacutevel Jurkowski sugere

que seu valor seria miacutenimo

Se toda a amplitude do teatro de bonecos for tomada como um campo de

investigaccedilatildeo cientiacutefica uma tarefa preliminar seria registrar ou listar os seus

diversos elementos Esse registro poderaacute ser da alguma utilidade como

demonstrarivos dos meios de expressatildeo do teatro de bonecos mau eu creio

que natildeo nos diraacute muito mais a respeito da arte do boneco de que aquilo que

noacutes jaacute sabemos (1988 [1983] 62)

Como eacute possiacutevel responder a tais consideraccedilotildees

Primeiramente o estudioso citado por Jurkowski com sendo o expoente mais agrave

vanguarda a da aproximaccedilatildeo sincrocircnica Petr Bogatyrev nunca conduziu nenhum estudo

sistemaacutetico acerca do boneco tampouco criou nada aleacutem de um tipo preliminar de registro ou

iacutendice sobre a arte do boneco Bogatyrev sugeriu que haveria utilidade em um esforccedilo dessa

237

natureza mas o foco de sua atenccedilatildeo natildeo estava no boneco em si mas principalmente no teatro

de bonecos como uma forma de arte folcloacuterica (ver Bogatyrev 1983 [1973])

Em segundo lugar independentemente do que Bogatyrev possa ou natildeo ter feito

empregar uma aproxima sincrocircnica ao estudo do boneco natildeo significa necessariamente

considerar o teatro de bonecos como sendo ldquomonoacutelito sincronicamente unificadordquo

Certamente muitas ou mesmo a maioria das discussotildees acerca de teatro de bonecos peca por

assumir alguma forma de teatro de bonecos como uma forma modelo ou ideal de fato

Bogatyrev pode ser condenado por essa falta Ainda assim uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica

poderia se dar com atenccedilatildeo total da diversidade diacrocircnica multicultural do boneco a ainda

assim buscar algum entendimento acerca das constantes e variaacuteveis a serem encontradas num

atravessamento dessa diversidade

Em terceiro lugar a criaccedilatildeo de um iacutendice dos ldquomeios de expressatildeordquo do teatro de

bonecos seria de uma utilidade bem maior do que Jurkowski gostaria de permitir Seria bem

provaacutevel que tal iacutendice pudesse contar a Jurkowski pouco mais do que aquilo que ele jaacute sabia

Isto natildeo seria surpreendente uma vez que Jurkowski sabe mais sobre bonecos do que

qualquer outra pessoa viva Mas tambeacutem natildeo seria surpreendente se algumas poucas pessoas

sejam elas praticantes estudiosos ou espectadores de teatro de bonecos saibam tanto quanto

ele e ainda assim encontrem valor num trabalho que encontre um sentido na diversidade

diacrocircnica do boneco

Um iacutendice dos meios de expressatildeo disponiacutevel ao boneco nos forneceraacute um vocabulaacuterio

adequado para a discussatildeo de como certos bonecos e tradiccedilotildees de bonecos criam teatro

forneceraacute as bases para o entendimento da amplitude das praacuteticas de apresentaccedilatildeo do boneco

e para comparaccedilotildees significativas entre diversas apresentaccedilotildees em teatro de bonecos Ainda

iraacute demonstrar os meios pelos quais o teatro de bonecos se constitui numa forma peculiar de

teatro uma forma que prazerosamente desafia sua audiecircncia a considerar questotildees

fundamentais sobre o que significa ser um objeto e o que significa possuir vida

E assim apesar dos receios de Jurkowski nossa aproximaccedilatildeo seraacute sincrocircnica

Entretanto devemos estar alertas ao aviso de Jurkowski contra tomar a arte do boneco como

sendo um todo monoliacutetico e tambeacutem desafiados por sua afirmaccedilatildeo de que tal aproximaccedilatildeo

talvez natildeo ensine muito

Independente de quaisquer discordacircncias que se possa ter com Jurkowski natildeo restam

duacutevidas de que ele mesmo concordaria com o fato de que o propoacutesito de nosso estudo eacute

auxiliar na compreensatildeo do fenocircmeno do boneco teatral Sergei Obrastzov indiscutivelmente

o artista de teatro de bonecos mais importante do seacuteculo XX escreveu ldquoNatildeo devemos nos

238

esquecer quantas pessoas pensam [que o teatro de bonecos] natildeo vale a pena ser levado a seacuterio

que aqueles que o estudam estatildeo perdendo o seu tempordquo (1967 [1965] 17) Este livro eacute uma

tentativa de mostrar o quanto o teatro de bonecos merece ser levado a seacuterio Pois trata-se de

uma forma uacutenica e vital de arte teatral uma forma que por sua proacutepria natureza conduz a

uma compreensatildeo renovada da humanidade como a contrutora e a destruidora dos mitos sobre

si mesma e sobre o mundo

239

- I -

DEFININDO E EXPLICANDO O BONECO

1

DEFINICcedilOtildeES CONSAGRADAS

Do que estatildeo falando as pessoas quando falam de bonecos A palavra ldquobonecordquo [NT

puppet]97

eacute imediatamente compreensiacutevel a qualquer pessoa a quem a liacutengua inglesa seja

familiar e indubitavelmente conjura uma ideacuteia definitiva na mente de todos afinal quase

todo o mundo jaacute assistiu uma vez ou outra alguma peccedila de bonecos ou jaacute ouviu o termo

boneco como metaacutefora para descrever pessoas em determinadas circunstacircncias na vida Mas

haveraacute alguma consistecircncia compartilhada entre pessoas nessas ideacuteias acerca do boneco que

surgem da observaccedilatildeo individual O fardo da definiccedilatildeo eacute o de sugerir uma ideacuteia comum

baseada na observaccedilatildeo coletiva de modo a conferir significado a uma palavra Definiccedilotildees no

entanto podem ser coisas curiosas

A palavra boneco eacute o caso em questatildeo o boneco tem estado entre noacutes por seacuteculos

incontaacuteveis e ainda permanece sem uma definiccedilatildeo que seja funcional Talvez dada a

diversidade diacrocircnica do boneco e a subsequumlente variedade de observaccedilotildees e ideacuteias dadas a

ele pelas pessoas seja de fato impossiacutevel defini-lo A R Philpott um artista de animaccedilatildeo e

autor inglecircs repara que ldquoa definiccedilatildeo perfeita esquiva-se dos teoacutericos historiadores

marionetistas dicionaristasrdquo (1969 209) veremos neste capiacutetulo o quanto a definiccedilatildeo perfeita

tem sido esquiva Ainda assim o esforccedilo para se desenvolver uma definiccedilatildeo funcional se natildeo

perfeita eacute vaacutelida pois talvez possa se descobrir afinal alguma semelhanccedila identificaacutevel nos

diferentes usos da palavra boneco

Paul McPharlin o estudioso do teatro de bonecos norte americano mais importante do

seacuteculo XX nos fornece a etimologia baacutesica da palavra na liacutengua inglesa

Puppet [Boneco] deriva de pupa termo em latim para ldquomeninardquo ou

ldquobonecardquo ou ldquopequena criaturardquo A partiacutecula ndashet a torna um diminutivo uma

pequena criatura pequena A palavra marionnette de origem italiana-

francesa [que significa] ldquopequena pequena Mariardquo natildeo difere do inglecircs

97

(NT) No original o termo usado eacute puppet Essa palavra seu significado e origem etimoloacutegica seratildeo

explorados largamente ao longo deste capiacutetulo O termo escolhido para a traduccedilatildeo eacute boneco palavra que em

portuguecircs conduz a uma variedade de interpretaccedilotildees ligeiramente diversa do seu equivalente em inglecircs A

traduccedilatildeo buscaraacute suprir com explicaccedilotildees e notas os pontos discordantes mas eacute tambeacutem importante que o leitor

esteja atento a tal diferenccedila dado o impacto conceitual que a escolha terminoloacutegica pode causar

240

puppet em seu significado baacutesico ainda que possua um final em duplo

diminutivo Relativamente uma novidade para a liacutengua inglesa a palavra

apaixonou os artistas por parecer mais elegante do que o velho e simples

puppet (1949 5)

Sendo a questatildeo de elegacircncia a suma da diferenccedila reconhecida entre as duas palavras

seraacute melhor seguir o emprego contemporacircneo e permanecer com a palavra puppet [boneco]

para o fenocircmeno geral sob discussatildeo e reservar o termo marionete para um tipo particular de

boneco

Obviamente a definiccedilatildeo impliacutecita nesta etimologia eacute inadequada natildeo se pode

entretanto esperar que a etimologia explique o significado de uma palavra em seu uso integral

e atual devido a transformaccedilotildees linguumliacutesticas e praacutetica que ocorrem com o tempo As

definiccedilotildees dos dicionaacuterios para a palavra puppet satildeo ligeiramente melhores do que aquela

sugerida pela etimologia e satildeo nada menos que hilaacuterias ldquoUma figura (geralmente pequena)

representando um ser humano um brinquedo de crianccedila Uma figura humana com juntas

articuladas movidas por meio de fios ou cabos uma marioneterdquo (Oxford English Dictionary)

ldquoUma figura pequena de um ser humano que por meio de fios ou cabos eacute posta a representar

teatro de zombaria marioneterdquo (Funck and Wagnalls) Mais definiccedilotildees bastante semelhantes

agraves citadas natildeo precisam ser adicionadas

O que haacute de errado nisso Natildeo eacute a confusatildeo com o termo marionete que natildeo eacute mais

que uma digressatildeo O que haacute de errado eacute que independentemente da etimologia do termo um

boneco natildeo precisa ser pequeno muito menos ldquorepresentar uma ser humanordquo nem ser como

uma boneca de crianccedila nem ser movida ldquopor fios ou cabosrdquo e nem ldquorepresentar teatro de

zombariardquo o que quer que isso signifique

Eacute insustentaacutevel a justificativa de que tais definiccedilotildees satildeo imprecisas porque

acompanham o entendimento comum ou mal entendimento uma vez que eacute bastante frequumlente

se ouvir ou ver bonecos grandes bonecos que representam animais bonecos altamente

sofisticados e assim por diante Qualquer que seja a loacutegica por traacutes dessas definiccedilotildees

estuacutepidas elas natildeo podem ser levadas a seacuterio

McPharlin cuja etimologia apresentamos define o boneco como sendo ldquoum elemento

teatral movido por controle humanordquo (1949 1) Bill Baird um dos produtores mais influentes

do teatro de bonecos norte americano do seacuteculo XX define o boneco como ldquouma figura

inanimada posta em movimento pelo esforccedilo humano diante de uma plateacuteiardquo (1965 13) A

maioria das definiccedilotildees formuladas por estudiosos e praticantes de teatro de bonecos apenas

reapresentam os elementos impliacutecitos ou expliacutecitos nas definiccedilotildees acima portanto

trabalhemos com elas

241

Essas definiccedilotildees satildeo obviamente superiores agravequelas fornecidas pela etimologia ou

pelos dicionaacuterios Observam corretamente o fato de que o boneco eacute um elemento teatral e que

existe diante de uma plateacuteia e ainda fazem uma distinccedilatildeo fundamental entre o boneco que

apresenta e a boneca com a qual uma crianccedila pode brincar solitariamente Essa boneca pode

ateacute mesmo ser usada como boneco mas parece oacutebvio que nem todas as bonecas satildeo bonecos

e inversamente nem todos os bonecos satildeo bonecas A definiccedilatildeo tambeacutem observa

corretamente que o boneco eacute algo ldquosob controle humanordquo e ldquomovido por esforccedilo humanordquo

fazendo assim uma distinccedilatildeo fundamental entre o boneco que responde a um controle

imediato e variaacutevel e o autocircmato que eacute motivado por algum dispositivo mecacircnico ou

eletrocircnico para apresentar inapelavelmente uma seacuterie de accedilotildees Igualmente um autocircmato

desse tipo pode ser usado como um boneco mas parece bastante oacutebvio que nem todo

autocircmato eacute um boneco e tambeacutem nem todo boneco eacute autocircmato Finalmente a amplitude

dessas definiccedilotildees se encaminha em direccedilatildeo ao vasto escopo de atividades que as pessoas

querem dizer quando falam do boneco

Apesar dessas vantagens as definiccedilotildees de McPharlin e Baird sofrem de trecircs problemas

seacuterios O primeiro problema existe independentemente da amplitude das definiccedilotildees e se

impotildee a partir da falha em se considerar completamente as possibilidade inerentes ao sistema

de signos de forma do boneco McPharlin escreve que o boneco eacute um ldquoelemento teatralrdquo mas

no decorrer de seu trabalho (ver McPharlin 1938 e 1949) ele aceita sem discussotildees aquilo que

Baird esclarece que a figura do boneco eacute inanimada Mas o boneco precisa de fato ser

inanimado

Alguns exemplos podem ser uacuteteis Usemos por exemplo a figura teatral de um bebecirc

trazido ao palco por um ldquopairdquo que obviamente o opera e canta-lhe uma canccedilatildeo de ninar o

bebecirc olha em torno para a plateacuteia brinca com o pai e assim por diante Sua cabeccedila eacute

esculpida em madeira e seu corpo um saco de tecido Quando ele se vira para dormir expotildee

costas nuas que natildeo eacute nada aleacutem da matildeo de seu operador (Obrastzov 1985 [1981] 84-7)

Ou entatildeo a figura de um becircbado que canta uma canccedilatildeo inebriada de tristeza e durante

todo o tempo servindo-se de um copo de vodka atraacutes do outro Sua cabeccedila eacute de tecido

recheado com uma boca que abre e fecha seu corpo eacute pouco mais que uma camisa pendurada

em espaacuteduas de madeira A matildeo que enche reiteradamente o copo entretanto ligada ao corpo

por uma manga eacute a matildeo de fato do operador (Obrastzov 1985 [1981] 115-7) Nenhum dos

elementos teatrais nesses dois exemplos eacute inteiramente inanimado uma vez que ambos

incorporam e expotildeem carne viva mesmo assim poucas pessoas negariam que se trata de

242

bonecos As possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da forma natildeo se encerram com

figuras que satildeo inteiramente inanimadas

Exemplos mais radicais podem ser apresentados Tomemos por exemplo as figuras

hipoteacuteticas de dois amantes Acompanhados por ldquoSentaacutevamos sozinhos perto de um rio

murmuranterdquo de Tchaikovsky os amantes se encontram pela uacuteltima vez aproximam-se um o

outro riem e choram suspiram de tristeza abraccedilam-se e beijam-se e finalmente despedem-

se Suas cabeccedilas satildeo pouco mais que pequenas esferas de madeira e seus corpos natildeo satildeo outra

coisa que natildeo as matildeos nuas do operador dos dois personagens As esferas de madeira estatildeo

presas a um dedo de cada matildeo (Obrastzov 1985 [1981] 107-8)

E tomemos as figuras de dois combatentes sem dizer uma palavra discutem e lutam e

um eacute subjugado fazendo o outro triunfante Mas as figuras natildeo passam de matildeos humanas A

matildeo triunfante se torna um muro a matildeo vencida torna-se um punho fechado e bate contra a

parede o muro natildeo cede e a matildeo subjugada cai a matildeo triunfante fecha o punho ambas as

matildeos esticam-se palmas abertas num gesto que silenciosamente pergunta ldquoPor quecircrdquo

Haacute pouco ou nada inanimado nas figuras desses dois exemplos matildeos vivas dominam

a apresentaccedilatildeo E ainda as matildeos das maneiras como satildeo usadas podem ser consideradas

bonecos pois natildeo satildeo entendidas pelo puacutebico apenas como pares de matildeos mas tambeacutem como

sendo algo aleacutem de matildeos As possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da forma

abrangem figuras que natildeo satildeo predominantemente inanimadas e ateacute mesmo figuras que natildeo

satildeo inanimadas de modo algum

O uacuteltimo desses exemplos eacute um sketch sobre o Muro de Berlim apresentado por Burr

Tillstrom para a Convenccedilatildeo Internacional de Teatro de Bonecos de 1980 as trecircs anteriores

satildeo sketches de Obrastzov que escreve

O princiacutepio [do boneco de luva]98

consiste em apenas dois elementos a matildeo

humana e a cabeccedila do boneco [O corpo do boneco] eacute apenas um figurino

Mas dispa o boneco de luva e deixe a sua matildeo exposta com a cabeccedila do

boneco em seu dedo que o boneco permaneceraacute um boneco (1950 186)

De fato como pudemos perceber pode-se ir tatildeo longe a ponto de retirar a cabeccedila do

boneco e a matildeo humana poderaacute permanecer como um boneco Mas se eacute assim e as

possibilidades da forma do boneco podem ir a ponto de se poder abjurar qualquer uso do

98

N T Nesta passagem o termo empregado (hand puppet) seria traduzido mais literalmente por ldquoboneco de

matildeordquo e de fato como se veraacute no decorrer o livro este termo abrangeraacute praacuteticas que ampliam as possibilidades

da luva tradicional Foi escolhido o termo boneco de luva para esta passagem por trecircs motivos a saber 1 o

termo hand puppet traduz em diversos exemplos o que em portuguecircs chama de boneco de luva 2 boneco de

luva eacute uma expressatildeo mais familiar na liacutengua portuguesa para o boneco descrito na passagem 3 o trecho citado

de Obrastzov de fato menciona em termos de forma e teacutecnica o emprego de um boneco de luva

243

inanimado entatildeo como poderemos considerar o ator um boneco e ainda assim compreender a

existecircncia de uma distinccedilatildeo entre ator e boneco

Obrastzov faz uma observaccedilatildeo esclarecedora a respeito de sua cena com a figura do

bebecirc ldquoMinha matildeo direita sobre a qual eu visto o boneco vive separadamente de mim com

um ritmo e uma personalidade proacuteprias [Ela] conduz um diaacutelogo silencioso comigo ou me

ignorando ao mesmo tempo vive sua vida independentementerdquo (1950 155) Essa ldquovida

separadardquo do boneco com ldquouma personalidade proacutepriardquo eacute um ponto vital Parece evidente que

quando uma plateacuteia vecirc as costas da matildeo do operador como sendo as costa do bebecirc ela

compreende que a matildeo natildeo eacute apenas uma matildeo mas mais importante como parte da figura do

bebecirc Semelhentemente quando uma plateacuteia vecirc a matildeo do operador como sendo a matildeo da

personagem representada pelo boneco ela eacute percebida natildeo apenas como uma matildeo humana

mas mais importante como sendo a matildeo da figura Em cada um desses casos a matildeo que

veste o boneco ldquovive separadamenterdquo e eacute reconhecida separadamente do ator e faz parte na

percepccedilatildeo do puacuteblico da mesma natureza do resto da figura Ou seja natildeo eacute percebida tanto

como sendo uma matildeo mas como um objeto

Este princiacutepio se estende agraves matildeos que Obrastzov usa como corpos de bonecos e agraves

matildeos que Tillstrom usa para representar corpos um muro e as ideacuteias de raiva supremacia e

anguacutestia mental Devido aos modos pelos quais as matildeos satildeo usadas nas formas desses

bonecos mesmo se ndash como ocorre com Tillstrom ndash elas satildeo o uacutenico elemento da forma e

devido aos modos pelos quais se daacute movimento e voz aos bonecos a matildeo do ator pode ser

entendida como algo ldquoseparadordquo dele mesmo Assim o ator pode ser considerado um boneco

quando este se apresenta de tal maneira que a plateacuteia eacute conduzida a entendecirc-lo natildeo apenas

como algo vivo tambeacutem em seu todo ou em parte como um objeto

Outra questatildeo surge em decorrecircncia dessa afirmaccedilatildeo como seraacute possiacutevel distinguir

entre um ator que eacute entendido como um objeto e um ator que se apresenta com uma maacutescara

ou figurino Para dar um simples exemplo o Mickey Mouse que sauacuteda os visitantes na

Disneylacircndia pode ser considerado um boneco

Essa questatildeo eacute especialmente difiacutecil de ser respondida devido o desejo de muitas

pessoas envolvidas com o boneco de anexar a maacutescara no campo do teatro de bonecos Baird

escreve

Maacutescaras estatildeo a exatamente um ou dois passos evolucionaacuterios do boneco

Quando um danccedilarino solitaacuterio mascarado comeccedilou a surgir como artista

era o comeccedilo da performance teatral e um passo de deslocamento da

maacutescara em seu processo de transformaccedilatildeo em boneco Gradualmente a

maacutescara moveu-se para cima para fora da cabeccedila e foi posta diante do

244

corpo Mais tarde moveu-se mais para longe e foi feita viver por

manipulaccedilatildeo (1965 30)

As bases antropoloacutegicas para a afirmaccedilatildeo de Baird satildeo evidentemente discutiacuteveis

mas claramente demonstram sua crenccedila num relacionamento iacutentimo entre o ator mascarado ou

aparatado e o boneco

Peter Arnott o antigo artista e pesquisador inglecircs que apresentava o repertoacuterio claacutessico

com bonecos iria bem mais adiante no que se refere a essa intimidade ldquoPodemos dizer que

sempre que um ator veste uma maacutescara ndash seja literalmente como nas peccedilas gregas e romanas

ou figurativamente como quando representa um papel fortemente tipoloacutegico ndash ele estaacute

abnegando sua individualidade e fazendo de si mesmo um bonecordquo (1964 77) Uma anexaccedilatildeo

como essa certamente termina indo longe demais pois poderia transformar grande parte

daquilo que conhecemos como teatro de atores como parte do teatro de bonecos A definiccedilatildeo

de boneco pode dificilmente ser esticada a esse ponto de modo a natildeo atingir todo o resto

alijando a palavra de qualquer significado particular

Para se distinguir entre o ator subsumido no boneco e o ator vestindo uma maacutescara ou

um figurino devemos considerar a percepccedilatildeo da plateacuteia se o puacuteblico entender a maacutescara ou

figurino como nada aleacutem de uma vestimenta em um ator vivo entatildeo eacute exatamente o que isso

seraacute mas se o puacuteblico enxergar o ator em maacutescara ou figurino como uma parte do objeto

entatildeo ele deve ser reconhecido como boneco Nosso Mickey Mouse com sua fisionomia

estrutural notadamente humana certamente natildeo eacute percebido como um objeto natildeo sendo

assim um boneco mas apenas um ator numa roupa

O primeiro problema com as definiccedilotildees de McPharlin e Baird entatildeo pode ser

resolvido com o entendimento de que as possibilidades proacuteprias ao sistema de signos de

forma do boneco transcende ao inanimado O boneco eacute um ldquoobjetordquo apenas no entendimento

da plateacuteia Seraacute uacutetil quando natildeo se puder perceber explicitamente a percepccedilatildeo da plateacuteia o

emprego das aspas como modo de nos lembrar que a palavra natildeo se limita ao que eacute

inanimado mas mais que isso refere-se implicitamente agrave percepccedilatildeo da plateacuteia sobre a figura

em questatildeo

Se este primeiro problema com as definiccedilotildees existe independentemente de sua

amplitude o segundo problema se apresenta justamente por causa dessa amplitude Na

tentativa de ampliar as possibilidades daquilo que pode ser considerado boneco o conceito

termina por ser aberto demais Quando McPharlin escreve que ldquoo boneco move-se sob

controle humanordquo e Baird que ele ldquose move por esforccedilo humanordquo eles sugerem que qualquer

elemento teatral movido dessa forma passa a ser um boneco Mas seraacute isso verdadeiro

245

Usemos um exemplo teoacuterico mundano uma bengala estaacute apoiada contra um painel

cenograacutefico de modo a representar uma janela num determinado momento um contra-regra

move a bengala e o painel ateacute outro local A bengala e o painel satildeo certamente ldquoelementos

teatraisrdquo e tambeacutem ldquoobjetos inanimadosrdquo com certeza foram ldquomovidos sob controle

humanordquo ou ldquomovidos por meio de esforccedilo humanordquo Ainda assim seria difiacutecil de imaginar

que algueacutem os quisesse chamar de bonecos Seria eacute claro perfeitamente possiacutevel usar

bengalas e paineacuteis como bonecos eacute possiacutevel usar isso deve ser dito qualquer coisa como um

boneco Mas claramente a bengala e o painel em questatildeo natildeo satildeo bonecos De alguma

maneira os bonecos devem distinguir-se de adereccedilos e cenaacuterios pelo fato de que nem todo o

objeto movido sobre a cena pode ser considerado boneco

Uma soluccedilatildeo para esse problema eacute vagamente sugerida pelo emprego por parte de

McPharlin da palavra teatral que poderia ser empregada para sugerir algo de natureza mais

significativa do que adereccedilos e cenaacuterio Marjorie Batchelder uma grande forccedila do teatro de

bonecos norte americano tambeacutem uma estudiosa e uma produtora natildeo se contenta com uma

simples sugestatildeo ldquoo boneco eacute um ator participando em algum tipo de apresentaccedilatildeo teatralrdquo

(1947 xv) Isto se afirma de uma maneira tal que nem a bengala nem o painel podem ser

entendidos como se estivessem atuando embora ambos participem a suas maneiras de uma

representaccedilatildeo teatral Mas a soluccedilatildeo de Batchelder embora natildeo seja uma tentativa de fazer

com que representaccedilatildeo com atores seja considerada teatro de bonecos se apresenta como um

problema semacircntico o boneco eacute certamente um ator de certa forma mas como jaacute vimos ele

dever se distinguir do ator de alguma maneira se o termo boneco possui algum significado

Batchelder faz a sua distinccedilatildeo referindo-se aos ldquomeios mecacircnicosrdquo de motivaccedilatildeo do boneco

(1947 xv) Isto no entanto tambeacutem eacute problemaacutetico bonecos de luva bem como matildeos usadas

como bonecos satildeo motivados sem o emprego de meios mecacircnicos mais que isso a confusatildeo

semacircntica entre boneco e ator persiste apesar da distinccedilatildeo Para se evitar essa confusatildeo seraacute

uacutetil examinar precisamente como o boneco pode ser percebido como um ator

Vejamos mais uma vez o uso que Baird faz do termo inanimado Essa palavra nos

compele considerar natildeo apenas a palavra em si mas tambeacutem ao seu oposto Obrastzov

escreve a respeito do ldquoprocesso por meio do qual o inanimado se torna animadordquo (1967

[1965] 19) Se o boneco eacute algo inanimado entatildeo sua significacircncia teatral natildeo se cria pelo fato

dele ser movido com tal mas por ser animado Nem a bengala nem o painel do exemplo

oferecido haacute pouco podem ser entendidos como tendo sido animados Esta soluccedilatildeo no

entanto embora seja um tanto comum apresenta certas dificuldades semacircnticas

246

Iniciemos com uma dificuldade menor a palavra animaccedilatildeo tem sido empregada de

forma bastante ampla pela induacutestria cinematograacutefica significando desenhos animados

Embora haja grande similaridade entre desenhos animados e teatro de bonecos e embora

certas estilos de animaccedilatildeo de bonecos tais como ldquoClaymationrdquo possam ser criados apenas

com o emprego de teacutecnicas de desenho animado natildeo se deve negligenciar as diferenccedilas

existentes entre esses dois meios mais significantes que as suas semelhanccedilas empregando o

mesmo termo para categorizaacute-los

A dificuldade maior eacute a que animar algo quer dizer no senso literal da palavra dar-lhe

o sopro da vida Como metaacutefora isto possui grande significado para a animaccedilatildeo de bonecos

Mas fora do acircmbito metafoacuterico eacute absurdo pois eacute claro o boneco natildeo estaacute de fato vivo Como

admite Obrastzov

De fato nenhum objeto inanimado pode ser animado ndash nenhum tijolo

retalho brinquedo (ainda que mecacircnico) ou boneco teatral ndash natildeo importa

quatildeo virtuosiacutestica seja a sua movimentaccedilatildeo quando eacute manipulado pelo

marionetista Qualquer que seja a circunstancia os objetos relacionados

acima permaneceratildeo como objetos desprovidos de quaisquer aspectos

bioloacutegicos Entretanto em matildeos humanas qualquer objeto ndash o mesmo tijolo

retalho sola de sapato ou garrafa ndash pode cumprir a funccedilatildeo de um objeto vivo

na imaginaccedilatildeo associativa do homem Pode mover-se rir chorar ou declarar

seu amor (1985 [1981] 264)

A animaccedilatildeo como ela eacute natildeo se relaciona de fato com o boneco teatral antes o que se

relaciona com o boneco teatral eacute o movimento dado a um objeto de modo tal que ele possa

como diz Obrastzov ldquopreencher a funccedilatildeo de um objeto vivo na fantasia associativa do

homemrdquo ou nos termos de seus estudos ser imaginado como estando vivo Assim embora

adereccedilos e cenaacuterios possam ser movimentados em cena o movimento que se daacute ao boneco se

daacute de forma a encorajar a imaginaccedilatildeo de vida

Outras questotildees associadas surgem o boneco permaneceria boneco mesmo quando

natildeo eacute movimentado e repousa num armaacuterio ou museu Concedemos a vaacuterios objetos

desprovidos de uso o tiacutetulo de boneco mas sob qual autoridade Michael R Malkin um

produtor e estudioso norte americano informa que ldquobonecos africanos frequumlentemente

manteacutem pequena relaccedilatildeo com os conceitos ocidentais de como deve se parecer um boneco [e

assim] uma identificaccedilatildeo clara e inequiacutevoca de muitas figuras [como sendo bonecos] satildeo

geralmente complicadas de serem obtidasrdquo (1977 71)

As implicaccedilatildeo disso satildeo de grande importacircncia Pois apenas por meio da identificaccedilatildeo

de familiaridades com tradiccedilotildees particulares de teatro de bonecos que podemos identificar

certos objetos ou de modo mais geral com certas famiacutelias de objetos como sendo bonecos

Assim noacutes do ocidente podemos reconhecer certas classes de objetos como sendo dedicados

247

especialmente para serem usados como bonecos tais como bonecos de luva ou marionetes e

podemos facilmente chamar de boneco um objeto que pertenccedila a tal classe Mas uma extensa

variedade de objetos pertencentes a classes de objetos que natildeo satildeo especialmente dedicadas a

teatro de bonecos tais como matildeos humanas esferas de madeira utensiacutelios de cozinha entre

outras tecircm de fato sido usados como bonecos Decorre daiacute que a conferencia do tiacutetulo de

boneco a qualquer objeto em repouso ou mais especificamente que natildeo esteja em

performance poderaacute apenas ser sugestiva O boneco natildeo pode ser definido apenas em termos

da sua forma Mais que isso precisa ser definido como algo que natildeo um objeto ou uma classe

de objetos caracterizados por formas fiacutesicas especiacuteficas o boneco precisa ser definido assim

tendo associado a ele o sistema de signos complemetar que auxilia a plateacuteia e imaginaacute-lo vivo

Malkin entende essa necessidade Como escreveu noutro artigo ldquoo objeto animado

torna-se um boneco natildeo quando o operador assume controle total sobre ele mas no momento

infinitamente mais sutil quando o objeto parece desenvolver uma vida independenterdquo (1980

9)

O segundo problema entatildeo pode ser resolvido por meio do entendimento de que o

movimento de um elemento sobre o palco natildeo necessariamente invoca ou pretende invocar agrave

imaginaccedilatildeo da plateacuteia que este possui vida De fato seraacute uacutetil quando natildeo se provocar de

modo expliacutecito a imaginaccedilatildeo da plateacuteia o emprego de aspas como maneira e lembrar ao leitor

que a palavra natildeo busca supor que o boneco possua uma vida real mas antes provocar

implicitamente a receptividade da imaginaccedilatildeo da plateacuteia quando em contato com a figura em

questatildeo

O terceiro problema com as definiccedilotildees de McPharlin e Baird eacute a sugestatildeo de que o

movimento seja a caracteriacutestica definidora do boneco McPharlin declara categoricamente que

ldquoeacute o movimento verdadeiro ou ilusoacuterio que confere animaccedilatildeo a um bonecordquo (1938 81) O

movimento eacute claro eacute um dos trecircs sistemas de signos de cujos signos se constitui o boneco e

de acordo com McPharlin pode ser perfeitamente o mais significativo dos trecircs sistemas

referidos Segundo escreve Louis Duranty um francecircs do seacuteculo XIX ldquoo que os bonecos

fazem domina inteiramente o que dizemrdquo (citado em Veltruskyacute 1983 97)

Por outro lado o boneco durante a sua apresentaccedilatildeo pode permanecer imoacutevel por

longos periacuteodos de tempo e pode em raras ocasiotildees permanecer sem mover-se de fato

durante toda a apresentaccedilatildeo e ser algo aleacutem de uma mera figura decorativa ndash ou seja ser algo

mais que uma estaacutetua Isto se daacute porque o sistema de signos da fala tambeacutem se faz disponiacutevel

ao boneco e na ausecircncia do movimento do boneco as possibilidades especiacuteficas desse

sistema de signos em conjunccedilatildeo com o sistema de signos da forma pode permitir agrave plateacuteia

248

imaginar que o boneco possui vida Os sistemas de signos de forma e fala satildeo de uma

importacircncia vital para o teatro de bonecos e ao negligenciaacute-los as definiccedilotildees de McPharlin e

Baird negligenciam alguns dos aspectos constitutivos do boneco

Henryk Jurkowski cujas duacutevidas acerca da aproximaccedilatildeo sincrocircnica foram discutidas

em nossa introduccedilatildeo oferece uma definiccedilatildeo para o teatro de bonecos que incorpora todos os

trecircs sistemas de signos disponiacuteveis ao boneco

O teatro de bonecos eacute uma arte teatral sendo que a caracteriacutestica baacutesica e

principal que o diferencia do teatro de atores sendo que os objetos que falam

e se apresentam fazem uso temporal de fontes vocais e motoras que se

encontram fora do objeto As relaccedilotildees entre o objeto (o boneco) e as fontes

de energia [os vocalizadores eou manipuladores] alteram-se

constantemente e tais variaccedilotildees satildeo de grande importacircncia semioloacutegica e

esteacutetica (1988 [1983] 79-80)

Devemos notar que esta se trata de uma definiccedilatildeo para o teatro de bonecos e natildeo do

boneco em si Ainda assim podemos certamente ver elementos essenciais a uma definiccedilatildeo do

boneco aqui o boneco eacute um objeto ao qual se daacute ldquouso temporalrdquo de ldquoenergia vocal e motorardquo

externas o que eacute de importacircncia decisiva

Ao apresentar essa definiccedilatildeo Jurkowski parece estar fazendo o mesmo tipo de

afirmaccedilatildeo sincrocircnica que desacreditou anteriormente Seja como for a sua definiccedilatildeo jaacute seria

um avanccedilo em relaccedilatildeo agraves definiccedilotildees de McPharlin e Baird apenas pelo reconhecimento que

apresenta de cada um dos trecircs sistemas de signos Mas ela vai aleacutem disso Sua insistecircncia na

separaccedilatildeo e no relacionamento entre o objeto e suas ldquofontes de energiardquo prepara o caminho

para uma anaacutelise de como os sistemas de signos operam independentemente e associados Haacute

no entanto tambeacutem trecircs problemas com a definiccedilatildeo de Jurkowski

O primeiro problema eacute que ao mesmo tempo em que a definiccedilatildeo reconhece os trecircs

sistemas de signos separadamente parece sugerir que movimento e fala devem estar presentes

se quisermos aceitar um determinado objeto como sendo um boneco Jurkowski menciona o

ldquoobjeto que fala e se apresentardquo ldquoas fontes fiacutesicas das forccedilas motoras e vocaisrdquo (grifo nosso)

Aleacutem disso ao contraacuterio das afirmaccedilotildees categoacutericas de McPharlin acerca do movimento

Jurkowski faz-se categoacuterico acerca da fala Charles Magnin um historiador do teatro francecircs

do seacuteculo XIX argumenta que ldquoa separaccedilatildeo entre palavra e accedilatildeo eacute precisamente aquilo que

constitui a peccedila de bonecosrdquo (citado em Proschan 1983 20) Jurkowski refina essa discussatildeo

ldquoA possibilidade de separaccedilatildeo entre o objeto falante e a fonte fiacutesica da palavra eacute a qualidade

distintiva do bonecordquo (1988 [1983] 79)

Mas consideremos dois casos no primeiro uma danccedila narrativa eacute apresentada por

figuras inanimadas movimentadas sobre a cena em acompanhamento agrave muacutesica no segundo

249

uma danccedila narrativa eacute apresentada sobre um palco por bailarinos vivos em acompanhamento

agraves vozes das personagens No primeiro caso apesar da ausecircncia de qualquer fala as figuras em

cena dificilmente seriam consideradas como algo que natildeo bonecos no segundo caso apesar

da presenccedila de se uma fonte separada para as falas o bailarinos vivos dificilmente seriam

considerados algo que natildeo danccedilarinos vivos A insistecircncia de Jurkowski de que os sistemas de

signos de fala e movimento operam sempre em conjunccedilatildeo conduz agrave negaccedilatildeo daquilo que

poderia ser obviamente considerado boneco Ao refinar o argumento de Magnin com a

alegaccedilatildeo de que a separaccedilatildeo que se daacute eacute entre fala e objeto em vez de fala e accedilatildeo Jurkowski

evita o completo absurdo mas a sua insistecircncia na primazia da fala sobre o movimento ainda

assim aponta para tal direccedilatildeo O problema das relaccedilotildees entre os dois sistemas de signos pode

entretanto ser facilmente resolvido se natildeo houver ecircnfase de nenhum dos sistemas de signos

sobre o outro a priori mas permitir que seus signos existam separadamente ou

conjuntamente em conjunccedilatildeo com a proacutepria forma do objeto na proacutepria constituiccedilatildeo do

boneco

O segundo problema com a definiccedilatildeo de Jurkowski eacute que quando fala do boneco como

um objeto ele se refere exatamente ao seguinte algo de uma natureza completamente

inanimada Assim o teatro de bonecos natildeo pode incorporar qualquer parte do ator vivo ao

boneco De fato como veremos mais adiante Jurkowski chega a ponto de considerar

desconsiderar o boneco de luva como boneco pois a plateacuteia presta atenccedilatildeo agrave miacutemica da matildeo

do operador para a qual o boneco em si natildeo passaria de um figurino (1988 [1979] 21-2)

Assim Jurkowski limita severamente as possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da

forma do boneco e mais ele desafia o entendimento geral daquilo que a palavra boneco que

dizer Esse problema como vimos pode ser resolvido em se levando a seacuterio a percepccedilatildeo do

puacuteblico o que eacute percebido como sendo um objeto independentemente de sua verdadeira

natureza pode igualmente ser percebido como um boneco

O terceiro problema com a definiccedilatildeo de Jurkowski eacute que ao mesmo tempo em que

considera os trecircs sistemas de signos do boneco natildeo menciona o propoacutesito da apresentaccedilatildeo

dos signos do boneco a criaccedilatildeo de algo que uma plateacuteia imaginaraacute como sendo vivo

Jurkowski natildeo estaacute desatento a esse propoacutesito pois escreve sobre o boneco ldquotanto como

boneco quanto como personagem teatralrdquo (1988 [1983] 78) Mas essa mesma atenccedilatildeo natildeo eacute

encontrada em sua definiccedilatildeo Esse problema pode ser solucionado com o simples

reconhecimento do resultado teatral que se deseja a vida imaginada do boneco que ocorre

quando seus signos satildeo apresentados de forma competente

250

Deve-se ser registrado que Jurkowski recentemente expressou duacutevidas quanto a sua

definiccedilatildeo ldquoEu tenho duvido da possibilidade de se criar uma definiccedilatildeo coerente e universal

para o teatro de bonecos moderno Imagino que teremos que estudar cada gecircnero daquilo

que eacute considerado teatro de bonecos de modo a determinar suas caracteriacutesticas e suas

linguagensrdquo (1990 18) Essa duacutevida surge do desenvolvimento daquilo que Jurkowski chama

de ldquoteatro de bonecos no sentido mais amplordquo no qual o boneco ldquopossui uma natureza e

estrutura profana [ao inveacutes de sagrada]rdquo e na qual ldquoo artista natildeo mais serve ao boneco faz o

boneco servira ele e agraves suas ideacuteiasrdquo (1990 17) Devido agrave sua profunda preocupaccedilatildeo com a

questatildeo da ldquoservidatildeordquo sobre a qual ainda veremos mais Jurkowski natildeo consegue deixar de

acreditar que as produccedilotildees nas quais a apresentaccedilatildeo do operador for de significacircncia igual ou

superior agrave do boneco devem ser de uma natureza do que a do teatro de bonecos convencional

Natildeo obstante o ponto central da definiccedilatildeo do boneco depreendido a partir da definiccedilatildeo dada

por Jurkowski para o teatro de bonecos natildeo parece ser afetada por esse desenvolvimento no

teatro de bonecos moderno e manteacutem as mesmas forccedilas e fraquezas que temos discutido

Antes de estabelecer as bases para uma nova definiccedilatildeo para o boneco vamos resumir

brevemente as anaacutelises em curso Lembremos que o primeiro problema localizado nas

definiccedilotildees de McPharlin e Baird eacute que apesar de sua amplitude elas natildeo permitem a

participaccedilatildeo do ator como boneco natildeo contemplando de maneira justa as possibilidades

inerentes ao sistema de signos da forma Esse problema se resolve no entendimento de que o

ator vivo pode apresentar-se em parte ou em todo de modo a permitir que a plateacuteia o entenda

da mesma maneira como entende o restante da figura ou seja como um objeto

O segundo problema com essas definiccedilotildees eacute que em sua amplitude elas natildeo

distinguem entre boneco e cenaacuterio ou adereccedilo uma vez que ignoram o propoacutesito de animaccedilatildeo

do movimento do boneco Esse problema se resolve com o entendimento de que o movimento

conferido ao boneco se daacute com o propoacutesito expliacutecito de sugerir agrave plateacuteia que esta imagine que

o boneco possui algo que de fato natildeo tem uma vida independente

O terceiro problema com essas definiccedilotildees eacute que enfatizando a questatildeo do movimento

como fazem ignoram a importacircncia do sistema de signos da forma do boneco e

principalmente da fala O problema se resolve com o entendimento de que forma e fala satildeo

de fato dois dos trecircs sistemas de signos fundamentais do boneco

A definiccedilatildeo de Jurkowski resolve esse terceiro problema mas lhe impotildee uma nova

virada na alegaccedilatildeo de que os sistemas de signos de movimento e fala devem ser empregados

conjuntamente e que desses dois o sistema da fala seria o mais significante Ainda sua

definiccedilatildeo insiste na questatildeo de que o boneco deve ser puramente um objeto sem incorporar

251

qualquer parte do ator vivo Finalmente sua definiccedilatildeo natildeo reconhece o efeito teatral da

apresentaccedilatildeo do boneco Mas como jaacute foi visto todos esses problemas possuem soluccedilotildees

Ao juntarmos todas as nossas soluccedilotildees o caminho torna-se livre afinal para

respondermos a pergunta apresentada no iniacutecio deste capiacutetulo quando as pessoas mencionam

o boneco teatral estatildeo se referindo a elementos que satildeo reconhecidos por uma plateacuteia como

sendo objetos aos quais satildeo conferidos forma movimento e frequentemente fala de uma

maneira tal que a plateacuteia os imagina como possuidores de uma vida

A formulaccedilatildeo dessa resposta eacute o exato ponto de partida para o entendimento de uma

compreensatildeo teoacuterica completa do boneco Mas antes que tal entendimento possa ser

desenvolvido seraacute necessaacuterio explorar a natureza do interesse universal pelo boneco explorar

assim as diversas explicaccedilotildees jaacute apresentadas acerca da sobrevivecircncia do boneco Tal

exploraccedilatildeo iraacute em uacuteltima apreciaccedilatildeo no conduzir ateacute uma expansatildeo da definiccedilatildeo baacutesica ateacute

aqui oferecida jaacute que o problema dessa explicaccedilatildeo eacute como iremos perceber profundamente

relacionado com o de definiccedilatildeo Apenas quando descobrirmos as bases da continuidade da

existecircncia teatral do boneco estaremos aptos a entender a natureza esteacutetica particular do

boneco como objeto percebido e vida imaginada

252

2

EXPLICACcedilOtildeES CONSAGRADAS

Estivemos explorando aquilo que as pessoas querem dizer quando mencionam o

boneco teatral mas o que eacute que o boneco tem de mais para ser mencionado Batchelder

apresenta a questatildeo ldquoimaginamos quais seriam as qualidades inerentes ao teatro de bonecos

que lhe conferiram vitalidade suficiente para manter-se como uma arte independente e qual

encanto fundamental lhe garantiu a popularidade que possui entre os mais variados tipos de

pessoasrdquo (1947 278) A tarefa a ser desempenhada por essa explicaccedilatildeo eacute o de demonstrar o

que satildeo essas qualidades ou mesmo demonstrar que uma uacutenica qualidade relaciona-se a toda

a arte do boneco Natildeo deve haver duacutevidas de que o teatro de bonecos possui uma determinada

quantidade de qualidades que lhe sejam proacuteprias Mas haveraacute qualquer explicaccedilatildeo acerca de

sua sobrevivecircncia e apelo que se apoacuteie sobre uma qualidade constante que exista juntamente

e atraveacutes de todas as outras

Outros autores tecircm proposto soluccedilotildees a este problema mas tais soluccedilotildees raramente

tecircm sido sistematicamente revisadas de modo que as relaccedilotildees entre tais soluccedilotildees natildeo tecircm sido

estabelecidas claramente A presente anaacutelise consideraraacute as soluccedilotildees anteriormente propostas

em trecircs seccedilotildees cada uma dedicando-se a um dos principais componentes de uma produccedilatildeo em

teatro de bonecos o artista o boneco e a plateacuteia Deve-se mencionar que alguns autores tecircm

proposto soluccedilotildees que atravessam esses limites um tanto arbitraacuterios entre os grupos citados e

que o propoacutesito desta anaacutelise natildeo eacute tanto categorizar as possiacuteveis soluccedilotildees quanto eacute encontrar

um modo coerente de trazecirc-las agrave luz

EXPLICACcedilOtildeES BASEADAS NO ARTISTA

Natildeo deve haver questatildeo acerca do fato de que o teatro de bonecos oferece uma seacuterie de

possibilidades interessantes ao artista de teatro Essas possibilidades satildeo de trecircs qualidades

baacutesicas primeiro o teatro de bonecos oferece ao artista uma oportunidade extraordinaacuteria de

controle sobre um meio segundo oferece ao artista a licenccedila do boneco para falar e atuar com

grande liberdade sem o risco de retaliaccedilatildeo terceiro oferece ao artista um meio que natildeo eacute por

sua proacutepria natureza limitada pela realidade

No teatro de bonecos o artista pode desempenhar todas as funccedilotildees necessaacuterias agrave

produccedilatildeo da peccedila e frequentemente eacute exatamente isso o que acontece David Currel um

artista de teatro de bonecos inglecircs vangloria-se de que ldquoo marionetista eacute uma combinaccedilatildeo

253

rara de escultor modelador pintor costureiro eletricista carpinteiro ator escritor produtor

desenhista e inventorrdquo (1987 [1985] 1)

Deve-se tomar em consideraccedilatildeo que o proacuteprio emprego do termo marionetista99

parece

sugerir essa noccedilatildeo de um artista solitaacuterio e multi controlador Essa palavra foi cunhada no

iniacutecio do seacuteculo XX pela fundadora do Chicago Little Theatre Marionettes Ellen Van

Volkenburg Louise Martin nos conta que ldquonatildeo se sabia como chamar o ator-manipulador

naquela eacutepocardquo e que Van Volkenburg natildeo sem um certo receio sair-se com o termo

puppeteer criado com base do termo usado para definir o condutor de uma charrete de mulas

muleteer (1945 5) Uma boa parte do teatro de bonecos norte americano encontra suas raiacutezes

direta ou indiretamente no Chicago Little Theatre Marionettes e parte de sua heranccedila eacute

justamente a palavra puppeteer A palavra eacute certamente bem mais maleaacutevel do que locuccedilotildees

tais como contrutor de bonecos operador de bonecos vocalizador de bonecos e assim por

diante E assim sendo como indica Currel como todas essas funccedilotildees a ainda outras satildeo

usualmente desempenhadas por uma uacutenica pessoa o surgimento do termo marionetista era

algo provavelmente inevitaacutevel Na verdade a grande organizaccedilatildeo dedicada ao avanccedilo da arte

do teatro de bonecos nos Estados Unidos chama-se Puppeteers of America [Marionetistas da

Ameacuterica]

No entanto a palavra traz em si a pressuposiccedilatildeo do artista multi controlador Se como

se pode perceber no nosso exemplo japonecircs algumas pessoas projetam e criam a cabeccedila a

peruca e o figurino do boneco ao passo que outras pessoas operam a figura que resulta dessa

combinaccedilatildeo em cena ao mesmo tempo em que outras lhe concedem a voz o termo

marionetista natildeo seria nesse caso impreciso Erik Koacutelar um estudioso Tcheco fala do

marionetista como existindo em ldquounidade inseparaacutevel com o seu bonecordquo (1967 [1965] 32)

Mas em nosso exemplo japonecircs haacute dois ou trecircs operadores e o boneco ainda pode ser

transferido paro o controle de ainda outros operadores Podemos de fato falar de uma iniatildeo

inseparaacutevel entre o boneco e qualquer um desses operadores sem mencionar os diversos

construtores e especialmente o vocalizador que fornece uma contribuiccedilatildeo vital agrave

apresentaccedilatildeo do boneco podemos falar com grande validade do marionetista no sentido que

Currel daacute ao termo Como maneira de tentar iluminar tais dificuldades este estudo evita o

emprego do termo marionetista em favor de termos mais precisos quando necessaacuterio e

99

O autor refere-se ao termo puppeteer que possui grande afinidade com palavra marionetista Assim optou-se

por empregar o termo traduzido apenas indicando quando houver referecircncias agrave sonoridade ou a outros aspectos

especiacuteficos da palavra inglesa

254

artista de bonecos quando um termo mais geneacuterico mas menos comprometido fizer-se

necessaacuterio

O artista de bonecos especialmente sob a faceta de marionetista pode assegurar-se de

que nenhum de seus colaboradores iraacute lhe impor a sua visatildeo artiacutestica especiacutefica uma vez que

este dispensa a necessidade de qualquer colaboraccedilatildeo Arnott argumenta que ldquoo problema que

aflige aquele que se propotildee a criar uma obra na arte do teatro eacute a questatildeo da unidade ocorre

que unidade eacute algo que se alcanccedila com maior facilidade quando apenas uma mente criativa

se envolve no processordquo (1964 74) E como observa Batchelder o teatro de bonecos oferece

ao artista de teatro a melhor oportunidade de obter tal unidade uma vez que ldquoo espetaacuteculo de

bonecos usualmente se constroacutei em uma escala inferior agravequela necessaacuteria para o teatro

humano assim consegue-se mais facilmente alcanccedilar a siacutenteserdquo (1947 280)

Quando artistas mencionam o problema em se alcanccedilar unidade ou siacutentese na

expressatildeo artiacutestica estatildeo sugerindo que a colaboraccedilatildeo eacute mais um impedimento que uma ajuda

A colaboraccedilatildeo da qual mais se ressente eacute aquela que se estabelece com atores Arthur

Symons um escritor de teatro norte americano da virada do seacuteculo [XX] reclamava que ldquoo

ator vivente mesmo quando concorda em subordinar-se agraves necessidades da pantomima

sempre apresenta aquilo que ele orgulhosamente chama de temperamento em outras

palavras muito capricho pessoalrdquo (1909 3) Symons foi uma influecircncia significativa para

Edward Gordon Craig o britacircnico visionaacuterio do teatro que fez uso dessa linha de raciociacutenio

para o seu extremo loacutegico apesar de altamente teoacuterico ldquoO ator deve partir e em seu lugar

viraacute a figura inanimada ndash a qual poderemos chamar Supermarioneterdquo (1911 81)

Craig gostaria de possuir um controle absoluto sobre cada aspecto de seu teatro ainda

que outros operassem ou mesmo fossem as suas ldquoSupermarionetesrdquo o seu controle ainda

assim natildeo seria diminuiacutedo Como aponta Irene Eynat-Confino

Nos cadernos de anotaccedilotildees sobre as ldquoUumlber-Marionsrdquo Craig apresenta

diversas razotildees para se inventar a Supermarionete [Entre elas estaacute o

desejo de] eliminar o elemento de acaso na atuaccedilatildeo Uma vez que Craig

pretendia fornecer planos cuidadosamente planejados para cada movimento

as falhas humanas [de operadores ou atores] natildeo teriam grandes

consequumlecircncias (1987 89)

Seria talvez vaacutelido apontar que Craig jamais produziu de fato qualquer espetaacuteculo do seu

teatro de Supermarionetes Pelo menos uma razatildeo para tal aleacutem das usuais dificuldades

financeiras que afligiam Craig eacute clara a extrema dificuldade que haacute para qualquer pessoa de

manter um controle absoluto sobre qualquer empresa teatral substancial De fato Batchelder

255

faz uma indicaccedilatildeo dessa questatildeo quando aborda o fato de a ldquoescala menorrdquo do teatro de

bonecos ser algo desejaacutevel ainda as produccedilotildees de Peter Arnott eram one-man shows

Muitos artistas de bonecos seguindo Craig procuram criar uma arte unificada e

sinteacutetica por meio do emprego de um controle absoluto aproximado agravequeles do pintor ou do

escultor Mas parece ser uma suposiccedilatildeo estranha de que o melhor das artes existe apenas

como expressatildeo do artista solitaacuterio A colaboraccedilatildeo no teatro certamente jaacute produziu grande

arte ndash maior nos parece do que qualquer artista teatral solitaacuterio jaacute produziu E tal arte tem

sido capaz de alcanccedilar unidade e siacutentese apesar ou ateacute mesmo por causa dos vaacuterios egos e

visotildees de seus colaboradores Pode-se argumentar de fato que esses egos e visotildees

juntamente com o talento que os acompanha produzem um efeito simbioacutetico um sobre o

outro resultando num trabalho bem maior do que aquele alcanccedilado por uma pessoa apenas

De modo mais significativo o controle artiacutestico absoluto natildeo eacute uma caracteriacutestica

geneacuterica do teatro de bonecos Entre os exemplos apresentados na introduccedilatildeo do livro o

Punch and Judy britacircnico era uma apresentaccedilatildeo solitaacuteria e seu inteacuterprete Percy Press Jr foi

responsaacutevel por todos os aspectos nela envolvidos ainda que alguns desses aspectos fossem

tradicionais e requeressem meramente a sua mediaccedilatildeo Mas todos os outros exemplos foram

empreitadas colaborativas O exemplo japonecircs era o que envolvia o maior nuacutemero de artistas

dois ou trecircs operadores para cada boneco com ateacute trecircs bonecos em cena de cada vez ao

menos um instrumentista e em certas ocasiotildees trecircs ou quatro dentro e fora da cena ao menos

um narrador e por vezes trecircs ou quatro dentro e fora da cena e nos bastidores uma boa

quantidade de figurinistas escultores de cabeccedilas peruqueiros aderecistas e assim por diante

(Adachi 1985 9-11)

O controle artiacutestico absoluto tampouco eacute uma caracteriacutestica exclusiva do teatro de

bonecos Qualquer one-man show com um ator oferece ao artista o mesmo niacutevel de controle

que eacute oferecido ao espetaacuteculo solitaacuterio de teatro de bonecos Por exemplo a produccedilatildeo de Hal

Halbrook de Mark Twain Tonight eacute uma produccedilatildeo tatildeo autocircnoma quanto pode ser qualquer

produccedilatildeo em teatro de bonecos Deve-se ser apontado tambeacutem que a oportunidade de controle

que o teatro de bonecos oferece ao artista se daacute na maior parte das vezes por questotildees

financeiras do que por escolhas artiacutesticas ao menos nos Estado Unidos Dada a realidade

financeira das produccedilotildees de teatro de bonecos seraacute apenas por meio do trabalho solitaacuterio que

o artista poderaacute se sustentar a colaboraccedilatildeo apresenta o risco de ruiacutena financeira

A oportunidade de controle entatildeo natildeo eacute invariavelmente aproveitada no teatro de

bonecos e natildeo eacute uma oportunidade exclusiva desse teatro Por mais valiosa que seja tanto

artiacutestica como economicamente e mesmo levando em conta a frequecircncia com que eacute

256

empregada natildeo seraacute uma uacutenica qualidade que iraacute explicar a sobrevivecircncia do encanto que

exerce o boneco

O teatro de bonecos tambeacutem oferece ao artista a licenccedila conferida pelo boneco para

agir e representar com uma liberdade notaacutevel O boneco por natildeo ser uma pessoa viva natildeo

pode ser responsabilizado por suas accedilotildees e palavras mesmo assim essas accedilotildees e palavras natildeo

satildeo exatamente pertencentes ao artista de bonecos e assim nenhum dos dois parecem carregar

essa responsabilidade Dessa forma o boneco eacute especialmente adequado para a exposiccedilatildeo de

convenccedilotildees sociais e consequecircncias Dois exemplos iratildeo demonstrar ateacute que ponto essa

licenccedila eacute tomada

Bart P Roccoberton Jr Diretor do Programa de Teatro de Bonecos na Universidade de

Cinnecticut (Storrs) conta uma histoacuteria sobre sua visita agrave casa de um famoso artista de teatro

de bonecos norte americano A visita deveria incluir uma olhada na coleccedilatildeo de bonecos do

artista e depois um jantar Assim que chegou Roccoberton foi saudado pelo boneco mais

famoso do artista Foi esse boneco eacute claro operado pelo artista que o guiou pela coleccedilatildeo de

bonecos ao passo que o artista usando sua voz normal fez apenas alguns comentaacuterios

esporaacutedicos Quando se aproximou a hora do jantar Roccoberton testemunhou uma discussatildeo

entre o artista e o boneco o artista sugeriu que se servisse uma bebida e em seguida o jantar

enquanto que o boneco insistia que precisava descansar desejando que o convidado chato

fosse embora Roccoberton ficou aturdido ao ouvir o artista relutantemente concordar com o

boneco em pouco tempo lhe foi mostrada a porta e o artista se desculpava pelo mau gecircnio do

boneco (Roccoberton 1982)

Bogatyrev relata uma licenccedila semelhante ldquoUm certo marionetista foi intimado

acusado de ter feito ataques poliacuteticos do alto do palco de bonecos O marionetista apareceu na

corte carregando o boneco Kašpaacuterek e anunciou que que natildeo sua culpa mas de Kašpaacuterekrdquo

(1983 [1973] 54) Infelizmente natildeo sabemos se as explicaccedilotildees do artista forma aceitas na

corte

Esses exemplos satildeo claro extremos mas o boneco durante a sua apresentaccedilatildeo guarda

para si uma liberdade extraordinaacuteria Lembremo-nos de nossas consideraccedilotildees sobre ldquoPunch

and Judyrdquo Punch comete uma seacuterie de assassinatos violentos todos para a satisfaccedilatildeo de sua

plateia George Speaight em seu estudo magistral A histoacuteria do teatro de bonecos inglecircs

traccedila a linhagem de Punch e conclui

Aproximado historicamente Punch natildeo seraacute visto como um monstro

inumano que passa a sua vida espancando e matando todos aqueles que

cruzam o seu caminho mas como o velho comediante que apenas mata

cada novo personagem que surgido depois dele como a forma mais raacutepida de

257

dar um fim agravequela cena e seguir para a proacutexima Talvez essa seja a razatildeo

fundamental pela qual noacutes rimos de Punch e natildeo nos sentimos horrorizados

Noacutes percebemos que por traacutes de suas vitoacuterias pelo porrete repousa o

arqueacutetipo ldquodaquele que leva as bofetadasrdquo o palhaccedilo primitivo e eterno

(1990 [1995] 184-5)

Natildeo haacute duacutevidas de que Punch eacute uma versatildeo em boneco do palhaccedilo arquetiacutepico Ainda assim

essa natildeo parece uma explicaccedilatildeo suficiente para uma comeacutedia que contenha tanta brutalidade

incessante Precisamos apenas imaginar tal apresentaccedilatildeo feita por atores de carne e osso natildeo

seria algo insuportaacutevel De fato tanta matanccedila aleatoacuteria eacute vista raramente se alguma vez foi

vista no teatro cocircmico feito com atores

O boneco entretanto como natildeo passa de um ldquoobjetordquo teatral natildeo pode ser percebido

como algo que possua a mesma responsabilidade do ldquovivordquo mesmo este sendo um ator num

papel e assim os assassiacutenios sucessivos de uma duacutezia de personagens mais ou menos torna-

se motivo de riso e natildeo de preocupaccedilatildeo Deve-se mencionar tambeacutem que a licenccedila dada ao

boneco em cena natildeo estaacute limitada agraves accedilotildees fiacutesicas Como aponta McPharlin ldquoPunch

certamente pode passar dos limites sem provocar ofensa ao mandar seus comentaacuterios aacutecidos

acerca de assuntos delicados bem mais do que pode o ator vivordquo (1938 16)

A permissatildeo dada ao boneco eacute exibida mais frequentemente em espetaacuteculos de saacutetira e

paroacutedia e isso se atribui ao entendimento de que o boneco natildeo eacute uma pessoa viva e portanto

eacute livre para apresentar uma imagem corrosiva daqueles que satildeo Arnott em um comentaacuterio ao

trabalho de Obraztsov observa que ldquoeacute no campo da saacutetira que o teatro de bonecos parece ter

estabelecido o maior interesse sobre o puacuteblico adulto Os bonecos se oferecem faacutecil e

obviamente agrave caricaturardquo (1964 50)

O proacuteprio Obrastzov faz uma distinccedilatildeo entre trecircs tipos diferentes de saacutetira ou paroacutedia

agraves quais o boneco eacute especialmente adequado a ldquoparoacutedia de lsquodescriccedilatildeorsquo [um tipo de] paroacutedia

sobre um personagem determinado [na qual] a pura imitaccedilatildeo [de uma caracteriacutestica ou

comportamento] eacute o cerne da descriccedilatildeordquo a ldquoparoacutedia lsquode generalizaccedilatildeorsquo [uma paroacutedia de]

um grupo de pessoas que possuam caracteriacutesticas especiacuteficas em termos profissionais sociais

de outra natureza em comumrdquo na qual tais caracteriacutesticas satildeo caricaturadas e o tipo de

paroacutedia que ldquoconsiste em parodiar um determinado assunto ou temardquo que pode ser

chamada de saacutetira temaacutetica (1950 164-5)

A paroacutedia de descriccedilatildeo funciona de uma maneira simples que natildeo carece de maior

detalhamento devemos perceber apenas que o seu sucesso depende da familiaridade da

plateia com a pessoa sendo parodiada A paroacutedia de generalizaccedilatildeo eacute bem ilustrada no exemplo

dado por Obrastzov

258

Haacute alguns cantores de oacutepera ou de concertos para os quais a apresentaccedilatildeo

natildeo passa de um pretexto para ele mostrar os seus talentos Eles

consideram isso necessaacuterio para exibir a sua respiraccedilatildeo e portanto arrastam

a fermata por meio minuto Eu queria fazer graccedila de um cantor desse tipo

Da sua voz ldquomajestosardquo seu temperamento ldquoimensordquo seu andar vanglorioso

suas matildeos amassando a muacutesica e a torccedilatildeo exagerada do pescoccedilo para as

ldquobrilhantesrdquo notas mais altas (1950 167)

Obrastzov construiu um boneco representando esse cantor ele subiu ao palco pleno de uma

autoglorificaccedilatildeo pomposa saboreando cada maneirismo que demonstrava essa gloacuteria no

decorrer da muacutesica finalizando-a com uma nota tatildeo alta e longa que o pescoccedilo do boneco

esticou-se ateacute atingir quatro vezes o seu tamanho original (1950 167-8) Obrastzov tambeacutem

daacute exemplos das saacutetiras temaacuteticas que ele criou mas essas natildeo precisam ser descritas em

detalhes a apresentaccedilatildeo nigeriana descrita anteriormente serviraacute como exemplo Juntamente

com as paroacutedias de descriccedilatildeo que mostra sobre membros da tribo a peccedila apresentou uma

saacutetira mais abrangente acerca da vida e do governo tribais (Messenger 1971 208)

Claramente entatildeo o boneco oferece ao artista meios altamente eficazes para fazer uso

da saacutetira ou da paroacutedia O boneco eacute especialmente capaz de apontar os pontos fracos em

todos os niacuteveis do ser humano A significacircncia disso eacute corroborada pela experiecircncia de todos

aqueles que trabalham com teatro de bonecos nos Estados Unidos saacutetira e paroacutedia satildeo os

pilares do teatro de bonecos como este se apresenta aqui para o puacuteblico adulto

E eacute claro a saacutetira e a paroacutedia natildeo se limitam ao teatro de bonecos para adultos o

ldquoPunch and Judyrdquo conteacutem muitos elementos de paroacutedia Judy natildeo seria uma paroacutedia de

generalizaccedilatildeo para a esposa megera Punch tambeacutem embarca em querelas com um policial e

um carrasco de forca natildeo seriam tambeacutem esses personagens paroacutedias generalizantes de tipos

familiares

Apesar de ser altamente conhecida a vocaccedilatildeo do boneco para a saacutetira e a paroacutedia essa

licenccedila natildeo se constitui num fator significante em todas as apresentaccedilotildees de teatro de bonecos

A apresentaccedilatildeo javanesa descrita na introduccedilatildeo por exemplo natildeo se apoiou nesse recurso

exceto em aliacutevios cocircmicos ocasionais a licenccedila dada ao boneco para a burla eacute pouco usada

em apresentaccedilotildees dramaacuteticas com temaacutetica mitoloacutegica De fato parece mesmo que a maioria

das apresentaccedilotildees tradicionais relacionadas a passagens da mitologia demonstram um

interesse limitado em explorar a licenccedila do boneco dedicadas como satildeo em apresentar as

histoacuterias de deuses e heroacuteis

Ainda que o teatro de atores natildeo faccedila uso de toda a gama de licenccedilas que o boneco

possui o teatro oferece licenccedilas suficientes para que se permitam accedilotildees e falas que natildeo seriam

tolerados fora do teatro Imagine-se apenas qual seria a reaccedilatildeo do puacuteblico a um MacBeth na

259

vida real ou agrave nudez e vulgaridade ou mesmo a quase-traiccedilatildeo e blasfecircmia que se aceita como

coisa normal no teatro E eacute claro produccedilotildees com atores de peccedilas como Every Man in his

Humour (Cada homem em seu humor) de Ben Jonson ou Serious Money (Dinheiro de

verdade) de Caryl Churchill assim como os trabalhos de inuacutemeros imitadores cocircmicos nos

lembram que o teatro de atores possui uma ampla capacidade de engajar-se em saacutetira e

paroacutedia

O boneco tambeacutem oferece ao artista um meio de que natildeo se encontra limitado pela

natureza atribuiacutedo agrave percepccedilatildeo de que porque o boneco natildeo eacute mais que uma figura teatral

uma indicativo este pode ser feito para mostras seres de toda natureza imaginaacutevel e cada um

desses tipos participa da mesma ldquorealidaderdquo teatral que qualquer outro

Batchelder escreve que ldquoo sucesso persistente do teatro de bonecos se apoacuteia sobre a

facilidade com a qual este potildee em justaposiccedilatildeo o real e o imaginaacuterio dotando ambos de igual

plausibilidaderdquo (1947 292) Malkin argumenta em desenvolvimento a essa mesma ideacuteia

O teatro de bonecos tem desempenhado um papel vital no desenvolvimento

daquilo que pode ser chamado de o conceito dramaacutetico do impossiacutevel

plausiacutevel [Esta] eacute a ligaccedilatildeo entre o mundo do real e o reino da fantasia

pura Eacute nesse sentido que o teatro de bonecos representa a imaginaccedilatildeo

dramaacutetica em uma de suas formas mais fluentes (19756-7)

A importacircncia do ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo se afirma na experiecircncia de todos aqueles que

trabalham com teatro de bonecos nos Estados Unidos a fantasia e o folclore repletos de

personagens impossiacuteveis satildeo os fundamentos do teatro de bonecos como este se apresenta

aqui para plateias de crianccedilas

Eacute claro que o ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo natildeo se limita ao teatro de bonecos para crianccedilas

Recordemo-nos de nossos exemplos norte americano e indiano apresentados anteriormente

no segundo a figura de uma menina eacute transformada na de um ogre no primeiro nuacutemeros

ganham ldquovidardquo Por todo o mundo artistas de teatro de bonecos apresentando-se tanto para

crianccedilas como para adultos valem-se da capacidade do boneco de fundir os mundos da

realidade e da fantasia

Apesar da difusatildeo da noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo entretanto a fusatildeo entre

realidade e fantasia natildeo se constitui num elemento presente em todo teatro de bonecos Nosso

exemplo nigeriano natildeo se apoiou muito sobre essa questatildeo pois a capacidade de apresentar o

impossiacutevel de maneira plausiacutevel natildeo eacute algo particularmente proacuteprio agrave saacutetira social De fato

pode ser que a maioria dos artistas tradicionais dedicados agrave paroacutedia e agrave saacutetira abdiquem

combinar os dois mundos preferindo explorar em profundidade apenas o mundo do real

260

Ainda que o teatro de atores natildeo consiga integrar o real e o fantaacutestico com a mesma

facilidade proacutepria do teatro de bonecos ele pode apresentar de maneira convincente esses

mundos integrados produccedilotildees de trabalhos tais como ldquoO sonho de uma noite de veratildeordquo de

Shakespeare e ldquoPeter Panrdquo de James Barrie demonstram natildeo apenas que o teatro de atores

pode desafiar o teatro de bonecos nessa questatildeo mas que o teatro de atores pode oferecer

dimensotildees que natildeo estatildeo disponiacuteveis ao teatro de bonecos Pois o vocirco de um Peter Pan vivo

natildeo pode evocar mais admiraccedilatildeo e espanto do que o vocirco de uma marionete

Na medida em que o boneco oferece sua licenccedila especiacutefica por um lado e sua aptidatildeo

para o impossiacutevel plausiacutevel por outro parece claro que nenhuma dessas qualidades pode por

si soacute ser aquela que explica a permanecircncia global do boneco De fato como pudemos

observar apresentaccedilotildees tradicionais que se apoiam sobre uma tendem a natildeo necessitar da

outra Mas ainda essas qualidades possuem uma certa relaccedilatildeo entre si apoiadas como satildeo no

fato de que o boneco natildeo eacute uma pessoa viva mas apenas um recurso teatral Assim sendo

precisamos em seguida considerar o modo pelo qual eacute possiacutevel ao boneco criar uma

apresentaccedilatildeo teatral

EXPLICACcedilOtildeES BASEADAS NO BONECO

Eacute axiomaacutetico o fato de que a apresentaccedilatildeo teatral pressupotildee representaccedilatildeo ou como

tambeacutem se pode querer dizer jogo de faz-de-conta de uma maneira ou de outra O boneco eacute

feito para representar uma personagem como pudemos ver na introduccedilatildeo por meio da

disposiccedilatildeo de signos escolhidos de seus sistemas siacutegnicos constitutivos de forma movimento

e fala O encanto difundido e persistente do boneco pode ser explicado por sua maneira

particular de dispor signos de modo a que ele possa representar algo que natildeo eacute

Batchelder como foi verificado anteriormente argumenta que o teatro de bonecos

permanece devido a sua ldquofacilidade [para a] justaposiccedilatildeo [entre[ o real e o imaginaacuteriordquo Essa

facilidade ela sugere surge do fato de que ldquoa caracterizaccedilatildeo direta eacute a qualidade mais forte do

boneco atuante Natildeo haacute fingimento Um boneco eacute a personagem que ele apresenta natildeo eacute um

ser humano vestido como se fosse e fingindo ser a personagemrdquo (1947 288) Essa capacidade

de caracterizar diretamente Batchelder defende permite a justaposiccedilatildeo de elementos reais e

imaginaacuterios uma vez que ambos satildeo apresentados para a plateacuteia sem a interferecircncia da

simulaccedilatildeo dos atores vivos

O argumento de Batchelder de que o boneco natildeo oferece fingimento entretanto natildeo

se sustenta pois o boneco eacute certamente engajado em fingimento embora seja um fingimento

diferente daquele do ator vivo O ator finge ser algueacutem que ele natildeo eacute o boneco finge ser algo

261

que natildeo eacute ao aparentar possuir vida Esse fingimento eacute fundamental para todo o teatro de

bonecos e natildeo pode ser negligenciado Contrariamente a Batchelder entatildeo uma explicaccedilatildeo

do boneco deve levar em consideraccedilatildeo a maneira como o boneco eacute capaz de mostrar essa vida

de fingimento

Eacute lugar comum observar que o teatro de bonecos tradicionalmente conquistou tal

aparecircncia por recriar o teatro de atores que por sua vez ldquoimitardquo a vida McPharlin escreveu

A histoacuteria do teatro de bonecos ateacute seu ressurgimento como arte

independente foi um percurso de imitaccedilatildeo do teatro maior Ele abraccedilou

Punch quando ele foi praticamente jogado para fora do palco Apresentou

moralidades medievais em plena Renascenccedila Celebrou acoplamentos e

cercos navais ateacute que se tornassem lendaacuterios Perpetuou danccedilas e volteios de

vaudeville quando esses jaacute estavam envelhecidos Isto fez dele um ramo

menor e imitativo do teatro (1949 395)

A loacutegica histoacuterica para essa recriaccedilatildeo em escala reduzida do teatro de atores esse emprego de

aspectos ldquodescartadosrdquo eacute simples o teatro de atores que para ser feito emprega escala e

custos superiores podia ser montado normalmente apenas em alguns centros urbanos o teatro

de bonecos que podia viajar facilmente ndash em muitos casos mas costas de apenas uma pessoa

ndash tinha como recriar o teatro de atores e reproduzi-lo infinitamente sem maiores dificuldades

nos rincotildees rurais O juiacutezo de que o teatro de bonecos eacute uma forma de teatro derivativa pouco

original proveacutem dessa histoacuteria

O ressurgimento ao qual McPharlin se refere ocorreu aproximadamente na virada do

seacuteculo XX e pode ser caracterizada precisamente na afirmaccedilatildeo do teatro de bonecos como

uma forma de teatro original e natildeo uma forma de expressatildeo derivativa Nas palavras de

Jurkowski o boneco desenvolveu o seu proacuteprio ldquosistema siacutegnicordquo teatral (1988 [1983] 76)

A histoacuteria recitada por McPharlin eacute ratificada por Jan Maliacutek da Tchecoslovaacutequia que

jaacute serviu como secretaacuterio geral da UNIMA ldquopor muitos seacuteculos o teatro de bonecos

representou um tipo de ediccedilatildeo em miniatura do tetro de atores De fato ateacute hoje

encontramos entre os operadores de bonecos uma tendecircncia de fazer seus bonecos o mais

aproximado possiacutevel da realidade humanardquo (1967 7) A condenaccedilatildeo que faz Maliacutek aos

artistas de hoje em dia natildeo se refere a que sejam culpados por recriar o teatro de atores mas

antes que satildeo culpados de tentar imitar a realidade humana como ela eacute

Vamos agora fazer uma pausa para contemplar o teatro de bonecos como se este fosse

uma recriaccedilatildeo do teatro de atores Natildeo haacute duacutevidas que tal recriaccedilatildeo jaacute foi bastante comum ao

menos no ocidente Jurkowski nos informa que ldquofontes coletadas na Polocircnia indicam que

italianos em 1666 apresentaram-se um dia como atores e no outro como marionetistasrdquo

fazendo precisamente a mesma peccedila (1988 [1983] 71) Mas ainda que a peccedila fosse a mesma

262

seria possiacutevel que a plateia natildeo tivesse consciecircncia do que estava assistindo Mesmo se os

artistas de tetro de bonecos estivessem buscando imitar as formas os movimentos e as falas

dos atores vivos de todas as formas possiacuteveis ainda suas imitaccedilotildees seriam natildeo mais que

imperfeitas e natildeo haveria como confundir os bonecos com atores vivos Independente do que

de extraordinaacuterio o espetaacuteculo tivesse oferecido agrave plateia havia agora o prazer ou desprazer

adicionado de assistir a bonecos tentando representar como se fossem atores vivos Isto natildeo

se potildee de modo a sugerir que uma recriaccedilatildeo dessa natureza seja uma coisa boa mas que

certamente natildeo eacute uma coisa simples a ponto de ser rejeitado como meramente derivativo A

recriaccedilatildeo do teatro de atores eacute algo que se complica no fato de que os bonecos afinal de

contas natildeo satildeo humanos

Vamos tambeacutem contemplar a questatildeo da recriaccedilatildeo do teatro de atores pelo boneco de

uma perspectiva global Entre os exemplos oferecidos na introduccedilatildeo apenas a apresentaccedilatildeo

britacircnica de ldquoPunch and Judyrdquo pode ser identificada como uma recriaccedilatildeo atualizada e

miniaturizada de uma tradiccedilatildeo de teatro de atores que eacute a commedia dellacutearte E de fato

como enfatiza Speaight a tradiccedilatildeo do Punch assumiu a sua forma claacutessica apenas quando

combinou suas raiacutezes da commedia dellacutearte com fontes nativas da Inglaterra o que muito

provavelmente foi de maior significacircncia para as suas estruturas e caracterizaccedilotildees (1990

[1955] 218-30) Pode-se retorquir que as tradiccedilotildees de teatro de bonecos representadas pelos

exemplos da Nigeacuteria Java Japatildeo e Iacutendia precediam ou eram contemporacircneas de tradiccedilotildees

locais de teatros com atores Mas como Malkin aponta em sua uacuteltima questatildeo ldquoUma histoacuteria

completa do teatro na Iacutendia seria de forma mais ampla uma histoacuteria das diversas e complexas

formas de teatros de bonecos na Iacutendiardquo (1975 4) Questotildees semelhantes podem ser postas em

relaccedilatildeo a diversas tradiccedilotildees de teatro de bonecos natildeo-ocidentais A conclusatildeo trivial de que o

teatro de bonecos eacute uma imitaccedilatildeo do teatro de atores eacute verdadeira talvez para grande parte do

teatro de bonecos europeu de tempos passados Natildeo eacute verdadeira no entanto para o

fenocircmeno geral do boneco o teatro de bonecos aparece comumente como algo original em si

e natildeo como um derivativo do teatro de atores

Mas como sugere Maliacutek a recriaccedilatildeo em miniatura do teatro de atores natildeo se constitui

num problema imediato uma vez que jaacute natildeo eacute mais tatildeo praticada nos dias de hoje quando o

cinema e a televisatildeo levam regularmente apresentaccedilotildees dramaacuteticas aos mais remotos rincotildees

do mundo Pode-se encontrar concordacircncia quase universal com a proposiccedilatildeo oferecida pela

pioneira artista de teatro de bonecos russa Nina Efiacutemova ldquoO teatro de bonecos natildeo deveria

ser nunca nunca ser uma reproduccedilatildeo em miniatura do teatro grande pois possui suas

proacuteprias leis dadas por suas condiccedilotildees especiacuteficasrdquo (1935 106)

263

Mais que isso o problema que se percebe desde a virada do seacuteculo XX tem se dado

com o boneco como uma imitaccedilatildeo da vida humana Tal imitaccedilatildeo pode ser caracterizada como

o desejo de do artista de teatro de bonecos de que o boneco seja tatildeo realista quanto eacute possiacutevel

em termos de forma movimento e fala Vsevolod Meyerhold num ensaio no qual implora aos

atores para que ldquoencontrem espaccedilo para a criatividade pessoalrdquo faz essa longa menccedilatildeo ao

boneco

Haacute dois teatros de bonecos o diretor do primeiro quer que seus bonecos se

pareccedilam e se comportem como seres humanos Em suas tentativas de

reproduzir a realidade ldquocomo ela realmente eacuterdquo ele aperfeiccediloa os bonecos

mais e mais ateacute que finalmente chega a uma soluccedilatildeo bem mais simples para

o problema substitui os bonecos por pessoas de verdade

O outro diretor se daacute conta de que o seu puacuteblico aprecia os

movimentos e posturas [do boneco] que apesar de todas as tentativas desse

reproduzir a vida sobre a cena natildeo consegue assemelhar-se agravequilo que o

espectador encontra na vida comum

Eu descrevi esses dois teatros de bonecos de modo a fazer com que o

ator reflita se quer assumir o papel do boneco subserviente ou se prefere

fazer um teatro como aquele no qual o boneco se manteve fiel a si mesmo e

natildeo se rendeu aos esforccedilos do diretor em transformaacute-lo em outra coisa O

boneco natildeo quis se transformar numa reacuteplica exata do ser humano porque o

mundo do boneco eacute uma terra fantaacutestica de faz-de-conta e o homem que ele

representa eacute tambeacutem um homem de faz-de-conta (1969 [1913] 128-9)

Se o valor da imitaccedilatildeo da vida foi uma vez aceito de maneira geral por artistas de bonecos e

se ainda permanece uma tendecircncia nesse sentido no teatro de bonecos de hoje em dia como

reclama Maligravek ainda assim muitos artistas de teatro de bonecos e estudiosos satildeo unacircnimes

em depreciaacute-la Como escreve Larry Engler um reconhecido inteacuterprete norte americano

Bonecos que tentam imitar os movimentos humanos frequentemente criam

uma sensaccedilatildeo de realismo superficial Uma vez esgotada essa sensaccedilatildeo de

novidade a plateia passa a perceber as diferenccedilas entre as accedilotildees humanas e

as do boneco Bonecos que criam ilusatildeo de vida por meio de movimentos

exclusivos para tais construccedilotildees conseguem mais facilmente encorajar uma

plateia no sentido de aceitar a existecircncia viva de um objeto de fato

inanimado (1973 16)

Baird declara com ainda maior ecircnfase ldquoQuando marionetistas tentam copiar o animal

humano fracassam A coacutepia mecacircnica da vida pode ser surpreendente curiosa ou mesmo

amedrontadora mas natildeo viva ao passo que a sugestatildeo contida num boneco pode ser plena de

vidardquo (1965 15)

Engler e Baird estatildeo claramente corretos ao sugerirem que as possibilidades para o

teatro de bonecos satildeo limitadas quando a intenccedilatildeo eacute simplesmente imitar e que o teatro de

bonecos eacute bem mais viacutevido quando se encontra livre para ldquocriar a ilusatildeo de vidardquo por meio de

sugestatildeo Entretanto deve ser recordado que em meio a tantas limitaccedilotildees teatrais o boneco

264

imitativo eacute capaz de provocar prazer natildeo apenas por meio da verossimilhanccedila de sua imitaccedilatildeo

mas por meio da proacutepria accedilatildeo de imitar onde se incluem mesmo as suas falhas de

verossimilhanccedila A plateia eacute livre para aproveitar a tentativa da cena dramaacutetica bem como a

proacutepria cena dramaacutetica

A capacidade do boneco de representar por meio da imitaccedilatildeo natildeo eacute apenas algo

limitador para o teatro de bonecos eacute tambeacutem apenas um aspecto limitado do teatro de

bonecos Tais imitaccedilotildees podem ser uacuteteis em saacutetiras e paroacutedias como no exemplo vindo da

Nigeacuteria onde tais elementos satildeo centrais para a apresentaccedilatildeo mas mesmo em saacutetira e paroacutedia

natildeo satildeo sempre encontradas como vemos em ldquoPunch and Judyrdquo onde apesar do emprego da

paroacutedia no espetaacuteculo natildeo haacute um a tentativa de imitaccedilatildeo realiacutestica

E eacute claro o desejo da verossimilhanccedila certamente natildeo se encontra em todas as

apresentaccedilotildees com bonecos como se mostra nos exemplos do Japatildeo Iacutendia e Java O

espetaacuteculo japonecircs repudiou a imitaccedilatildeo da realidade ao permitir agrave plateia ver os

movimentadores e vocalizadores dos bonecos e fazendo esses bonecos moverem-se e falarem

de maneira altamente formalizada Os espetaacuteculos javanecircs e indiano repudiaram tais imitaccedilotildees

ao permitirem que bonecos fora da cena pendessem sem vida agrave plena vista da plateia Ainda

no espetaacuteculo indiano eram conferidas aos bonecos falas distorcidas e artificiais e no

espetaacuteculo javanecircs exibiam uma forma de movimentaccedilatildeo altamente estilizada

Deve ser lembrado que o tema da fantasia eacute juntamente com a saacutetira e a paroacutedia um

dos quais o boneco eacute particularmente adepto e enquanto a saacutetira e a paroacutedia apoiam-se na

imitaccedilatildeo ainda que de uma forma exagerada e distorcida dificilmente se poderia dizer que a

fantasia envolve alguma imitaccedilatildeo da realidade O Diabo aparece ao final da apresentaccedilatildeo de

ldquoPunch and Judyrdquo um ogre no espetaacuteculo indiano e nuacutemeros ldquovivosrdquo na peccedila norte

americana podem personagens como esses serem realmente imitados de forma significativa

Miles Lee um artista da Gratilde Bretanha desenvolve o argumento de Meyerhold de que

haveria duas formas de aproximaccedilatildeo do teatro de bonecos A primeira baseada na imitaccedilatildeo ao

passo que ldquoa outra eacute impressioniacutestica Sua meta natildeo eacute apresentar uma imagem fotograacutefica

mas uma interpretaccedilatildeo Isso se alcanccedila por meio de seleccedilatildeo exagero e distorccedilatildeo de

caracteriacutesticas significantes Natildeo existe para conquistar aprovaccedilatildeo por sua esperteza teacutecnica

mas para expressar uma ideacuteia ou emoccedilatildeo poeacuteticardquo (1958 35)

Essa ldquooutrardquo aproximaccedilatildeo de Lee se aproxima do ldquooutrordquo teatro de bonecos de

Meyerhold e eacute aquela que a maioria dos teatros de bonecos contemporacircneos e grande parte

do teatro de bonecos em culturas natildeo-europeacuteias escolheram seguir A palavra

impressioniacutestica entretanto natildeo recebeu uma aceitaccedilatildeo incondicional como descriccedilatildeo dessa

265

aproximaccedilatildeo De fato nenhuma palavra adquiriu tal aceitaccedilatildeo Vimos anteriormente que

Obrastzov escreveu sobre o boneco como uma generalizaccedilatildeo ao passo que outros referem-se

ao boneco com um siacutembolo Stancho Gerdjikov antigo diretor do Teatro de Bonecos de Soacutefia

(Bulgaacuteria) oferece ainda outro termo quando escreve que ldquoo boneco possui uma vantagem

incontestaacutevel sobre todos os outros atores suas possibilidades inatas e ilimitadas para a

estilizaccedilatildeordquo (1967 [1965] 42)

Seria apenas justo perceber de passagem que essa natildeo eacute uma ldquovantagem

incontestaacutevelrdquo pois de fato eacute uma diferenccedila entre as forccedilas relativas de bonecos e atores

vivos Natildeo fica claro se Gerdjikov pretende levar o argumento tatildeo longe quanto o fez Craig

que sugere que ldquoo corpo do homem eacute por natureza totalmente inuacutetil enquanto material para

uma arterdquo (1911 61) Se eacute faacutecil apontar as limitaccedilotildees do ator vivo eacute igualmente simples

sugerir as limitaccedilotildees comensuraacuteveis do boneco Mas sem forccedilar ateacute extremos a questatildeo ainda

seria bem aceita as ldquopossibilidades para a estilizaccedilatildeordquo satildeo certamente inerentes ao boneco

pois o artista eacute livre pra criar o boneco como bem escolher

Os termos impressionismo generalizaccedilatildeo simbolismo e estilizaccedilatildeo satildeo todos

destinados a descrever a aproximaccedilatildeo nominativa do tetro de bonecos mas o que estaacute sendo

de fato descrito Seria justo analisar os meios pelos quais operam tanto a aproximaccedilatildeo

imitativa quanto essa ldquooutrardquo

A imitaccedilatildeo da vida deveria conter os sinais abstratos que constituem o boneco

apresentado da maneira mais realiacutestica possiacutevel tanto em quantidade quanto em qualidade

Dessa maneira a forma de um boneco imitativo de um ser humano possuiriam os detalhes

anatocircmicos apropriados tais como olhos nariz membros e assim por diante representados e

proporcionados de forma semelhante agrave da vida A movimentaccedilatildeo desse boneco seria tatildeo

desprovida de evidecircncias de seus aspectos mecacircnicos quanto fosse possiacutevel para que

parecesse que o proacuteprio boneco fosse responsaacutevel pelas suas motivaccedilotildees e incluiacutesse um

nuacutemero de detalhes tatildeo grande ndash tais como olhos moacuteveis boca que se movesse matildeos que

pudessem agarrar ndash quanto fosse possiacutevel Finalmente a fala desse boneco seria a fala normal

de um ser humano apropriada para ele dita de tal maneira que o proacuteprio boneco parecesse o

responsaacutevel por sua elocuccedilatildeo

A ldquooutrardquo maneira de considerar o boneco ndash impressioniacutestica simbolista e assim por

diante ndash evita intencionalmente a tentativa da imitaccedilatildeo mas natildeo apresenta nenhum meio novo

ou diferente para fazecirc-lo Os signos abstratos de vida entre os trecircs sistemas de signos de

forma movimento e fala permanecem sendo os meios pelos quais o boneco faz parecer

possuir vida Nessa ldquooutrardquo consideraccedilatildeo entretanto natildeo se dota esses signos de uma

266

qualidade realiacutestica os olhos podem ser bototildees alaranjados as matildeos grosseiramente

superdimensionadas a movimentaccedilatildeo pode ser obviamente mecacircnica a fala apresentada por

uma fonte obviamente externa Tambeacutem os signos abstratos de vida natildeo se apresentam em

uma quantidade realiacutestica a cabeccedila pode consistir em nada aleacutem de uma esfera com uma

indicaccedilatildeo de um nariz as pernas podem simplesmente natildeo existir ao boneco pode ser

permitida apenas possibilidades limitadas de movimentos e fala ou tecirc-las inteiramente

negadas

Essas entatildeo satildeo as diferenccedilas entre as duas formas de aproximaccedilatildeo a consideraccedilatildeo

imitativa emprega signos abstratos de vida em tais qualidade e quantidade de modo a simular

vida da maneira mais aproximada possiacutevel a ldquooutrardquo consideraccedilatildeo usa os signos abstratos de

vida em qualidade variada e quantidade limitada dando a perceber que uma simulaccedilatildeo

verdadeira eacute algo impossiacutevel

Seguindo a partir dessa anaacutelise se uma das formas de aproximaccedilatildeo eacute chamada de

imitativa a outra poderia ser chamada de conceitual pois que nela o boneco dispotildee de signos

abstratos de vida numa qualidade que apresenta em conceito sinais de vida mais realiacutesticos e

em uma quantidade que apresenta o conceito do quociente inteiro dos signos realiacutesticos

Todos os diversos termos usados para aquilo que eacute considerado boneco recaem

essencialmente sobre a capacidade conceitual do boneco em oposiccedilatildeo agrave sua capacidade

imitativa

Mas a polaridade existente entre essas duas consideraccedilotildees que parece existir

independente daquilo que chamamos a ldquooutrardquo consideraccedilatildeo eacute falsa e surge apenas do desejo

de algumas pessoas envolvidas com teatro de bonecos em anatematizar a imitaccedilatildeo De fato os

meios disponiacuteveis a todos os artistas de teatro de bonecos satildeo os mesmos a qualidade e a

quantidade de signos abstratos Bonecos imitativos e conceituais natildeo passam de extremidades

daquilo que pode ser chamado o continuum de representaccedilatildeo do boneco A localizaccedilatildeo de

qualquer boneco em meio a esse continuum depende daqualidade e quantidade dos signos

abstratos nos quais o artista investe

Uma explicaccedilatildeo para o boneco baseada em sua natureza representacional segue a

partir dessa anaacutelise Em cada um dos exemplos de apresentaccedilotildees apresentados anteriormente

os bonecos muito certamente representam por meio da qualidade e da quantidade de seus

signos abstratos personagens que se situam no continuum em algum lugar entre o imitativo e

o conceitual Como representaccedilotildees os bonecos satildeo investidos de certa qualidade e quantidade

de signos abstratos e tal investidura encoraja a plateia a imaginar os bonecos como

possuidores de vida

267

Uma explicaccedilatildeo do boneco como representaccedilatildeo tambeacutem apresenta a virtude de sugerir

uma forma baacutesica na qual o teatro de bonecos se distingue do teatro de atores vivos Como

sugerem Gerdjikov e outros o artista de animaccedilatildeo pode investir o boneco com indicaccedilotildees

abstratas de vida na qualidade e na quantidade que bem escolher o ator vivo pode assumir

maneirismos e negligenciar aspectos das possibilidades significativas da atuaccedilatildeo mas natildeo

obstante se encontra limitado nas escolhas que podem ser feitas pois natildeo lhe eacute dada a

possibilidade de escapar agrave fisiognomonia100

humana A aparecircncia do ator pode ser

determinada ateacute o limite das artes da maquiagem e do vestuaacuterio os movimentos do ator

podem ocorrer apenas ateacute o ponto em que seus muacutesculos e ossos lhe permitirem ainda que

com a ajuda de dispositivos mecacircnicos a fala do ator pode ser apresentada apenas com um

certo limite de possibilidades de variaccedilatildeo e em geral eacute apresentada apenas pelo proacuteprio ator

Ainda mais importante o ator vivo apesar de todos os esforccedilos possiacuteveis permanece

sendo nada aleacutem de um ator algueacutem que finge ser outra pessoa Obrastzov sugere que o poder

do boneco ldquorepousa no proacuteprio fato de sua inanimidade Em cena um homem pode

apresentar outro homem mas natildeo pode apresentar a humanidade em geral por ser ele

mesmo um homem O boneco natildeo eacute um homem e por esse mesmo motivo ele consegue

apresentar uma imagem geral da humanidaderdquo (1967 [1965] 19) Eacute essa capacidade

representativa geral do boneco bem como a sua capacidade de representar por meio de signos

abstratos que certa vez chamou atenccedilatildeo de Maurice Maeterlink que ldquopercebeu que atores

humanos como eram limitados por suas caracteriacutesticas fiacutesicas natildeo eram veiacuteculos apropriados

para carregar as figuras arquetiacutepicas com as quais ele povoava o seu palcordquo (Knapp 1975

77)

Seria a natureza particular do boneco como objeto representacional a uacutenica qualidade

que explicaria o seu encanto duradouro Talvez seja um dado necessaacuterio para tal explicaccedilatildeo

mas natildeo suficiente

Onde quer que os signos apresentados pelo boneco possam estar no continuum da

representaccedilatildeo a percepccedilatildeo da plateia sobre o boneco permanece inalterada Os poderes de

representaccedilatildeo do boneco o permitem representar personagens do mundo real e do mundo

imaginaacuterio por meio da qualidade e da quantidade dos seus signos abstratos de vida Mas

determos nossa atenccedilatildeo sobre o boneco como um ldquoobjetordquo constituiacutedo a partir desses signos

tanto em particular quanto em geral natildeo o credita como sendo uma personagem dramaacutetica

ldquovivardquo Sugerir que o encanto duradouro do boneco pode ser explicado por sua capacidade de

100

NT Fisiognomonia a leitura de qualidades de comportamento e personalidade de um indiviacuteduo por meio de

seus traccedilos fisionocircmicos

268

representar a vida solicita a pergunta de porque a plateia estaacute disposta a traduzir as

representaccedilotildees do boneco em vida

Embora tenhamos identificado uma maneira particular de representaccedilatildeo como sendo

uma constante para toda a apresentaccedilatildeo de um boneco essa constante por si soacute natildeo consegue

a uacutenica qualidade que explica o apelo do boneco O teatro de bonecos envolve algo mais que

apenas a capacidade representativa do boneco E esse algo se refere agrave imaginaccedilatildeo de vida que

a plateia confere ao boneco

EXPLICACcedilOtildeES BASEADAS NA PLATEacuteIA

A plateia de uma apresentaccedilatildeo de teatro de bonecos faz algo que parece mediante

alguma anaacutelise extraordinaacuterio durante a apresentaccedilatildeo ela escolhe imaginar ao menos em

certo grau que os objetos apresentados sobre a cena possuem vida Como jaacute vimos o boneco

encoraja esse ato de imaginaccedilatildeo fazendo uso de signos abstratos de vida Mas a imaginaccedilatildeo

de vida natildeo acompanha necessariamente a representaccedilatildeo da vida Talvez a qualidade

distintiva que pode explicar o encanto duradouro do boneco diga respeito agrave disposiccedilatildeo da

plateia a realizar o salto que vai da percepccedilatildeo de abstraccedilotildees representativas ateacute a imaginaccedilatildeo

de vida

McPharlin menciona duas soluccedilotildees tradicionais a esse problema antes de apresentar

uma de sua proacutepria lavra

O boneco tem exercitado uma fascinaccedilatildeo sobre a humanidade desde a

invenccedilatildeo do teatro Isto pode possuir certa relaccedilatildeo com o sentimento

maternal se bonecos satildeo bonecas que escaparam do berccedilaacuterio para subir ao

palco Como acreditava Charles Nodier [Revue de Paris novembro 1842]

pode ter alguma relaccedilatildeo com a reverecircncia religiosa se eles satildeo descendentes

das imagens divinas como preferia pensar Charles Magnin [Magnin 1862]

Mas quando os bonecos se tornam vivos em seus teatros o encanto

arrebatador que exercem eacute da ordem do teatro e do teatro apenas (1938 1)

Seraacute melhor se comeccedilarmos com a soluccedilatildeo de McPharlin de que ldquoo encanto arrebatador do

boneco eacute o do teatro apenasrdquo Num trabalho posterior ele elabora a sua visatildeo ldquoQuando os

bonecos tomam vida deixa-se de pensar em madeira e fios passa-se a ser absorvido para

dentro da accedilatildeo A plateia aceitando as convenccedilotildees do boneco projeta-se a si mesma neles

com o mesmo tipo de empatia que poderia sentir por atores vivosrdquo (1949 1) Assim a ldquovidardquo

do boneco natildeo eacute de fato algo problemaacutetico em qualquer sentido mas eacute meramente a

aceitaccedilatildeo de uma convenccedilatildeo teatral particular

Podemos assim ser remetidos a uma famosa declaraccedilatildeo de Coleridge a respeito de

poesia

269

Meus esforccedilos [satildeo] direcionados a pessoas e personagens que satildeo

sobrenaturais ou ao menos romacircnticos de modo a transferir de nossa

natureza interior um interesse humano e uma semelhanccedila com a verdade

suficientes para se obter dessas sombras da imaginaccedilatildeo aquela suspensatildeo

voluntaacuteria da descrenccedila para aquele momento em que se constitui a feacute

poeacutetica (1951 [1817] 527)

McPharlin parece ter essa ldquosuspensatildeo voluntaacuteria da descrenccedilardquo em mente quando sugere que a

audiecircncia ldquoaceitando a convenccedilatildeo dos bonecosrdquo deixe de pensar na natureza verdadeira dos

bonecos mas ldquoprojete-se a si mesma neles com a mesma empatia que sentiria por qualquer

ator vivordquo

Coleridge cunhou o termo ldquosuspensatildeo da descrenccedilardquo para descrever a sua proacutepria

poesia em oposiccedilatildeo agrave de William Woodsworth ele mais tarde aplicou essa noccedilatildeo em seus

trabalhos sobre teatro Em sua pesquisa Theories of the Theatre (Teorias do teatro) Marvin

Carlson menciona que Coleridge in ldquoProgress of the Dramardquo

fala de uma ldquocombinaccedilatildeo de vaacuterias ou de todas as belas artes para um todo

harmonioso dotado de uma finalidade proacutepriardquo sendo essa finalidade a de

imitar a realidaderdquo (objetos accedilotildees ou paixotildees) sob uma aparecircncia da

realidaderdquo A palavra chave eacute ldquosemelhanccedilardquo e esta solicita certa

contribuiccedilatildeo por parte do espectador Peccedilas teatrais ldquodevem produzir uma

espeacutecie de feacute parcial temporaacuteria que o espectador estimula em si mesmo e a

sustenta por meio de uma contribuiccedilatildeo voluntaacuteria de sua proacutepria parterdquo

(1984 221)101

Para McPharlin essa ldquosuspensatildeo voluntaacuteria da descrenccedilardquo ou ainda ldquouma feacute parcial

temporaacuteriardquo trabalha em duas etapas a plateia aceita o boneco como se fosse um ator vivo

da mesma forma como o ator eacute aceito no curso da representaccedilatildeo de uma determinada

personagem assim o boneco-como-ator-vivo eacute aceito como se fosse a personagem

representada

McPharlin quer legitimar o boneco como sendo um instrumento do teatro e sente

talvez que tal legitimaccedilatildeo apenas se sustentaraacute se a distinccedilatildeo entre o boneco e o ator vivo for

abolida A plateia certamente consegue sentir tanta empatia pelo boneco quanto pode sentir

pelo ator vivo mas seraacute que a plateacuteia consegue ldquoparar de pensar em madeira e fiordquo Coleridge

sugere que no teatro de atores a plateia o ator sem dificuldade como sendo o personagem

representado McPahrlin sugere igualmente que no teatro de bonecos o puacuteblico aceita o

boneco sem dificuldades como sendo o personagem representado A sugestatildeo de Coleridge

jaacute eacute suficientemente problemaacutetica McPharlin solicita agrave plateia que negue o que estaacute

101

A passagem foi traduzida em cotejamento com a versatildeo em portuguecircs do livro mencionado CARLSON

Marvin Teorias do teatro Estudo histoacuterico-criacutetico dos gregos agrave atualidade traduccedilatildeo Gilson Ceacutesar Cardozo

de Souza Satildeo Paulo Ed da UNESP 1997 (Prismas) p215

270

claramente diante de seus olhos No teatro de atores uma pessoa representa outra pessoa

enquanto que no teatro de bonecos um objeto representa uma pessoa o modo de

representaccedilatildeo eacute fundamentalmente diferente

O poder da convenccedilatildeo teatral natildeo eacute algo sem limite e se parece exagerado sugerir que

qualquer plateia negaria o que estaacute diretamente diante de si parece absurdo sugerir que toda

plateia estaria disposta a cometer tal negaccedilatildeo Como jaacute foi indicado a substituiccedilatildeo do ator

pelo boneco pode ser qualquer coisa menos neutra nenhum membro de uma plateia que

tenha passado da idade de cinco anos seria capaz de relevar completamente o fato essencial de

que natildeo possui vida realmente Por essa razatildeo a soluccedilatildeo de McPharlin de que a plateia aceita

o boneco por convenccedilatildeo e responde a ele como responderia a um ator vivo natildeo pode ser

suportada

Eacute possiacutevel tambeacutem aproximar-se dessa questatildeo por outra direccedilatildeo Se como argumenta

McPharlin natildeo haacute diferenccedila fundamental entre o reconhecimento do ator e o do boneco por

parte da plateia entatildeo o que se ganha com o uso do boneco em lugar do ator A pergunta

torna-se especialmente aguda quando bonecos satildeo empregados em dramas escritos para

atores como em drama shakespeariano Porque deveria o artista escolher usar bonecos e o

puacuteblico desejar assistir bonecos se a peccedila eacute sabida como algo que funciona perfeitamente

bem com atores Apenas algum tipo de diferenccedila fundamental existente entre o ator e o

boneco pode explicar o impulso de empregar um ao inveacutes de outro Os poderes da convenccedilatildeo

certamente tecircm lugar no teatro de bonecos mas natildeo da mesma maneira como o faz no teatro

de atores vivos

Haacute uma variaccedilatildeo interessante do argumento sobre a convenccedilatildeo que estaacute

impliacutecito natildeo apena em McPharlin mas em algumas das soluccedilotildees discutidas anteriormente

Essa variaccedilatildeo sustenta que no mundo convencional artificial do teatro apenas um ator

convencional e artificial seria apropriado

Quando um ator vivo se encontra cercado por o que obviamente natildeo passa de adereccedilos

e paineacuteis ele ou ela pode parecer bastante ridiacuteculo levando a seacuterio situaccedilotildees que poderiam

natildeo ser compartilhadas com nenhuma plateia aqui de fato demanda-se alguma suspensatildeo

voluntaacuteria da descrenccedila e aqui reside um problema usual da representaccedilatildeo teatral viva As

soluccedilotildees tendem a seguir um ou outro caminho tornar todo o material de cena o mais

realiacutestico possiacutevel ou dispensaacute-lo por completo apoiando em contrapartida em descriccedilotildees

sugestivas e miacutemica Mas aqui restam as limitaccedilotildees de ordem praacutetica para se encenar de modo

realiacutestico por um lado ao passo que por outro lado a completa ausecircncia de objetos e cenaacuterios

pode legar ao ator um olhar vazio em meio a um palco nu

271

Outra soluccedilatildeo que remete agrave trageacutedia grega eacute apresentar o ator da maneira mais

irrealiacutestica possiacutevel por meio do emprego de elementos tais como maacutescaras e figurino De

fato tal forma de apresentaccedilatildeo excede a mera aparecircncia do ator como sugere o estudioso

claacutessico John Jones ldquoa funccedilatildeo fundamental do chamado megafone na maacutescara dramaacutetica

grega eacute certamente a de alterar a voz e natildeo de amplificaacute-lardquo (1980 [1962] 44) A questatildeo

permanece no entanto de que o ator vivo eacute algo de uma natureza diferente do seu entorno

teatral o ator eacute um indiviacuteduo vivo embora seja algueacutem que finge ser outra pessoa enquanto

isso o entorno da cena permanece resolutamente teatral

Laacuteszloacute Halaacutesz um psicoacutelogo associado ao Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste

sugere que ldquoa contradiccedilatildeo sempre presente entre o ator vivo lsquonaturaliacutesticorsquo e os cenaacuterios anti-

naturaliacutesticos criados pelos artistas cessa de existir no universo dos bonecos aqui a

personagem anti-naturaliacutestica do boneco e as cercanias anti-naturaliacutesticas fundem-se em

perfeita harmoniardquo (1978 59) A retirada da realidade que o boneco empreende se encontra

em harmonia com a retirada da realidade empreendida pelo entorno de cena que o

compreende Esta pode ser a qualidade que explica a persistecircncia do boneco o boneco se

conforma intrinsecamente agrave artificialidade do teatro onde por convenccedilatildeo a plateia estaacute

disposta a imaginar o boneco como possuidor de uma vida da mesma maneira como estaacute

disposta a imaginar o ambiente da cena teatral como a representaccedilatildeo da realidade da peccedila

Em meio aos exemplos dados anteriormente as mais sofisticadas das produccedilotildees

cedem creacutedito a essa soluccedilatildeo tanto nas apresentaccedilotildees japonesa quanto norte americana

mundos teatrais exclusivos se estabeleceram integrando bonecos e ambientes das cenas de

uma forma que natildeo poderia ser duplicada pelo teatro de atores Os menos sofisticados dos

nossos exemplos entretanto expuseram uma seacuteria limitaccedilatildeo para o nosso argumento nem na

apresentaccedilatildeo inglesa nem na nigeriana foram criados quaisquer ambientes teatrais

substanciais pois em cada um desses casos o emprego de adereccedilos eou cenaacuterio era

severamente limitado Se pouco ambiente de cena eacute criado como pode a integraccedilatildeo do

boneco com esse ambiente ser de importacircncia central

Deszouml Szilaacutegyi diretor e ldquoteoacutericordquo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste

argumenta que a integraccedilatildeo natildeo eacute de fato uma explicaccedilatildeo suficiente

Por muito tempo se argumentou que o teatro de bonecos era a arte integrada

ideal De fato esta fornece um prazer particular para o espectador Mas

o preacute requisito baacutesico para tal apreciaccedilatildeo esteacutetica refinada eacute a existecircncia de

uma cultura apropriada Se eacute assim entatildeo por quecirc o boneco alcanccedila um

impacto tatildeo poderoso e elementar sobre as plateias menos sofisticadas

sobretudo com crianccedilas A resposta deve ser porque no teatro de bonecos

272

natildeo eacute a experiecircncia esteacutetica que se constitui no fator primordial e sim o

impacto psicoloacutegico imediato exercido pelo boneco (1967 [1965] 35)

Szilaacutegyi emprega o termo ldquoexperiecircncia esteacuteticardquo como se isso fosse algo que decorresse

apenas de vasta sofisticaccedilatildeo o termo pode ser empregado num sentido mais simples e mais

fundamental Sua conclusatildeo entretanto eacute bem realizada o teatro de bonecos pode fazer

grande uso ndash sem no entanto necessitar ndash da integraccedilatildeo entre as convenccedilotildees do boneco e do

teatro Mais que isso o boneco exerce um impacto psicoloacutegico mais amplo sobre qualquer

tipo de plateia sofisticada ou natildeo Tal impacto deve ser reconhecido nas duas teorias

mencionadas por McPharlin apenas para desconsiderar sem maiores comentaacuterios o boneco

como ldquodescendente das imagens divinasrdquo e o boneco como o brinquedo que ldquoescapou do

berccedilaacuteriordquo

O argumento de que o boneco deve seu encanto duradouro agrave sua derivaccedilatildeo da figura

religiosa recebe seu apoio mais entusiasmado vindo de Craig ldquoHoje no periacuteodo menos

auspicioso [para o boneco] muitas pessoas se referem a ele como sendo uma boneca de certo

modo superior ndash por pensar que este se desenvolveu a partir da boneca Isso eacute incorreto Ele eacute

um descendente das imagens de pedra dos antigos templos ndash ele eacute hoje uma forma um tanto

degenerada de deusrdquo (1911 82)

Esse argumento a respeito da descendecircncia do boneco eacute discutiacutevel Sem duacutevida

diversas culturas tecircm usado figuras inanimadas para adoraccedilatildeo e ritual pode-se duvidar

entretanto se a figura religiosa que se move e fala seria de fato a progenitora do boneco ou se

seria apenas uma figura com fala e movimento de certa forma similar ao boneco Natildeo

obstante a similaridade oacutebvia entre os dois sugere que a figura religiosa teria de fato

emprestado ao boneco algo de sua aura sagrada

Certos tipos de bonecos parecem ser de fato reminiscentes da figura religiosa a

estatura delicadamente formal dos bonecos maiores-que-pessoas ou quase-tatildeo-grande-quanto-

pessoas pode sugerir a presenccedila da deidade o movimento lento e majestoso do boneco de fio

pode sugerir a dignidade do divino e a apariccedilatildeo oscilante do boneco de sombras pode sugerir

a sombra de um deus sobre a face da terra A grande pequenez do boneco de luva entretanto

com sua inclinaccedilatildeo para atividades raacutepidas e impetuosas torna mais complicado imaginar o

boneco de luva como dotado de tal tipo de elevaccedilatildeo assim terminamos por tomaacute-los por

algum tipo de duende ou democircnio

Ou talvez natildeo seja uma semelhanccedila fiacutesica entre o boneco e a figura religiosa o que os

aproxime mas quem sabe alguma uma associaccedilatildeo metafoacuterica como o deus concede a vida e

exercita controle sobre a humanidade assim a humanidade concede e controla a ldquovidardquo do

273

boneco Isto conduz para bem distante das especulaccedilotildees antropoloacutegicas de Craig mas parece

ser mais convincente Ainda que muitas plateias em teatros de bonecos natildeo sejam constituiacutedas

por pessoas com grande envolvimento com figuras religiosas de quem dificilmente se

esperaria que reconhecessem no boneco qualquer origem ritualiacutestica ou de idolatria todas

essas pessoas possuem alguma noccedilatildeo ainda que atenuada do poder dos deuses em dar a vida

e de controlaacute-la e poderiam associar o boneco a tal

O problema com o argumento associativo eacute que natildeo eacute suficientemente amplo a ponto

de acomodar a diversidade do teatro de bonecos Tais limitaccedilotildees estatildeo apresentadas em

nossos exemplos da Nigeacuteria e da Inglaterra O primeiro com sua ecircnfase na saacutetira e o

segundo com suas travessuras ultrajantes parecem surdos a quaisquer interpretaccedilotildees

religiosas mesmo tendo na lembranccedila a batalha de Punch com o democircnio Seriam as plateias

conduzidas a refletir sobre o divino por meio das representaccedilotildees satiacutericas licenciosas de

coacutepulas e de representaccedilotildees grosseiramente cocircmicas de assassinato

Se a suposta descendecircncia religiosa do boneco eacute algo nobre a suposta ascensatildeo do

boneco da boneca do berccedilaacuterio eacute desafortunadamente ignoraacutevel Tal ascensatildeo sugeriria para

Craig bem como para outros que o boneco natildeo seria muito mais que um brinquedo

desenvolvido Agrave luz disso a maioria dos artistas de teatro de animaccedilatildeo atribuiriam ao

argumento pouca credibilidade e seguiriam McPharlin e Craig ao oferecem nada aleacutem de

poucas palavras depreciativas antes de seguirem adiante

Tal como o argumento sobre a figura religiosa o que trata do encanto duradouro do

boneco como algo que se deve agrave derivaccedilatildeo do boneco a partir da boneca infantil natildeo

apresenta em uacuteltima apreciaccedilatildeo qualquer prova de que o boneco literalmente ascendeu da

boneca Tal ascendecircncia eacute tatildeo provaacutevel ou improvaacutevel quanto a descendecircncia da figura

religiosa Mais que isso o argumento se encontra baseado nas similaridade oacutebvias entre certos

tipos de bonecos com a boneca infantil e sugere que a boneca poderia haver emprestado ao

boneco algo do seu encanto pessoal

Anteriormente quando analisaacutevamos as definiccedilotildees de boneco teatral foi feita uma

distinccedilatildeo entre o boneco e a boneca sob o fundamento do uso teatral do boneco tal distinccedilatildeo

natildeo nega as similaridades entre os dois mas aponta suas funccedilotildees distintas com a boneca

apresentando apenas uma funccedilatildeo de natureza privada Ainda resta ser visto se o apelo do

boneco pode ser uma derivaccedilatildeo do apelo da boneca

Alguns tipos de bonecos parecem ser especialmente reminiscecircncias da boneca o

tamanho reduzido e os movimentos simples do boneco de luva pode evocar agrave plateia certa

lembranccedila de brinquedos infantis bonecos de vara e bonecos que combinam vara e luva

274

embora maiores ainda sim apresentam escala reduzida em relaccedilatildeo ao tamanho do ser

humano Mas outros tipos de bonecos parecem desafiar tal reminiscecircncia Pequenez de fato

natildeo eacute uma caracteriacutestica estanque do boneco bonecos de dimensotildees quase humanas ou

maiores dificilmente seriam considerados assemelhados agrave bonecas e tendem a ser qualquer

coisa menos atraentes Ainda a distacircncia fiacutesica existente entre o operador do boneco e a

marionete que tambeacutem ocorre com outros tipos de bonecos parece ser diferente da relaccedilatildeo de

proximidade estabelecida entre a crianccedila e sua boneca

Ou talvez natildeo seraacute qualquer semelhanccedila fiacutesica entre o boneco e a boneca o que os une

na imaginaccedilatildeo mas antes uma associaccedilatildeo metafoacuterica similar agrave verificada na anaacutelise do

argumento acerca da figura religiosa como a crianccedila acredita e exerce controle sobre a vida

encantada da boneca assim as pessoas acreditam e exercem controle sobre a ldquovidardquo encantada

do boneco teatral Malgrado a pouca consideraccedilatildeo com que se busca sustentar esse

argumento este parece possuir tanta validade quanto o argumento religioso Embora muitos

membros de plateias de teatro de bonecos jaacute tenham deixado de brincar com bonecas haacute

tempos todos tecircm a consciecircncia ainda que atenuada da capacidade de conferir vida e do

poder de controle da imaginaccedilatildeo infantil e pode associar o boneco a essa experiecircncia

O problema com esse argumento associativo eacute que ele tambeacutem eacute insuficientemente

amplo de modo a acomodar a diversidade do boneco Suas limitaccedilotildees estatildeo expostas nos

exemplos das apresentaccedilotildees dos espetaacuteculos japonecircs e norte americano O primeiro com suas

representaccedilotildees de vida insistentemente formais estaacute a mundos de distacircncia do poder

encantatoacuterio da crenccedila infantil ao passo que o segundo apesar de suas representaccedilotildees de vida

emergirem diretamente da imaginaccedilatildeo infantil despreza a ideacuteia mesma de que a crianccedila

possui qualquer controle sobre essas representaccedilotildees Poderiam ser as plateias conduzidas a

lembrarem-se do encanto das bonecas de infacircncia enquanto assistem a uma representaccedilatildeo

intensa de um duplo suiciacutedio ou de uma crianccedila sendo escarnecida pelas figuras da sua

imaginaccedilatildeo

O argumento de que o boneco descende da figura religiosa ou ascendeu da boneca

infantil satildeo em primeira apreciaccedilatildeo mutuamente contraditoacuterios mas como pudemos ver a

verdadeira linhagem do boneco de uma forma ou de outra natildeo eacute algo tatildeo importante quanto

as associaccedilotildees metafoacutericas que boneco enseja agrave sua plateia As associaccedilotildees sugeridas por

esses argumentos satildeo similares pois que ambas dizem respeito agrave imaginaccedilatildeo voluntaacuteria do ser

humano ao controle da ldquovidardquo do boneco por meio de associaccedilotildees tanto com a figura

religiosa quanto com a boneca infantil Embora nenhum desses argumentos sugira qualquer

qualidade que explique o apelo do boneco as associaccedilotildees metafoacutericas subjacentes que

275

compartilham eacute prenhe de significado Na conclusatildeo deste estudo examinaremos mais

detalhadamente a questatildeo da metaacutefora e do boneco por hora seraacute suficiente perceber que o

boneco como metaacutefora agrave humanidade tem sido citado em culturas muito distintas e distantes

em tempo e espaccedilo

Otakar Zich um semioacutetico Tcheco oferece uma anaacutelise da resposta da audiecircncia ao

boneco que conteacutem ecos curiosos desses argumentos acerca do encanto do boneco mas sua

questatildeo eacute de uma natureza inteiramente diferente

Os bonecos podem ser percebidos tanto como pessoas vivas ou bonecas

inertes Como podemos percebecirc-los apenas de uma maneira por vez

deparamo-nos com duas possibilidades

a) Percebemos os bonecos como bonecas [e] enfatizamos seu caraacuteter de

inanimidade Seraacute o material de que eacute feito que nos chamaraacute atenccedilatildeo para o

boneco como algo sobre o que estamos detendo nossa atenccedilatildeo Nesse caso

natildeo conseguimos levar a seacuterio sua fala e seus movimentos portanto os

consideramos cocircmicos e grotescos Noacutes os percebemos como

bonequinhas mas eles nos exigem que os tomemos por pessoas e isso

invariavelmente nos diverte

b) [Ou] podemos conceber os bonecos como se fossem seres vivos por

meio da ecircnfase sob a percepccedilatildeo de suas expressotildees realiacutesticas seus

movimentos sua fala e entendecirc-los como reais Nossa percepccedilatildeo de que o

boneco natildeo estaacute vivo recede e somo assaltados por um sentimento de

alguma forma inexplicaacutevel enigmaacutetico arrebatador Nesse caso os bonecos

parecem agir misteriosamente Aqui nos deparamos com algo totalmente

inatural ndash ou seja vida num material inanimado inorgacircnico (citado em

Bogatyrev 1983 [1973] 48)

A primeira possibilidade de percepccedilatildeo apontada por Zich parece relacionar-se com o

argumento de que a plateia associa o boneco agrave boneca infantil ao passo que a segunda

possibilidade parece relativa agrave argumentaccedilatildeo que a plateia associa o boneco agrave figura religiosa

De fato seu ponto eacute mais sutil ainda que mais dogmaacutetico qualquer que seja a associaccedilatildeo

feita pela plateia o boneco apenas pode ser percebido como ldquococircmico e grotescordquo ou

ldquoinexplicaacutevel [e] enigmaacuteticordquo

Bogatyrev empreende certa quantidade de criacutetica sobre a anaacutelise de Zich (1983 [1973]

49-62) e ambos satildeo criticados por Jurkowski (1988 [1983] 57-61) e Veltruskyacute (1983 108-

9) Veltruskyacute escreve contudo que uma criacutetica ldquopermanece vaacutelida o que equivale dizer que

haacute apresentaccedilotildees de bonecos que natildeo satildeo cocircmicas nem misteriosas mas simplesmente seacuteriasrdquo

(1983 109) Essa criacutetica ainda que uacutenica eacute devastadora Zich sugere que uma plateia percebe

o boneco de apenas duas maneiras e isso eacute incorreto Nosso exemplo vindo do Japatildeo indica

que sua plateia natildeo percebe o boneco nem como ldquococircmico e grotescordquo nem como

ldquoinexplicaacutevel [e] enigmaacuteticordquo mas nas palavras de Veltruskyacute como ldquosimplesmente seacuteriordquo A

teoria de alternativas de Zich falha em dar conta do boneco em toda a sua diversidade o apelo

276

do boneco natildeo necessita ser de uma maneira ou de outra102

Resta aqui a questatildeo de Zich na

qual o boneco apenas pode ser percebido ldquoapenas de uma maneira por vezrdquo Mas esse seria o

caso Retornaremos a esse ponto crucial no proacuteximo capiacutetulo

Por hora permanecemos dedicados ao apelo do boneco e para isso seraacute preferiacutevel

considerar o niacutevel mais fundamental de envolvimento da plateia Miles Lee um autor e

inteacuterprete britacircnico escreve que ldquoum boneco embora manipulado habilmente pelo

marionetista nunca estaraacute completamente vivo ateacute que receba estiacutemulo adicional por meio da

imaginaccedilatildeo da plateiardquo (1958 8) Apenas a contribuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo da plateia pode

permitir ao boneco ter ldquovidardquo Este eacute certamente o ponto no qual a ldquomeia feacute temporaacuteriardquo

sugerida por Coleridge se aplica ao teatro de bonecos mas trata-se de uma meia feacute diferente

daquela aplicado sobre o teatro de atores

Heinrich von Kleist em seu ensaio tatildeo famoso quanto enigmaacutetico ldquoSobre o teatro de

marionetesrdquo sugere que ao contraacuterio do ator vivo o boneco possui uma graccedila especial que

emerge de sua falta de consciecircncia (1978 [1810] 1212) Isto conteacutem a sugestatildeo complementar

de que tal consciecircncia deve ser fornecida pela audiecircncia Maeterlink provavelmente de

maneira intencional torna explicita tal implicaccedilatildeo em sua crenccedila de que os bonecos ldquoganham

vida apenas quando o espectador projeta seu substrato inconsciente sobre elerdquo (Knapp 1975

77) Poderia-se evadir semanticamente a respeito de ldquosubstrato inconscienterdquo mas a sugestatildeo

aprece correta O boneco natildeo eacute mais do que um objeto constituiacutedo de signos abstratos que

opera sobre a percepccedilatildeo da plateia cabe agrave plateia conferir significado a esses signos por meio

de um ato de imaginaccedilatildeo reconhecendo uma sentido de vida ao boneco em resposta aos seus

signos abstratos De outra forma o boneco permaneceraacute apenas um objeto independente da

qualidade e quantidade desses signos

Mas se eacute esse o caso ainda fica por ser entendido o porquecirc de a plateia estaacute preparada

para emprestar a sua vontade imaginativa ao boneco por que uma plateia deveria se

incomodar em projetar a sua consciecircncia para imaginar a existecircncia de vida Como jaacute vimos

as associaccedilotildees metafoacutericas do boneco com a figura religiosa e com a boneca infantil oferecem

duas razotildees possiacuteveis ainda que nenhuma seja suficiente em si mesmas postas juntas

entretanto conduzem agrave sugestatildeo de que o poder da metaacutefora exerce um impacto psicoloacutegico

geral sobre a plateia tornando-a desejosa de conceder ao boneco a sua ldquovidardquo

102

Mas a mim parece que Zich estaacute mais mencionando uma dinacircmica perceptiva para o boneco que natildeo

sobrepotildee diferentes percepccedilotildees mas se daacute em alternacircncia de modos de apreensatildeo do boneco por parte do

puacuteblico

277

Szilaacutegyi menciona que haacute dois aspectos do impacto psicoloacutegico do boneco ldquo(1) sobre

a cena do teatro de bonecos diante dos olhos do espectador o supremo ato da criaccedilatildeo estaacute

acontecendo ndash mateacuteria morta sem vida eacute transformada em algo vivo (2) o boneco natildeo

importa em que forma apareccedila eacute bem no fundo da mente do homem um siacutembolo primordial

do ser humanordquo (1967 [1965] 35) As associaccedilotildees metafoacutericas envolvendo o boneco como

figura religiosa e brinquedo infantil estatildeo aqui unidas e encerradas numa associaccedilatildeo

psicoloacutegica mais geral A plateia estaacute disposta a imaginar o boneco como algo possuidor de

vida porque esse ato preenche o desejo humano baacutesico de entender o mundo atraveacutes do prisma

da consciecircncia humana A falta de consciecircncia do boneco como objeto de percepccedilatildeo eacute assim

um convite agrave plateia para participar na criaccedilatildeo de uma ldquovidardquo similar agrave sua proacutepria

Seria entatildeo o desejo psicoloacutegico de imaginar vida a explicaccedilatildeo sincrocircnica para o

boneco que viacutenhamos perseguindo Talvez possa ser melhor descrito como foi a explicaccedilatildeo

do boneco como objeto de representaccedilatildeo como condiccedilatildeo necessaacuteria mas natildeo suficiente

para tal explicaccedilatildeo

O desejo psicoloacutegico que conduz a plateia a imaginar que o boneco possui vida natildeo eacute

de fato operativo apenas com o boneco como pudemos perceber figuras religiosas e bonecas

de crianccedilas por si soacute podem perfeitamente ser imaginadas como possuidoras de vida De

fato eacute possiacutevel imaginar vida na casa que fica do outro lado da rua na fumaccedila que se ergue

volteante de um cigarro ou cachimbo ou mesmo no computador em que as pessoas escrevem

As janelas semicerradas da casa podem ser os olhos pesados de um gigante sonolento a

aparecircncia espectral da fumaccedila do cachimbo pode ser a forma vaporosa de algum espiacuterito do

ar a execuccedilatildeo de tarefas complexas realizadas pelo computador pode ser o produto de alguma

inteligecircncia ainda que nenhuma dessas coisas em sua existecircncia normal sejam qualquer tipo

de boneco Figuras religiosas bonecas casas fumaccedila de cachimbo computadores

juntamente com uma miriacuteade de outros lugares comuns satildeo inconscientemente ainda que

presentes e na maior das vezes sem qualquer intenccedilatildeo signos que podem ser imaginados

como indicativos de vida Se o desejo psicoloacutegico de imaginar vida explica o encanto

duradouro do boneco segue-se natildeo apenas que tudo pode vir a ser um boneco mas que tudo eacute

de fato boneco o que eacute absurdo

O desejo psicoloacutegico de imaginar vida pode ser caracterizado como promiacutescuo ndash

disposto a dispensar sua atenccedilatildeo sobre cada objeto que passar por seu campo de visatildeo ao

inveacutes de limitar sua atenccedilatildeo sobre o ldquoobjetordquo mais especiacutefico que eacute o boneco Mais que isso

essa promiscuidade de desejo oblitera a verdadeira percepccedilatildeo do objeto em favor de sua vida

imaginada o objeto em si mesmo apenas serve de estiacutemulo para um prazer imaginativo

278

Deve ser recordado que McPharlin argumenta que a plateia responde por convenccedilatildeo

ao boneco como se esse fosse um ator ou seja como uma personagem dramaacutetica e que essa

argumentaccedilatildeo eacute falha porque ignora o verdadeiro ldquoobjetordquo que eacute o boneco O argumento do

desejo psicoloacutegico ainda que seja mais sutil e persuasivo finda por cair viacutetima da mesma

fraqueza o foco permanece sobre a ldquovidardquo do boneco sob a forma de personagem dramaacutetica

e negligencia a maneira particular pela qual tal imaginaccedilatildeo eacute estimulada Para sugerir que o

encanto duradouro do boneco possa ser explicado por sua capacidade de abrigar a imaginaccedilatildeo

de vida levanta a questatildeo de como o boneco seiria de modo significativo um objeto diferente

de qualquer outro objeto no mundo

Assim embora tenhamos isolado a constante existente em toda apresentaccedilatildeo com

bonecos do desejo psicoloacutegico da plateia de que o boneco tenha vida essa constante por si

apenas natildeo eacute a uacutenica qualidade que explica o boneco Assim como o teatro de bonecos

envolve algo mais que a capacidade representativa do boneco como objeto percebido tambeacutem

envolve algo mais que o desejo do espectador de imaginar que o boneco esteja vivo Esse algo

mais pode ser identificado quando levamos em consideraccedilatildeo a percepccedilatildeo juntamente com a

imaginaccedilatildeo o ldquoobjetordquo juntamente com a ldquovidardquo

279

3

UMA NOVA BASE PARA

DEFINICcedilAtildeO E EXPLICACcedilAtildeO

O leitor teraacute sem duacutevida percebido certa simetria entre as soluccedilotildees necessaacuterias

embora insuficientes propostas agraves conclusotildees das uacuteltimas duas seccedilotildees do capiacutetulo anterior A

primeira soluccedilatildeo eacute a de que o apelo duradouro e difundido do boneco deriva da sua

capacidade peculiar de como um objeto apresentar signos representativos abstratos ao passo

que a segunda soluccedilatildeo eacute a de que o encanto do boneco deriva do desejo da plateia em

imaginar vida como algo presente em tudo no mundo Uma explicaccedilatildeo sincrocircnica do apelo do

boneco uma explicaccedilatildeo aplicaacutevel a todas as manifestaccedilotildees em teatro de bonecos precisaraacute

dar-se conta desses dois aspectos precisaraacute levar em consideraccedilatildeo a natureza dual que abarca

o objeto representativo percebido e a vida psicologicamente imaginada

VISAtildeO-DUPLA

Seraacute uacutetil retornar a Otakar Zich que defende como jaacute vimos que a plateia pode perceber o

boneco de duas maneiras como uma boneca inanimada ou como um ser vivo Para se evitar

confusotildees com emprego especializado do termo percepccedilatildeo feito neste estudo vamos

reafirmar que para Zich a plateia pode reconhecer o boneco como sendo uma boneca

inanimada ou um ser vivo Natildeo seriam essas duas maneiras os aspectos da natureza do

boneco como sendo ldquoobjetordquo e como ldquovidardquo Zich argumenta que o reconhecimento do

boneco feito pela plateia eacute uma proposiccedilatildeo alternativa Mas pode a plateia de fato reconhecer

ldquoo boneco apenas de uma maneira por vezrdquo como insiste Zich A argumentaccedilatildeo de Zich jaacute

foi criticada anteriormente por sua incapacidade de reconhecer os bonecos que natildeo satildeo

entendidos nem como sendo ldquococircmicos e grotescosrdquo quando reconhecidos como objetos

inanimados nem ldquoenigmaacuteticos e surpreendentesrdquo quando o boneco eacute visto como ser vivo A

criacutetica de agora eacute a que essas duas maneiras de percepccedilatildeo natildeo satildeo necessariamente antiteacuteticas

Natildeo seria possiacutevel para a plateia perceber o boneco de duas maneiras de uma vez

Thomas Green e W J Pepicello estudiosos norte americanos das aacutereas de teatro e

linguiacutestica sugerem que a percepccedilatildeo do puacuteblico natildeo eacute exclusivamente uma questatildeo de

alternativa

Enquanto a audiecircncia sabe num certo grau que o boneco eacute apenas um signo

(especificamente um metoniacutemia) os observadores satildeo levados a ignorar

280

esse fato em favor das convenccedilotildees artiacutesticas da forma de arte [Ainda

assim] apesar da convenccedilatildeo de se ignorar a presenccedila humana em espetaacuteculos

com bonecos certas tradiccedilotildees [produzem uma] tensatildeo vinda da percepccedilatildeo

alternada feita pela plateia do boneco como um ldquoatorrdquo independente e como

um objeto manipulado (1983 155)

Green e Pepicello defendem que a plateia ldquoignorardquo duas coisas distintas o boneco ldquocomo

sendo apenas um signordquo e ldquoa presenccedila humana nos espetaacuteculos de bonecosrdquo

presumivelmente os fatos mais ou menos oacutebvios de que os bonecos satildeo movidos e tecircm suas

vozes dadas por humanos O primeiro desses fatos parece eacute sempre ignorado ao passo que o

uacuteltimo natildeo eacute ignorado em ldquocertas tradiccedilotildeesrdquo tal como o bunraku japonecircs que natildeo faz

qualquer esforccedilo de ocultaccedilatildeo do envolvimento humano Nessas tradiccedilotildees Green e Pepicello

percebem uma oscilaccedilatildeo na percepccedilatildeo da plateia ldquoentre objeto como sendo ator (ie

possuidor de vida) e agido (ie objeto inanimado)rdquo (1983 157) Essa oscilaccedilatildeo eacute

essencialmente um deslocamento raacutepido e recorrente entre as duas maneiras de

reconhecimento do boneco apresentado por Zich

Embora essa teoria ofereccedila um avanccedilo significativo sobre a de Zich ao permitir um

relacionamento entre os dois aspectos do boneco haacute dois problemas com ela A primeira eacute

que a oscilaccedilatildeo entre o boneco como ldquoatorrdquo e ldquoagidordquo natildeo eacute considerada como universalmente

operativa estaacute sugerido que se o operador do boneco natildeo se encontra visiacutevel tal oscilaccedilatildeo natildeo

ocorreria a desatenccedilatildeo universal do boneco como sendo ldquoapenas um signordquo iraacute predominar

complementada pela desatenccedilatildeo pontual do operador invisiacutevel Green e Pepicello sugerem

que a ldquovidardquo do boneco como expressa por meio de ldquoconvenccedilotildees artiacutesticasrdquo seraacute mais

valorizada do que a natureza do boneco como sendo um ldquoobjetordquo constituiacutedo de signos Ou

para apresentar de modo mais simples sem a presenccedila visiacutevel do operador de bonecos os dois

aspectos do boneco natildeo seratildeo postos em tensatildeo

O segundo problema eacute o da loacutegica conflituosa de oscilaccedilatildeo e desconsideraccedilatildeo a

oscilaccedilatildeo contradiz a sugestatildeo de que enquanto que a plaacuteteiacutea estaacute consciente de que ldquoem certo

niacutevelrdquo o boneco eacute ldquomero signordquo essa atenccedilatildeo eacute em uacuteltima consideraccedilatildeo ignorada Ou a plateia

oscila ente os dois aspectos do boneco numa tensatildeo equilibrada ou os dois aspectos natildeo estatildeo

em equiliacutebrio e o boneco entendido como ldquovidardquo domina o boneco entendido como ldquoobjetordquo

Embora Green e Pepicello natildeo procurem resolver essa contradiccedilatildeo o modo como limitam a

oscilaccedilatildeo no teatro de bonecos para quando haja a ldquopresenccedila humanardquo de um operador de

bonecos visiacutevel implica em que como regra atenccedilatildeo e desatenccedilatildeo do boneco como sendo

ldquomero signordquo eacute a percepccedilatildeo mais fundamental do boneco realizado pela audiecircncia Mais uma

281

vez de modo mais simples oscilaccedilatildeo e desconsideraccedilatildeo satildeo incompatiacuteveis e dada a escolha

entre elas Green e Pepicello parecem sugerir que a desconsideraccedilatildeo seja a mais comum

A despeito desses problemas haacute muito a ser creditado agraves sugestotildees e Green e

Pepicello Se ocorre apenas nas tradiccedilotildees que expotildeem a presenccedila humana do operador de

bonecos e se tambeacutem apenas de uma maneira que natildeo apenas permite certa percepccedilatildeo

simultacircnea da dupla natureza do boneco eles ajudam a quebrar a condicionalidade imposta

por Zich

Jurkowski vai mais aleacutem Ele natildeo limita a percepccedilatildeo da natureza dual do boneco como

ldquoobjetordquo e como ldquovidardquo apenas agraves tradiccedilotildees que incluem a presenccedila humana sobre a cena

Inserido no ldquosistema de signos do teatro de bonecosrdquo ele reconhece aqui que chama de ldquoa

opalescecircncia do bonecordquo que significa ldquoa dupla existecircncia do boneco que eacute percebida (e

demonstrada) tanto como boneco quanto como personagem cecircnicordquo (1988 [1983] 78)103

Ou

como ele explica num outro artigo

Quando o movimento domina completamente um objeto noacutes sentimos que a

personagem estaacute nascida e presente em cena Quando eacute a natureza do objeto

que o domina ainda vemos o objeto O objeto eacute ainda o objeto e a

personagem ao mesmo tempo Eacute o que eu quero dizer quando me refiro a

ldquoopalizaccedilatildeordquo (1988 [1984] 41)104

Assim opalescecircncia ou opalizaccedilatildeo refere-se agrave percepccedilatildeo simultacircnea feita pela plateia da

natureza dual do boneco uma dualidade de percepccedilatildeo ou como nos termos do seu estudo

uma tensatildeo entre os dois aspectos do boneco de ldquoobjetordquo e ldquovidardquo Embora este seja ainda um

grande avanccedila em relaccedilatildeo a Zich apresenta tambeacutem um problema

Simplesmente Jurkowski natildeo considera opalizaccedilatildeo como algo inerente ao proacuteprio

boneco Ele argumenta que isso tem sido operativo apenas a partir do advento do que ele

chama de ldquoo sistema de signos do teatro de bonecosrdquo ldquoO boneco vem produzindo esse efeito

de opalizaccedilatildeo desde o seacuteculo XVIII O boneco era [natildeo antes de] naquele tempo considerado

um objeto e um personagem vivo ao mesmo tempordquo (1988 [1984] 41) Em breve iremos

considerar a discussatildeo de Jurkowski dos diversos ldquosistemas de signosrdquo nos quais o boneco

pode ser empregado para o momento basta notar que nos contextos de ldquosistemas de signos

proacuteximosrdquo e no ldquosistema de signos do teatro viventerdquo Jurkowski acredita que o boneco pode

ser percebida apenas como sendo respectivamente ldquoobjetordquo ou ldquovidardquo Opalescecircncia entatildeo

natildeo eacute inerente a toda a apresentaccedilatildeo de bonecos mas apenas em certos estilos dessas

103

(NT) El sistema de signos del tiacutetere in Consideraciones sobre el teatro de tiacuteteres Bilbao Concha de la Casa

1990 (Ensayos) pp 54-79 104

Mesma obra pp 48-53

282

apresentaccedilotildees De acordo com Jurkowski a condicionalidade de Zich foi abolida apenas no

periacuteodo em que esse estilo de apresentaccedilatildeo tornou-se corrente no ocidente

Peacuteter Moacutelnar Gaacutel um cenoacutegrafo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste natildeo

oferece um termo explanatoacuterio proacuteprio mas sai-se bem em acabar completamente com a

condicionalidade de Zich ao descrever umas das ldquocaracteriacutesticas peculiaresrdquo de seu teatro

Tudo eacute o que eacute e ainda algo mais um objeto reconheciacutevel e um objeto

transfigurado ao mesmo tempo Sobre a cena de bonecos um espanador pode

simbolizar uma bela princesa iluminada pela gloacuteria mas precisamos nunca

nos esquecer de que aquilo permanece um espanado Enquanto os objetos

perdem seus sentidos originais e transformam-se em outra coisa ainda

preservam sutilmente deu caraacuteter original (1978 14)

Pode-se jogar com a expressatildeo ldquopreservar sutilmenterdquo pois de acordo com a loacutegica da

descriccedilatildeo o aspecto do boneco como ldquoobjeto reconheciacutevelrdquo eacute mantido em tensatildeo com o seu

aspecto enquanto ldquoobjeto transfiguradordquo A exceccedilatildeo disso Gaacutel estaacute obviamente lidando com o

que Green e Pepicello chamaram de oscilaccedilatildeo e Jurkowski chama de opalescecircncia

Mais uma vez entretanto o reconhecimento simultacircneo dos dois aspectos do boneco eacute

circunscrito Gaacutel o limita ainda que de modo impliacutecito aos trabalhos do seu proacuteprio teatro

Como ele natildeo estaacute buscando explicar o teatro de bonecos de maneira ampla tal limitaccedilatildeo eacute

compreensiacutevel O Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste baseia conscientemente o seu

trabalho sobre a tensatildeo inerente agrave natureza dual do boneco e Gaacutel considera isto como a

grande forccedila de seu teatro Ele natildeo discute se tal tensatildeo pode ser encontrada em qualquer

apresentaccedilatildeo com bonecos

Finalmente consideremos um comentaacuterio feito pelo brilhante estudioso polonecircs Jan

Kott referente ao que ele acredita ser o aspecto mais caracteriacutestico do bunraku

O bunraku eacute praticamente o uacutenico teatro de bonecos no qual o mecanismo se

encontra completamente desnudado A esteacutetica dessa arte consiste na

evocaccedilatildeo de uma ilusatildeo absoluta e na sua equivalente absoluta destruiccedilatildeo

Bunraku eacute simultaneamente um teatro no qual bonecos atuam em dramas

humanos ndash riso e laacutegrimas amor e oacutedio trapaccedilas auto sacrifiacutecio e

assassinato ndash e um metateatro cujos protagonistas satildeo os manipuladores que

operam os bonecos o narrador e o [muacutesico] metateatro cujas accedilotildees

dramaacuteticas consistem em revelar a ilusatildeo teatral (1976 100)

Mais uma vez parecemos estar lidando com a mesma ideacuteia essencial de oscilaccedilatildeo e

opalizaccedilatildeo mas agora em termos pelos quais a apresentaccedilatildeo do boneco eacute ldquosimultaneamente

teatro e metateatrordquo Claramente a vida que o puacuteblico imagina no boneco eacute teatro ao passo

que a exposiccedilatildeo intencional do boneco como objeto percebido eacute metateatro

A tarefa da anaacutelise em curso tem sido mostrar que a visatildeo alternada de Zich eacute

insustentaacutevel e que de fato a percepccedilatildeo simultacircnea dos dois aspectos do boneco eacute uma

283

caracteriacutestica definidora de ao menos alguns estilos de teatro de bonecos ou de um certo

periacuteodo do teatro de bonecos ou de dois teatros de boneco em particular ainda que estes

sejam amplamente divergentes Ainda natildeo se sugere que todo boneco em qualquer eacutepoca em

quaisquer teatros e tradiccedilotildees convida a plateia a perceber de uma soacute vez seus dois aspectos

e ainda natildeo eacute sugerido que por meio da tensatildeo inerente a essa percepccedilatildeo duplicada o boneco

prazerosamente desafia a compreensatildeo da sua plateia acerca do que significa ser um ldquoobjetordquo

e do que significa possuir ldquovidardquo

O boneco falando propriamente existe apenas como um processo particular de

apresentaccedilatildeo no qual o puacuteblico reconhece um elemento teatral com sendo um objeto feito

para apresentar signos abstratos de vida o que encoraja a plateia a satisfazer seu desejo

psicoloacutegico de imagina que o objeto percebido possui de fato vida

Esse processo eacute aquilo a que Green e Pepicello se referem quando escrevem acerca de

oscilaccedilatildeo o que Jurkowski quer dizer quando escreve sobre opalizaccedilatildeo o que Gaacutel aborda

quando escreve sobre o boneco como sendo ldquoum objeto reconheciacutevel e um objeto

transfigurado ao mesmo tempordquo e do que Kott trata quando escreve sobre ldquosimultacircneos

teatro e metateatrordquo contrariamente a todos esses autores entretanto esse processo natildeo se

encontra limitado ao teatro de bonecos mas eacute central para o fenocircmeno do boneco em meio a

toda a sua diversidade temporal e geograacutefica

Um termo preciso e auto-explicativo faz-se necessaacuterio para nomear esse processo

Oscilaccedilatildeo de Green e Pepicello natildeo necessariamente sugere uma flutuaccedilatildeo constante na

percepccedilatildeo que a plateia tem dos dois aspectos do boneco Opalizaccedilatildeo de Jurkowski embora

agradavelmente poeacutetico requer uma exegese substancial para tornar-se compreensiacutevel Gaacutel e

Kott natildeo sucedem em fornecer qualquer termo Poderiacuteamos chamar o processo de visatildeo dupla

pois no decorrer da apresentaccedilatildeo a plateia vecirc o boneco por meio da percepccedilatildeo e da

imaginaccedilatildeo como objeto e como vida ou seja vecirc o boneco de duas maneiras

simultaneamente

Uma tensatildeo constante existe no interior dessa visatildeo dupla criada pelo boneco cada um

dos aspectos do boneco eacute inescapaacutevel e ainda assim um contradiz o outro O boneco eacute e natildeo eacute

o que cada um de seus aspectos faz aparentar Chikamatsu Monzaemon o mais renomado

autor de bunraku japonecircs escreveu que ldquoarte eacute algo que repousa sobre a margem delicada que

separa o real do irreal Eacute irreal e ainda assim natildeo eacute irreal eacute real e ainda assim natildeo eacute realrdquo

(citado em Brecht 1988 2706) A arte do boneco certamente repousa sobre essa ldquomargem

delicadardquo pois o reconhecimento que a plateia faz do boneco por meio de percepccedilatildeo e

imaginaccedilatildeo apresenta um conflito entre o boneco como objeto e como vida O que pode ser

284

chamado de a condiccedilatildeo ontoloacutegica do boneco se encontra sempre no interior da margem de

duacutevida seu lugar nessa margem eacute a sua caracteriacutestica mais distintiva

Basil Milovsoroff um artista de animaccedilatildeo norte americano do seacuteculo XX troccedila que

ldquotalvez a verdadeira beleza do boneco seja a sua teatralidade inatardquo (1976 5) O que eacute

proposital no teatro vivo eacute inato ao boneco um processo de representaccedilatildeo que eacute

inerentemente faz-de-conta e que se apoacuteia sobre a produccedilatildeo de uma visatildeo dupla que daacute a

reconhecer o ldquoobjetordquo do boneco como possuidor de ldquovidardquo

Seria incorreto dizer que que toda a arte do boneco se empenha conscientemente em

produzir visatildeo-dupla de fato tal empenho natildeo tem sido central para o fenocircmeno do boneco

Como vimos no exemplo de Jurkowski da companhia de teatro italiana que se apresentava

alternadamente com atores e com bonecos visatildeo-dupla pode muito bem ter sido

frequentemente considerada um efeito colateral indesejaacutevel Ainda assim visatildeo-dupla eacute uma

constante em toda apresentaccedilatildeo com bonecos seja intencionalmente ou natildeo fornecendo assim

a explicaccedilatildeo sincrocircnica para o encanto disseminado e duradouro do boneco uma vez que cria

em todas as plateias o prazer de um paradoxo profundo e iluminador provocado por um

ldquoobjetordquo que tem ldquovidardquo

Assim sendo as sugestotildees no sentido de uma definiccedilatildeo sobre as quais se avanccedilou

anteriormente podem agora ser complementadas com uma explicaccedilatildeo sincrocircnica para o

boneco o boneco eacute um elemento teatral compreendido pela plateia como sendo um objeto ao

qual se confere forma movimento e frequentemente fala de modo a satisfazer o desejo da

plateia de imaginaacute-lo como tendo vida criando a visatildeo-dupla de percepccedilatildeo e imaginaccedilatildeo o

boneco desafia agradavelmente a compreensatildeo da audiecircncia acerca do relacionamento entre

objetos e vida

O prazer paradoxal criado entre por meio do processo de visatildeo-dupla do boneco opera

num niacutevel fundamental sob os prazeres mais oacutebvios fornecidos pelo ldquoobjetordquo do boneco com

seus signos abstratos de forma movimento e fala e pela ldquovidardquo do boneco como sendo uma

personagem dramaacutetica em meio a uma narrativa Nossa intenccedilatildeo natildeo tecircm sido a de apequenar

esses prazeres pois na quase infinita variedade das suas manifestaccedilotildees eles tecircm conquistado

milhotildees incontaacuteveis de coraccedilotildees melhor nossa intenccedilatildeo tem sido demonstrar que sob esses

pode ser encontrado um prazer mais complexo operativo em todas as apresentaccedilotildees com

bonecos

Natildeo se deve no entanto imaginar que esse prazer mais complexo esse prazer do

paradoxo ontoloacutegico exija de sua plateia algum niacutevel admiraacutevel de reflexatildeo esteacutetico-

filosoacutefica O processo de visatildeo-dupla natildeo exige que a plateia esteja cocircnscia dele E assim

285

enquanto eacute verdadeiro que o boneco envie solicitaccedilotildees especiais agrave sua plateia tambeacutem eacute

verdade que tais solicitaccedilotildees podem ser cumpridas por qualquer grupo de crianccedila em jardim

da infacircncia As exigecircncias satildeo nada aleacutem de a plateia estar receptiva aos signos abstratos de

vida que constituem o boneco e desejosa de ver o mundo atraveacutes do prisma da consciecircncia

humana a partir de tal receptividade e desejo todo o resto se seguiraacute

Em uacuteltimo caso um grande problema em teatro de bonecos eacute a proacutepria facilidade com

que suas demandas especiais satildeo alcanccediladas Peter Arnott contemplando aquilo que ele

acredita serem os baixos padrotildees costumeiramente encontrados em teatro de bonecos conclui

que ldquonatildeo haacute duacutevidas que teatro de bonecos eacute algo fatalmente simples Haacute uma atraccedilatildeo

irresistiacutevel que se sente em direccedilatildeo a essas criaturinhas irrequietasrdquo (1964 40) O que haacute de

ldquofatalmente simplesrdquo eacute a capacidade inata do boneco em criar o prazer paradoxal da visatildeo-

dupla quase independentemente da qualidade das produccedilotildees em questatildeo o boneco iraacute

estimular um determinado prazer por meio do desafio que lanccedila agrave plateia a considerar a

ontologia de um ldquoobjetordquo com ldquovidardquo

Arnott sugere que essa facilidade eacute em uacuteltimo caso a razatildeo pela qual o teatro de

bonecos ao menos no ocidente foi tido em menor consideraccedilatildeo

Quando o boneco por si soacute eacute tatildeo atraente importa tanto assim o que ele

faz Assim cria-se um ciacuterculo vicioso O adulto perspicaz chega agrave conclusatildeo

de que pode esperar apenas entretenimento superficial [Ele entatildeo]

acredita natildeo conseguir levar mais que crianccedilas e grupos que vivem do teatro

de bonecos satildeo forccedilados a dar ao puacuteblico aquilo que ele deseja

Inevitavelmente o entretenimento oferecido natildeo consegue erguer-se acima

de um determinado padratildeo (1964 40-1)

O prazer paradoxal do processo de visatildeo-dupla do boneco eacute tatildeo faacutecil de ser criado que pode

conduzir a certa preguiccedila entre os artistas de bonecos Deve-se apenas notar que tal preguiccedila

e o teatro de bonecos mediacuteocre dela advindo satildeo a responsabilidade de determinados artistas

e natildeo do proacuteprio teatro de bonecos Como pudemos ver a partir dos nossos exemplos

introdutoacuterios quando os artistas natildeo caem presas de tal preguiccedila conseguem criar produccedilotildees

teatrais magistrais e importantes ndash que seriam possiacuteveis apenas se feitas com bonecos

UM TESTE DE VISAtildeO-DUPLA

O leitor iraacute se recordar de nossa introduccedilatildeo que Jurkowski questiona o valor de

qualquer aproximaccedilatildeo sincrocircnica argumentando que a diversidade diacrocircnica do teatro de

bonecos eacute tal que o boneco poderaacute ser compreendido apenas por meio da discussatildeo de seu

emprego em contextos teatrais especiacuteficos Seria justo testar as ideacuteias deste estudo contra os

variados contextos enumerados por Jurkowski Se o boneco visto como processo de visatildeo-

286

dupla pode ser operativo em toda situaccedilatildeo entatildeo a visatildeo-dupla pode pode perfeitamente ser

considerada como algo que opera sincronicamente em todo o teatro de bonecos

Uma breve revisatildeo Jurkowski argumenta que ldquoa presenccedila de um boneco natildeo eacute sempre

e inevitavelmente constitutiva de um sistema de signos do teatro de bonecosrdquo (1988 [1983]

67) Mais que isso o boneco pode ser posto a serviccedilo de ldquosistemas de signos aparentadosrdquo o

ldquosistema de signos do teatro vivordquo o ldquosistema de signos do teatro de bonecosrdquo ou um sistema

de signos contemporacircneo caracterizado pela ldquoatomizaccedilatildeo de todos os elementos do teatro de

bonecosrdquo (1988 [1983] 68 71 76 79)

O emprego que faz Jurkowski do termo sistema de signos eacute diferente daquele usado

neste estudo o primeiro refere-se a sistemas de significaccedilatildeo teatral abrangentes como os

acima listados no quais o boneco eacute empregado o segundo refere-se a trecircs sistemas de

significaccedilatildeo especiacuteficos ndash forma movimento e fala ndash apresentados pelo boneco Infelizmente

quase nada suporta a diferenccedila entre os dois usos do termo105

mas para os nossos propoacutesitos

o termo ldquosistema de signosrdquo deve ser distinto do emprego mais amplo que Jurkowski faz do

termo

Jurkowski demonstra a variedade de empregos do boneco num levantamento sobre ldquoa

longa jornada do boneco atraveacutes dos diferentes sistemas de signosrdquo no teatro europeu Ele

aponta apropriadamente que esses empregos embora cronologicamente muito espalhados

natildeo se sucedem no tempo mas coexistem hoje em dia (1988 [1983] 68)

Apoacutes uma breve revisatildeo acerca de bonecos em tempos claacutessicos ele se deteacutem sobre a

Idade Meacutedia e o Renascimento dos quais cita o emprego de bonecos em ldquosistemas de signos

vizinhosrdquo Apoacutes definir teatro como sendo ldquoatores (vivos ou bonecos) que num lugar especial

apresentam personagens imaginadas de acordo com um drama preacutevio ou improvisado sendo

assistidos por um puacuteblico reunido intencionalmente ou por acasordquo ele argumenta que

ldquodemonstraccedilotildees com bonecos [nesse periacuteodo] sempre se ressentiram de alguns elementos [do

teatro] natildeo apresentavam dramas ou os bonecos natildeo eram personagensrdquo (1988 [1983] 68)

Jurkowski menciona dois tipos particulares de emprego de bonecos Primeiro havia

bonecos que ldquotentavam ser vivos como homens Eacute claro natildeo o conseguiam e assim pareciam-

se com caricaturas de seres humanosrdquo Segundo havia bonecos ldquousados como ilustraccedilotildeesrdquo por

ldquobardos e contadores de histoacuteriasrdquo tais como ldquopinturas em pergaminhordquo eram usadas (1988

[1983] 69)

105

NT No original em inglecircs o termo cuja significaccedilatildeo eacute usada por Tillis eacute grafado com hiacutefen (sign-system)

inexistente no termo como usado por Jurkowski (sygn system) No trecho em causa Tillis estaria comentando que

ldquoo hiacutefen carrega o peso de distinguir os dois termosrdquo mas foi modificado devido agrave decisatildeo da traduccedilatildeo de natildeo

empregar o hiacutefen na grafia de nenhuma das concepccedilotildees do termo

287

O primeiro tipo de emprego para um sistema de signos para o qual Jurkowski natildeo daacute

um nome mas que poderia ser identificado como espetaacuteculo eacute exemplificado por ldquobonecos

de truquesrdquo dos quais ldquose incluem bonecos de metamorfose e de nuacutemeros circenses Os

bonecos de metamorfose satildeo dispositivos teacutecnicos que eram exibidos para surpreender a

plateia Nisso eram muito bem sucedidos assim como os de nuacutemeros circenses (malabaristas

danccedilarinos sobre corda bamba acrobatas e outros)rdquo (1988 [1983] 70) Os bonecos de truque

que existem ateacute os dias atuais natildeo apresentam qualquer pretensatildeo de serem personagens num

drama eles ldquotentam ser algo real e sendo reais [tornam-se] objetos de interesse puacuteblico e

espetacularrdquo (1988 [1983] 700) Ou seja servem como objetos de curiosidade Como se

aplicaria a visatildeo-dupla a esse emprego

A chave estaacute na noccedilatildeo de Milovsoroff acerca da teatralidade inata do boneco Essa

qualidade intriacutenseca foi discutida anteriormente vimos que ao passo que a tentativa do ator eacute

ser uma personagem especiacutefica a do boneco eacute estar vivo Em todos os casos a tentativa

envolve a representaccedilatildeo de uma ilusatildeo Assim mesmo se o contexto da representaccedilatildeo envolve

um malabarista vivo em oposiccedilatildeo ao teatro a pretensa vida do boneco malabarista se daacute em

uma personagem de um malabarista vivo Ainda que seja apenas um ldquoobjetordquo seus signos

abstratos nesse caso os movimentos caracteriacutesticos do malabarismo levam a plateia a

imaginar que este possui a ldquovidardquo de um malabarista Essa pretensatildeo cria ao menos um tipo

rudimentar de drama ldquoa apresentaccedilatildeo de um malabaristardquo E assim vemos que de fato

podemos usar o conceito de visatildeo-dupla para identificar no boneco de truque ambos os

elementos evocados por Jurkowski

O segundo tipo de emprego citado por Jurkowski eacute aquele apresentado pelo boneco

para o sistema de signos vizinho da arte do contador de histoacuterias O exemplo de Jurkowski

vem do Don Quixote de Cervantes

O boneco do teatro renascentista de Mestre Pedro (Cervantes) eacute uma espeacutecie

de apresentaccedilatildeo de contador de histoacuterias Um menino se posiciona diante do

retablo [palco para bonecos] e aponta aos seus bonecos enquanto conta a

histoacuteria de Don Gaiferos e Melisandra A fala do menino eacute quase que

exclusivamente narraccedilatildeo apenas ocasionalmente inserindo as palavras das

figuras da accedilatildeo O papel principal dessa representaccedilatildeo pertence ao menino

ele eacute o ator principal O retablo e seus bonecos natildeo satildeo mais que ilustraccedilatildeo

Sempre que necessaacuterio o menino responde a comentaacuterios feitos pela plateia

Ele entatildeo eacute um verdadeiro intermediaacuterio mas media a reaccedilatildeo do puacuteblico

diante do texto (das palavras) e natildeo diante dos bonecos (1988 [1983] 64)

Esse uso dos bonecos se opotildee segundo Jurkowski ao notado nas apresentaccedilotildees de

ldquoPetrushkardquo nas quais um ator se comporta como um intermediaacuterio entre o boneco e a plateia

tocando muacutesica e interpretando as palavras do boneco

288

Natildeo haacute duacutevida de que no caso do teatro de Don Pedro o boneco de retablo

servia ao ator (contador de histoacuterias) ao passo que na comeacutedia de Petrushka

era o ator (muacutesico) que servia aos bonecos No primeiro caso a histoacuteria eacute o

elemento constitutivo da apresentaccedilatildeo no segundo caso eacute o heroacutei boneco

Eu me atreveria a dizer que os bonecos entraram em dois sistemas de signos

um tanto diferentes (1988 [1983] 64-5)

Os ldquodois sistemas de signos um tanto diferentesrdquo satildeo o da narraccedilatildeo de histoacuterias e do teatro de

bonecos propriamente ditos O ponto de Jurkowski eacute que essa questatildeo sobre se o boneco serve

ou eacute servido altera a compreensatildeo que se tem dele por parte da audiecircncia pois no teatro de

Don Pedro os bonecos apenas fazem aquilo que uma sequecircncia de imagens faria ndash ilustrar a

histoacuteria ndash e assim se ressentiriam de caracteriacutesticas dramaacuteticas proacuteprias

E jaacute que os bonecos no teatro de Don Pedro natildeo sejam pinturas num pergaminho

mesmo que sua funccedilatildeo seja similar natildeo eacute a mesma A diferenccedila eacute precisamente a visatildeo-dupla

criada pelo boneco Eacute crucial notar que quando Don Quixote se enfurece com a narrativa ele

natildeo ataca o contador da histoacuteria ndash quem segundo Jurkowski eacute o ator principal da produccedilatildeo ndash

mas ataca os bonecos Se o narrador estivesse ilustrando seu conto com desenhos num

pergaminho seria difiacutecil imaginar Don Quixote rasgando o rolo em sua fuacuteria ao inveacutes disso

ele atacaria o narrador Os bonecos ainda que a serviccedilo do narrador possuem um significado

que ultrapassa de longe aquele fornecido por figuras pintadas numa tela uma significacircncia

predicada pela visatildeo-dupla que o boneco provoca

Din Quixote eacute eacute claro insano essa insanidade o conduz a considerar a vida que

imagina terem os bonecos como algo que suplanta a percepccedilatildeo deles como sendo objetos

Assim os bonecos sofrem o ataque como sendo os agentes ldquovivosrdquo do drama apesar da

apresentaccedilatildeo do contador da histoacuteria A presenccedila do boneco no lugar de figuras desenhadas

natildeo eacute um evento neutro e mais uma vez percebemos que de fato ambos os elementos do

teatro participantes do conceito de visatildeo-dupla evocados por Jurkowski podem ser

encontrados nesse uso do boneco

Jurkowski acompanha o boneco nos periacuteodos barroco e romacircntico quando participou

do sistema de signos do teatro vivo Noacutes jaacute vimos como uma companhia italiana em excursatildeo

pela Polocircnia se apresentava alternadamente com bonecos e atores Na era barroca bonecos

apresentando oacuteperas entraram na moda

Em propagandas da eacutepoca os administradores de teatros de bonecos

garantiam ao puacuteblico que seus bonecos representavam como atores vivos

Hoje em dia eacute difiacutecil de acreditar que um boneco poderia imitar um ator tatildeo

perfeitamente a ponto de passar por sua miniatura Entretanto isso era um

tanto possiacutevel no teatro de bonecos operiacutestico do seacuteculo XVII A atuaccedilatildeo de

atores e cantores vivos naquela eacutepoca era completamente esquemaacutetica Os

cantores permaneciam numa fila na abertura do proscecircnio e faziam gestos

289

esquemaacuteticos Imitar tal atuaccedilatildeo era faacutecil para o boneco especialmente

desde que a luz natildeo fosse muito clara e a rede de conexotildees [postada diante

do palco] escondesse os fios de controle [do boneco] (1988 [1983] 72)

Oacutepera com bonecos natildeo deve ser confundido com teatro popular uma vez que era apresentada

para as classes mais educadas em cidades onde a oacutepera era provavelmente bastante

apresentada Juntamente com os operadores de bonecos as produccedilotildees de oacutepera com bonecos

requeriam uma boa quantidade de cantores e instrumentistas Claramente os financiadores de

oacutepera com bonecos esperavam capitalizar juntamente a uma plateia que escolheu ver

especificamente ldquobonecos [que] atuam como atores vivosrdquo Se a plateia soubesse previamente

a cerca da natureza da apresentaccedilatildeo o que parece se o caso entatildeo o acorrimento a tais

apresentaccedilotildees eacute dependente ao menos em parte de um desejo de se ver bonecos em vez de

atores vivos

Os aspectos fundamentais da descriccedilatildeo de Jurkowski satildeo o do boneco tido como um

ator miniaturizado e a ldquorede de conexotildeesrdquo que escondia o os meios de operaccedilatildeo dos bonecos

A plateia estava consciente de que o que assistia natildeo tinha uma dimensatildeo humana e mais

ainda que natildeo era apresentada sem dissimulaccedilatildeo Isto equivale a dizer que a plateia sabia que

estava assistindo a uma imitaccedilatildeo da oacutepera ldquovivardquo e natildeo a de verdade O fato de tais produccedilotildees

serem derivativas natildeo estaacute em questatildeo mesmo assim parece claro que a plateia entendia o

boneco como sendo um inteacuterprete teatral especiacutefico e que assistiam a oacuteperas com bonecos

precisamente para obter prazer dessa distinccedilatildeo

Teatro de bonecos popular no sistema de signos do teatro vivo veio de acordo com

Jurkowski em dois estaacutegios

O primeiro estaacutegio de adaptaccedilatildeo cobriu o modelo do teatro barroco e seu

repertoacuterio incluindo histoacuterias biacuteblicas mitos evangile [NT evangelho)

paraacutebolas peccedilas hagiograacuteficas e dois temas famosos do renascimento ldquoDon

Juanrdquo e ldquoDoktor Faustrdquo O segundo estaacutegio de adaptaccedilatildeo cobriu o

repertoacuterio romacircntico e seu modelo de teatro Teatros de bonecos na

Alemanha Franccedila Beacutelgica e Boecircmia adaptaram repertoacuterio cenaacuterios e

figurinos do melodrama imitando o teatro vivo (1988 [1983] 75)

Jurkowski natildeo daacute um exemplo de bonecos no sistema de signos do teatro mas um exemplo

do ldquosegundo estaacutegio de adaptaccedilatildeordquo parece ser a tradiccedilatildeo de bonecos belgas de Liegravege nos

quais os romances de Carlos Magno eram apresentados bonecos esplendidamente vestidos

operados de cima por meio de bastotildees grossos presos agraves cabeccedilas dos bonecos

Tal como as elegantes oacuteperas com bonecos os teatros de bonecos populares como o

de Liegravege era em muitas maneiras derivativos do teatro vivo mas novamente a substituiccedilatildeo

de bonecos por atores inescapavelmente alterava a apresentaccedilatildeo Na medida em que os teatros

290

de bonecos populares imitavam teatro vivo a anaacutelise vista sobre a oacutepera com bonecos

demonstra como a presenccedila do boneco transforma a imitaccedilatildeo em algo de uma natureza

diferente De fato entretanto a tradiccedilatildeo de Liegravege suplantou em muito a imitaccedilatildeo do teatro

vivo Malkin nota que nessa tradiccedilatildeo ldquociclos completos de peccedilas poderiam requerer oitocentas

figuras elaboradamente esculpidas e vestidas Geralemente se levava diversos meses de

apresentaccedilotildees em seacuterie para completar o dramardquo (1977 24) Pode-se duvidar se o teatro vivo

alguma vez empregou tantos personagens em uma apresentaccedilatildeo que se estendesse por tal

periacuteodo de tempo Embora a tradiccedilatildeo de Liegravege empregasse certas convenccedilotildees do teatro vivo

ela explodiu as convenccedilotildees de tamanho de elenco e duraccedilatildeo de histoacuteria

E fez mais que isso Fez uso de bonecos que eram de dimensotildees inteiramente

diferentes Como Malkin explica ldquoas plateias sabiam que figuras maiores eram mais fortes

ou mais nobres que as figuras menores Dessa maneira Carlos Magno deve ter

aproximadamente cinco peacutes de altura (NT aproximadamente um metro e meio) ao passo que

uma personagem menor deveria ter menos de dezoito polegadas de altura (Malkin 1977 24-

5) O emprego e tais variaccedilotildees de tamanho para transmitir informaccedilotildees sobre as personagens

eacute claro impossiacutevel no teatro feito com atores Assim noacutes vemos que mesmo quando serve

agravequilo que Jurkowski chama de sistema de signos do teatro vivo o boneco invariavelmente

difere do ator por meio da apresentaccedilatildeo cuidadosa de seus recursos caracteriacutesticos

A proacutexima parada de Jurkowski na jornada do boneco se deteacutem sobre os cem anos em

torno da virada do seacuteculo XX quando bonecos apoacutes alguns esforccedilos pioneiros adentrou no

sistema de signos do teatro propriamente dito como sendo ldquocriaturas artificiais [que]

comportam-se de sua proacutepria maneira especialrdquo (1988 [1983] 76-7)

A caracteriacutestica distintiva desse sistema de signos eacute que eacute o boneco que eacute servido e a

natureza particular do boneco que eacute explorada Essa natureza eacute o que Jurkowski chama de

opalescecircncia eacute como jaacute vimos similar agrave nossa ideacuteia de visatildeo-dupla Dessa maneira natildeo seraacute

necessaacuterio demonstrar a distinccedilatildeo teatral do boneco em para esse sistema de signos Seraacute

vaacutelido no entanto notar duas questotildees sobre o sistema de signos do teatro de bonecos pois

que este possui duas manifestaccedilotildees distintas

Primeiro esse sistema de signos se exemplifica em certos tipos de teatro de bonecos

tradicional como as apresentaccedilotildees de ldquoPunch and Judyrdquo e ldquoPetrushkardquo A primeira

ocasionalmente e a segunda geralmente tecircm um ator como intermediaacuterio entre o boneco e a

plateia Esse ator ldquoserve ao bonecordquo ajudando com sua apresentaccedilatildeo junto ao puacuteblico

Eacute interessante no entanto que Jurkowski localize essas tradiccedilotildees onde o faz jaacute que

ambas dividem uma ancestralidade reconheciacutevel ao menos em parte com o teatro de atores da

291

commedia dellrsquoarte e talvez tambeacutem com a comeacutedia de atoes da Roma Antiga (Baird 1965

96 103) Entatildeo estes natildeo deveriam ser localizados no sistema de signos do teatro vivo Que

eles natildeo sejam isso eacute indicativo do esquema de Jurkowski no qual a questatildeo mais importante

eacute a do serviccedilo em ambas as tradiccedilotildees eacute o boneco que eacute servido Nosso exemplo da introduccedilatildeo

vindo da Iacutendia no qual um muacutesico traduz para a plateia as falas incompreensiacuteveis dos

bonecos eacute um outro exemplo desse serviccedilo As fronteiras entre os sistemas de signos de

Jurkowski baseados apenas em termos de serviccedilo parecem um tanto tecircnues quando

examinados sob qualquer outra perspectiva

Segundo o sistema de signos do teatro e bonecos eacute exemplificado por ldquoteatros de

bonecos artiacutesticosrdquo nos quais o serviccedilo prestado aos bonecos por intermediaacuterios vivos ou

companheiros de palco eacute amplamente explorado de modo a que o bonecos pode ser entendido

como sendo explicitamente ldquorsquocomo bonecosrsquo [com] os bonecos tidos como personagem

cecircnico e objeto material ao mesmo tempordquo (1988 [1983] 78) Jurkowki menciona uma

quantidade de produccedilotildees onde se ldquoconfrontam o teatro de bonecos com o teatro vivo de modo

a intensificar as caracteriacutesticas do teatro de bonecosrdquo ou que permitem ao boneco estar

ldquoconsciente do fato de que eacute manipulado por algueacutemrdquo e estar ldquoconscienterdquo de ser um boneco

explorando o boneco com uma ldquometaacutefora da impotecircncia e do controle por forccedilas externasrdquo

(1988 [1983] 79)

Eacute claro o argumento deste estudo de que enquanto que o processo de visatildeo-dupla do

boneco eacute explicitamente explorado por tais teatros artiacutesticos eacute implicitamente explorado por

todos os usos do boneco Mas Jurkowski estaacute certamente correto ao identificar a exploraccedilatildeo

expliacutecita dos dois aspectos do boneco ldquopersonagem cecircnico e objeto material ao mesmo

tempordquo como algo fundamental ao periacuteodo que McPharlin chama de ldquoo renascimento do

bonecordquo (1938 i)

Jurkowski conclui a sua histoacuteria com o boneco contemporacircneo no qual ldquotodos os

elementos do teatro de bonecos [estatildeo] atomizadosrdquo (1988 [1983] 67) Com isso ele quer

dizer que as teacutecnicas tradicionais do teatro de bonecos incluindo encenaccedilatildeo o relacionamento

entre o boneco e o operador e a apresentaccedilatildeo dos bonecos juntamente com atores estatildeo

ldquodespedaccediladasrdquo e que tal teatro eacute ldquocaracterizado pela pulsaccedilatildeo constante dos meios de

expressatildeo e de seus relacionamentosrdquo (1988 [1983 81-2)

Nesse tipo final de teatro de bonecos os elementos da apresentaccedilatildeo estatildeo atomizados

e nenhum deles pode ser identificado como estando a serviccedilo de outros Isto poderia ser

chamado de desconstruccedilatildeo do teatro de bonecos embora Jurkowski natildeo use esse termo Seu

exemplo de uma produccedilatildeo polonesa

292

[Josef Krofta] dirigiu uma adaptaccedilatildeo proacutepria de Don Quixote de Cervantes

Ele pocircs no palco uma quantidade de atores vivose alguns bonecos As

personagens principais (pe Don Quixote e Sancho Panccedila) eram

representadas duplamente por homens e bonecos Num momento viacuteamos as

personagens representadas por homens em outro momento por bonecos e

algumas vezes por ambos A cena da derrota de Don Quixote na estalagem

era representada usando diferentes meios de expressatildeo Um ator com um

bastatildeo em sua matildeo batia no banco onde se imaginava que Don Quixote

estava deitado outro ator fingindo ser espancado guinchava como um louco

outro estava destruindo o boneco de Don Quixote (1988 [1983] 67)

Deve ser notado que autores e artistas envolvidos com o teatro de bonecos consideram

a histoacuteria de Don Quixote quase irresistiacutevel Talvez porque contenha natildeo apenas o admiraacutevel

incidente com o teatro de bonecos de Don Pedro mas tambeacutem um tema recorrente de

paradoxo ontoloacutegico como o do moinho tomados por um monstro Esse paradoxo ontoloacutegico

eacute como jaacute sugerimos essencial para o boneco

Jurkowski argumenta que na produccedilatildeo de Krofta ldquopodemos encontrar uma nova

combinaccedilatildeo dos meios de expressatildeo e assim de certa forma um novo sistema de signosrdquo o

teatro de bonecos que deve ser compreendido em seus proacuteprios termos (1988 [1983] 67) Mas

haveria algo nessa produccedilatildeo em especial ou em produccedilotildees atomizadas de modo similar que

natildeo seria compreensiacutevel por meio da abordagem sincrocircnica mostrada neste estudo

Na cena descrita haacute pouco Jurkowski encontra significacircncia na atomizaccedilatildeo da

personagem Don Quixote sendo representada por um espaccedilo num banco um ator fingindo ser

espancado e uivando como um louco e a destruiccedilatildeo do boneco Don Quixote Esta eacute

certamente um fragmento complexo de encenaccedilatildeo mas a cena de fato apresenta um boneco

A figura torturada de Don Quixote doficilemnte pode ser considerado um boneco mesmo por

meio da definiccedilatildeo de Jurkowski pois para a qual natildeo se concede movimento nem fala A

personagem de Don Quixote foi certamente atomizada mas o boneco natildeo pois que ali natildeo haacute

um boneco A figura teatral de Don Quixote parece natildeo ser mais que um adereccedilo uma efiacutegie

de Don Quixote sujeitada a danos fiacutesicos de uma maneira simboacutelica um tanto comum no caso

de efiacutegies A significacircncia de tal cena para a compreensatildeo do boneco parece um tanto

limitada

Sem possuir familiaridade com a produccedilatildeo em questatildeo pode-se parecer difiacutecil

comentar sobre como ou mesmo se bonecos ou adereccedilos semelhantes a bonecos podem ser

usados em outras cenas Mas imaginemos a seguinte cena um ator representando Don

Quixote se encontra no fundo do palco estudando lendo sobre cavalaria ele se deteacutem para

olhar na direccedilatildeo da plateia Um pequeno boneco tambeacutem representando Don Quixote surge

na frente da cena agrave direita totalmente vestido como um cavaleiro montado em Rocinante Agrave

293

medida em que o boneco Don Quixote cavalga o ator repara em sua presenccedila e o segue com

os olhos Ele para brevemente ao centro do palco e o ator diz um texto para ele Quando o

boneco sai de cena pela esquerda baixa o ator deita o seu livro e alcanccedila um elmo de

cavaleiro que estaacute em sua escrivaninha (Essa cena foi proposta para uma montagem de Don

Quixote segundo adaptaccedilatildeo feita para o Pickwick Puppet Theatre por Ken Moses 1980)

Nessa cena imaginaacuteria a personagem de Don Quixote se encontra atomizada de uma

maneira similar agravequela descrita por Jurkowski Mas nela a representaccedilatildeo de Don Quixote

apresentada no proscecircnio eacute para qualquer definiccedilatildeo um boneco Jurkowski estaacute certo ao

argumentar que a atomizaccedilatildeo de personagem ldquoestressa as funccedilotildees teatrais e metafoacutericardquo

(1988 [1983] 81) Mas apesar de tal ecircnfase o boneco continua sendo entendido como um

boneco

Assim se conclui o levantamento de Jurkowski acerca da jornada do boneco atraveacutes

dos sistemas de signos Eacute significativo notar que o bunraku natildeo encontra espaccedilo no esquema

de Jurkowski pois embora o bunraku ldquopossa ser comparado com os teatros de bonecos mais

avanccedilados da Europa e dos EUA de nosso tempordquo ele difere desses teatros por ser seacuteculos

mais antigo e por se constituir num sistema fechado ao passo que o teatro de bonecos

contemporacircneo eacute ldquoobviamente um sistema abertordquo (1988 [1983] 65-67) Essa incapacidade

em considerar o bunraku vem da base esquemaacutetica para os modelos europeus para os quais os

teatros de bonecos natildeo-europeu falham previsivelmente em enquadrar-se Como poderiacuteamos

levar a seacuterio uma aproximaccedilatildeo diacrocircnica que mal consegue se dar conta dos teatros de

bonecos praticados em mais de trecircs quartos do mundo

O sistema de signos do teatro de bonecos no sentido empregado por Jurkowski eacute

aquele que num niacutevel fundamental recria-se a si mesmo em cada tradiccedilatildeo de teatro de

bonecos talvez mesmo a cada apresentaccedilatildeo com bonecos uma vez que o boneco eacute feito para

apresentar uma variedade quase infinita de signos e combinaccedilotildees de signos Como escreve

Jurkowski ldquoAs relaccedilotildees entre o objeto (boneco) e as fontes de energia [os vocalizadores e

manipuladores] mudam o tempo todordquo (1988 [1983] 79-80) Ele estaacute correto no fato de que

isto distingue o teatro de bonecos do teatro de atores Neste a presenccedila do ator vivo restringe

natildeo apenas os signos que podem ser apresentados mas tambeacutem em sua maneira de

apresentaccedilatildeo devido a essa presenccedila eacute possiacutevel postular alguns aspectos estaacuteveis de um

sistema de signos para o teatro de atores Mas Jurkowski estaacute incorreto ao sugerir que o

boneco tem sido empregado a serviccedilo de quatro possiacuteveis sistemas de signos deve-se dizer

antes que os sistemas de signos do boneco em sua diversidade diacrocircnica eacute incomensuraacutevel

e que natildeo haacute uma uacutenica coisa que possa ser exatamente idealizada como teatro de bonecos

294

Deve-se assim examinar o boneco como sendo um medium teatral especiacutefico e ver como este

pode possuir uma natureza tatildeo voluacutevel

Ao contraacuterio do que apresenta Jurkowski pode-se facilmente discutir no mesmo

focirclego os bonecos do bunraku Petruschka as personagens no teatro de Mestre Pedro e

mesmo a personagem do malabarista fazendo seus truques na calccedilada de uma cidade

qualquer Em todos os caso o boneco eacute percebido como um objeto que por meio da

apresentaccedilatildeo dos trecircs sistemas de signos eacute imaginado como estando vivo o paradoxo

ontoloacutegico dessa visatildeo-dupla cria um prazer que acompanha outro qualquer e todos os demais

prazeres oferecidos pelo boneco

BONECOS OBJETOS DE REPRESENTACcedilAtildeO E ATORES

O conceito de visatildeo-dupla permite-nos compreender o processo essencial do teatro de

bonecos como sendo uma arte teatral Mas eacute claro o boneco eacute apenas uma maneira de se

apresentar teatro ao redor do mundo o que tem sido chamado de ldquoobjeto de representaccedilatildeordquo106

tambeacutem se encontra envolvido na apresentaccedilatildeo teatral e obviamente teatro eacute algo

apresentado muito frequentemente por meio do ator O que distingue o boneco do objeto de

representaccedilatildeo e do ator Ou para apresentar a questatildeo de outra maneira de que modo a visatildeo-

dupla provocada pelo boneco difere da maneira pela qual objetos de representaccedilatildeo e atores

satildeo vistos pela plateia

Frank Proschan um dedicado estudioso norte americano nas aacutereas de teatro de

bonecos e cultura popular situa o boneco na categoria de objeto de representaccedilatildeo ao qual

ldquoinvestimos com os poderes de falar e mover-serdquo (1983 3) Mais adiante ele define objetos

de representaccedilatildeo como sendo ldquoimagens materiais de seres humanos animais ou espiacuteritos que

satildeo criados apresentados ou manipulados em narrativas ou apresentaccedilotildees dramaacuteticas Mesmo

que o teatro de bonecos esteja no centro dessa definiccedilatildeo natildeo se encontra sozinhordquo (1983 4)

Num artigo anterior entretanto Proschan localiza o boneco diferentemente de acordo com a

seguinte categoria ldquoBonecos natildeo satildeo senatildeo exemplos extremos de objetos de representaccedilatildeo

uma categoria de fenocircmeno que se estende desde as bonecas de brincadeiras infantis

106

NT A palavra empregada no original eacute performing object um termo usado por Frank Proschan em estudo

de antropologia significando ldquoimagens concretas do homem do animal ou de espiacuteritos criados apresentados ou

manipulados em narrativas ou espetaacuteculos dramaacuteticosrdquo (PROSCHAN apud AMARAL Teatro de animaccedilatildeo

Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 1997 pp 25-6) Esse termo eacute citado por Ana Maria Amaral como uma das raiacutezes

conceituais para a cunhagem da noccedilatildeo de ldquoforma animadardquo (in AMARAL Ana Maria Teatro de formas

animadas Satildeo Paulo Edusp 1993 (Texto amp Arte 2)) A escolha do termo traduzido levou em consideraccedilatildeo

que apesar da semelhanccedila semacircntica e uso corrente que o termo forma animada possui entre praticantes e

estudiosos da animaccedilatildeo no Brasil a descriccedilatildeo do termo oferecida por Tillis nesse mesmo capiacutetulo torna o seu

emprego inadequado sendo necessaacuterio uso de algo mais abrangente como eacute o caso de objeto de representaccedilatildeo

295

passando por paineacuteis e imagens acompanhadas por narrativas por peep shows e objetos de

maacutegica ateacute figurinos e adereccedilos de apresentaccedilotildees teatrais (para mencionar apenas alguns

exemplos)rdquo (1981 554) Outros exemplos satildeo por ele mencionados tais como ldquodanccedilarinos

mascaradosrdquo ldquodevotos que carregam imagens em procissotildeesrdquo e ldquocontadores de histoacuterias que

traccedilam imagens na areia ou na neverdquo todos ele diz ldquomanifestam o desejo de dar vida a coisas

sem vida do modo como animam objetos em apresentaccedilotildees dramaacuteticas e usam imagens

materiais como substitutos para atores humanosrdquo (1983 3)

A categoria ldquoobjeto de representaccedilatildeordquo eacute consideravelmente ampla e segundo a

definiccedilatildeo de Proschan incorpora praacuteticas que possuem categorias proacuteprias tudo o que as faz

aparentadas eacute o fato de empregarem coisas sem vida que satildeo animadas Uma categoria ampla

como essa poderia certamente incluir o teatro de bonecos embora como pudemos ver os

proacuteprios termos sem vida e inanimado satildeo imprecisos se natildeo totalmente incorretos a ponto

de apresentarem um valor duacutebio

Devemos perguntar entretanto se o boneco seria nos termos de Proschan um

exemplo central de objeto de representaccedilatildeo ou um exemplo extremo Pois se o boneco for

central entatildeo a essecircncia do objeto de representaccedilatildeo deve ser a essecircncia do boneco ao passo

que se for extremo entatildeo pode ser possiacutevel argumentar que o boneco seria suficientemente

diferente de modo a justificar uma categorizaccedilatildeo em separado Responder agrave questatildeo requer

um meio de organizar a gama de atividades coberta pela categoria ldquoobjeto de representaccedilatildeordquo

Infelizmente Proschan natildeo oferece um recurso organizacional e assim o boneco pode ser

tanto central quanto extremo dependo da circunstacircncia retoacuterica Seraacute preferiacutevel analisa alguns

dos objetos de performance mencionados pro Proschan de modo a nos ajudar a entender a

organizaccedilatildeo da categoria e o lugar ocupado pelo boneco dentro ou fora dela

Dois tipo de objetos de representaccedilatildeo mencionados por Proschan situam-se fora do

contexto do teatro ldquoimagens [carregadas por devotos] numa procissatildeo religiosardquo e ldquobonecas

de brincadeiras infantisrdquo Natildeo seraacute talvez coincidecircncia que como pudemos ver o boneco

tenha sido explicado como tendo evoluiacutedo e adquirido o seu carisma da figura religiosa e do

brinquedo de crianccedila Ambos satildeo no sentido mais amplo objetos feitos para representar Mas

nenhum deles eacute usado com finalidades ldquonarrativas ou dramaacuteticasrdquo ou para dizer de outra

forma nenhum deles se relaciona com a representaccedilatildeo teatral em si Assim sendo talvez

Proschan natildeo devesse incluiacute-los e assim natildeo os discutirem aqui

Em meio ao contexto do teatro estatildeo os exemplos de Proschan dos ldquopaineacuteis e imagens

acompanhados por narrativasrdquo que poderiam incluir os ldquocontadores de histoacuterias que traccedilam

imagens na areia ou na neverdquo assim como os ldquodanccedilarinos mascaradosrdquo e ldquoadereccedilos de

296

apresentaccedilotildees teatraisrdquo Esses trecircs tipos de atividade podem ser identificados como

envolvendo respectivamente objetos de narraccedilatildeo objetos de mascaramentofantasia e

objetos de encenaccedilatildeo

Jaacute tratamos de objetos de narraccedilatildeo em nossa discussatildeo sobre o exemplo de Jurkowki

do teatro de bonecos de Mestre Pedro Esses objetos sejam eles paineacuteis ilustrados ou imagens

traccediladas na areia ou na neve se parecem no sentido de que ainda que lhes possa ser atribuiacuteda

fala natildeo se lhes pode conferir movimento A sua ldquoanimaccedilatildeordquo para empregar o termos

inadequado de Proschan eacute tatildeo limitada que pode-se mesmo duvidar se isto seria de fato

animaccedilatildeo satildeo nada mais ou nada menos que ilustraccedilotildees pictoacutericas do tipo comumente

encontrado em livros infantis

Tambeacutem jaacute tratamos de objetos de mascaramentofantasia em nossa discussatildeo sobre

se um ator vestindo uma maacutescara ou figurino poderia ser considerado um boneco Devemos

adicionar agora que enquanto objetos de mascaramentofantasia podem possuir movimento

eles natildeo tem e natildeo podem ter uma fala atribuiacuteda pois que qualquer fala associada a eles seraacute

simplesmente a fala do ator ou bailarino que o use Mais uma vez sua animaccedilatildeo eacute tatildeo limitada

que pode-se indagar se esta de fato existe jaacute que o movimento dado a ele seraacute natildeo mais que o

movimento da apresentaccedilatildeo do ator ou bailarino que o vista estando relacionado com o ator e

natildeo com o objeto

Objetos de encenaccedilatildeo ainda natildeo foram abordados Proschan oferece pouco comentaacuterio

acerca deles e nenhum exemplo de fato Veltruskyacute entretanto fornece uma discussatildeo

extensa e nos informa que estes incluem adereccedilos e cenaacuterios e podem ldquoestar presentes como

objetos reais ou como signos como ocorre com espadas de madeira colunas de cartatildeo aacutervores

pintadas etcrdquo (1983 85) De acordo com Veltruskyacute objetos de encenaccedilatildeo satildeo

Animados pela atuaccedilatildeo quando as personagens representam tratando-os

como se fossem seres vivos ou quando estes ocultam personagens vivos

No Tartufo de Moliegravere III7 apoacutes uma breve cena com Tartufo Orgonte

corre ateacute a porta pela qual expulsou seu filho ao final da cena anterior e

encaminha agrave porta uma fala raivosa que seria dirigida ao filho No Ato

IV2 Elmira e Orgonte movem uma mesa ateacute um determinado lugar e o

homem se esconde sob a mesma para ouvir a conversa entre Elmira e

Tartufo da cena seguinte durante essa conversa a atriz repetidamente dirige

a atenccedilatildeo do espectador para a mesa e para a personagem escondida sob ela

fazendo sons a ele encaminhados (1983 86)

Isto envolve uma concepccedilatildeo ampla de animaccedilatildeo de fato e compreende muito fracamente a

concepccedilatildeo de Proschan de ldquoobjetos de representaccedilatildeordquo que estipula que tais objetos seriam

ldquoimagens materiais de seres humanos animais ou espiacuteritosrdquo Pode-se considerar a porta e a

mesa de Moliegravere como imagens materiais dos espiacuteritos de portas e mesas mas novamente

297

entatildeo natildeo algueacutem pode escolher ainda pensar que a porta e a mesa natildeo foram de forma

alguma animadas e natildeo passam dos adereccedilos ou objetos que parecem ser O proacuteprio

Veltruskyacute demonstra consciecircncia dessa segunda escolha e alerta que ldquouma concepccedilatildeo

ampliada de personificaccedilatildeo pode borrar as distinccedilotildees entre bonecos por um lado e por outro

como objetos percebidos sobre a cena como agentesrdquo (1983 88) O objeto de encenaccedilatildeo natildeo

tem a ele atribuiacutedos nem movimento nem fala ainda que ele possa ser movido ou ter falas a

ele endereccediladas ele natildeo pode e a ele natildeo pode ser atribuiacuteda a pretensatildeo de mover-se ou falar

por si mesmo e seraacute animado apenas por meio da accedilatildeo que ocorre ao seu redor

Portanto parece que objetos de encenaccedilatildeo se encontram em um dos extremos do arco

de atividades daquilo que pode ser considerado objeto de representaccedilatildeo um extremo marcado

por um senso de animaccedilatildeo quase inexistente e altamente atenuado Objetos de narraccedilatildeo

parecem se situar proacuteximos ao centro sendo objetos de representaccedilatildeo para os quais a

animaccedilatildeo eacute de alguma forma existente por meio de uma imputaccedilatildeo ocasional de fala mas

ainda um tanto tecircnue Objetos de mascaramentofantasia parecem estar no outro extremo do

arco um extremo marcado por um senso mais substancial de animaccedilatildeo vindo do movimento

que lhe eacute atribuiacutedo

Na extensatildeo desse arco de atividades dos objetos de representaccedilatildeo entretanto o

proacuteprio objeto eacute visto pela plateia como sendo um objeto e apesar dos seus niacuteveis relativos

de animaccedilatildeo eacute imaginado pela plateia como sendo nada aleacutem de um objeto Isto deve estar

claro mesmo em se tratando de objetos de mascaramentofantasia uma maacutescara ou figurino

natildeo eacute nada aleacutem de um objeto vestido por um ser vivo seja este um ator ou um bailarino natildeo

se imagina vida que seja inerente agrave maacutescara ou ao figurino em si mas ao ser vivo que os

veste

Aleacutem do limite extremo desse arco de objetos de representaccedilatildeo provocando visatildeo-

dupla na mente dos espectadores vem o boneco tal como o objeto de representaccedilatildeo ele eacute

visto como sendo um objeto mas diferentemente do objeto de representaccedilatildeo imagina-se que

este possui vida Nesse sentido ele difere de modo essencial Um caso em questatildeo seria o

exemplo de Jurkowski da produccedilatildeo polonesa de Don Quixote A efiacutegie do cavaleiro

desafortunado que eacute espancada por um dos atores eacute um objeto de representaccedilatildeo de encenaccedilatildeo

visto e entendido como sendo nada aleacutem de um objeto mas tendo uma tecircnue animaccedilatildeo

conferida pela accedilatildeo que o cerca Se este fosse de fato animado ou mais precisamente se a ele

fossem atribuiacutedos movimentos e fala de modo a que a plateia imaginasse que possuiacutea uma

vida proacutepria apenas entatildeo ele seria um boneco O boneco eacute claramente um objeto de

298

representaccedilatildeo como Proschan os define mas o conceito de visatildeo-dupla nos permite

reconhecer que a definiccedilatildeo pode apenas incluir o boneco em seu sentido mais amplo

Com o boneco situado dentro do arco de objetos de representaccedilatildeo ele tambeacutem se situa

naquilo que podemos considerar o arco de atividades relativas ao ator Como pudemos ver

McPharlin sugere que o boneco eacute visto pela plateia da mesma maneira como o ator eacute visto

ldquoQuando tornam-se vivos em seus teatros o apelo irresistiacutevel eacute aquele do teatro somenterdquo

(1938 1) Batchelder declara diretamente que ldquoo boneco eacute um ator participando de algum tipo

de apresentaccedilatildeo teatralrdquo (1947 xv) Mas enquanto que a posiccedilatildeo do boneco no arco de

atividades dos objetos de representaccedilatildeo solicitou certa discussatildeo antes de ser identificada

como algo aleacutem desse espectro a identificaccedilatildeo de seu posicionamento em meio ao arco das

atividades de atuaccedilatildeo natildeo parece estar tatildeo em duacutevida Mesmo McPharlin e Batchelder

concordariam que o boneco difere de alguma forma do ator vivo

O ator tem sido o objeto de vastos estudos muitos deles controvertidos o volume de

teoria referente agrave atuaccedilatildeo mais que compensa a escassez do que se refere ao objeto de

representaccedilatildeo Seraacute impossiacutevel oferecer aqui algo aleacutem da mais breve discussatildeo acerca da

atuaccedilatildeo que deve apoiar-se na maior parte tanto no conhecimento do leitor acerca dessa

teoria quanto em sua falta de interesse nesse tema

Tendo feito essa ressalva devemos notar como fizemos com os objetos de

representaccedilatildeo trecircs pontos ao longo do espectro da teacutecnica de atuaccedilatildeo num extremo atuaccedilatildeo

naturaliacutestica rumo ao centro atuaccedilatildeo distanciada e no outro extremo atuaccedilatildeo com maacutescaras

ou fantasias Esses termos seratildeo esclarecidos com algumas descriccedilotildees dos exemplos

Em atuaccedilatildeo naturaliacutestica a proacutepria personalidade do ator e seu status como tal

encontram-se submersos sob a personagem que ele ou ela representa o ator ao maior grau

possiacutevel deseja ser reconhecido pela plateia apenas como aquela personagem O semioacutelogo

Karl Elam se refere a tal atuaccedilatildeo como ldquoilusionistardquo contendo ldquoprinciacutepios mimeacuteticos que

lsquoautenticamrsquo a representaccedilatildeordquo (1980 59) Tal tipo de atuaccedilatildeo eacute frequentemente associada ao

diretor russo Constantin Stanislavski e tem sido o estilo dominante de atuaccedilatildeo ao longo do

seacuteculo XX Ele se apoacuteia unicamente na convenccedilatildeo surpreendentemente abrangente de que a

plateia simplesmente reconheceraacute o que vecirc sobre o palco como sendo a mais crua realidade

Na atuaccedilatildeo distanciada a personalidade do ator e seu status como tal natildeo submergem

completamente num grau maior ou menor o ator natildeo deseja ser reconhecido apenas como a

personagem que representa mas tambeacutem como indiviacuteduo eou como ator Elam descreve as

ldquoconvenccedilotildees do encaminhamento direto de falardquo e a ldquoreferecircncia meta teatralrdquo nesse tipo de

atuaccedilatildeo na qual a ldquoquebra da ilusatildeo mimeacuteticardquo eacute uma ocorrecircncia mais ou menos frequente

299

(1980 59) Bertolt Brecht eacute talvez o expoente mais familiar de tal atuaccedilatildeo e seu famoso

Efeito V identificado em inglecircs tanto como alienaccedilatildeo ou estranhamento107

eacute central para a

questatildeo evitando que plateia se aproxime em demasia de uma identificaccedilatildeo com a

personagem dramaacutetica De fato atuaccedilatildeo distanciada possui uma histoacuteria longa e variada

James Brandon nos informa que no Japatildeo ldquofaz parte do lsquojogorsquo do Kabuki para o espectador

ver o ator-como-ator assim como a personagem no dramardquo (Brandon 1975 42) A base da

atuaccedilatildeo distanciada onde quer que esta ocorra se encontra na convenccedilatildeo teatral de

ldquorealidaderdquo sendo intencionalmente adicionada a outras convenccedilotildees que a enfraquecem

Na atuaccedilatildeo com maacutescaras e fantasias o ator natildeo busca se passar por uma personagem

dramaacutetica naturaliacutestica nem deseja ser reconhecido como uma pessoa ou como um ator

representando um papel Antes como escreve Malkin ldquoalgo se interpotildee entre [o ator] e a

plateia [que] faz parte de misteacuterio ritual siacutembolo e do intelectordquo (1975 7) Embora o ator

seja certamente vivo a apresentaccedilatildeo eacute transformada pelo objeto maacutescarafantasia que ele ou

ela veste Podemos novamente usar o exemplo mundano de Mickey Mouse saracoteando pela

Disneylacircndia natildeo haacute duacutevida de que estamos na presenccedila de um ator de um tipo extremo que

ainda que natildeo participe exatamente de misteacuterio ritual e assim por diante ainda assim

representa uma mediaccedilatildeo transformadora de maacutescara e fantasia

Por todo esse arco de teacutecnicas de atuaccedilatildeo apesar das convenccedilotildees metateatrais e das

interposiccedilotildees feitas pelas maacutescaras e fantasias o ator natildeo eacute percebido pela plateia como algo

que natildeo seja vivo o ator tambeacutem eacute imaginado como estando vivo mesmo que essa vida

imaginaacuteria natildeo seja geralmente a do ator mas da personagem que representa Isto deve estar

claro mesmo com a representaccedilatildeo com maacutescaras e fantasias o ator com a maacutescara ou com a

fantasia eacute entendido e imaginado como estando vivo enquanto que a maacutescara ou fantasia eacute

obviamente um objeto sob o seu controle direto A natureza de objeto da maacutescarafantasia natildeo

eacute entendida como inerente ao ser vivo que a veste mas agrave maacutescarafantasia em si

Para aleacutem do limite da abrangecircncia do ator vivo provocando visatildeo-dupla na mente de

sua plateia surge o boneco como o ator imagina-se que este esteja vivo mas diferentemente

do ator ele eacute entendido como um objeto Nesse sentido o boneco difere essencialmente do

ator

O boneco e o ator tecircm os mesmos trecircs sistemas de signos a sua disposiccedilatildeo e isso pode

fazer parecer que a plateia os reconheceria de modo semelhante Bogatyrev aponta entretanto

que ldquoapesar do fato de o ator expressar dignidade real por meio de seu figurino sinalizar sua

107

Os termos mais usados em portuguecircs para caracterizar o efeito V brechtiano satildeo distanciamento e estranhamento

300

idade por seu modo de caminhar indicar que representa um estrangeiro por seu modo de falar

e assim por diante ainda o veremos natildeo apenas como um sistema de signos mas como uma

pessoa vivardquo (1976 [1938] 48) Sob os signos apresentados pelo ator a audiecircncia natildeo

consegue deixar de ver uma pessoa viva Veltruskyacute escreve

O corpo do ator entre na situaccedilatildeo dramaacutetica com todas as suas

propriedades Um ser humano vivo natildeo pode compreensivelmente alijar-se

de algumas delas e manter em si apenas aquelas necessaacuterias agrave situaccedilatildeo dada

Isso eacute o que faz com que a figura do ator seja mais complexa e rica e

estamos tentados a dizer mais concreta se comparados a outros suportes de

signos (1964 [1940] 84-85)

O ser vivo que eacute o ator complica a artificialidade dos signos que apresenta por meio da

personagem com a apresentaccedilatildeo simultacircnea dos signos de vida real Mas o boneco natildeo possui

vida de fato Dispa o boneco e o ator de seus signos teatrais e ainda se teraacute por um lado uma

pessoa viva ao passo que o boneco teraacute deixado de existir Alexandre Bakshy um escritor

norte americano do iniacutecio do seacuteculo XX expressa essa diferenccedila com um aforismo

satisfatoacuterio ldquoNatildeo podemos jamais aplicar os mesmos padrotildees ao ser humano e ao boneco

O boneco natildeo pode nunca viver a menos que represente O homem natildeo pode jamais

representar a menos que vivardquo (citado em Batchelder 1947 287)

A distinccedilatildeo entre o ator e o boneco entre a pessoa entendida como estando viva e o

boneco entendido como um objeto possui ramificaccedilotildees teatrais significativas Obraztsov

escreve que ldquoo boneco natildeo eacute um homem eacute a alegoria de um homem Como todas as alegorias

ele possui o poder de generalizar a realidaderdquo (1967 [1965] 20) Maeterlink considera

grandemente essa mesma questatildeo agrave sua proacutepria maneira ldquoUm homem pode falar apenas por

seu proacuteprio nome natildeo possui o direito de falar em nome de todo o mundo dos mortosrdquo

(citado em Jurkowski 1988 [1979] 12-13) O boneco entretanto possui esse direito pelo fato

de natildeo estar assoberbado por sua proacutepria vida real Ele pode falar em nome de qualquer

homem ou qualquer grupo de homens Como eacute sugerido por Kleist ldquoa graccedila aparece em sua

feiccedilatildeo mais pura naquela forma humana que ou natildeo possui qualquer consciecircncia ou possui

uma consciecircncia infinita ou seja no boneco ou no deusrdquo (1978 [1810] 1212) Pelo fato de

que a uacutenica consciecircncia que o boneco pode ter eacute aquela a ele investida por uma audiecircncia

anocircnima e potencialmente infinita pode-se imaginar que este suporte a consciecircncia de um

mundo anocircnimo e infinito

As relaccedilotildees entre o boneco e o objeto de representaccedilatildeo e entre o boneco e o ator

podem ser claramente definidas o boneco se encontra logo aleacutem das extremidades dos

alcances tanto do objeto de representaccedilatildeo quanto da atuaccedilatildeo Embora se possa entender que o

301

boneco se encontre no interior de tais alcances de acordo com as definiccedilotildees oferecidas o

conceito de visatildeo-dupla o esclarece como sendo um fenocircmeno distinto agrave sua proacutepria feiccedilatildeo

Mas aproximado do boneco em cada um dos mencionados alcances estatildeo o objeto de

representaccedilatildeo e mascaramento ou fantasia por um lado e o ator que veste uma maacutescara ou

fantasia pelo outro Anteriormente discutimos sobre a tentativa de pessoas ligadas ao teatro de

boneco em anexar a maacutescara devido agraves suas relaccedilotildees de proximidade entre boneco e maacutescara

isto natildeo seria surpreendente Tambeacutem natildeo seria surpreendente se estudiosos e praticantes no

campo da maacutescara tentassem anexar o boneco Como pudemos ver entretanto o boneco

difere essencialmente do objeto de representaccedilatildeo de mascaramentofantasia e do ator que

veste uma maacutescara ou fantasia e o entendimento do boneco requer que este se considere

como um fenocircmeno distinto se mesmo relacionado

Seria talvez uacutetil apresentar esquematicamente as relaccedilotildees aqui discutidas

Objetos de representaccedilatildeo Bonecos Atores

Encenaccedilatildeo

Narraccedilatildeo

Mascaramentofantasia

Bonecos

Maacutescarafantasia

Distanciada

Naturaliacutestica

Percepccedilatildeo Objeto Percepccedilatildeo Objeto Percepccedilatildeo Vida

Imaginaccedilatildeo Objeto Imaginaccedilatildeo Vida Imaginaccedilatildeo Vida

Julie Taymor uma artista do teatro norte americano contemporacircneo que mistura

brilhantemente cada um dos meios discutidos acima mais especialmente em sua produccedilatildeo

Juan Darien justifica seus usos explicando que ldquoa alteraccedilatildeo de escala a fusatildeo de meios ndash

atores vivos junto com atores com maacutescaras junto com bonecos ndash nos ajuda a mover-nos por

diferentes niacuteveis de realidaderdquo (1983 114)

O sabor de Juan Darien eacute capturado por Stephen Kaplin um estudioso e artista de

teatro de bonecos norte americano que ajudou a montar e apresentou na referida produccedilatildeo

Em uma cena poderosa Juan um jovem rapaz que havia sido um filhote de

tigre oacuterfatildeo e que foi salvo da arma de um caccedilador pela piedade de uma matildee

presencia a morte de sua matildee adotiva Ao inicio da cena Juan eacute representado

por um boneco no estilo bunraku mas no momento da morte de sua matildee o

boneco Juan eacute substituiacutedo por um menino ator A matildee moribunda

representada por uma atriz em uma maacutescara senta-se em sua cama e busca

alcanccedilar o menino Ele toca em seu rosto mascarado Ela cai para traacutes morta

deixando a maacutescara vazia nas matildeos do menino Apoacutes um dueto pesaroso do

Latin Requiem Juan escala ateacute o topo de [uma] cidade em miniatura e

enterra a maacutescara da matildee junto a [uma] igreja do tamanho de um brinquedo

(1989 48)

302

Existe uma poesia eficiente na mobilidade entre ldquodiferentes niacuteveis de realidaderdquo nessa cena

Kaplin nota que ldquoa anguacutestia do menino diante da morte do uacutenico ser humano que lhe devotou

amor o humaniza Essa transformaccedilatildeo interna eacute indicada metaforicamente em se transferindo

o papel de Juan do boneco para o humanordquo (1989 48-49) Igualmente significativo eacute o

momento da morte da matildee relacionado agrave retirada da maacutescara o siacutembolo de sua persona

A mistura de meios natildeo apenas permite a Taymor lidar com um conto de realismo

fantaacutestico ao estilo da recente literatura latino americana mas tambeacutem a permite produzir

efeitos teatrais eloquentes versando sobre a natureza da humanidade Por meio do emprego de

ldquoalteraccedilatildeo de escalardquo entre objetos de representaccedilatildeo atores e bonecos ela permite que cada

meio desafie e enriqueccedila os outros e compele a plateia a confrontar ideias conflitantes sobre o

que seria ldquoobjetordquo e o que seria ldquovidardquo Distinguir o boneco do objeto de representaccedilatildeo e do

ator a partir do suporte da visatildeo-dupla provoca natildeo apenas o isolamento do boneco em relaccedilatildeo

aos demais mas mais que isso explica os relacionamentos entre os trecircs meios e esclarece os

modos pelos quais podem interagir

303

- II -

DESCREVENDO O BONECO

4

DESCRICcedilOtildeES CONSAGRADAS

Quando as pessoas falam em bonecos ainda que consigam ou natildeo articular

precisamente o que eacute um boneco e ainda que estejam ou natildeo interessadas em explicar a

natureza do encanto do boneco elas empregam certas palavras para descrever como um

boneco ou espetaacuteculo com bonecos eacute similar ou diferente de outros afinal cada obra de arte

existe dentro do contexto geral de sua arte e uma apreciaccedilatildeo significativa de uma obre requer

algum entendimento de sua relaccedilatildeo com tal contexto Mas quais satildeo os termos usados para

criar distinccedilotildees entre trabalhos em teatro de bonecos e como tais distinccedilotildees modelam as

discussotildees acerca do teatro de bonecos A base descritiva eacute um vocabulaacuterio que pode ser

usado para comparaccedilatildeo e contraste Infelizmente o vocabulaacuterio descritivo para o boneco eacute

limitado e confuso

O meacutetodo mais simples de descriccedilatildeo envolve pouco mais que um afloramento de

adjetivos aplicado para bonecos ou espetaacuteculos especiacuteficos este boneco eacute pequeno aquele eacute

grande esta peccedila eacute colorida aquela eacute teatralmente complexa Exemplos dessa metodologia

satildeo uma legiatildeo Eis uma da artista russa Nina Efimova oferecida com a advertecircncia de que

suas contribuiccedilotildees natildeo satildeo essencialmente acadecircmicas ldquoA menina cigana move-se

majestosamente Sua face radiante eacute branca absolutamente descolorada Os cabelos satildeo feitos

de cordas desfiadas imersas em tinta preta e enrolado em forma de aneacuteis O vestido suave eacute

de uma tintura resplandecente amarelo canaacuterio e de musselina lilaacutesrdquo (1935 149)

A descriccedilatildeo conteacutem informaccedilotildees detalhadas e uacuteteis para a re-criaccedilatildeo do leitor de um

boneco em particular eacute entretanto limitado para comparaccedilatildeo e contraste desse boneco com

outros a menos eacute claro se o efeito da corda desfiada em oposiccedilatildeo a uma corda que natildeo

tenha sido desfiada esteja em questatildeo Tal meacutetodo de descriccedilatildeo eacute limitado ainda que forneccedila

bastante informaccedilatildeo pelo fato de que seu vocabulaacuterio natildeo eacute adequado para comparaccedilatildeo e

contraste Natildeo diz respeito agravequilo que eacute considerado sistema descritivo ou seja com

descriccedilotildees taxonocircmicas que permitam comparaccedilotildees e contrastes entre bonecos Uma vez que

304

tais sistemas tais taxonomias pareccedilam oferecer as melhores chances de desenvolvimento de

tal vocabulaacuterio

Taxonomia eacute uma ciecircncia mal compreendida Segundo Stephen Jay Gould professor

de biologia e geologia da Universidade de Harvard explica no livro Wonderful Life (Vida

Maravilhosa)

Taxonomia (a ciecircncia da classificaccedilatildeo) eacute constantemente subvalorizada como uma

forma gloriosa de arquivamento ndash com cada espeacutecie em sua pasta como um selo

em seu espaccedilo determinado no aacutelbum mas a taxonomia eacute uma ciecircncia

fundamental e dinacircmica dedicada a explorar as causas dos relacionamentos e

similaridades entre os organismos Classificaccedilotildees satildeo teorias sobre as bases da

ordem natural e natildeo categorias arbitraacuterias dispostas apenas para evitar o caos

(1989 98)

Eacute claro que o nosso estudo natildeo diz respeito agrave ordem natural dos organismos como o

de Gould quando discute a taxonomia da fauna preacute cambriana Natildeo obstante os princiacutepios da

ldquociecircncia da classificaccedilatildeordquo satildeo significantes para o estudo do teatro de bonecos assim como

para o estudo de todas as artes uma vez que o problema de descrever ldquorelaccedilotildees e

similaridadesrdquo solicitam agrave teoria taxonocircmica E assim como Gould sugere em seu livro

taxonomias e as teorias nelas embutidas delineiam poderosamente a maneira como as

pessoas compreendem e discutem seus temas

O simples meacutetodo de descriccedilatildeo retirado de Efimova parece basear-se na teoria de que

cada boneco eacute uacutenico Isto eacute certamente verdadeiro mas apenas num sentido literal Apesar de

tal exclusividade cada boneco eacute de determinadas maneiras parecido e diferente de outros

bonecos e compreenderemos melhor acerca do valor uacutenico de cada boneco se pudermos

entender seu lugar no mundo dos bonecos em geral

O teatro de bonecos como pudemos perceber anteriormente e cada autor dedicado ao

teatro de bonecos eacute forccedilado a notar possui raiacutezes tradicionais em muitas culturas Talvez isto

seja o porquecirc de um dentre os dois meacutetodos de taxonomias predominantes fazer uso da

variedade de tradiccedilotildees de bonecos como seu princiacutepio de organizaccedilatildeo Este meacutetodo eacute

diacrocircnico em abordagem e pode ser chamado de meacutetodo histoacuterico-geograacutefico

O livro bastante difundido de Bill Baird The Art of the Puppet (A arte do boneco)

emprega esse meacutetodo Este natildeo eacute apenas um dos livros mais vendidos sobre teatro de bonecos

jamais publicado mas eacute tambeacutem um apanhado perpicaz e delicioso acerca do fenocircmeno do

boneco Um exame do sumaacuterio do livro deixa claro os princiacutepios baacutesicos do meacutetodo histoacuterico-

geograacutefico O capiacutetulo 3 ldquoHeranccedila orientalrdquo lida com as tradiccedilotildees de bonecos da Iacutendia e da

Indoneacutesia o capiacutetulo 4 ldquoAnjos democircnios amp Todomundordquo trata das do norte e do leste da

Europa o capiacutetulo 5 ldquoKaraghioz um deleite turcordquo com as do sudoeste europeu Os trecircs

305

capiacutetulos seguintes tratam das tradiccedilotildees de respectivamente Inglaterra Itaacutelia e ldquoO Orienterdquo

sendo a China e o Japatildeo os trecircs capiacutetulos finais relata a histoacuteria do teatro de bonecos

ocidental em respectivamente o fim do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX o final do

seacuteculo XIX e os idos do seacuteculo XX (1965 5)

The Art of the Puppet demonstra o valor organizacional do meacutetodo historico-

geograacutefico especialmente para o trabalho popular Tal valor entretanto natildeo se encontra na

taxonomia apresentada uma vez que o meacutetodo possui dois problemas significantes um

praacutetico outro teoacuterico

O problema praacutetico eacute que o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico se parte sobre um exame

detido sobre a histoacuteria e a geografia envolvidas Os periacuteodos histoacutericos que Baird apresenta

satildeo pouco mais que construccedilotildees artificiais De fato ele apenas demonstra interesse nas

alteraccedilotildees histoacutericas quando discute a Europa Ocidental encontra-se geralmente em silecircncio

acerca das mudanccedilas verificadas com o tempo para as culturas orientais provavelmente sob a

suposiccedilatildeo de que leitores ocidentais natildeo estariam interessados em tais questotildees ou

provavelmente sob a suposiccedilatildeo de que o oriente eacute atemporal Mas mesmo em suas discussotildees

sobre as tradiccedilotildees ocidentais seu senso histoacuterico parece um tanto arbitraacuterio

Para usar um exemplo o capiacutetulo de Baird sobre o seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX se

intitula ldquoO impacto do Gecircniordquo e discute o papel sobre o teatro de bonecos desempenhado por

luminares tais como Gluck Gozzi Seraphin Sand e Bizet Mas a proximidade temporal entre

essas pessoas natildeo sugerem de modo algum qualquer unidade de pensamento em direccedilatildeo ao

boneco existente entre eles ou durante esse periacuteodo enquanto que movimentos culturais mais

amplos poderiam estar em curso Baird se envolve em nada aleacutem de uma forma glorificada de

arremessar nomes para levar adiante o argumento de que finalmente o teatro de bonecos

estava sendo levado a seacuterio Mas como Baird bem sabe essas pessoas natildeo formaram qualquer

escola especiacutefica de pensamento acerca do boneco e tiveram pouco impacto sobre o curso do

teatro de bonecos europeu De fato mesmo individualmente o envolvimento dessas figuras

com o teatro de bonecos tendeu a ser incidental e superficial O verdadeiro envolvimento de

George Sand com o teatro de bonecos era limitado a costurar as roupas dos bonecos de seus

filhos e compor algumas descriccedilotildees de suas tentativas teatrais Sobre Sand Edward Gordon

Craig escreve que ldquoa dignidade ou a profundidade dos bonecos estatildeo perdidos nelardquo (citado

em McPharlin 1938 14) McPharlin Comenta na mesma linha que faltava a Sand qualquer

ldquopercepccedilatildeo para a esteacutetica do bonecordquo (1938 14) E dentre todos os famosos personagens

citados por Baird Sand era talvez a mais relacionada com o teatro de bonecos

306

As aacutereas geograacuteficas que Baird apresenta satildeo ainda mais problemaacuteticas tanto pelo que

incluem pelo que excluem Novamente um exemplo a junccedilatildeo que Baird faz das muitas

tradiccedilotildees dos teatros de bonecos indianos eacute para se dizer o miacutenimo ousada quando ele

amontoa junto a essas tradiccedilotildees as diversas tradiccedilotildees de bonecos da Indoneacutesia ele se torna

temeraacuterio A sua discussatildeo dessas tradiccedilotildees em conjunto eacute feita devido ao fato de estarem

num sentido amplo geograficamente proacuteximas e porque muitas delas foram influenciadas

pela literatura hindu mas como o proacuteprio Baird sugere as relaccedilotildees entre as diversas tradiccedilotildees

indianas satildeo um tanto nebulosas (1965 46-60) Aleacutem disso as relaccedilotildees entre qualquer das

tradiccedilotildees indianas com as inuacutemeras tradiccedilotildees da Indoneacutesia eacute um assunto de substancial

controveacutersia Como nos diz Brandon ldquoa teoria acerca da origem indiana do Wayang [ou seja

de bonecos javaneses] tem sido amplamente debatida com resultados inconclusivosrdquo (1970

3)

E entatildeo haacute a questatildeo do que deve ser excluiacutedo Novamente um singelo exemplo entre

os limites geograacuteficos do capiacutetulo de Baird sobre ldquoHeranccedila Orientalrdquo (India e Indoneacutesia) e

ldquoTradiccedilatildeo Orientalrdquo (China e Japatildeo) estatildeo localizadas tradiccedilotildees fascinantes de teatros de

bonecos que natildeo podem ser incorporadas a nenhum dos capiacutetulos pelo fato de serem

simplesmente muito diferentes A tradiccedilatildeo thai do Nang yai usa sombras de mais de dois

metros de altura por um de largura geralmente manipuladas em frente agrave tela a tradiccedilatildeo

birmanesa do Yoke thay emprega marionetes controladas por ateacute sessenta fios contando

histoacuterias baseadas na sabedoria budista e histoacuteria da Birmacircnia (NT O paiacutes eacute hoje conhecido

como Mianmar) a tradiccedilatildeo vietnamita dos bonecos aquaacuteticos emprega figuras operadas por

longas varas de bambu e mecanismos extravagantes de fios que se apresentam num palco

elevado em meio a fogos de artifiacutecio espoucantes no meio de um lago (Malkin 1977 120-

33)

As aacutereas geograacuteficas agraves quais Baird se refere como Leste ou Oriente exemplificam os

problemas praacuteticos do meacutetodo histoacuterico-geograacutefico a separaccedilatildeo de cada uma inclui tradiccedilotildees

que satildeo relativamente independentes enquanto que postas juntas excluem tradiccedilotildees que satildeo

significativas agraves suas maneiras

Natildeo parece haver nenhuma soluccedilatildeo imediata para esse problema praacutetico de histoacuteria e

geografia Enquanto que as supersimplificaccedilotildees de Baird satildeo mal sucedidas uma classificaccedilatildeo

completa para os bonecos com base na histoacuteria e na geografia natildeo parece ser algo ainda

possiacutevel devido em parte a uma certa carecircncia de textos que relatem em detalhes certa

quantidade de tradiccedilotildees de bonecos A bibliografia de Baird conteacutem pouco mais que um

punhado de trabalhos dedicados a bonecos natildeo ocidentais (1965 249) o informativo de

307

Malkin Traditional and Folk Puppets of the World (Bonecos tradicionais e populares do

mundo) oferece apenas uma duacutezia pouco mais de fontes natildeo ocidentais adicionais (1977

187-91) O problema natildeo se deve tanto agraves pesquisas de Baird e de Malkin que compilaram

tanta informaccedilatildeo quanto puderam das fontes publicadas acessiacuteveis e mais exatamente agrave

pobreza de tais fontes Ateacute que estudos adicionais sejam conduzidos o meacutetodo histoacuterico-

geograacutefico eacute forccedilado por necessidade a recorrer a limites histoacutericos e geograacuteficos artificiais

O problema teoacuterico com o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico eacute que se toda manifestaccedilatildeo de

teatro de bonecos deve ser visto primordialmente dentro do contexto de suas tradiccedilotildees

histoacutericas e geograacuteficas entatildeo os proacuteprios bonecos natildeo poderatildeo ser facilmente considerados agrave

parte desses contextos tradicionais Ou para dizer de outra maneira o meacutetodo histoacuterico-

geograacutefico concede pouca permissatildeo para comparaccedilotildees entre bonecos de tradiccedilotildees diferentes

Mais uma vez usando um exemplo a tradiccedilatildeo do Karaghioz fundada na Greacutecia e derivada de

uma apresentaccedilatildeo turca faz uso do que eacute geralmente conhecido como teatro de sombras

assim como uma tradiccedilatildeo particular na China e tambeacutem haacute teatros de sombra

contemporacircneos na Europa e na Ameacuterica De que maneiras esses diversos teatros de sombras

se parecem e em que maneiras diferem O meacutetodo histoacuterico-geograacutefico obscurece as

similaridades oacutebvias trazendo a atenccedilatildeo para as diferenccedilas oacutebvias de histoacuteria e geografia Mas

uma anaacutelise de tais similaridades natildeo poderia levar luz natildeo apenas para o estudo do teatro de

sombras em geral mas para as escolhas ocultas e para as implicaccedilotildees dessas tradiccedilotildees

mesmas

De fato Baird oferece uma breve comparaccedilatildeo de algumas dessas tradiccedilotildees de teatro de

sombras notando que a forma como o bastatildeo de controle se conecta ao objeto que produz a

sombra difere entre tradiccedilotildees permitindo dessa forma diferentes movimentos para os bonecos

(1965 79) Essa eacute entretanto uma das raras ilustraccedilotildees de tais comparaccedilotildees presentes no

livro Eacute revelador que essa mesma comparaccedilatildeo apoacuteie-se sobre o meacutetodo taxonocircmico que

discutiremos em breve uma vez que ao meacutetodo histoacuterico-geograacutefico falte o vocabulaacuterio para

comparar e contrastar

Deve parecer injusto o uso de tal criticidade sobre uma obra popular como a de Baird

Deve ser dito no entanto que trabalhos populares satildeo praticamente os uacutenicos trabalhos sobre

teatro de bonecos disponiacuteveis em liacutengua inglesa e que tais trabalhos representam a discussatildeo

que os precederam e moldam as discussotildees que os seguem Por tais razotildees tal criticismo

parece ser natildeo apenas justo como necessaacuterio Os dois problemas baacutesicos identificados no

livro de Baird podem ser percebidos em qualquer estudo geral que empregou o meacutetodo

histoacuterico-geograacutefico

308

Deve ser reiterado no entanto que o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico tem amplo valor

sempre que os autores manteacutem seu foco numa determinada aacuterea histoacuterico-geograacutefica

Trabalhos como On Thrones of Gold Three Javanese Shadow Plays (Em tronos de ouro trecircs

peccedilas javanesas de sombras) Speaightacutes History of the English Puppet Theatre (A histoacuteria de

[George] Speaight do teatro de bonecos inglecircs) de Brandon Backstage at Bunraku (Os

bastidores do Bunraku) de Adachi Chinaacutes Puppets (Bonecos da China) de Stalberg e The

Karagiozis Heroic Performance in Greek Shadow Theatre (A apresentaccedilatildeo heroacuteica dos

Karagiozis no teatro de sombras grego) de Linda Myrsiade satildeo guias valiosos para as

tradiccedilotildees que examinam Quando uma lista de obras aleacutem dessas tratando de outras tradiccedilotildees

puder ser citada o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico poderaacute finalmente fornecer bases de acordo

com um vocabulaacuterio adequado para uma esteacutetica do boneco completa e diacrocircnica

Este estudo tem usado com regularidade termos descritivos que tecircm as suas bases em

outro meacutetodo taxonocircmico um que atualmente domina as discussotildees em liacutengua inglesa a

respeito do teatro de bonecos de fato os termos satildeo empregados regularmente mesmo em

textos histoacuterico-geograacuteficos tal como o trabalho de Baird O meacutetodo do qual esses termos

derivam tem moldado as discussotildees acerca do boneco tatildeo profundamente que trataacute-lo como

um meacutetodo entre outros pode parecer surpreendente Esse meacutetodo que geralmente mas natildeo

exclusivamente perfaz uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica parte da observaccedilatildeo de que o boneco eacute

uma construccedilatildeo fiacutesica que deve ser manipulada e deve ser chamado de meacutetodo objeto-

controle

Esse meacutetodo de classificaccedilatildeo taxonocircmica inicia com uma divisatildeo fundamental Como

apresenta a questatildeo Cyril Beaumont um marionetista inglecircs de meados do seacuteculo XX ldquoTodos

os bonecos podem ser compreendidos em dois grupos arredondados ou tridimensionais e

planos ou bidimensionaisrdquo (1958 17) Essa divisatildeo se baseia naquilo que parece ser o criteacuterio

mais oacutebvio para classificaccedilatildeo de boneco como objetos e eacute observado tanto explicitamente

quanto implicitamente pela maior parte dos autores que discutem a questatildeo a partir de uma

abordagem formal de alguma maneira (ver Blackham 1948 1-5 Veltruskyacute 1983 69

McPharlin 1938 85-92 Arnott 1964 58-65)

Para aleacutem dessa divisatildeo fundamental o meacutetodo objeto-controle organiza os bonecos

de acordo com certos tipos baseados na forma como satildeo controlados O que segue eacute a versatildeo

de Beaumont de sua taxonomia (1958 17)

309

Planos (bidimensional)

1 bonecos de papel ou cartatildeo

2 sombras

Arredondados (tridimensionais)

1 bonecos de fio ou marionetes

2 bonecos de vara

3 bonecos de jiga (jigging puppets)

4 bonecos de luva ou bonecos de matildeo

5 bonecos controlados magneticamente

6 bonecos japoneses de trecircs manipuladores

A maior parte desses termos seraacute familiar alguns podem soar idiossincraacuteticos As

familiaridades e idiossincrasias seratildeo mostradas por meio de uma observaccedilatildeo de outras

taxonomias do tipo objeto-controle

Olive Blackham um autor e artista da marionete inglecircs da metade do seacuteculo XX

oferece a seguinte classificaccedilatildeo de bonecos aqui apresentada de forma resumida (1948 1-5)

Planos (bidimensionais)

1 Bonecos que datildeo a ver suas substacircncias (ex ldquoteatro de brinquedordquo)

2 Bonecos que datildeo a ver as suas sombras

a Figuras ldquoopacasrdquo que projetam ldquosilhuetasrdquo (ou ldquosombras negrasrdquo)

b Figuras ldquocoloridas e transluacutecidasrdquo que projetam ldquosombras coloridasrdquo

Arredondados (tridimensionais)

1 Bonecos manipulados por cima por meio de fios (ex marionetes convencionais)

2 Bonecos manipulados por cima por meio de varas (ex os ldquobonecos de Liegravegerdquo ou os ldquoda Siciacuteliardquo)

3 Bonecos manipulados por baixo por meio de varas (ex bonecos de vara convencionais)

4 Bonecos manipulados por baixo poacute meio de cabos polias ou outros dispositivos (ex ldquoos grandes

bonecos japosesesrdquo presumivelmente bonecos de bunraku)

5 Bonecos manipulados pelas matildeos por baixo (ex bonecos de luva ou bonecos de matildeo)

A terminologia de Blakham eacute um tanto desajeitada mas tal falta de jeito emerge em

parte do desejo de apresentar certa loacutegica sistemaacutetica Certas distinccedilotildees satildeo feitas entre as

possiacuteveis disposiccedilotildees do operador do boneco (abaixo ou acima do boneco) e entre

verdadeiros modos de controle do boneco (fios varas etc) O esforccedilo eacute bem intencionado

mas por razotildees que ainda seratildeo esclarecidas permanece insuficiente

Em sua tese ldquoAsthetic of the Puppet Revivalrdquo [Esteacutetica do renascimento do boneco]

McPharlin natildeo traccedila uma taxonomia formal ainda assim haacute uma taxonomia impliacutecita em seu

310

trabalho e ele faz referecircncias a marionetes bonecos de matildeo e ldquoos cinco outros principais

tipos de bonecosrdquo (1938 33) Quando as analisa entretanto ele discute um total de apenas

seis tipos Satildeo em sua ordem de anaacutelise

1 Bonecos de fio

2 Bonecos de vara ou bastatildeo

3 Bonecos de jiga (jigging-puppets)

4 Bonecos de matildeo

5 Bonecos de papel ou cartatildeo

6 Sombras

Noutro momento de sua tese McPharlin faz uma breve menccedilatildeo aos bonecos do

bunraku ldquobonecos de quatro peacutes de altura feitos com tal elaboraccedilatildeo mecacircnica que podem

erguer suas sobrancelhas e fechar seus punhosrdquo (1938 56) como natildeo faz qualquer menccedilatildeo

aos bonecosmarionetes de bastatildeo de Liegravege e da Siciacutelia pode-se considerar o boneco do

bunraku como sendo seu seacutetimo tipo

Arnott se satisfaz em enumerar ldquoquatro tipos principais de bonecosrdquo (1964 58) Satildeo

em ordem de discussatildeo

1 Bonecos de luva

2 Sombras

3 Bonecos de vara

4 Marionetes

Natildeo restam duacutevidas de que esses satildeo os termos mais familiares ao longo dessa anaacutelise

das taxonomias objeto-controle Ainda assim todos os termos usados por esses autores sejam

dignos de consideraccedilatildeo pois os mais idiossincraacuteticos relacionam-se com esse meacutetodo tanto

quanto os mais familiares

De acordo com a taxonomia de Beaumont o primeiro tipo eacute o de ldquobonecos de papel ou

cartatildeordquo planos tambeacutem mencionado por Blackham e McPharlin Ainda segundo Beaumont

os mais famosos desses bonecos satildeo ldquoassociados ao drama juvenil o teatro de brinquedo

fortemente ativo da segunda metade do seacuteculo XIX quando jovens produtores adquiriam seus

atores das folhas lsquolisas de um penny e coloridas de doisrsquordquo (1958 19) Blackham sugere que

esse tipo era ldquooriginalmente um brinquedo para crianccedilasrdquo (1948 1) McPharlin desfaz desse

tipo rapidamente declarando que ldquoeacute restrito demais em movimentos para dar alternativas ao

311

artista e quando este brinca com esses bonecos se encontra mais apto a gastar mais energia

com a panoacuteplia cecircnica do que com as proacuteprias figurasrdquo (1938 91)

Gunther Boumlhmer um estudioso alematildeo contemporacircneo aponta

[Esse] teatro imbuiacutea a filigranada magnificecircncia do [diorama] com uma ilusatildeo

de vida Como possui figuras moacuteveis que podem ser deslizadas de um lado a

outro por meio de fios varas ou mesmo magnetos o teatro de papel eacute

contado em meio agraves muitas formas de teatro de bonecos Fundamentalmente eacute

associado de perto ao teatro ldquovivordquo o qual em completo contraste agraves

intenccedilotildees do teatro de boneco busca imitar o mais proacuteximo e com mais

autenticidade possiacutevel (1971 [1969] 53)

Seguindo Boumlhmer e de acordo com todas as definiccedilotildees discutidas anteriormente o

teatro de brinquedo natildeo eacute estritamente falando teatro de bonecos sua imitaccedilatildeo natildeo se

relaciona tanto com a accedilatildeo dramaacutetica quanto o glamour e a grandiosidade do teatro de atores

Isto natildeo pretende sugerir que o teatro de brinquedo natildeo possa ser usado como teatro de

bonecos mas apenas para reconhecer que geralmente natildeo eacute muito usado como tal Embora

seja um fenocircmeno fascinante agrave sua proacutepria maneira parece ser mais apropriadamente

estudado a partir de perspectivas outras que a da esteacutetica do boneco

Perdido em meio agraves muitas referecircncias ao teatro de brinquedo haacute dois tipos de bonecos

similares que poderiam muito bem serem caracterizados usando os termos de Blackham

como bonecos ldquoplanosrdquo ldquoque datildeo a ver as suas substacircnciasrdquo Embora natildeo possuam nomes

genericamente aceitos podem ser chamados de bonecos de recortes e bonecos de painel

O boneco de recortes natildeo eacute nada aleacutem do que seu nome sugere o contorno de uma

figura cortado em algum material como papel cartatildeo ou madeira com uma cobertura de

pintura ou figurino A produccedilatildeo de Bob Brown para The Enchantede Child (A crianccedila

encantada) o exemplo americano de nossa introduccedilatildeo faz uso efetivo de tais bonecos

recortados para os personagens menores que satildeo entendidos pela personagem principal como

elementos riacutegidos e artificiais satildeo movimentados como um todo ou possuem uma ou duas

articulaccedilotildees para permiti-los possuir braccedilos moacuteveis Todos os movimentos satildeo dados por

meio de varas pelo operados encarregados dos bonecos de recortes Embora suas

possibilidades de movimentaccedilatildeo sejam algo limitadas suas formas e fala combinadas com os

movimentos que lhes satildeo dados permitem agrave plateacuteia imaginaacute-los como tendo vida

O boneco de painel eacute um pouco mais complexo Na produccedilatildeo do Teatro de Bonecos

Estatal de Budapeste de Haacutery Jaacutenos de Kodaacutely muitas das figuras satildeo nas palavras de

Gyoumlrgy Krooacute um membro da companhia ldquofiguras unidimensionais [que satildeo] moacuteveis e que

podem em algumas ocasiotildees usadas como telasrdquo (1978 54) Por unidimensional Krooacute queria

312

dizer que o boneco apresentava apenas um aspecto para a audiecircncia Enquanto que o boneco

de recorte separa a figura da personagem de seu painel original de cartatildeo ou madeira o

boneco de painel permanece essencialmente uma unidade autocircnoma de trainel Seu

movimento deve ser dado de duas maneiras a unidade com a figura deve possuir um ou dois

aspectos moacuteveis tais como uma manga de tecido dentro da qual o manipulador pode por e

mover seu braccedilo ou um dispositivo mecacircnico que permite partes do boneco como olhos e

boca abrirem-se e fecharem-se A unidade como um todo pode ser movida com rodas para

diversos locais no palco Eacute esse segundo tipo de movimento que permite aos bonecos serem

usados como telas assim como qualquer trainel pode ser usado

Bonecos de recortes e bonecos de painel excetuando-se o seu uso para a criaccedilatildeo de

sombras parecem natildeo ser regularmente empregados em nenhuma das grandes tradiccedilotildees

Ainda assim por todas as definiccedilotildees discutidas anteriormente estes satildeo bonecos ainda que

natildeo tenham sido percebidos por taxocircnomos adeptos do tipo objeto-controle

Seguintes na lista de tipos de bonecos de Beaumont vecircm os bonecos de sombras que

possuem um lugar em todas as nossas listas Sombras satildeo essencialmente nada mais que

bonecos de recorte usualmente controlados por varas Os autores das listas notam juntamente

com Blackham que suas sombras projetadas podem ser tanto negras quanto coloridas

dependendo da transparecircncia de seus materiais McPharlin comenta que essas formas tais

como as de teatro de brinquedo ldquodevem ser consideradas restritas em movimento mas natildeo

em fascinaccedilatildeo uma luz brilha atraveacutes da tela e a tela estaacute sempre em uma sala escura

Voltamo-nos em direccedilatildeo agrave luz tal como girassoacuteis [Boneco de sombras] nunca transmitem

ilusatildeo de vida verdadeira Eles criam um reino de fantasia com o qual noacutes da realidade

podemos nos fundirrdquo (1938 91-2) Natildeo passa de um detalhe terminoloacutegico apontar que

espetaacuteculos de sombras como o nosso exemplo javanecircs natildeo acontecem numa sala escura mas

ao ar livre com o escuro da noite A questatildeo de McPhalin eacute que o teatro de sombras fascina

porque a sombra eacute uma presenccedila fantaacutestica sobre uma tela banhada de luz a sombra eacute

particularmente livre da imitaccedilatildeo verossiacutemil pois possui apenas duas dimensotildees

Natildeo eacute um jogo de palavras entretanto indicar que nem McPharlin nem qualquer

outros dos nossos autores de listas perceberam que em diversas tradiccedilotildees de teatros de

sombras parte da plateacuteia quando natildeo toda ela frequumlentemente quando natildeo sempre avistam

o proacuteprio boneco e natildeo apenas a sua sombra A tradiccedilatildeo Nang yai da Tailacircndia na qual

muitas das apresentaccedilotildees ocorrem na frente da tela de projeccedilatildeo jaacute foi mencionada seraacute

tambeacutem lembrado que em nosso exemplo javanecircs o puacuteblico regularmente senta-se em ambos

os lados da tela

313

Jiřiacute Veltruskyacute um estudioso associado ao Ciacuterculo Linguiacutestico de Praga reconhece que

algumas vezes o proacuteprio boneco de sombra eacute dado a ver mas apesar desse reconhecimento

ele preferiria banir a sombra do reino do teatro de bonecos Como ele escreve em seu ensaio

ldquoManipulaccedilatildeo e atuaccedilatildeordquo108

Este artigo lida apenas com bonecos em sentido estrito ou seja bonecos

tridimensionais () O teatro de sombras foi deixado de lado () [Ainda que em Java

as pessoas agraves vezes vejam o boneco] natildeo haacute duacutevida de que no teatro de sombras em

geral eacute a sombra projetada sobre a tela natildeo o proacuteprio objeto como no teatro de

bonecos o que atrai a atenccedilatildeo Na formulccedilatildeo oportuna de [Charles] Magnin [1862

181] o teatro de sombras natildeo faz parte da natureza da escultura moacutevel como eacute o

teatro de bonecos mas da pintura moacutevel (1983 69)

As verdadeiras qualidades que nas estimativas de McPharlin fazem o boneco de

sombras uacutenico o torna de acordo com Veltruskyacute e Magnin sequer um boneco Como seraacute

possiacutevel decidir se a sombra eacute ou natildeo um boneco

Podemos iniciar percebendo um erro de percepccedilatildeo fundamental cometido tanto por

McPharlin como Veltruskyacute apesar de a projeccedilatildeo da sombra sobre a tela seja de fato

bidimensional o boneco que projeta essa sombra natildeo Apesar da convenccedilatildeo de classificar

bonecos como sendo bi ou tridimensionais eacute oacutebvio que natildeo haacute objetos capazes de possuir

apenas duas dimensotildees Embora a terceira dimensatildeo do boneco de sombras a profundidade

seja um tanto insubstancial ela ainda assim existe De fato o mesmo permanece vaacutelido para

bonecos de recorte e de painel todos satildeo objetos fiacutesicos e todos possuem algumas

profundidade Contraacuterio agrave divisatildeo fundamental da taxonomia objeto-controle natildeo haacute algo

como um boneco bidimensional e o boneco de sombra eacute um ldquoobjetordquo como eacute qualquer outro

boneco

Pode-se prosseguir apontando que ainda que a plateacuteia jamais veja o boneco

diretamente a sombra que se vecirc eacute a criaccedilatildeo do boneco interposto entre a tela de projeccedilatildeo e a

fonte de luz No teatro de sombras javanecircs o boneco geralmente movido paralelamente agrave

tela pode tambeacutem ser movimentado entre a tela e a fonte de luz fazendo com que a sombra

fique maior e mais difusa ou menor e mais bem definida Ele pode tambeacutem ser girado contra

a tela para virar-se na direccedilatildeo oposta fazendo com que a sombra se reduza numa linha fina

antes de completar-se novamente Mais raramente pode ser dado algum movimento agrave fonte

de luz com o boneco permanecendo imoacutevel fazendo com que a sombra tanto mude de

formato quanto se mova pela tela (Brandon 1970 35) Seja qual for o modo do movimento a

sombra na tela eacute meramente o efeito a causa implica no boneco O teatro de sombras natildeo eacute

108

No texto em inglecircs o artigo tem o tiacutetulo ldquoPuppetry and actingrdquo

314

ldquopintura moacutevelrdquo como consideram Magnin e Veltruskyacute mas eacute tanto ldquoescultura moacutevelrdquo

quanto qualquer outra forma de teatro de bonecos sua mobilidade uacutenica entre os bonecos eacute

geralmente empregada para a criaccedilatildeo de sombras

Pode-se concluir seguindo esta anaacutelise apontando que McPharlin e Veltruskyacute

cometem um erro de anaacutelise mirando apenas na sombra do boneco de sombras Como o

proacuteprio Veltruskyacute admite em algumas tradiccedilotildees o proacuteprio boneco eacute assistido Mas mesmo

quando natildeo eacute o objeto fiacutesico do boneco por traacutes da tela eacute a origem da sombra e de seu

movimento e a plateacuteia estaacute sempre informada acerca desse fato O boneco de sombras eacute de

todas as maneiras um ldquoobjetordquo ao qual se daacute uma vida imaginaacuteria mesmo se eacute a sombra o que

angaria a maior atenccedilatildeo

Deve ser mencionado entretanto que esta conclusatildeo ainda que vaacutelida em um sentido

teoacuterico vai no sentido contraacuterio das tradiccedilotildees linguumliacutesticas de uma seacuterie de culturas a divisatildeo

dos bonecos em classes bi e tridimensionais natildeo eacute apenas um preconceito ocidental Como

nos informa Roberta Stalberg uma estudiosa americana contemporacircnea da cultura chinesa

O termo geneacuterico para o teatro de sombras na China hoje em dia eacute pi-ying xi

ou ldquoteatro de sombras de courordquo porque as figuras satildeo feitas em couro mas

anteriormente o termo mais difundido para essa forma era deng-ying xi ou

ldquoteatro de sombras de lanternardquo Figuras de sombra nunca foram chamados de

mu-ou ou boneco uma vez que os chineses sempre consideraram haver uma

distinccedilatildeo entre essas figuras bidimensionais e os bonecos tridimensionais

(1984 86)

Natildeo pode haver duacutevidas de que o teatro de sombras possui a sua proacutepria histoacuteria tanto

na China como em outros lugares Ainda assim eacute justo marcar que Stalberg natildeo hesita em

discutir essas figuras bidimensionais num livro dedicado ao estudo geral dos teatros de

bonecos chineses e que tradiccedilotildees linguiacutesticas como a da China poderiam ser baseadas melhor

em circunstacircncias histoacutericas e socioloacutegicas relacionadas ao desenvolvimento do teatro de

sombras em qualquer cultura Apesar das tradiccedilotildees linguumliacutesticas o teatro de sombras faz uso

de ldquoobjetosrdquo que necessariamente existem em trecircs dimensotildees e satildeo empregadas como

qualquer boneco para guardar a ideacuteia de ldquovidardquo

Beaumont entatildeo segue para bonecos ldquoarredondados ou tridimensionaisrdquo comeccedilando

por ldquobonecos de fio ou marionetesrdquo Estes ele diz ldquobuscam imitar todos os movimentos de

um ser humano dos quais em geral satildeo representaccedilotildees em miniaturardquo (1958 17) A primeira

afirmaccedilatildeo eacute assim se espera um exagero porque usar um boneco afinal se humanos podem

imitar accedilotildees humanas muito melhor No exemplo indiano citado na introduccedilatildeo marionetes de

uma forma muito simples satildeo usadas Cada uma possuindo natildeo mais que dois fios uma

315

ligando a cabeccedila do boneco agrave matildeo do operador e dando um volta ateacute a cintura do boneco

outra ligada a uma das matildeo do boneco ateacute a matildeo do operador e descendo ateacute a outra matildeo do

boneco Um boneco assim embora seja capaz de executar movimentos mais sutis do que se

poderia esperar natildeo pode ser indicado como podendo imitar nada que se aproxime de ldquotodos

os movimentos do ser humanordquo A questatildeo de Beaumont provavelmente eacute a de que

marionetes geralmente possuem corpos com movimentos nos quatro membros quando a

maioria dos outros tipos de bonecos natildeo tecircm Arnott sugere por esse motivo que elas satildeo os

ldquomais satisfatoacuteriosrdquo dos bonecos (196460) e a marionete tem seu lugar assegurado em todas

as listas de tipos de bonecos que empregam o meacutetodo objeto-controle

Mas qual seria o traccedilo distintivo da marionete Anott ao definiacute-las descreve-as como

sendo ldquofiguras articuladas controladas de cima por meio de cordas ou fiosrdquo (1964 60) Seria o

traccedilo distintivo o controle por cima ou o emprego de cordas ou fios Devemos nos recordar

que a listagem de Blackham distingue entre ldquobonecos trabalhados de cima por meio de fiosrdquo e

aqueles ldquotrabalhados de cima por meio de varasrdquo Tal distinccedilatildeo eacute importante porque as

possibilidades de movimento criadas pelos diferentes meios de controle natildeo satildeo todos os

mesmos

McPharlin escreve que o ldquoboneco de fio eacute bem capaz de imitar de uma forma ampla

quase todos os tipos de movimentos realiacutesticos Criacuteticos que reclamam do seu caminhar

saltitante foram agraciados pelo azar com demonstraccedilotildees ruinsrdquo (1938 85) Ele tambeacutem

aponta que ldquono campo do natildeo-realismo o boneco de fio se sobressai Ele eacute graccedilas aos

seus fios independente da gravidaderdquo (1938 86) Harro Siegel um artista de teatro de

bonecos alematildeo contemporacircneo ressalta ldquoa qualidade oniacuterica flutuante submissa da

marioneterdquo (1967 [1965] 21) Note-se entretanto que McPharlin eacute cuidadoso ao empregar o

termo bonecos de fios uma vez que essa qualidade oniacuterica assim como seus ldquomovimentos

realiacutesticosrdquo estatildeo aleacutem da capacidade da marionete controlada por cima por varas

Jean Gross conta que na tradiccedilatildeo de Liegravege de marionetes ldquoo uacutenico instrumento de

controle direto eacute uma uacutenica vara de metal ligado a um anel no topo da cabeccedila Isso quer dizer

que o boneco se move de uma maneira muito riacutegida de uma maneira distante da humanardquo

(1987 107) E como diz Baird sobre as marionete sicilianas

Seu movimento eacute ereto e controlado apenas pelo iacutempeto da vara de ferro que

ergue ou gira o corpo a partir do pescoccedilo O movimento de balanccedilo do corpo

tambeacutem governam os passos de pernas duras O [boneco] balanccedila uma perna

para traacutes para ganhar impulso e entatildeo com um giro do corpo marcha adiante com

uma pancada (1965 120)

316

Se o traccedilo distintivo da marionete for o controle por cima entatildeo as possibilidades de

movimento desse tipo natildeo podem ser generalizadas e para classificar um boneco como sendo

uma marionete eacute dizer menos o que seria de se esperar Se o traccedilo distintivo for o uso de fios

entatildeo um tipo separado dever ser arrolado como eacute por Blackham para definir as marionetes

de Liegravege e da Siciacutelia juntamente com muitas outras operadas por meio de hastes

A questatildeo aqui eacute que nem mesmo o tipo de boneco apontado como estando no

pinaacuteculo do teatro de bonecos por muitos taxonomistas do tipo objeto-controle natildeo eacute de fato

um uacutenico e discreto tipo de boneco a confusatildeo a ser percebida entre as classificaccedilotildees de

ldquomarioneterdquo eacute indicativa do que se pode encontrar na maioria das classificaccedilotildees do tipo

objeto-controle

Os proacuteximos na listagem de Beaumont satildeo os bonecos de vara sendo seu traccedilo

distintivo como nos explica Blackham sua operaccedilatildeo por traacutes por meio de varas esses

bonecos tambeacutem estatildeo presentes em todas as nossas listas objeto-controle A nossa

performance nigeriana fornece um bom exemplo esses bonecos possuem duas hastes

internas uma fornecendo suporte em geral outra operando o movimento da boca podem

possuir hastes e bastotildees adicionais para o movimento das matildeo ou pernas (Boumlhmer 1971

[1969] 108) A quantidade e funccedilotildees das hastes varia consideravelmente em diferentes

tradiccedilotildees e geralmente permitem nuances de movimentos notaacuteveis

Batchelder em seu estudo soacutelido Bonecos de vara e o Teatro Humano escreve que ldquoo

boneco de vara [eacute] uma figura manipulada por baixo do chatildeo do palco por meio de (1) varas

(2) varas e fios ou (3) matildeos e varas de tal maneira que se pode obter um movimento

cuidadosamente controladordquo (1947 xix) O ldquomovimento cuidadosamente controladordquo possiacutevel

ao boneco de vara eacute percebido por todos os nossos autores Arnott sugere que ldquoabsoluta

precisatildeo de controle eacute possiacutevelrdquo e que ldquoessas figuras possuem grande dignidade e belezardquo

(1964 59) Muitos estudiosos e praticantes concordam com Boumlhmer que ldquoo boneco de vara

ocupa um lugar entre a luva e a marionete Enquanto que apresenta muito da destreza e

vitalidade da primeira tambeacutem apresenta o charme complicado e a sutil individualidade da

outrardquo (1971 [1969] 37)

O aspecto mais interessante da definiccedilatildeo de Batchelder eacute o quanto esta eacute inclusiva Tal

inclusatildeo expotildee mais uma vez os problemas do meacutetodo objeto-controle quatildeo ampla uma aacuterea

classificativa de bonecos pode ser para ser incluiacutedo em determinado tipo e qual a relaccedilatildeo

entre os bonecos pertencentes a essa aacuterea de alcance

Batchelder escreve que bonecos controlados ldquopor matildeos e por bastotildeesrdquo devem ser

considerados bonecos de vara A caracteriacutestica especiacutefica dos Muppets de Jim Henson eacute a

317

boca articulada de cada figura O sapo Kermit109

eacute um bom exemplo a matildeo do operador sobe

pelo interior de um corpo de tecido e espuma ateacute uma cabeccedila de tecido com uma boca

articulada Ao abrir e fechar a sua matildeo e ao movecirc-la de diversas maneiras o(a) operador(a)

abre e fecha a boca e confere agrave cabeccedila movimentaccedilotildees expressivas A outra matildeo do operador

controla duas varas cada qual ligada a uma das matildeos do boneco dando movimento aos seus

braccedilos por sua vez ligados aos ombros (Henson Associates 1980 16) De acordo com a

definiccedilatildeo de Batchelder Kermit deveria ser considerado um boneco de vara De fato seus

braccedilos satildeo movimentados com varas de uma maneira consistente com esse tipo mas de fato

parece ser a sua boca articulada intimamente controlada pela matildeo de seu operador seu traccedilo

mais caracteriacutestico

Em que lugar dessa taxonomia deveriacuteamos situar um boneco como Kermit E como

poderiacuteamos classificar tambeacutem um boneco com boca articulada mas com braccedilos que satildeo

mangas e luvas dentro das quais o operador e algumas vezes um assistente potildee seus braccedilos e

matildeos tal como ocorre em muitos outros Muppets Ou ainda com uma boca articulada mas

sem quaisquer braccedilos tal como Ollie o personagem do programa ldquoKukla Fran and Ollierdquo do

marionetista Burr Tillstrom Ou ainda como classificar um boneco com uma boca articulada

e olhos e sobrancelhas tambeacutem articuladas mas sem qualquer outro movimento tal como a

maiorias dos bonecos de ventriacuteloquos Por incriacutevel que pareccedila tais bonecos satildeo muito

raramente mencionados na literatura sobre teatro de bonecos embora sejam uma das mais

populares manifestaccedilotildees da animaccedilatildeo ocidental

Parece absurdo chamar qualquer desses bonecos de bonecos de vara uma vez que

com a exceccedilatildeo de Kermit eles natildeo possuem quaisquer varas de operaccedilatildeo apesar disso natildeo se

encaixam em nenhum outro lugar dentro da taxonomia objeto-controle No miacutenimo uma nova

classificaccedilatildeo parece ser necessaacuteria bonecos de boca articulada110

E dadas as qualidades

particulares dos bonecos de ventriacuteloquos uma segunda nova classificaccedilatildeo parece tambeacutem ser

necessaacuteria

Beaumont em seguida lista os bonecos de jiga111

e finalmente encontramos uma breve

pausa da controveacutersia McPharlin tmabeacutem relaciona o tipo mas este eacute ignorado por

Blackhamm e Arnott assim como por muitos outros McPharlin escreve sobre os bonecos de

jiga

109

NT No Brasil o nome deste personagem eacute traduzido como Caco o sapo 110

NT No Brasil pode-se encontrar o termo marote para classificar um tipo de boneco aproximado da categoria

sugerida por Tillis 111

No nordeste do Brasil um boneco aparentado desse tipo eacute o conhecido como ldquoManeacute Gostosordquo Um boneco de

madeira que faz giros acrobaacuteticos quando se pressionam os bastotildees aos quais estaacute preso por um sistema muito

simples de cordas e elaacutesticos

318

Satildeo o tipo de bonecos que se vecirc como brinquedos nas esquinas das cidades agraves

veacutesperas do natal um par de aacutegeis danccedilarinos que saltitam com uma vida

sobrenatural no meio de um fio no qual uma extremidade estaacute presa a um poste e

a outra ao joelho do animador ou os negrinhos [sic] de jiga cujos peacutes satildeo postos

em vocirco pelas vibraccedilotildees de uma taacutebua martelada em sua extremidade fixa pela

matildeo do operador A amplitude de movimento de tais bonecos eacute por demais restrito

e pouco controlaacutevel para uso artiacutestico (1938 88-89)

O uacuteltimo dos dois exemplos dados por McPharlin eacute tambeacutem conhecido como

marionete agrave la planchette (Beaumont 1958 18)

O desdeacutem de McPharlin ao valor artiacutestico do boneco de jiga eacute duro poreacutem apropriado

De fato esses bonecos podem fazer muito pouco aleacutem de saltitar Pode-se imaginar se natildeo

seriam mais brinquedos do que bonecos teatrais Sem duacutevida satildeo usados mais frequentemente

como brinquedos mas dentro do contexto da apresentaccedilatildeo de esquina segundo descrito por

McPharlin eles devem ser de acordo com todas as definiccedilotildees discutidas na Parte I deste

livro ser considerados bonecos teatrais

Os bonecos de jiga exemplificam ainda outro problema com o meacutetodo objeto-controle

a um tipo menor de boneco como esse pareceraacute difiacutecil conseguir equiparaccedilatildeo taxonocircmica

juntamente com tipos altamente desenvolvidos e difundidos tais como o boneco de sombra

ou a marionete Mas devido ao fato de ser uacutenico em seu modo de controle por meio de

vibraccedilotildees semialeatoacuterias e devido agrave sua longa e por que natildeo dizer ilustre histoacuteria no

ocidente o meacutetodo objeto-controle lhe dedica uma menccedilatildeo desconexa

Seguindo a lista de Beaumont encontramos os ldquobonecos de luva ou bonecos de matildeordquo

e com isto entramos novamente na briga As qualidades caracteriacutesticas do boneco de luva satildeo

universalmente reconhecidas Arnott explica que ldquoa figura possui uma cabeccedila oca braccedilos e

um corpo longo no formato de uma manga de camisa o operador insere sua matildeo no corpo e

controla a cabeccedila e os braccedilos com seus dedosrdquo (1964 58) ldquoPunch and Judyrdquo eacute o exemplo

arquetiacutepico da bonecaria de luva e bonecos de luva aparecem em todas as listas

Ainda assim num ensaio acerca da histoacuteria do teatro de bonecos Jurkowski comenta

que ldquoo boneco de luva e o boneco de sombra situam-se fora da arte dos bonecosrdquo (1967

[1965] 26) Ele natildeo chega a articular a sua objeccedilatildeo ao boneco de sombra mas em outra

passagem parafraseia o estudioso alematildeo do princiacutepio do seacuteculo XX Fritz Eichler para o

efeito de que ldquoo boneco de luva natildeo deve ser considerado lsquopuramentersquo boneco pois eacute de fato

a matildeo do marionetista que eacute a sua alma O boneco de luva seria entatildeo um lsquoprolongamentorsquo do

ator [e deveria ser considerado] um prolongamento do teatro de miacutemicardquo (1998 [1979] 21-

22)

319

O argumento de Eichler como eacute apresentado por Jurkowski se apoacuteia na ideacuteia de que a

matildeo viva do operador no interior do boneco eacute o verdadeiro foco da atenccedilatildeo da plateacuteia e que o

que se percebe como sendo o boneco de luva natildeo passa de uma fantasia para essa matildeo a

figura natildeo estaacute ldquoseparada do corpo de seu manipuladorrdquo e natildeo obedece agraves ldquosuas proacuteprias leis

mecacircnicasrdquo (1998 [1979] 22) Dessa forma Punch de fato natildeo eacute um boneco nem mesmo

nesse caso o seria Kermit que tambeacutem eacute pouco mais que a matildeo vestida de seu operador

Como seria possiacutevel resolver se bonecos de luva e todos os outros bonecos apoiados na matildeo

do operador satildeo ou natildeo satildeo bonecos de fato

Deve-se comeccedilar admitindo que a matildeo do manipulador eacute metaforicamente a ldquoalmardquo

do boneco de luva mas que o boneco de luva ainda assim eacute algo diferente da matildeo humana

Como jaacute foi visto Obrastzov sugere que essa alteridade emerge da percepccedilatildeo da plateacuteia de

que a matildeo estaacute ldquoseparadardquo de seu operador ldquocom um ritmo e um caraacuteter proacutepriosrdquo (1950

155) Ou como jaacute argumentamos a plateacuteia percebe a figura apresentada pela matildeo como se

esta fosse um objeto da mesma forma como essa perceberia qualquer objeto Em miacutemica a

plateacuteia entende o miacutemico como uma figura humana inteira com o boneco de luva a plateacuteia

entende a matildeo do operado como algo divorciado dele e como um objeto agrave sua proacutepria

maneira Tal percepccedilatildeo da matildeo tanto vestida como nua faz a distinccedilatildeo da miacutemica

Pode-se prosseguir notando que o proacuteprio Jurkowski comenta que ldquopara o puacuteblico

[bonecos de luva] satildeo bonecos porque satildeo criaturas artificiais comportam-se de agrave sua proacutepria

maneira e podem apresentar um personagem diferente em cenardquo (1998 [1983] 76-77) Esse

comentaacuterio expotildee um ponto importante a desconsideraccedilatildeo do boneco de luva se baseia numa

consideraccedilatildeo a priori de que o boneco precisa ser um objeto inteiramente inanimado operado

por algum dispositivo mecacircnico mas qual eacute a base para tal consideraccedilatildeo O entendimento

popular se apoacuteia unicamente na percepccedilatildeo da plateacuteia de que o boneco eacute uma ldquocriatura

artificialrdquo o que interessa para esse criteacuterio convenientemente eacute que o boneco eacute percebido

como se fosse um objeto

Isto pode ser possiacutevel concluir com a observaccedilatildeo de Jurkowski quando este fala do

boneco de luva como sendo capaz de ldquoapresentar um personagem diferente sobre a cenardquo

Essa capacidade do boneco de apresentar um personagem que a plateacuteia pode imaginar como

tendo uma vida forjada toda sua inescapavelmente o separa do teatro de miacutemica O boneco

pode dar a entender que possui uma vida proacutepria devido ao uso dos signos da forma

movimento e fala o que satildeo toda a sua existecircncia o miacutemico em contraste possui uma vida

de fato e natildeo importa quais signos performaacuteticos ele ou ela apresentem essa vida jamais seraacute

questionada O meacutetodo objeto-controle uma vez que classifica bonecos de acordo com a

320

natureza de objetos e seus modos de controle faz objeccedilotildees agrave possibilidade do boneco de luva

Mas contrariamente ao meacutetodo objeto-controle nem a natureza do objeto nem a maneira de

de controle buscam sustentar se uma determinada figura teatral eacute ou natildeo um boneco

Toda essa questatildeo tambeacutem reintroduz a questatildeo da distinccedilatildeo entre o boneco e o ator

vivente que usa uma maacutescara ou um figurino Considerar o Muppet Big Bird112

no qual o

operador se encontra inteiramente dentro da figura teatral conferindo-lhe inteiramente sua

motivaccedilatildeo (Henson Associates 1980 9-16) De acordo com Eichler e talvez Jurkowski Big

Bird deveria ser entendido como ldquouma extensatildeo do teatro miacutemicordquo Mas seguindo nossa

anaacutelise anterior este seria considerado um boneco pois sua fisionomia eacute distinta da de seu

operador enquanto que o Mickey Mouse anteriormente discutido eacute bem mais claramente o

figurino e a maacutescara do ator vivente Entatildeo como se classificaria o Big Bird O meacutetodo

objeto-controle natildeo nos fornece sequer uma dica

Devemos tambeacutem nos indagar como fizemos em nossa discussatildeo acerca dos bonecos

de vara da amplitude de tipos de bonecos que podem ser considerados bonecos de luva

Pudemos ver o quanto o boneco no estilo Muppet desafia a sua tipificaccedilatildeo enquanto boneco

de vara e este natildeo faz menos quanto agrave sua classificaccedilatildeo como boneco de luva Mesmo

estando apoiado na matildeo do operador este eacute um tanto distinto da luva tradicional mais

obviamente no que diz respeito agrave sua boca articulada A taxonomia objeto-controle

simplesmente natildeo daacute conta desse tipo de boneco

E ainda haacute o boneco tradicional coreano Numa pesquisa sobre a histoacuteria do teatro

coreano Oh-Kon Cho escreve

O boneco coreano natildeo pertence a nenhuma das mais familiares categorias de

boneco Ao inveacutes disso combina aspectos de [diversos tipos] O corpo do

boneco coreano a vara principal eacute segura pela matildeo o que eacute uma remanescecircncia

do boneco de luva seus braccedilos um pouco parecido com a marionete satildeo

manipulados por fios por baixo e a qualidade uacutenica dos movimentos de braccedilos

traz agrave lembranccedila de algumas plateacuteias as movimentaccedilotildees riacutegidas dos bonecos de

vara (1988 309)

Tal boneco parece ter sido especialmente feito para atormentar os taxonomistas do tipo

objeto-controle e apresentar ainda outras dificuldades agraves objeccedilotildees aos bonecos de luva O

boneco coreano eacute construiacutedo de uma maneira similar agrave dos bonecos de luva tradicionais mas

ao inveacutes os dedos dos operadores possuiacuterem controle direto sobre a cabeccedila e os braccedilos a

cabeccedila se controla por meio de uma vara central enquanto que os braccedilos satildeo controlados por

fios (Cho 1979 27) Para uma plateacuteia que natildeo seja acostumada com a sua construccedilatildeo e

112

NT No Brasil esse personagem ganhou o nome Garibaldo

321

operaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista se tratar de um boneco de luva tradicional seus

movimentos podem tambeacutem parecer semelhantes aos dos bonecos de luva diferindo apenas

em sua menor capacidade para curvar-se para frente no pescoccedilo e cintura e que a tendecircncia

de movimento dos braccedilos eacute para cima e para baixo ao inveacutes de para dentro e para fora

De fato muitas companhias de teatro de bonecos no ocidente assumem a praacutetica de

usar bonecos de luva tradicionais e inserir uma vara central atraveacutes do corpo ateacute a cabeccedila

podendo ainda operar as matildeos do boneco de dentro de seu figurino com os dedos A

vantagem dessa teacutecnica eacute a de retirar o peso da cabeccedila do boneco do ldquodedo da cabeccedilardquo do

operador tornando para ele mais faacutecil manter o boneco em operaccedilatildeo por longos periacuteodos de

tempo

Em ambos os casos o boneco manteacutem a sua aparecircncia de boneco de luva e muito dos

movimentos de boneco de luva mas perde aquilo que Eichler chama de sua ldquoalmardquo Se a matildeo

vivente pode ser dispensada de modo tatildeo faacutecil e casual o quanto deveriacuteamos nos preocupar

com a alma do boneco uma vez que o boneco eacute percebido como um objeto iacutentegro e com uma

vida proacutepria a ele atribuiacuteda

Retornando agrave nossa discussatildeo da classificaccedilatildeo do boneco de luva devemos a seguir

considerar como o meacutetodo objeto-controle classificaria um boneco que certamente faz uso da

matildeo mas que dificilmente poderia ser considerado um objeto de fato que necessite de

controle

Esse problema eacute apresentado natildeo apenas em teatro de bonecos tal como no sketch

apresentado por Burr Tillstrom com a matildeo nua sobre o muro de Berlim113

ou pelas

performances apresentadas pelo renomado performer francecircs Yves Joly com luvas nas matildeos

(ver Obraztsov 1985 [1981] 265-69) o difundido ainda que pouco documentado uso de

matildeos nuas em conjunccedilatildeo com uma fonte de luz para criar sombras sobre uma tela ou parede

natildeo encontra lugar na taxonomia objeto-controle Tampouco possui o uso igualmente

difundido e pouco documentado do punho nu fechado de modo a que o movimento para cima

e para baixo do polegar represente o movimento da boca Pode parecer absurdo classificaacute-los

como bonecos de matildeo dada a descriccedilatildeo universalmente aceita para esse tipo de boneco mas

de que mais poderiam ser chamados O meacutetodo objeto-controle natildeo consegue classificar nem

nomear esse tipo de animaccedilatildeo embora isto seja inegavelmente um tipo de boneco mesmo

que rudimentar

113

NT O viacutedeo dessa apresentaccedilatildeo pode ser visto no Youtube no endereccedilo

lthttpwwwyoutubecomwatchv=RCRvarruS9ggt

322

A seguir na lista de Beaumont encontramos ldquobonecos controlados magneticamenterdquo

Essa eacute a mais idiossincraacutetica das classificaccedilotildees de Beaumont e qua natildeo consta e nenhuma

outra das listas vistas O proacuteprio Beaumont menciona apenas um exemplo no trabalho de um

Senhor Cecil Brinton antes de encerrar o assunto (1958 18)

A caracteriacutestica particular do boneco controlado magneticamente natildeo parece ser o

magnetismo em si mas o fato de que o controle se realiza sem que haja contato entre o

mecanismo de controle e o boneco Se Beaumont estivesse escrevendo hoje ele teria

provavelmente ampliado a sua classificaccedilatildeo para incluir bonecos controlados eletronicamente

ou bonecos aacuteudio-animatrocircnicos que satildeo similarmente motivados ao menos em parte sem

contato direto entre os mecanismos de controle eletrocircnico e os mecanismos eletrocircnicos dentro

do boneco (Henson Associates 1980 13)

A discussatildeo sobre bonecos que satildeo controlados via magnetismo ou eletrocircnica sem

contato fiacutesico reintroduz a questatildeo da distinccedilatildeo entre o boneco e o autocircmato As figuras um

tanto anestesiadas que acenam aos visitantes dos passeios na Disneylacircndia e as criaturas

notoriamente escandalosas que assediam a sensibilidade de adultos que levam seus filhos agraves

pizzarias Chuck E Cheese parecem ser autocircmatos ao inveacutes de bonecos animatrocircnicos Mas

qual eacute a base para essa distinccedilatildeo

Nenhuma distinccedilatildeo natural pode ser percebida em termos das suas formas o grupo

musical do Chuck E Cheese parece-se mais ou menos com o Electric Mayhem a banda

musical do Muppet Show Tambeacutem natildeo se percebe uma distinccedilatildeo direta em termos de fala a

muacutesica eacute diretamente atribuiacuteda a ambos os grupos e nos dois casos a muacutesica eacute preacute gravada

Haacute no entanto uma distinccedilatildeo clara entre seus movimentos ou mais precisamente em suas

possibilidades de movimentaccedilatildeo o grupo do Chuck E Cheese pode se mover apenas da

maneira e na sequumlecircncia para a qual foi programada os muacutesicos Muppets respondem aos

comandos de seus operadores de modo que natildeo podem ser previstos em termos de modo e

ordem

Deve ser notado que esta comparaccedilatildeo pode ser de alguma forma enganosa uma vez

que a banda Muppet natildeo eacute de fato controlada eletronicamente Mas ainda que fosse e ainda

que tal controle limitasse seus movimentos a sequumlecircncia de sua movimentaccedilatildeo ainda estaria

sob o controle de seus operadores

A diferenccedila entatildeo entre o autocircmato e o boneco eacute a de potencial de movimento Ainda

que uma breve percepccedilatildeo dos dois possam levar a plateacuteia a acreditar que satildeo funcionalmente

intercambiaacuteveis uma percepccedilatildeo mais prolongada exporia o fato de que o autocircmato natildeo pode

323

sustentar na plateacuteia uma imaginaccedilatildeo de vida devido a sua relativa pobreza de possibilidades

de movimento ao passo que o boneco pode

Retornando a Beaumont a inclusatildeo do boneco movido magneticamente expotildee uma

fraqueza fundamental do meacutetodo objeto-controle que jaacute foi apontada anteriormente haacute um

nuacutemero infinito de objetos que podem ser usados como bonecos e uma quantidade ainda

desconhecida de meios de controle A taxonomia objeto-controle natildeo possui meios de acolher

novos objetos novos modos de controle ou novas combinaccedilotildees entre objetos e controle O

melhor que consegue fazer eacute simplesmente adicionar cada novo modo agrave lista sempre que o

trabalho de um ldquoSenhor Cecil Brintonrdquo for percebido como o fez Beaumont com o boneco

controlado magneticamente Mas uma lista assim passiacutevel de contribuiccedilotildees infinitas eacute mais

que apenas desajeitada ela falha em uacuteltima anaacutelise em permitir comparaccedilotildees e contrastes

significativos entre diferentes bonecos

O uacuteltimo item relacionado por Beaumont eacute o dos ldquobonecos japoneses de trecircs

manipuladoresrdquo ou como satildeo conhecidos mais comumente bonecos de bunraku Arnott os

deixa completamente de fora de sua listagem embora esteja consciente de sua existecircncia

(1964 79-80) talvez por perceber a futilidade em tentar fazecirc-los encaixar num sistema de

descriccedilatildeo dominado por conceitos ocidentais Como jaacute discutimos nosso exemplo japonecircs de

performance de teatro de bonecos em certa profundidade basta aqui apenas registrar que o

meacutetodo objeto-controle classifica o bunraku como sui generis essencialmente deixando de

lado a aproximaccedilatildeo sincrocircnica e adotando para esse caso princiacutepios taxonocircmicos proacuteprios ao

meacutetodo histoacuterioco-geograacutefico

Assim exaurimos em mais de um sentido a lista de tipos de Beaumont Como

pudemos perceber ela agrupa bonecos um tanto dessemelhantes e ignora inteiramente uns

tantos outros tipos de bonecos De fato o caso de trabalhar dentro das dadas limitaccedilotildees talvez

permitisse alcanccedilar uma forma de classificaccedilatildeo que fosse mais abrangente e coerente mas as

limitaccedilotildees parecem nulificar o exerciacutecio

A teoria embutida no meacutetodo objeto-controle eacute como jaacute deve estar oacutebvio que bonecos

satildeo objetos inanimados de tipos distintos e determinados e que o modo como satildeo controlados

eacute o seu elemento mais importante Como tambeacutem jaacute deve ter ficado oacutebvio tal teoria eacute

insustentaacutevel Bonecos podem ser ou natildeo objetos inanimados sua variedade de formas eacute

ilimitada e a maneira como satildeo operados descreve surpreendentemente pouco a seus

respeitos

Aleacutem das questotildees de objeto e controle o meacutetodo oferece pouco vocabulaacuterio

descritivo Trata-se pouco acerca das possibilidades de forma e movimento disponiacuteveis ao

324

boneco e nada a respeito das possibilidades de fala uma vez que objeto e controle natildeo

abordam tal questatildeo Parece impressionante que uma teoria sobre teatro de bonecos se

disponha a renunciar a uma discussatildeo detalhada sobre forma e movimento e a toda e qualquer

discussatildeo da fala mas eacute isso que acontece com o meacutetodo objeto-controle O meacutetodo fracassa

em reconhecer que bonecos existem para se apresentarem e assim evitam discutir as

complexidades da performance do boneco

Como conclusatildeo as taxonomias histoacuterico-geograacutefica e objeto-controle natildeo permitem

uma descriccedilatildeo mais completa do boneco A taxonomia histoacuterico-geograacutefica empregando um

meacutetodo diacrocircnico confiam em distinccedilotildees histoacuterico-geograacuteficas aleatoacuterias para evitar ser

sufocada pela infinita variedade de tradiccedilotildees de bonecos O meacutetodo se justificaria se estivesse

disposto de fato a considerar cada uma das diversas tradiccedilotildees e descobrir como estas se

desenvolveram e influenciaram umas agraves outras no correr do tempo e do espaccedilo mas a relativa

pobreza de informaccedilotildees sobre muitas tradiccedilotildees bonequeiras e a falta de um vocabulaacuterio

adequado para a descriccedilatildeo dessas tradiccedilotildees sobre as quais temos informaccedilotildees tornam

impossiacutevel o uso do meacutetodo para algo com maiores inspiraccedilotildees

A taxonomia objeto-controle a tentativa de uma anaacutelise sincrocircnica postula a

existecircncia de pouco mais que sete tipos de controle para bonecos mas as diferenccedilas descritas

entre esses tipos satildeo um tanto vagas e os proacuteprios tipos falham em abrigar uma quantidade

relevante de modos de controle Devido a sua concentraccedilatildeo sobre a maneira de controlar o

boneco o meacutetodo oferece pouca informaccedilatildeo no que diz respeito agrave forma e movimento e

nenhuma acerca da fala para o boneco

Se como jaacute foi considerado anteriormente o boneco eacute percebido como um objeto

ainda que se imagine vida conferida a ele devido a sua capacidade de produzir signos

abstratos de vida nos trecircs sistemas siacutegnicos de forma movimento e fala entatildeo ocorre que a

descriccedilatildeo do boneco deve possuir informaccedilotildees sistemaacuteticas relativas a esses sistemas de

significaccedilatildeo Seria tolo eacute claro abandonar os vocabulaacuterios descritivos das duas taxonomias

consagradas jaacute que tradiccedilotildees construiacutedas sobre particularidades de histoacuteria e geografia

obviamente existem e o modo e controlar o boneco eacute obviamente algo importante Mas tais

vocabulaacuterios precisam ser substancialmente incrementados e inseridos no contexto de uma

teoria mais abrangente se quisermos ansiar por uma descriccedilatildeo completa para o boneco

325

5

UMA NOVA BASE

PARA DESCRICcedilAtildeO

Encontra-se aleacutem do horizonte deste estudo a tentativa de uma taxonomia diacrocircnica

completa para o boneco o que seria equivalente a delinear a historia global do teatro de

bonecos Como foi explicado anteriormente muito pouca informaccedilatildeo existe ateacute o momento

sobre a qual estabelecer tal delineamento e haacute um vocabulaacuterio muito esparso disponiacutevel para

a sua explicaccedilatildeo Nada pode ser feito aqui para amenizar essa falte de informaccedilatildeo mas

podemos certamente contribuir no desenvolvimento do vocabulaacuterio necessaacuterio ao

examinarmos como o boneco como um determinado fenocircmeno teatral pode ser usado para

dispor signos da cada um dos trecircs sistemas siacutegnicos que possam atender ao desejo psicoloacutegico

da plateacuteia de imaginaacute-lo como tendo vida Examinaremos cada um desses sistemas siacutegnicos

por sua vez e considerar as variaacuteveis contidas em cada sistema a localizaccedilatildeo de signos

particulares dispostos ou produzidos por meio de tais variaacuteveis junto ao continuum de

representaccedilatildeo do boneco e as relaccedilotildees entre os proacuteprios trecircs sistemas siacutegnicos

Antes de nos aprofundarmos nos sistemas siacutegnicos entretanto seraacute de utilidade

considerar a natureza geral dos signos do boneco Edward Gordon Craig apontando o

naturalismo no teatro de atores proclama ldquojogue fora a aacutervore verdadeira jogue fora a

realidade da inflexatildeo jogue fora a realidade da accedilatildeo e vocecirc se inclinaraacute na direccedilatildeo de jogar

fora o ator Cessaraacute a necessidade de haver uma figura viva que nos confunda de modo a

ligarmos realidade e arterdquo (1911 81) Eacute claro pode-se argumentar que ldquorealidade e arterdquo natildeo

satildeo necessariamente opostas mas a acusaccedilatildeo de Craig aponta para uma questatildeo essencial

Natildeo haacute nada de realidade ou pode-se dizer de vida real no boneco haacute apenas arte os

proacuteprios signos que constituem o boneco

Jaacute vimos que os signos abstratos do boneco podem estar localizados ao longo de um

continuum de representaccedilatildeo que abriga desde o imitativo ateacute o estilizado ateacute o conceitual de

acordo com a qualidade e a quantidade dos signos Quase todos os autores sobre teatro de

bonecos reconhece a importacircncia da qualidade e quantidade dos signos ldquoUm boneco deve ser

sempre mais que o seu complemento vivente ndash mais simples mais triste mais perverso mais

flexiacutevel O boneco eacute uma essecircncia e uma ecircnfaserdquo (Baird 1965 15) ldquo[Bonecos] devem

326

condensar sintetizar tudo o que eacute essencial e caracteriacutestico nas diversas qualidades da

natureza humanardquo (Obraztsov 1967 [1965] 20) inumeraacuteveis citaccedilotildees como essas poderiam

ser mencionadas

Proschan destaca a quantidade limitada de signos no boneco por meio de uma analogia

uacutetil

Assim como uma palavra eacute abreviada por meio da retirada de certas letras e

a preservaccedilatildeo de apenas aquelas mais importantes assim os signos teatrais

usam apenas as marcas mais cruciais de seus referentes Entretanto

diferentemente das palavras a abreviaccedilatildeo de signos teatrais natildeo resultam

numa reduccedilatildeo de tamanho ou massa apenas uma reduccedilatildeo na densidade ou

quantidade de elementos (1983 38n)

O boneco entretanto faz mais que apenas reduzir a quantidade de signos pois as

ldquomarcas mais cruciaisrdquo que satildeo preservadas satildeo elas mesmas alteradas em quantidade devido

agrave limitaccedilatildeo de seu proacuteprio nuacutemero e aos exageros aos quais eles satildeo entatildeo sujeitados

Green e Pepicello oferecem um vislumbre para dentro da natureza particularmente

teatral dos signos do boneco

Quando bonecos ldquofalamrdquo eles [provavelmente] movem suas mandiacutebulas e

usualmente gesticulam mas tais comportamentos natildeo satildeo a fonte do som

Dessa forma embora tenhamos uma parte do processo da fala humana

manifestada no boneco este se constitui em natildeo mais que um signo para a

produccedilatildeo da fala Semelhantemente bonecos natildeo andam de fato satildeo

movidos pelo manipulador A movimentaccedilatildeo de uma aacuterea do palco ateacute outra

poderia ser realizada de modo bem mais simples e eficiente do que fazer

uma marionete imitar a locomoccedilatildeo humana Portanto o que ocorre natildeo eacute

uma logiacutestica simples A marionete apresenta um mero signo de animaccedilatildeo

(1983 153)

Essa anaacutelise pode parecer oacutebvia mas de fato conteacutem uma percepccedilatildeo importante os signos

dispostos pelo boneco satildeo tatildeo intencionais quanto podem ser signos teatrais sua intenccedilatildeo

seja ela percebida ou natildeo pelo artista marionetista eacute conduzir a plateacuteia a imaginar vida

enquanto percebe um objeto De fato ldquoo que ocorre natildeo eacute uma logiacutestica simplesrdquo os signos

de vida abstratos do boneco provocam o processo de visatildeo dupla

Mas enquanto o boneco eacute bastante intencional poderia ele ser considerado

inteiramente intencional Elam nota que no teatro de atores ldquoa plateacuteia inicia com a suposiccedilatildeo

de que cada detalhe eacute um sinal intencional e que o que natildeo puder ser relacionado agrave

representaccedilatildeo como tal seraacute convertido num sinal referente agrave vida real dos atores ndash isto natildeo eacute

em nenhum caso excluiacutedo da semioserdquo (1980 9) Em teatro de bonecos contudo natildeo haacute

atores vivos em direccedilatildeo aos quais se possam ser convertidos sinais natildeo relacionados agrave

representaccedilatildeo E assim Veltruskyacute sugere ldquoUm boneco que representa uma personagem possui

apenas as caracteriacutesticas fiacutesicas de uma pessoa real necessaacuterias para aquela situaccedilatildeo

327

dramaacutetica todos os componentes do boneco satildeo signos intencionaisrdquo (citado em Proschan

1983 15)

Este eacute em geral o desejo do artista marionetista mas Veltruskyacute exagera o caso Signos

natildeo intencionais seratildeo inevitavelmente misturados aos intencionais A execuccedilatildeo estrutural do

boneco jamais conseguiraacute superar totalmente a aridez do material do qual ele foi feito a

manipulaccedilatildeo que produz movimento jamais superaraacute os detalhes mecacircnicos do boneco em

operaccedilatildeo e as limitaccedilotildees fiacutesicas do(s) seu(s) operador(es) e a performance vocal estaraacute

sempre submetida agraves limitaccedilotildees vocais do emissor da voz do boneco

E pior que isso Mesmo que os signos do boneco sejam dispostos exatamente como o

desejado e sem quaisquer signos acidentais combinados a plateacuteia poderaacute perceber tais signos

de maneiras indesejaacuteveis Signos transmitem invariavelmente uma multiplicidade de

significados para aleacutem do controle do artista e nenhum artista poderaacute dar conta da amplitude

de significados que poderatildeo ser captados pela plateacuteia em resposta a quaisquer signos

apresentados E mais como vimos Proschan sugerir a plateacuteia deve natildeo apenas reconhecer os

signos dispostos mas tambeacutem preencher os espaccedilos em branco entre os signos ou sejadeve

adicionar aqueles signos que ficaram de fora na abreviaccedilatildeo Embora o artista deva dirigir essa

atividade de preenchimento ele ou ela natildeo tem como controlaacute-la O boneco eacute seguramente um

inteacuterprete tatildeo intencional quanto pode o teatro oferecer Mas natildeo eacute e natildeo pode ser

completamente intencional Se tal limitaccedilatildeo afasta o teatro de bonecos de alcanccedilar o status de

ciecircncia exata isso natildeo eacute mais que presumiacutevel uma vez que o teatro de bonecos eacute uma arte e

toda arte apresenta significados tanto intencionais quanto acidentais

Completar espaccedilos em branco eacute uma parte importante da performance do teatro de

bonecos Os signos dos bonecos nunca satildeo uma coleccedilatildeo completa de sinais de vida natildeo

importa quanto o boneco possa ser feito para imitaacute-la Espera-se que a plateacuteia complemente

de alguma maneira os signos dispostos para que possa imaginar o objeto como tendo vida Eacute

claro a plateacuteia possui o seu desejo psicoloacutegico de completar esses espaccedilos vazios para

outorgar ao boneco a sua ldquovidardquo Talvez uma razatildeo para a intensidade do envolvimento da

plateacuteia em espetaacuteculos de bonecos advenha desse papel desempenhado pela plateacuteia como co-

criador da performance Esse papel envolve a co-criaccedilatildeo da comeacutedia por meio de

contracenaccedilatildeo verbal como discute Proschan (1987 30-44) mas estende-se para aleacutem disso

para incluir a co-criaccedilatildeo de signos sugeridos e tambeacutem como jaacute pudemos observar da

ldquoconsciecircnciardquo para o boneco

Segundo Ivan Koacuteos um diretor e cenoacutegrafo do Teatro de Bonecos Estatal de

Budapeste

328

O mais importante na representaccedilatildeo visual da cena para o boneco eacute que ela

dispotildee algo que se dirige rumo agrave imaginaccedilatildeo do espectador sem concluir

esse processo Em um determinado momento a ideacuteia eacute deixada em aberto

para ser completada pelo espectador Tomemos um exemplo familiar

alguns dos bonecos natildeo tecircm bocas ainda que o espectador tenha a sensaccedilatildeo

de que em certos momentos apropriados o boneco sorria ou demonstre seus

sentimentos por meio de expressotildees faciais (citado em Gaacutel 1978 20)

Esse princiacutepio eacute operativo para todos os trecircs sistemas siacutegnicos do boneco eacute um

aspecto vital ainda que frequentemete ignorado em toda a performance do boneco

O entendimento de que o boneco eacute constituiacutedo por signos de trecircs sistemas particulares

foi criado como vimos na introduccedilatildeo seacuteculos atraacutes pelo poeta da corte do rei javanecircs

Airlangga E tal foi acolhido com grande vigor e isso natildeo eacute nada surpreendente por

estudiosos do campo da semiologia Cabe recordar que na definiccedilatildeo de Jurkowsky para o

teatro de bonecos o boneco eacute mencionado como sendo um ldquoobjeto que fala e representa [isto

eacute move-se]rdquo (1988 [1983] 79) Veltruskyacute tambeacutem dsicute os trecircs sistemas siacutegnicos e sugere

que os signos ldquotransmitem sentido por similaridaderdquo

O objeto inanimado eacute mais ou menos similar a um ser humano ou

antropomoacuterfico A accedilatildeo fiacutesica a ele imposta eacute mais ou menos similar agraves

accedilotildees ou comportamento do mesmo ser representado A apresentaccedilatildeo

vocal tambeacutem significa a apresentaccedilatildeo vocal do ser representado por meio de

similaridade [embora difira dos outros em ser real em si mesmo de modo

que] o signan e o signatum satildeo aqui essencialmente os mesmos alguns

distorcedores de voz usados em teatro de bonecos tendem a atenuar ou

suprimir essa caracteriacutestica (1983 71)

A relaccedilatildeo ldquomais ou menos similarrdquo do boneco com a vida eacute o que noacutes temos chamado

de as variaacuteveis qualidades e quantidades dos signos abstratos do boneco A caracterizaccedilatildeo de

Veltruskyacute do boneco como sendo um ldquoobjeto inanimadordquo eacute como pudemos ver infeliz e

carente de modificaccedilatildeo Ao usar os termos signan e signatum ele quer dizer que o sistema

siacutegnico da fala difere dos demais sistemas siacutegnicos no fato de que os signos de fala presente

satildeo enviadas pela proacutepria fala presente seja esta ou natildeo atribuiacuteda ao boneco

Green e Pepicello concordam que o sistema siacutegnico da fala eacute diferente Eles

escreveram que ldquocanais satildeo sistemas que consistem de uma fonte de mensagem um meio

de transmissatildeo (para os nossos propoacutesitos tanto visual quanto auditivo) e um receptorrdquo

(1983 147) Eles entatildeo assinalam que para o canal visual ldquoum esquema cineacutetico em escala

reduzida cria um coacutedigo convencional por meio da centralizando da atenccedilatildeo numa

quantidade selecionada de movimentos realizados pela figura animadardquo e tambeacutem que ldquoum

segundo coacutedigo funcionando no canal visual eacute a aparecircncia fiacutesica do proacuteprio bonecordquo (1983

329

151) ou seja eles indicam aquilo que este estudo tecircm chamado de os sistemas siacutegnicos de

movimento e forma Dentro do canal da audiccedilatildeo eles apontam ldquoum sistema de fala

simplificado ou reduzido em escalardquo (1983 148) Para Green e Pepicello os sistema da fala

difere dos outros na ordem em que este faz uso de canais de transmissatildeo separados

As diferenccedilas existentes e a importacircncia relativa dos sistemas siacutegnicos de movimento e

fala satildeo temas de discussotildees substanciais Como temos visto muitos artistas tais como

McPharlin Obraztsov e Baird seguem Duranty na afirmaccedilatildeo de que ldquoo que os bonecos

fazem domina inteiramente o que eles falamrdquo (citado em Veltruskyacute 1983 97) enquanto que

muitos estudiosos como Jurkowski e Veltruskyacute seguem Magnin na afirmaccedilatildeo de que ldquoa

separaccedilatildeo entre palavra e accedilatildeo eacute precisamente o que constitui a apresentaccedilatildeo do bonecordquo

(citado em Proschan 1983 20) As diferenccedilas existentes e a relativa importacircncia desses

sistemas de signos seratildeo abordadas mais adiante nesse capiacutetulo

Segue uma tabela que correlaciona trecircs pontos baacutesicos no continuum da representaccedilatildeo

siacutegnica com os trecircs sistemas de signos do boneco sob cada um dos sistemas de signos estatildeo

listados as variaacuteveis principais que operam as variaccedilotildees de qualidade e quantidade dos signos

representativos Todos os termos empregados nessa tabela seratildeo explicados em nossa anaacutelise

particulares dos sistemas de signos

Forma

Movimento Fala

Imitativo

Figurativo Com o boneco Personagem

Estilizado

Seleccedilatildeo

Exagero

Apesar do boneco Caricatura

Conceitual

Natildeo figurativo

Operador presente

Contra o boneco Voz modificada

Falante presente

Variaacuteveis Atributos fiacutesicos

Tamanho

Materiais

Presenccedila do operador

Mecacircnica de controle

Pontos de controle

Pontos de articulaccedilatildeo

LuzCenografia

Paralinguacuteistica

DialetoLinguagem

Modificaccedilatildeo vocal

Presenccedila do falante

Os trecircs pontos relacionados no continuum da representaccedilatildeo dos signos natildeo satildeo mais

que seus pontos finais e um ponto em seu meio Dados os quase infinitos nuacutemeros e permutas

possiacuteveis para as variaacuteveis em cada sistema de signos e dada a natureza sineacutergica de tais

330

permutas seria impossiacutevel localizar com total precisatildeo a localizaccedilatildeo de cada signo em meio

ao continuum Mas a tabela nos ajudaraacute a atribuir localizaccedilotildees geneacutericas aos signos e

compreender a forma como tal atribuiccedilatildeo pode ser feita

Deve ser notado que parece natildeo haver precedentes de tal tabulaccedilatildeo dos sistemas de

signos do boneco assim sendo nosso esforccedilo deve ser considerado nada mais que um esforccedilo

experimental de organizar a discussatildeo acerca dos signos do boneco

Deve tambeacutem ser registrado que questotildees diacrocircnicas seratildeo inevitavelmente

atravessadas por esta discussatildeo dos signos Por exemplo a presenccedila em cena dos operadores

dos bonecos no Bunraku produzem significados diferentes em plateacuteias japonesas e natildeo-

japonesas Ou para apresentar a questatildeo de outra maneira a existecircncia de determinadas

convenccedilotildees de apresentaccedilatildeo projetam percepccedilotildees variadas do boneco em plateacuteias diferentes

Natildeo deve haver duacutevidas de que convenccedilotildees de apresentaccedilatildeo determinadas satildeo um aspecto

importante para a arte do boneco e isso precisa ser afirmado em qualquer discurso diacrocircnico

Um dos propoacutesitos do discurso sincrocircnico que sucede eacute desenvolver um meio de se identificar

tais convenccedilotildees para a discussatildeo diacrocircnica Para este estudo eacute tarefa suficiente identificar e

discutir a amplitude das possibilidades para a significaccedilatildeo do boneco

O SISTEMA DE SIGNOS DA FORMA

Os signos de forma para o boneco satildeo ou podem ser dispostos intencionalmente de

modo tal que natildeo haja nada que o compare com o teatro vivente Como pudemos ver os

signos podem ser inteiramente inanimados em natureza uma mistura de animados e

inanimados ou inteiramente animados Batchelder escreve

[O artista] pode dar [ao boneco] toda a graccedila ou dignidade ou distorccedilatildeo ou

feiuacutera que a peccedila solicite Ele seleciona as caracteriacutesticas fiacutesicas que sejam

essenciais a uma determinada personagem e o expressa com simplicidade e

forccedila Ele natildeo eacute atrapalhado pelas limitaccedilotildees da anatomia humana

Ademais ele natildeo se encontra confinado agrave representaccedilatildeo de seres humanos

(1947 281)

Nossa preocupaccedilatildeo aqui natildeo eacute a de discutir todas as escolhas que os artistas podem

fazer para construir bonecos antes eacute a de apontar as variaacuteveis mais importantes nas formas

dos bonecos e descrever como estas satildeo empregadas para criar signos abstratos de vida Tais

variaacuteveis incluem feiccedilotildees e tamanhos de bonecos o material fiacutesico apresentado para a plateacuteia

e a presenccedila ou ausecircncia sobre o palco de seu(s) operador(es)

As feiccedilotildees do boneco satildeo detalhes anatocircmicos tais como olhos nariz boca e

membros tanto quanto eacute a forma geral do boneco Diversas tradiccedilotildees ditam a quantidade e a

331

qualidade dos sinais de aparecircncia dos bonecos Em nosso exemplo japonecircs ldquohaacute

aproximadamente quarenta diferentes tipos de cabeccedila mais comuns e algo em torno de trinta

formas especiaisrdquo as diferenccedilas entre esses tipos dependem das caracteriacutesticas das feiccedilotildees

ldquohomem e mulher jovem velho e meia idade bom e maligno ndash cada um com seus detalhesrdquo

(Adachi 1985 87) Todas essas feiccedilotildees entretanto satildeo para a maior parte dos casos

igualmente representativas em qualidade e quantidade Ou seja todas as cabeccedilas de bonecos

possuem traccedilos de uma qualidade quase realiacutestica e todos eles possuem uma complementaccedilatildeo

completa das feiccedilotildees incluindo orelhas ainda que estas estejam quase sempre ocultas sob

perucas Ainda todos os bonecos possuem braccedilos em formatos realiacutesticos bonecos

masculinos possuem pernas em formato semelhante ao humano ao passo que os femininos

possuem roupas que ocultam a ausecircncia das pernas

Em nosso exemplo javanecircs haacute tambeacutem a determinaccedilatildeo tradicional da qualidade e

quantidade dos sinais de aparecircncia

As diversas centenas de figuras de homens deuses e ogres podem ser

classificadas e identificadas por meio de vinte e cinco formas fiacutesicas

Formato do corpo tipo de peacute formato de nariz formato de olhos e a

inclinaccedilatildeo da cabeccedila satildeo cinco dos mais cruciais De acordo com os textos

javaneses mais detalhados haacute treze diferentes formatos de olhos treze

formatos de nariz e dois ou trecircs diferentes formatos para o corpo o peacute e a

inclinaccedilatildeo da cabeccedila Esses tipos diferentes de atributos fiacutesicos podem ser

combinados em duacutezias de diferentes tipos de bonecos identificaacuteveis

(Brandon 1970 40-1)

Mais uma vez a aparecircncia de diversos bonecos satildeo na maioria dos casos igualmente

representativos em qualidade e quantidade Os atributos faciais satildeo muito estilizados em

qualidade com as formas dos olhos nariz e boca sendo substancialmente exageradas As

formas dos corpos e dos braccedilos tambeacutem satildeo exageradas a um niacutevel quase grotesco os corpos

tendem a ser tanto emaciados quanto inchados enquanto que os braccedilos em sua extensatildeo

maacutexima podem exceder a altura da figura inteira (Malkin 1977 108-9) A variedade de

caracteriacutesticas fiacutesicas para esses bonecos de sombra eacute substancial incluindo toda a gama de

formas faciais e de membros Deve-se notar o fato entretanto que grande parte dos bonecos

satildeo mostrados em perfil ao passo que todos os quatro membros estatildeo sempre visiacuteveis apenas

a metade de uma face ldquocheiardquo pode ser vista de cada vez

Os signos de aparecircncia no bunraku japonecircs satildeo de uma qualidade e quantidade

bastante aproximadas agraves dos homens vivos ao passo que os signos de aparecircncia dos bonecos

de sombra javaneses satildeo de uma qualidade e quantidade estilizados ambos satildeo ditados pela

tradiccedilatildeo Mas eacute claro tais signos natildeo poder ser tatildeo determinados e devem poder ser

332

livremente escolhidos para as apresentaccedilotildees Uma descriccedilatildeo de alguns bonecos da peccedila O

Mandarim Miraculoso do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste demonstra o modo pelo

qual bonecos com diferentes qualidade e quantidade de signos de aparecircncia podem ser usados

conjuntamente

Os rufiotildees natildeo possuem rostos Seus toacuteraxes convexos se pronunciam como

os abdomes de grandes insetos A face da menina eacute igualmente vazia sua

aparecircncia de boneca eacute enfatizada pela ausecircncia de olhos nariz ou boca nada

aleacutem de um oval liso estaacute ali Sua personalidade pode ser percebida pelos

movimentos sedutores de seus membros pernas finas e longas e braccedilos

convidativos Quando o Mandarim aparece daacute a impressatildeo de ser a mais

humana entre as figuras estranhamente maacutegico como eacute O Mandarim possui

um rosto Possui feiccedilotildees humanas Entre os sem rosto socado como uma

massa informe ele representa a humanidade (Gal 1978 28)

Nessa produccedilatildeo os rufiotildees e a menina possuem aparecircncias altamente estilizadas as

qualidades exageradas dos formatos de seus corpos denotam as suas naturezas esta qualidade

eacute aumentada pela ausecircncia a total falta em quantidade de elementos faciais O Mandarim

pelo contraste assinalado tem uma aparecircncia quase realiacutestica na qualidade e quantidade de

seus atributos faciais O efeito produzido por tal contraste natildeo deve ser subestimado Por meio

da apresentaccedilatildeo de signos de fisionomia variados os personagens se distinguem

profundamente

Natildeo parece haver nenhuma grande tradiccedilatildeo na Euraacutesia que se apoacuteie regularmente em

feiccedilotildees natildeo realista para o boneco Malkin nos conta entretanto que ldquoBonecos africanos

usualmente guardam pequena semelhanccedila com os conceitos ocidentais de como um boneco

deve aparentarrdquo (1977 71) isso sugere que signos de aparecircncia natildeo realista natildeo devem ser

incomuns nas tradiccedilotildees africanas E eacute claro satildeo bastante comuns em diversas produccedilotildees

contemporacircneas

Indo para outra produccedilatildeo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste aprendemos que

ldquoos personagens em Aventuras satildeo [representados por] objetos Satildeo eles um terno num

cabide um guarda chuva um chapeacuteu de uniforme uma peruca feminina e um chapeacuteu estolas

golas de pelo e daiacute em diante Desses objetos a tragicomeacutedia humana a peccedila filosoacutefica

evoluirdquo (Gal 1978 40) Os signos de aparecircncia dos bonecos dos personagens representados

um homem uma mulher satildeo sujeitados a um processo radical de seleccedilatildeo tudo o que resta eacute o

que parece ser elementos de seus figurinos e adereccedilos Ainda assim tais elementos

combinam com o auxiacutelio vital de movimentos e falas para criar personagens Os signos de

aparecircncia desses bonecos satildeo distantes do realiacutestico a ponto de fazer com que os bonecos

sejam irreconheciacuteveis fora da apresentaccedilatildeo como bonecos

333

Enquanto que os signos de aparecircncia em Aventuras satildeo sujeitados a uma seleccedilatildeo

radical os signos que permanecem natildeo passam por um processo de exagero igualmente

radical o terno a peruca e por aiacute adiante satildeo claramente aquilo que satildeo O processo de

metoniacutemia a representaccedilatildeo de algo por um ou mais de seus atributos eacute certamente embora

natildeo exclusivamente parte dessa representaccedilatildeo

Signos de aparecircncia entretanto podem tambeacutem ser feitos natildeo realiacutesticos por meio de

exagero radical no qual um processo metafoacuterico toma o lugar do processo metoniacutemico Bill

Baird tem para um sketch de ficccedilatildeo cientiacutefica um personagem boneco chamado Crutchface

(NT Cara de muleta) Eacute feito de quatro pedaccedilos de madeira um tem a forma de uma banana

inflada com uma marca de mordida acima de sua parte inferior outra eacute um cilindro pequeno

com olhos negros em suas pontas que penetra a primeira parte logo acima de sua metade

projetando-se para fora em ambos os lados outros dois tecircm a forma de diapasotildees cujas

extremidades de uma haste tocam o chatildeo e cujas extremidades bifurcadas encaixam-se no

cilindro com os ldquoolhosrdquo sugerindo que esses diapasotildees sejam pernas (1965 219)

A seleccedilatildeo quantitativa de signos de aparecircncia estaacute presente aqui no fato de que

Crutchface natildeo possui torso nem braccedilos Mas mais importante eacute o exagero qualitativo e a

justaposiccedilatildeo dessas caracteriacutesticas que restam os formatos da cabeccedila e olhos satildeo exagerados

para aleacutem do grotesco e satildeo pouco mais que sugestotildees a conexatildeo das pernas aos olhos eacute

chocante e sugestiva de uma personalidade totalmente deformada Crutchface talvez seja um

nome muito rude para um boneco cujos signos de aparecircncia satildeo apresentados por meio de

exagero radical com tanta forccedila metafoacuterica

Os signos de aparecircncia na forma do boneco entatildeo transitam do imitativo ao estilizado

ao conceitual de acordo com os niacuteveis de sua aparente humanidade em qualidade e

quantidade se sua quantidade foi sujeita a algum grau de seleccedilatildeo e sua qualidade a alguns

exageros ou se a sua qualidade eou quantidade foram radicalmente alteradas para longe da

aparecircncia humana

A proacutexima variaacutevel da forma a ser considerada eacute a da dimensatildeo do boneco McPharlin

argumenta que ldquoo uacutenico momento em que o tamanho do boneco eacute relevante eacute quando [o

boneco eacute] propositalmente contrastado com a escala humanardquo (1938 75) Ainda que tal

contraste com a escala humana certamente apresente consequumlecircncias significativas McPharlin

estaacute errado ao afirmar que o signo da dimensatildeo do boneco eacute irrelevante para os demais casos

Uma compreensatildeo das consequumlecircncias do tamanho requer o reconhecimento de que os

signos de dimensatildeo trabalham de duas diferentes maneiras A primeira eacute quando o boneco

estaacute em contraste com o seu palco apropriado com seus cenaacuterios eou adereccedilos eou com

334

outros bonecos com os quais se apresenta isso pode ser chamado de o tamanho relativo do

boneco A plateacuteia distingue o boneco natildeo de acordo com uma noccedilatildeo humana de escala mas

num sentido relativo de acordo com a escala apresentada pela proacutepria apresentaccedilatildeo A

segunda maneira eacute quando o boneco eacute contrastado propositalmente ou natildeo com a escala

humana isto pode ser chamado o tamanho absoluto do boneco A plateacuteia percebe o boneco

num sentido absoluto como maior que o tamanho real aproximado ao tamanho real ou

menor

O tamanho relativo do boneco produz sentido no contraste com outros bonecos agrave sua

volta Esse signo natildeo eacute como jaacute vimos em McPharlin geralmente reconhecido pelos autores

de teatro de bonecos Batchelder aponta

Pessoas sem familiaridade com bonecos supreendem-se constantemente ao

descobrirem que as figuras que pareciam possuir tamanho real sobre o palco

satildeo de fato bem pequenas

Basicamente esta eacute simplesmente uma questatildeo do relacionamento entre o

boneco e o que o cerca mobiacutelia cenaacuterio e propriedades satildeo construiacutedas em

proporccedilatildeo com as figuras e assim o olho aceita a cena inteira como tendo

tamanho real mesmo que algo na escala humana seja eventualmente

introduzida na composiccedilatildeo (1947 284)

Batchelder refere-se aqui a uma ilusatildeo convencional em teatro de bonecos na qual

tudo sobre o palco incluindo o proacuteprio palco se encontra em escala uniformemente reduzida

Mas assim como McPharlin ela parece abstraiacuteda da possibilidade de se apresentar bonecos

crescidos juntamente com os pequenos ou de se apresentar bonecos de qualquer tamanho em

meio a cercanias em qualquer escala

Em nosso exemplo javanecircs os bonecos diferem substancialmente em tamanho entre

si Essa discrepacircncia relativa natildeo se daacute em funccedilatildeo de diferenccedilas de altura naturaliacutesticas ou

seja natildeo eacute uma questatildeo de pequenos bebecircs e adultos crescidos H Ulbritch um estudioso

alematildeo contemporacircneo aponta que em geral ldquoquanto maiores satildeo mais violenta eacute a sua

natureza Personagens espirituais satildeo finos e pequenos em tamanhordquo (1970 7)

Similarmente signos de dimensatildeo relativa satildeo apresentados na tradiccedilatildeo de bonecos de

Liegravege Nesse caso entretanto o tamanho relativo eacute empregado com uma hierarquia

convencional revertida

335

Figuras grandes [satildeo] mais fortes ou mais nobres que as menores Dessa

forma Carlos Magno deveria ter aproximadamente cinco peacutes de altura (NT

aproximadamente um metro e meio) ao passo que uma personagem menor

deveria ter menos de dezoito polegadas de altura (Malkin 1977 24-5)

O tamanho relativo dos bonecos nessas duas tradiccedilotildees eacute uma violaccedilatildeo intencional da

ilusatildeo convencional aludidas por McPharlin e Batchelder e eacute tudo menos inconsequumlente jaacute

que transmite por meio de um entendimento convencional informaccedilotildees vitais acerca das

personagens apresentadas

Signos de dimensatildeo relativa podem tambeacutem ser empregados para se estabelecer a

relaccedilatildeo do boneco com o que o cerca Obraztsov detalha tal uso em uma produccedilatildeo do Teatro

de Bonecos Central Estatal de Moscou

Queriacuteamos mostrar um vilarejo ucraniano no momento em que se encerra a

missa e os aldeotildees estatildeo indo para suas casas Nosso palco nessa cena

consistia em cinco planos horizontais em ascensatildeo gradual No primeiro

plano havia cabanas grandes imediatamente abaixo e no plano mais ao

fundo ficava uma pequena igreja

Para cada um [dos personagens] fizemos cinco tamanhos diferentes de

bonecos que variavam de tamanho entre quatro polegadas (aprox 10 cm) a

dois peacutes e seis (aprox 80 cm) Bonecos pequenos emergiam de dentro da

igreja saiacuteam em diversas direccedilotildees e desapareciam por traacutes de aacutervores e

cabanas Detraacutes das aacutervores bonecos maiores surgiam para o plano seguinte

e entatildeo ainda maiores e quando apareciam no primeiro plano estavam

substancialmente crescidos Dessa forma lidamos com perspectiva (1954

13-4)

O Pickwick Puppet Theatre de maneira similar usou bonecos de tamanhos relativos

em sua produccedilatildeo de 1980 Don Quixote dirigida por Kevin Moses Bonecos do heroacutei e de

Sancho Panccedila variavam entre 20 centiacutemetros e 24 metros de altura e eram em geral usados

para criar equivalentes a efeitos cinematograacuteficos de planos abertos e close-ups o menos dos

bonecos estando praticamente perdido em meio ao vasto horizonte do palco e os maiores

dominando o palco com suas presenccedilas dominadoras

O tamanho absoluto do boneco eacute um signo que natildeo apresenta significados pelo

contraste com o que cerca a figura ou com os demais bonecos mas intrinsecamente O

boneco de luva com sua estatura diminuta quase natildeo consegue evitar parecer encantador e

divertido Jaacute vimos que as associaccedilotildees metafoacutericas decorrentes do seu tamanho assemelhado

ao de um brinquedo podem produzir um impacto substancial sobre as plateacuteias Vimos

tambeacutem em nossas consideraccedilotildees do exemplo inglecircs como eacute permitido ao boneco de luva

Punch dizer e fazer coisas que seriam insuportaacuteveis no teatro vivente e que seriam

igualmente insuportaacuteveis se feitos e ditos por bonecos bem maiores em tamanho Isso pode se

336

dar porque Punch se encontra protegido natildeo apenas por seu status geral de boneco mas por

seu status particular de luva ndash ou seja pelo charme e ludicidade associadas a esse tamanho

absoluto

Reciprocamente o boneco maior que o ser vivo com sua estatura impressionante

dificilmente natildeo pareceraacute poderoso e agourento Vimos que as associaccedilotildees metafoacutericas

provocadas por seu tamanho oliacutempico pode ter a sua maneira de impactar uma plateacuteia Em

nosso exemplo norte americano The Enchanted Child apenas duas personagens satildeo

representadas por bonecos maiores que seres humanos a matildee da crianccedila e sua professora

ambas capazes de levar a crianccedila a um terror paroxiacutestico O Bread and Puppet Theatre usa

bonecos torres que se estendem ateacute 35 metros de altura Tais bonecos possuem ldquopoder

estatura e dignidade e [eles] predispotildeem [a companhia] a uma visatildeo sombria da existecircncia

humanardquo (Brecht 1988 1 304) Provavelmente esses bonecos predispotildeem a uma ldquovisatildeo

sombria da vidardquo precisamente devido agrave sugestatildeo de divindade impressionante associada a seu

tamanho absoluto

Os signos de dimensatildeo na forma do boneco natildeo satildeo tatildeo simples de serem

categorizados juntamente com o continuum da representaccedilatildeo como satildeo os signos de

aparecircncia Ainda que haja outras maneiras pelas quais podem ser apresentadas aleacutem das mais

usualmente reconheciacuteveis as escolhas oferecidas natildeo satildeo extensas como as dos signos de

aparecircncia Isto ocorre porque signos de dimensatildeo podem ser alterados apenas em termos de

qualidade para qualquer boneco natildeo pode haver reduccedilatildeo em sua quantidade pois o boneco

possui apenas um tamanho ainda que muitos bonecos possam ser usados para representar um

personagem em particular Pode-se sugerir entretanto que sempre que signos de dimensatildeo

satildeo transmitidos de modo a criar a ilusatildeo convencional do teatro de bonecos como referido

por McPharlin e Batchelder sua qualidade eacute realiacutestica e imitativa quando eacute relativa e

enfatiza relaccedilotildees estabelecidas entre os bonecos e o que o cerca sua qualidade se sujeita ao

exagero e agrave estilizaccedilatildeo e quando os signos satildeo absolutos e exagerados o bastante para

produzir sentido em sua radicalidade sua qualidade eacute irrealiacutestica e conceitual

A variaacutevel seguinte a ser considerada no sistema de signos de forma eacute a dos materiais

que o boneco apresenta ao puacuteblico Batchelder comenta ldquoSendo os bonecos criaturas

imaginadas pode-se ter liberdade nos materiais a partir dos quais satildeo construiacutedosrdquo Tal

liberdade encontra expressatildeo em trecircs maneiras diferentes os materiais podem ser escolhidos

por serem baratos porque satildeo faacuteceis para se trabalhar ou porque apresentam meios

comunicativos proacuteprios As duas primeiras maneiras natildeo nos dizem respeito aqui nossa

atenccedilatildeo repousa sobre as possibilidades de comunicaccedilatildeo dos signos de material

337

McPharlin cita uma lista de materiais para bonecos apresentada por E Gordon Craig ndash

ldquopapel cartatildeo couro zinco madeira tecido papier macheacute e gessordquo ndash aos quais adiciona

ldquodiversos sinteacuteticos modernos como madeira plaacutestica borracha em corte ou moldada

ceracircmica [bem como] outros materiais especiais [tais como] metal vidro pedra [e] fibrardquo

(1938 71-2) A essa lista jaacute extensa pode-se adicionar virtualmente qualquer material

conhecido pelo homem incluindo como jaacute vimos a proacutepria mateacuteria do operador do boneco

McPharlin prossegue afirmando que ldquoos materiais podem ser empregados devido agraves

suas proacuteprias qualidades visuais e taacuteteis [por exemplo] vidro cobre e plumas para

transparecircncia maleabilidade e leveza tambeacutem devido a adequaccedilatildeo agrave forma ou agraves qualidades

simboacutelicasrdquo (1938 73) A afirmaccedilatildeo eacute confirmada por Peacuteter Molnaacuter Gaacutel um construtor de

bonecos do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste ldquoO material escolhido deve possuir em

si mesmo algo para transmitir Pode afetar o espectador agrave sua proacutepria maneira e evocar

associaccedilotildees e sensaccedilotildees nos amantes da arterdquo (1978 17)

Devemos recordar que a produccedilatildeo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste de O

mandarim miraculoso havia rufiotildees cujos rostos eram feitos de couro sem feiccedilotildees O emprego

do couro na confecccedilatildeo desses rostos eacute algo tatildeo significante quanto a ausecircncia dos detalhes

faciais uma vez que o couro produziu uma sensaccedilatildeo de endurecimento Se os rostos sem

detalhes fossem recobertos por uma gaze branca as associaccedilotildees produzidas seriam

inteiramente diferentes O signo de material do couro eacute vital agrave forma e agrave caracterizaccedilatildeo dos

bonecos

O exerciacutecio de se imaginar bonecos familiares feitos de um material completamente

diferente demonstra a importacircncia de tais signos Uma das muitas razotildees para o sucesso dos

Muppets por exemplo parece ser o fato de que suas faces flexiacuteveis satildeo natildeo apenas capazes

de uma movimentaccedilatildeo expressiva mas tambeacutem bastante agradaacuteveis devido agrave suavidade que

transmitem Se personagens como digamos Bert and Enie (NT conhecidos na versatildeo

brasileira como Beto e Ecircnio) fossem feitos com exatamente as mesmas feiccedilotildees mas a partir

de um metal reluzente ou de couro ou mesmo de madeira o efeito produzido pelo signo de

material seria substancialmente diferente

Os signos de material do boneco podem ser embora nem sempre incluir o seu

figurino Adachi menciona um figurinista japonecircs ldquoNo Bunraku o boneco eacute o figurino o

figurino eacute a personagemrdquo (1985 119) Trata-se de um exagero pois como pudemos ver haacute

quarenta tipos diferentes de cabeccedila para bonecos de Bunraku cuidadosamente diferenciadas

por suas caracteriacutesticas Se o figurino fosse de fato a personagem natildeo haveria necessidade

de se elaboras as cabeccedilas dos bonecos Figurinos satildeo entretanto uma parte fundamental da

338

forma de muitos bonecos e as discussotildees mencionadas dos signos de material devem ser

feitas de modo a incluir os materiais de que satildeo feitos os figurinos dos bonecos

Os signos de material na forma do boneco natildeo satildeo tatildeo simples de serem categorizadas

juntamente com o continuum de representaccedilatildeo do que os signos de dimensatildeo Cada um dos

materiais mencionados e todos os que natildeo foram mencionados como bototildees que se usam

para fazer olhos zipers para bocas tecidos fios ou perucas para cabelos e aiacute por diante

possuem suas qualidades particulares Ainda que cada boneco apresente no miacutenimo um signo

de material a maioria deles apresenta mais que um ao se considerar tambeacutem a vestimenta do

boneco a quantidade de signos de material apresentados por qualquer boneco em particular se

tornar rapidamente extremamente numeroso de fato

Seria seguro sugerir entretanto que quando signos de material de uma maneira

relativamente discreta como ocorre usualmente com tecido madeira espuma e isopores eles

tendem na direccedilatildeo da ponta realiacutestica e imitativa da escala Similarmente quando os materiais

satildeo usados de modo a chamar certa atenccedilatildeo para o seu emprego como ocorre geralmente com

o couro fibras bototildees e zipers suas qualidades possuem um aspecto de auto-exagero e assim

tendem em direccedilatildeo agrave aacuterea de estilizaccedilatildeo da escala E quando os materiais satildeo usados de modo

a chamar a atenccedilatildeo para eles insistentemente como eacute o caso de materiais menos usados tais

como metais vidro e curiosamente partes de corpos vivos apontam na direccedilatildeo da ponta

irrealista e conceitual da escala

Antes de concluirmos nosso levantamento sobre as principais variaacuteveis de forma

parece uacutetil atentar para uma menos importante que as jaacute discutidas e que eacute um aspecto da

forma que poderiam natildeo ser considerada uma variaacutevel em si mas que pode vir a ter uma forte

influecircncia sobre a forma do boneco

A variaacutevel mencionada eacute precisamente a cor Em algumas tradiccedilotildees a cor da face ou

da roupa de um boneco pode trazer significados No teatro de sombras javanecircs ldquoa cor eacute um

indicativo importante de humor ou estado emocional Um boneco com um wanda (face ou

face e corpo) dourado transmite dignidade e calma ao passo que o preto pode querer dizer

raiva ou forccedila O vermelho indica tempestuosidade ou fuacuteria Juventude ou inocecircncia

podem ser passados por um rosto brancordquo (Brandon 1970 50)

Associaccedilotildees em geral de cores com emoccedilotildees tais como o vermelho com a fuacuteria satildeo

sem duacutevida quase universais Mas parece raro quando a cor eacute codificada no grau em que

ocorre no teatro de sombras javanecircs onde possui conotaccedilotildees mais especiacuteficas que geneacutericas

Na medida em que pode apresentar tais associaccedilotildees entretanto e na medida em que pode ser

sujeitada a certa codificaccedilatildeo a cor eacute outra ndash se natildeo universal ndash variaacutevel da forma do boneco

339

O aspecto de forma que natildeo seja uma variaacutevel em si mesma pode ser chamada de

transferecircncia uma vez que envolve a transferecircncia de caracteriacutesticas humanas agrave forma de um

animal Os Muppets satildeo talvez o mais famoso exemplo do que se apresenta Kermit o sapo e

Miss Piggy natildeo satildeo percebidos pela plateacuteia com maior ou menor seriedade do que o satildeo os

bonecos de forma humana Bert e Ernie Eacute como se Kermit e Piggy fossem pessoas que por

acaso satildeo animais

A transferecircncia simplifica ainda que enriqueccedila as caracterizaccedilotildees Simplifica ao

oferecer um conjunto de caracteriacutesticas facilmente reconheciacuteveis se Miss Piggy fosse

mostrada como um ser humano suas caracteriacutesticas principais de tola pretensatildeo necessitariam

de um desenvolvimento substancial mas ser pretensiosa e ser ao mesmo tempo uma porca eacute

uma tolice auto-evidente A transferecircncia enriquece a caracterizaccedilatildeo ao oferecer um contexto

facilmente reconheciacutevel Pelo fato de Kermit ser um sapo dotado de uma consciecircncia

agudamente humana ele tem a chance de refletir acerca da significado de ser um sapo ele

pode mesmo se comportar como um sapo sem com isso perder a simpatia da plateacuteia

Supreendentemente devido a grande difusatildeo de contos e faacutebulas envolvendo animais

a praacutetica de transferecircncia parece ser relativamente rara nas tradiccedilotildees de bonecos eurasianas

Deve-se notar que em tradiccedilotildees como a javanesa diversos deuses satildeo representados como

animais mas tal representaccedilatildeo surge da descriccedilatildeo de convencional de certos deuses em forma

animal e assim a transferecircncia decorrente natildeo se daacute como funccedilatildeo de uma escolha teatral O

desenvolvimento da transferecircncia no teatro de bonecos eacute uma questatildeo fascinante seria

inspirado pelos desenhos animados de Walt Disney com personagens tais como Mickey

Mouse e Donald Duck O que teria entatildeo inspirado Disney a literatura infantil vitoriana

Essa questatildeo se estende para aleacutem dos domiacutenios da esteacutetica dos bonecos teatrais e talvez seja

merecedora de uma pesquisa mais ampla

De qualquer maneira Jim Henson natildeo criou Kermit originalmente como um sapo mas

como ldquoalgo com um ar de lagartordquo que natildeo representaria claramente nenhum animal (Henson

Associates 1980 25) Trabalhando com o desenhista Don Sahlin ele comeccedilou a criar bonecos

que eram animais reconheciacuteveis e assim Kermit evoluiu para ser um sapo que permaneceu

ainda assim peculiarmente humano (Henson Associates 1980 8) Esse exemplo de

transferecircncia apresentado mais obviamente por Disney e pelos Muppets tem sido seguido com

regularidade tediosa por artistas menos originais e tem se tornado um prego para as

produccedilotildees americanas em teatro de animaccedilatildeo

John Glore numa resenha para o Festival Internacional de Teatro de Bonecos de

Washington D C em 1980 aponta

340

O teatro de bonecos gratifica nosso desejo antropocecircntrico de nos

encontrarmos em tudo Natildeo eacute coincidecircncia que bonecos habitualmente

tomem a forma de animais humanizados isso satisfaz dois dos impulsos

centrais da animaccedilatildeo de bonecos a personificaccedilatildeo de um animal mas

tambeacutem a animalizaccedilatildeo da humanidade onde o ser humano adquire a

inocecircncia animal e sua falta de auto-consciecircncia (1980 61)

Essa explicaccedilatildeo ainda que um tanto exasperada parece dar conta do apelo psicoloacutegico

da consciecircncia humana transferida a uma forma animal Deve ser indicado entretanto que a

mesma explicaccedilatildeo se aplica em iguais condiccedilotildees agrave maioria dos personagens animais em

desenhos animados e de fato agrave maioria dos animais em teatro mostrados com atores em

figurinos ou maacutescaras Assim isso se refere agrave praacutetica geral da transferecircncia mais do que

como essa praacutetica ocorre em teatro de bonecos

A transferecircncia pode tambeacutem ser usada para instilar caracteriacutesticas humanas a o que

satildeo no mundo real obviamente objetos Por exemplo em nosso exemplo norte-americano

um sofaacute e uma cadeira acolchoada encontram-se entre os personagens da oacutepera em certas

muacutesicas comportando-se da mesma maneira que os outros personagens fazendo o mesmo

com alguns movimentos tal como usando seus encostos para braccedilos como braccedilos de fato

executando um pas de deux exageradamente desajeitados A transferecircncia com objetos do

mundo real eacute menos comum do que com animais mas as possibilidades de simplificaccedilatildeo e

enriquecimento de personagens eacute similar

Chegamos enfim agrave uacuteltima e potencialmente mais significativa das variaacuteveis no

sistema de signos de forma para o boneco a presenccedila ou ausecircncia sobre a cena do(s)

perador(es) do boneco Esta eacute uma variaacutevel de forma pois pode produzir um impacto

profundo sobre a maneira como o boneco eacute visto Natildeo eacute uma variaacutevel de movimento porque

esteja o operador visualmente ausente ou presente o movimento dado ao boneco permanece

em geral inalterado

Batchelder nos informa

Praacuteticas relacionadas agrave ocultaccedilatildeo dos meios pelos quais os bonecos satildeo

controlados variam consideravelmente Alguns marionetistas satildeo cuidadosos

ao permitir ao miacutenimo possiacutevel a revelaccedilatildeo dos mecanismos mas outros

admitem francamente que os bonecos satildeo mecanicamente operados e satildeo

constantemente bem sucedidos em criar uma ilusatildeo dramaacutetica igualmente

poderosa (1947 185)

O meio mais oacutebvio de controle de bonecos que pode ser ocultado ou mostrado eacute a proacutepria

operaccedilatildeo do boneco E natildeo resta duacutevida de que praacuteticas de ausecircncia ou presenccedila do operador

variam enormemente

341

O signo da ausecircncia ou presenccedila do operador possui um impacto fundamental na

qualidade e quantidade dos signos de forma do boneco como um todo Quando o operador

estaacute ausente como em nos exemplos nigeriano e inglecircs a qualidade dos signos de forma dos

bonecos feito das variaacuteveis de feiccedilotildees dimensatildeo e materiais eacute apresentado agrave plateacuteia sem uma

mediaccedilatildeo visual a quantidade dos signos de forma limita-se agravequelas do proacuteprio boneco O

modo direto de tal apresentaccedilatildeo pode ser de extrema importacircncia em nosso exemplo

nigeriano se algum dos operadores permitisse mesmo que a mecacircnica da operaccedilatildeo fosse

revelada ldquotoda a companhia corria o risco de ser assassinada pelos espectadores No miacutenimo

o marionetista ofensor poderia ser mortordquo (Malkin 1977 66)

Quando o operador estaacute presente entretanto como em nossos exemplos dos Estados

Unidos da Iacutendia e do Japatildeo a qualidade dos signos de forma dos bonecos satildeo imediatamente

transformados assim como a quantidade dos signos de forma se expandem de modo a incluir

a presenccedila do operador Tal presenccedila altera a totalidade dos signos de forma apresentados em

cena e independentemente dos signos do boneco mostra uma forma total que eacute artificial em

qualidade e quantidade sendo conceitual pois que o conceito visual do boneco como boneco

encontra-se tensionado

Talvez o melhor exemplo da presenccedila transformadora do operador seja o bunraku

japonecircs Os bonecos em si mesmos apresentam signos de forma quase realiacutesticos em

qualidade e quantidade mas com a presenccedila de ateacute trecircs operadores para cada boneco a forma

geral eacute desviada do registro imitativo uma vez que nada que seja realmente realiacutestico pode ser

tatildeo obviamente controlado por outros Pode ser verdade que a justaposiccedilatildeo radical dos

bonecos quase realiacutesticos com a presenccedila totalmente artificial de seus operadores seja

responsaacutevel por parte do poder da apresentaccedilatildeo do bunraku os bonecos independentemente

de seus signos de forma de natureza imitativa tornam-se conceituais de uma forma que

compele a plateacuteia a considerar seus status ontoloacutegicos Como jaacute vimos Knott escreve sobre as

simultacircneas ldquoilusatildeo absolutardquo e ldquodestruiccedilatildeo absolutardquo dessa ilusatildeo no bunraku nas quais

ldquoteatro e metateatrordquo satildeo dispostos um contra o outro (1976 100)

Assim na operaccedilatildeo dos bonecos do bunraku os signos de forma satildeo levados aos

limites das representaccedilotildees tanto imitativa como conceitual provocando um processo de visatildeo

dupla talvez da maneira mais radical

O bunraku natildeo eacute o uacutenico teatro de bonecos que utiliza a presenccedila do operador sobre a

cena As apresentaccedilotildees solo de Bruce Schwartz um dos melhores artistas de teatro de

bonecos dos Estados Unidos dos uacuteltimos tempos e de Peter Arnott acontecem com os

operadoresvocalizadores sendo completamente vistos pela plateacuteia Shwartz entretanto diz

342

que ldquoeu mantenho os mecanismos agrave mostra porque eu natildeo quero que as pessoas prestem

atenccedilatildeo neles Minha teoria eacute que me ver movimentar os bonecos com as minhas matildeos iraacute

se tornar aborrecido ao cabo de certo tempo Nesse momento os bonecos ficaratildeo mais

interessantes que eurdquo (1983 106) Arnott comenta da mesma maneira que ldquoapoacutes os primeiros

segundos a plateacuteia se esquece da minha presenccedila e se concentra completamente na accedilatildeo [dos

bonecos]rdquo (1964 81) Se tais explicaccedilotildees forem consideradas livres de certa dissimulaccedilatildeo

entatildeo devem ser certamente consideradas ingecircnuas ao passo que a presenccedila do inteacuterprete

sobre o palco torna conceitual a totalidade da forma do boneco sua oacutebvia concentraccedilatildeo em

seus bonecos encoraja a plateacuteia a compactuar com as suas vidas imaginaacuterias De fato no caso

de Arnott com sua ecircnfase em produzir trageacutedias gregas sua presenccedila em cena pode ser

entendida como algo que empresta uma mensagem metatextual agrave apresentaccedilatildeo os bonecos

satildeo um tanto literalmente sob o controle de um ser maior se natildeo divino

Contrariamente a Arnott e Schwartz entatildeo natildeo parece que eles como operadores e

vocalizadores ldquotornam-se aborrecidosrdquo ou que a plateacuteia se esqueccedila deles melhor sua

presenccedila em cena deve ser reconhecida como um aspecto vital de suas apresentaccedilotildees em

geral

O SISTEMA DE SIGNOS DE MOVIMENTO

A maioria dos artistas de teatro de bonecos tecircm poucas duacutevidas sobre o fato de o

sistema de signos de movimento ser o mais importante dos trecircs sistemas de signos do boneco

Como pudemos ver tanto Baird quanto McPharlin definem o boneco primariamente em

termos de movimento Obraztsov declara sem deixar espaccedilo para incertezas

O boneco foi criado para ser moacutevel Apenas quando se move torna-se vivo e

apenas nas caracteriacutesticas dos seus movimentos ele adquire aquilo que

chamamos comportamento Eacute claro que o texto assumindo que haja um

possui enorme importacircncia mas se as palavras que um boneco diz natildeo

correspondem ao seu gestual elas divorciam-se do boneco e ficam

penduradas no ar (1950 125)

Veltruskyacute tece um comentaacuterio acerca do movimento do boneco que parece ser notaacutevel apenas

pelo fato de vir de um semioacutelogo

Os movimentos transmitidos pelos bonecos satildeo similares agravequeles dos seres

que representam Natildeo eacute uma questatildeo de ser uma formulaccedilatildeo mais ou menos

precisa um momento crucial da apresentaccedilatildeo do boneco estaacute em questatildeo

Os movimentos do boneco transmitem um significado de impulso interno

correspondente ao impulso que produz os movimentos dos seres vivos e

por contiguidade esse significado impliacutecito se reflete na proacutepria mente do

espectador tendendo assim atribuiacute-los uma vida proacutepria (1983 89)

343

Veltruskyacute estaacute correto em dizer que o movimento de representaccedilatildeo eacute um ldquomomento crucialrdquo

na apresentaccedilatildeo do boneco a maioria dos artista de teatro de bonecos entretanto diriam que

esse eacute o momento crucial

O argumento sobre a dominacircncia do movimento sobre tanto forma quanto fala

funciona da seguinte maneira A forma de um boneco pode ser radicalmente irrealiacutestica de

modo a apresentar-se ao puacuteblico com signos tatildeo pouco representativos de um dado

personagem a ponto de serem ininteligiacuteveis por si soacutes A jaacute mencionada Aventuras do Teatro

de Bonecos Estatal de Budapeste com suas roupas perucas e estolas eacute um exemplo de forma

irrealiacutestica Da mesma maneira a fala de um boneco pode ser radicalmente modificada ou o

boneco pode natildeo apresentar fala apresentando-se diante da plateia com signos tanto

ininteligiacuteveis como inexistentes exemplos de modificaccedilatildeo radical seratildeo oferecidos na

proacutexima sessatildeo exemplos de bonecos sem fala incluiriam toda a miacutemica com bonecos e

ballets para bonecos Mas o movimento geral do boneco deve ser inteligiacutevel como sendo o

movimento da personagem ou entatildeo a forma e a fala qualquer que seja a sua qualidade

representacional passaratildeo a ser nada aleacutem de plaacutestica e oratoacuteria

Haacute uma extensatildeo desse argumento que trata diretamente da importacircncia relativa de

movimento e fala Eacute atribuiacutedo ao objeto especiacutefico boneco um movimento direto por meio de

seu operador ou seja ele se move Pode tambeacutem ser atribuiacuteda uma fala ao objeto especiacutefico

boneco mas este pode nunca falar Assim o movimento eacute intrinsecamente mais importante

para o boneco do que a fala Este argumento parece ser justificado agrave luz do amplo estudo em

termos de apresentaccedilotildees praacuteticas feito por McPharlin ldquoQuando dois bonecos estatildeo em cena e

um deles fala este deve mover-se e o outro permanecer parado se natildeo o puacuteblico natildeo

conseguiraacute distinguir qual dos dois eacute o que falardquo (1938 81) Embora o movimento seja

usualmente significativo em si tambeacutem eacute significativo em termos de permitir a identificaccedilatildeo

do boneco que fala movimento demais atropela e oblitera o sistema de signos de fala mais

fraco

Nossa preocupaccedilatildeo nesta seccedilatildeo eacute a de explicar as maiores variaacuteveis do movimento do

boneco e descrever como satildeo empregados para gerar signos abstratos de vida ao longo do

continuum da representaccedilatildeo Esses variaacuteveis incluem a mecacircnica do controle os pontos de

controle e os pontos de articulaccedilatildeo do boneco aleacutem da luz e cenografia que podem permitir a

implicaccedilatildeo do movimento do boneco

As variaacuteveis do movimento operam de uma maneira diferente do que foi discutido na

seccedilatildeo anterior Laacute cada variaacutevel continha o que poderiacuteamos chamar de subsistema de signos

no interior do sistema mais amplo assim pudemos identificar subsistemas de signos tais

344

como feiccedilotildees tamanho e assim por diante As variaacuteveis neste sistema de signos [de

movimento] natildeo apresentam tais subsistemas Essa diferenccedila vem da natureza estaacutetica da

forma em oposiccedilatildeo agrave natureza dinacircmica do movimento Ao poasso que as variaacuteveis me forma

apresentam-se diretamente como signos de aparecircncia signos de dimensatildeo e aiacute por diante as

variaacuteveis do movimento natildeo apresentam signos proacuteprios Operam num niacutevel anterior agravequele

do signo pois produzem signos de movimento

As primeira trecircs variaacuteveis no sistema de signos de movimento a mecacircnica de controle

os pontos de controle e os pontos de articulaccedilatildeo do boneco satildeo todas intriacutensecas ao boneco e

geralmente se encontram subsumidas sob a ideacuteia de tipo do boneco como ocorre na

taxonomia objeto-controle McPharlin declara que ldquoo movimento do boneco pode ser

classificado como movimento de tipo e movimento de intensidade Cada tipo de boneco de

acordo com a sua articulaccedilatildeo e controle possui seu movimento caracteriacutestico E esse

movimento pode ser sereno ou violento realiacutestico ou abstratordquo (1938 81) Embora essa

definiccedilatildeo reconheccedila as variaacuteveis da mecacircnica de movimento e das articulaccedilotildees ela continua

limitada numa dependecircncia da caracteriacutesticas gerais de movimento dos tipos de bonecos

Como jaacute pudemos ver a verdadeira quantidade de tipos eacute um tanto incerta e mesmo em meio

a tipos estabelecidos signos de movimento podem diferir drasticamente Eacute impossiacutevel por

exemplo caracterizar o movimento do boneco de luva como simples e constantemente

violento Bonecos de luva satildeo de fato muito bons com movimento hiperativos mas podem

tambeacutem ser movimentados de uma forma cuidadosa e calculada Da mesma maneira eacute

impossiacutevel caracterizar o movimento da marionete como simples e constantemente sereno

Marionetes ao menos as de fio satildeo de fato muito boas para excecutar movimentos lentos e

graciosos mas tambeacutem podem ser balanccediladas e giradas com grande forccedila

Nosso propoacutesito em dividir a discussatildeo acerca de tipo de bonecos em trecircs variaacuteveis

intriacutensecas separadas eacute a de permitir uma descriccedilatildeo mais acurada e detalhada da maneira

como bonecos produzem signos de movimento Primeiramente mecacircnicas de controle satildeo os

meios pelos quais o operador exerce controle segundo pontos de controle satildeo aqueles lugares

no boneco a partir dos quais esse controle eacute exercido e terceiro pontos de articulaccedilatildeo satildeo os

pontos pelos quais os bonecos satildeo unidos de modo a permitir movimentos diferenciados de

suas partes Para se compreender como tais variaacuteveis operam seraacute melhor examinar alguns

dos principais tipos de bonecos

As mecacircnicas de controle para a marionete de fios tradicional do ocidente satildeo os fios

seguros pelo operador que suporta o boneco O movimento do boneco deriva das forccedilas em

oposiccedilatildeo da traccedilatildeo do operador sobre os fios contraposta agrave gravidade o movimento de um fio

345

produz cria para o boneco tanto um movimento de subida quanto um de descida ou um

movimento de pendulaccedilatildeo do boneco Movimento de subida e descida tal como o da matildeo de

um boneco serrando o ar ou uma cabeccedila movendo-se em assentimento geralemente eacute

produzida independente da extensatildeo do fio O operador puxa um fio com uma certa

velocidade e o movimento de ascensatildeo correspondente ocorre na velocidade aplicada

quando o operador relaxa a tensatildeo do fio o movimento de queda ocorre numavelocidade que

natildeo excede a aceleraccedilatildeo da gravidade

Para o movimento pendular tal qual o da matildeo de um boneco buscando um objeto em

algum lugar ou o balanccedilo executado pelas pernas para o movimento de caminhar a extensatildeo

do fio eacute algo importante de ser considerado McPharlin aponta que ldquoquanto maior o fio menor

o arco de movimento pendular em seu final e mais aparentemente humana seraacute a accedilatildeo de uma

figura com peso apropriadordquo (1938 85) Ou para se verificar a questatildeo de uma perspectiva

diferente quanto maior o fio mais lento e gracioso seraacute o movimento pendular resultante

Qualquer que seja o comprimento do fio o operador o puxa numa certa direccedilatildeo e parte o todo

o boneco inicia um movimento de balanccedilo Esse balanccedilo termina quando o seu potencial de

pendulaccedilatildeo se exaure ou quando o operador puxa o fio de volta ou quando a parte movida do

boneco eacute retida por atrito como nos passos realizados por uma marionete no ato de caminhar

As mecacircnicas de controle de fios operados por cima apresentam uma quantidade de

consequecircncias Por exemplo marionetes de fio possuem uma capacidade natural de voar uma

vez que a forccedila para cima exercida pelo operador sobre os fios consegue facilmente superar a

forccedila para baixo da gravidade Eles natildeo podem entretanto agarrar objetos pois embora suas

matildeos possam ser movidas juntamente elas natildeo podem ser movidas de modo a aplicar

pressatildeo essa limitaccedilatildeo pode entretanto ser solucionada ateacute certo ponto por meio do uso de

dispositivos tais como ganchos ou velcro Tambeacutem marionetes natildeo conseguem ldquocorrerrdquo

muito bem pois embora suas pernas consigam ser levantadas velozmente natildeo conseguem ser

descidas de volta ao solo numa velocidade que exceda aquela imposta pela aceleraccedilatildeo da

gravidade A uacutenica maneira de se fazer uma marionete ldquocorrerrdquo eacute esconder as pernas com uma

saia longa ou camisola ou abandonar toda a tentativa de produzir um movimento imitativo e

simplesmente transportaacute-la com o uso de tanto movimento de pernas quanto for possiacutevel

As mecacircnicas de movimento para o boneco de luva ocidental tradicional como o

Punch da apresentaccedilatildeo inglesa de nosso exemplo satildeo bem mais simples do que aquelas da

marionete de fios ele natildeo eacute mais que a matildeo e os dedos do operador sobre os quais se assenta

o boneco Em geral os movimentos do boneco de luva derivam diretamente do movimento da

matildeo e dos dedos do operador Natildeo haacute caacutelculos elaborados a serem feitos como ocorre com a

346

marionete de fios acerca de forccedilas de ascensatildeo e queda ou accedilatildeo pendular ou a distacircncia entre

o operador e o boneco O boneco de luva eacute como jaacute vimos anteriormente nada mais ou

menos que um figurino mais ou menos elaborado para a matildeo humana posicionada numa

postura ereta Essa intimidade da mecacircnica de controle oferece ao boneco de luva uma

resposta imediata ao controle que natildeo estaacute presente na marionete de fios permitindo-lhe o

movimento raacutepido e impetuoso geralmente percebido como sendo sua caracteriacutestica

primordial Natildeo se deve imaginar entretanto que o movimento do boneco de luva esteja

limitado a um humor oacutebvio na tradiccedilatildeo da proviacutencia de Fujian por exemplo o movimento do

boneco de luva pode alcanccedilar um niacutevel impressionante de estilizaccedilatildeo e precisatildeo com bonecos

apresentando combates em artes marciais com impressionante drama e detalhes (Stalberg

1984 33-34)

As consequecircncias da mecacircnica de controle do boneco de luva satildeo um tanto diferentes

daquelas da marionete de fios Por exemplo o boneco de luva eacute geralmente incapaz de voar

jaacute que a matildeo apenas consegue ser erguida ateacute o ponto em que a extremidade inferior comeccedila a

ser vista e abaixo dela o braccedilo do operador Mesmo que o operador esteja presente sobra a

cena com o boneco natildeo se consegue transmitir um sentido de vocirco devido agrave oacutebvia conexatildeo

mantida entre o boneco e o chatildeo por meio do braccedilo e do corpo do operador Uma rara

exceccedilatildeo estaacute na tradiccedilatildeo da proviacutencia de Fujian na qual os bonecos satildeo arremessados no ar e

pegos novamente ldquosem que haja quebra no ritmo dramaacuteticordquo (Stalberg 1984 34) mas esse

movimento espetacular difere grandemente da sustentaccedilatildeo em vocirco da qual a marionete eacute

capaz O boneco de luva pode facilmente agarrar objetos entretanto jaacute que o operador

consegue aplicar uma forccedila de pinccedila entre os braccedilos do boneco E o boneco de luva eacute o

boneco ldquocorredorrdquo por excelecircncia na maior parte dos casos suas pernas e peacutes simplesmentes

assumidas como estando abaixo da borda inferior da niacutevel da janela e ao boneco necessita-se

apenas aplicar uma um movimento de flexatildeo para cima e para baixo enquanto ele ldquocorrerdquo de

um lado ao outro do palco em outros casos ele ateacute pode ter pernas cujo movimento eacute dado

diretamente pela outra matildeo do operador

Os pontos de controle para a marionete de fios satildeo aqueles pontos onde os fios satildeo

presos ao boneco Em diversas marionetes ocidentais contemporacircneas os pontos de controle

incluiriam um cada lado da cabeccedila um em cada ombro um no final das costas assim como

um em cada matildeo e um em cada joelho ou peacute (Baird 1965 161) Os pontos de controle satildeo

importantes para determinar as possibilidades de movimento do boneco Por exemplo pontos

de controle dos lados da cabeccedila ao inveacutes de um ponto uacutenico no topo da cabeccedila permite que

347

essa gire para um lado e para outro bem como para cima e para baixo embora as mecacircnicas

de controle e articulaccedilatildeo do boneco permaneccedilam inalteradas

Eacute claro pode haver uma quantidade bem maior de pontos de controle para que haja

movimentos mais especializados Cada dedo pode por exemplo ser um ponto de controle em

uma marionete pianista Pode tambeacutem haver menos pontos de controle como pudemos ver

em nosso exemplo da Iacutendia no qual cada boneco possui apenas quatro ndash a cabeccedila o fim das

costas e as duas matildeos (Baird 1965 47)

Os pontos de controle para o boneco de luva satildeo aqueles nos quais se aplica a pressatildeo

dos dedos e da matildeo do operador sobre o boneco O boneco de luva convencional possui trecircs

desses pontos as extremidades dos braccedilos do boneco e sua cabeccedila Pelo exerciacutecio da pressatildeo

sobre esses trecircs pontos eacute que quase todo o movimento do boneco de luva eacute produzido

A quantidade de pontos de controle para o boneco de luva varia apenas ligeiramente

Um ponto adicional pode ser criado dobrando um ou dois dos dedos do operador sobre o peito

ou barriga do boneco isso eacute uacutetil para produzir o movimento especializado de um coraccedilatildeo

batendo ou de um feto chutando Qualquer um dos trecircs pontos de controle tradicionais pode

ser abandonado mas tudo o que isso faz eacute produzir um movimento de modo deformado

Marionetes ocidentais contemporacircneas geralmente possuem pontos de articulaccedilatildeo

referentes aos principais pontos de articulaccedilatildeo do corpo humano James Juvenal Hayes um

artista de animaccedilatildeo norte americano da primeira parte do seacuteculo [XX] acreditava que ldquoquinze

juntas satildeo o ideal elas estariam cada uma na extremidade do pescoccedilo nos ombros

cotovelos pulsos quadris joelhos e tornozelosrdquo (citado em McPaharlin 193879) Esses

pontos de articulaccedilatildeo satildeo tambeacutem importantes para determinar as possibilidades de

movimento do boneco Por exemplo pontos de articulaccedilatildeo nos quadris e joelhos em vez de

nos quadris apenas permitem um movimento especiacutefico das partes superior e inferior das

pernas assim como movimentos especiacuteficos das pernas como um todo embora a mecacircnica de

controle e os pontos de controle do boneco permaneccedilam inalterados

E eacute claro a quantidade de pontos de articulaccedilatildeo da marionete eacute variaacutevel A marinete

pianista sugerida acima solicitaria um ponto de articulaccedilatildeo na base de cada um dos dedos

Ao mesmo tempo haveraacute umas poucas como no caso do exemplo indiano para os

quais natildeo haveraacute pontos de articulaccedilatildeo nos cotovelos sendo que todo o braccedilo eacute ldquofeito de um

tecido estufado por uma substacircncia elaacutestica e fibrosardquo que permita um movimento de

curvatura mais generalizado (Malkin 1977 75)

Os pontos de articulaccedilatildeo dos bonecos de luva satildeo bem menos numerosos do que os do

boneco de fio ateacute o ponto em que a matildeo humana conteacutem suas articulaccedilotildees principais Assim

348

pontos de articulaccedilatildeo existem no pescoccedilo e nos ombros do boneco de luva onde os dedos do

operador satildeo articulados na junta que os conecta agrave palma e agrave cintura do boneco onde a matildeo

do operador eacute articulada ao pulso Essa uacuteltima articulaccedilatildeo eacute surpreendentemente expressiva

McPharlin aponta que o punho ldquopossui uma curvatura rotatoacuteria ampla para a frente e natildeo tatildeo

ampla para traacutes assim como a bacia humana Isso faz com que reverecircncia lavar roupa

balanccedilar um machado e outros movimentos de dobra a partir da cintura pareccedilam

particularmente vraisemblable quando feitos por um boneco de luvardquo (1938 89) Um ponto

de articulaccedilatildeo adicional pode ser criado em seu peito ou barriga como mencionado

anteriormente porque o corpo do boneco de luva eacute geralmente construiacutedo de um material

maleaacutevel E eacute claro qualquer desses pontos de articulaccedilatildeo pode natildeo ser usado

Esse exame das trecircs variaacuteveis intriacutensecas no boneco de fio e no boneco de luva sugere

o quanto essas trabalham em separado e conjuntamente em funccedilatildeo de gerar movimento

Quase todo o movimento do boneco eacute derivado dessas variaacuteveis e descritiacuteveis em termos

delas Deve-se recordar que em sua abordagem sobre os bonecos de sombra tradicionais Bill

Baird encontra diferenccedilas nas maneiras pelas quais as varas de controle satildeo conectadas aos

bonecos Vamos entatildeo concluir nossa anaacutelise sobre essas trecircs variaacuteveis intriacutensecas com um

exame dessas diferenccedilas com certo detalhamento

Tanto nos bonecos de sombra gregos e javaneses a mecacircnica de controle satildeo as varas

no primeiro usa-se em geral apenas uma vara com alguns bonecos podendo ser operados por

duas (Baird 1965 79) no segundo emprega-se em geral trecircs varas (Brandon 1970 51)

Portanto se formos pensar na taxonomia objeto-controle diriacuteamos que ainda que ambos

sejam bonecos de sombra satildeo tambeacutem bonecos de vara rdquoPor definiccedilatildeo a figura de sombra eacute

um boneco de varardquo (Batchelder 1947 xix) Seus movimentos entretanto satildeo distintamente

diferentes como nos diz Baird Essa diferenccedila surge da variaccedilatildeo na quantidade de varas

empregadas e dos diferentes pontos de controle e pontos de articulaccedilatildeo

O ponto de controle uacutenico do boneco de sombra grego eacute um orifiacutecio situado na parte

superior do corpo no qual a vara de suporte eacute inserida num acircngulo reto Afigura era

tradicionalmente pregada ao bastatildeo mas segundo Sotiris Spatharis o mais aclamado entre os

artistas gregos de Karaghioz em 1924 a arte foi ldquorevolucionadardquo pelo emprego de uma

dobradiccedila no lugar do prego ldquotornando possiacutevel agraves figuras mudar de direccedilatildeo e de focordquo (1976

[1960] 128) Essas dobradiccedilas uma em cada boneco satildeo geralmente localizadas ao topo da

parte traseira dos seus ombros sendo os bonecos apresentados em perfil com um golpe na

vara de controle o boneco eacute movido para uma certa distacircncia da tela girando sobre a

dobradiccedila de modo a virar-se para a outra direccedilatildeo Ainda que se use o prego ou a dobradiccedila

349

O operador precisa manter sempre firme a vara de controle durante a apresentaccedilatildeo Haacute um

segundo ponto de controle em alguns bonecos para um braccedilo ou um falo moacuteveis (Myrsiades

1988 28-29) Quando dois bonecos estatildeo em cena nenhum dos dois consegue ter uma

segunda vara sendo usada Ainda Spatharis nos informa que apesar de certos relatos

exagerados nenhum operador ldquopode segurar e manipular mais de dois bonecos por vezrdquo

(1976 [1960] 141)

Os pontos de controle dos bonecos de sombra javaneses diferem em muito Um ponto

extenso existe em toda a espinha do boneco a partir do qual a vara se fixa estendida ateacute aleacutem

da parte inferior do boneco onde eacute segura pelo operador o boneco pode ser facilmente virado

e pode tambeacutem ser mantido em cena por tempo indefinido com seu bastatildeo de suporte sendo

fixado num tronco de bananeira posicionado abaixo do niacutevel da cena liberando assim as matildeos

do operador Dois bastotildees adicionais conectam-se a pontos de controle situados nas matildeos dos

bonecos e podem ser deixados pendendo livremente Dessa forma uma seacuterie de bonecos

podem estar junto em cena em determinados momentos gesticulando uns para os outros

(Brandon 1970 51-63)

Os pontos de articulaccedilatildeo usados nas duas tradiccedilotildees de bonecos de sombra tambeacutem

diferem Para os bonecos gregos Malkin conta ldquotrecircs ou quatro juntasrdquo sendo ldquouma na cintura

uma segunda e terceira em cada joelho e uma quarta [para boneco com uma segunda vara]

em um dos cotovelosrdquo (1977 62) Como natildeo haacute pontos de controle abaixo da cintura os

pontos de articulaccedilatildeo na cintura e nos joelhos satildeo usados para dar uma qualidade de

ldquobalanccedilado livrerdquo ao ato de caminhar do boneco O ponto de articulaccedilatildeo no cotovelo se

existente permite uma flexatildeo simples da parte mais extrema do braccedilo

Na tradiccedilatildeo javanesa mesmo que ainda haja em geral apenas quatro pontos de

articulaccedilatildeo satildeo dedicados exclusivamente para permitir o movimento dos braccedilos do boneco

estando os pontos em cada ombro e cada cotovelo (Baird 1965 57) Como natildeo haacute pontos de

articulaccedilatildeo nas pernas os bonecos satildeo postos para ldquoandarrdquo com seus corpos inteiros por meio

de um movimento curto e aacutegil para cima e para baixa de diversas formas estilizadas Um vez

que um boneco eacute fixado em cena o operador pode fazecirc-lo ldquoamarrar [sua] faixa ajustar seu

arnecircs ou alisar [o seu] bigoderdquo e assim por diante de modo a demonstrar sua personalidade

(Brandon 1970 65) No decorrer da cena os pontos de articulaccedilatildeo permitem aos braccedilos uma

gesticulaccedilatildeo detalhada ldquotrazendo o braccedilo acentuadamente adiante do rostordquo para uma

saudaccedilatildeo ldquoerguendo o antebraccedilo acima dos ombrosrdquo em sinal de tristeza e assim por diante

350

(Brandon 1970 66) O movimento articulado pode ser limitado aos braccedilos mas com dois

pontos de articulaccedilatildeo em cada um deles a variedade de movimentos a eles concedidos eacute

superior agrave da sombra grega tanto em qualidade quanto em quantidade

Podemos concluir por meio desse exame que os teatros de sombras grego e javanecircs

apresentam possibilidades de movimentaccedilatildeo notavelmente diferentes vindas precisamente de

suas diferenccedilas em termos de pontos de controle e pontos de articulaccedilatildeo Nenhuma

categorizaccedilatildeo baseada em suas tradiccedilotildees histoacuterico-geograacuteficas ou classificaccedilatildeo de objeto e

controle de bonecos de sombra ou bonecos de vara poderiam apresentar seus distintos

atributos de movimentaccedilatildeo

Haacute ainda mais uma variaacutevel no movimento do boneco embora esta opere de uma

maneira completamente diferente das trecircs primeiras variaacuteveis natildeo sendo intriacutenseca ao boneco

mas extriacutenseca a ele iluminaccedilatildeo e cenografia podem ser usadas para produzir um movimento

ldquoimpliacutecitordquo ao boneco quando da ausecircncia de movimento de fato

McPharlin sugere que ldquoem seu movimento verdadeiro ou ilusoacuterio que confere ao

boneco animaccedilatildeo De fato quando a face do boneco se move em meio a zonas de luz e

sombra sua expressatildeo adquire certa mobilidaderdquo (1938 76 81) O movimento ilusoacuterio ou

impliacutecito das expressotildees faciais do boneco produzida pelo deslocamento do boneco por

zonas de luz e sombra podem tambeacutem ser produzidas com o boneco permanecendo estaacutetico

por meio do movimento da luz e da sombra

No teatro de sombras um dos movimentos baacutesico da silhueta ao menos em

apresentaccedilotildees que natildeo satildeo iluminadas por luz eleacutetrica deriva do movimento natildeo do boneco

mas da fonte luminosa Como em nosso exemplo javanecircs ldquoa projeccedilatildeo da sombra eacute niacutetida

apenas a uma distacircncia relativamente curta mas devido ao movimento e agrave oscilaccedilatildeo da chama

[da fonte luminosa] esta parece infundida com vidardquo (Brandon 1970 35) De fato a proacutepria

fonte de luz pode ser movida de um lugar a outro fazendo com que a sombra do boneco se

mova enquanto que este permanece estaacutetico novamente o movimento pode natildeo ser do

proacuteprio boneco mas implicado sobre ele Pode-se argumentar que tal movimento impliacutecito

estaacute visiacutevel apenas agravequeles posicionados do lado oposto da tela de projeccedilatildeo e assim

disponiacutevel apenas em teatro de sombras Mas assim como na sugestatildeo de McPharlin um

boneco sujeitado diretamente a uma luz moacutevel e oscilante em meio a campos alternados de

luz e sombra tambeacutem gera a implicaccedilatildeo de um movimento

351

Para dar um exemplo de movimento impliacutecito direcionemo-nos ateacute o centro de

visitantes da Temple Square em Salt Lake City Onde os Latter-Day Saints114

tem usado um

cenaacuterio com figuras imoacuteveis diante de um diorama para relatar as histoacuterias de sua religiatildeo

com um sistema de som em off com narraccedilotildees e vozes de personagens As diversas figuras satildeo

destacadas por luzes quando estatildeo ldquofalandordquo por meio do emprego de efeitos de iluminaccedilatildeo

sutis as expressotildees de suas faces parecem alterar-se e mesmo suas matildeo parecem gesticular

Ainda os proacuteprios dioramas satildeo em alguns casos moacuteveis e a mudanccedila em suas cenas de

fundo sugerem implicitamente o movimento das figuras no espaccedilo

Como pudemos ver quando tratamos da visatildeo dupla o teatro de bonecos eacute uma funccedilatildeo

da percepccedilatildeo e da imaginaccedilatildeo da audiecircncia o boneco natildeo necessita literalmente ser um

objeto e natildeo consegue literalmente estar vivo Da mesma maneira signos de movimento do

boneco natildeo precisam literalmente ser produzidos pelo movimento do proacuteprio boneco podem

ser produzidos externamente conferindo a sugestatildeo do movimento Qualquer que seja a

geraccedilatildeo literal do movimento este eacute percebido pela plateia como sendo como movimento do

boneco e tal como os signos abstratos do boneco em geral ajuda a provocar a imaginaccedilatildeo de

vida

Ainda permanece por ser demonstrado de que maneira os signos de movimento

gerados pela maioria das variaacuteveis trecircs intriacutensecas e uma extriacutenseca ao boneco localizam-se

no decorrer da apresentaccedilatildeo Na tabela apresentada anteriormente os trecircs estaacutegios de signos

representacionais foram caracterizados como sendo com a despeito de e contra o boneco

Signos de movimento feitos com o boneco satildeo signos para os quais a disposiccedilatildeo das trecircs

variaacuteveis intriacutensecas foram expressamente criadas esses signos fornecem uma qualidade de

representaccedilatildeo imitativa Signos de movimento feitos apesar do boneco satildeo signos para cuja

apresentaccedilatildeo as variaacuteveis intriacutensecas natildeo foram expressamente criadas mas para as quais satildeo

de alguma forma capazes tais signos fornecem uma qualidade de representaccedilatildeo convencional

e estilizada Signos de movimento feitos contra o boneco satildeo signos para cuja apresentaccedilatildeo as

variaacuteveis intriacutensecas possuem pouca ou nenhuma relevacircncia e para os quais a variaacutevel

extriacutenseca pode ser empregada para produzir movimento impliacutecito esses signos fornecem

uma qualidade de representaccedilatildeo conceitual Em todos esses casos a quantidade de signos de

movimento eacute simplesmente a soma do movimento produzido

Um exemplo de signos de movimento produzidos com o boneco eacute o nosso exemplo

japonecircs os bonecos apresentam signos detalhados de caminhada e gesticulaccedilatildeo e mesmo de

114

NT Santos dos Uacuteltimos Dias fieacuteis da igreja cristatilde restauracionista de mesmo nome tambeacutem conhecidos

como moacutermons ou moacutermones

352

ldquochorar respirar pesadamente costurar fumar e danccedilarrdquo (Adachi 1985 51) A qualidade e

quantidade desses signos satildeo produzidas pela mecacircnica de controle que satildeo varas curtas

geralmente com gatilhos para movimentos especializados e tambeacutem contato direto matildeo-para-

boneco pelos pontos de controle na base da cabeccedila as terminaccedilotildees dos braccedilos e os peacutes e

tambeacutem aqueles lugares operados pelos controles de gatilho tais como as sobrancelhas e os

dedos e pelos pontos de articulaccedilatildeo que espelham com muita precisatildeo as articulaccedilotildees do

corpo humano

Tal complexidade entretanto natildeo eacute necessaacuteria para se movimentar um boneco Stefan

Lenkish produtor de um teatro de bonecos na Romecircnia relata a sua descoberta que ldquose [o]

boneco apresenta um movimento particular com perfeiccedilatildeo o espectador adquire a impressatildeo

de que ele pode realizar qualquer movimento concebiacutevelrdquo (1967 [1965] 28) Simplicidade

pode ser tatildeo eficiente agrave sua maneira quanto a complexidade Um movimento feito no grau de

perfeiccedilatildeo que lhe permitiram as variaacuteveis intriacutensecas de movimento ndash tal como o aceno suave

de uma matildeo com o pulso flexionado e os dedos se abrindo ndash eacute suficiente para fazer a plateia

imaginar uma completa capacidade de movimentaccedilatildeo para o boneco

Simplicidade e complexidade podem tambeacutem estar engenhosamente entrelaccediladas

como neste exemplo dado por Obraztsov

Fazer um boneco que possa realizar todos os movimentos fiacutesicos do ser

humano eacute impossiacutevel Natildeo se pode por exemplo fazer um boneco que se

barbear-se tomar banho saltar a certa altura velejar danccedilar uma valsa e

fazer uma parada de matildeo O heroacutei de nossa peccedila Dois amores para noacutes

precisa fazer tudo isso ao longo da trama Foi por isso que precisamos fazer

uma seacuterie de bonecos que pareciam ser o mesmo mas com diferentes

estruturas anatocircmicas A impressatildeo do espectador eacute a de ter visto apenas um

boneco ao longo de toda a peccedila De fato haacute trinta deles (1954 13)

Um exemplo de signo de movimento feito a despeito do boneco pode ser encontrado

em nossa apresentaccedilatildeo de sombra javanesa Como vimos esses bonecos natildeo possuem pontos

de articulaccedilatildeo abaixo da cintura ainda assim eles ldquoandamrdquo para dentro e para fora da cena

Essa caminhada como pernas fixas e imoacuteveis eacute aceita por convenccedilatildeo uma vez que a forma de

construccedilatildeo do boneco natildeo permita nenhum tipo de caminhada que natildeo seja estilizada Apesar

disso os modos de andar de diversos personagens satildeo bastante caracteriacutesticos conferidos pelo

controle do operador sobre o suporte e as varas dos braccedilos Por exemplo ldquoArdjuna caminha

suavemente ao longo da tela sem movimentos verticais Ambos os braccedilos pendem para baixo

ou um dos dois balanccedila gentilmente Bima salta pela tela em duas ou trecircs voltas com o

antebraccedilo inclinado para traacutes e o braccedilo estendido para frente num gesto forterdquo (Brandon 1970

65)

353

Outro caso de signo de movimento feito apesar do boneco pode ser encontrado no

exemplo inglecircs do Punch Como vimos enquanto que o punho do operador permite uma

ampla articulaccedilatildeo na regiatildeo da cintura do boneco o mesmo natildeo pode ser dito dos dedos nos

braccedilos do boneco Os movimentos dos braccedilos do boneco derivam unicamente dos pontos de

articulaccedilatildeo em seus ombros e os braccedilos incapazes de dobrarem-se nos cotovelos estatildeo

sempre riacutegidos (McPharlin 1938 89) Esse movimento eacute estilizado e eacute aceito

convencionalmente como o movimento apropriado para o boneco de luva

Deve ser notado que signos de movimento feitos apesar do boneco devem manter em

sua estilizaccedilatildeo e convencionalismo uma certa consistecircncia de representaccedilatildeo Rose Soroky

num olhar geralmente superficial sobre a esteacutetica do boneco escreve ldquoA plateia natildeo consegue

criar empatia com um boneco cujos peacutes natildeo tocam o chatildeo ou cujos joelhos permanecem

dobrados durante a caminhadardquo (1982 6) De fato a plateia pode sim criar empatia mas

unicamente se a convenccedilatildeo for estabelecida e mantida de que nenhum peacute de boneco toque o

chatildeo ou se como ocorre na sombra javanesa os joelhos de todos os boneco estiverem

dobrados

Um exemplo de signos de movimento feitos apesar do boneco foi dado em nossa

discussatildeo sobre a produccedilatildeo de Salt Lake City na qual a iluminaccedilatildeo e o cenaacuterio produziam

movimentaccedilatildeo impliacutecita Mas o movimento feito apesar do boneco natildeo se limita a movimento

impliacutecito Este ocorre sempre que o boneco eacute tratado como sendo aquilo que a plateia entende

que ele seja

No teatro de sombras javanecircs

Personagens sobrenaturais podem ser aumentados em tamanho pelo

movimento de aproximar o boneco da fonte de luz Um efeito extremamente

belo eacute criado ao mover o boneco lentamente ateacute o limite da aacuterea de

apresentaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o descola da tela entatildeo o encostando

novamente A sombra se dissolve e desaparece no ar e entatildeo rematerializa-

se Um efeito especial eacute produzido quando uma figura eacute virada de modo a

encarar direccedilatildeo oposta parece que o personagem se comprime numa linha

fina e entatildeo se expande novamente (Brandon 1970 36)

Esses signos de movimento satildeo gerados em completa desconsideraccedilatildeo com a

articulaccedilatildeo do boneco A mecacircnica de controle e os pontos de controle estatildeo envolvidos

apenas no sentido em que permitem ao operador tratar o boneco como um objeto suscetiacutevel a

movimentaccedilatildeo geral Ainda que esses movimentos sejam especialmente agradaacuteveis e

provocativos

Em cenas de batalha na tradiccedilatildeo de Liegravege ldquosempre que uma figura grande

representando um general e seis ou sete figuras menores colidem geralmente no ar com

354

outro grupo similar a esse os participantes da plateia compreendiam estar testemunhando uma

batalha titacircnicardquo (Malkin 1977 25) O puacuteblico estava de fato presenciando bonecos sendo

movimentados como se fossem pouco mais que objetos para serem arremessados novamente

natildeo eacute necessaacuteria nenhuma articulaccedilatildeo para efetuar tal movimento e nenhum ponto de controle

em particular O que importa aqui eacute que o operadores tenham meios para jogar os bonecos

para dentro da luta

Movimento contra o boneco eacute relativamente raro mas demonstra o quanto os signos

de movimento assim como os signos de forma podem abranger todo o conjunto da

representaccedilatildeo provocando a visatildeo dupla de diversas maneiras

O SISTEMA DE SIGNOS DA FALA

A fala todos parecem concordar eacute diferente Noacutes jaacute pudemos ver como Veltruskyacute

sugere que o sistema de signos da fala difere dos outros porque nele ldquoos signans

[significantes] e os signatum [significados] satildeo existencialmente a mesma coisardquo (1983 71)

tambeacutem jaacute vimos como Green e Pepicello o localizam em seu proacuteprio canal ldquoauditivordquo

separado do canal ldquovisualrdquo ocupados por forma e movimento (1983 147) A significacircncia da

diferenccedila entre fala e movimento eacute entretanto mateacuteria de profunda discordacircncia Noacutes jaacute

vimos como Baird e McPharlin desconsideram inteiramente a fala em suas definiccedilotildees de

boneco e como Obraztsov espontaneamente desfaz-se do ldquotexto imaginando que haja algumrdquo

(1950 120) Agora devemos discutir de que forma alguns estudiosos vieram a considerar a

fala como sendo o mais importante entre os sistemas de signos do boneco

Samuel Foote um produtor e artista de teatro inglecircs do seacuteculo XIX conta uma histoacuteria

sobre o orador romano Livius Andronicus

Transmitindo um sentimento popular em uma de suas peccedilas [ele] foi tantas

vezes solicitado ao bis que um tanto exausto declarou-se incapaz de

qualquer outra repeticcedilatildeo a menos que um de seus aprendizes subisse ao

palco e experimentasse declamar a passagem sobre a qual ele [Livius]

tentaria gesticular Aqui senhores pela separaccedilatildeo da personagem tem-se

o boneco completamente (1812 150)

A peccedila contendo esta histoacuteria eacute atravessada por declaraccedilotildees acerca do teatro antigo muitas

delas natildeo menos memoraacuteveis Jurkowski comenta com um ar quase apologeacutetico ldquoDeixando-

se de lado o aspecto histoacuterico da declaraccedilatildeo de Foote devemos admitir que ele apontou para a

caracteriacutestica essencial do teatro de bonecosrdquo (1988 [1983] 74) Ele prossegue afirmando que

ldquoa separabilidade do objeto falando e a fonte fiacutesica da palavra eacute a qualidade distintiva do

teatro de bonecosrdquo (1988 [1983] 79)

355

Apesar da afirmaccedilatildeo de Jurkowski a declaraccedilatildeo de Foote parece exagerada a ponto de

soar tola Devemos de fato considerar Livius Andronicus com suas gesticulaccedilotildees de carne e

osso como sendo um boneco Obviamente ele natildeo eacute ele natildeo eacute um objeto no sentido

inanimado empregado por muitos autores inclusive Jurkowski tampouco eacute um ldquoobjetordquo no

sentido mais amplo usado neste estudo Ele eacute e isso eacute claro um homem vivo fazendo miacutemica

sobre a apresentaccedilatildeo de uma fala dita por outro

Jurkowski natildeo parece ter articulado uma argumentaccedilatildeo para a importacircncia singular da

separaccedilatildeo entre o ldquoobjeto falanterdquo e a ldquofonte fiacutesica da palavrardquo e eacute possiacutevel que ele de fato

natildeo quisesse ter dito o que disse Em outro artigo escreve ldquoEm qualquer teoria do teatro de

bonecos o fator mais importante eacute a relaccedilatildeo entre o bonequeiro e o bonecordquo (1988 [1979] 4)

Como jaacute pudemos ver sua proacutepria definiccedilatildeo de teatro de bonecos se esforccedila em destacar a

variabilidade desse relacionamento natildeo apenas para a fala mas tambeacutem para o movimento

Talvez inspirado por Foote ele tenha ido longe demais ao focalizar esse relacionamento

apenas em termos da fala

Veltruskyacute natildeo pretende ir tatildeo longe quanto Jurkowski faz ao proclamar a

predominacircncia da fala ldquoO signo [geral] produzido no teatro de bonecos nem contradiz

automaticamente a predominacircncia do componente verbal literaacuterio nem favorece tal

predominacircnciardquo (1983 97) Isto sua suficientemente imparcial mas no mesmo artigo

Veltruskyacute faz a sua proacutepria afirmativa singular sobre o poder da fala para o boneco No

ventriloquismo ele sugere

Eacute por meio de suas proacuteprias qualidades sonoras que a maneira de falar do

ventriacuteloquo ndash uma maneira velada ndash invoca a imagem do falante como

semelhante ao humano mas natildeo exatamente humano com a ajuda dessa

convenccedilatildeo esse falante assemelhado ao ser humano eacute percebido como sendo

um boneco Isso eacute verdadeiro mesmo quando o vocalizador estaacute soacute como no

caso da famosa apresentaccedilatildeo radiofocircnica de Peter Brough e seu boneco

Archie Andrews para a BBC nos anos 1950 Natildeo seria talvez muito forccedilada

a conclusatildeo de que a apresentaccedilatildeo estranhada de um ventriacuteloquo ou

marionetista com um modificador de voz transmita a imagem

correspondente do boneco de ventriacuteloquo ou do boneco em qualquer ocasiatildeo

(1983 103)

Se natildeo eacute de fato ldquomuito forccediladordquo entatildeo os signos do sistema da fala sozinhos seriam

necessaacuterios para constituir o boneco E se satildeo entatildeo certamente a fala seraacute o sistema de

signos mais importante do boneco Mas seria muito forccedilado Eacute provaacutevel que os ouvintes de

raacutedio de Peter Brough ou similarmente de Edgard Bergen nos Estados Unidos sabe por

meio de conhecimento anterior da existecircncia do boneco Archie Andrews ou Charlie

McCarthy e que a fala a eles atribuiacuteda por serem bonecos eacute decorrecircncia desse conhecimento

356

preacutevio e natildeo da simples apresentaccedilatildeo das falas Isto quer dizer a apresentaccedilatildeo da fala reforccedila

o conhecimento de que haacute um boneco que natildeo estaacute sendo visto mas natildeo constroacutei o boneco em

si Se os ouvintes de raacutedio natildeo soubesse que era o boneco quem estava ldquofalandordquo me parece

que simplesmente tomariam a fala como pertencente a uma determinada personagem E

assim apesar da sugestatildeo de Veltruskyacute signos de fala por si soacute natildeo podem ser considerados

com capazes de constituir um boneco

Mas ainda deve-se argumentar a natureza peculiar do sistema de signos de fala o

confere uma importacircncia arrebatadora para o teatro de bonecos Erik Kolaacuter sugere que ldquoo

material inanimado do boneco e a voz humana do manipuladorrdquo embora pareccedilam estar em

desacordo de fato ldquoconstitui-se numa unidade especiacutefica e dialeacutetica no teatro de bonecos a

siacutentese da voz viva e do boneco animadordquo (1964 68) Bogatyrev concorda com essa sugestatildeo

e prossegue afirmando que ldquoo boneco parece mais vivo quando seus movimentos estatildeo

combinados agrave voz humana Numa apresentaccedilatildeo em que o boneco faz apenas pantomima a

animaccedilatildeo da mateacuteria inerte do boneco sem a voz humana para acompanhaacute-lo natildeo eacute tatildeo

convincente para o espectadorrdquo (1983 [1973] 60) Kolaacuter e Bogatyrev parecem aceitar que a

fala do boneco soa mais ou menos humana em sua apresentaccedilatildeo e isto eacute diretamente atribuiacutedo

ao boneco Mesmo quando este eacute o caso como em nosso exemplo africano e em muito do

teatro de bonecos norte americano contemporacircneo essa ldquounidade dialeacuteticardquo conferida pela

fala eacute problemaacutetica Pode-se argumentar ao contraacuterio que a fala com sonoridade humana

atribuiacuteda ao boneco enfraquece a presunccedilatildeo de ldquovidardquo do boneco ao dispor um contraste

infeliz entre a artificialidade de sua forma e seu movimento

Aleacutem disso as pressuposiccedilotildees de Kolaacuter e Bogatyrev satildeo problemaacuteticas em sim

mesmas Em nossos exemplos indiano e inglecircs a fala do boneco eacute modificada de tal maneira

que apresenta poucas caracteriacutesticas da voz humana Em nosso exemplo japonecircs a fala de

todas as personagens eacute apresentada por um narrador visiacutevel ao passo que no exemplo norte

americano eacute apresentada por cantores postos agrave vista em ambos os casos esta eacute claramente

separada do boneco O relacionamento entre voz e boneco eacute bem mais complexo do que Kolaacuter

e Bogatyrev parecem compreender A queixa de Jurkowski contra o reducionismo sincrocircnico

certamente se aplica aqui

Mas permanece por ser dito que a fala eacute de fato diferente e de trecircs maneiras

Primeiro a uacutenica entre os trecircs sistemas de signos ela eacute de fato dispensaacutevel e usualmente

dispensada

Por exemplo em 1983 a Pandemonium Puppet Company apresentou um sketch

intitulado ldquoSapo e Blocosrdquo dirigido por Bart Roccoberton Jr Um sapo antropomoacuterfico em

357

nada semelhante a Kermit vem ao palco incauto acerca da plateia Ele varre o espaccedilo da cena

que foi generosamente sujo com talco de bebecirc ao ponto em que tudo se transforma numa

tempestade de areia a plateia ri e o sapo se conta de que natildeo estaacute soacute Embora a plateia espere

que o sapo fale algo ele prossegue em silecircncio Ele se curva em agradecimento demonstra

frustraccedilatildeo diante da resposta pouco calorosa que recebe e curva-se novamente para uma

recepccedilatildeo melhor Enquanto prossegue brincando com a plateia um bloco de montar desliza

para dentro da cena fazendo o sapo tropeccedilar nele e continuar a varrer Move o bloco de lado e

continua o seu trabalho o bloco desliza para traacutes dele e o faz mais uma vez tropeccedilar

O sketch continua em silecircncio com dois blocos adicionais surgindo eventualmente

por uma duraccedilatildeo de cinco minutos Eacute bastante provaacutevel que que a tensatildeo criada pelo silencio

do sapo seja um fator importante no sucesso da peccedila pois a ausecircncia de fala deixa a plateia

atentamente presa a cada movimento uma contraccedilatildeo de sua cabeccedila ou encolhimento de

ombros comunica sua personalidade mais claramente que qualquer texto falado

Um sketch dessa natureza natildeo se daacute sem as suas limitaccedilotildees mais especialmente a

falta de fala eacute difiacutecil de ser mantida sem a tensatildeo criada podendo dissipar-se em frustraccedilatildeo da

plateia Jiřiacute Trnka um cineasta Tcheco que empregava bonecos para obter belos efeitos sem

que haja nenhuma fala dos bonecos em seus primeiros filmes mas eventualmente encontrava

algum valor no recurso

Apoacutes as experiecircncias [de Trnka] enquanto filmava Antigas Lendas Tchecas

para as quais [poucas falas de bonecos] conferiram um efeito poderoso ele

natildeo pode resistir agrave tentaccedilatildeo de desenvolver isso aleacutem Ele agora se dava

conta de que precisava fazer seus bonecos falar de modo a provocar uma

vida nova a eles Anteriormente a esse filme ele usava palavras com muita

precauccedilatildeo Em Antigas Lendas Tchecas ele as usou de uma maneira

muito mais complicada e exigente Um monoacutelogo respeitaacutevel introduzido

sob a forma de um comentaacuterio exterior produziu um impacto consideraacutevel e

adicionado a isso os bonecos falavam diversas vezes Isso levou Trnka a

apenas um pequeno [passo] da expansatildeo ateacute mais diaacutelogos com toda a

atraccedilatildeo adicionada de uma caracterizaccedilatildeo mais completa e reacuteplicas

divertidas (Boceck 1963 191)

A fala do boneco pode certamente oferecer ldquouma caracterizaccedilatildeo mais completa e reacuteplicas

divertidasrdquo assim como a expressatildeo de diaacutelogos literaacuterios e profundos Mas claramente o que

quer que isso venha a adicionar agrave apresentaccedilatildeo do boneco ela natildeo eacute de forma alguma

necessaacuteria Dessa forma eacute impossiacutevel concordar com quem afirma que a fala eacute de qualquer

forma ldquoo traccedilo distintivo do teatro de bonecosrdquo

A segunda mameira pela qual a fala se diferencia dos outros sistemas de signos eacute que

esta pode ser apresentada automaticamente sem afetar a sensaccedilatildeo da plateia com objeto

percebido e vida imaginada Isso eacute feito mais comumente com frequecircncia crescente nos

358

Estados Unidos por meio da fita gravada com a trilha sonora em correspondecircncia com a

apresentaccedilatildeo fiacutesica dos bonecos Natildeo precisamos discutir em profundidade o efeito esteacutetico

do emprego de ldquodiaacutelogos enlatadosrdquo basta dizer que por um lado a produccedilatildeo ganha uma

certa regularidade de uma performance vocal competente na qual efeitos sonoros e trilha

musical podem estar perfeitamente integrados ao passo que por outro lado toda a

espontaneidade da apresentaccedilatildeo eacute perdida para o ritmo constante da gravaccedilatildeo

Essa questatildeo do diaacutelogo preacute-gravado torna-se especialmente interessante na medida

em que poderia fazer parecer a fala algo semelhante ao controle mecacircnico ou eletrocircnico de

movimentos Como jaacute vimos para o primeiro caso preferimos chamar a figura teatral

movimentada mecanicamente de autocircmato em vez de boneco Ainda assim o diaacutelogo

gravado previamente natildeo parece levantar questotildees de importacircncia semelhante na medida em

que ningueacutem que haja escrito sobre teatro de bonecos jamais sugeriu que seu emprego renda agrave

figura teatral tiacutetulo diferente do de boneco ainda que muitos deplorem essa praacutetica devido agrave

falta de espontaneidade que provoca Pode-se atribuir isso a apenas ais uma das maneiras

pelas quais a fala do boneco eacute ao menos tacitamente considerada de menor importacircncia que

seu movimento

A terceira forma pela qual a fala difere dos demais sistemas de signos eacute aquela notada

por Veltruskyacute Bogatyrev Green Pepicello e outros que a determina como mais apoiada na

vida real do que as demais fazendo com que a produccedilatildeo de uma voz humana geralmente

signifique uma voz humana Como foi sugerido anteriormente essa diferenccedila pode trabalhar a

favor ou em detrimento da apresentaccedilatildeo do boneco mas o artista de teatro de bonecos que

ignora essa questatildeo corre o risco de lidar com uma grande inconsistecircncia na maneira como os

signos satildeo apresentados Tratando de suas falhas anteriores na maneira de apresentar a fala

dos seus bonecos Obraztsov aponta ldquoEu [deveria ter] compreendido que esta natildeo eacute uma

questatildeo apenas da voz mas das necessidades das emoccedilotildees [e da voz] do ator em coincidir

com as do boneco e ateacute mesmo com as suas dimensotildeesrdquo (1950 119)

Esta terceira diferenccedila se encontra no verdadeiro centro do sistema de signos da fala e

as variaacuteveis do sistema de signos todas se referem a encontrar meios pelos quais a fala do

boneco possa coincidir com a forma e a movimentaccedilatildeo do boneco de modo apropriado A

maior parte das variaacuteveis desse sistema de signos satildeo caracteriacutesticas paralinguiacutesticas

dialetolinguagem modificaccedilatildeo vocal e a presenccedila ou ausecircncia sobre a cena do vocalizador

Essas variaacuteveis podem atuar como signos proacuteprios como no caso das variaacuteveis do sistema de

signos da forma ou como produtores de signos como as variaacuteveis do sistema de signos de

movimento

359

A primeira variaacutevel envolve caracteriacutesticas paralinguiacutesticas ou alternadamente

caracteriacutesticas de suprassegmental Elam define essas como sendo ldquocaracteriacutesticas vocais com

[as quais] o falante dota [a fala] para aleacutem e acima da sua estrutura fonecircmica e sintaacuteticardquo

(1980 79) Apoiando sua discussatildeo no trabalho de muitos linguistas Elam isola os elementos

de ldquovolume amplitude timbre raio inflexatildeo ritmo e enunciaccedilatildeordquo (1980 81) Como satildeo

empregadas em teatro de bonecos as combinaccedilotildees mais comuns das caracteriacutesticas

paralinguiacutesticas oferece um caminho de estereotipia vocal capaz de sugerir particularidades de

personalidade para personagens diversos ao mesmo tempo em que permite uma faacutecil

compreensatildeo da diferenccedilas entre esses personagens Essas combinaccedilotildees de caracteriacutesticas

paralinguiacutesticas podem ser dispostas de uma maneira que se aproxima da fala normal das

personagens apresentando signos de fala que satildeo imitativos tanto em qualidade quanto em

quantidade ou podem ser dispostos de uma maneira que resulte numa caricatura da fala

normal apresentando signos de fala estilizados em qualidade e quantidade

O uso de caracteriacutesticas paralinguiacutesticas para a caracterizaccedilatildeo de falas normais em

personagens solicita pouca discussatildeo Cada pessoa possui seus atributos vocais especiacuteficos

no teatro de bonecos elementos paralinguiacutesticos satildeo combinados de modo a criar personagens

com seus atributos vocais proacuteprios Basta caminha pela rua em qualquer grande cidade para

perceber a vastidatildeo da variedade da voz humana e com que facilidade e regularidade

elementos paralinguiacutesticos satildeo combinados

Caracteriacutestica paralinguiacutesticas encontram-se pesadamente apoiadas suportando nosso

exemplo javanecircs O operador de bonecos deve apresentar natildeo apenas as falas de numerosas

personagens mas tambeacutem descriccedilotildees de rituais e narraccedilotildees baacutesicas A diferenciaccedilatildeo da fala eacute

conseguida por meio de variaccedilotildees de timbres vocais e qualidades atribuiacutedas a cada

personagem uma apresentaccedilatildeo especialmente estilizada pontuada por um ocasional

ldquoencadeamento seco de palavras ritmadas aqui e alirdquo eacute empregado para descriccedilotildees de rituais

e narraccedilotildees baacutesicas satildeo ditas limpamente com pouco uso de ldquoteacutecnicas especiaisrdquo a ela

associadas (Brandon 1970 62-63)

Na tradiccedilatildeo siciliana haacute mais de um narrador mas elementos paralinguiacutesticos satildeo

empregados assim mesmo para criar a representaccedilatildeo estilizada dos signos de fala para

diversos personagens-tipos

O timbre da voz eacute mudada de acordo com o tipo da personagem As

personagens cocircmicas e positivas falam com vozes nasais cacarejantes e

estridentes diferentemente dos personagens cocircmicos negativos que falam

em dialeto com uma voz rouca poreacutem estridente Os heroacuteis positivos

possuem um timbre claro e ressonante os negativos possuem um timbre

rouco obscuro e gutural (Pasqualino 1987 11)

360

Deve ser apontado com Pasqualino que em associaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas paralinguiacutesticas A

tradiccedilatildeo siciliana tambeacutem faz uso de dialetoidioma variaacutevel para a caracterizaccedilatildeo e distinccedilatildeo

entre personagens Como ocorre nos trecircs sistemas de signos as variaacuteveis podem ser

combinadas de diversas maneiras

A variaacutevel do dialetoidioma eacute empregada comumente em tradiccedilotildees nas quais classe

social e nacionalidade de acordo com o uso de variados dialetos e idiomas satildeo atributos

significantes para a caracterizaccedilatildeo das personagens Ainda o uso de idiomas por um

determinado personagem pode se dar de maneira tatildeo particular que pode ateacute mesmo criar um

dialeto pessoal

Apoacutes seu estudo brilhante acerca de teacutecnicas de modificaccedilatildeo vocal para o qual

brevemente iremos voltar nossa atenccedilatildeo Proschan discute trecircs outras teacutecnicas disponiacuteveis ao

bonequeiro tradicional para dar distinccedilatildeo entre as falas de diversos personagens e para

distinguir a fala do boneco da fala do ator Primeiramente ldquoa soluccedilatildeo [no teatro de bonecos

siciliano] pode ser tatildeo simples quanto a alteraccedilatildeo de registros do italiano ao siciliano e vice-e-

versa para mostrar vilotildees e heroacuteisrdquo (1981 552) Como jaacute pudemos ver caracteriacutesticas

paralinguiacutesticas tambeacutem satildeo uma parte da soluccedilatildeo siciliana Em segundo lugar os elementos

paralinguiacutesticos podem envolver ldquosintaxe desorganizadardquo Como assinala Bogatyrev ldquoantigos

marionetistas [tchecos] transmitindo a linguagem de heroacuteis de classe mais elevada

distorcem a fala coloquial comum [e] intencionalmente cometem erros de gramaacutetica ao passo

que mostram camponeses falando corretamente o tchecordquo (citado em Proschan 1981 552)

Parece provaacutevel que em outras tradiccedilotildees nas quais as apresentaccedilotildees sejam destinadas agraves

classes mais altas os signos da fala equivocada versus fala correta estariam invertidos A

terceira soluccedilatildeo envolve ldquoparoacutedias exageradas de estilos estereotipados de fala elaboradas

para muito aleacutem do que eacute necessaacuterio para caracterizar a personagemrdquo (1981 552) Esta

soluccedilatildeo faz uso de elementos paralinguiacutesticos como jaacute foi discutido

A variaacutevel mais constantemente notada do sistema de signos da fala do boneco eacute a da

modificaccedilatildeo de voz na qual a voz do vocalizador eacute sujeitada a uma modificaccedilatildeo ou

distorccedilatildeo por meio do emprego de um dispositivo mecacircnico postado diante ou no interior da

boca Proschan oferece uma relaccedilatildeo de aparelhos tipicamente usados no teatro de bonecos

tradicional

Modificadores de voz existem em trecircs grupos aqueles apoiados na parte de

traacutes da boca (geralmente duas placas riacutegidas unidas com uma fita de vibraccedilatildeo

entre elas) as usadas na frente da boca (que tambeacutem usam uma fita de

vibraccedilatildeo) e os usados no exterior da boca (esses satildeo cornetas tubulares

[kazoo]) (1981 533)

361

Um modificador de voz usado no fundo da boca entre a parte de cima da liacutengua e do palato

do vocalizador chamado de ldquoswazzlerdquo eacute usado em nosso exemplo inglecircs um usado na frente

da boca seguro entre os dentes do vocalizador eacute empregado em nosso exemplo indiano

(Proschan 1981 534) Modificadores de voz seguros no exterior da boca apoiados por uma

espeacutecie de arreio incluindo natildeo apenas o kazoo mas o chamado de pato e os apitos que

imitam sons de aves natildeo satildeo incomuns em produccedilotildees contemporacircneas

Assim como essa variedade de dispositivos sugere o uso de modificaccedilatildeo vocal eacute

sempre igual Quanto mais para o interior da boca o instrumento eacute posicionado maior a

dificuldade do vocalizador para a articulaccedilatildeo da fala E mais qualquer que seja o aparelho em

particular ainda assim o vocalizador manteacutem o controle sobre a entrega dos signos de fala

Proschan aponta que ldquoao usar o modificador de voz o marionetista pode almejar por clara

inteligibilidade inescrutabilidade absoluta ou qualquer ponto intermediaacuterio O objetivo varia

de uma tradiccedilatildeo a outra ateacute mesmo de um momento a outro dentro da apresentaccedilatildeordquo (1981

533) Seria seguro sugerir entretanto que a modificaccedilatildeo vocal geralmente produz signos de

fala que tendem na direccedilatildeo do extremo conceitual do continuum da representaccedilatildeo uma vez

que eacute o aspecto formal da fala ao inveacutes de seu conteuacutedo o que com isso se atribui ao boneco

A essa lista de dispositivos tradicionais de modificaccedilatildeo vocal devem ser adicionados

aqueles propiciados pela tecnologia contemporacircnea Ainda que a apresentaccedilatildeo seja ldquoao vivordquo

com uso de microfones ou com fitas preacute gravadas a eletrocircnica oferece uma seacuterie de

possibilidade de signos de fala incluindo efeitos de eco distorccedilotildees foneacuteticas e a simples

manipulaccedilatildeo do volume entre muitos outros Em geral essas possibilidades natildeo satildeo usadas

para produzir um alto grau de ininteligibilidade mas parece apresentar maior variedade de

usos do que a modificaccedilatildeo de voz tradicional

Signos de fala ininteligiacuteveis ainda que sejam muito usados satildeo claramente bastante

limitados em termos de fornecimento de sentido Como pode um discurso feito com voz

modificada ser tornado inteligiacutevel diante de uma plateia De acordo com Proschan isso pode

ser conseguido de trecircs maneiras primeiro por meio de ldquodiaacutelogo e repeticcedilatildeordquo em que as

palavras distorcidas do boneco satildeo repetidas claramente de forma assertiva ou interrogativa

por um interlocutor outro boneco ou pelo marionetista segundo por meio do ldquoevento

comunicativordquo no qual o movimento do boneco seja gestual ou accedilatildeo clareia a intenccedilatildeo da

fala e terceiro pela proacutepria fala modificada em que ldquoa correspondecircncia proacutexima entre os

contornos da fala natural e da fala [modificada] do bonecordquo devem ser percebidas e na qual

362

ldquoa redundacircncia e a resistecircncia da distorccedilatildeordquo da fala natural deixa a fala do boneco repleta de

significaccedilatildeo comunicativa (1981 535-39)

Fala com voz modificada apresenta dificuldades oacutebvias ao artista de animaccedilatildeo e agrave

plateia ainda assim eacute empregada comumente em muitas e variadas tradiccedilotildees Mas tais

dificuldades satildeo superadas por seus benefiacutecios ldquoum marionetista que precisa falar por muitos

bonecos possui apenas uma voz natural portanto deve lanccedilar matildeo de uma [grande]

quantidade de estereoacutetipos vocais ou deve encontrar alguma outra maneira de alterar

radicalmente sua voz natural (ou empregar as duas soluccedilotildees conjuntamente)rdquo (1981 528)

Proschan menciona ainda outros benefiacutecios ldquoo som peculiar dos modificadores vocais

alerta a plateia sobre a chegada dos marionetistas e o iniacutecio da apresentaccedilatildeordquo ldquoa voz

estridente eacute inapelavelmente engraccediladardquo o modificador de voz ldquopode ser usado para

comunicaccedilatildeo lsquosecretarsquo (a transmissatildeo de deixas)rdquo e o modificador vocal ldquopode indicar

quando personagens em particular estatildeo falandordquo como quando em suas peccedilas apenas Punch

ou Petrushka possuem vozes modificadas (1981 540-41) Ele prossegue dizendo

Vozes de bonecos agraves vezes satildeo explicadas pelo mesmo analista em termos

opostos satildeo vozes pequenas para corresponderem ao tamanho diminuto dos

bonecos mas tambeacutem satildeo capazes de produzir efeitos bem humorados por

forccedila de sua incongruecircncia A verdade eacute que ambos estatildeo corretos Agraves

vezes noacutes percebemos um sistema semioacutetico em obra internamente

consistente e mutuamente suportado Agraves vezes noacutes vemos a interaccedilatildeo de

dois [sistemas] distintos ainda que relacionados (Proschan 1981 548-49)

Mas haacute uma diferenccedila entre vozes pequenas e vozes modificadas Uma voz pequena pode

corresponder ao boneco enquanto esse natildeo estaacute sendo engraccedilado por si como na voz gentil e

estilizada do sapo Kermit dos Muppets uma voz modificada pode ser engraccedilada se natildeo

corresponde ao boneco como no caso hipoteacutetico do uso de um swazzle para fazer a voz do

gigante feito em tamanho maior que o humano para a histoacuteria de Joatildeo e o peacute de feijatildeo

Proschan estaacute tentando chegar a um acordo com o que talvez seja o benefiacutecio mais

importante da modificaccedilatildeo vocal um benefiacutecio tatildeo oacutebvio que ele natildeo chega a consideraacute-lo

explicitamente Como Speaight nos lembra

Haacute uma disparidade inerente entre a figura do boneco e a voz humana

podemos nos acostumar agrave convenccedilatildeo por meio da qual uma voz humana em

todo o seu volume supostamente estaria saindo dos laacutebios (usualmente)

imoacuteveis de uma marionete mas haacute amplas evidecircncias de que no passado era

considerado necessaacuterio disfarccedilar a voz humana quando esta falava num show

de bonecos Devemos aprender corretamente que o emprego de algum

tipo de megafone ou caixa de ressonacircncia nos forneceria exatamente aquele

timbre inumano agrave voz que eacute necessaacuterio para fazer com que o ato de

marionetes seja uma forma completamente distinta de entretenimento (1947

37-9)

363

O uso de modificaccedilatildeo leva embora a disparidade entre a figura do boneco e a voz humana

confere o timbre inumano agrave voz do boneco que a torna unicamente sua

Veltruskyacute apresenta a mesma questatildeo Para se combinar a fala humana ao objeto

inanimado e a noccedilatildeo contida em seus meios a apresentaccedilatildeo da voz se faz de modo estranho a

ponto de ser percebido como sendo a proacutepria voz do boneco mais antropomoacuterfica do que

huamanardquo (1983 103) Ou como nos termos deste estudo eacute dado ao ontologicamente

paradoxal boneco com a modificaccedilatildeo vocal uma fala apropriadamente paradoxal

Como os signos de fala natildeo satildeo apresentados diretamente pelo proacuteprio boneco como

ocorre com signos de forma e movimento o problema fundamental apresentado ao artista de

animaccedilatildeo eacute o de fazer os signos de fala parecerem apropriados Signos de fala caracteriacutesticos

- signos de fala apontados para o extremo imitativo do continuum da representaccedilatildeo ndash natildeo satildeo

em muitos teatros de bonecos tradicionais e na maioria dos contemporacircneos geralmente

apresentados devido agrave sua falta de adequaccedilatildeo Mesmo que sejam usados apenas elementos

paralinguiacutesticos de fala para a criaccedilatildeo da fala caricatural eles ajudam a estabelecer uma

relaccedilatildeo entre a fala e os outros sistemas de signos do boneco A recorrecircncia no uso da

modificaccedilatildeo vocal sugere o grau de necessidade de existecircncia para essa correlaccedilatildeo

A uacuteltima das variaacuteveis do sistema de signos da fala do boneco eacute a presenccedila ou

ausecircncia sobre o palco do vocalizador do boneco Essa variaacutevel produz um impacto similar ao

da ausecircncia ou presenccedila sobre o palco do operador do boneco Quando o vocalizadoir estaacute

presente os signos de fala do boneco satildeo radicalmente deslocados do ponto onde de outra

forma poderia se encontrar no continuum da representaccedilatildeo para um ponto mais adiante no

sentido do extremo conceitual A presenccedila em cena do vocalizador difere daquela do operador

do boneco no entanto no sentido em que eacute comumente empregada natildeo apenas com o uso de

signos de fala imitativos como se daacute com a presenccedila do operador de bonecos com signos de

forma imitativos mas com o emprego de signos de fala vindos de ambos os extremos do

continuum operando de modo diferente para cada um

Noacutes vimos como Jurkowski protesta contra aproximaccedilotildees sincrocircnicas que natildeo

conseguem reconhecer o elemento de serviccedilo O que estaacute de fato em questatildeo entretanto natildeo eacute

o serviccedilo mas a interaccedilatildeo ou a sua ausecircncia entre o vocalizador sobre a cena e o boneco No

exemplo de Jurkowski do Retaacutebulo de Mestre Pedro o contador de histoacuteria natildeo interage

verbalmente com os bonecos e apresenta todas as falas da apresentaccedilatildeo seja narrativa ou fala

de personagem Uma falta de interaccedilatildeo similar ocorre em nosso exemplo japonecircs Embora

Jurkowski argumente que bonecos de bunraku venham a diferir dos de Mestre Pedro porque

364

ldquonatildeo satildeo simplesmente ilustraccedilotildees para o acompanhamento da cantiga do narrador [mas]

satildeo componente visuais das personagensrdquo (1988 [1983] 65) o mesmo pode ser dito como jaacute

vimos dos bonecos de Mestre Pedro pois eles tambeacutem ldquonatildeo satildeo simplesmente ilustraccedilotildeesrdquo

A apresentaccedilatildeo de Petruchka agrave qual Jurkowski se referiu entretanto assim como o nosso

exemplo indiano apresentam vocalizadores em cena que interagem verbalmente com os

bonecos traduzindo suas falas com voz modificada e entabulando diaacutelogos Proschan escreve

ldquoSignificativamente em muitos casos mencionados os modificadores de voz satildeo vistos em

uso juntamente com um inteacuterprete ou interlocutor O interlocutor pode empregar uma forma

peculiar de diaacutelogo que envolve a sua repeticcedilatildeo geralmente sob a forma de perguntas das

falas distorcidas do bonecordquo (1981 533) Segundo a insistecircncia de Jurkowski essa eacute

certamente uma outra questatildeo

Vocalizadores em cena em postura natildeo interativa como no caso do Retaacutebulo de

Mestre Pedro e em nosso exemplo japonecircs apresentam falas de personagens que tendem na

direccedilatildeo do extremo imitativo do continuum Se eles se dispusessem a interagir com os

bonecos falando por si proacuteprios em vozes normais borrariam a linha que distingue a fala dos

bonecos da fala humana Os signos de fala que apresentam satildeo conceituais na medida em que

que a plateia pode claramente distinguir que o boneco natildeo pode falar por si Reciprocamente

vocalizadores interativos sobre a cena ou interlocutores como no caso da peccedila de

ldquoPetruschkardquo e em nosso exemplo indiano apresentam uma fala humana proacutepria contraposta

agrave fala de voz modificada dos bonecos A linha que separa as duas maneiras de falar

permanece suficientemente clara A fala do boneco ainda eacute conceitual em si uma vez que eacute

quase ininteligiacutevel e presenccedila sobre a cena do vocalizador reforccedila o caraacuteter conceitual na

demonstraccedilatildeo da sua necessidade de uma traduccedilatildeo

365

CODA ndash METAacuteFORA E O BONECO

O boneco estaacute relacionado com a metaacutefora de duas maneiras distintas ainda que

relacionadas o boneco em si mesmo pode ser tido como uma metaacutefora de humanidade o

termo ldquobonecordquopode ser aplicado a algumas pessoas em particular O processo central para o

boneco da visatildeo-dupla e o paradoxo ontoloacutegico do boneco que decorre desse processo satildeo as

chaves para o entendimento desses dois envolvimentos entre o boneco e a metaacutefora

O poder do boneco como metaacutefora eacute uma confirmaccedilatildeo impliacutecita de que a ideacuteia de

visatildeo-dupla eacute um processo central para ele Na maioria das manifestaccedilotildees de teatro de

bonecos como pudemos ver o operador eou vocalizador natildeo se encontra presente em cena e

ainda assim o boneco eacute entendido como uma criaccedilatildeo intencional submetida a um controle

intencional Mesmo quando o boneco eacute apresentado na maneira mais imitativa possiacutevel ele eacute

visto por sua plateia como sendo um objeto Como tambeacutem pudemos ver mesmo quando o

operador eou vocalizador se encontre presente em cena e o boneco eacute obviamente uma

criaccedilatildeo intencional submetida a um controle intencional ele ainda eacute entendido pela plateia

como possuidor de uma vida simulada O boneco conduz sua conotaccedilatildeo metafoacuterica pelo fato

de provocar por inerecircncia proacutepria o processo de visatildeo-dupla produzindo duacutevida quanto ao seu

status ontoloacutegico qual seria a natureza desse ser

Deve ser recordado que o encanto do boneco foi rastreado alternadamente da cara

reminiscecircncia das bonecas de infacircncia ao arrebatamento arquetiacutepico do totem religioso Como

foi demonstrado anteriormente essas teorias satildeo individualmente inadequadas e mutuamente

incompatiacuteveis De qualquer forma ambas as teorias adquirem novos significados quando o

conceito de visatildeo-dupla se aplica a elas Pois que tanto na brincadeira infantil com bonecos

quanto na cerimocircnia ritual haacute uma notaacutevel e de certa forma intencional tendecircncia a tornar a

margem entre ldquoobjetordquo e ldquovidardquo pouco clara em ambas as associaccedilotildees metafoacutericas de criaccedilatildeo

e controle podem facilmente virar-se de questotildees acerca da ontologia do boneco para questotildees

da ontologia humana

Natildeo deveria ser surpreendente o fato que a relaccedilatildeo metafoacuterica entre deusindiviacuteduo

para indiviacuteduoboneco encontra bem mais expressotildees literaacuterias do que aquela que vai de

crianccedilabrinquedo para pessoaboneco pois que as ramificaccedilotildees filosoacuteficas da primeira

parecem bem mais profundas do que as da segunda Mas ao discutirmos alusotildees literaacuterias a

essa relaccedilatildeo metafoacuterica o leitor deve estar atento de como eacute faacutecil ela se traduz em relaccedilotildees

366

mais domeacutesticas tambeacutem O processo de visatildeo-dupla do boneco o dota com um poder

metafoacuterico que se expande em ambas as direccedilotildees a partir da humanidade

Batchelder vai direto ao assunto quando declara ldquoa ideacuteia do boneco eacute irocircnica por si

mesma Eis uma personagem mais ou menos aproximada da vida movimentada por um ser

humano que eacute seu mestre Ningueacutem deixa escapar a analogia entre o boneco dominado pelo

homem e o homem dominado por forccedilas maiores que ele mesmordquo (1947 299)

Este estudo tem sugerido reiteradamente que o boneco eacute visto como sendo um objeto

ao mesmo tempo em que se imagina que possui vida O boneco como sendo uma metaacutefora de

humanidade entretanto apoia-se numa inversatildeo dessa formulaccedilatildeo No sentido metafoacuterico as

pessoas satildeo vistas por outras pessoas como possuindo vida enquanto que ao mesmo tempo

imagina-se que natildeo satildeo nada aleacutem de objetos O poder do boneco como metaacutefora de

humanidade depende dessa inversatildeo e no paradoxo ontoloacutegico que ela nos lega Em uacuteltima

anaacutelise esta eacute uma questatildeo de quem ou o que cria e controla

Aristoacuteteles ou o autor antigo de um texto a ele atribuiacutedo invoca a metaacutefora do boneco

para explicar o controle exercido pelos deuses sobre natildeo apenas sobre a humanidade mas

sobre todo o universo Ele escreve sobre o Operador Primordial ldquoTudo o que eacute necessaacuterio eacute

um ato de sua vontade ndash do mesmo tipo que controla as marionetes puxando os fios para

mover as cabeccedilas ou as matildeos dessas pequenas criaturas entatildeo seus ombros seus olhos e agraves

vezes todas as partes de seus corpos que respondem com graccedilardquo (citado em Baird 1965 38)

O proacuteprio universo que eacute percebido como real eacute imaginado nessa metaacutefora cosmoloacutegica a ser

natildeo mais que o boneco dessa forccedila superior a forccedila original

Uma visatildeo natildeo menos cosmoloacutegica mas mais focada na metaacutefora deusindiviacuteduo

indiviacuteduoboneco eacute comum em Java onde segundo Brandon nos informa ldquonum niacutevel

miacutestico a tela [de sombras] pode ser tida como simbolizando o ceacuteu o palco de casco de

bananeira a terra os bonecos o homem e o [operador de bonecos] deus quem por meio de

seu conhecimento e poder espiritual traz o homem agrave vidardquo (1970 18)

Jurkowski descobriu um poeta Anatoacutelio do seacuteculo XIII de nome Birri que expressa de

modo similar de humanidade como boneco criada e controlada pela forccedila superior de Deus

Homens saacutebios buscando a verdade

Erguem seus olhos para a tenda dos ceacuteus

Onde o Grande Apresentador do mundo

Haacute muito montou seu teatro de sombras

Detraacutes de sua tela ele estaacute apresentando um espetaacuteculo

Desempenhado pelas sombras dos homens e mulheres da sua criaccedilatildeo

(1988 [1979] 2)

367

Talvez a meditaccedilatildeo mais extensa da poesia ocidental sobre o boneco como metaacutefora da

humanidade possa ser encontrada no longo poema de Conrad Aiken ldquoPunch o mentiroso

imortalrdquo Proacuteximo ao final da obra o artista de bonecos chamado ldquocharlatatildeordquo tem um

momento de reflexatildeo

Repentinamente aqui ao parar diante da janela escurecida []

Ele viu a si mesmo ndash embora um deus ndash o boneco dos deuses

Girando em cabriolas o sonho de um sonhador maior []

Ele se dirige a um dos seus bonecos ldquoEu tambeacutem sou um boneco E como eacutes um siacutembolo para mim []

Eu tambeacutem sou um siacutembolo um boneco preso a fios

Indefeso colorido com uma expressatildeo fixa e imutaacutevel

(Embora algueacutem tenha dito lsquomaacutegoarsquo ou lsquorisosrsquo) de algueacutem que se inclina

Sobre mim assim como me inclino sobre vocecirc E mesmo esse Algueacutem ndash

Quem sabe que compulsatildeo o acomete que matildeos vindas da escuridatildeo

Tocam as suas cordas com ele Quem sabe se essas matildeos natildeo satildeo as

nossasrdquo

(Aiken 1953 360-62)

A corrente de duacutevida ontoloacutegica sugerida nesse poema se estende para cima do boneco

ao artista ateacute ldquoAlgueacutemrdquo mais acima que tambeacutem sofre da ldquocompulsatildeordquo de ldquomatildeos vindas da

escuridatildeordquo Surpreendentemente o poema tambeacutem sugere que a cadeia se estende para baixo

e que o artista pode de alguma forma controlar o deus e o boneco de alguma maneira

controla o artista

Essa uacuteltima sugestatildeo pode parecer ultrajante mas o boneco de certa forma controla a

maneira pela qual eacute controlado Craig afirma como sendo um princiacutepio da operaccedilatildeo de

bonecos ldquoVocecirc natildeo o move vocecirc permite que ele se mova essa eacute a arterdquo (citado em

Jurkowski 1988 [1979] 14) No sentido praacutetico isto quer dizer que o papel do operador de

bonecos eacute aprender o potencial de movimentaccedilatildeo do boneco e permitir que esse potencial se

realize Num sentido mais miacutestico ainda que se admita que certo limite de tal misticismo

possa ser transgredido isso quer dizer que o papel do operador de bonecos eacute mostrar

humildade diante da presenccedila de sua criaccedilatildeo

De modo similar Philpott ressalta a objeccedilatildeo de Walter Wilkinson um autor e artista

de teatro de bonecos inglecircs do seacuteculo XIX de que ldquoa ideacuteia de que bonecos satildeo criaturas

inanimadas controladas por seres humanos eacute incorreta e a posiccedilatildeo eacute exatamente o oposto o

artista estaacute agrave mercecirc de seus bonecosrdquo (1969 209) A sugestatildeo na ressalva irocircnica de

Wilkinson assim como no poema um tanto seacuterio de Aiken eacute que natildeo apenas o boneco a

pessoa e o deus todos apresentam um estatuto ontoloacutegico duvidoso em termos de ser

controlado pela forccedila superior mais proacutexima mas de que estatuto ontoloacutegico natildeo eacute menos

368

duvidoso no fato de ser controlado pela forccedila inferior mais proacutexima O paradoxo metafoacuterico

do boneco pode apontar para as duas direccedilotildees

A criaccedilatildeo e o controle exercidos pelo deus sobre a humanidade natildeo eacute o uacutenico assunto

acerca de criaccedilatildeo e controle oferecido pela metaacutefora do boneco as pessoas de diversas

maneiras podem tambeacutem ser criadas e controladas por outras pessoas mais poderosas

Horaacutecio nas suas Saacutetiras escreve uma pessoa para outra

que sou eu para vocecirc

Veja como vocecirc que se impotildee sobre mim

Se inclina e se esfrega para outros tal qual um boneco de fios

(citado em Jurkowski 1988 [1979] 2)

A cadeia de duacutevida ontoloacutegica eacute aqui identificada metaforicamente dentro do contexto das

relaccedilotildees humanas que podem mesmo ser vistas como natildeo mais que uma seacuterie de trivialidades

marionetizantes Speaight nota que Marcus Aurelius apresenta ldquouma imagem concentrada e

escarnecedora da exposiccedilatildeo vatilde na qual as vidas da maioria dos homens eacute conduzida [quando

escreve sobre] lsquoa pompa vatilde de uma procissatildeo uma atuaccedilatildeo fuga de ratos assustados

marionetes danccedilando em fiosrsquordquo (1990 [1955] 26)

Stalberg cita Xuan-zong um imperador Chinecircs do seacuteculo XVIII que apresentou uma

imagem da fatuidade da vida humana identificando a si mesmo como um boneco de fios

pateacutetico

De madeira esculpida e fios de seda esticados este velho homem eacute feito

De pele envelhecida qual uma galinha e cabelos como os de uma garccedila ele

eacute como se fosse um homem verdadeiro

Em um momento a manipulaccedilatildeo termina ele se queda imoacutevel em repouso

Qual vida humana em meio ao mundo dos sonhos

(1984 21)

A metaacutefora do boneco pode tambeacutem ser empregada num sentido mais internalizado Em

qualquer pessoa o status ontoloacutegico do ldquorostordquo apresentado por outras pessoas pode ser

sujeitado metaforicamente a duacutevida Jukowski menciona Adam Mickiewicz um romantista

polonecircs que escreveu ldquoEssas marionetes artificiais que chamamos pessoas podem nos

acolher em amizade sorrir para noacutes chorar agraves vezes mas no fundo vocecirc encontra egoiacutesmo

ganacircncia e orgulho manipulando suas cordas dominando essas figurasrdquo (1988 [1979] 6)

As ligaccedilotildees metafoacutericas entre a humanidade e o boneco tecircm sido expressas natildeo apenas

na literatura mas no proacuteprio teatro Como menciona Batchelder

Alguns tipos de drama poeacutetico e traacutegico satildeo adequados para bonecos A

morte de Tintagilles de Maeterlink se provou um meio excelente para

bonecos em parte devido a sua intensidade concentrada e em parte pelo fato

de as personagens se encontrarem tatildeo obviamente sob os poderes de forccedilas

aleacutem de seus controles de modo a fazecirc-los parecerem-se com bonecos

humanos (1947 300-301)

369

Em sua anaacutelise do trabalho de Maeterlink Knapp comenta que ldquoo que impressionou a

Maeterlink foi a natureza passiva remota impessoal e de autocircmato da marionete no modo

como esta confrontava inutilmente as forccedilas do destino Ele viu uma analogia entre homem e

marionete ambos satildeo manipulados por forccedilas exteriores ambos ignoram esse controle sobre

suas vidasrdquo (1975 77)

Haacute certamente grande poder nesse uso metafoacuterico do boneco mas deve ser

mencionado que tal uso natildeo trabalho funciona igualmente bem com todos os tipos de

bonecos Quando um par de bonecos de luva engaja-se num abraccedilo desajeitado e improvaacutevel

ou um grupo de marionetes de vara siciliano colide divertidamente um sobre o outro ateacute que

as cabeccedilas rolem literalmente a metaacutefora de humanidade um tanto melancoacutelica como sendo

escrava do destino parece difiacutecil de ser aplicada

Deve-se notar tambeacutem que a segunda parte da analogia de Maeterlink que nem a

pessoa nem o boneco se datildeo conta de serem controlados eacute imprecisa Bonecos podem

facilmente apresentar signos que sugerem que satildeo ldquoconscientesrdquo de serem controlados

Jurkowski aponta que em uma cena apresentada pelo artista alematildeo contemporacircneo Albrecht

Roser e seu palhaccedilo marionete Gustav as cordas de controle de Gustav acabam embraccedilando-

se intencionalmente e o boneco recorre ao operador para que este as desembaralhe ldquoele eacute um

boneco jogando com a sua consciecircncia de ser um bonecordquo (1988 [1983] 78) E mal deve ser

mencionado que muitas pessoas apresentam um desejo intenso por serem manipuladas por

alguma forccedila maior que elas seja uma divindade uma circunstacircncia histoacuterica ou outras

pessoas Deve-se argumentar que a proacutepria vida humana eacute regularmente se natildeo

invariavelmente sujeita a controle empresta agrave metaacutefora do boneco o seu poder peculiar noacutes

vemos a noacutes mesmos no boneco porque sabemos perfeitamente que nossa liberdade de accedilatildeo eacute

circunscrita por forccedilas externas

Como se sugere no poema de Aiken a metaacutefora do boneco eacute mais rica e mais

complexa do que pode parecer a princiacutepio A riqueza e complexidade eacute manifestada numa

produccedilatildeo da ldquoSinfonia claacutessicardquo de Prokofiev pelo Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste

na qual a plateia assiste a ldquoespectadores vivosrdquo assistirem enquanto uma orquestra de verdade

toca a muacutesica para uma espetaacuteculo de bonecos

Num palco de corte em estilo rococoacute (o palco dentro do palco) os bonecos

apresentam uma comeacutedia italiana tradicional com riacutegido convencionalismo

O teacutedio artificial e cortecircs eacute entretanto quebrado repetidas vezes pelas

apariccedilotildees [do boneco] de um gato no palco dentro do palco Ante essa visatildeo

um cachorrinho de madame mimado [pertencente a um ldquoespectadorrdquo e

presumivelmente vivo agrave sua proacutepria maneira] se enfurece e comeccedila uma luta

370

Os dois animais perseguindo-se vatildeo gradualmente destruindo esse mundo de

arte forjado Varas de luz satildeo quebradas as pernas do palco caem

instrumentos satildeo destruiacutedos de modo a revelar seus componentes mecacircnicos

no fosso da orquestra ateacute um espectador com uma peruca branca [que

imaginaacutevamos ser vivo] eacute abatido de modo a revelar que natildeo eacute senatildeo uma

casca oca devorada por cupins um boneco vazio (Gaacutel 1978 41)

Pelo final apocaliacuteptico da apresentaccedilatildeo a compreensatildeo da plateia acerca do que eacute real e do

que natildeo eacute acaba completamente confundida A questatildeo sobre quem estaacute no controle abriu-se a

um ponto irrespondiacutevel e a plateia eacute entatildeo convidada agrave metaacutefora do boneco natildeo apenas para a

ldquorealidaderdquo da apresentaccedilatildeo mas para a realidade em si

Essa breve exposiccedilatildeo dos empregos literaacuterios e teatrais do boneco como metaacutefora

sugere que essa dimensatildeo metafoacuterica pode perfeitamente ser mais difundida do que o proacuteprio

fenocircmeno do boneco e pode ser operativa tal como o processo de visatildeo-dupla em uma

maneira sincrocircnica Ou seja pode ser perfeitamente possiacutevel que a metaacutefora do boneco esteja

mais presente no humano de que o fenocircmeno do boneco no teatro humano Uma questatildeo

fascinante surge dessa sugestatildeo seraacute que a metaacutefora emerge da observaccedilatildeo do boneco ou seraacute

que o boneco eacute uma consequecircncia do reconhecimento dessa metaacutefora Ou para apresentar a

questatildeo de outa maneira a sensaccedilatildeo de que as pessoas e os bonecos se parecem por terem

sido criados e controlados por forccedilas superiores surge da observaccedilatildeo de que o boneco eacute de

fato criado e controlado dessa forma ou a praacutetica de criar e controlar bonecos surge da

observaccedilatildeo de que as pessoas satildeo criadas e controladas dessa forma Eacute duvidoso que essa

questatildeo possa ser respondida com alguma seguranccedila e nenhuma tentativa nesse sentido seraacute

feita aqui Mas a questatildeo em si eacute significante no sentido em que apresenta ao menos a

possibilidade de que a humanidade acreditando-se criada e controlada por uma forccedila mais

poderosa precise dar expressatildeo a essa crenccedila por meio da criaccedilatildeo e do controle de pessoas

substitutas de um modo anaacutelogo agravequele pelo qual a crianccedila sujeito agrave disciplina dos pais

exercita uma disciplina infantil sobre seus bonecos

Natildeo importando se foi a metaacutefora do boneco ou o proacuteprio boneco o que veio primeiro

a apresentaccedilatildeo do boneco natildeo consegue evitar a provocaccedilatildeo de implicaccedilotildees metafoacutericas

Como pudemos ver essas implicaccedilotildees estendem-se para aleacutem da questatildeo imediatamente

oacutebvia de criaccedilatildeo e controle Como Szilaacutegyi argumenta ldquoOs verdadeiros meios de expressatildeo

do teatro de bonecos eacute a metaacutefora da cenardquo

Com seu estilo simboacutelico de apresentaccedilatildeo a cena do teatro de bonecos

conduz o espectador a acreditar que ao passo que o mundo teatral pode se

realizar num plano em separado um no qual os bonecos satildeo seres

independentes obedecendo agraves suas proacuteprias leis tudo afinal se encontra

enraizado no mundo humano e nele refletido [O espectador] eacute lembrado

371

que o mundo irreal da arte e a realidade da vida quotidiana existem

simultaneamente e lado a lado uma agrave outra (1967 [1965] 37)

Natildeo eacute apenas de uma questatildeo de criaccedilatildeo e controle que a metaacutefora do boneco levanta por

meio do processo de visatildeo-dupla mas uma questatildeo de compreensatildeo a realidade em si mesma

o que eacute um ldquoobjetordquo e o que eacute ldquovidardquo

A distinccedilatildeo traccedilada anteriormente entre o boneco e o ator vivo pode ser claramente

vista nessas referecircncias metafoacutericas feitas ao boneco a figura do ator vivo natildeo consegue

sustentar metaacuteforas como essas por que natildeo levanta questotildees dessa profundidade acerca de

criaccedilatildeo e controle e natildeo desafia a plateia com o desnorteante paradoxo ontoloacutegico da visatildeo-

dupla ldquoobjetosrdquo versus ldquovidardquo

O boneco tambeacutem estaacute relacionado com a metaacutefora no sentido em que o termo

ldquomarioneterdquo pode ser empregado metaforicamente para pessoas em particular Quando

ocorre natildeo eacute aplicado como um termo de aprovaccedilatildeo

O termo em si mesmo independente de sua aplicaccedilatildeo metafoacuterica tornou-se um termo

infeliz ao menos no Ocidente Suas conotaccedilotildees podem natildeo ser inerentemente pejorativas em

culturas com tradiccedilotildees de boneco que sejam altamente valorizadas mas no Ocidente onde as

tradiccedilotildees do boneco satildeo geralmente entendidas como sendo derivaccedilotildees marginais do teatro

vivo tais conotaccedilotildees satildeo quase que invariavelmente negativas

Encarando a realidade Craig escreve ldquorsquoBonecorsquo eacute um termo de desprezo mesmo que

ainda exista quem encontre beleza nessas pequenas figuras ainda assim tornaram-se

degeneradasrdquo (1911 90) Eacute claro mesmo Craig deixa escapar algum desprezo com ldquoessas

pequenas figurasrdquo argumentando que por serem degeneradas devem ser substituiacutedas pela

figura mais exaltada da Uumlbermarionette

Se pode parecer que Craig exagera na questatildeo quando ele aponta que ldquoacutebonecorsquo eacute um

termo de desprezordquo ou se nos parece que deacutecadas adiante se dedicou ao termo um pouco

mais de respeito deve-se apenas levar em consideraccedilatildeo a comedida resposta de Malkin agrave

ediccedilatildeo de setembro de 1972 dedicada aos ldquoBonecosrdquo do Drama Review

Os editores chegam ao ponto de por a palavra boneco entre aspas porque o

termo em suas visotildees natildeo ldquodescrevem satisfatoriamenterdquo os conceitos do

ator inanimado despersonalizaccedilatildeo encarnaccedilatildeo e assim por dianterdquo [Michael

Kirby ldquoIntroduccedilatildeordquo Drama Review 16 91972) 3] Eacute como se os editores

estivessem convencidos de que a palavra boneco sem as aspas

representasse um conceito por demais elementar ou uma forma de arte

ingecircnua demais para os seus propoacutesitos Eles parecem ignorar ou estarem

incautos da possibilidade de que o boneco tal como o ator e a maacutescara eacute um

elemento essencial do teatro Os artigos tratam bonecos como se fossem

maacutescaras o boneco como se fosse um siacutembolo o ator como boneco e assim

372

por diante mas natildeo haacute qualquer tentativa de articular nenhum conceito

contemporacircneo do boneco como boneco (1975 3)

E se no entanto imaginarmos que essa condescendecircncia se enfraqueceu ao longo das quase

duas deacutecadas o leitor eacute convidado entatildeo a refletir sobre a quantidade e a natureza das

discussotildees sobre teatro de bonecos das quais ele ou ela possa ter participado com qualquer

adulto que natildeo possua interesse acadecircmico ou praacutetico no assunto

Eacute bastante provaacutevel que a difamaccedilatildeo do teatro de bonecos derive em parte das

associaccedilotildees metafoacutericas que o boneco evoca No Ocidente contemporacircneo rituais religiosos

satildeo vistos geralmente com condescendecircncia apenas pouco menos que brincadeiras de crianccedila

E como o teatro de bonecos no Ocidente foi reduzido no mais das vezes a estudos

acadecircmicos do uso de bonecos em religiotildees de outras culturas e para apresentaccedilotildees para

crianccedilas em nossa cultura essa condescendecircncia tem sido amplamente reforccedilada Deve

parecer se especularmos por um momento que ocidentais sofisticados possuem um medo

quase moacuterbido de levar poder de suas imaginaccedilotildees a seacuterio da mesma maneira como fazem

com o poder de suas percepccedilotildees Eles acreditam que a justaposiccedilatildeo de imaginaccedilatildeo e

percepccedilatildeo com o subsequente paradoxo ontoloacutegico que ameaccedila as suas compreensotildees acerca

de ldquoobjetordquo e ldquovidardquo como algo enervante e assim evitam o problema inteiramente por meio

do desmerecimento da praacutetica do teatro de bonecos que provoca isso Talvez a disposiccedilatildeo de

uma cultura para apreciar o teatro de bonecos dependa da disposiccedilatildeo dessa cultura em aceitar

o paradoxo ontoloacutegico desafiante da visatildeo-dupla

Tratar de uma pessoa metaforicamente como se essa fosse um boneco eacute falar dessa

pessoa com certo grau de desprezo Tal desprezo encontra-se enraizado no desprezo da

consideraccedilatildeo do termo em si mas a questatildeo eacute ainda mais complexa Ser chamado de

marionete eacute natildeo apenas ser rotulado com um termo desagradaacutevel mas eacute tambeacutem conferir ao

status ontoloacutegico de algueacutem uma espeacutecie de duacutevida desdenhosa Um exame completo das

maneiras pelas quais o termo marionete tem sido empregado em referecircncia a pessoas

encontra-se aleacutem do alcance deste estudo mas duas aplicaccedilotildees mais comuns podem ser

discutidas

Alguns poliacuteticos e de fato alguns governantes Satildeo regularmente chamados de

marionetes Por exemplo Vidkun Quisling um homem cujo nome tornou-se parte da proacutepria

liacutengua inglesa foi chamado de marionete dos nazistas quando lhe foi conferido o poder sobre

a Noruega receacutem-conquistada ainda o governo estabelecido pelos vietnamitas apoacutes a

conquista do Camboja foi chamado de ldquoregime marioneterdquo O desprezo na denominaccedilatildeo de

algueacutem como marionete eacute oacutebvio mas sob esse desprezo haacute um ataque ao estatuto ontoloacutegico

373

do sujeito Teriam Quisling e o governo vietnamita governado nos seus direitos ou forma eles

criados e controlados por forccedilas nesse caso forccedilas de natureza poliacutetica mais poderosas que

eles mesmos Foram eles ldquoobjetosrdquo sobre os quais se agiu ou ldquovidasrdquo que agiam Tanto

Quisling quanto o regime vietnamita no Camboja de fato governaram naccedilotildees ostensivamente

independentes mas ao mesmo tempo ambos eram obviamente sensiacuteveis agraves vontades daqueles

que os investiram do poder Seus estatutos ontoloacutegicos eram certamente duvidosos

metaforicamente eram marionetes em todos os sentidos

Igualmente homens e mulheres apaixonados satildeo regularmente chamados de

marionetes Tomemos como exemplo Cleoacutepatra uma figura da histoacuteria e da literatura a quem

se atribuiu frequentemente ter estado sob o jugo de natildeo apenas alguns homens em particular

mas do proacuteprio amor Ainda que tanto na histoacuteria quanto na literatura se aceite que Cleoacutepatra

foi algueacutem tatildeo provida de vida quanto qualquer outro ela eacute ao mesmo tempo vista como um

objeto subjugado pelo poder avassalador do romance Dessa forma Cleoacutepatra eacute uma

ldquomarionete do amorrdquo criada e controlada por uma forccedila nesse caso de natureza emocional

mais poderosa que ela Mais uma vez seu estatuto ontoloacutegico se encontra em duacutevida e

metaforicamente ela tambeacutem eacute uma marionete em todos os sentidos

Eacute importante que se reconheccedila que enquanto termos tais como ldquogovernante

marioneterdquo e ldquoboneco do amorrdquo envolvem questotildees de criaccedilatildeo e controle eles sugerem a

existecircncia do que pode ser chamado de ldquomundo-plateiardquo que precisa lidar com o estatuto

ontoloacutegico da pessoa em questatildeo Assim como com o boneco entendido como sendo uma

metaacutefora geral da humanidade o que se apresenta natildeo eacute nada aleacutem da questatildeo do estatuto de

algueacutem como sendo ldquoobjetordquo eou ldquovidardquo

O poder do boneco como sendo uma metaacutefora da humanidade e como sendo um

termo empregado acerca de pessoas surge do processo paradoxal de visatildeo-dupla que eacute

central para o boneco A plateia do teatro e o mundo-plateia devem lidar em uacuteltima

apreciaccedilatildeo com questotildees de ontologia com questotildees de ser A cena do teatro de bonecos e o

palco do mundo apresentam figuras que satildeo desafios agrave compreensatildeo eacute a missatildeo dessas

plateias que natildeo satildeo mais que a humanidade em parte ou em seu todo arbitrar acerca da

natureza do ser

374

Sobre o autor

STEVE TILLIS autor teatral ator e diretor tem trabalhado em teatro profissional desde

1974 Seu artigo ldquoO encanto do boneco deus ou brinquedordquo foi publicado em A linguagem

do boneco editado por Laurence R Kominz e Mark Levinson

375

ANEXO B

Entrevista com Beto Andreeta fundador da Cia Pia Fraus

Teatro Rondon Pacheco Uberlacircndia 06 de novembro de 2010

Mario - Beto faz o seguinte fala um pouquinho do iniacutecio da Pia Fraus Como ela comeccedilou

Beto - Falo

Mario - Junto com esse iniacutecio eu gostaria de deixar a seguinte pergunta ndash se eacute que essa

pergunta tem alguma alguma funccedilatildeo Qual eacute o desejo artiacutestico que cria a Pia Fraus

Beto - A Pia Fraus comeccedilou em 1984 A gente considera Eu considero junto com o Beto

Lima que fomos a dupla que iniciou a Pia Fraus a gente se conheceu em Abril de [19]84 A

gente considera esse momento como o comeccedilo da Pia Fraus a gente passa a contar mesmo

que natildeo chamou-se Pia Fraus logo no comeccedilo a gente daacute como iniacutecio da histoacuteria da Pia Fraus

a minha histoacuteria com o Beto Lima que eacute o Pimencaiacute A gente fazia parte de um projeto de arte

educaccedilatildeo chamava-se Crianccedila Faz Arte de uma mineira ndash em Belo Horizonte comeccedilou a Pia

Fraus ndash e quem capitaneava isso era uma moccedila que chama Doroty Marques [Ela] ainda faz

Eacute cantora ainda mexe com coisas de educaccedilatildeo cada vez em lugares mais remotos assim

como Rondocircnia Acre Ela que nos junto No comeccedilo de [19]84 em janeiro eu estava

chegando de uma viagem uma turnecirc que eu tinha feito com meu primo que foi meu primeiro

grupo de teatro que se chamava Paco Beto e Bonecos Uma turnecirc latinoamericana ndash sul

smericana na verdade Trabalhamos muito no Equador no Peru na Boliacutevia Eu tinha tido

aulas de violatildeo antes de ir para isso entatildeo eu voltei e fui encontrar meu professor de violatildeo

que estava trabalhando com essa Doroty Marques Ela me conheceu achou engraccedilado ela jaacute

fazia um trabalho pra crianccedila com educaccedilatildeo Me convidou e a gente comeccedilou a fazer a base

do primeiro espetaacuteculo Ela vendeu um projeto de educaccedilatildeo em Minas Gerais e laacute ela agregou

mais uma pessoa a esse projeto que foi o Beto Lima Entatildeo foi aiacute que eu conheci o Beto

Lima Conheci o Beto Lima dentro de uma sala de aula numa escola puacuteblica numa favela

chamada Favela do Cafezal no morro do Cafezal em Belo Horizonte E a gente nem precisou

falar Ele chegou atrasado para a atividade e eu jaacute estava no meio da molecada tentando fazer

alguma coisa Ele foi laacute entrou e vacircmo laacute E foi Ficamos dois anos praticamente os dois

primeiros anos da nossa vida artiacutestica em comum junto com essa mulher Doroty Marques E

a gente fez esse projeto em Belo Horizonte em Penaacutepolis que eacute interior de Satildeo Paulo e em

Presidente Prudente E noacutes trecircs juntos fizemos a primeira peccedila que se chamava O vaqueiro

bicho Froxo em [19]84 Depois no final de [19]86 eu me desliguei dessa mulher voltei pra

Satildeo Paulo ndash eu sou de Satildeo Paulo o Beto eacute de Minas Eu voltei pra Satildeo Paulo [e] num

momento muito curto eu criei um grupo fiz uma vamos dizer uma variante [do primeiro

espetaacuteculo] que eu fazia com o Beto mas fazia o espetaacuteculo sem o Beto em Satildeo Paulo O

Beto [Lima] ficou trabalhando em Presidente Prudente uma das cidades que a gente jaacute tinha

passado Durante esse ano [19]86 a gente refez o Vaqueiro e o Bicho-Froxo fizemos uma

versatildeo soacute minha e dele No comeccedilo de [19]87 ndash [19]88 talvez Em [19]87 ele ficou em

Presidente Prudente A gente foi pra Satildeo Paulo com esse primeiro espetaacuteculo O Vaqueiro

Bicho-Froxo E logo na primeira temporada do a gente ganhou o precircmio tinha um precircmio da

FUNDACEN115

na eacutepoca que eacute a Funarte de hoje em dia

Que eram os cinco melhores espetaacuteculos infantis do ano na cidade de Satildeo Paulo A gente jaacute

ganhou esse precircmio logo de cara Entatildeo nosso primeiro espetaacuteculo nossa primeira temporada

115

FUNDACEN Fundaccedilatildeo Nacional de Artes Cecircnicas Oacutergatildeo ligado ao Ministeacuterio da Cultura fundada em 1975

e extinto durante governo Fernando Collor de Mello no ano de 1990

376

na cidade de Satildeo Paulo e a gente jaacute foi conhecido imediatamente como uma coisa legal jaacute

ganhamos esse precircmio

O comeccedilo foi essa a histoacuteria Tanto eu quanto o Beto [Lima] nos eacuteramos muito apaixonados

e somos ateacute hoje ndash o Beto natildeo mais [por]que ele faleceu em 2005 Mas sempre o que

permeava nosso discurso era uma paixatildeo pela cultura popular brasileira mas assim com

violecircncia A gente soacute enxergava isso na vida a gente soacute queria ser isso A gente falava que

nossa finalidade nosso escopo era [fazer] uma releitura da arte popular brasileira Uma

releitura de maneira contemporacircnea da arte popular brasileira Era isso que a gente queria

fazer A gente tinha esse conceito Estava muito claro o que a gente queria artisticamente Era

reler a arte popular brasileira de uma maneira mais contemporacircnea Era isso com teatro de

bonecos e misturando sempre atores com teatro de bonecos

Mario - Sempre misturando atores

Beto - Sempre desde o comeccedilo Eu antes de fazer essa turnecirc com o com o Paco meu

primo eu estudei no Ventoforte116

com o Ilo [Krugli] em [19]81 e [19]82 E pro Brasil o Ilo

foi o grande introdutor desse tema neacute Do bonequeiro vamos dizer assim o ator-manipulador

agrave vista do puacuteblico O Ilo que traz essa informaccedilatildeo pro Brasil neacute

Mario - O Barquinho Histoacuteria de Lenccedilos e Ventos

Beto - Exatamente

Mario - Tem uma relaccedilatildeo tambeacutem da Pia Fraus com o XPTO

Beto - Entatildeo tem porque nesse periacuteodo tambeacutem eu cursei o Ventoforte meu uacutenico estudo

Eu fiz o 2ordm grau depois fui morar na Itaacutelia um ano voltei tentei fazer duas vezes a USP e natildeo

passei nunca Prestei pra cinema e aiacute desencanei porque eu entrei pra coisa do Ventoforte do

teatro e achei que natildeo precisava ndash e realmente natildeo precisou no meu caso neacute Entatildeo eu natildeo

cursei faculdade e o Beto [Lima] tambeacutem natildeo tinha feito E em [19]81 [19]82 o Ventoforte

era uma escola sempre foi Natildeo sei se ainda eacute uma escola natildeo Natildeo sei mas nesse momento

era um escola muito em voga assim pra quem queria fazer um teatro infantil de mais

qualidade Natildeo tinha tanta oferta em Satildeo Paulo de escolas nos anos [19]80 [Havia] muito

menos grupos ele tinha realmente uma coisa novidosa assim naquele momento Ele [Ilo

Krugli] era realmente o top do que se fazia em teatro de bonecos e teatro pra crianccedilas Tanto

que ele coordenava uma coleccedilatildeo na Abril Cultural de teatro pra crianccedila que vinha em

fasciacuteculos vinha com livro Ele tinha um papel predominante assim mesmo na discussatildeo da

linguagem teatral para a crianccedila Ele trouxe um monte de conceitos um monte de coisas

Porque ele tinha trabalhado com a Nise da Silveira117

no Rio e estava migrando pra Satildeo

Paulo Ele era ldquoo carardquo tido o grupo E o Osvaldo Gabrieli que eacute o fundador da XPTO dava

aula tambeacutem no Ventoforte em [19]81 e [19]82 Entatildeo eu fiz o curso do Ilo de teatro infantil

e o curso do Osvaldo de teatro de bonecos [Foram] os dois uacutenicos cursos assim formais

[que eu fiz]

Cada um tinha laacute a sua duraccedilatildeo eu passava o dia inteiro no Ventoforte foi um mergulho E

essa coisa tambeacutem eu fiz essa viagem pela Ameacuterica do Sul muito incentivado pelos dois que

satildeo argentinos e carregam essa tradiccedilatildeo que [tem] o teatro de bonecos da Argentina [de

116

Teatro Ventoforte Companhia teatral fundada em 1974 pelo artista plaacutestico educador e artista de animaccedilatildeo

argentino Ilo Krugli Na deacutecada de 1980 Ilo juntamente com a companhia muda sua sede do Rio de Janeiro para

Satildeo Paulo onde institui um teatro onde satildeo apresentados espetaacuteculos e ministrados cursos O Ventoforte eacute

responsaacutevel pela formaccedilatildeo de diversos artistas de animaccedilatildeo em Satildeo Paulo desde esse momento participando de

alguma maneira na formaccedilatildeo de companhias como a XPTO a Truks a Pia Fraus dentre outras 117

Nise da Silveira (195-1999) Psiquiatra brasileira conhecida pela introduccedilatildeo da psicologia junguiana no

Brasil revolucionaacuteria no que se refere ao tratamento dispensado a pacientes psiquiaacutetricos fazendo uso entre

outras coisas da arte para tratamento e pedagogia dos pacientes

377

circulaccedilatildeo] Muito influenciado pelo [Federico] Garcia Lorca que morou em Buenos Aires

trazendo essa bagagem da circulaccedilatildeo do La Barraca118

Entatildeo vem desse eco do Garcia Lorca

que vai acabar batendo em mim entendeu Ele influencia uma geraccedilatildeo argentina influencia a

proacutexima e acaba passando pela geraccedilatildeo do Ilo ndash uma terceira depois do Lorca passar Aiacute o

Ariel Bufano119

que fez o [Grupo de Titiriteros del] Teatro San Martin tambeacutem estaacute nesse

barco O Osvaldo estuda com o Ariel parte do teatro San Martin vecirc o Ventoforte no Festival

Internacional do Sul120

se apaixona joga tudo pra cima aquela caretice argentina vem morar

em Satildeo Paulo e comeccedila um curso de teatro de bonecos

Aiacute eu sou vamos dizer descendente desse movimento neacute Dessa passagem do Garcia Lorca

pela argentina que vai resultar tambeacutem na histoacuteria da Pia Fraus Porque eu faccedilo esse grupo

com meu primo faccedilo essa viagem e encontro o Beto O Beto estaacute voltando de uma

experiecircncia com o Vital Santos121

em Pernambuco em Caruaru Ele viveu laacute por um ano e

meio dois anos Entatildeo eu de um lado apaixonado pela cultura popular mas mais

influenciado por essa passagem pela Boliacutevia Equador e jaacute um pouco de Brasil jaacute tinha

viajado bastante e ele voltando do nordeste Entatildeo aiacute estaacute essa eacute a matriz resultante da Pia

Fraus

Mario - Uma coisa muito interessante na linguagem da Pia Fraus e eu acho que eacute na minha

opiniatildeo mas aiacute eacute uma outra histoacuteria eacute o que vai identificar muito a Pia Fraus como como

uma companhia bastante proacutexima do que a gente vai chamara de uma companhia de teatro de

animaccedilatildeo eacute essa vontade de cruzamento de linguagens e competecircncias

Beto - Eacute Faz sentido

Mario - A Pia Fraus vai estar sempre trabalhando na convivecircncia do corpo do ator com o

boneco em cena os objetos e os bonecos satildeo usados de diversas maneiras Tem claramente

uma influecircncia uma leitura que tambeacutem em alguns espetaacuteculos encosta na danccedila encosta nas

artes circenses natildeo eacute

Beto - Entatildeo o percurso eacute muito claro Assim de [19]84 que foi quando eu conheci o Beto

ateacute 1990 a obsessatildeo eacute a leitura popular Na danccedila popular na esteacutetica popular Sempre

introduzindo boneco e ator junto que vem da experiecircncia do Beto no nordeste e a minha aqui

do sudeste e na Ameacuterica Latina Em [19]89 vem um indiano pra Satildeo Paulo que eacute o Dadi

Pudumjee122

que eacute muito legal foi depois ateacute presidente da UNIMA ou eacute uma coisa assim

Ele vem a Satildeo Paulo com um amigo tinha uma relaccedilatildeo laacute vem e faz uma reuniatildeo No final

dos anos [19]80 o movimento de teatro de bonecos ligado agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro

de Bonecos

Mario ABTB

Beto ABTB em todos os niacuteveis nacionais e regionais que uma organizaccedilatildeo que tem uma

ceacutelula nacional e depois vai dividindo em pequenas ceacutelulas regionais neacute Entatildeo Satildeo Paulo era

uma unidade vamos dizer assim mas era uma coisa nacional A ABTB era muito ativa

118

La Barraca Companhia de teatro de bonecos da qual fez parte o poeta Federico Garcia Lorca 119

Ariel Bufano (1931-1992) Um dos nomes mais importantes do teatro de bonecos argentino Diretor e

manipulador participou de diversas iniciativas artiacutesticas entre as quais o Teatro Rodante e o Grupo de Titiriteros

del Teatro San Martin 120

Andreeta muito provavelmente se refere ao festival de teatro em Curitiba acontecido em 1974 onde Histoacuteria

de Lenccedilos e Ventos fez sua estreacuteia A pesquisa ainda natildeo conseguiu apurar se Gabrieli esteve de fato presente

nesse festival 121

Autor e diretor teatral pernambucano fundador do grupo Evoluccedilatildeo e autor de peccedilas como O auto das sete luas

de barro e A noite dos tambores silenciosos 122

Dadi Pudumjee Artista de teatro de animaccedilatildeo indiano atual presidente da UNIMA (Union Internationale de

la Marionnette)

378

entatildeo esse cara procura a ABTB e marca uma reuniatildeo com todos os bonequeiros Ele trazia na

bagagem um convite quase aberto falando ldquoolha vai ter um festival na Iacutendia em setembro de

1990 e quem quiser eu queria saber quem quer ir Mas o estado indiano natildeo daacute nada natildeo daacute

passagem natildeo daacute cachecirc soacute posso dar hospedagem pra vocecircs laacute alimentaccedilatildeo e hospedagem

chegando na Iacutendia vocecircs natildeo tem necessidade Mas o traslado e o cachecirc talrdquo Aiacute eu falei

ldquopocirc Beto eu queria ir pra Iacutendia neacute carardquo O Beto nunca tinha saiacutedo do paiacutes e eu jaacute tinha

viajado bastante vaacuterios paiacuteses da Europa vaacuterios Para Nova York tinha morado na Europa

Mas o Beto nunca tinha saiacutedo ele tinha uma fissura de sair desgraccedilada E ateacute entatildeo a gente soacute

fazia um espetaacuteculo que era O Vaqueiro e o Bicho Froxo dos anos com a Doroty E essa

coisa fazendo interior de Satildeo Paulo interior do Brasil participando de festivais jaacute Coritiba

ndash de bonecos neacute O de Canela E aiacute natildeo era o nome Pia Fraus tambeacutem A gente comeccedilou

com a Doroty e chamava-se Crianccedila faz arte O nosso primeiro momento quando a gente saiu

da Doroty em [19]86 que eu me desliguei e o Beto veio em [19]87 a gente chamou-se

Brinque Com Arte que era um nome muito brega mas a gente se chamou assim porque o

nosso foco ainda era muito a educaccedilatildeo A gente dava muito treinamento para professor fazia

brinquedos e fazia teatro Aiacute depois a gente comeccedilou a se chamar Beto Beto amp Cia porque

sempre ouvia falar ldquoos Betos os Betosrdquo Eram dois Betos Ah entatildeo vamos nos chamar

Beto Beto amp Cia jaacute que somos dois Betos [19]89 eacute um ano muito importante para a gente A

gente conheceu esse indiano a gente estava dando um curso laacute na Oficina Cultural Trecircs Rios

em Satildeo Paulo que agora chama-se Oswald de Andrade Era uma oficina cultural muito em

voga na eacutepoca Joatildeozinho Trinta Gerald Thomas foi um momento em que muita gente legal

frequumlentou Eles nos chamaram pra dar um curso de teatro de bonecos Nesse curso ndash quem

estava organizando era a ABTB ndash se inscreveram vaacuterias pessoas Uma das pessoas que se

inscreveram foi o Domingos Montagner que foi nosso aluno durante dois meses Mas

imediatamente ele jaacute se transformou em nosso companheiro de trabalho Assim entendeu

Ele entre aluno e companheiro foi muito raacutepido o estaacutegio do Domingos Ele pertenceu agrave Pia

Fraus por 11 anos Entatildeo em [19]89 aconteceu isso a gente foi convidado a ir para a Iacutendia e

a gente articulou junto com as Secretarias Estadual e Municipal [de Cultura] de Satildeo Paulo

Eles compraram o espetaacuteculo a gente adquiriu as passagens e foi foi para a Iacutendia O

Domingos estava comeccedilando a entrar ele natildeo foi Estava comeccedilando a ser um aluno mais

querido E quando a gente foi pra Iacutendia a gente conseguiu passar po Bilbao A gente

conseguiu uma passagem via Londres e aiacute tinha uma perna que vocecirc podia escolher na

Europa e eu escolhi Bilbao porque eu sabia que tinha um puta festival de bonecos [laacute]

naqueles anos Era muito forte era muito forte Em [19]90 era em [19]89 [19]87 [19]88

Era ldquoordquo festival de teatro de bonecos que tinha ndash depois [passou a ser o] de Charleville

[Meacuteziegraveres]123

ndash era o mais paulada que tinha era o de Bilbao Era alto niacutevel A gente passou

laacute e eu consegui o contato da mulher que organizava o festival aiacute chavecou chavecou

chavecou Acho que foi na volta jaacute da Iacutendia Falou ldquoacabamos de voltar da Iacutendia fizemos

um espetaacuteculordquo Era setembro o festival dela era novembro era perto do natal E natildeo tinha

fax natildeo tinha e-mail natildeo tinha nada A gente chavecou chavecou chavecou falou falou

falou e encontrou com ela no aeroporto Voltamos para o Brasil e depois de um mecircs que a

gente estava aqui comecinho de outubro assim chegou a carta-convite dela Falando ldquoentatildeo

eu convido vocecircs pra voltarem para Bilbao em novembrordquo A gente voltou pra Bilbao em

novembro ainda sem o Domingos ele tambeacutem natildeo foi nessa primeira Mas foi quando a

gente teve contato Laacute na Iacutendia era um festival grande tambeacutem tinham muitos grupos

dezenas de grupos Laacute a gente viu teatro de bonecos do Vietnatilde da Coreacuteia da Tailacircndia

pegamos mais dessa levada assim Foi interessante influenciou Mas quando a gente caiu em

123

A cidade de Charleville-Meacuteziegraveres na Franccedila aleacutem de abrigar a sede da UNIMA Internationale e o Institut

International de la Marionnette eacute onde ocorre a cada trecircs anos aquele que eacute considerado o mais importante

festival dedicado ao teatro de animaccedilatildeo

379

Bilbao aiacute foi um corte na nossa vida Assim eacute claro eacute preciso setembro de 90 assim que a

gente chega e vai pro festival de Bilbao apresentando O Vaqueiro e o Bicho Froxo fizemos

vaacuterias cidades a Concha de la Casa que era a organizadora distribuiacutea muito O circuito de

espetaacuteculo dela era muito generoso Ela distribuiu a gente mas a gente assistiu muito da

programaccedilatildeo de Bilbao E a gente entendeu assim ali mudou Mudou totalmente mudou o

foco do grupo mudou o olhar sobre teatro de bonecos mudou o interesse Entatildeo a gente viu

espetaacuteculos super contemporacircneos de teatro de bonecos com vaacuterias temaacuteticas Nesse

momento deixa de ser tatildeo focado na arte popular brasileira o leque de interesses se expande

imediatamente A gente chega e vecirc espetaacuteculos com vaacuterias preocupaccedilotildees Muito variado A

gente entende tambeacutem a logiacutestica que movia as companhias europeacuteias A gente vecirc o cara

chegar com a sua van tudo dentro de caixas que satildeo praacuteticas e quando entram no teatro elas

abrem se montam Desde a loacutegica da montagem da praticidade do espetaacuteculo O Brasil

ainda natildeo tinha um circuito de espetaacuteculos em [19]90 tatildeo dinacircmico quanto agora de SESC

de SESI de festivais Vocecirc fazia o espetaacuteculo sem a preocupaccedilatildeo com a locomoccedilatildeo natildeo tava

intriacutenseca nele A gente viu esses dois fatos os temas e a teacutecnica Como se lida com o

espetaacuteculo porque vocecirc chegava no dia apresentava no [proacuteprio] dia e aiacute ia embora no dia

Desmontava colocava dentro da van para no outro dia estar fazendo em outro lugar Isso

impactou profundamente nosso modo de pensar teatro de bonecos e quando a gente volta pro

Brasil a gente faz o primeiro espetaacuteculo diferente do que a gente tinha pensado que se chama

O Olho da Rua que eacute bem urbano Satildeo pessoas meio perdidas na cidade agrave noite satildeo casos

meio bizarros satildeo bonecos jaacute com outras teacutecnicas bunraku e tal Essa passagem pela Europa

faz assim ldquoPucrdquo muda a chave E o Domingos ainda chega Quando o Domingos chegou ele

se incomodou muito com o nome ldquopocirc Beto Beto e Cia natildeo representa mais o que a gente eacuterdquo

E ele que sugere a mudanccedila de nome ele encabeccedila o movimento de mudar de nome e eacute ele

quem sugere o nome Pia Fraus

Mario - Pia Fraus eacute

Beto - Que eacute latim uma mentira contada com boas intenccedilotildees

Mario - Ah taacute

Beto - Ele vai num dicionaacuterio de latim e elenca vaacuterias possibilidades mas fala oacute minha

preferida eacute essa aqui Pia Fraus Que tem conteuacutedo e tem sonoridade Parece uma coisa

germacircnica mas ela eacute latina E o Domingos eacute que traz a coisa do circo pra Pia Fraus ele era

um atleta tinha interesse em circo tambeacutem Estava comeccedilando a ter interesse no circo e ele

traz Aiacute eu faccedilo um porquinho de curso com ele durante um ano de circo eu pratico um pouco

circo tambeacutem Mas o Domingos eacute quem introduz o nome Pia Fraus na nossa vida e o

interesse pelo circo Aiacute a gente fez O Olho da Rua fizemos uma turnecirc tambeacutem a gente

comeccedilou a ir muito pra Europa daiacute A gente foi pra Sueacutecia pessoas que a gente conheceu laacute

em Bilbao nos levaram pra Sueacutecia levamos o espetaacuteculo Olho da Rua Estivemos na Sueacutecia e

estivemos em Portugal Em Portugal foi muito fraca a nossa apresentaccedilatildeo E a gente sentiu

que a gente precisava remodelar ele [o espetaacuteculo] A gente voltou para o Brasil e convidou o

Osvaldo Gabrieli124

que eacute do XPTO pra remodelar o Olho da Rua Ele redirigiu [o

espetaacuteculo Olho da Rua] a gente fez uma temporada no Centro Cultural [Satildeo Paulo] isso era

[19]92 Fizemos outra viagem foi bem foi bem melhor voltamos Entatildeo procuramos ele e

dissemos ldquodirige o proacuteximo espetaacuteculo nosso da Pia Frausrdquo Ia chamar Triz Aiacute ele

comentou ldquoEacute o seguinte cara o XPTO taacute num momento bem difiacutecil jaacute passou-se muito

tempo noacutes fizemos Coquetel Clown mas a gente natildeo consegue avanccedilar Vocecirc [Beto

Andreeta] jaacute foi meu aluno e estatildeo me chamando pra dirigir Em vez de eu fazer um

124

Osvaldo Gabrieli artista argentino radicado em Satildeo Paulo fundador e diretor artiacutestico do grupo XPTO

380

espetaacuteculo novo com vocecircs eu proponho a gente fazer uma co produccedilatildeo XPTO e Pia Fraus

vocecircs se incorporamrdquo Claro que nesse momento a gente era uma marca muito insipiente a

gente estava comeccedilando e o XPTO estava no auge O XPTO chegou bombando Chegou em

Satildeo Paulo e foi muito novidoso assim em [19]84 ele foi a puta novidade Enquanto eu estava

laacute na Boliacutevia com meu primo ele estava bombando em Satildeo Paulo Entatildeo 10 anos depois 9

anos depois o XPTO estava muito forte e a gente estava se firmando ainda procurando uma

linguagem Tinha lidado com uma linguagem muito clara que eacute era a arte popular e agora

comeccedilava a se interessar por outras coisas e o Osvaldo convida Aiacute quando o Osvaldo

convidou a gente quase praticamente abandonou a marca Pia Fraus durante dois anos A

imprensa natildeo leu como uma co produccedilatildeo muitos poucos jornais Jornal da Tarde leu mas

saiu muito o XPTO encabeccedilando o projeto Entatildeo parecia ser um projeto do XPTO mas era

claramente um projeto de co produccedilatildeo

Entatildeo a gente ficou dois anos com o Osvaldo fazendo o Babel Bum a gente fez um

remontagem do Coquetel Clown e a gente fez uma montagem de um espetaacuteculo que se

chamava Aquelarre 2000 La Luna era um evento E fizemos tambeacutem um evento grande com

o [La] Fura Dels Baus125

com o Oacutepera Volant chama-se Oacutepera Mundi

Mario - Oacutepera Mundi lembro

Beto - Tambeacutem foi um ponto de mudanccedila na nossa carreira porque a gente aprendeu a fazer

inflaacuteveis coisa que depois veio caracterizar o projeto

Mario - Que foi um momento importante

Beto - A gente aprendeu ali a gente observou olha que legal Porque coincidiu A gente

tinha feito dois anos com o Osvaldo no XPTO A perspectiva deles e a nossa eram um pouco

divergentes Eram linhas que tinham um diaacutelogo mas eram divergentes Principalmente a

gestatildeo era divergente O XPTO eacute um grupo fantaacutestico mas eacute personalista Ele eacute personalizado

na figura do Osvaldo O Osvaldo ele tem um mando esteacutetico eacutetico atuante no XPTO muito

forte Entatildeo naquele momento a gente praticamente ameaccedilou essa hegemonia dele Porque eu

era eu sou muito o cara que representa a ideacuteia Passou a ser eu neacute E realmente criou-se um

congestionamento na relaccedilatildeo e a uacutenica soluccedilatildeo foi a dissoluccedilatildeo de novo que foi muito legal

Para noacutes foi Deus que mandou Porque a gente separa do XPTO no final de [19]95 Entatildeo a

gente fica [19]93 [19]94 [19]95 no XPTO Em [19]90 [19]91 e [19]92 a gente faz o Olho

da Rua E o Vaqueiro Bicho-Froxo tambeacutem com o Domingos No final de [19]95 o Osvaldo

abre uma oportunidade muita grande para ele [Osvaldo] no SESI de Satildeo Paulo onde ele vai

montar grandes espetaacuteculos Esse eacute um momento mais conveniente pra ele romper com a

gente porque a gente que gerenciava eles e eles tinham um momento de natildeo necessidade de

gestatildeo porque ele fechou um grande projeto e ia dar um ano de trabalho pra eles Entatildeo ele

aproveito tambeacutem isso e forccedilou um conflito mais forte porque ele estava meio tranquilo daiacute a

gente saiu Quando a gente saiu final de [19]95 a gente comeccedilou o processo de montagem

de um espetaacuteculo que foi marcante determinante na nossa carreira completamente que eacute o

segundo ponto de virada muito forte Porque os inflaacuteveis ficam um pouco adormecido ainda

mas o ponto mesmo de virada total da Pia Fraus eacute o espetaacuteculo que chama-se Flor de

Obsessatildeo

1996 A gente estreou em 1996 A gente desfez com o Osvaldo comeccedilou a montar o

Domingos foi morar na Espanha natildeo conseguiu e voltou Porque a gente fez vaacuterias turnecircs

com o XPTO pela Europa E a gente nesse meio tempo tambeacutem ia com a Pia Fraus Ia

voltava A gente tinha mais experiecircncia internacional do que o XPTO nesse momento jaacute A

gente fez o Flor de Obsessatildeo que era sobre o Nelson Rodrigues a gente foi por incriacutevel que

125

La Fura Dels Baus Companhia teatral catalatilde fundada em 1979 que explora elementos do teatro de rua com o

aproveitamento de espaccedilos inusitados e variaccedilotildees de modos de relaccedilatildeo do espetaacuteculo com a plateia

381

pareccedila em 1996 o primeiro grupo brasileiro a lidar com uma temaacutetica polecircmica vamos dizer

assim como Nelson Rodrigues A gente eacute primeiro grupo brasileiro [de teatro de animaccedilatildeo]

que aborda o Nelson Rodrigues com bonecos E eacute incriacutevel que depois da gente quase tambeacutem

natildeo tem Eacute impressionante E a gente trabalhou o universo do Nelson Rodrigues tanto que se

chama Flor de Obsessatildeo A gente lanccedilou nosso espetaacuteculo antes que o Rui Castro lanccedilasse o

dele126

que vem a se chamar Flor de Obsessatildeo tambeacutem Ele lanccedilou O Anjo Pornograacutefico que

nos ajudou muito na concepccedilatildeo do espetaacuteculo Ele eacute que o ressuscita Ele natildeo neacute Eacute o

Antunes na verdade o Antunes que ressuscita o

Mario - Paraiacuteso Zona Norte127

Beto - O Eterno Retorno ele que ressuscita o Nelson pro Brasil

Mario - Que habilita o Nelson

Beto - Habilita total E aiacute eacute isso a gente faz o Flor de Obsessatildeo e a gente chega novamente no

que no que vem a caracteriza a linguagem de teatro adulto da Pia Fraus Essa coisa mais

visual [usando] pouca[s] palavra[s] meio tenso E faz uma lista de espetaacuteculos nesse sentido

O uacuteltimo que eacute esse que vocecirc vai ver hoje o Primeiras Rosas tem o 100 Shakespeare tem o

Rosas Vermelhas Aiacute vem o Farsa Quixotesca e tem o Nelson Rodrigues que eacute o Flor de

Obsessatildeo O Flor de Obsessatildeo ajuda muito a gente a conseguir [projeccedilatildeo] A gente ganha um

precircmio da Cultura Inglesa o Festival da Cultura Inglesa em Satildeo Paulo E o precircmio era ira

para Edimburgo o festival de Edimburgo e apresentar em Londres e em Edimburgo E em

Edimburgo a gente ganhou o precircmio de melhor espetaacuteculo estrangeiro com o Flor de

Obsessatildeo Aiacute a miacutedia brasileira falou ldquopocirc os caras satildeo legaisrdquo entendeu Entatildeo a gente teve

que ser aceito fora pra que a Folha de Satildeo Paulo que eacute o nosso jornal que nesse momento

ditava opiniatildeo cultural de Satildeo Paulo

Mario - Comeccedilar a prestar atenccedilatildeo

Beto - Presta atenccedilatildeo faz uma criacutetica beliacutessima abre um espaccedilo e a gente eacute aceito A gente

vai pro festival de Curitiba eacute eleito entre os 5 melhores espetaacuteculos do festival de Coritiba ali

em [19]97 eu acho O Flor de Obsessatildeo eacute o espetaacuteculo que nos coloca num outro patamar de

como as pessoas nos olham de como o metier cultural desde o estado que gerencia ateacute do

proacuteprio quem faz e enxerga a Pia Fraus a partir de [19]96 Eu tenho uma revista que tem todo

esse histoacuterico laacute

Mario - Duas questotildees que satildeo centrais A Pia Fraus como uma companhia que comeccedila que

tem o seu iniacutecio na deacutecada de [19]80 eacute Eu acho que ela vivencia ou pelo presencia porque

eu acho que a Pia Fraus mesmo antes de ser Pia Fraus jaacute surge com o tipo de olho mais pra

frente A companhia comeccedila com vocecirc e o Beto [Lima] que satildeo pessoas que tecircm formaccedilatildeo

em teatro e jaacute desde o iniacutecio tecircm o interesse por teatro de bonecos Mas pelo o que eu

consigo perceber tecircm o interesse por educaccedilatildeo

Beto - No comecinho

Mario - Outras pessoas chegaram agrave Pia Fraus A Pia Fraus hoje em dia eacute uma companhia

com uma quantidade de componentes completamente diferentes Uma outra configuraccedilatildeo

126

Beto aqui se refere ao livro editado pela Companhia das Letras (1ordf ediccedilatildeo de 1997) com frases do dramaturgo

compiladas pelo jornalista e escritor Ruy Castro tambeacutem autor da biografia de Neacutelson intitulada O anjo

pornograacutefico 127

Espetaacuteculo idealizado e encenado por Antunes Filho estreado em 1989 A peccedila usa os textos das peccedilas de

Nelson Rodrigues A Falecida e Os sete gatinhos Antes disso em 1981 outra montagem feita por Antunes frente

ao CPT ndash Centro de Pesquisa Teatral eacute considerada como um marco de resgate do dramaturgo para o teatro

brasileiro Trata-se de Nelson Rodrigues ndash O eterno retorno que menciona os seguintes textos da obra

rodrigueana Os Sete Gatinhos Beijo no Asfalto Toda Nudez Seraacute Castigada e Aacutelbum de Famiacutelia

382

Vocecirc consegue fazer um paralelo em termos do perfil de formaccedilatildeo o perfil teacutecnico que vocecirc

via dos integrantes da companhia no iniacutecio e agora As pessoas as pessoas que hoje em dia

fazem parte da companhia tecircm outro background de formaccedilatildeo

Beto - Eacute totalmente

Mario - E o que eacute isso Como era no iniacutecio e como eacute agora

Beto - A Pia Fraus eacute bem eacute bem o Brasil nas artes assim neacute Nessas duas deacutecadas trecircs

deacutecadas neacute Entatildeo jaacute faz trecircs deacutecadas neacute [Estamos] chegando perto dos 30 Entatildeo a gente

veio de um momento em que natildeo existia ainda a grande popularizaccedilatildeo das faculdades

privadas Para vocecirc estudar teatro em 1986 em niacutevel universitaacuterio deviam existir o curso da

ECA128

Talvez mais algum mas natildeo era uma coisa popular Vocecirc natildeo tinha opccedilotildees ao

acabar o coleacutegio naquela eacutepoca natildeo tinha esse leque de de possibilidades de formaccedilatildeo

acadecircmica de teatro No interesse de teatro Vocecirc tinha a EAD a Escola de Arte Dramaacutetica

que jaacute era dificiacutelimo pra entrar e era equivalente ao 2ordm grau e vocecirc tinha a ECA que era

Cinema e Artes Talvez alguma outra [escola] duas ou trecircs mas eram rariacutessimas no Brasil Se

eram rariacutessimas em Satildeo Paulo eram rariacutessimas no Brasil Entatildeo a possibilidade de vocecirc se

formar nesse ambiente teatral era miacutenimo Se vocecirc pegar provavelmente atores da minha

idade pra traacutes neacute de [19]50 pra traacutes vai ser rariacutessimo algueacutem que tenha o niacutevel de formaccedilatildeo

universitaacuteria em artes em teatro ou em danccedila em miacutemica ou em qualquer coisa Quase natildeo

existia Existia assim por exemplo pessoas que se formavam desde em engenharia

publicidade jornalismo migravam pras artes neacute Paulo Autran advogado Entatildeo

Mario - Joseacute Celso

Beto - Exatamente Entatildeo toda essa galera se forma geralmente em advocacia nas humanas

em alguma coisa e migra pro teatro Natildeo existia o processo de formaccedilatildeo ordenado

universitaacuterio ligado ao teatro Entatildeo na minha eacutepoca era muito usual pessoas que natildeo tinham

feito universidade estarem se dedicando ao teatro profissional E tambeacutem tinha uma demanda

e uma falta de estrutura do paiacutes vocecirc ministrava aulas oficinas Eu dei muito curso pra

professor pra municiar de material didaacutetico Eu dava muito curso de aplicaccedilatildeo de boneco

como vocecirc descobre um boneco como vocecirc faz um boneco o que vocecirc pode usar pra fazer

um boneco um monte de coisas assim Fazia esse tipo de formaccedilatildeo Ningueacutem me cobrava

formaccedilatildeo pra passar formaccedilatildeo neacute Eu sou completamente autodidata e o Beto tambeacutem O

Beto nem coleacutegio terminou o Beto parou no ginaacutesio olha que doido E eacute algo o

conhecimento vocecirc ia lendo ia absorvendo conversando ia vendo tal tal tal De uma

maneira autodidata mesmo Noacutes somos autodidatas Eu fiz esse pequeno curso dois anos

imagina E aulas eram esporaacutedicas sem meacutetodos Nunca estudei histoacuteria do teatro Eu estudei

por conta mas a gente nunca teve [um estudo formal] Natildeo frequumlentamos uma escola para

isso O que eu vejo hoje Entatildeo nosso perfil no comeccedilo ndash as pessoas que se interessavam

pela gente era soacute a gente mesmo A gente natildeo agregava ningueacutem Era eu o Beto e o

Domingos O Domingos jaacute tinha uma coisa da universidade

E quem mais se aproximava da companhia eu percebo que [eram] quem frequumlentava os

ambientes teatrais neacute O Ventoforte tinha muita gente que natildeo tinha formaccedilatildeo universitaacuteria

de teatro entatildeo natildeo existia Eram cursos paliativos era uma possibilidade de vocecirc estudar

Tinham algumas escolas um pouco mais E hoje eu sinto que a gente trabalha com muitos

jovens Realmente mudou muito o perfil da companhia jaacute natildeo eacute mais de uma pessoa soacute O

Beto foi embora Eu acho que todo o movimento de grupo brasileiro tem uma outra filosofia

128

A referecircncia aqui eacute agrave EAD ndash Escola de Artes Dramaacuteticas curso teacutecnico de formaccedilatildeo de atores relacionado

com a ECA ndash Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes da USP que tambeacutem abriga um curso de graduaccedilatildeo universitaacuteria

em Teatro

383

hoje Um outro momento mais diverso do que era os anos [19]80 Perdeu esse caraacuteter

messiacircnico a ditadura militar natildeo tem mais Um monte de coisas neacute Os interesses satildeo

[outros] a sociedade mudou completamente nesses 30 anos Evoluiu Entatildeo hoje o que eu

percebo Quando eu abro uma audiccedilatildeo eu abro audiccedilotildees natildeo sistemaacuteticas mas a cada dois

anos eu estou abrindo Porque eu tenho um repertoacuterio e agraves vezes eu preciso renovar as

pessoas as pessoas vatildeo passando Quando eu abro se inscrevem 200 pessoas Impressionante

Agraves vezes 300 pessoas Aiacute eu seleciono 100 para entrevista Dessas 100 cara 95 satildeo formadas

em alguma coisa Das aacutereas Entatildeo tem por exemplo Artes do Corpo que tem a faculdade da

PUC laacute em Satildeo Paulo tem muita [gente] Tem muita gente formada em teatro pelo SENAC

tem muita gente de teatro do [Curso] Ceacutelia Helena que eacute outra escola tem muita gente de

faculdade vaacuterios Anhembi Morumbi Entatildeo o niacutevel de pessoas de formaccedilatildeo de pessoas

que se aproximam pra fazer teatro hoje eacute bem mais elevado as pessoas recebem mais

informaccedilatildeo elas cursam escolas mais sistematizadas neacute

Mario - Eu natildeo sei se vocecirc concorda comigo se natildeo concordar Beto

Beto - Eacute uma Eacute uma anaacutelise

Mario - Fica a vontade Parece que houve um momento em que pra vocecirc fazer teatro de

animaccedilatildeo no Brasil vocecirc [es]tava ou muito proacuteximo da experiecircncia com a escola ou vocecirc

partia de uma experiecircncia com artes visuais com escultura E parece que aleacutem do advento

da multiplicaccedilatildeo da formaccedilatildeo universitaacuteria dessa formaccedilatildeo parece que o perfil meacutedio migrou

um pouquinho da pessoa interessada em construccedilatildeo em escultura e passou um pouco mais

pra pessoa interessada na performance mesmo

Beto - Eacute com certeza

Mario - Vocecircs eu acho que natildeo vivenciaram tanto isso

Beto - A gente gosta de tudo isso A gente gosta de fazer a gente gosta de performar poreacutem

eacute uma geraccedilatildeo nossa que por exemplo o Sobrevento gosta de performar e gosta de construir

Ou gostou num momento no comeccedilo original

Mario - Por que vocecirc tem uma experiecircncia anterior dessa companhia que vocecirc diz que teve

com seu primo em que vocecircs jaacute faziam bonecos

Beto Faziacuteamos

Mario - Era o quecirc que tipo

Beto - Cara na verdade o Osvaldo quando eu fiz o curso com ele em [19]81 [19]82 ele era

um curso que jaacute trazia essa coisa ldquonatildeo o ator tem que estar presenterdquo A primeira peccedila que eu

montei foi O Retaacutebulo de Don Cristoacutebal129

era o poeta Entatildeo o que era ao curso do Osvaldo

Era um montagem e cada um escolhia um personagem e vamos fazer esse personagem

vamos construir Como vocecirc quer construir Ah eu quero com essa teacutecnica essa teacutecnica Ele

jaacute dava o panorama das teacutecnicas ele dava umas oficinas baacutesicas e vocecirc jaacute construiacutea um

boneco e depois ele te dava os toques de como mexer do que eacute como animar Como se

relacionar

Entatildeo quando eu saiacute com o Paco esse grupo a gente jaacute saiu com um ndash repertoacuterio natildeo ndash mas

uma companhia de 20 30 bonecos jaacute feitos A gente jaacute carregava nossos bauacutes jaacute era

Mario - O quecirc Luva

129

El Retablillo de Don Cristoacutebal escrita supostamente para bonecos por Federico Garcia Lorca

384

Beto - Luva basicamente luva e vara Luva e vara E alguma coisa de muppets130

assim

Mas essa coisa que a gente pratica muito hoje em dia que essa tal de manipulaccedilatildeo direta o

bunraku que vocecirc vai ver [no espetaacuteculo Primeiras Rosas] isso ningueacutem fazia Nessa eacutepoca

ningueacutem fazia soacute que realmente quem estava no Japatildeo ainda

Mario - De [19]90 pra caacute a coisa deu uma estourada

Beto - Eacute Aiacute os grupos do Japatildeo comeccedilaram a vir e mostrar todo mundo ldquoOpa que legalrdquo e

na verdade eacute uma teacutecnica razoavelmente simples muito simples Acho que tem algumas

complexas Aquelas que o Luis Andreacute brinca de chinecircs ali vocecirc tem que ter acho que uma

performance ateacute um pouco mais elaborada131

Uma que eu acho mais complexa mesmo eacute essa

das varinhas assim oacute que vocecirc mexe essa eacute foda132

Mario - Essa eu nunca cheguei perto

Beto - O cara tem que ser fera Ter realmente o domiacutenio do tic-tic-tic [onomatopeacuteia] essa eu

respeito quem faz Agora o fantoche o bunraku a manipulaccedilatildeo direta elas satildeo mais simples

mesmo como teacutecnica Elas satildeo mais possiacuteveis Eacute uma teacutecnica que vocecirc vai laacute e se vocecirc se

esmerar nela vocecirc desempenha

Mario - Se vocecirc se coloca como ator na relaccedilatildeo com o boneco parece que a coisa anda um

pouquinho neacute

Beto - Eacute exatamente Entatildeo a coisa realmente migrou Eu acho que essa anaacutelise que vocecirc faz

eacute correta Num momento esteve super vinculado agrave coisa da educaccedilatildeo quase 100 das pessoas

eram quase que obrigadas a passar pela educaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o boneco Todo o mundo

tinha um pezinho na educaccedilatildeo uns mais outros menos mas tinha sim muito Num momento

a educaccedilatildeo se apropriou do boneco tambeacutem O boneco em Satildeo Paulo onde tinha era nas

bibliotecas puacuteblicas eram as bibliotecaacuterias que faziam um pouco de boneco Eacute o comeccedilo do

profissionalismo neacute Eu tenho o primeiro DRT neacute registro profissional do estado de Satildeo

Paulo primeiro de [19]84 de ator-titireteiro

Mario - Ah eacute

Beto - Eu sou o primeiro ator-titiriteiro

Mario - Descrito em carteira

Beto - Descrito em carteira de trabalho A minha classificaccedilatildeo diante do Ministeacuterio do

Trabalho eacute de ator-titiriteiro estaacute na minha carteira de trabalho E esse tiacutetulo e o de nuacutemero

001 Entatildeo eacute engraccedilado

Mario - Eacute fabuloso

Beto - Fantaacutestico neacute Em [19]84

Mario - Beto uacuteltima questatildeo Alguns trabalhos da Pia Fraus foram montados em espaccedilos

natildeo convencionais

Beto - Foram Vaacuterios

130

Andreeta se refere com esse termo a bonecos calccedilados agrave semelhanccedila de luvas mas com bocas articulada e

usualmente varas para movimentaccedilatildeo de braccedilos 131

Andreeta se refere a Luiz Andreacute Cherubini membro e fundador do Grupo Sobrevento e do espetaacuteculo Cadecirc

meu heroacutei no qual se trabalha um tipo de luva de origem chinesa da proviacutencia de Fujian e que tem em Yang

Feng um expoente conhecido no ocidente 132

Natildeo reconheci a teacutecnica mencionada por Andreeta

385

Mario - Natildeo sei se eu estou enganado me corrija se estiver Muitos desses espetaacuteculos

acabaram sofrendo uma migraccedilatildeo do espaccedilo aberto pro palco agrave italiana ou sofreram

adaptaccedilotildees para serem apresentados com essa frontalidade do palco agrave italiana Se perde

alguma coisa se ganha alguma coisa

Beto - Na verdade a Pia Fraus chega a um momento em que diversifica o tipo de montagem

[agrave qual se dedica] A gente vem traccedilando um caminho e percebe num determinado momento

que a gente fala assim meu a gente natildeo quer mais dar aula natildeo aguumlento mais ver crianccedila na

minha frente dando aula enchi o saco de professor enchi o saco de crianccedila completamente

Gosto de fazer espetaacuteculos pra eles natildeo o processo educacional Isso passa a desinteressar

totalmente Entatildeo nesse momento a gente fala que soacute quer fazer espetaacuteculo Meu pra fazer

soacute espetaacuteculo a base compradora de espetaacuteculo na metade dos anos [19]90 [19]93 [19]94

que eacute quando a gente rompe total com a educaccedilatildeo ndash rompe no sentido de desinteresse

nenhum problema A base de compra ali naquele momento eacute a mesma Entatildeo eacute SESI SESC

algumas Secretarias [de Educaccedilatildeo e de Cultura de estados e municiacutepios] A gente fala o que a

gente pode fazer Tem que ter um supermercado porque satildeo os mesmos caras que vatildeo

comprar Entatildeo a gente tem que ter um monte de formas de espetaacuteculos a gente tem que ter

um para crianccedila um para adulto um para rua um para num sei o quecirc E o que nos leva a

diversificaccedilatildeo da linguagem na verdade como uma matriz como suporte eacute a necessidade da

sobrevivecircncia em cima do espetaacuteculo Eacute engraccedilado isso neacute A gente eacute muito praacutetico na

verdade Tem o mercado que compra sim Mas ele compra um pouco rua um pouco [para]

crianccedila um pouco [para] adulto entatildeo vamos fazer um pouco de cada um E na verdade os

espetaacuteculos que depois migram pra rua a gente na nossa carreira o primeiro que foi criado

pra outro suporte a natildeo ser o teatro tradicional italiano na verdade eacute o Navegadores que eacute o

que a gente fez em uma piscina Que eacute uma encomenda do SESC e a gente fez o espetaacuteculo na

aacutegua dentro da aacutegua Uma piscina grande um monte de gente circo em cima eacute lindo o

espetaacuteculo A gente fez soacute no SESC Consolaccedilatildeo foi para noacutes foi um momento muito bom de

miacutedia Isso jaacute eacute [19]99 Em [19]96 tambeacutem a gente teve uma encomenda que foi quando a

gente aprendeu a fazer os inflaacuteveis Nossa primeira experiecircncia de inflaacuteveis A gente fez o

Flor de Obsessatildeo em [19]96 e a gente fez os inflaacuteveis em [19]96 tambeacutem E a gente [havia

visto] essa teacutecnica no final de [19]95 Entatildeo demorou um ano pra resultar num espetaacuteculo

Porque a Orquestra Sinfocircnica133

convidou a gente pra fazer um espetaacuteculo junto no

Ibirapuera [de] circo e de bonecos Bonecos grandes no parque vamos fazer um elefante do

circo vamos fazer uma girafa com muacutesica claacutessica e foi daiacute que nasceu o Gigantes de Ar

que a gente faz ateacute hoje tem 14 anos Daiacute comeccedilou o inflaacutevel Mas depois desse momento do

parque a gente migrou com isso pra dentro do teatro A gente jaacute foi imediatamente para dentro

do teatro E a gente fez todos os espetaacuteculos fora os de outro suporte que vocecirc estava

falando O primeiro que a gente faz pensado realmente pra fora [do teatro convencional] eacute o

Navegadores que eacute [sobre a] aacutegua Esse a gente nunca conseguiu levar pra outro ambiente a

natildeo ser a aacutegua entatildeo ele nasceu e ficou laacute O que aconteceu eacute que a gente fez o Gigantes de

Ar e o Bichos do Brasil na verdade os dois para teatro e a gente percebeu que dava pra

migrar pra rua Porque por incriacutevel que pareccedila eacute uma outra lacuna graccedilas a Deus Deus a

conserve [risos] os bonequeiros satildeo muito lentos Eles satildeo uma classe eacute impressionante isso

dentro das artes eles satildeo os mais lentos possiacuteveis Como temaacutetica Eles tatildeo ficando em dia

como teacutecnica Mas as temaacuteticas satildeo muito tiacutemidas ainda no meu entendimento Eacute muito

pouco amplo neacute Natildeo tem um espetaacuteculo bizarro mesmo pra valer pra fuder Natildeo tem umas

coisas que quebrem paradigmas comportamentais natildeo tem Esteacuteticos tambeacutem natildeo eacute tudo

muito comportado E de formato Por exemplo a gente jaacute abriu o festival de Canela de rua

Abriu natildeo mas participou de Canela na rua juro pra vocecirc acho que umas 4 vezes com o

133

Beto refere-se ao espetaacuteculo chamado Sinfinia Circense (1996) feita em parceria com a Orquestra

Experimental de Repertoacuterio com regecircncia de Jamil Maluf

386

Gigantes de Ar e umas 4 vezes com o Bicho do Brasil A gente jaacute abriu o Festival do Lelo

[Silva] em Belo Horizonte134

duas vezes Uma vez com o Gigantes de Ar e uma vez com o

Bichos do Brasil A gente jaacute abriu o Festival Espetacular de Bonecos laacute de Curitiba duas ou

trecircs vezes com esses mesmos espetaacuteculos Entatildeo a gente volta reiteradamente nos lugares

porque o Brasil adora espetaacuteculos festivos feitos na rua e o teatro de bonecos natildeo provecirc esse

tipo de espetaacuteculo Entatildeo a gente trabalha muito tipo muitas vezes nos mesmos lugares

Festival internacional tambeacutem porque vocecirc consegue fazer na rua o Bichos do Brasil a gente

fez jaacute fez pra meu 5 6 8 mil pessoas E ele nasceu pra uma sala como essa isso que eacute muito

doido Aiacute ele foi pra rua e a gente soacute fez crescer um pouco a galinha cresceu a onccedila e foi um

abraccedilo oacute funciona daacute certo O Brasil tem uma carecircncia na onda do teatro de bonecos nesse

formato que pode fazer na rua que eacute a abertura dos eventos entendeu Os eventos precisam

se natildeo da abertura de um eacute um passar pela rua trabalhar com a comunidade na rua A gente

agora estaacute fazendo o terceiro [espetaacuteculo de rua com inflaacuteveis] pensando no terceiro

Uilson - Eu queria [fazer] soacute pergunta Uma coisa A relaccedilatildeo do movimento no ano passado

com o pessoal da Brava Cia que a Pia Fraus tambeacutem participou em Satildeo Paulo no dia 22 de

marccedilo

Beto - A gente natildeo participou desse natildeo

Uilson - Vocecircs natildeo participaram natildeo

Beto - Natildeo A Pia Fraus o uacuteltimo movimento digno de nota que a gente participou

politicamente falando eacute o Arte contra a Barbaacuterie Que eacute o projeto que que chega a dar na Lei

de Fomento na cidade Entatildeo o Arte contra a Barbaacuterie se estabeleceu com 10 grupos no

comeccedilo No primeiro ano satildeo dez ou doze grupos conversando entre si e a gente eacute um desses

dez ou doze grupos A gente eacute da matriz total do Arte contra a Barbaacuterie Depois desse

momento pra falar a verdade [eu] me desinteressei bastante da articulaccedilatildeo social em torno do

teatro que eacute uma falha da companhia na verdade A gente ficou muito competente como

gestatildeo A gente passa a ter um monte de espetaacuteculos A gente passa a ser um grupo de

repertoacuterio de fato a partir de 2002 que a gente estaacute fazendo um puta de um espetaacuteculo de

sucesso que eacute o Bichos do Brasil no teatro e aiacute convidam a gente pra ir pros Estados Unidos

com o mesmo espetaacuteculo Falei ldquomeu natildeo tem jeito a natildeo ser duplicarrdquo Quando a gente

duplicou a gente chamou uma audiccedilatildeo apareceu um monte de gente [A gente] fez os

bonecos de novo do Bichos do Brasil e falamos ldquooacute vocecircs ficam aqui fazendo no nosso

lugar a gente vai ali nos Estados Unidos e voltardquo Ficou laacute 15 dias fazendo isso eacute o outro

espetaacuteculo voltamos e quando a gente voltou o puacuteblico natildeo tinha caiacutedo o espetaacuteculo

continuava lotando e a gente falou ldquopocirc olha soacuterdquo Entatildeo a gente pode comeccedila a vender

porque a gente soacute vendia o presencial Era eu e o Beto [Lima] a Pia Fraus era onde estava eu

o Beto e o Domingos Depois o Domingos saiu e aiacute o Beto Era onde estava eu e o Beto A

gente percebeu que podia transcender esse fato entendeu Entatildeo pra mim eacute uma quarta ou

quinta quebra no nosso caminho eacute 2002 quando a gente percebe que pode ter vaacuterios

espetaacuteculos Tem dias em que a gente estaacute em cinco lugares diferentes Que a gente hoje estaacute

fazendo oito espetaacuteculos diferentes de repertoacuterio Mas ativo pra valer satildeo cinco E tem dia

que estatildeo os cinco fazendo um em cada canto Tem cinco Pia Fraus continua com a mesma

histoacuteria assim mas a gente perdeu a relaccedilatildeo com o inteacuterprete vamos dizer assim O grupo jaacute

natildeo depende do inteacuterprete ele depende da linguagem mesmo O que a gente leva pra frente eacute

uma concepccedilatildeo um jeito de fazer teatro com uma visatildeo e natildeo mais o inteacuterprete O inteacuterprete

natildeo eacute que ele eacute indiferente porque o padratildeo de qualidade quem daacute eacute o cara Mas o trabalho

134

Beto se refere aqui ao FITB Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte mostra anual

idealizada e produzida por Lelo Silva e Adriana Focas membros fundadores da Companhia Catibrum de teatro

de bonecos

387

natildeo se baseia tipo onde taacute o Oficina [Uzyna Ozona] estaacute o Joseacute Celso onde estaacute o

Parlapatotildees135

estatildeo o Hugo [Possolo] e o Raul [Barretto] A gente natildeo Onde eu natildeo estou a

Pia Fraus estaacute igual Eacute rariacutessimo eu vir na verdade Fazia meses que eu natildeo vinha a esse

espetaacuteculo e o grupo estaacute fazendo Acabou de fazer vinte espetaacuteculos desse no CEU136

Eu

natildeo fui a nenhum e fizeram tudo bem Entatildeo despersonalisou eacute um modelo de grupo que

natildeo eacute muito usual no Brasil Geralmente eacute mais personalizado A gente virou quase uma

marca quase um modo de fazer teatro

Mario - Vocecirc fala que eacute a linguagem neacute A linguagem eacute a marca a presenccedila da linguagem

Beto - Exatamente

Mario - Essa visualidade essa caracteriacutestica vamos dizer assim visual espetacular que eacute o

que determina

Beto - E tambeacutem tem uma coisa assim enquanto existia o Beto que foi o diretor de arte o

tempo todo dos 21 anos que ele esteve com a Pia Fraus que a Pia Fraus existiu e ele tava

vivo ele dirigiu artisticamente todos os espetaacuteculos no sentido do visual do conceito visual

Eu estabeleccedilo com o Beto o conceito visual e o Beto executa o conceito visual O Beto assina

como artista plaacutestico todos os espetaacuteculos da Pia Fraus que eacute aonde a Pia Fraus estabelece

esse jeito visual de fazer teatro A partir daiacute quando o Beto vai embora esse papel de quem

daacute a cara visual da Pia Fraus muda tambeacutem Por exemplo esse espetaacuteculo137

eacute um livro de um

cara do Michelle Iacoca que o Sidnei [Caria] transpocircs para o boneco os bonecos do cara

Entatildeo no fundo quem daacute as artes plaacutesticas desse espetaacuteculo eacute o Michelle eacute o autor mas

quem faz eacute o Sidnei os bonecos Aiacute [o Sidnei] jaacute fez outros espetaacuteculos e agora natildeo existe

mais um artista que daacute a cara a Pia Fraus jaacute eacute esse conceito do teatro com imagem muito

forte mesmo dentro do teatro de bonecos eacute uma coisa que a gente forccedila na imagem

entendeu

Mario - Entatildeo o Primeiras Rosas natildeo eacute o primeiro esforccedilo da Pia Fraus nesse sentido de

Beto - Natildeo

Mario - De aceitar colaboraccedilotildees muacuteltiplas

Beto - Quando a gente convida o Osvaldo pra refazer o O Olho da Rua comeccedila isso se

inaugura com o Osvaldo

Mario - Com o Osvaldo eacute verdade

Beto - Depois do Osvaldo a gente quase natildeo dirige mais espetaacuteculos sozinhos Sempre eacute co-

produccedilatildeo a gente chama coreoacutegrafo a gente chama iluminador a gente chama sonoplasta a

gente chama criadores de trilha diretores a gente passar a ser eacute o que eu sou hoje com a Pia

Fraus eu o Beto eacuteramos pra Pia Fraus e eu continuo sendo eacute o diretor artiacutestico da

companhia ndash da ideacuteia Pia Fraus Mas a ideacuteia Pia Fraus pra se estabelecer ele passa por mim

soacute como conceito Depois eu agrego esses outros autores artistas atores e diretores que

fazem essa linguagem Ela eacute uma linguagem resultante de colaboraccedilotildees Ela natildeo tem mais

uma Jaacute era resultante de colaboraccedilotildees mais no niacutevel da direccedilatildeo da iluminaccedilatildeo da

sonorizaccedilatildeo Mas quando o Beto parte aiacute ateacute o que ele respondia que eram as artes plaacutesticas

135

Parlapatotildees Patifes e Paspalhotildees eacute uma companhia paulista de comeacutedia e palhaccedilaria fundada por Hugo

Possolo e Raul Barretto 136

CEU ndash Centro Educacional Integrado Projeto de centros de ensino da Prefeitura da Cidade de Satildeo Paulo que

conta com programas de compra e circulaccedilatildeo de espetaacuteculos para os seus alunos 137

A referecircncia eacute ao espetaacuteculo As aventuras de Bambolina A Pia Fraus apresentou no Festival ANIMAUDI de

2001 dois espetaacuteculos As aventuras de Bambolina para crianccedilas e Primeiras Rosas para adultos

388

aiacute tambeacutem passa a ser colaborativo cada vez eacute um artista que responde Por exemplo o

[espetaacuteculo] que vocecirc vai ver hoje [Primeiras Rosas] eacute que ele natildeo foi percebido como tal

natildeo foi falado como tal mas eacute um espetaacuteculo interessante na sua concepccedilatildeo Porque satildeo

quatro histoacuterias do Guimaratildees Rosa com quatro diretores [sendo um] para cada histoacuteria Eu

fiz a concepccedilatildeo eu elegi cada diretor que me pareceu mais conveniente pra cada linguagem

determinei a sequumlecircncia das histoacuterias Mas cada diretor responde pela sua parte e pela esteacutetica

da sua parte Tudo discutido comigo Entatildeo cada trecho dessa peccedila tem um diretor artiacutestico e

um diretor de artes tem um diretor de cena vamos dizer cecircnico e um diretor de arte Um

bonequeiro e um diretor cada parte138

Mario - Que satildeo Miguel Vellinho139

Beto - O Miguel Vellinho com o menino dele laacute como eacute que chama o cara que faz os

bonecos do Miguel

Mario - Com o Michel

Beto - O Michel fez a parte estrutural a esteacutetica eacute outro menino O outro que eacute professor

tambeacutem com ele

Mario - Ah sim O Carlinhos [Carlos Alberto Nunes]140

Beto - Entatildeo pra mim o diretor de cena eacute o Miguel e o diretor de arte eacute o Carlos O do

Vando [Wanderely Piras] o diretor de cena eacute ele e o diretor de arte eacute o Sidnei [Caria] porque

ele fez os bonecos

Mario - Certo

Beto - Do Carlos Lagoeiro141

o diretor cecircnico eacute ele e a Marion [Hoekveld] que eacute uma artista

plaacutestica holandesa Eles moram na Holanda Soacute o Alexandre Faacutevero que junta os dois porque

a esteacutetica eacute dele tambeacutem142

Entatildeo ele junta os dois Entatildeo satildeo vaacuterias cabeccedilas pensando ao

mesmo tempo e eu ainda coordenando todos eles Eacute um espetaacuteculo que foi muito interessante

fazer como processo Foi um dos mais ricos da histoacuteria da Pia Fraus como resultado Natildeo

sei pode gostar pode natildeo gostar Aiacute sei laacute vocecirc me fala depois Mas como processo eacute o

mais interessante

Mario - Beto muito obrigado

Beto - Imagina

Mario - Valeu obrigado mesmo Soacute pra fechar a conversa nos programas da Pia Fraus

como eacute que vocecirc determina o seu elenco Entra elenco Atores Marionetistas

Manipuladores

Beto - Elenco

138

A peccedila eacute dividida em 4 quadros apoiados em contos de Guimaratildees Rosa sendo um deles um conjunto de

cenas de ligaccedilatildeo Estatildeo divididos da seguinte maneira entre os artistas convidados 1) As margens da alegria

Alexandre Faacutevero (Cia Lumbra) 2) A terceira margem do Rio Miguel Vellinho e Carlos Alberto Nunes

(PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo) 3) O cavalo que bebia cerveja Carlos Lagoeiro e Marion Hoekveld (Cia

Muganga) 4) Interligaccedilatildeo Wanderley Piras e Sidnei Caria 139

Miguel Vellinho foi fundador do Grupo Sobrevento diretor e fundador da Cia PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo 140

Carlos Alberto Nunes Cenoacutegrafo e professor de cenografia do Curso de Artes Cecircnicas da UNIRIO tambeacutem eacute

membro da PeQuod 141

Carlos Lagoeiro eacute diretor da companhia fundada por brasileiros e radicada na Holanda chamada Muganga 142

O trabalho de Alexandre Fpavero junto agrave Cia Lumbra eacute centrado do trabalho com teatro de sombras

389

ANEXO C

Entrevista com Catin Nardi143

Cia Navegante de Teatro de Bonecos

Bloco de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) Uberlacircndia 07 de

novembro de 2010144

Mario ndash Catin seu nome inteiro

Catin ndash Catin Nardi [soletra]

Mario ndash Eu queria que vocecirc me falasse um pouco a sua trajetoacuteria dentro do teatro de

animaccedilatildeo se vocecirc sempre esteve ligado agrave companhia Navegante se este eacute o seu prijheto

central Quando vocecirc comeccedilou que tipo de experiecircncia vocecirc tem antes

Catin ndash Oacutetimo

Mario ndash O que vocecirc vecirc na Argentina e traz para o Brasil Quais satildeo as diferenccedilas

Catin ndash Joacuteia A minha histoacuteria a minha experiecircncia eu venho do teatro Depois de dez anos

trabalhando enquanto ator iniciando carreira em escola de segundo grau dentro de grupo

amador afortunadamente com bons diretores com pessoas com uma visatildeo bem seacuteria bem

concreta do teatro [foi] depois disso que eu vim para o Brasil que eu fui me dedicar a

trabalhar com marionetes Mas eu jaacute inseria bonecos dentro do teatro na Argentina Entatildeo a

gente estaacute falando aiacute de iniacutecio da deacutecada de [19]80 E nesse periacuteodo eu passei cinco anos na

Universidade Federal do Litoral145

vinculado a um projeto de extensatildeo universitaacuteria que

pretendia instalar ou um curso de artes cecircnicas ou uma comeacutedia universitaacuteria permanente

um grupo estaacutevel dentro da universidade No uacuteltimo desses cinco anos eu me afastei da

universidade e fui para Rosario [ Argentina] que eacute uma cidade que fica a 200 quilocircmetros da

minha cidade natal e trabalhei em teatro de rua comecei a abordar teacutecnicas circenses

pandeiras perna de pau fogo malabares e tal E descobri uma nova linguagem que era o

teatro feito fora do acircmbito do teatro E isso implicou uma seacuterie de novos conceitos porque ateacute

entatildeo eu tinha trabalhado um pouco com teatro experimental tinha trabalhado um pouco com

teatro claacutessico e tal E a partir do momento em que eu saio da estrutura da universidade da

estrutura de escola e vou para um grupo independente aiacute eu comeccedilo a desenhar o que era

viver de teatro Entatildeo eu acho que essa foi a experiecircncia que me deu a base para se vocecirc vai

viver disso entatildeo vocecirc vai ter que concentrar muita energia nisso A minha vida passa por um

momento muito interessante conheci uma pessoa uma moccedila com a qual eu fui casado

durante alguns anos e eu saiacute da Argentina para morar numa praia no Espiacuterito Santo E eu me

encontrei numa praia paradisiacuteaca onde natildeo tinha pessoas para trabalhar comigo em teatro E

aiacute eu decidi a comeccedilar em invetir na construccedilatildeo de bonecos Num primeiro instante como eu

jaacute tinha certo fasciacutenio pelos marionetes de fio pela marionete em si e tinha feito algumas

experiecircncias com tiacuteteres com o fantoche de luva que eacute mais comum de se ver na Argentina

tinha feito algumas experiecircncias com bonecos gigantes e fiz umas pesquisas entre [19]90

143

O artista de animaccedilatildeo argentino Catin Nardi iniciou-se no teatro em 1981 A partir de 1990 radicado no

Brasil dedica-se a pesquisa e construccedilatildeo de marionete de fios A abertura da novela As filhas da matildee e a

minisseacuterie ldquoHoje eacute Dia de Mariardquo da Rede Globo satildeo algumas das suas mais importantes produccedilotildees para a

televisatildeo Em 1994 Catin Nardi criou O navegante A companhia apresenta espetaacuteculos e ministra oficinas em

festivais teatros e espaccedilos informais encantando plateacuteias de todas as idades atraveacutes da sofisticada arte das

marionetes de fios 144

Entrevista concedida durante a oficina de construccedilatildeo de bonecos de manipulaccedilatildeo direta ministrada pelo artista

durante a ediccedilatildeo de 2010 do Festival de Teatro de Formas Animadas de Uberlacircndia AnimaUDI 145

Aqui Catin se refere agrave instituiccedilatildeo argentina Universidad Nacional del Litoral situada na proviacutencia de Santa

Fe

390

[19]93 e montei um primeiro trabalho misturando vaacuterias teacutecnicas de bonecos Entatildeo trabalhei

com bonecos de vara trabalhei com bonecos de meio bastatildeo trabalhei com bonecos de mesa

trabalhei com dois tipos de marionete diferentes trabalhei com bonecos gigantes e misturei

um pouco isso ao universo do teatro em si porque ainda era muito presente Entatildeo tinha

pernas de pau era uma montagem grande com muita gente e tal Realmente se tornou

inviaacutevel dar sequencia a isso Em [19]94 se inicia a companhia Navegante de Teatro de

Bonecos ndash ateacute o fato da navegaccedilatildeo eacute uma coisa que estaacute ligado ao mar O lugar onde eu

morava era uma cidade muito bonita e eu ficava no alto de um mosteiro que tinha e vendo as

embarcaccedilotildees voltarem no fim da tarde e achava extremamente corajoso esses caras viajarem

sete horas dentro de umas ldquocasquinhas de nozrdquo para ir pescar e voltar deposi de quatro cinco

dias dentro do mar para depois voltar Entatildeo a ideacuteia da companhia Navegante eacute inspirada pelo

mar Isso estaacute ligado um outro fato Eu conheci Aacutelvaro Apocalypse146

na eacutepoca Passei um

veratildeo no Rio de Janeiro com ele estudando e aprendi a teacutecnica de construccedilatildeo alematilde a teacutecnica

do BROSS e eacute o que lapidou digamos o meu trabalho E aiacute inicia-se a companhia Navegante

de teatro de marionetes E de todas as experiecircncias que eu tinha feito a que realmente mais

me [parecia] desafiadora era o boneco de fios que eacute aminha especialidade que eu gosto mais

de fazer Entatildeo em [19]94 eu estreei um espetaacuteculo que se O Catavento eacute uma pesquisa

sobre relaccedilotildees de gecircnero humano Eacute uma montagem que rodou muito entre [19]94 e [19]98

Depois parou mas eventualmente a gente apresenta eacute um espetaacuteculo do repertoacuterio E em

[19]96 eu comeccedilo uma pesquisa sobre teacutecnica no marionete Entatildeo pai eu comeccedilo a fazer uma

miscelacircnea de coisas eacute um espetaacuteculo de variedades que eacute o nosso cavalo de batalha o

Musicircus que eacute um espetaacuteculo de experimentaccedilatildeo de marionete Entatildeo tem boneco que eu

vou montando ele em cena tem boneco que cospe fogo tem bonecos que pegam objetos tem

bonecos que tocam instrumentos e uma grande preocupaccedilatildeo na forma no movimento que [eacute

o que] eu mais prezo na hora do trabalho sabe Como iniacutecio e caminha e carreira no universo

do boneco comeccedila por aiacute

Mario ndash A Navegante hoje tem um repertoacuterio de quantos

Catin ndash Seis montagens Tem um espetaacuteculo de rua grande feito com bonecos gigantes

anotildees que eacute uma coisa que eu tambeacutem desenvolvi visando algumas questotildees de praticidade

sobretudo de transporte dos bonecos Eacute uma cabeccedila grandona o boneco todo articulado mas

ele eacute pequenininho E a gente viaja com uma equipe de vinte pessoas para fazer um espetaacuteculo

de rua que eacute super dinacircmico divertido entendeu Tem funcionado muito bem eacute muito

interessante O Catavento como eu te falei eacute a primeira montagem o Musicircus que o meu

espetaacuteculo como solista Que bicho seraacute satildeo os bonecos de um texto de antes do Machado

daqui de Minas Gerais que foi uma pesquisa feita com cabaccedilas e originou os bonecos de Hoje

eacute dia de Maria147

Jaacute tinha feito uma experiecircncia com o Hans Donner148

com a abertura da

novela As filhas da matildee (2001-2002) que ele tinha visto os meus bonecos na Candelaacuteria a

gente falou da Candelaacuteria ontem no Centro Cultural do Banco do Brasil (RJ) e me chamou

para fazer a abertura de uma novela E a gente tem um trabalho grande com filmagem Tem

seriados tem viacutedeos educativos e tal Claro que natildeo eacute veiculado nas miacutedias grandes como eacute

o caso da Globo E entatildeo eacute uma outra aacuterea de trabalho nossa Mas eu estava falando do

repertoacuterio Que bicho sera Musicircus caixas de teatro ndash temos vaacuterios lambe-lambes149

que

146

Aacutelvaro Apocalypse (1937-2003) Artista plaacutestico e de animaccedilatildeo co-fundador e diretor do Giramundo Teatro

de Bonecos 147

Seacuterie televisiva brasileira apresentada pela Rede Globo de Televisatildeo ao longo do ano de 2005 com direccedilatildeo de

Luiz Fernando Carvalho A seacuterie empregou recursos pouco usuais na linguagem da televisatildeo brasileira como

teatro de bonecos Catin participou da equipe de construtores e operadores de alguns desses bonecos 148

Artista de videografia responsaacutevel pelas vinhetas e aberturas da programaccedilatildeo da Rede Globo de Televisatildeo 149

Tambeacutem chamado de caixa de teatro Modo de apresentaccedilatildeo com teatro de bonecos para poucos ou apenas

um espectador por vez feito dentro de uma caixa fechada em escala reduzida O posicionamento do espectador

391

a gente considera como uma montagem tem quatro Eco ndash eu sei eacute uma montagem feita com

material reciclado um pouco resultado dessas oficinas que a gente daacute Esse eacute o nosso

repertoacuterio

Mario ndash Pelo que eu estou entendendo haacute uma variedade muito grande em formas de

manipulaccedilatildeo Cada espetaacuteculo vai trabalhar com ndash

Catin ndash Noacutes temos trecircs montagens que satildeo espetaacuteculos de marionetes Musicircus Que bicho

seraacute e O Catavento Aiacute depois noacutes temos espetaacuteculos de rua que satildeo os grandotildees tem os

bonecos de mesa que satildeo os do espetaacuteculo ecoloacutegico e tem a teacutecnica de manipulaccedilatildeo das

caixas de teatro lambe-lambe Metade do trabalho satildeo marionetes a outra metade satildeo outras

teacutecnicas que foram desenvolvidas ou que satildeo teacutecnicas jaacute conhecidas mas a gente trabalhou

em cima disso

Mario ndash Se vocecirc fosse por na balanccedila vocecirc se considera mais um construtor ou algueacutem da

performance

Catin ndash Na balanccedila Sabe que essa eacute uma pergunta oacutetima Ningueacutem nunca me perguntou se

eu sou mais construtor ou se eu sou mais ator manipulador Eu acho que estaacute meio que pau a

pau acho que tem um certo equiliacutebrio Pelo fato de eu vir do teatro Se eu fosse das [artes]

plaacutesticas certamente eu seria um construtor de bonecos sabe Mas como eu venho do teatro

eu sinto tanto tesatildeo de estar dentro do meu ateliecirc sozinho virando madrugadas ndash ou com

equipe dependendo da situaccedilatildeo ndash quanto me deslocar para um lugar para montar um

espetaacuteculo para apresentar Entatildeo sinceramente acho que estou sendo mais sincero quanto eacute

possiacutevel acho que tem um equiliacutebrio mesmo entre esses dois universos e satildeo dois universos

inteiramente diferentes

Mario ndash Haacute uma interdependecircncia

Catin ndash Sem duacutevidas porque na hora que vocecirc estaacute criando para construir necessariamente

vocecirc estaacute permanentemente pensando em cena Entatildeo vocecirc estaacute ndash justamente o que eacute o

marionetista Eacute um misto de ator diretor e artista plaacutestico Vocecirc estaacute ali nesse universo de

projeto de construccedilatildeo com uma finalidade teatral cecircnica Agora hoje eu tenho muito mais

preocupaccedilatildeo comigo enquanto ator do que enquanto construtor Eu acho que o que eu poderia

determinar enquanto construtor de bonecos O que eu domino hoje eu me sinto agrave vontade para

trabalhar Agora enquanto ator e enquanto diretor eu estou muito longe de me sentir

satisfeito Tanto que neste momento eu passei no vestibular Eu estou estudando teatro e tem

sido uma oportunidade fantaacutestica porque como eu venho da praacutetica todas as informaccedilotildees

que eu trago satildeo muito soltas e de alguma forma eu tambeacutem estou acessando esse

conhecimento Eu estou juntando um monte de informaccedilotildees Entatildeo assim enquanto ator e

enquanto diretor eu me sinto infinitas vezes menos capacitado que enquanto construtor

entende

Mario ndash Eu quero te fazer uma outra pergunta mas antes eu preciso que vocecirc me faccedila um

esclarecimento Faz uma descriccedilatildeo breve dessa teacutecnica de construccedilatildeo que vocecirc trabalhou com

o [Aacutelvaro] Apocalypse

Catin ndash Aacutelvaro ensinava uma teacutecnica que eacute Alebericht Bross um cara que no iniacutecio do

seacuteculo passado150

criou um meacutetodo que eacute baseado num meacutetodo de construccedilatildeo de bonecos

inglecircs Soacute que o cara simplifica ndash simplifica por um lado e complica por outro porque

ao inserir a cabeccedila dentro da caixa para assistir agrave apresentaccedilatildeo muitas vezes cobrindo a cabeccedila com um pano eacute

muito semelhante agrave postura dos antigos fotoacutegrafos de praccedila chamados de lambe-lambe de onde a modalidade de

apresentaccedilatildeo extraiu o seu nome 150

Catin se refere aqui ao seacuteculo XIX como sendo o ldquoseacuteculo passadordquo

392

simplifica na cruz de manipulaccedilatildeo ele junta as peccedilas da cruz de manipulaccedilatildeo para uma matildeo

soacute com uma matildeo soacute vocecirc consegue caminhar e movimentar o boneco todo e por outro lado

ele faceta o boneco Enxerga o boneco por dentro mais detalhadamente e desenvolve um

meacutetodo que eacute o seguinte vocecirc faz primeiro um desenho uma caricatura ou enfim uma

imagem figurativa depende do que vocecirc escolhe E sobre isso vocecirc vira o boneco em vaacuterias

partes e faz planta dele Entatildeo vocecirc visualiza o boneco por dentro Vocecirc faceta ele todo e

depois vocecirc desmonta digamos o boneco em diferentes placas e faz uma construccedilatildeo

progressiva daquilo Ou seja vocecirc natildeo pega uma peccedila e faz uma regressatildeo dela Vocecirc

constroacutei progressivamente vocecirc vai enchendo de placas para chega no volume onde vocecirc

quer e faz soacute o acabamento Esse meacutetodo eacute muito interessante porque vocecirc consegue

visualizar o boneco por dentro detalhadamente e vocecirc constroacutei o boneco em funccedilatildeo da sua

mecacircnica Entatildeo se suponhamos vocecirc tem uma cabeccedila muito volumosa com olhos muito

grandes vocecirc vai primeiro visualizar como vocecirc vai construir essa cabeccedila em funccedilatildeo da

mecacircnica interna E isso facilita muito a restauraccedilatildeo de bonecos Porque agraves vezes quebram

umas peccedilas internas e vocecirc irremediavelmente vai buscar o projeto desse boneco vocecirc vai

olhar por dentro dele e falar assim ldquoah taacute o que quebrou foi issordquo Entatildeo se eu fizer um furo

aqui eu vou atingir a peccedila vou tirar ela vou substituir vou colocar uma trava e fechar ela

Vou dar o acabamento de novo Claro que a gente vai ficando esperto com o tempo e vai jaacute

deixando aberturas provaacuteveis de acesso pra qualquer tipo de problema de manutenccedilatildeo Mas o

que o Aacutelvaro ensinou e me proporcionou foi exatamente essa capacidade de vocecirc olhar para

um boneco como um objeto de construccedilatildeo teacutecnica Agora eu acho que o que o Aacutelvaro me

ensinou foi muito aleacutem disso tanto o Aacutelvaro quanto a Teresa151

que o viacutenculo que eu tive foi

exclusivamente com eles dentro do ateliecirc deles laacute na UFMG na eacutepoca O Aacutelvaro era um cara

que vocecirc chegava para conversar com ele e ele natildeo te dava bola Vocecirc ficava ateacute meio

incomodado assim Entatildeo daqui a pouco vocecirc dizia bom entatildeo estou indo embora ldquoNatildeo

Peraiacute peraiacute natildeo vai natildeordquo E aiacute ele largava o laacutepis e comeccedilava a conversar Foi um cara que

me deu altos toque que me deu altos conselhos e foi um orientador sabe E foi uma pessoa

extremamente interessante e objetiva E eu por alguns momentos tive desejo de trabalhar com

ele e senti uma certa resistecircncia Ele sempre falava assim ldquoO que vocecirc sabe fazer soacute vocecirc

sabe fazer Entatildeo pega o teu barco e vai em frente Vai em frente porque eacute isso O que vocecirc

tem pela frente vocecirc tem que desbravar esse caminho sozinhordquo

Mario ndash Para encerrar nossa conversa outra provocaccedilatildeo a gente teve uma conversa logo no

iniacutecio da semana e eu surpreendi um comentaacuterio seu e eu quero tentar falar um pouco sobre

uma visatildeo a respeito do teatro de animaccedilatildeo agora contemporacircneo Essa questatildeo da presenccedila

ou da ausecircncia da figura do boneco na cena do teatro de bonecos Isso parece ser para vocecirc

um tema de conversa Entatildeo eu queria que vocecirc desenvolvesse essa questatildeo

Catin ndash Sim Eu fico bastante preocupado ao ir para festivais e obviamente que cada vez

mais se estabelece a ideacuteia de forma animada porque estaacute ficando cada vez mais claro o que eacute

teatro de bonecos o que eacute forma animadas e tal Como conceito eacute tudo uma coisa soacute mas

vocecirc comeccedila a frequentar festivais vocecirc vai pro festival de [teatro de] boneco e natildeo vecirc

boneco Um dois trecircs cinco dez espetaacuteculos e fala gente peraiacute onde eacute que estaacute o boneco

cara Onde estaacute aquele construtor de bonecos que se associou a um grupo de teatro e

desenvolveu um trabalho ou que eacute um cara do teatro e desenvolve bonecos para cenas de

teatro E aiacute eu comeccedilo a ficar um pouco preocupado com isso porque eu quero ver boneco

Se eu vou ver um espetaacuteculo de teatro de bonecos eu quero ver o boneco Quero ver um

boneco soacute com dez atores mas eu quero ver o boneco fazendo teatro E a coisa caiu ndash sabe ndash

desandou ndash natildeo gosto dessa palavra ndash desviou para uma outra linguagem que eu natildeo

151

Terezinha Veloso co-fundadora do Teatro Giramundo com Aacutelvaro Apocalypse e Maria do Carmo Martins

393

desconsidero eu acho absolutamente vaacutelida que se engaja provavelmente dentro do teatro

contemporacircneo Mas eu tenho quarenta e quatro anos tenho anos de carreira comecei

exatamente aos quatorze anos eu ver coisas que eu vi no ano [19]81 [19]82 a mesmiacutessima

coisa eacute como se eu natildeo tivesse vendo nada Para o rapaz que trabalha com a gente que tem

dezoito anos talvez possa ser uma novidade Mas para mim ver uma pessoa da minha idade

fazer uma coisa que jaacute se faz haacute trinta anos com o mesmo iacutempeto de quando se fazia haacute trinta

anos que era uma novidade me deixa um pouco desiludido Entatildeo eu fico me questionando

ateacute que ponto natildeo estaacute se usando entre aspas a arte do teatro de bonecos para fazer outra

coisa Eacute um caminho um universo difiacutecil de a gente discutir eu natildeo acho que em cinco

minutos eu consigo definir Mas eu acredito que vocecirc pode entender da minha preocupaccedilatildeo

quando eu vejo uma coisa e quando de repente eu trombo com uma montagem que traz

quatro bonecos em cena um cenaacuterio uma boa iluminaccedilatildeo e fundamentalmente uma boa ideia

de dramaturgia teatral Esse dia eu vou laacute assisto a um espetaacuteculo e digo bom hoje eu vi

teatro de bonecos E eu tento defender um pouco isso eu tento martelar isso na cabeccedila das

pessoas Pra dizer assim aprenda a fazer um boneco crie monte e venda uma cena de teatro

de bonecos Essa oficina que a gente trouxe aqui para Uberlacircndia tem esse objetivo crie seus

bonecos Tanto que no manual [da oficina] em seu final estaacute escrito justo isso crie uma cena

venda um espetaacuteculo Eacute isso eacute buscar essa linguagem de criaccedilatildeo e construccedilatildeo de bonecos

para teatro feito com bonecos Isso eacute uma coisa que para mim cada vez mais eu martelo

incentivo as pessoas e tal E insisto natildeo desconsidero as diversas formas que o teatro de

bonecos o teatro de objetos o teatro de formas animadas como quer que se chame propotildee

Mas tem umas coisas que me satildeo muito mais verdadeiras tem outras que natildeo satildeo tatildeo assim

Aquele espetaacuteculo que eu assisto e preciso de tempo para pensar nele ndash sabe ndash me daacute uma

certa preguiccedila Aquele espetaacuteculo que me chega com facilidade que vocecirc vecirc o trabalho que

vocecirc vecirc um cara que ralou pra construir um boneco que ele faz o que todos os bonecos fazem

e alguma coisinha a mais que eacute desse bonequeiro aiacute isso me daacute satisfaccedilatildeo me daacute prazer E eacute

teatro Que eacute definitivo que me movimenta Eacute o que sempre me levou a buscar mesmo que

seja com bonecos a minha preocupaccedilatildeo eacute teatro

Mario ndash Catin muito obrigado

Catin ndash Eu que agradeccedilo

394

ANEXO D

Entrevista com Alexandre Faacutevero Cia Lumbra Teatro de sombras

Hotel Sanare Uberlacircndia 26 de junho de 2011152

Mario ndash Antes de tudo diga seu nome

Alexandre ndash Alexandre Faacutevero

Mario ndash E qual posto vocecirc ocupa em qual companhia teatral

Alexandre ndash Eu sou o encenador da Companhia Teatro Lumbra de Animaccedilatildeo de Porto

Alegre

Mario ndash Fale um pouco sobre o iniacutecio da companhia mas eu gostaria de orientar a sua

exposiccedilatildeo com a seguinte questatildeo qual foi o desejo artiacutestico que constituiu a Lumbra

Alexandre ndash A companhia Lumbra surge de uma necessidade minha como curiosos e como

artista de desenvolver uma arte que conseguisse juntar os meus interesses as minhas

curiosidades como cenoacutegrafo como fotoacutegrafo amador como artista graacutefico como desenhista

desde a infacircncia e que pudesse de alguma forma juntar todos esses conhecimentos essas

informaccedilotildees que me interessavam Entatildeo o teatro de sombras foi o gecircnero que mais

conseguiu se aproximar desse meu desejo Eacute claro que eu comecei a influenciar o meu proacuteprio

processo e os meus conceitos com a minha bagagem infantil que era o que eu desejava fazer

Entatildeo sempre o meu processo artiacutestico partiu de um interesse ligado agrave minha vivecircncia quando

crianccedila Tanto que a minha primeira obra artiacutestica que foi o Saci Pererecirc153

que foi a primeira

assinatura como diretor que eu fiz surgiu de uma provocaccedilatildeo que a proacutepria vida me fez que

foram as minhas experiecircncias de andar no meio do mato de querer enxergar entidades

sobrenaturais de gostar de pregar peccedilas no outros dar sustos Entatildeo a concepccedilatildeo desse meu

primeiro espetaacuteculo se utilizou desse medo que eu tinha quando era crianccedila e dessa minha

necessidade depois de adulto em provocar [medo] nas crianccedilas que era meu puacuteblico alvo

Mario ndash E historicamente como aconteceu Vocecirc jaacute tinha um percurso como cenoacutegrafo

Qual eacute a histoacuteria da constituiccedilatildeo da companhia

Alexandre ndash Eu comecei como cenoacutegrafo esse foi o meu desafio na troca da profissatildeo que eu

tinha anterior[mente] A arte sempre foi muito presente na minha vida E quando eu decidi

viver de arte eu tive que passar por um processo o que natildeo foi muito demorado Eu natildeo digo

que foi sorte porque natildeo acredito nisso Mas foram desejos que eu tive e que aconteceram

rapidamente Fiz uma pequena oficina de cenografia e comecei a conviver com bonequeiros

outros artistas do teatro de animaccedilatildeo que foram o Mario de Balentti o Paulo Balardim154

e

eles foram os meus primeiros colegas do teatro de sombras A gente encontrou um desafio

juntos que foi conceber um espetaacuteculo para um cliente em Porto Alegre e noacutes cumprimos

152

Essa entrevista foi concedida no uacuteltimo dia do trabalho em teatro de sombra ministrado pela companhia

Lumbra para o grupo Trupe de Truotildees de Uberlacircndia com vistas a incorporar elementos de teatro de sombras

no proacuteximo espetaacuteculo da companhia uberlandense Aladim Eu participei do trabalho como convidado da Trupe

de Truotildees 153

Saci Pererecirc ndash a lenda da meia-noite (2003) foi o primeiro espetaacuteculo da cia Lumbra Teatro de Animaccedilatildeo A

peccedila teve como inspiraccedilatildeo a obra O Saci de Monteiro Lobato O espetaacuteculo foi ganhador de trecircs precircmios

Tibicuera (concedido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre RS) no ano de 2003 (melhor

direccedilatildeo melhor iluminaccedilatildeo e melhor trilha sonora) No mesmo ano o espetaacuteculo teve duas premiaccedilotildees no

Festival de Teatro Isnard Azevedo promovido pela fundaccedilatildeo de cultura da cidade de Florianoacutepolis SC (melhor

direccedilatildeo e melhor iluminaccedilatildeo) 154

Fundadores e diretores da companhia Caixa do Elefante (RS)

395

esse desfio em trecircs meses sem muito conhecimento de causa mas sim com muita

curiosidade Cada um comeccedilou a se apropriar de uma tarefa e intuitivamente a gente foi

somando esses talentos esses conhecimentos que cada um tinha para conceber uma primeira

obra Essa foi uma obra fracassada

Mario ndash Qual foi

Alexandre ndash Foi um trabalho que noacutes fizemos para a Secretaria do Meio Ambiente de Porto

Alegre para fazer uma intervenccedilatildeo num evento chamado Agenda 21 mirim uma campanha

nacional que tenta levar conceitos de educaccedilatildeo ambiental para as escolas Entatildeo a gente

montou um espetaacuteculo que tinha como tema a criaccedilatildeo do mundo a poluiccedilatildeo e a cidade ideal

Entatildeo noacutes encaramos o desafio montamos o espetaacuteculo e na hora de apresentar foi um grande

desafio porque era uma plateia de 1500 adolescentes mais ou menos e eu acho que ela

chegou ateacute a metade Da metade pro fim os organizadores resolveram parar com a

apresentaccedilatildeo e seguir com a programaccedilatildeo do evento que tinha outras coisas mais

interessantes vamos dizer assim para apresentar Eu acho que essa frustraccedilatildeo que eu tive laacute

me ajudou depois a criar um projeto onde eu pudesse aplicar aqueles conceitos que a gente

investigou juntos e que eu natildeo tive a oportunidade de por em praacutetica como eu gostaria Esse

primeiro trabalho teve a orientaccedilatildeo de um diretor que jaacute tinha uma concepccedilatildeo planejada ou

seja natildeo consegui dar vazatildeo agrave minha capacidade criativa Daiacute eu fiz um projeto que foi

contemplado com uma verba de Apoio a Montagens Cecircnicas de Porto Alegre e eu pude

explorar do meu jeito um teatro de sombras que fosse mais adequado agraves coisas que eu

pensava e estava com mais vontade de pesquisar naquela eacutepoca

Maacuterio ndash E jaacute foi o Saci

Alexandre ndash Jaacute foi o Saci que eacute um trabalho altamente experimental o conceito dele eacute

experimentaccedilatildeo Foi o que eu consegui levantar ao longo de dois anos de material de

improvisaccedilatildeo de experimentaccedilatildeo e se transformou numa obra de arte em que isso fica muito

claro

Mario ndash Curioso porque o Saci tem muito de experimentaccedilatildeo mas por causa da quantidade

de materiais usados dos diferentes efeitos aproveitados eacute uma experiecircncia de rigor tambeacutem

Eacute um espetaacuteculo rigoroso em que natildeo haacute interrupccedilotildees contiacutenuo preciso muito limpo nas

transiccedilotildees Ele passou por algum tipo de transformaccedilatildeo

Alexandre ndash Ateacute hoje ele passa Ele estreou em outubro no dia da crianccedila de 2002 Eu iniciei

esse processo no final de [19]99 e a companhia foi fundada em funccedilatildeo desse espetaacuteculo

Entatildeo sempre houve uma necessidade minha de uma identidade de encontrar uma identidade

E durante esse processo eu tinha um planejamento que foi totalmente alterado Era pra ser um

espetaacuteculo hiacutebrido que mexia com objetos bonecos e sombras mas tentando fazer com que

todas essas linguagens se relacionassem dentro da dramaturgia E quando eu comecei a

explorar a sombra que foi o primeiro gecircnero que eu trabalhei nas investigaccedilotildees eu vi que ela

era suficiente para incorporar a identidade do Saci e a minha proacutepria identidade como criador

Entatildeo eu abri matildeo das outras linguagens Cheguei a explorar elas mas rapidamente

abandonei Porque o teatro de sombras exigia esse rigor e eu me interesse muito pelo preacute-

cinema Esse limite entre o teatro de sombras europeu que conseguiu incorporar a tecnologia

da lacircmpada que jaacute havia teatros exclusivos para teatro de sombras na Franccedila

Mario ndash O Chat Noir155

155

Cabareacute parisiense que funcionou no distrito boecircmio de Montmartre na capital francesa entre os anos de 1881 e 1897 Era reconhecido juntamente com suas apresentaccedilotildees de variedades como um lugar para assistir

apresentaccedilotildees de teatro de sombras

396

Alexandre ndash Isso Me chamou muito agrave atenccedilatildeo esse tipo de valorizaccedilatildeo que o teatro de

sombras teve prestes a se iniciar o fenocircmeno do cinema Mas ao mesmo tempo eu natildeo

gostava da intimidade que aquele teatro europeu tinha com o teatro de sombras oriental que

era a grande inspiraccedilatildeo dos artistas daquela eacutepoca Entatildeo eu comecei a buscar uma coisa que

fosse mais afinada com a velocidade que eu vivia naquele ano de 2000 que era a virada do

seacuteculo que era aquela coisa do fim do mundo e ao mesmo tempo a gente iniciando uma

mudanccedila que necessariamente natildeo existia muita coisa mudando mas ao mesmo tempo

chegava o videogame com uma outra forccedila de integraccedilatildeo do jogador com o jogo Tinha

tambeacutem o cinema que comeccedilava a ter os seus efeitos especiais o [cineasta norte americano

Steven] Spielberg jaacute vinha trazendo essa velocidade esse encantamento da cenografia da

ambientaccedilatildeo das maacutescaras do espaccedilo Entatildeo tinha uma coisa ali que eu gostava muito e que

me interessava demais e que esse teatro de sombras antigo europeu jaacute natildeo comportava pra

mim E aiacute foi onde eu comecei a me aproximar dessa dinacircmica do cinema mais primitiva

possiacutevel para poder encontrar uma ligaccedilatildeo com o teatro de sombras que era uma arte muito

rudimentar muito dura muito seca mas que eu de certa forma jaacute explorava nas artes graacuteficas

Eu trabalhei muitos anos com laboratoacuterio em preto e branco Eu revelava fotos fotolitos fazia

serigrafia tinha todo esse processo artesanal aiacute [] Eu jaacute estava impregnado dessa arte de

captar de compor de ter uma memoacuteria fotograacutefica desenvolvida Jaacute desenhava muito jaacute tinha

uma experiecircncia com quadrinhos com textos Entatildeo a junccedilatildeo disso no Saci foi muito

importante

Mario ndash Percebo que vocecirc [exerce] uma centralidade no processo criativo da Lumbra e me

diga uma coisa a companhia tem componentes fixos Quantos componentes satildeo fixos

Houve troca de componentes ao longo desses 11 anos

Alexandre ndash A companhia se formou com o espetaacuteculo do Saci que eram dois sombristas156

A gente viveu trecircs quatro anos somente com esses dois sombristas sendo que eu dava conta

de toda essa parte dramaacutetica plaacutestica e da encenaccedilatildeo como um todo O meu colega Flaacutevio

que foi meu companheiro no iniacutecio desse processo tinha um trabalho muito importante que

aleacutem de atuar comigo fazia toda essa parte de produccedilatildeo do espetaacuteculo Pra construir esse

espetaacuteculo a gente lanccedilou matildeo de outros artistas que fizeram a parte eletroteacutecnica das

ferramentas de trabalho da parte de iluminaccedilatildeo Um muacutesico que foi o Gustavo Finter que

fez a trilha sonora que tambeacutem foi muito experimental e se adequou muito agrave proposta da

cena e alguns outros colaboradores que serviram com uma espeacutecie de assessoria agrave direccedilatildeo E

foi fundamental isso jaacute que eu literalmente tateava no escuro para descobrir essa linguagem

nessa eacutepoca e que me deram indicaccedilotildees muito interessantes que eu uso ateacute hoje Bonequeiros

experientes mais antigos que jaacute tinham passado por vaacuterios festivais assistido vaacuterios

espetaacuteculos de sombra e conseguiram me dar um retorno que foi alternado o meu processo

criativo e de direccedilatildeo

Mario ndash Vocecirc consegue identificar a existecircncia de um perfil meacutedio em termos de formaccedilatildeo

das vaacuterias pessoas que passaram pela Lumbra ou que contribupiram com a Lumbra de

maneira mais constante

Alexandre ndash Antes eu vou responder agrave outra parte da tua pergunta Noacutes hoje somos quatro

pessoas Noacutes natildeo temos atores que trabalham esporadicamente nos nossos trabalhos Noacutes

temos outros artistas convidados que ajudam a formar a dramaturgia dos novos projetos Mas

hoje a companhia jaacute sente necessidade de formar novos sombristas que eacute um trabalho muito

difiacutecil e demorado para que a gente possa desenvolver outros trabalhos Mas isso eacute uma coisa

que ainda eacute um pouco complicado em funccedilatildeo do proacuteprio mercado de trabalho do teatro no

156

Alexandre refere-se aqui a ele mesmo e a Flaacutevio Silveira que compunham o elenco do referido espetaacuteculo

397

Brasil Mas a Fabiana [Bigarella] fica numa assistecircncia de direccedilatildeo de criaccedilatildeo de roteiro e na

parte administrativa da companhia e na parte de pesquisa comigo tambeacutem nessa outra linha

que eacute a sombraterapia que eacute uma outra vertente que natildeo eacute tatildeo mais artiacutestica mas sim de uma

possibilidade de usar a sombra como uma ferramenta de autoconhecimento dentro da

arteterapia Entatildeo jaacute natildeo existe mais essa exigecircncia teacutecnica ou esse cuidado esteacutetico parte

para uma outra coisa E o Roger [Motchcy] que eacute um novo integrante que jaacute estaacute na

companhia haacute uns cinco quase seis anos que eacute um artista plaacutestico que veio somar conosco

natildeo tinha muita experiecircncia com sombra o trabalho dele era mais voltado para o boneco

boneco de luva Mas ele se encontrou muito dentro desse nosso trabalho porque ele jaacute tinha

um trabalho muito forte com a tecnologia com webdesign trabalhando como webdesigner e

com o viacutedeo que foram os trabalhos que ele fez na conclusatildeo do curso de artes plaacutesticas

Entatildeo ele vem da escultura do viacutedeo dessa parte mais tridimensional e eacute um cara que jaacute tem

uma vocaccedilatildeo que se aproxima um pouco mais da tecnologia onde eu guardo uma certa

distacircncia Com relaccedilatildeo agrave formaccedilatildeo do ator sombrista especificamente eacute uma coisa um tanto

misteriosa ainda pra mim Me parece que isso se daacute muito por uma mola propulsora que eacute a

curiosidade Natildeo existe como dentro da companhia trabalharmos com novos sombristas que

tenham um papel meramente de movimentar figuras ou um iluminador que abra e feche os

focos luminosos Isso existe hoje em outras companhias e eacute aplicado de uma maneira muito

interessante assim eacute muito efetivo tecnicamente essa separaccedilatildeo Mas eu natildeo vejo como uma

coisa importante para o trabalho da companhia hoje A nossa formaccedilatildeo o nosso

desenvolvimento como sombrista parte de uma ideacuteia de uma polivalecircncia cecircnica Que eacute o

grande complicador de todo esse processo E o trabalho do Saci Pererecirc foi a descoberta disso

no meu trabalho de pesquisa como encenador como diretor dessas cenas para o espetaacuteculo

Eu natildeo vejo uma separaccedilatildeo de um ator de um teacutecnico de um construtor Esse profissional

precisa vivenciar intimamente profundamente todos esses processos Inclusive uma das

coisas que eu acho hoje que eacute o grande problema do meu gerenciamento como artista na

companhia lidando com o elenco eacute a incapacidade desse sombrista de alcanccedilar um niacutevel de

reflexatildeo mais elevado Se aprofundar numa quantidade grande de conhecimentos que

consigam ser transversais e que dialoguem entre si para fazer com que ele tenha um conforto

uma performance um cuidado um entendimento sobre essa linguagem Entatildeo o meu trabalho

hoje junta a psicologia o sobrenatural a histoacuteria a oacutetica a ciecircncia de uma forma que

colabore para uma criaccedilatildeo original

Mario ndash Entatildeo me parece Alexandre que esse termo esse conceito essa funccedilatildeo que vocecirc

apresenta como sendo o do sombrista eacute algo que ainda estaacute em elaboraccedilatildeo Mas me deixa

muito curiso o emprego que vocecirc faz do termo a maneira como vocecirc se relaciona com a ideacuteia

porque a gente tem discutido muito as aproximaccedilotildees em termos de teacutecnica e de formaccedilatildeo que

o artista de apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo tem com o ofiacutecio do ator Fala-se muito na

separaccedilatildeo das competecircncias e hoje em dia se fala muito em termos de convergecircncia dessas

competecircncias porque se encontra num niacutevel um pouco mais amplo uma seacuterie de princiacutepios

que satildeo comuns Nesse sentido eu gostaria que vocecirc falasse um pouquinho sobre o que eacute essa

ideacuteia essa funccedilatildeo do sombrista Vocecirc jaacute falou um pouco sobre a questatildeo da polivalecircncia e eu

acho que isso eacute um elemento claro no trabalho do sombrista Mas o termo sombrista evoca

uma certa especializaccedilatildeo a convergecircncia para uma certa linguagem expressiva Em que

termos essa elaboraccedilatildeo se daacute O que eacute o sombrista

Alexandre ndash Os meus uacuteltimos trabalhos de pesquisa satildeo justamente para solidificar dentro da

companhia quem eacute esse artista Isso passa pela necessidade de determinar algumas coisas

Ainda eacute difiacutecil para mim que tenho essa responsabilidade de forjar um conceito encontrar

todos os limites todos os paracircmetros todos os criteacuterios para esse artista Mas eu consegui

fazer uma separaccedilatildeo que me pareceu ser o mais adequado Entatildeo assim eu posso te dizer que

398

existe o sombrista avanccedilado ou sombrista profissional que eacute esse polivalente que eacute capaz de

planejar uma obra de arte e executaacute-la em todos os sentidos que isso possa abranger Depois

tem os outros niacuteveis de sombristas que eu considero que satildeo assim natildeo menores mas que

satildeo correspondentes ao fazer teatral Entatildeo tem o sombrista teoacuterico que eacute o que especula que

eacute o que estuda que eacute o que busca na histoacuteria que coloca isso que traduz livros que assiste

espetaacuteculos que tem um senso criacutetico mas que no fundo no fundo natildeo entende da mecacircnica

da construccedilatildeo de um espetaacuteculo Depois a gente pode passar para um outro tipo de sombrista

que eacute um sombrista curioso que aleacutem de pensar e se interessar ele experimenta coisas Ele

pode natildeo ganhar a vida com isso ele pode natildeo ser visto pelos outros como um profissional

mas ele experimentou ele testou ele brincou com isso Depois tem um outro sombrista que eacute

um sombrista mais teacutecnico Ele entende o processo ele jaacute experimentou isso ele consegue

refletir ele tem referecircncias ele consegue criar de alguma forma imagens complexas dentro

dessa linguagem mas ele natildeo eacute capaz de atuar Ele natildeo tem o trabalho ou talvez o interesse

de se colocar em cena em se expor como um ator da sombra E depois a gente vai ter entatildeo o

sombrista avanccedilado que eacute esse que consegue abarcar todas essas coisas E se a gente tiver um

ator que natildeo tenha algum desses aspectos do teoacuterico do curioso do teacutecnico ele natildeo vai

conseguir se desenvolver com uma habilidade e uma performance adequada pelo menos hoje

para trabalhar dentro da nossa companhia Entatildeo eacute preciso ter essa soma de funccedilotildees

interesses habilidades e competecircncias para chegar num niacutevel onde eacute possiacutevel criar uma obra

de arte e se envolver em todos os aspectos

Mario ndash A proacutexima pergunta eacute uma provocaccedilatildeo porque a gente conversou sobre isso mais

cedo que eacute vocecirc jaacute falou aqui da procura de uma linguagem mais contemporacircnea em teatro

de sombras Vocecirc consegue encontrar algumas caracteriacutesticas algumas funccedilotildees alguns

princiacutepios que estatildeo presentes nesse teatro contemporacircneo de sombras

Alexandre ndash Eu tenho pequenas sensaccedilotildees com relaccedilatildeo a isso Elas natildeo determinam que o

conjunto da obra que eu enceno seja contemporacircnea ou natildeo E eu sempre me valho muito do

paracircmetro do outro desses sombristas teoacutericos desses teacutecnicos desses acadecircmicos Satildeo eles

que me datildeo esse retorno natildeo sou eu quer vou dizer bom agora eu vou fazer uma obra

contemporacircnea Mas onde eu percebo que isso aparece acontece Eacute justamente no

rompimento daquilo que eu considero tradicional Isso eacute subjetivo tambeacutem Mas de alguma

forma possibilita que eu decirc uma arrancada que eu me identifique com aquilo ou que eu goste

mais dessa descontruccedilatildeo dessa reconstruccedilatildeo Eu natildeo tenho interesse de me aproximar do

teatro de sombras tradicional do oriente Mas ao mesmo tempo eu tenho algumas ligaccedilotildees

que agraves vezes eu nem percebo que eacute por exemplo a cenografia que eu uso que eacute muito

funcional dentro da cena natildeo tem um caraacuteter decorativo mas sim um caraacuteter de estruturaccedilatildeo

dos miacutenimos elementos que eu preciso para me expressar E eu uso materiais muito

grosseiros porque natildeo me interessa usar a tecnologia para isso O que me interessa na

tecnologia eacute fazer com que eu me aproxime dessa tecnologia atraveacutes da coisa mais rudimentar

possiacutevel Entatildeo a minha manipulaccedilatildeo de luz ela natildeo se daacute pro programas por bototildees por

aparelhos intrincados mas sim com o miacutenimo [para] que eu possa me articular com isso e

assim dar a sensaccedilatildeo [de] que existe uma lata tecnologia naquilo ali que estaacute sendo visto

Entatildeo a imagem tem que representar o grau de modernidade de contemporaneidade de

tecnologia Muitas vezes o nosso puacuteblico acredita que satildeo projetores de cinema que estatildeo

gerando as imagens Elas vatildeo atraacutes do pano procurar onde estaacute o datashow sabe E esse eacute o

meu interesse comprovar que uma arte tatildeo dura e primitiva seja capaz de criar relaccedilotildees tatildeo

proacuteximas do mundo moderno [em] que a gente vive hoje Por isso esse interesse pela

dinacircmica cinematograacutefica que hoje eacute o que representa o mais moderno com relaccedilatildeo agrave

representaccedilatildeo de uma ficccedilatildeo de uma realidade construiacuteda

399

Mario ndash Ao longo da vivecircncia desse final de semana eu tive a impressatildeo de que um ponto de

partida muito importante para o trabalho com a sombra para a expressatildeo por meio da sombra

eacute relaciona-se como o seu corpo projetado relacionar-se com a sombra do seu corpo Falei

muito durante o primeiro dia sobre como isso me remete questotildees de aspectos de projeccedilatildeo de

representaccedilatildeo de projeccedilatildeo de expressividade que eu encontro em qualquer linguagem de

teatro de animaccedilatildeo Sombra eacute forma animada

Alexandre ndash Eu natildeo me atrevo a determinar isso Acho que essa discussatildeo da semacircntica do

conceito de criar um vocabulaacuterio adequado pode ser uma grande armadilha Eu gosto muito

disso mas eu natildeo me atrevo a ficar determinando coisas para fora do meu trabalho A arte da

animaccedilatildeo sem duacutevida ela passa queira ou natildeo pela referecircncia mais primitiva que a gente

possa ter que eacute o nosso proacuteprio corpo Entatildeo natildeo tem como ser um marionetista ou um

bonequeiro de teatro de luvas sem entender a mecacircnica corporal E o nosso corpo responde agrave

maioria das perguntas iniciais sobre isso Eacute uma questatildeo de aprofundamento e uma intimidade

com esse corpo A gente natildeo precisa necessariamente pra fazer tetro de sombras possuir um

corpo expressivo como o de um bailarino Mas a gente precisa encontrar a linguagem do

nosso corpo dentro da cena que a gente estaacute se propondo a fazer

Mario ndash Bom eu vou pular daiacute para uma outra questatildeo que eacute a nossa uacuteltima questatildeo E me

parece que tem bastante ligaccedilatildeo com o que vocecirc acabou de dizer De vocecirc alcanccedilar a

percepccedilatildeo da tua proacutepria expressividade em sombra Vocecirc tem falado muito sobre um termo

que me interessa demais que eacute dramaturgia da sombra O que eacute a dramaturgia da sombra e

onde ela estaacute Onde ela estaacute pra mim eacute algo valioso

Alexandre ndash Isso eacute o meu trabalho agora Neste momento eu estou me detendo natildeo mais ao

que eu consegui fazer nestes onze anos mas consegui ampliar a minha visatildeo e consegui ter

humildade de natildeo determinar nada mas sim observar observar duvidar das coisas Eu

cheguei a formular algumas teorias sobre ndash natildeo soacute no meu trabalho ndash mas sobre como que

principia esse ponto dramaacutetico da sombra e eu precisei voltar um pouco com relaccedilatildeo agraves

ferramentas mais elementares que fazem parte do teatro de sombras Natildeo da sombra mas do

teatro de sombras quando a gente fala de dramaturgia E eu ando especulando muito sobre o

vazio dramaacutetico Entatildeo me parece que um ponto importante de se refletir hoje eacute o quanto o

escuro e o silencio satildeo dramaacuteticos no teatro de sombras Me parece que essa eacute uma chave

importantiacutessima para o meu trabalho e que me parece que eacute um grande mestre para quem se

arrisca a lidar com esse gecircnero No momento em que a gente macula o escuro o escuro

absoluto o vazio o ponto zero do espaccedilo da sombra a gente antes mesmo de macular isso a

gente jaacute tem o potencial dramaacutetico Ou seja natildeo estaacute acontecendo nada mas se tu tens o

escuro e se tu tens o puacuteblico de alguma forma isso jaacute comeccedila a criar um potencial dramaacutetico

e conflitivo O tempo da escuridatildeo e do silecircncio eacute agraves vezes tenebroso e isso me interessa

muito Entatildeo antes de eu comeccedilar a produzir imagens a ligar um foco luminoso ou a gerar um

som eu jaacute tenho esse potencial dramaacutetico Entatildeo se eu jaacute tenho consciecircncia disso aiacute um

miacutenimo esforccedilo que eu [fizer] jaacute inicia uma narrativa e jaacute muda esse elemento dramaacutetico e

partir disso aiacute entatildeo eu jaacute comelo a ter que trabalhar a direccedilatildeo a dosas a trabalhar as coisas

dentro desse princiacutepio do vazio total Algumas pessoas tem me dito que a dramaturgia ela soacute

acontece com a accedilatildeo com o fazer com algo estar acontecendo Eu ando duvidando um pouco

disso O meu trabalho permite que eu consiga trabalhar essa dramaturgia sem que nada esteja

acontecendo Eu preciso apenas da respiraccedilatildeo e de uma pupila bem dilatada do espectador Eacute

o suficiente

Mario ndash Alexandre Faacutevero muito obrigado

2

3

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo em primeiro lugar ao constante perseverante apoio de minha famiacutelia que

foi um fator determinante para o alcance desta etapa de minha formaccedilatildeo Principalmente aos

meus filhos Pedro e Clarice inspiraccedilatildeo e estiacutemulo mesmo que a nossa separaccedilatildeo no momento

tenha proporccedilotildees continentais

Agrave UNIRIO minha casa e berccedilo dos meus pensamentos sobre teatro de animaccedilatildeo

Lugar que me proporcionou interlocuccedilotildees necessaacuterias e ricas feita com colegas e professores

que gostaria muito especialmente de agradecer e homenagear Em especial agradeccedilo a meu

orientador Joseacute da Costa Filho cuja disposiccedilatildeo para adentrar no universo dos bonecos e

infinita paciecircncia me suportaram e garantiram a existecircncia deste trabalho como ora se

apresenta

Agradeccedilo aos meus companheiros do teatro de animaccedilatildeo artistas produtores colegas

de companhias e organizadores de festivais que permitiram o aprofundamento e tornaram

relevantes as indagaccedilotildees que aqui abordo Em especial agradeccedilo agrave Cia PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo a meu diretor e amigo Miguel Vellinho pelo apoio e creacutedito mas tambeacutem

agradeccedilo aos companheiros Marcio Nascimento Marcio Newlands Liliane Xavier Marise

Nogueira Mara Cristina Rego Barros Carlos Alberto Nunes Marcos Nicolaiewski Mona

Vilardo e Renato Machado Somos muito bons juntos

Agradeccedilo tambeacutem ao amigo e companheiro de reflexatildeo sobre bonecos e animaccedilatildeo

Paulo Balardim Obrigado por dividir as duacutevidas e discordacircncias

Agradeccedilo em especial ao professor Doutor Valmor Nini Beltrame Pelo carinho pela

presenccedila pelo incentivo mas principalmente pelo fantaacutestico trabalho que realiza em favor da

reflexatildeo e do estudo acerco do teatro de animaccedilatildeo dentro da universidade ampliando os

espaccedilos para reflexatildeo e disponibilizando a produccedilatildeo e a troca de pesquisa em teatro de

animaccedilatildeo Sua importacircncia eacute inestimaacutevel e precisa ser constantemente louvada

Agradeccedilo em especial agrave Universidade Federal de Uberlacircndia meu novo lar e o espaccedilo

onde pude ter a chance de concluir e conduzir este trabalho Entre todas as pessoas que me

ajudaram e tornaram este momento possiacutevel sobressaem-se os amigos e companheiros

Narciso Telles e Paulo Ricardo Meriacutesio juntamente com a excelente equipe com a qual

ambos me permitiram trabalhar Mara Leal Fernando Aleixo Mariene Perobeli Ana Maria

Carneiro Vilma Campos Luiz Leite Rose Gonccedilalves Luiz Humberto Arantes Paulina Caon

4

Kalassa Lemos Maria de Maria Getuacutelio Goacutees Dirce Helena de Carvalho Ana Carolina

Mundim Irley Machado Maria do Socorro Calixto e Renata Meira Agrave UFU seus professores

e funcionaacuterios meu carinho e eterno agradecimento

Agrave Valeacuteria Gianechini meu amor e promessa de eterno companheirismo Obrigado

pelo incentivo pela presenccedila e pelo amor que espero poder retribuir sempre do modo como

merece

5

ldquoO marionetista deve ter em si tanto o tipo de ator positivo (aquele

que interpreta encontrar a si para trazer elementos de si mesmo em

sua personagem para projetar-se em sua personagem) e do tipo de

ator negativo (que interpreta para desaparecer para penetrar em outra

personalidade para buscar uma evasatildeo para criar aleacutem de si mesmo

para enriquecer-se na substacircncia de seu papel) Nesse sentido o

marionetista pode ser o ator ideal Ele atua para encontrar-se num

circuito que vai dele para o boneco e retorna do boneco a ele Ele

oferece a personagem a si mesmordquo

(GERVAIS apud BENSKY 2000)

ldquoPode ser perfeitamente possiacutevel que a metaacutefora do boneco esteja

mais presente no humano de que o fenocircmeno do boneco no teatro

humano Uma questatildeo fascinante surge dessa sugestatildeo seraacute que a

metaacutefora emerge da observaccedilatildeo do boneco ou seraacute que o boneco eacute

uma consequecircncia do reconhecimento dessa metaacutefora Ou para

apresentar a questatildeo de outa maneira a sensaccedilatildeo de que as pessoas e

os bonecos se parecem por terem sido criados e controlados por forccedilas

superiores surge da observaccedilatildeo de que o boneco eacute de fato criado e

controlado dessa forma ou a praacutetica de criar e controlar bonecos surge

da observaccedilatildeo de que as pessoas satildeo criadas e controladas dessa

formardquo

(TILLIS 1992)

6

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO ndash UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM ARTES CEcircNICAS

TESE DE DOUTORADO EM TEATRO

PIRAGIBE Mario Ferreira Manipulaccedilotildees entendimentos e usos da presenccedila e da

subjetividade do ator em praacuteticas contemporacircneas de teatro de animaccedilatildeo no Brasil Rio de

Janeiro 2011 397f + 1 DVD

Resumo

Esta tese se propotildee a investigar as transformaccedilotildees percebidas nas poeacuteticas cecircnicas do

que se convencionou chamar teatro de animaccedilatildeo ou de formas animadas agrave luz dos modos de

apresentaccedilatildeo e trabalho do ator operador compreendendo o recurso do ator agrave vista como uma

recorrecircncia nas praacuteticas das companhias de teatro de animaccedilatildeo brasileiras contemporacircneas

mais propensas a empreender investigaccedilotildees sobre a linguagem

Partindo de indagaccedilotildees acerca da especificidade do teatro de animaccedilatildeo como gecircnero

apartado do panorama geral da arte teatral o estudo considera as transformaccedilotildees recentes

percebidas nas praacuteticas de animaccedilatildeo como demonstraccedilotildees de um movimento de indefiniccedilatildeo

das fronteiras entre as modalidades de apresentaccedilatildeo em teatro Dessa forma o estudo se potildee a

indagar acerca das funccedilotildees e entendimentos do ator sobre a cena animada no que diz respeito

agrave sua contribuiccedilatildeo para a mobilidade dos conceitos em animaccedilatildeo mas tambeacutem naquilo que

toca aos motivadores temaacutetico-dramatuacutergicos que a sua presenccedila suscita e sobre as questotildees

de treinamento e teacutecnica que identificam eou afastam o seu trabalho da atuaccedilatildeo teatral

7

Abstract

The present thesis proposes to undertake an investigation about the transformations

perceived over the scenic poetics on the so-called animation theatre or animated forms

theatre taken from the deployments and works of the actor operator It also takes under

consideration the use of the operator on sight as a recurrence on the recent practices seen in

investigative puppetry companies works

Posing a general wonder about if puppetry can be seen as a specific and unique genre

in the scope of the theatrical arts this study considers the recent tranformations perceived

over the puppetry practices as examples to a movement towards the indefinition of the

frontiers that separate the different configurations on theatrical performance Therefore the

study investigates the actoracutes roles and understandings over the animated set as to consider

his contributions to animationsacute conceptual transformations but also on the thematic and

dramaturgic motivators raised by his presence and also over aspects of training and technic

that identify andor deviates the work of the actor in puppetry with the theatrical acting

Reacutesumeacute

Cette thegravese est destineacutee agrave entraicircner une investigation des transformations perccedilus sur

les poeacutetiques de scegravene dans le soi-disant theacuteacirctre dacuteanimation ou theacuteacirctre des formes animeacutees agrave

partir des modes de preacutesentation e emploi de lacuteacteur operateur Cette eacutetude comprend aussi le

recours de lacuteacteur met sur la visage du public comme une recurrence dans les pratiques des

companies breacutesiliennes contemporaines dans le theacuteacirctre dacuteanimations qui font des

investigations de language

Le travail part de lacuteenquecircte sua si le theacuteacirctre de marionnettes peut ecirctre compris comme

un comme un genre distinct du panorama geacuteneacuteral de lart theacuteacirctral leacutetude considegravere les reacutecents

changements dans les pratiques dacuteanimation comme deacutemonstrations dun mouvement qui

brouille les frontiegraveres entre les modes de preacutesentation dans le theacuteacirctre Ainsi leacutetude vise agrave

renseigner sur les fonctions et les compreacutehensions de lacteur sur la scegravene animeacutee agrave leacutegard de

leur contribution agrave la mobiliteacute des concepts dans lanimation mais aussi agrave lacuteeacutegard de la

motivation des theacutematiques et dramaturgies qui sa preacutesence soulegraveve et sur les questions de

technique et de formation qui permettent didentifier ou non le travail de lacuteacteur dans le

theacuteacirctre dacuteanimation et dans le theacuteacirctre dacuteacteurs

8

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

FIGURA 1 - Compagnie Philippe Genty La fin des terres helliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 25

FIGURA 2 - Compagnie Philippe Genty Boliloc p 25

FIGURA 3 - Pia Fraus Primeiras rosas (As margens da alegria) p 26

FIGURA 4 - Pia Fraus Primeiras rosas (O cavalo que bebia cerveja) p 26

FIGURA 5 - Robert Wilson The CIVIL warS helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 28

FIGURA 6 - Tadeusz Kantor The dead class helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 28

FIGURA 7 - Impeacuterio das meias verdades (ariz Fernanda Torres) p 29

FIGURA 8 - Terra em tracircnsito (atriz Fabiana Giugli) p 29

FIGURA 9 - Theacuteacirctre sur le fil Oiseau Vole p 34

FIGURA 10 - Phillip Huber no Festival de Teatro de Bonecos de Canela 2010 p 34

FIGURA 11 - Taffy (Phillip Huber) p 34

FIGURA 12 - PeQuod Peer Gynt ndash desvio de foco p 37

FIGURA 13 - PeQuod Peer Gynt ndash Festa de casamento p 37

FIGURA 14 - PeQuod Peer Gynt ndash Personagem Aslak p 37

FIGURA 15 - PeQuod Peer Gynt ndash A Noiva p 37

FIGURA 16 - Teatro Ventoforte Histoacuteria de Lenccedilos e ventos p 41

FIGURA 17 - Teatro Ventoforte A histoacuteria de um barquinho p 41

FIGURA 18 - Contadores de Estoacuterias O bode e a onccedila (1971) p 45

FIGURA 19 - Contadores de Estoacuterias Pas-de-deux (1982) p 45

FIGURA 20 - Teatro Giramundo Giz p 47

FIGURA 21 - Teatro Giramundo Giz p 47

FIGURA 22 - Teatro Giramundo Giz p 47

FIGURA 23 - XPTO Coquetel Clown (peixes) p 49

FIGURA 24 - XPTO Coquetel Clown (futebol) p 49

FIGURA 25 - Pia Fraus Gigantes do ar (1998) p 49

FIGURA 26 - Pia Fraus Bichos do Brasil (2001) p 49

FIGURA 27 - Wayang purwa sombras javanesas p 54

FIGURA 28 - Wayang golek boneco javanecircs de vara p 54

FIGURA 29 - Sombra indiana p 55

FIGURA 30 - Karagoumlz personagem de sombra turco p 55

9

FIGURA 31 - Mamulengos do nordeste brasileiro cena do degolado p 56

FIGURA 32 - Punch o bebecirc e Judy p 56

FIGURA 33 - Grupo Sobrevento O Theatro de brinquedo (1993) p 73

FIGURA 34 - Grupo Sobrevento Um conto de Hoffman (1998) p 73

FIGURA 35 - Muumlmmenchanz p 75

FIGURA 36 - Muumlmmenchanz p 75

FIGURA 37 - Bonecos de luva chineses da proviacutencia de Fujian p 82

FIGURA 38 - Pulcinella e Salvatore Gatto p 82

FIGURA 39 - Duas diferentes pegas para bonecos de luva p 82

FIGURA 40 - Munganga Teatro Terceira Margem p 85

FIGURA 41 - Munganga Teatro Terceira Margem p 85

FIGURA 42 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Manequim p 87

FIGURA 43 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Manequim p 87

FIGURA 44 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Gaiola p 87

FIGURA 45 - Cie Petits Miracles Les puces savantes p 92

FIGURA 46 - Steve Hansen (USA) Punch and Judy helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 97

FIGURA 47 - Cia Teatro Lumbra Saci Pererecirc a lenda da meia noite p 97

FIGURA 48 - Cia Navegante Teatro de Marionetes Musicircus p 97

FIGURA 49 - Bunraku visatildeo do palco de bonecos mais o espaccedilo do narrador e do

instrumentista

p 99

FIGURA 50 - Bunraku manipuladores p 99

FIGURA 51 - Mestre Zeacute de Vina p 99

FIGURA 52 - Mestre Zeacute Lopes p 100

FIGURA 53 - Bonecos feitos por Mestre Zeacute Lopes p 100

FIGURA 54 - Operador oculto Sesame Street (atriz Kathrin Mullen) helliphelliphellip p 109

FIGURA 55 - Operador aparente PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo Sangue Bom p 109

FIGURA 56 - Cia Teatro Lumbra Saci visto detraacutes da tela p 112

FIGURA 57 - Cia Truks E se as histoacuterias fossem diferentes p 112

FIGURA 58a - Manipulaccedilatildeo oculta inferior p 121

FIGURA 58b - Manipulaccedilatildeo oculta superior p 121

FIGURA 58c - Formas de manipulaccedilatildeo p 122

FIGURA 58d - Formas de manipulaccedilatildeo p 122

FIGURA 59a - Marionete ldquoagrave la planchetterdquo italiana p 124

10

FIGURA 59b - Marionete ldquoagrave la planchetterdquo p 124

FIGURA 60 - Teatro de bonecos Alemanha seacuteculo XVIII p 124

FIGURA 61 - Don Quixote destroacutei o teatro de bonecos helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 124

FIGURA 62 - Cia Truks Vovocirc p 127

FIGURA 63 - Morpheus Teatro Peacutes descalccedilos p 127

FIGURA 64 - Morpheus teatro O princiacutepio do espanto p 127

FIGURA 65 - Contadores de Estoacuterias Mansamente p 132

FIGURA 66 - Contadores de Estoacuterias Maturando Detalhe de manipulaccedilatildeo p 132

FIGURA 67 - Contadores de Estoacuterias Em concerto p 132

FIGURA 68 - Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo p 134

FIGURA 69 - Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo Muchas manos p 134

FIGURA 70 - Cia Truks Big Bang helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 134

FIGURA 71 - Catibrum Homem voa Neutralidade e expressividade p 137

FIGURA 72 - PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no Inferno p 137

FIGURA 73a - Catibrum Homem voa Forma e potecircncia de movimento p 137

FIGURA 73b - Catibrum Homem voa Forma e potecircncia de movimento p 137

FIGURA 74 - Punch and Judy ilustraccedilatildeo p 141

FIGURA 75 - Kasperle boneco de luva p 141

FIGURA 76 - Mamulengo Riso do Povo Mestre Zeacute de Vina Passagem de danccedila p 141

FIGURA 77 - Janeiro-Vai-Janeiro-Vem Mestre Zeacute Lopes p 143

FIGURA 78 - Esquema de S Eisenstein aplicaccedilatildeo de conflito por meio de

alteraccedilatildeo focal

p 153

FIGURA 79 - Foco alteraccedilatildeo de tema e ecircnfase na imagem por meio de distorccedilatildeo

focal

p 153

FIGURA 80 - Foco como emulaccedilatildeo do olhar p 155

FIGURA 81 - Atenccedilatildeo do operador sobre o boneco como orientaccedilatildeo focal p 155

FIGURA 82 - Convergecircncia focal entre ator e boneco p 155

FIGURA 83 - Focalizaccedilatildeo por contracenaccedilatildeo p 155

FIGURA 84 - Divisatildeo de foco por expressatildeo p 155

FIGURA 85 - Deslocamento e foco em trabalhos com materiais p 157

FIGURA 86 - Centro de focalizaccedilatildeo impliacutecito p 157

FIGURA 87 - O boneco como indicativo da personagem p 164

FIGURA 88 - Ceacuterbero PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no

Inferno

p 177

11

FIGURA 89 - Don Doro Hyaky Puppet Theatre helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip p 177

FIGURA 90 - Malabarista de fio p 181

FIGURA 91 - Maneacute Gostoso p 181

FIGURA 92 - Sobrevento Cadecirc meu heroacutei p 189

FIGURA 93 - Sobrevento Cadecirc meu heroacutei p 189

FIGURA 94 - Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto (ator JoatildeoArauacutejo) p 193

FIGURA 95 - Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto (ator JoatildeoArauacutejo) p 193

FIGURA 96 - Tabola Rassa (Espanha) El Avaro p 197

FIGURA 97 - Gats O patinho feio p 197

FIGURA 98 - Grupo Sobrevento Beckett (Ato sem palavras 1) p 199

FIGURA 99 - Grupo Sobrevento Beckett (O impromptu de Ohio) p 199

FIGURA 100 - Animasonho Bonecrocircnicas p 199

FIGURA 101 - Compagnie Philippe Genty Voyageurs Immobilles helliphelliphelliphelliphellip p 207

12

LISTA DE VIacuteDEOS

VIacuteDEO 1 - Impeacuterio das meias verdades

VIacuteDEO 2 - Teatro Hugo e Inecircs Cuentos Pequentildeos cena Baby blue

VIacuteDEO 3 - Teatro Hugo e Inecircs Cuentos Pequentildeos (joelho)

VIacuteDEO 4 - Masterclass Neville Tranter

VIacuteDEO 5 - Muppet Show Mahnah mahnah

VIacuteDEO 6 - Stuffes Puppets Nightclub (The old puppeteer)

VIacuteDEO 7 - Muumlmmenchanz tubo e bola

VIacuteDEO 8 - Teatro Munganga 20 anos

VIacuteDEO 9 - Lampiatildeo vai ao inferno buscar Maria Bonita (trabalho do conclusatildeo da

disciplina Teatro de Formas Animadas apresentada por Alba Valeacuteria Letiacutecia

Mariano e Nataacutelia Oliveira)

VIacuteDEO 10 - Ilka Schoumlnbein Metamorphosen

VIacuteDEO 11 - Frank Paris Amazing marionettes

VIacuteDEO 12 - String Pierrot at the Paul Daniels TV show

VIacuteDEO 13 - Cie Phillipe Genty La fin des terres

13

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO p 14

2 TEATRO DE BONECOS TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO p 21

21 Somos ainda marionetistas Uma provocaccedilatildeo p 21

22 Visotildees de um panorama p 38

23 Transformaccedilotildees p 46

231 O que eacute (e o que passou a ser) o boneco teatral p 53

232 Que formas e funccedilotildees podem ser atribuiacutedas ao artista de animaccedilatildeo p 93

2321 A questatildeo terminoloacutegica p 93

2322 Dois mirantes para o ator de animaccedilatildeo p 108

3 ATOR E OBJETO TOPOGRAFIA DE UM CAMPO DE BATALHA p 120

31 O foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituais p 151

32 Quem manda em quem Soberanias da cena de animaccedilatildeo p 162

321 Primeiro campo de batalha o sujeito da cena p 174

322 Segundo campo de batalha o lugar do teatro p 180

323 Terceiro campo de batalha a potecircncia metafoacuterica p 190

4 CONCLUSOtildeES p 208

5 REFEREcircNCIAS p 215

ANEXO A Rumo a uma esteacutetica do boneco (traduccedilatildeo do livro de Steve

Tillis)

p 224

ANEXO B Entrevista com Beto Andreetta (Cia Pia Fraus) p 375

ANEXO C Entrevista com Catin Nardi (Cia Navegante de Teatro de

Bonecos)

p 389

ANEXO D Entrevista com Alexandre Faacutevero (CiaTeatro Lumbra) p 394

ANEXO E DVD ndash trechos de viacutedeos mencionados na tese de acordo com

a Lista de Viacutedeos

14

1 INTRODUCcedilAtildeO

As alteraccedilotildees de escala a fusatildeo de meios ndash atores vivos junto

com atores com maacutescaras junto com bonecos ndash nos ajuda a

mover-nos por diferentes niacuteveis de realidade

Julie Taymor

A proposta de trabalho que esta pesquisa encerra diz respeito aos usos e configuraccedilotildees

do corpo humano dentro daquilo que se entende como a cena contemporacircnea do teatro de

animaccedilatildeo no Brasil A pesquisa c-se como um desdobramento direto quase obrigatoacuterio de

questotildees abordadas em minha dissertaccedilatildeo de mestrado aleacutem de indagaccedilotildees e vontades que me

acompanham desde aproximadamente quinze anos tanto no campo da pesquisa acadecircmica

quanto da praacutetica artiacutestica Trata-se da tentativa de pensar o teatro de animaccedilatildeo (bonecos

objetos sombras) identificando-a sob a forma de uma linguagem teatral que vem sendo

continuamente acessada por investigaccedilotildees recentes nos campos da encenaccedilatildeo da dramaturgia

e da interpretaccedilatildeo teatrais Isto equivale dizer que o teatro entendido a partir de uma

perspectiva mais ampla vem se sentindo mais e mais impelido a dialogar com as tradiccedilotildees de

formas e procedimentos do teatro de bonecos em busca de recursos e efeitos para

investigaccedilotildees modernas mas tambeacutem para transformar as formas e procedimentos

tradicionais dos teatros de bonecos a ponto de ampliar as possibilidades de entender e praticar

o teatro de animaccedilatildeo dos dias de hoje Eacute curioso notar o fato de que segundo pesquisadores

como Henryk Jurkowski (1991 1995) Bill Baird e Paul McPharlin (1969) o teatro de

bonecos ocidental era em finais do seacuteculo XIX considerada uma modalidade espetacular

divorciada do contexto da arte teatral ateacute que a partir de Ubu Rei de Alfred Jarry das peccedilas

provocativas de autores como Murice Maeterlink Federico Garcia Lorca e Michel de

Ghelderode e dos louvores de Gordon Craig e Vsevolod Meyerhold ao boneco como sendo

um modelo para o ator da modernidade o caminho integrativo entre o teatro e a arte da

marionete tornou-se contiacutenuo e inexoraacutevel Nos primeiros anos do seacuteculo XXI jaacute eacute possiacutevel

afirmar que num certo sentido essa aproximaccedilatildeo resultou em transformaccedilotildees e temas de

investigaccedilatildeo para as linguagens espetaculares tais que tratar em separado os teatros com e sem

bonecos resulta para se dizer o miacutenimo num trabalho delicado de escolha de palavras Outro

provaacutevel equiacutevoco de julgamento resulta da tentativa de se entender tal processo integrativo

como linear e direcionado Ocorre que o acompanhamento de investigaccedilotildees e resultados

artiacutesticos empreendidos por artistas e companhias atuais (tanto aquelas que se declaram

identificadas com a linguagem da de animaccedilatildeo quanto aquelas que se entendem mais

15

aproximadas do que seria tratado simplesmente como teatro ou teatro de atores1 ou teatro

vivo) sugere que o estudo das especificidades linguiacutesticas da arte da animaccedilatildeo de formas a

situa como sendo resistente agrave sua classificaccedilatildeo como uma modalidade espetacular autocircnoma

com foacutermulas e teacutecnicas especiacuteficas mas que aponta para a percepccedilatildeo de um acervo teacutecnico-

linguiacutestico incorporado e dedicado ao fazer e ao entender da arte teatral num sentido mais

amplo

Neste ponto algumas explicaccedilotildees fazem-se necessaacuterias O termo teatro de animaccedilatildeo

ou teatro de formas animadas foi criado com o intuito de dar conta da ampliaccedilatildeo de

possibilidades esteacuteticas e teacutecnicas surgidas para o teatro de bonecos a partir dos primeiros

anos do seacuteculo XX Ambos os termos foram bastante bem acolhidos por pensadores e artistas

brasileiros mas natildeo haacute um consenso de orientaccedilatildeo terminoloacutegica em outros idiomas como

nos exemplos theacuteacirctre de marionnettes em francecircs e puppetry em inglecircs2 O que faz a ideacuteia

de animaccedilatildeo parecer terminologicamente mais adequada e abrangente no que se refere a

experiecircncias de linguagem mais recentes eacute o fato de o termo animaccedilatildeo referir-se diretamente

a um verbo (animar) ao inveacutes de a um substantivo (boneco forma) Assim pode-se identificar

o traccedilo distintivo da linguagem em questatildeo como sendo uma determinada praacutetica ou postura

do sobrepara a cena que pode ou natildeo apresentar fisicamente um objeto ao inveacutes do fato da

presenccedila de um boneco um material ou um objeto que faria as vezes de uma personagem

teatral Algumas das questotildees sobre as quais o estudo se debruccedila eacute a de que o teatro de

animaccedilatildeo pode prescindir do uso de objetos inanimados ou bonecos construiacutedos para a cena e

de que o teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo incorporou diversas das questotildees que animam a

discussatildeo acerca do espetaacuteculo e da dramaturgia de nosso tempo entre elas aquelas que potildeem

em crise as noccedilotildees de accedilatildeo e personagem como constituintes inapelaacuteveis do evento teatral

A consideraacutevel ampliaccedilatildeo das formas de modelar animar inserir e fazer significar

bonecos e objetos sobre a cena teatral expandiram ateacute limites extremos o entendimento do que

seria o boneco teatral Deste modo formas antropomoacuterficas reduzidas grandes cabeccedilas

1 Eis um conceito que parece impreciso ou equivocado e com o qual tive que lidar durante a pesquisa que

resultou em minha dissertaccedilatildeo de mestrado O termo teatro de atores revelou certa eficaacutecia apenas para criar a

ideacuteia de oposiccedilatildeo ou diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao teatro de bonecos O emprego do termo torna-se um tanto

problemaacutetico na medida em que a reflexatildeo provoca a percepccedilatildeo de que tal diferenciaccedilatildeo tende a desaparecer nas

praacuteticas contemporacircneas O termo teatro de atores vem sendo no entanto amplamente empregado por autores

empenhados em refletir acerca de teatro de formas animadas como eacute o caso de Jurkowski (1995 p24) Plassard

(1995 p15) e Nina Dimitrova (apud BELTRAME 2001 p117) Reflexotildees mais recentes me fazem perceber

que o ideal seria a aboliccedilatildeo do termo complementar para referir-se ao teatro num contexto mais amplo mas

perde-se assim a capacidade de evidenciar durante uma argumentaccedilatildeo elementos contrastantes existentes entre

tipos de teatro que empregam animaccedilatildeo e outros que aplicam maior ecircnfase sobre o trabalho do ator 2 Embora deva-se reconhecer o emprego no caso do francecircs de termos como theacuteacirctre dacuteanimation e theacuteacirctre des

formes animeacutes

16

objetos de uso quotidiano transformados para a cena ou natildeo composiccedilotildees de objetos de

corpos humanos ou mesmo fragmentos de corpos humanos especificamente utilizados

adquirem estatuto de mateacuteria animaacutevel A essa heterogeneidade de formas e materiais alia-se

a colaboraccedilatildeo voluntaacuteria e especiacutefica de algueacutem que insere em contexto espetacular essas

formas num ato relacional natildeo obrigatoriamente manipulativo de transformaccedilatildeo dos

significados originais do material utilizado para o interior de uma cena teatral Este seria o

animador o ator-manipulador ou simplesmente o ator

Esta tese encerra ateacute certo ponto uma discussatildeo que envolve o entendimento da

funccedilatildeo e da definiccedilatildeo desse ator encarregado e preparado (ou natildeo) para apresentar o boneco

ou objeto num contexto teatral O termo manipulaccedilatildeo que se encontra com certo destaque no

tiacutetulo cumpre uma provocaccedilatildeo acerca do entendimento do ato de apresentar o boneco teatral

(manipular) e do artista encarregado dessa funccedilatildeo (manipulador) Em minha dissertaccedilatildeo de

mestrado realizei uma discussatildeo aprofundada do termo e da ideacuteia de manipulaccedilatildeo

(PIRAGIBE 2007 pp 35-51) que resultaram na percepccedilatildeo de que um entendimento

meramente etimoloacutegico do termo para o contexto contemporacircneo do teatro de animaccedilatildeo pode

conduzir a uma seacuterie de equiacutevocos tanto de leitura quanto de metodologia para o trabalho

praacutetico A compreensatildeo ndash inciada na pesquisa da dissertaccedilatildeo e ampliada neste estudo ndash do ato

de apresentaccedilatildeo da forma animada como sendo uma dinacircmica relacional natildeo hierarquizada

entre ator e objeto adiciona uma provocaccedilatildeo extra ao emprego do termo manipulaccedilatildeo que se

encontra exatamente no entendimento de que o boneco se mostra em cena como resultado de

uma dinacircmica que torna indefinidas as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo e subordinaccedilatildeo entre ator e

forma

A crescente participaccedilatildeo do ator sobre a cena do teatro de animaccedilatildeo natildeo apenas sob a

forma da exposiccedilatildeo do seu trabalho manipulativo mas tambeacutem por meio da incorporaccedilatildeo agrave

cena de recursos expressivos proacuteprios que natildeo passam obrigatoacuteria e exclusivamente pela

tarefa manipulativa de fazer atuar o objeto impotildee agrave cena de animaccedilatildeo dinacircmicas de

funcionamento e leitura que natildeo correspondem mais agraves concepccedilotildees tradicionais do teatro de

bonecos entendido como modalidade espetacular especiacutefica e divorciada do restante da arte

teatral

A observaccedilatildeo das programaccedilotildees de festivais dedicados ao teatro de animaccedilatildeo e das

experiecircncias das companhias mais inquietas do atual panorama relacionado a essa linguagem

no Brasil revela um processo iniciado em meados da deacutecada de 1970 e que vem desde entatildeo

se radicalizando no sentido de expor o ator encarregado da operaccedilatildeo das formas num

movimento que explora os limites da linguagem e apresenta problemas verificaacuteveis tanto no

17

campo da teoria do teatro de animaccedilatildeo quanto para o estabelecimento de princiacutepios praacuteticos

de treinamento de artistas e construccedilatildeo cecircnico-dramatuacutergicas O ator posto agrave mostra no teatro

de bonecos aciona questotildees que se refletem tanto na construccedilatildeo da narrativa espetacular

quanto na definiccedilatildeo do que eacute e onde estaacute o boneco teatral

Enfrentar o problema da consideraccedilatildeo das funccedilotildees e efeitos do ator sobre a atual cena

do teatro de animaccedilatildeo eacute um trabalho que impede o estudioso de entender essa linguagem

teatral como algo que natildeo seja extremamente permeaacutevel agraves combinaccedilotildees de expressotildees

artiacutesticas e se afirme de fato como um mecanismo de produccedilatildeo do heterogecircneo Dessa forma

a animaccedilatildeo se apresenta como sendo um gecircnero criacutetico que se compotildee da sua proacutepria

ausecircncia Se recorrermos agrave compreensatildeo de que mesmo as mais estabilizadas modalidades de

apresentaccedilatildeo com bonecos e formas natildeo hierarquiza de maneira precisa modos de significaccedilatildeo

narrativos escultoacutericos e espetaculares podemos talvez estar muito perto de nos indagar se

animaccedilatildeo seria de fato uma modalidade espetacular ou apenas um recurso um dispositivo

linguiacutestico ou uma ferramenta de integraccedilatildeo de vontades expressivas diacutespares em meio aos jaacute

tatildeo imprecisos domiacutenios da arte teatral

Essa primeira indagaccedilatildeo ainda que levante questotildees diversas e complicadas

estabelece um ambiente fundamental para uma consideraccedilatildeo mais atenta do papel

desempenhado pelo ator na atual cena animada uma vez que seraacute sob os auspiacutecios das

heterogenias acionadas pela animaccedilatildeo que poderemos compreender que funccedilotildees e

competecircncias satildeo exercidas em sua apresentaccedilatildeo mas sobretudo indagar de maneira pode o

ator relacionar-se com o boneco de modo a fazecirc-lo atuar ou ainda fazer parte de sua

constituiccedilatildeo fiacutesico-performativa

Ainda que exista clareza quanto ao fato de o ator posto agrave mostra se constituir no

problema a ser abordado pelos estudos da animaccedilatildeo na contemporaneidade natildeo haacute evidecircncias

nem densidade de reflexatildeo que escapem agrave consideraccedilatildeo apressada de que a exposiccedilatildeo do

artista se constitui no principal traccedilo distintivo das atuais indagaccedilotildees artiacutesticas apresentadas

pelo panorama da animaccedilatildeo A hipoacutetese com a qual escolho trabalhar lida com a investigaccedilatildeo

das transformaccedilotildees que o animador posto agrave mostra propicia agrave forma animada indicando uma

nova dinacircmica de estruturaccedilatildeo do boneco e natildeo apenas a exposiccedilatildeo do ator como sendo o

foco investigativo do ambiente brasileiro de animaccedilatildeo na atualidade

Indago tambeacutem se natildeo haveria e quais seriam os desafios teacutecnico-terminoloacutegicos a

serem empregados e aprofundados para os artistas interessados em lidar com as possibilidades

transdisciplinares da cena desdobrada do teatro de animaccedilatildeo que dispotildee uma narratividade

composta e modos muacuteltiplos e simultacircneos de figuraccedilatildeo dos seus sujeitos e conduccedilatildeo da sua

18

accedilatildeo Natildeo parece que o artista de animaccedilatildeo posto agrave vista do puacuteblico revele nessa accedilatildeo

aspectos especiacuteficos de sua lida afirmando assim sua diferenccedila em relaccedilatildeo ao ator de teatro Eacute

possiacutevel que sua apresentaccedilatildeo acabe por solicitar recursos de atuaccedilatildeo de modo mesmo a que

as suas competecircncias especiacuteficas revelem menos um trabalho a favor de um gecircnero teatral

especiacutefico e mais uma condiccedilatildeo atual de teatro que se desdobra em multi e

transdisciplinaridades

De um modo mais amplo pretendo que algumas dessas minhas indagaccedilotildees e lacunas

de pensamento me conduzam a empreender um estudo mais aprofundado acerca das relaccedilotildees

que o teatro contemporacircneo propotildee entre objeto e ator entre animado e inanimado e entre o

ator e a cena de animaccedilatildeo Busco assim entender as motivaccedilotildees e modos de transposiccedilatildeo

cecircnica da animaccedilatildeo entendida como linguagem Pretendo buscar entender quais limites o atual

teatro de animaccedilatildeo tem traccedilado para si mesmo de modo a entender-se como modalidade

teatral especiacutefica Mas o faccedilo suportado ndash provocado diria melhor ndash pela hipoacutetese de que a

separaccedilatildeo outrora tatildeo clara entre teatro de bonecos e teatro de atores tende a dissipar-se nas

praacuteticas nos interesses e nas motivaccedilotildees de companhias e artistas do nosso tempo clamando

assim por novas concepccedilotildees teorias e terminologia que decircem conta do que vem sendo de fato

tentado e apresentado sobretudo no que diz respeito ao panorama brasileiro do teatro de

animaccedilatildeo

Dentro de uma perspectiva mais objetiva o trabalho se encontra dividido em dois

capiacutetulos com percursos distintos e complementares O primeiro capiacutetulo parte de um estudo

das transformaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo verificado a partir da deacutecada de 1970 ateacute hoje

tendo como provocaccedilatildeo a queixa recorrente entre alguns praticantes e estudiosos do teatro de

animaccedilatildeo de que os bonecos teriam desaparecido do teatro de bonecos cedendo espaccedilo a

apresentaccedilotildees vaidosas de artistas despreparados para lidar com a linguagem Essa

provocaccedilatildeo me conduz a lanccedilar alguns olhares pontuais sobre parte do percurso histoacuterico do

teatro de animaccedilatildeo dentro do periacuteodo mencionado para em seguida buscar aplicar um novo

olhar sobre conceitos que precisam ser reavaliados frente agraves recentes transformaccedilotildees tais

como boneco teatro de bonecos e manipulador

O segundo capiacutetulo se debruccedila de modo um pouco mais detido sobre as relaccedilotildees

possiacuteveis entre objeto e ator que a cena mais recente do teatro de animaccedilatildeo tecircm suscitado A

partir de um determinado momento busco traccedilar o que resolvi chamar de campos de batalha

que seriam os lugares da praacutetica e do entendimento postas em questatildeo em meio aos jogos de

ocultaccedilatildeo e aparecimento tanto da forma quanto do ator em cena Esse capiacutetulo levanta as

19

possibilidades de significaccedilatildeo e discurso que emergem desse jogo e busca lidar com alguns

conceitos teacutecnico-conceituais que movimentam tal dinacircmica

Optou-se neste trabalho por natildeo lidar com um estudo de caso especiacutefico mas lanccedilar

matildeo de exemplos variados de espetaacuteculos e companhias que tem ocupado certa centralidade

no panorama nacional da animaccedilatildeo ao longo das uacuteltimas quatro deacutecadas Ainda que se

entenda que esta eacute uma escolha arriscada e pode conduzir a recortes imprecisos ou a

pretensotildees generalizantes entendo que um estudo das funccedilotildees e configuraccedilotildees do ator sobre a

cena brasileira de animaccedilatildeo precisa se dar agrave luz das reverberaccedilotildees sentidas em trabalhos em

diferentes companhias e que natildeo eacute possiacutevel compreender a dinacircmica de influecircncias e

tendecircncias por meio de mergulhos ndash mais densos de fato ndash em micropoeacuteticas grupais A

confianccedila de que essa tentativa pode resultar bem decorre da experiecircncia acumulada ao longo

de mais de quinze anos me dedicando como estudante do teatro de animaccedilatildeo no Brasil e como

artista integrante de algumas companhias dedicadas agrave linguagem ao longo desse tempo De

qualquer forma algumas companhias seratildeo mencionadas com frequecircncia ao longo do

trabalho e isso se deve agrave importacircncia agrave longevidade e a capacidade que essas iniciativas

artiacutesticas tiveram de agregar interesse e apresentar discussotildees sobre a linguagem com

capacidade de reverberaccedilatildeo Algumas dessas companhias satildeo o Grupo Ventoforte os

Contadores de Estoacuterias o Grupo Giramundo o XPTO a Pia Fraus a Cia Truks o Grupo

Sobrevento a PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo a Caixa do Elefante a Cia Teatro Lumbra o

Teatro Munganga e o Morfeus Teatro Satildeo citados tambeacutem alguns artistas e companhias

estrangeiros escolhidos natildeo apenas por se constituiacuterem em exemplos eloquentes para os

pensamentos desenvolvidos mas tambeacutem por apresentarem alguma presenccedila no Brasil como

participantes constantes de festivais de temporadas ou simplesmente como referecircncias

recorrentes em discussotildees Satildeo alguns desses grupos e artistas a Cie Phillipe Genty (Franccedila)

o Teatro Hugo e Inecircs (Peru Seacutervia) Stuffed Puppets (Holanda) o Muppet Show (EUA) o

Muumlmmenchanz (Suiacuteccedila) El Chonchoacuten (Argentina) Taacutebola Rassa (Espanha) e a performer

alematilde Ilka Schoumlnbein

Ao longo dos capiacutetulos estatildeo dispostas fotografias e ilustraccedilotildees que possuem o

objetivo de exemplificar e ampliar as discussotildees contidas nos capiacutetulos natildeo apenas para situar

o leitor acerca das formas e espetaacuteculos mencionados mas como maneira de inserir uma

segunda voz de discussatildeo sobre o tema tratado Optou-se por natildeo empreender anaacutelises

iconograacuteficas aprofundadas justamente com o intuito de oferecer ao leitor um panorama

amplo e relacionado de referecircncias visuais que podem por vezes desdobrar uma discussatildeo

que o texto encaminhe sob um ponto de vista mais limitado Juntamente com as imagens

20

seguem tambeacutem alguns registros em viacutedeo que desempenham de maneira enriquecida a

funccedilatildeo ilustrativas das imagens mas que servem tambeacutem para demonstrar uma parcela

importante do processo de pesquisa empreendido feito a partir do emprego da tecnologia de

acesso via Internet a materiais audiovisuais que se constitui em uma fonte valiosiacutessima de

dados e natildeo pode ser ignorada pelo pesquisador

Por fim eacute importante que se mencione que as discussotildees conduzidas dentro deste

trabalho se datildeo em diaacutelogo com trecircs profissionais e pesquisadores fundamentais para a

construccedilatildeo do meu pensamento dos quais concordo e discordo alternadamente agraves vezes com

maior ou menor veemecircncia mas que satildeo contribuiccedilotildees inestimaacuteveis ao pensamento

desenvolvido ao ponto de poder afirmar que esta tese natildeo eacute senatildeo uma tentativa de diaacutelogo

com eles

Primeiramente menciono o professor doutor Valmor Beltrame cuja tese acerca da

pedagogia do ator manipulador e as reflexotildees sobre princiacutepios formativos para o animador e a

noccedilatildeo de marionetizaccedilatildeo do ator foram fundamentais e tambeacutem o professor mestre Paulo

Balardim que apresenta discussotildees profundas sobre formaccedilatildeo do ator em animaccedilatildeo e

princiacutepios de atuaccedilatildeo com o boneco

Mas eacute a partir do escrito do pesquisador e artista de animaccedilatildeo norte americano Steve

Tillis que encontrei maior reverberaccedilatildeo acerca das impressotildees que colhi por praacutetica e

observaccedilatildeo Esta tese se apoia em grande parte sobre as discussotildees por ele apresentadas no

livro Toward an aesthetic of the puppet puppetry as a thetrical art (Rumo a uma esteacutetica do

boneco animaccedilatildeo como arte teatral) por vezes elaborando discordacircncias e reflexotildees

buscando compreender as suas formulaccedilotildees no panorama do teatro brasileiro e ateacute mesmo

construindo percursos argumentativos apoiados em sua metodologia

Por isso a traduccedilatildeo do livro citado que segue em anexo agrave tese eacute mais do que a

tentativa de disponibilizar uma obra ao leitor em portuguecircs ou identificar com mais clareza

uma fonte A traduccedilatildeo do livro eacute a caracterizaccedilatildeo deste trabalho sob a forma de um diaacutelogo O

discurso de Tillis se apoacuteia no incocircmodo de perceber a perda de validade de certos preceitos

teoacutericos e praacuteticos do teatro de bonecos vistos diante das recentes ampliaccedilotildees de

possibilidades apresentadas agrave linguagem Seu iacutempeto por propor alteraccedilotildees na terminologia e

na consideraccedilatildeo de certos lugares comuns relativos agrave arte da animaccedilatildeo faz dele um

interlocutor uacutenico para as minhas indagaccedilotildees

21

2 TEATRO DE BONECOS TEATRO DE ANIMACcedilAtildeO

21 Somos ainda marionetistas Uma provocaccedilatildeo

No ano de 1984 foi publicado na revista Mamulengo editada pela Associaccedilatildeo

Brasileira de Teatro de Bonecos um texto curto do entatildeo Secretaacuterio Geral da UNIMA (Uniatildeo

Internacional da Marionete) Jacques Feacutelix (1923 ndash 2006) intitulado ldquoSomos ainda

marionetistasrdquo (1984) um texto curto e incisivo sob a forma de uma lamentaccedilatildeo ndash se natildeo de

uma queixa ndash abordando uma alegada tendecircncia de desaparecimento dos bonecos nos teatros

de bonecos A brevidade do texto e sua importacircncia para este estudo justificam que este seja

aqui transcrito em sua iacutentegra

Participando como espectador por meses e semanas em Festivais de

Marionetes haacute muitos anos tenho sido fortemente atingido por uma certa

evoluccedilatildeo na apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos chamados de marionetes Digo

bem ldquochamados de marionetesrdquo porque elas desaparecem mais e mais de

nossas cenas Agora eacute muito frequente que jaacute natildeo se nos apresente um teatro

de marionetes mas sim um teatro de atores com objetos maacutescaras e algumas

marionetes ou simplesmente um puacutenico boneco com atores

Assistimos pois a espetaacuteculos hiacutebridos onde o boneco tem apenas um

pequeno espaccedilo e constantemente eacute apenas uma figuraccedilatildeo E o puacuteblico ndash

Pois bem os que decidiram por este gecircnero de espetaacuteculo assistem a uma

peccedila de teatro e nem sempre um bom teatro O espectador assim frustrado se

faz entatildeo esta pergunta

- Por que as marionetes desaparecem no momento em que se reclama

sobre ela todas as coisas Complexo de marionetista que lamenta natildeo ser

tratado de comediante Ou simplesmente que o marionetista da deacutecada de

[19]80 natildeo eacute mais um verdadeiro manipulador um verdadeiro animador ou

natildeo tem mais imaginaccedilatildeo

Penso que todos devemos refletir a respeito eacute importante sobretudo

se natildeo queremos que nossa arte desapareccedila de novo completamente como

uma raccedila desapareceu pouco a pouco do globo

O ecircxito nem sempre estaacute proporcional com a grandeza do dispositivo

cecircnico O puacuteblico ama tambeacutem os pequenos teatrinhos pensem no enorme

ecircxito alcanccedilado por Waschinski Roser Hubert e Boerwinkel Acendamos

pois nossa imaginaccedilatildeo retornemos ao manipulador e voltemos a criar juntos

o verdadeiro teatro de marionetes para a maior alegria de nosso puacuteblico que

as reclama (FEacuteLIX 1984)

A escolha de um texto de Jacques Feacutelix para ser o provocador inicial desta reflexatildeo natildeo se daacute

por acaso Aleacutem de haver sido secretaacuterio geral da UNIMA Feacutelix eacute considerado figura

fundamental no processo de vitalizaccedilatildeo e modernizaccedilatildeo das artes da marionete ao longo

seacuteculo XX tanto no que diz respeito ao seu trabalho artiacutestico junto agrave Compagnie des Petits

Comeacutediens de Chiffons (Companhia dos Pequenos Atores de Trapos) quanto no vigor da sua

reflexatildeo e atuaccedilatildeo poliacutetica para a consideraccedilatildeo do teatro de bonecos dentro do panorama das

22

artes cecircnicas de seu tempo Portanto iniciar uma discussatildeo a partir de uma reflexatildeo de

Jacques Feacutelix eacute tratar de um pensamento vindo de algueacutem profundamente engajado no

movimento do teatro de animaccedilatildeo e interessado em sua modernizaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo Apoacutes essa

breve advertecircncia seguimos com o raciociacutenio

Segundo Feacutelix a cena de teatro de marionetes do seu tempo renegava cada vez mais a

apresentaccedilatildeo do boneco para apresentar ldquoum teatro de atores com objetos maacutescaras e

algumas marionetes ou simplesmente um uacutenico boneco com atoresrdquo(ibid)

Feacutelix temia que o manuseio de diferentes meios expressivos sempre mediados por

uma participaccedilatildeo efetiva do ator no teatro de marionetes o precipitasse rumo a uma

tendecircncia de crescente hibridizaccedilatildeo e perda de contato com os seus principais elementos

distintivos Isto poderia assim de acordo com Feacutelix conduzir a arte do boneco por uma trilha

de descaracterizaccedilatildeo e subsequente extinccedilatildeo De modo semelhante o historiador e teoacuterico

Henryk Jurkowski se indaga se o tempo em que o ator ou o performer participa de maneira

cada vez mais proeminente em relaccedilatildeo com o boneco natildeo ldquoseraacute o fim do teatro de marionetes

enquanto gecircnero teatral propriamente ditordquo (2000 p 157) Jurkowski menciona um desgaste

nas formas tradicionais de teatro de bonecos e indica a inserccedilatildeo bem sucedida de

procedimentos de teatro de marionetes em diferentes ldquoformas de um teatro poacutes-modernordquo

Tanto Feacutelix quanto Jurkowski tributam a forja da cena heterogecircnea e desvirtuada cada um ao

seu modo a transformaccedilotildees percebidas nas relaccedilotildees do artista de animaccedilatildeo com a cena e com

o boneco Feacutelix acusa a reduccedilatildeo da presenccedila da marionete em espetaacuteculos supostamente

dedicados a ela como resultado de provaacuteveis alteraccedilotildees em interesses e competecircncias por

parte dos marionetistas aos quais indaga se perderam o orgulho pela arte e pretendem

transformar-se em comediantes se perderam o contato com a tradiccedilatildeo e a capacidade teacutecnica

necessaacuteria ao seu bom desenvolvimento ou se simplesmente lhes falta imaginaccedilatildeo

O texto deixa bastante claro que sendo o marionetista (o artista que apresenta o

boneco) a vontade que impulsiona e daacute agrave arte da marionete a sua qualidade e caracteriacutesticas

particulares eacute nas criaccedilotildees e iniciativas desses artistas que o teatro de bonecos encontra sua

forccedila de permanecircncia bem como seus impulsos de transformaccedilatildeo Para Feacutelix em que pese o

tom admoestatoacuterio de seu artigo o esforccedilo que o marionetista deve empreender no sentido de

manter vivo o teatro de bonecos se encontra intimamente relacionado ao esforccedilo de

aprimoramento de sua capacidade teacutecnica ferramenta imprescindiacutevel para a afirmaccedilatildeo do

ldquoverdadeiro teatro de marionetesrdquo (ibid)

A defesa de Feacutelix por uma determinada maneira de se apresentar o boneco como

sendo aquilo que caracteriza o teatro de bonecos ldquocomo este deveria serrdquo natildeo eacute difiacutecil notar

23

repousa sobre dois elementos bastante especiacuteficos e relacionados a tradiccedilatildeo e a teacutecnica A

decadecircncia teacutecnica dos artistas de teatro de bonecos somada a descuidos com as formas e

temas tradicionais e caracteriacutesticos ao gecircnero seriam os principais fatores a incitarem um

desejo de degeneraccedilatildeo nos criadores contemporacircneos que misturam bonecos com outros

materiais expressivos tais como maacutescaras objetos e atores substituindo assim o teatro de

bonecos por um hiacutebrido que como tal natildeo corresponde agraves expectativas do puacuteblico que acorre

aos teatros para assistirem a bonecos magistralmente manipulados

Outro resultado funesto desse processo de hibridizaccedilatildeo do teatro de bonecos seria a

interferecircncia crescente do ator resultado das vaidades negligecircncias teacutecnicas e falhas criativas

dos marionetistas de hoje Assim o desaparecimento do teatro de bonecos temido por Feacutelix e

indagado por Jurkowski seria resultado do descaso por parte de criadores com as formas e os

recursos de determinadas tradiccedilotildees de teatro de bonecos Assim sendo o interesse em

cruzamentos de linguagens e em mediaccedilotildees com outras competecircncias e materiais expressivos

retira de sua arte um tipo de identidade que reside sobre o domiacutenio de certo apanhado de

competecircncias (de construccedilatildeo de manipulaccedilatildeo de apresentaccedilatildeo) que daria a um determinado

entendimento do que seria teatro de bonecos uma clara qualidade distintiva

Este primeiro momento do trabalho se propotildee a usar o texto de Feacutelix como uma

provocaccedilatildeo e partir da hipoacutetese de que a arte da marionete se sustenta e caminha tal qual o

faz o boneco sob o impulso do artista de animaccedilatildeo discutir os entendimentos de termos e

procedimentos do atual teatro de animaccedilatildeo Parte tambeacutem do entendimento de que satildeo as

capacidades as vontades discursivas e os acordos criados em cena durante o ato da

apresentaccedilatildeo pelo artista que conduzem manteacutem e transformam o que pode ser considerado

teatro de bonecos bem como as manifestaccedilotildees decorrentes de suas mudanccedilas de postura

Tambeacutem pretendo me afastar do que defende Feacutelix no sentido de acreditar que as

transformaccedilotildees na arte do boneco propostas pela dinacircmica das diferentes posturas assumidas

pelo artista animador sobretudo a partir do que vem sendo observado no panorama do teatro

de animaccedilatildeo dos uacuteltimos quarenta anos natildeo o encaminha para a degeneraccedilatildeo e a extinccedilatildeo

mas o vitaliza o insere ainda mais no panorama geral das artes cecircnicas e explora

potencialidades existentes na linguagem que ao contraacuterio de descaracterizaacute-la refaz com

novo vigor os laccedilos existentes com os seus fundamentos

O artista de animaccedilatildeo exortado a ser o defensor de uma tradiccedilatildeo de formas e temas

subordinada diretamente ao domiacutenio teacutecnico e agrave observacircncia daquilo que poderia ser chamado

de teatro de bonecos se reposiciona diante do boneco e do seu teatro As transformaccedilotildees

observadas em seus modos de interferecircncia sobre a construccedilatildeo da cena de animaccedilatildeo

24

operaram de modo mais pronunciado no sentido de dar maior visibilidade agraves possibilidades

transdisciplinares inerentes ao teatro de bonecos e persistentes em seu percurso atraveacutes do

tempo Eacute mais recente no entanto as inuacutemeras formas resultantes de arranjos

multireferenciais que vecircm provocando transformaccedilotildees sobre a natureza do teatro de bonecos

e tambeacutem na maneira como este se posiciona diante do panorama mais geral das artes cecircnicas

Percebe-se tanto nas praacuteticas de algumas companhias quanto no olhar de programadores e

curadores de festivas e eventos dedicados ao teatro de animaccedilatildeo ndash ao teatro de formas

animadas ndash a atenccedilatildeo para espetaacuteculos que se posicionam de maneira um tanto problemaacutetica

no que diz respeito agrave especificidade da linguagem Um dos exemplos mais eloquentes do que

se apresenta estaacute no trabalho da companhia do artista de animaccedilatildeo encenador e coreoacutegrafo

francecircs Philippe Genty cujos espetaacuteculos ocupam verdadeiramente uma ldquozona de

indefiniccedilatildeordquo entre a danccedila o teatro a animaccedilatildeo de formas e as artes circenses (Figuras 1 e 2)

Em recente espetaacuteculo da companhia de teatro de animaccedilatildeo Pia Fraus chamado Primeiras

Rosas contos de Guimaratildees Rosa foram apresentados com o emprego de bonecos objetos

sombras materiais brutos e recursos de viacutedeo (Figuras 3 e 4) A crescente presenccedila da

animaccedilatildeo de formas em propostas de encenaccedilatildeo interessadas em produzir um campo muacuteltiplo

de possibilidades de expressatildeo ou antes a crescente consideraccedilatildeo da animaccedilatildeo de formas

como ponto de encontro de uma expressividade muacuteltipla cria para uma determinada vontade

de compreensatildeo e classificaccedilatildeo um problema decorrente da dissoluccedilatildeo das fronteiras entre as

linguagens de expressatildeo artiacutestica que a animaccedilatildeo parece conseguir operar em diversas

experiecircncias Atuar como um ldquooperador de tracircnsitosrdquo entre manifestaccedilotildees de expressividade

cecircnicas plaacutesticas e sonoras situa a modalidade espetacular teatro de animaccedilatildeo ao menos

aparentemente num lugar de absoluta indefiniccedilatildeo sem que seus limites e fundamentos

possam ser identificados de modo a dar a ver um campo expressivo claro e codificado Some-

se a isso o fato de inuacutemeras manifestaccedilotildees em teatro de bonecos encontrarem-se solidamente

apoiadas em tradiccedilotildees de formas e de temas com procedimentos e caracteriacutesticas praticados e

transmitidos com rigor

25

Figura 1 Compagnie Philippe Genty La fin des terres

Fonte (httpleighgillamwordpresscom20100412phillipe-genty)

Foto Pascal Franccedilois

Figura 2 Compagnie Philippe Genty Boliloc

Fonte (httpwwwdancetalkcoilp=340)

Foto Pascal Franccedilois

26

Figura 3 Pia Fraus Primeiras Rosas (As margens da alegria)

Fonte (httpwwwflickrcomphotosfabianosouza3972110212inphotostream)

Foto Fabiano Souza

Figura 4 Pia Fraus Primeiras Rosas (O cavalo que bebia cerveja)

Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)

Foto Carlos Lagoeiro

As figuras minuacutesculas operadas sobre uma mesa satildeo filmadas em tempo real e tecircm suas imagens

projetadas em angulaccedilotildees e composiccedilotildees diferentes em uma tela ao fundo do palco

27

Parece assim que se estaacute diante de um problema ou de um equiacutevoco taxonocircmico e uma

soluccedilatildeo a ser considerada para tal impasse seria a proposiccedilatildeo de outro entendimento da

animaccedilatildeo e do emprego da forma animada Pois se entendemos o teatro de animaccedilatildeo como

algo que opera tanto em manifestaccedilotildees de riacutegida codificaccedilatildeo quanto em praacuteticas de

transdisciplinaridade artiacutestica e se entendemos que nesse segundo caso essa operaccedilatildeo

funciona em favor da indeterminaccedilatildeo de uma linguagem expressiva que seja especiacutefica ou

dominante sobre a cena talvez isto sugira um deslocamento que pode ter transformado um

gecircnero que se supunha uma manifestaccedilatildeo autocircnoma (e marginal) das artes teatrais num

conjunto de teacutecnicas dispositivos esteacuteticos e operaccedilotildees integradoras que passaria a poder ser

incorporado ao instrumental posto agrave disposiccedilatildeo da encenaccedilatildeo contemporacircnea Isto pode natildeo

ser complicado de considerar se pensarmos nos objetos projeccedilotildees e corpos estaacuteticos usados

em encenaccedilotildees de Robert Wilson e Richard Foreman nos manequins de Tadeusz Kantor e

ateacute mesmo nos bonecos e cenas de mutilaccedilatildeo feitas por Gerald Thomas em espetaacuteculos como

The flash and crash days (1992) Impeacuterio das meias verdades (1993) (Figura 7 Video 1) em

que a atriz Fernanda Torres aparece com sua cabeccedila sobre uma mesa como se fizesse parte de

um assado parcialmente devorado na versatildeo de Quarteto de Heiner Muller com Ney

Latorraca e Edy Botelho e Terra em TracircnsitoQueen Liar (2007) no qual a atriz Fabiana

Giugli contracena com um boneco de luva representando o pescoccedilo e a cabeccedila de um cisne

projetada para fora de uma das paredes do cenaacuterio (Figura 8)

Cariad Astles recorda e comenta um famoso vaticiacutenio de Henryk Jurkowski

Parece portanto que o conceito do termo ldquoteatro de bonecosrdquo foi alargado

de tal forma que a noccedilatildeo de interdisciplinaridade jaacute eacute inerente a ele Henryk

Jurkowski sugeriu em seu livro Metamorfose que a arte do teatro de bonecos

estaria possivelmente se tornando obsoleta em sua utilizaccedilatildeo no teatro vivo e

na relaccedilatildeo com outras formas artiacutesticas e que certamente o corpo do boneco

tornou-se diferente (ASTLES 2008 p54)

Para Jurkowski a anexaccedilatildeo do teatro de bonecos por parte do que ele chama de ldquoteatro

vivordquo eacute um caminho para a obsolescecircncia Astles jaacute entende esse teatro agrave luz dos cruzamentos

expressivos que propicia

A suposiccedilatildeo de uma dupla consideraccedilatildeo do teatro de bonecos como modalidade

espetacular autocircnoma e como linguagem incorporada ao teatro contemporacircneo eacute uma das

indagaccedilotildees que assombra este trabalho tendo como ponto de vista a consideraccedilatildeo da

animaccedilatildeo como ferramenta operativa de conjunccedilotildees transdisciplinares O estudo de cenas e

28

Figura 5 Robert Wilson The CIVIL warS

Fonte (http123nonstopcompicturesRobert_Wilson_and_the_Civil_Wars)

Foto New Yorker Films

Figura 6 Tadeusz Kantor The dead class

Fonte (httpperfectionofperplexionwordpresscom20101102nyunnom-15)

29

Figura 7 Impeacuterio das meias verdades (atriz Fernanda Torres)

Fonte (httpwwwfotologcombrleo221052164848)

Viacutedeo com esta cena disponiacutevel em lthttpvimeocom11676144gt (Viacutedeo 1)

Figura 8 Terra em tracircnsito (atriz Fabiana Giugli)

Fonte (httpgersonstevesbloguolcombrarch2006-10-01_2006-10-31html)

30

procedimentos artiacutesticos de companhias dedicadas ao teatro de animaccedilatildeo em atividade no

Brasil pretende demonstrar como a animaccedilatildeo pode estar presente em procedimentos de

encenaccedilatildeoainda que natildeo se possa reconhecer de imediato dois de seus elementos nucleares o

boneco e o manipulador Uma vez que o atual teatro de animaccedilatildeo natildeo anima apenas bonecos

mas outros elementos constitutivos da cena teatral tais como o espaccedilo a luz objetos e

materiais variados o enredo a accedilatildeo os atores ndash e partes de atores ndash decorre desse acreacutescimo

de possibilidades de formas animaacuteveis uma ampliaccedilatildeo consideraacutevel nos diferentes

procedimentos de manipulaccedilatildeo Pois seraacute exatamente no ato de manipular e nas maneiras

como esse ato ndash e essa postura relacional com a mateacuteria da cena ndash integra heterogeneidades

que se fundaraacute a vocaccedilatildeo interdisciplinar do teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo tendo como

local de articulaccedilatildeo um tipo de artista que participa do evento espetacular com a sua presenccedila

com o seu potencial expressivo e com a sua subjetividade do mesmo modo como participa

com suas habilidades manipulativas

Este trabalho se potildee a investigar o entendimento de que as principais transformaccedilotildees

verificadas na arte da animaccedilatildeo brasileira das uacuteltimas quatro deacutecadas natildeo apenas entendem o

artista de animaccedilatildeo como dinamizador dos questionamentos presentes em procedimentos

investigativos da linguagem da animaccedilatildeo mas tambeacutem aproveitaram suas diferentes maneiras

de participaccedilatildeo como um provocador de temas para o atual teatro de formas animadas Da

mesma forma o trabalho buscaraacute natildeo perder a atenccedilatildeo sobre a potecircncia de significaccedilatildeo da

forma animada a partir da compreensatildeo de que as recentes transformaccedilotildees verificadas no

entendimento e na apresentaccedilatildeo da mesma captam e transfiguram o ator e seu corpo ateacute um

modo de percepccedilatildeo que transforma atores em objetos no entendimento da audiecircncia

Como esforccedilo inicial recuo dez anos antes da missiva de Feacutelix a uma ediccedilatildeo anterior

da mesma revista Mamulengo do ano de 1974 A revista apresenta dois artigos que merecem

alguma atenccedilatildeo Natildeo apenas por seus conteuacutedos mas pelo fato de haverem sido publicados

naquela que era a publicaccedilatildeo brasileira mais importante em teatro de animaccedilatildeo da eacutepoca

editada e chancelada pela Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos mas tambeacutem pela

maneira como esses artigos faziam reverberar o panorama momentacircneo do teatro de bonecos

no Brasil

O primeiro dos artigos mencionados foi escrito pelo escultor e artista de animaccedilatildeo

sueco Michael Meschke que em um texto com um teor aberto de criacutetica poliacutetica defende a

livre experimentaccedilatildeo em teatro de bonecos como meio de conferir agrave proacutepria linguagem mais

projeccedilatildeo e reputaccedilatildeo Meschke exorta seus leitores especializados a aprofundarem a discussatildeo

objetivando a definiccedilatildeo seacuteria de uma esteacutetica para a arte do boneco Tal discussatildeo seria

31

importante para a derrubada de preconceitos nos campos da criaccedilatildeo da teacutecnica e da proacutepria

consideraccedilatildeo dos fundamentos da linguagem Juntamente a essa necessidade Meschke evoca

o espiacuterito criador e o desejo de comunicaccedilatildeo do artista como elemento de fundamental

importacircncia para os percursos de compreensatildeo e transformaccedilatildeo da arte da animaccedilatildeo Em suas

palavras

A forma deve estar subordinada ao exato ideal que um artista deseja

comunicar ao seu semelhante E aprofundando mais a esteacutetica em puppetry3

acaba significando eacutetica exemplificada pela nossa escolha de repertoacuterio

(MESCHKE 1974 p 7)

Ou seja para Meschke a vontade de expressatildeo do artista de animaccedilatildeo ainda que natildeo seja

exatamente um componente da definiccedilatildeo do que seria o teatro de bonecos natildeo pode ser

tolhido por cacircnones esteacuteticos riacutegidos que carecem ser reavaliados De fato seriam esses

desejos e seus meios de satisfaccedilatildeo que lanccedilariam as bases para se pensar o teatro de bonecos

em termos mais precisos ou ateacute mesmo renovados

E se aquele era de fato o ldquotempo de se erguer uma laacutepide sobre a confusa filosofia

titiriteira de falsas definiccedilotildees e presunccedilotildees de exclusividaderdquo (id p8) Meschke natildeo evita a

polecircmica ao montar uma lista de permissotildees muitas das quais evocando as praacuteticas que

despertaram o desgosto de Feacutelix

Portanto estabeleccedilamos que natildeo eacute crime

misturar bonecos com atores vivos

usar bonecos muito grandes ou muito pequenos

misturar bonecos com maacutescaras com danccedila oacutepera drama cinema

music-hall muacutesica pop etc

reduzir bonecos a atores de tamanho menor para efeito de perspectiva

gostar de Punch amp Judy de Kasper de Guignol ou qualquer nome

tenham

mostrar ou natildeo mostrar o manipulador e sua teacutecnica durante o

espetaacuteculo

trabalhar meses para atingir a perfeiccedilatildeo esteacutetica de um boneco ou usar

um foacutesforo como boneco (id p10)

O que haacute de mais interessante no texto de Meschke eacute o seu caraacuteter inclusivo Natildeo se trata de

uma condenaccedilatildeo das formas tradicionais de teatro de bonecos para em seu lugar exaltar a livre

experimentaccedilatildeo e a reforma do boneco teatral A insistecircncia na constituiccedilatildeo de uma esteacutetica

3 A traduccedilatildeo do artigo de Meschke natildeo assinada prefere manter em inglecircs o termo puppetry que possui

transposiccedilatildeo complicada para o portuguecircs Pode-se entender puppetry de maneira mais ampla como sendo a

arte do boneco em diversas de suas feiccedilotildees incluindo o trabalho de modelagem e construccedilatildeo ateacute aspectos de

treinamento dramaturgia e apresentaccedilatildeo sem deixar de lado os contextos tradicionais de onde emergem as

diversas manifestaccedilotildees dessa linguagem espetacular Uma traduccedilatildeo simples para o portuguecircs seria teatro de

bonecos (natildeo se usam termos bonecaria ou bonecada) devido o variado escopo de aproximaccedilotildees e funccedilotildees que

o termo sugere No entanto cabe aqui a duacutevida quanto agrave eficaacutecia do termo motivada pela incerteza se as

manifestaccedilotildees artiacutesticas do tipo de boneco por ele evocado seriam de fato restritas ao teatro

32

para o teatro de bonecos tem como finalidade principal encontrar os princiacutepios que regem as

manifestaccedilotildees entendidas de uma forma ou de outra como tal propondo uma reflexatildeo acerca

de fundamentos que definam e harmonizem suas variadas formas

Seguindo adiante na mesma ediccedilatildeo de Mamulengo deparamo-nos com outro texto uacutetil

para o entendimento do contexto que suscitou a referida carta de Feacutelix Trata-se de uma

reflexatildeo sobre experimentaccedilotildees da companhia francesa Theacuteacirctre sur le fil feita por Charles

Monastier acerca do uso da manipulaccedilatildeo de bonecos e objetos em cena com manipuladores agrave

vista O texto de Monastier eacute proacutedigo em apontamentos e reflexotildees acerca de modos e

implicaccedilotildees do emprego do animador agrave vista sendo que duas das questotildees apontadas parecem

ser especialmente caras ao tipo de reflexatildeo que tento encadear no momento A primeira

questatildeo eacute uma informaccedilatildeo que apesar de apresentar acuidade questionaacutevel natildeo deixa de

apontar para questotildees importantes Monastier sugere uma data aproximada para a expansatildeo do

emprego do animador agrave vista em praacuteticas na Europa quando em 1974 declara que ldquohaacute mais

de quinze anos ele [o boneco] natildeo evolui mais em campo fechadordquo (MONASTIER 1974

p13) Assim de acordo com Monastier desde finais da deacutecada de 1950 pelo menos jaacute se

viam iniciativas artiacutestica em teatro de bonecos nas quais o boneco se apresentava fora da

estrutura do castelet4 levando o artista de manipulaccedilatildeo a aparecer diante do puacuteblico Essa

dataccedilatildeo eacute de certa maneira corroborada por Jurkowski que situa na mesma deacutecada de 1950 o

iniacutecio da ldquoruptura do teatro de bonecos com sua poeacutetica tradicionalrdquo (JURKOWSKI 2000

p56) Essa dataccedilatildeo parece ndash e de fato eacute ndash bastante questionaacutevel sobretudo se a apoiarmos

exclusivamente sobre o advento do manipulador agrave vista Eacute possiacutevel que o momento indicado

por Monastier e Jurkowski tenha de fato visto o surgimento de um conjunto de fatores dos

quais a exposiccedilatildeo do manipulador pode ser tanto causa como consequecircncia que levou

algumas companhias e artistas a fazer um teatro de bonecos capaz de indagar com maior

virulecircncia as concepccedilotildees e os meios de criaccedilatildeo e produccedilatildeo anteriores No entanto o mero

emprego do operador de bonecos agrave vista do puacuteblico eacute tatildeo antigo quanto o proacuteprio teatro de

bonecos seja no ocidente ou no oriente

Mais adiante em seu artigo Monastier menciona o modo como a plateia percebe o

boneco operado por artistas postos a vista

Agrave confissatildeo do homem que age corresponde a confissatildeo da materialidade do

boneco ele eacute um objeto e essencialmente mateacuteria bruta inerte isolada Sua

significaccedilatildeo nasce da intenccedilatildeo e do gesto do manipulador Havendo um

homem haveraacute certamente um objeto (idem)

4 A casinha ou aparato de ocultaccedilatildeo e apoio para cenaacuterios empregado mais usualmente para bonecos de luva No

Brasil pode adquirir os nomes de empanada ou tolda

33

Se isso eacute verdade entatildeo a apariccedilatildeo do ator operador5 de bonecos sobre a cena parece se dar

com a forccedila de um balde de aacutegua fria sobre as expectativas da plateia de maravilhar-se com a

impressatildeo de vida que se confere a figuras moacuteveis De fato se retornarmos agraves queixas de

Feacutelix podemos perceber que o que se propotildee aqui eacute uma alteraccedilatildeo na maneira como bonecos

satildeo percebidos em cena No teatro de bonecos acerca do qual Monastier discorre deixamos de

nos encantar com a impressatildeo de vida projetada sobre objetos para encantarmo-nos com outra

coisa ou natildeo nos encantarmos em absoluto No entanto eacute possiacutevel mesmo que haja potecircncias

a serem explicadas a respeito da exposiccedilatildeo da condiccedilatildeo de objeto do boneco teatral

O trabalho do Theacuteacirctre sur le Fil companhia mencionada por Monastier e fundada por

ele e sua mulher Colette Monastier notabilizou-se como pode ser verificado em uma

passagem pelo Brasil no ano de 1973 pelo emprego de figuras bidimensionais apoiadas sobre

dois fios presos em paralelo atravessando a frente do palco e como os atores manipulando as

formas agrave vista do puacuteblico (Figura 9) Eacute claro que a percepccedilatildeo do caraacuteter de objeto nos

elementos trabalhados pelo Theacuteacirctre sur le Fil encontram-se mais em evidecircncia sobretudo se

percebidos em conjunto com o artista No entanto natildeo parece que o emprego do operador

aparente usado em meio a um processo de realce do caraacuteter de objeto do boneco perca em

validade se nos dispusermos a buscaacute-lo em trabalhos nos quais as formas dos bonecos se

aproximam das de figuras vivas encontradas na natureza Um exemplo que se afasta bastante

dos materiais e formas do Theacuteacirctre sur le Fil e por isso mesmo interessante eacute o trabalho do

artista de bonecos de fios Phillip Huber6(Figura 10) que em geral se apresenta de peacute sobre o

palco desprovido de cenaacuterio (mas iluminado de modo a enfatizar o boneco) e faz com que

variados tipos de cabareacute apresentem seus nuacutemeros individuais apoiados diretamente sobre o

chatildeo do palco Um de seus personagens mais populares eacute o do cachorrinho Taffy que

Curioso notar o quanto a exibiccedilatildeo do manipulador para os casos ateacute entatildeo abordados eacute

capaz de produzir uma percepccedilatildeo em movimento uma maneira de entender o boneco em

conjunccedilatildeo com diversos outros elementos que por vezes podem ateacute mesmo deixar de lado o

5 A escolha pouco usual do termo operador em lugar de termos mais usuais como manipulador animador

marionetista ou bonequeiro para designar o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco se daacute em primerio

lugar por empreacutestimo a Steve Tillis (1992) e se daacute a partir da necessidade de um emprego terminoloacutegico que

desse conta de identificar o tipo de artista abordado em meio a um questionamento acerca da pertinecircncia das

palavras mais usadas para identifica-lo Natildeo se trata de uma nova proposta de definiccedilatildeo e sim de um ldquotermo de

passagemrdquo que pudesse dar conta da funccedilatildeo abordada em meio a um exerciacutecio de discussatildeo de uma

terminologia em revisatildeo 6 O espetaacuteculo Huber Marionetes foi assistido em 2006 no teatro SESI da Av Paulista como parte das atraccedilotildees

do Festival SESI Bonecos do Brasil e do Mundo daquele ano

34

Figura 9 Theacuteacirctre sur le fil Oiseau Vole

Fonte (AMARAL Ana Maria Teatro de formas animadas Satildeo Paulo Edusp 1993 (Texto amp Arte 2) P148

Foto Monastier

Figura 10 Phillip Huber no Festival de Teatro de Bonecos de

Canela 2010

Fonte

(httpwwwipernitycomdoccaroani|RCA3Boff3D162r[vi

ew]=1)

Foto Carlos Roani

Figura 11 Taffy (Phillip Huber)

Fonte

(httpwwwpuppetrymuseumorgIPM-

exhibit12html)

35

proacuteprio boneco e que propotildee uma leitura desse sujeito da cena de modo a natildeo o estabilizar

numa forma ou num lugar cecircnico

Essa mesma percepccedilatildeo dinacircmica pode ser provocada por espetaacuteculos de companhias

que praticam o que se convencionou chamar de manipulaccedilatildeo direta7 por exemplo Peer Gynt

da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo nas quais os movimentos dos bonecos imitam de modo

intencional e com certo apuro o gesto humano Os manipuladores postos agrave vista do puacuteblico

tendem a criar uma narratividade dividida na qual a histoacuteria dos bonecos se soma agrave accedilatildeo dos

manipuladores de modo a produzir uma narrativa composta Essa mesma narrativa pode por

meio da qualidade da accedilatildeo dos atores que operam os bonecos fazer esses niacuteveis coincidirem

eventualmente A inevitaacutevel identificaccedilatildeo por parte do puacuteblico da personagem representado

pelo boneco com os manipuladores sobretudo aquele responsaacutevel pela vocalizaccedilatildeo da

personagem contribuem para tornar ainda mais complicada a tentativa de se entender a

personagem como uma forma cecircnica individualizada (Figura 12) Para o espectador entatildeo as

personagens mostradas na montagem transitam entre as diferentes possibilidades apresentadas

pela encenaccedilatildeo ndash ator boneco combinaccedilotildees entre atores bonecos e demais objetos de cena ndash

e a sua proacutepria imaginaccedilatildeo liberada que estaacute pela vertiginosa gama de modos de

entendimento A montagem em questatildeo se relaciona com a temaacutetica do boneco tornado coisa

diante da presenccedila do operador agrave mostra pois que lida com certa alternacircncia de usos de alguns

dos bonecos da peccedila ndash sobretudo aqueles que representam o protagonista do poema ibseniano

ndash entre a sugestatildeo de vida apresentada por meio de uma manipulaccedilatildeo esmerada e certa

qualidade indicativa como quando pousa inerte agrave frente ou sobre um dos ombros do ator que

o vocaliza para autorizaacute-lo a falar em seu nome De fato o Peer Gynt da PeQuod atende de

modo mais completo agraves indicaccedilotildees de Monastier quando ativa poeticamente determinados

objetos ao combinaacute-los aos atores para criar elementos percebidos como objetos compostos e

natildeo como atores caracterizados Assim ocorre com os convidados da festa de casamento

cujas cabeccedilas satildeo sacos de pano sem expressotildees faciais (Figura 13) assim ocorre com a noiva

abandonada montada de um grande veacuteu que pende do alto do teatro recobrindo a atriz que daacute

a entrever sua nudez por meio das camadas de renda franzida (Figura 15) assim ocorre com o

belicoso personagem Aslak um roupatildeo de lutador de boxe vestido por um ator posicionado

constantemente de costas para a plateia (Figura 14)

7 Esta seria uma forma de manipulaccedilatildeo de bonecos antropomoacuterficos em escala reduzida sem o emprego de varas

ou fios com os manipuladores podendo ser ateacute trecircs por boneco posicionados atraacutes dos bonecos Geralmente eacute

praticada sobre um balcatildeo Mas exemplos haacute como o de alguns espetaacuteculos do Grupo Contadores de Estoacuterias

nos quais os bonecos satildeo operados diretamente sobre o chatildeo do palco

36

Provocar a percepccedilatildeo do boneco como objeto pode assim estimular uma ampliaccedilatildeo de

possibilidades de leitura abrir ao puacuteblico a chance de participar de sua construccedilatildeo por meio

de escolhas particulares Ou como apresenta Monastier

Para noacutes natildeo se trata tanto de narrar uma histoacuteria a partir de elementos preacute-

construiacutedos como de oferecer propostas de animaccedilatildeo de figuraccedilatildeo de

situaccedilatildeo ldquosem nada que pese ou que se exibardquo As sugestotildees permanecem

em suspenso [] Trata-se de em vez de apresentar uma coisa acabada

propor o sorriso inacabado de Buda cabe a cada um completaacute-lo se quiser

com suas proacuteprias riquezas (idem)

O objeto visto como coisa aliado agrave visibilidade do artista que o opera ou ldquoque lhe daacute

significadordquo permite entatildeo que se apresentem enredos e sujeitos ainda por serem

completados insere lacunas que retiram a linearidade da apresentaccedilatildeo teatral e transforma a

figuraccedilatildeo dos sujeitos da narrativa em propostas e aleacutem disso propotildee uma percepccedilatildeo do ator

como sendo o objeto ou parte do objeto que atua Mas de que maneira isso ocorre

Prosseguimos investigando as transformaccedilotildees na arte do boneco tendo como ponto de

partida o problema apontado por Feacutelix Creio que neste momento para poder compreender

melhor os motivos que suscitaram a existecircncia do nosso ponto de partida argumentativo seraacute

importante antes de nos debruccedilarmos sobre os problemas e as transformaccedilotildees conceituais das

noccedilotildees de boneco teatral e teatro de bonecos olhar de relance para o panorama do teatro de

bonecos brasileiro agrave eacutepoca da admoestaccedilatildeo de Feacutelix de modo a buscar entender quais seriam

as manifestaccedilotildees e materiais que estariam sendo considerados ou desconsiderados como

teatros de bonecos e bonecos teatrais

37

Figura 12 PeQuod Peer Gynt ndash Desvio de foco (atores Maria Rego Barros Mario Piragibe e Marcio

Newlands)

Fonte DVD Peer Gynt (2006)

A divergecircncia de foco do ator que vai do boneco em direccedilatildeo ao puacuteblico durante a fala produz uma

duplicaccedilatildeo da percepccedilatildeo da personagem

Figura 13 PeQuod Peer Gynt ndash Festa de

casamento (atores Miona Vilardo Marcio

Nascimento Marcio Newlands e Liliane Xavier)

Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)

Figura 14 PeQuod Peer Gynt ndash Aslak (atores

Mario Piragibe Maria Rego Barros Liliane Xavier e

Marcio Newlands)

Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)

Figura 15 PeQuod Peer Gynt ndash A Noiva (atriz Maria Rego Barros)

Fonte Fonte DVD Peer Gynt (2006)

38

22 Visotildees de um panorama

O ano de 1974 ano de publicaccedilatildeo dos artigos de Monastier e Meshke insere no

repertoacuterio teatral brasileiro uma montagem que lidou com absolutamente todos os pontos

centrais de argumentaccedilatildeo dos dois artigos mencionados E que de fato possui para o teatro de

animaccedilatildeo e para o teatro infantil feitos no Brasil uma importacircncia que extrapola em muito o

atendimento agraves demandas poeacuteticas apresentadas

A estreacuteia de Histoacuteria de Lenccedilos e ventos em maio daquele ano foi ldquoum divisor de

aacuteguas no teatro infantil feito no Rio de Janeiro e tambeacutem no paiacutesrdquo (VELLINHO 2009 p31)

A peccedila foi a primeira de um grupo teatral receacutem-formado dirigido por Ilo Krugli apoacutes um

retorno traumaacutetico do Chile quando o trabalho com uma companhia em Santiago foi

brutalmente interrompido pelo golpe pinochetista O retorno do argentino Krugli ao Brasil

onde jaacute possuiacutea um trabalho em artes e educaccedilatildeo consolidado foi marcado pelo trauma do

golpe e pelo encontro com uma realidade local igualmente violenta

Voltando do Chile com a sensaccedilatildeo do drama vivido a destruiccedilatildeo de sonhos

e de vidas um ator de meu grupo de teatro em Santiago que se chamava

Manos que quer dizer matildeos e irmatildeos um ator havia morrido e tambeacutem

tinham morrido os sonhos e ateacute um presidente eleito pelo voto direto do

povo [] Aqui voltando eu natildeo tinha grupo natildeo tinha nada Meu trabalho

com o grupo que tinha criado uma escola ndash o NAC ndash tinha acabado meu

trabalho de bonecos que era o Teatro de Ilo e Pedro8 tinha acabado soacute tinha

algumas poucas pessoas em volta que eram alunos ou companheiros de

aventura de vida e de vivecircncias como o Beto Coimbra o Caiacuteque [Botkay]

a Siacutelvia Aderne E assim em doze dias nasce explosivamente para levar a

um festival no Paranaacute o espetaacuteculo E nasce o grupo9

A maneira explosiva como o espetaacuteculo eacute montado combinado ao emprego de uma

esteacutetica artesanal e de ecircnfase sobre o trabalho das matildeos aplicada por Krugli em experiecircncias

anteriores como A histoacuteria de um barquinho de 1972 faz de Histoacuteria de Lenccedilos e ventos um

espetaacuteculo que prima pela invenccedilatildeo criando personagens com pedaccedilos de papel lenccedilos e

outros objetos livremente manuseados pelos atores

A histoacuteria trata de um pequeno lenccedilo azul de nome Azulzinha que levado pelo Vento

da Noite acaba prisioneira do Rei Metal Mau em sua fortaleza na Cidade Medieval Outro

personagem um pedaccedilo de jornal chamado Papel empreende uma jornada para resgatar

Azulzinha passando por perigos e ateacute mesmo a sua proacutepria imolaccedilatildeo ateacute retornar com o

lencinho ao quintal onde a histoacuteria comeccedilou

8 Ilo se refere aqui ao grupo que formou em parceria com o artista plaacutestico e ator argentino Pedro Turon

Dominguez chamado Teatro Ilo e Pedro 9 Programa do evento 10 anos de Ventoforte p 34

39

Esse enredo aparentemente simples mas que eacute repleto de citaccedilotildees e provocaccedilotildees ao

ambiente poliacutetico do momento10

eacute encenado com grande liberdade discursiva na qual os

atores empunham os objetos para atribuir-lhes falas e accedilotildees apresentam canccedilotildees e transitam

entre personagens e narradores de modo a apresentarem uma poeacutetica que se afasta de

qualquer expectativa mais usual para a apreciaccedilatildeo de teatro de bonecos de modo a propor ao

objeto em cena um estatuto surpreendente

Um dos (diversos) momentos do espetaacuteculo onde esse estatuto era exercido com

grande clareza era o momento em que se construiacutea o dragatildeo que levaria Papel agrave Cidade

Medieval para o confronto final com o rei Metal Mau Os lenccedilos aprisionados pelas forccedilas do

vilatildeo eram libertados pelos atores e com eles formava-se um dragatildeo com os panos e os atores

que os empunhavam ajudados por parte da plateia chamada a participar desse momento11

A construccedilatildeo de elementos momentaneamente criadas a partir de objetos disponiacuteveis

muitos deles industrializados que se refuncionalizam dentro do espetaacuteculo mediante a

necessidade da narrativa recriam a percepccedilatildeo do objeto que apesar de afirmar a sua

materialidade em seus aspectos intriacutensecos e em sua polivalecircncia semacircntica se abre em

diversas possibilidades de significaccedilatildeo produzindo assim para o espectador um novo estado

de surpresa que natildeo se relaciona mais com o espanto de uma aparecircncia de vida imaginada

Ainda ao tratar com os materiais como trata Krugli lanccedila questotildees interessantes sobre o

conceito de boneco teatral de modo a clarear ao leitor de certa forma um pouco da intenccedilatildeo

de Feacutelix na carta cuja menccedilatildeo abre este trabalho ao lamentar-se da ausecircncia de bonecos no

teatro de bonecos Parece que de certa forma o que Feacutelix chama de boneco natildeo eacute exatamente

a mesma coisa que chamaria Krugli ou mesmo Monastier

Malgrado a necessidade praacutetica de montar o espetaacuteculo em pouco tempo e com poucos

recursos disponiacuteveis a opccedilatildeo de Krugli pelo investimento em uma poeacutetica de despojamento e

sugestatildeo em oposiccedilatildeo ao emprego de recursos mais notadamente figurativos natildeo se encontra

apenas condicionada a esses fatores sendo tambeacutem a expressatildeo de uma vontade esteacutetica

Provas do que se afirma estatildeo no fato de que diversos dos recursos referentes agrave composiccedilatildeo

das personagens e do manuseio de materiais empregados em Lenccedilos e ventos jaacute se

encontravam em um espetaacuteculo anterior A histoacuteria de um barquinho (VELLINHO 2009 p

34) Outro elemento que trata do uso dos lenccedilos e papeacuteis como uma escolha esteacutetica e natildeo

10

Uma anaacutelise detalhada de passagens e declaraccedilotildees que explicam o teor poliacutetico da peccedila pode ser encontrada

em VELLINHO 2008 pp 72-89 11

Uma descriccedilatildeo mais detalhada desse momento da peccedila encontra-se em VELLINHO 2009 pp84-5

40

apenas uma soluccedilatildeo praacutetica encontra-se justamente no iniacutecio da peccedila Vellinho descreve esse

momento nos seguintes termos

Na verdade haacute um outro espetaacuteculo de bonecos que deveria ser

apresentado Jaacute havia uma histoacuteria pronta para ser contada Poreacutem Manuel e

Manuela protagonistas dessa histoacuteria depois de danccedilas perseguiccedilotildees e gags

tiacutepicas do tradicional teatro de bonecos decidem encerrar-se em uma mala

[] finalizando bruscamente o evento teatral O motivo dado pelos dois

bonecos eacute o de que eles descobriram que haacute atores de verdade que iratildeo

compartilhar o espetaacuteculo com eles Diante disso a dupla indignada resolve

abortar a apresentaccedilatildeo trancando-se na mala (VELLINHO 2009 p 48)

Apoacutes a recusa dos bonecos em participar do espetaacuteculo os atores passam a se indagar o que

fazer e comeccedilam a retirar lenccediloacuteis e papeacuteis de lugares diferentes do espaccedilo de representaccedilatildeo

ldquocomo um jogo maacutegicordquo (KRUGLI 2000) e assim a linguagem da peccedila se estabelece diante

do puacuteblico afirmando os materiais empregados como elementos potentes para a representaccedilatildeo

em curso Ainda ao apresentar os lenccedilos em substituiccedilatildeo aos bonecos de luva que compotildeem

seu iniacutecio a peccedila dota esses materiais de um estatuto que os diferencia de partes de cenaacuterio

figurino ou mesmo de adereccedilos Os lenccedilos representam personagens da trama contada

aproximando-se assim muito mais do boneco teatral ndash ou de partes de bonecos teatrais ndash do

que de elementos indicativos empunhados pelos atores

Assim Histoacuteria de Lenccedilos e ventos empresta bastante clareza ao tipo de indagaccedilatildeo que

venho fazendo a respeito do suposto desaparecimento dos bonecos do teatro de bonecos natildeo

apenas devido ao evidente diaacutelogo que estabelece com os artigos de Meschke e Monastier ndash e

de certa forma de Feacutelix ndash mas tambeacutem pelo efeito que o espetaacuteculo causa no panorama do

teatro no Brasil adquirindo grande popularidade e fazendo escola em meio a outros artistas

interessados tanto em teatro para crianccedilas como em teatro de bonecos Miguel Vellinho

menciona as diversas criacuteticas favoraacuteveis ao espetaacuteculo aleacutem de haver conseguido dois feitos

dignos de nota O primeiro sendo a publicaccedilatildeo de um texto dedicado agrave peccedila pelo criacutetico Yan

Michalski que sendo ele o responsaacutevel pelo material dedicado a teatro para adultos do Jornal

do Brasil dimensiona a raridade do gesto sobretudo se levarmos em conta a proverbial

tendecircncia a se considerar o teatro para crianccedilas como uma vertente inferior da arte teatral12

A

segunda conquista foi uma recomendaccedilatildeo (em ldquocaraacuteter extraordinaacuteriordquo) ao espetaacuteculo por

parte da ACCT ndash Associaccedilatildeo Carioca de Criacuteticos de Teatro devido agrave sua excelecircncia e

competecircncia

12

Em seu livro O Teatro sob pressatildeo Michalski aponta Histoacuteria de Lenccedilos e ventos como sendo ldquouma pequena

obra primardquo em meio a uma temporada teatral (1974) onde ldquoo melhor forma os cenaacuteriosrdquo (MICHALSKI 1989

p 60-1)

41

Figura 16 Teatro Ventoforte Histoacuteria de lenccedilos e ventos (ator Ilo Krugli)

Fonte (CEDOCFunarte apud VELLINHO 2008)

Figura 17 TeatroVontoforte A histoacuteria de um barquinho Personagens Pingo I e Aranha

Fonte Programa Ventoforte 10 anos

As personagens dos espetaacuteculos do Ventoforte satildeo construiacutedos a partir de materiais brutos como papel tecidos

e objetos (tais como o guarda-chuva da Figura 16) A presenccedila dos atores eacute importante na configuraccedilatildeo das

personagens como se vecirc na Figura 17 em que as matildeos dos atores satildeo ou compotildeem as formas animadas

42

Os espetaacuteculos seguintes do grupo Ventoforte como De Metade do Caminho ao Paiacutes do

Uacuteltimo Ciacuterculo e As quatro chaves acompanharam os mesmos impulsos esteacuteticos expressos

em Lenccedilos e ventos Quando parte da companhia mudou-se do Rio de Janeiro para Satildeo Paulo

alguns integrantes remanescentes montaram o grupo Hombuacute que com espetaacuteculos como A

gaiola de Avatsiuacute e Fala palhaccedilo permaneceram montando espetaacuteculos com convivecircncias

entre bonecos atores e objetos

Deve-se nesse ponto deixar claro que Histoacuteria de Lenccedilos e ventos serve para esta

pesquisa como um ponto de localizaccedilatildeo de uma experiecircncia bem-sucedida e de ampla

repercussatildeo no panorama brasileiro de teatro de animaccedilatildeo capaz de despertar outras

iniciativas e provocar discussotildees acerca das possibilidades de emprego do boneco teatral

Seria precipitado e leviano buscar na peccedila algo como um marco histoacuterico para o emprego de

teacutecnicas e linguagens e ateacute mesmo redutor buscar reconhecer o valor da peccedila a partir de uma

perspectiva de desbravamento ou ineditismo O que suscitou no trabalho do Ventoforte o seu

poder de levantamento de questotildees e modelamento parcial do panorama do teatro para

crianccedilas e do teatro de bonecos feito no Brasil foi a qualidade de suas ideias e de sua poeacutetica

cecircnica capazes de dialogar em niacutevel direto com movimentos artiacutesticos e poliacuteticos em

processo dentro e fora do paiacutes ao mesmo tempo em que apresentavam de modo eficiente

alternativas para a forma de dispor sobre a cena o artista de animaccedilatildeo e o boneco teatral

Da mesma maneira eacute impreciso apontar o trabalho do Ventoforte como uma voz

solitaacuteria em meio a um panorama de todo aacuterido do teatro de bonecos feito no Brasil Um ano

antes da estreacuteia de Lenccedilos e ventos em 1973 eacute fundada a Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de

Bonecos ndash ABTB criada segundo nos conta Humberto Braga por um desejo maior de

integraccedilatildeo entre artistas e companhias brasileiras notada apoacutes experiecircncias colhidas pelas trecircs

ediccedilotildees anuais sucessivas do Festival de Marionetes e Fantoches do Rio de Janeiro (1966 a

1968) organizadas por Clorys Daly e Claacuteudio Ferreira (BRAGA 2007 p 253 amp 2009 p113

MAMULENGO 1973 p 11-3) Da criaccedilatildeo da associaccedilatildeo decorreu no mesmo ano a

primeira ediccedilatildeo da revista Mamulengo dedicada a informes da ABTB a divulgar material das

companhias brasileiras em atividade e a publicar artigos reflexivos e informativos de artistas

brasileiros e estrangeiros Em seu segundo ano de publicaccedilatildeo no terceiro nuacutemero a revista jaacute

trazia os artigos anteriormente referidos neste capiacutetulo O movimento criado pela associaccedilatildeo

conduziu a um esforccedilo que culminou anos depois no estabelecimento de um circuito de

festivais dedicados agrave linguagem no paiacutes e provocou em 1976 a criaccedilatildeo de um setor de teatro

de bonecos no antigo Serviccedilo Nacional de Teatro ndash SNT

43

Entre as companhias que se destacaram ao longo desse periacuteodo eacute importante

mencionar duas natildeo apenas porque continuam em atividade mas pelo fato de apresentarem

trabalhos de destaque e que de certa forma semelhantes ao Ventoforte serviram de

influecircncia para geraccedilotildees posteriores O Teatro Giramundo criado em 1970 em Belo

Horizonte por Aacutelvaro Apocalypse Terezinha Veloso e Maria do Carmo Martins com um

trabalho voltado para o apuro escultoacuterico e a chegada ao Brasil em 1972 do casal Marcos

Caetano e Raquel Ribas apoacutes fundarem em Nova York onde faziam seus estudos em danccedila e

artes visuais o Grupo Contadores de Estoacuterias com espetaacuteculos-eventos nos quais misturavam

bonecos gigantes atores muacutesicos e materiais variados Com a estreacuteia de Mansamente em

1980 os Contadores de Estoacuterias datildeo uma guinada na carreira do grupo mudando o tom dos

espetaacuteculos para eventos mais intimistas e desenvolvendo uma linguagem bastante proacutepria

em manipulaccedilatildeo direta Esse momento tambeacutem marca a mudanccedila do casal para a cidade de

Paraty ao sul do estado do Rio de Janeiro sediando-se desde entatildeo no Teatro Espaccedilo

Dos exemplos mencionados pode-se perceber uma maior familiaridade entre as

poeacuteticas cecircnicas do casal Ribas e de Ilo Krugli uma vez que a julgar pelos percursos

descritos pelas companhias a partir da anaacutelise de seus repertoacuterios os usos de bonecos e

objetos acompanham em ambos os casos um desejo de ampliaccedilatildeo de possibilidades luacutedicas e

figurativas sobre a cena teatral Ou seja muito mais um desejo de se lidar com alternativas de

representaccedilatildeo teatral do que de identificar-se com tradiccedilotildees de temas e teacutecnicas relativas ao

que se poderia chamar de teatro de bonecos ou de animaccedilatildeo Perguntado sobre as diferenccedilas

de linguagem entre os Contadores de Estoacuterias e o Giramundo Marcos Ribas responde

O Giramundo eacute um grupo de teatro de bonecos Eles manipulam realmente

muito bem se especializaram nisso Jaacute os nossos bonecos satildeo o que satildeo

porque precisavam ser (RIBAS amp RIBAS 2009 p 30)

Tanto no que diz respeito agrave relutacircncia em identificar o seu trabalho com o teatro de bonecos

quando ao apontamento do fato de que os bonecos do grupo satildeo feitos com o tino de atender a

uma certa necessidade poeacutetica Marcos Caetano aponta para um desejo de expressividade

teatral que suplanta aquele que se encerra na dedicaccedilatildeo agrave linguagem do boneco Mas que natildeo

deve contudo ser entendido como um movimento de rejeiccedilatildeo agrave linguagem da animaccedilatildeo seu

legado e suas formas Ilo declara em uma entrevista concedida em 1984

Todo esse meu situar na procura do teatro de bonecos foi muito importante

como processo Foi atraveacutes dele que descobri o meu caminho para o teatro

para a linguagem dramaacutetica Pois tudo que estaacute ligado ao boneco direta ou

indiretamente estaacute vinculado agrave toda uma tradiccedilatildeo artesanal de teatro que eacute a

matildeo do homem que expressa fazendo o boneco os gestos E isto eacute rico eacute

importante Que as pessoas se expressem com bonecos ou sem eles

(KRUGLI 1984 p13)

44

Ainda que os diferentes percursos evidenciem uma distacircncia entre os desejos artiacutesticos

que movem Krugli e o casal Ribas o entendimento de que haacute um desejo de expressatildeo que

antecede agrave vontade de se lidar com bonecos e objetos os define menos como artistas de teatro

de bonecos e mais como artistas de teatro para quem a animaccedilatildeo eacute uma alternativa expressiva

instigante e presente mas natildeo obrigatoacuteria

Quando Vellinho reconhece na esteacutetica de Lenccedilos e ventos relaccedilotildees do trabalho de

Krugli com ldquopressupostos de Brecht e Grotowski que era naquele periacuteodo a voz

instauradora de uma nova ordem do fazer teatralrdquo (VELLINHO op cit p20) busca apontar

para o fato de que Krugli antes de ser um artista de animaccedilatildeo era um artista de teatro atento

agraves questotildees que mobilizavam os impulsos transformadores do teatro de seu tempo Natildeo se

pode contudo ignorar as origens de Krugli ndash e de Rachel Ribas ndash no que diz respeito a sua

formaccedilatildeo e atuaccedilatildeo em artes visuais o que nas deacutecadas de 1960 e 1970 encontrava uma

interface mais ampla com os movimentos de contracultura sobretudo no que diz respeito ao

questionamento do emprego de suportes estaacuteveis para as diferentes linguagens artiacutesticas

As influecircncias tanto de Ilo Krugli como de Marcos Caetano e Rachel Ribas sobre o

panorama do teatro de animaccedilatildeo no Brasil natildeo seratildeo vistas de imediato nos anos que se

seguiram agrave estreacuteia de Historia de Lenccedilos e ventos que ainda dependeraacute de uma estrutura de

circulaccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos de animaccedilatildeo pelo Brasil o que iraacute acontecer

vagarosamente ao longo da deacutecada de 1970 mas com ligeiro crescimento ao longo da deacutecada

de 1980 Aleacutem disso as experiecircncias transmitidas por essas companhias seratildeo somadas agraves de

companhias norte americanas e europeias que visitaratildeo o paiacutes em meio ao processo de

consolidaccedilatildeo da rede de festivais e mostras dedicadas ao teatro de animaccedilatildeo

Confiante de que o contexto histoacuterico no qual se publica o artigo de Feacutelix esteja

suficientemente explicado ao menos a ponto de justificar o prosseguimento de uma anaacutelise

mais conceitual passemos pois a buscar entender alguns problemas teacutecnico-terminoloacutegicos

que as novas vontades mobilizadoras dos produtores de teatro de animaccedilatildeo trouxeram agrave tona

Primeiramente buscaremos entender o problema conceitual enfrentado pela manifestaccedilatildeo

teatral para em seguida buscar novas indagaccedilotildees para a compreensatildeo do que poderia ser

considerado boneco teatral

45

Figura 18 Contadores de Estoacuterias O bode e a onccedila (1971)

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

Figura 19 Contadores de Estoacuterias Pas-de-deux (1982)

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

46

23 Transformaccedilotildees

Haacute duas caracteriacutesticas ou eventos que parecem figurar entre os principais veiacuteculos

das transformaccedilotildees pelas quais passaram as artes do boneco desde as percepccedilotildees de

Jurkowski e Monastier presentes na queixa de Feacutelix e nas praacuteticas de Ilo Krugli no teatro do

casal Ribas e ateacute mesmo em alguns momentos do percurso do Giramundo Estas seriam as

questotildees do ldquodesaparecimento do boneco do teatro de bonecosrdquo sendo substituiacutedos por outras

formas e recursos de expressatildeo e do crescente emprego do operador agrave vista Se analisadas por

um determinado acircngulo pode parecer mesmo que essas duas caracteriacutesticas absorvem-se

mutuamente chegando a reduzirem-se a uma questatildeo uacutenica Satildeo poucas as vezes raras ateacute

em que uma praacutetica de diversificaccedilatildeo das formas e materiais animados natildeo eacute acompanhada

pelo emprego do artista de manipulaccedilatildeo agraves vistas do puacuteblico O espetaacuteculo Giz do Teatro

Giramundo apresenta bonecos em diversos tamanhos usualmente maiores que os

manipuladores que usam o espaccedilo do palco vazio sem aparatos de ocultaccedilatildeo de

manipuladores Muitos desses bonecos entram em cena apoiados em estruturas assemelhadas

a varais ou araras de figurino com ganchos e apoios para fios que os sustentam datildeo

operatividade agraves suas articulaccedilotildees (Figura 20) A maneira como se ocupa o espaccedilo da cena eacute

imposta pelas dimensotildees e estruturas manipulativas dos bonecos que solicita a exibiccedilatildeo do

operador13

Essa necessidade indissociavelmente teacutecnica e esteacutetica se impotildee de maneira

semelhante quando se emprega por exemplo objetos retirados diretamente do quotidiano

para serem inseridos em cena como elementos animaacuteveis ou formatos variados de construccedilatildeo

e operaccedilatildeo de formas animadas dentro de um mesmo espetaacuteculo

Ainda assim natildeo parece claro que o operador agrave vista seja indissociaacutevel agrave sensaccedilatildeo de

desaparecimento do boneco da cena de animaccedilatildeo e creio que as duas questotildees devam ser

tratadas separadamente

Jurkowski entende que juntamente com o emprego do manipulador agrave vista o teatro de

bonecos ocidental feito a partir da deacutecada de 1950 experimentou aquilo que ele chama de

ldquodiversidade dos meios de expressatildeordquo (JURKOWSKI 2000 p68) e seu exemplo mais

eloquente acerca dessa diversidade eacute a montagem feita em 1976 de Don Quixote dirigida por

Jan Krofta Na descriccedilatildeo da cena do flagelo do personagem central Jurkowski conta como a

encenaccedilatildeo combinava a accedilatildeo de atores com bonecos de diversos tamanhos e modos de

13

O espetaacuteculo Giz de fato pode ser considerado uma das experiecircncias mais ousadas do Giramundo que

mesmo sendo notabilizado pelo experimentalismo no desenho da cena e nos esforccedilos escultoacutericos nem sempre

excedeu os limites do palco montado para apresentaccedilatildeo e operaccedilatildeo de boneco com operadores ocultos

47

Figura 20 Teatro Giramundo Giz

Fonte (httpwwwgiramundoorgteatro

gizhtml)

Figura 21 Teatro Giramundo Giz

Fonte (httpwwwgiramundoorgteatro

gizhtml)

Figura 22 Teatro Giramundo Giz

Fonte (httpwwwflickrcomphotoslilianep2764016965inphotostream)

Foto Liliane Pelegrini

48

operaccedilatildeo e ainda objetos No Brasil encontramos bons exemplos de combinaccedilotildees de meios

expressivos em animaccedilatildeo nos jaacute mencionados trabalhos do Ventoforte mas haacute exemplos mais

recentes como as formas inusitadas de vestir e manipular que Osvaldo Gabrieli desenha para

trabalhos do grupo XPTO como por exemplo Coquetel Clown (1989) que emprega formas

que satildeo vestidas pelos atores podendo cobrir todo o seu corpo parte dele ou mesmo se dar

sobre a forma de apliques nas cabeccedilas ou membros Podemos mencionar tambeacutem as

experiecircncias com bonecos inflaacuteveis e artes circenses praticadas pela companhia Pia Fraus em

espetaacuteculos como Gigantes de ar (1998) e Bichos do Brasil (2001) Os inflaacuteveis trabalhados

pela Pia Fraus assumem formas e dimensotildees diferentes podendo ser maiores ou menores eu

seus manipuladores Mesmo as formas menores como as cobras de Bichos do Brasil (Figura

26) satildeo manipuladas agraves vistas e desprovidas de estruturas de apoio e controle agrave distacircncia

como varas ou fios Essa mesma companhia Pia Fraus no espetaacuteculo realizado em 2009

chamado Primeiras Rosas alterna momentos onde se empregam sombras animaccedilatildeo de

objetos bonecos de manipulaccedilatildeo direta e efeitos com viacutedeo Cabe notar que no exemplo de

Primeiras Rosas diferentemente do que ocorre na descriccedilatildeo de Jurkowski para o Quixote de

Krofta satildeo criados momentos especiacuteficos nos quais determinadas linguagens de animaccedilatildeo

satildeo trabalhadas O diretor da companhia Pia Fraus Beto Andreetta convidou outros trecircs

diretores ligados ao teatro de animaccedilatildeo solicitando que montassem cada um usando seus

estilos e competecircncias um quadro para o espetaacuteculo a partir de contos do livro Primeiras

Estoacuterias do escritor Joatildeo Guimaratildees Rosa14

O espetaacuteculo se organizou na disposiccedilatildeo

sucessiva das cenas trabalhadas em estilos e modos bastante diferentes entre si separadas por

uma espeacutecie de entreato montado por Wanderley Piras que sugeria a travessia de vales e rios

feitos por um boi um vaqueiro e seu cavalo com bonecos de manipulaccedilatildeo direta operados

sobre balcotildees moacuteveis com manipuladores agrave vista

As escolhas de Andreetta na disposiccedilatildeo dos discursos espetaculares em Primeiras

Rosas ampliam de certa forma as possibilidades descritivas do que Jurkowski aponta como

ldquovariedade de meios de expressatildeordquo Se por um lado pode-se argumentar (ainda que com

pequena chance de sucesso) que Primeiras Rosas dispotildee em sucessatildeo quadros

intrinsecamente homogecircneos e limitados em formas expressivas um pouco aos moldes do

teatro de variedades ao passo que o exemplo de Krofta dispotildee em simultaneidade suas

14

Assim consistiu a divisatildeo dos referidos quadros do espetaacuteculo 1 As margens da alegria direccedilatildeo de Alexandre

Faacutevero (Cia Teatro Lumbra) 2 A terceira margem do rio direccedilatildeo de Miguel Vellinho (PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo) 3 O cavalo que bebia cerveja direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro (Teatro Muganga)

49

Figura 23 XPTO Coquetel Clown

(peixes)

Fonte (httpwwwxptobrasilcom)

Foto Beto Speeden

Figura 24 XPTO Coquetel Clown (futebol)

Fonte (httpwwwxptobrasilcom)

Foto Beto Speeden

Figura 25 Pia Fraus Gigantes do ar (1998)

Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)

Foto Gil Grossi

Figura 26 Pia Fraus Bichos do Brasil (2001) Na foto Beto Andreetta (agrave esquerda) e Beto Lima

(abaixado)

Fonte (Revista Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009)

Foto Paquito

50

possibilidades expressivas construindo assim uma cena mais radicalmente heterogecircnea por

outro pode-se perceber o quanto a dinacircmica de sucessatildeo de cenas estilisticamente muito

diferentes entre si promove cortes evidentes na dinacircmica perceptiva do espectador O

espetaacuteculo por certa quantidade de vezes se refaz retorna a um alegado princiacutepio despista a

expectativa da plateia desfaz-se para se refazer com outra configuraccedilatildeo Eacute nesse caso a

amplitude de possibilidades figurativas existente no teatro de animaccedilatildeo o que permite com

que o transporte de um momento a outro do espetaacuteculo se decirc com a intensidade com que

ocorre Ao cabo do primeiro quadro feito com sombras projetadas sobre uma rotunda branca

que cobre todo o fundo do teatro verticais e diaacutefanas inicia-se o segundo montado com

pequenos bonecos de manipulaccedilatildeo direta de materiais e traccedilos rudes num transporte abrupto

e produtor de estranheza

Eacute curioso notar com que desenvoltura o teatro de animaccedilatildeo abriga uma ampla gama de

possibilidades figurativas e meios de expressatildeo e produccedilatildeo que aumentam em variedade de

acordo com a ampliaccedilatildeo das possibilidades teacutecnicas e tecnoloacutegicas ao alcance dos artistas

Podemos assim supor que a disposiccedilatildeo de se apresentar materiais e elementos diferentes sobre

a cena de animaccedilatildeo conduza agrave sensaccedilatildeo jaacute mencionada de ausecircncia do boneco do teatro de

bonecos e que tal praacutetica talvez natildeo seja provocada ao menos num plano conceitual pelo

emprego do animador agrave vista De fato o ator que opera bonecos numa cena que dispotildee

variados recursos e formas de animaccedilatildeo uma vez posto agrave vista do puacuteblico consegue transitar

com mais conforto e eficiecircncia entre as diferentes maneiras de inserir as formas animaacuteveis na

cena O ator se encontra assim integrado ao heterogecircneo da cena ou como forma de buscar

terminologia mais adequada o ator amplia com sua presenccedila esse caraacuteter de

heterogeneidade

Da mesma maneira uma cena que se proponha a investigar num contexto de teatro de

animaccedilatildeo certa amplitude de possibilidades de figuraccedilatildeo e teatralidade dificilmente ignoraria

o potencial teatral da figura do ator em meio agraves demais formas apresentadas explorando essa

presenccedila natildeo apenas do ponto de vista do teatro mas da proacutepria animaccedilatildeo de formas Mas

ainda haacute outras questotildees a serem levantadas

Quando em Lenccedilos e ventos os bonecos Manuel e Manuela se recusam a participar da

peccedila obrigam os atores a trabalharem com os materiais disponiacuteveis Assim o elenco recorre a

composiccedilotildees sugestivas provisoacuterias apoiadas por narraccedilotildees e canccedilotildees feitas entre objetos

materiais e atores Natildeo parece que este caso diga respeito a um emprego alternativo de

elementos para inseri-los numa determinada linguagem que descreve um percurso inusitado

de heterogeneizaccedilatildeo dos seus meios Ou seja natildeo se trata de usar a linguagem da animaccedilatildeo

51

num processo de substituiccedilatildeo do boneco teatral por outra coisa Parece mais que isso

estarmos diante de um exemplo de aproveitamento de uma linguagem expressiva capaz em

seus fundamentos de abrigar o heterogecircneo de modo a alterar o estatuto perceptivo dos

materiais em jogo para que estes assim se aproximem para o observador como sendo aquilo

que pode ser visto e entendido como boneco teatral Se isso for verdade e se essa verdade for

capaz de ser observada em outras tantas manifestaccedilotildees o boneco natildeo estaria sumindo do

teatro de bonecos mas reformulando-se ampliando seu estatuto e permeabilizando-se de

modo a incorporar formas materiais e combinaccedilotildees diversas

Em um artigo de 2008 a professora britacircnica Carad Astles trata de como o teatro de

animaccedilatildeo contemporacircneo eacute entendido como sendo uma linguagem vocacionada agrave

transdisciplinaridade e de como esse atravessamento de competecircncias e meios de expressatildeo

provoca uma atitude de migraccedilatildeo da animaccedilatildeo anteriormente vista sob a perspectiva do

exerciacutecio do controle sobre um boneco ou forma que representa uma personagem dramaacutetica

ateacute uma postura dedicada agrave cena teatral como um todo e que dessa forma constroacutei um

discurso pautado pela visualidade pelo manuseio de materiais e pela transitoriedade das

formas manipulaacuteveis Astles se reporta a essa postura atual como contribuinte para um

movimento de ldquoperda do corpo do bonecordquo (ASTLES 2008 p 55) tornando penoso o

trabalho de localizaccedilatildeo do boneco no teatro de bonecos

Ao inveacutes disso o corpo do boneco tem sido substituiacutedo por um corpo

multiplamente articulado criado a partir de diferentes fontes que geram seu

proacuteprio significado Com isso quero dizer que a figura unificada do boneco

tem sido substituiacuteda em muitos casos por sombras projeccedilotildees e tecnologia

multimiacutedia por objetos por mateacuteria e por accedilatildeo cecircnica animada que criam

sua proacutepria percepccedilatildeo do ldquocorpo do bonecordquo (idem p 53)15

Malgrado a percepccedilatildeo de que as transformaccedilotildees verificadas no teatro de animaccedilatildeo das uacuteltimas

deacutecadas acompanham um crescimento significativo de uma determinada qualidade de

presenccedila do ator operador de bonecos sobre a cena parece nesse momento precipitado

categorizar esse recurso para muito aleacutem de algo que apenas aconteceu com certa constacircncia

Imaginar o manipulador agrave vista como sendo um recurso provocador um articulador conceitual

importante ou mesmo algo que investe contra um sentido de pureza do teatro de bonecos natildeo

15

Astles emprega como um dos principais exemplos ao que o seu artigo apresenta o trabalho da companhia

inglesa Improbable Theatre que iraacute apresentar grandes semelhanccedilas com o que se tem falado acerca das poeacuteticas

do Ventoforte e do Teacuteacirctre sur le fil nos termos que se seguem ldquoOs bonecos e as criaccedilotildees animadas que eles

usam em seus espetaacuteculos frequentemente satildeo construiacutedos a partir de material bruto no palco agrave vista do puacuteblico

Portanto os bonecos satildeo vistos como corpos temporaacuterios que podem ser feitos e destruiacutedos em segundos como

parte do que existe agrave sua volta O Improbable trabalha muito com improvisaccedilatildeo buscando criar teatro a cada

segundo no palco Um espetaacuteculo antigo do Improbable chamado 70 Hill Lane usava fita adesiva e objetos para

narrar a histoacuteriardquo (idem p 57)

52

deve se dar senatildeo agrave luz de algumas outras questotildees tatildeo ou mais fundamentais para o

entendimento daquilo que o teatro de animaccedilatildeo em sua heterogeneidade e descontinuidade

pode ou aspira ser

Precisamos no entanto iniciar essa verificaccedilatildeo formulando uma primeira pergunta

que diz respeito agrave concepccedilatildeo de boneco teatral e agraves suas provaacuteveis transformaccedilotildees verificadas

ao longo das uacuteltimas deacutecadas e experiecircncias

53

231 O que eacute (e o que passou a ser) o boneco teatral

Buscar responder a essa pergunta eacute tambeacutem esforccedilar-se por buscar algumas bases

conceituais de um elemento da cena teatral para o qual jamais houve a proposiccedilatildeo de uma

esteacutetica que fosse unacircnime ou suficientemente abrangente O boneco estaacute atrelado ao longo de

sua histoacuteria a formatos e estruturas tradicionais tatildeo vibrantes quanto descontiacutenuas Suas

formas seus modos de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo as naturezas e configuraccedilotildees dos

espetaacuteculos a ele consagrados satildeo tantos tatildeo variados e diferentes entre si que mesmo uma

apreciaccedilatildeo pouco cuidadosa seria suficiente para por em seacuterias questotildees a existecircncia de uma

maneira de fazer ou apresentar que pudesse se arrogar como sendo ldquoteatro de bonecos

propriamente ditordquo Pois entatildeo vejamos entre os diferentes teatros de bonecos eacute possiacutevel

encontrar estreitas relaccedilotildees temaacuteticas com escrituras sagradas e com rituais religiosos como eacute

o caso das sombras indianas dos bonecos javaneses e tambeacutem de bonecos e descriccedilotildees de

apresentaccedilotildees recolhidos por Paul McPharlin (1969) acerca de comunidades nativas da

Ameacuterica do Norte e de fetiches da naccedilatildeo inuit mas tambeacutem apresentaccedilotildees apoiadas sobre a

burla chegando a limites de violecircncia e licenciosidade como ocorre com o Punch and Judy

da Inglaterra o Karagoumlz turco e ateacute mesmo ndash ainda que se atribuam a ele origens religiosas

(SANTOS 1979) ndash o Mamulengo do nordeste do Brasil

Bonecos podem ser construiacutedos de modo a buscar assemelhar-se agrave forma humana em

detalhes com membros articulados e detalhes esculturais como tambeacutem trazer a simplicidade

da sugestatildeo podendo ser feitos de pedaccedilos de materiais diversos por imitaccedilotildees anatocircmicas

incompletas ou ateacute mesmo por objetos ou combinaccedilotildees entre objetos encontrados

aleatoriamente Seus meios de manipulaccedilatildeo podem buscar uma delicada simulaccedilatildeo do

comportamento humano como se vecirc geralmente em alguns bonecos de fio representar de

maneira altamente estilizada movimentos vigorosamente beacutelicos ou sensuais como se daacute de

maneira geral com bonecos de luva ou ateacute mesmo encontrarem-se hieraticamente imoacuteveis ou

com grandes limitaccedilotildees de movimento de modo a indicar uma presenccedila sobre cena

complementada por uma narrativa pontual uma trilha caracteriacutestica uma situaccedilatildeo especiacutefica

se tanto

Haacute bonecos que se apresentam para multidotildees e bonecos que se apresentam para

pouquiacutessimas pessoas Haacute bonecos que tentar ludibriar a ilusatildeo do espectador com a perfeiccedilatildeo

de suas formas ou com a surpresa de seu jogo e bonecos que se afirmam objetos desde o

primeiro momento em que aparecem Haacute velhos bonecos realiacutesticos e novos bonecos de

54

Figura 27 Wayang purwa sombras javanesas (na imagem Srikandi mulher confiante e Sumbadra mulher

submissa)

Fonte (Puppetry International no 9 Strafford UNIMA-US 2001 p10)

Figura 28 Wayang golek boneco javanecircs de vara

Fonte AMARAL 1993 p86

55

Figura 29 Sombra indiana

Fonte (httpwwwpuppetryindiaorg)

Figura 30 Karagoumlz personagem de sombra turco

Fonte (AMARAL 1993 p76)

56

Figura 31 Mamulengos do nordeste brasileiro cena do degolado (bonecos de Mestre Luiz da Serra)

Fonte Revista Mamulengo no 9 Belo Horizonte ABTBSNT 1980 Capa

Foto Tuacutelio Feliciano

Figura 32 Punch o bebecirc e Judy

Fonte httpbopressminiaturebookscom

57

formas abstratas Mas os opostos tambeacutem existem Sempre existiram Haacute bonecos esculpidos

com apuro e bonecos que satildeo tocos de madeira grosseiramente pintados Bonecos mudos e

bonecos falantes Haacute bonecos Sempre houve bonecos feitos e apresentados das mais

diferentes maneiras e suas tradiccedilotildees histoacutericas e locais natildeo apontam para qualquer tipo de

desenvolvimento contiacutenuo e unacircnime em termos de formas ou temas num movimento que se

suporia evolutivo ou degenerativo

Por isso causa algum espanto a exortaccedilatildeo ao resgate do que seria ldquoo verdadeiro teatro

de bonecosrdquo pois que essa ldquoverdaderdquo sugerida natildeo iraacute aderir a um gecircnero espetacular

estritamente codificado e identificado mas sim a uma seacuterie descontiacutenua e agraves vezes

contraditoacuteria de elementos espetaculares encontrados em uma infinidade de manifestaccedilotildees de

natureza teatral explodida em tempo e espaccedilo atravessando culturas (e por elas atravessada) e

se manifestando com as mais variadas formas e temaacuteticas A imensa variedade de

manifestaccedilotildees do teatro de bonecos daacute a ver que qualquer busca por algum tipo de pureza do

gecircnero natildeo se daacute senatildeo como decorrecircncia de ignoracircncia ou daquela vontade hierarquizante

proacutepria de quem considera a existecircncia de culturas superiores e inferiores

O problema teoacuterico do estabelecimento de uma esteacutetica ao mesmo tempo coesa e

abrangente que se apresenta diante da atestaccedilatildeo da grande variedade de formas do teatro de

animaccedilatildeo eacute fruto dos estudos de Tillis (1992) e Plassard (1991 1992) aleacutem de constituir-se

na pergunta (o que eacute o boneco teatral) para cuja resposta pretende-se apontar caminhos neste

momento do trabalho

Um primeiro momento dessa articulaccedilatildeo considera a apreciaccedilatildeo que Yvonne Jean faz

acerca das marionetes de fio da Antueacuterpia (1955) Seu estudo eacute cronologicamente anterior a

diversas reflexotildees e experimentaccedilotildees com o boneco teatral que norteiam o pensamento que

aqui se articula e constitui-se mesmo num exemplo claro da hierarquizaccedilatildeo e da segregaccedilatildeo

mencionadas e que se exprime na maneira como Jean qualifica os bonecos da referida

proviacutencia belga

Quais as razotildees que justificam um estudo pormenorizado dos teatrinhos de

bonecos da Beacutelgica ()

1ordm) Porque satildeo verdadeiras marionetes

2ordm) Porque satildeo marionetes genuinamente populares

3ordm) Porque satildeo marionetes obedecendo a uma tradiccedilatildeo autecircntica

Quer dizer que podem ser escolhidas como siacutembolos da marionete popular

tradicional (JEAN 1955 p 10)

Seria por demais demorado e digressivo comentar os problemas contidos na pretensatildeo de se

identificar o ldquogenuinamente popularrdquo ou mesmo a ldquotradiccedilatildeo autecircnticardquo Atenhamo-nos pois agrave

perseguiccedilatildeo daquilo que Jean iraacute identificar como ldquoverdadeira marioneterdquo Ao inveacutes de

58

apontar elementos de forma de estrutura de modo de operaccedilatildeo ou de gecircnero de apresentaccedilatildeo

sua definiccedilatildeo da ldquoverdadeira marioneterdquo se baseia na negaccedilatildeo do boneco teatral como sendo

ldquofiguras bastardas a meio caminho entre o ator de carne e osso e o boneco de cerardquo (idem)

Assim Jean investe contra um tipo de teatro de bonecos que se ocupa em demasia em imitar o

teatro feito com atores ignorando caracteriacutesticas que seriam especiacuteficas do teatro de bonecos

Para Jean o boneco teatral tem seus proacuteprios recursos expressivos compreendidos em parte

por meio das diferenccedilas inconciliaacuteveis que tem com o homem a quem sua forma muitas vezes

alude Curiosamente esse argumento em muito se assemelha com um texto bastante conhecido

de Meyerhod no qual satildeo contrapostos dois diferentes teatros de bonecos no primeiro se

buscava reproduzir com os bonecos o comportamento humano em todos os seus detalhes e no

segundo seu diretor percebeu haver mais encanto e expressividade no gesto do boneco que o

dava a entender como algo diferente do ser humano (MEYERHOLD 1991 p27) O texto do

encenador russo eacute de fato uma exortaccedilatildeo aos atores de seu tempo no sentido de buscarem

superar em suas apresentaccedilotildees a mera reproduccedilatildeo da vida em cena e a busca da simples

reproduccedilatildeo das determinaccedilotildees da dramaturgia e da encenaccedilatildeo postulando para o ofiacutecio do

ator uma autonomia da ordem da criaccedilatildeo artiacutestica Ainda assim possui a perspicaacutecia suficiente

para perceber que mesmo em seu primeiro exemplo natildeo haacute marionete que suceda em imitar a

figura humana sem transparecer suas limitaccedilotildees e peculiaridades de forma e natureza Em sua

descriccedilatildeo Meyerhold aponta que o desejo de imitar o comportamento humano eacute tal que o

diretor do seu primeiro teatro acaba por banir as marionetes e trabalhar com atores

Meyerhold num texto em que a princiacutepio poderia ser entendido como a corroboraccedilatildeo do

argumento de Jean simplesmente joga por terra sua definiccedilatildeo da ldquoverdadeira marioneterdquo pela

percepccedilatildeo de que natildeo haacute marionete cuja apresentaccedilatildeo natildeo seja inapelavelmente caracterizada

pelas peculiaridades que a distinguem do ator vivo Assim sendo usando o mesmo argumento

empregado por Jean toda marionete eacute verdadeira mesmo que busque (sempre em vatildeo)

parecer um ator de carne e osso

Jurkowski identifica o boneco como sendo o ldquoprincipal elemento distintivo do teatro

de bonecosrdquo (2000 p 68) Uma aproximaccedilatildeo inversa da afirmaccedilatildeo de Jurkowski conduziria

entatildeo ao reconhecimento de que teatro de bonecos seria aquele no qual o elemento central da

cena eacute o boneco teatral Jurkowski indica tambeacutem que o emprego da ldquoanimaccedilatildeo agrave vistardquo seria

algo que contraria e empana as convenccedilotildees tradicionais desse teatro De acordo com o

professor polonecircs o crescente emprego do animador aparente observado ao longo das uacuteltimas

deacutecadas propotildee novas caracteriacutesticas para o gecircnero mas sobretudo para o estatuto do boneco

teatral que tem alterada a forma como eacute percebido por parte da plateia pois este tem sido

59

alijado ndash ou ao menos sofrido incocircmoda interferecircncia ndash da sua condiccedilatildeo baacutesica de

representaccedilatildeo de uma personagem dramaacutetica (JURKOWSKI 2000 p68)

Em lugar de se concentrar no boneco enquanto personagem virtual trata-se

agora de privilegiar as relaccedilotildees que existem entre os signos dos personagens

e as forccedilas que os animam Eu afirmava em 1978 as relaccedilotildees vibrantes entre

o boneco e as fontes fiacutesicas de sua energia motora conduzem a mudanccedilas

importantes na percepccedilatildeo do boneco Num dado momento o equiliacutebrio da

dependecircncia entre o boneco e suas forccedilas motrizes mostrou-se mais duraacutevel

que os elementos desse equiliacutebrio (Jurkowski 2000)

Salta aos olhos na apreciaccedilatildeo de Jurkowski uma determinada leitura do que seria o

boneco teatral no sentido em que este busca distinguir com clareza o boneco das ldquofontes

fiacutesicas de sua energia motorardquo ou seja do ator que o opera Tillis discute ndash e refuta ndash diversas

definiccedilotildees de boneco teatral entre as quais algumas definiccedilotildees de Jurkowski das quais chama

a sua atenccedilatildeo a defesa do professor polonecircs de que ldquoo teatro de bonecos natildeo pode incorporar

qualquer parte do ator vivo ao bonecordquo (TILLIS 1992 p 26) Portanto segundo a apreciaccedilatildeo

que Tillis faz da descriccedilatildeo de Jurkowski o boneco seria um elemento teatral diferente e

exterior ao corpo do artista que o opera cuja finalidade eacute representar virtualmente uma

personagem dramaacutetica Jurkowski ainda menciona que o estatuto do boneco teatral se

encontra em mudanccedila desde as tensotildees relacionais recentemente estabelecidas por seus

encontros em cena com os atores agrave mostra e outras formas de expressatildeo mas ainda ele parece

defender que o estatuto proacuteprio da forma animada permanece inalterado e que o que ocorre

com o boneco eacute que ele passa a se relacionar sobre a cena com outros recursos que desafiam a

estrutura natildeo do boneco mas da cena de teatro de bonecos Ora se recuperarmos a afirmaccedilatildeo

vista por dois acircngulos que identifica o boneco como sendo o ldquoprincipal elemento distintivo

do teatro de bonecosrdquo natildeo parece cabiacutevel que a cena do teatro de bonecos se reestruture sem

que o seu elemento de definiccedilatildeo sofra por sua vez profundas transformaccedilotildees

No estudo empreendido por Steve Tillis em Toward an aesthetics for the puppet

(Rumo a uma esteacutetica do boneco 1992) o artista de animaccedilatildeo e pesquisador norte americano

realiza uma investigaccedilatildeo cuidadosa em torno de definiccedilotildees consagradas do boneco teatral de

modo a submetecirc-las a exemplos reais de diversas de suas manifestaccedilotildees Com isso apontou a

necessidade da articulaccedilatildeo de uma definiccedilatildeo que fosse a mais abrangente e vaacutelida possiacutevel

diante das inuacutemeras configuraccedilotildees do boneco O esforccedilo que se seguiu localizou trecircs

conjuntos de possibilidades significativas (que Tillis nomeia de sistemas de signos) que

estariam em processo na estrutura de qualquer boneco teatral sendo eles os sistemas de

forma movimento e fala Cabe aqui comentar que para Tillis tais sistemas apresentam-se em

todos os bonecos como se fossem qualidades expressivas e como tais dispotildeem diante do

60

espectador forccedilas de significaccedilatildeo mesmo quando essas natildeo estatildeo efetivamente presentes

Nesse caso um boneco imoacutevel ou de movimentos altamente limitados apresenta certa

qualidade e quantidade de signos de movimento O mesmo ocorre no que diz respeito agrave

atribuiccedilatildeo ndash ou natildeo ndash da fala ao boneco e das maneiras como isso se daacute bem como aos graus

de detalhamento e de esquematismo das formas e materiais de que se compotildee o boneco

Usemos como exemplo os animais inflaacuteveis usados pela companhia Pia Fraus no

espetaacuteculo Bichos do Brasil As suas formas ainda que maleaacuteveis devido agrave sua composiccedilatildeo

de plaacutestico moldaacutevel e ar apresentam possibilidades de movimentaccedilatildeo muito limitadas isso

quando haacute alguma A manipulaccedilatildeo agrave mostra das formas inflaacuteveis com os atores segurando

diretamente os corpos dos animais (Figura 26) sem fios bastotildees ou estruturas de funccedilatildeo

semelhante serve como sugestatildeo de movimento para os animais mostrados pelo espetaacuteculo

(cobras onccedilas e outros animais) e tal sugestatildeo se soma ao que se pode depreender da

percepccedilatildeo dos animais representados por suas formas

Para Tillis bonecos satildeo elementos teatrais e como tais podem ser compostos por

inuacutemeros materiais e combinaccedilotildees de outros elementos Assim rejeita veementemente a

defesa de Jurkowski de que o boneco precisa constituir-se inteiramente de mateacuteria inanimada

de modo a que nenhuma parte do corpo do artista possa ser incorporada agrave sua estrutura (idem

p 25) Essa noccedilatildeo professada por Jurkowski aliaacutes conduz a um trecho inusitado no qual o

historiador polonecircs potildee em questatildeo se o boneco de luva poderia ou natildeo ser considerado um

boneco O argumento eacute curioso a ponto de merecer transcriccedilatildeo como apresentado por Tillis

[] num ensaio acerca da histoacuteria do teatro de bonecos Jurkowski comenta

que ldquoo boneco de luva e o boneco de sombra situam-se fora da arte dos

bonecosrdquo (1967 [1965] 26) Ele natildeo chega a articular a sua objeccedilatildeo ao

boneco de sombra mas em outra passagem parafraseia o estudioso alematildeo

do princiacutepio do seacuteculo XX Fritz Eichler para o efeito de que ldquoo boneco de

luva natildeo deve ser considerado lsquopuramentersquo boneco pois eacute de fato a matildeo do

marionetista que eacute a sua alma O boneco de luva seria entatildeo um

lsquoprolongamentorsquo do ator [e deveria ser considerado] um prolongamento do

teatro de miacutemicardquo (1998 [1979] 21-22)

O argumento de Eichler como eacute apresentado por Jurkowski se apoacuteia na

ideacuteia de que a matildeo viva do operador no interior do boneco eacute o verdadeiro

foco da atenccedilatildeo da plateacuteia e que o que se percebe como sendo o boneco de

luva natildeo passa de uma fantasia para essa matildeo a figura natildeo estaacute ldquoseparada do

corpo de seu manipuladorrdquo e natildeo obedece agraves ldquosuas proacuteprias leis mecacircnicasrdquo

(1998 [1979] 22) Dessa forma Punch de fato natildeo eacute um boneco nem

mesmo nesse caso o seria Kermit que tambeacutem eacute pouco mais que a matildeo

vestida de seu operador Como seria possiacutevel resolver se bonecos de luva e

todos os outros bonecos apoiados na matildeo do operador satildeo ou natildeo satildeo

bonecos de fato (TILLIS 1992 p106 traduccedilatildeo minha)

61

De fato Tillis se apoiaraacute grandemente numa noccedilatildeo apresentada pelo artista russo

manipulador virtuoso Serguei Obrastzov que trata de como o boneco se estrutura por meio

da produccedilatildeo da impressatildeo da presenccedila de um corpo autocircnomo que causa na plateia Embora

se possa perceber no boneco de luva ndash ou em qualquer outro tipo de boneco ndash partes do corpo

do manipulador a lhe compor a estrutura fiacutesica o que sobreveacutem a essa evidecircncia eacute a

percepccedilatildeo apoiada fortemente na imaginaccedilatildeo de que aquele se trata de um corpo

independente em forma e desejo do homem que o opera Isso pode ser percebido nas cenas

curtas desenvolvidas pelo casal servo-peruano Hugo Suarez e Ines Pasic o Teatro Hugo e

Ines Na cena chamada Baby blue do espetaacuteculo Cuentos pequentildeos de 1990 Ines apresenta

um boneco que se trata de sua matildeo voltada com os dedos em direccedilatildeo ao chatildeo com olhos e

nariz encaixados no alto de seu punho e enfiada numa roupa azul de crianccedila (Video 2) A

atriz apresenta ao boneco uma bola com a qual entre entusiasmado e receoso potildee-se a

brincar Como hesitava em chutaacute-la Ines puxa a crianccedila pelo braccedilo (um de seus dedos saindo

pela manga da veste infantil) para encorajaacute-la A reaccedilatildeo do boneco eacute de medo e certa

indignaccedilatildeo Ergue os olhos em direccedilatildeo agrave atriz (uma dobra caracteriacutestica do punho posiciona os

olhos de modo a inclinarem-se para cima) como se dissesse ldquonatildeo faccedila mais issordquo Mesmo

diante da evidecircncia inapelaacutevel de que o boneco eacute feito de uma parte do corpo da atriz pois

que tal evidecircncia se acompanhava de claras limitaccedilotildees de movimento por parte da atriz para

manter a estrutura fiacutesica do bebecirc a sua forma o seu movimento e as reaccedilotildees que apresentava

produziam sobre a cena uma nova presenccedila Uma presenccedila diferente daquela criada

exclusivamente pela atriz solitaacuteria sobre o palco

Outro momento desse mesmo espetaacuteculo mostra Hugo apresentando um artista de rua

com nariz de palhaccedilo que toca um violatildeo por trocados (Video 3) O artista eacute feito do joelho do

ator com um nariz de palhaccedilo indicando as feiccedilotildees vestido com uma camisa e usando as

proacuteprias matildeos do ator para tocar seu pequeno violatildeo Num determinado momento o ator

posicionado atraacutes do joelho-palhaccedilo rouba a feacuteria usando a mesma matildeo empregada para tocar

o violatildeo num golpe que nos faz vecirc-la como pertencente ao ator e natildeo ao boneco Assim se faz

um arranjo alternado e impreciso a partir do qual natildeo haacute clareza acerca dos limites corporais

do boneco ndash e do ator Os bonecos de Hugo e Inecircs ndash assumamos que assim podemos chama-

los ndash natildeo apenas satildeo feitos de partes dos corpos dos atores mas assumem em suas

apresentaccedilotildees algo como um duplo pertencimento ou uma corporalidade transitoacuteria que

arrasta os corpos dos atores para dentro do que entendemos como sendo as formas dos

bonecos

62

Tillis iraacute buscar uma definiccedilatildeo para o boneco teatral que seja abrangente a ponto de

compreender suas mais variadas manifestaccedilotildees e formas Para tanto iraacute natildeo apenas buscar

ampliar seu campo de visatildeo em termos das diversas tradiccedilotildees e formatos mas conduziraacute sua

indagaccedilatildeo para a percepccedilatildeo do puacuteblico de modo a considerar boneco teatral natildeo aquilo que

se enquadra dentro dos limites das definiccedilotildees dos estudiosos mas aquilo que compreende ser

percebido pelo espectador como boneco

Em seguida por meio de um exerciacutecio de comparaccedilatildeo entre as definiccedilotildees de boneco

teatral encontradas em obras de estudiosos como Charles Magnin Bill Baird Paul McPharlin

e Henryk Jurkowski seguido por tentativas de submissatildeo dessas definiccedilotildees a exemplos

bastante variados de espetaacuteculos considerados teatros de bonecos Tillis articula uma

definiccedilatildeo preliminar na qual as qualidades perceptivas do puacuteblico ocupam centralidade

Ao juntarmos todas as nossas soluccedilotildees o caminho torna-se livre afinal para

respondermos a pergunta apresentada no iniacutecio deste capiacutetulo quando as

pessoas mencionam o boneco teatral estatildeo se referindo a elementos que satildeo

reconhecidos por uma plateacuteia como sendo objetos aos quais satildeo conferidos

forma movimento e frequentemente fala de uma maneira tal que a plateacuteia

os imagina como possuidores de uma vida (TILLIS 1992 p 28 ndash traduccedilatildeo

minha)

Claramente natildeo se trata de uma definiccedilatildeo simples tampouco acabada ou unacircnime No

entanto essa definiccedilatildeo alcanccedila um tipo de propriedade que nos permite pensar o boneco de

forma bastante abrangente e funcional tanto no que diz respeito agraves diversas manifestaccedilotildees do

boneco teatral nas suas relaccedilotildees com culturas tradicionais as mais diversas e distantes e das

possibilidades formais e performativas apresentadas por esse elemento teatral na perspectiva

das transformaccedilotildees de seus pressupostos conceituais para as artes verificados a partir dos

postulados das vanguardas modernistas e ainda em curso

Para Tillis o boneco teatral eacute em princiacutepio algo que pode ser percebido pela plateia

como sendo um objeto Essa construccedilatildeo apoiada como estaacute na percepccedilatildeo do espectador se daacute

de modo a diferenciar-se de uma outra definiccedilatildeo apresentada por Jurkowski na qual o

boneco seria de fato um objeto obrigatoriamente inanimado e como jaacute pudemos perceber

inteiramente exterior ao corpo do artista que o opera O deslocamento perceptivo que Tillis

propotildee o faz encontrar bonecos feitos em formatos e materiais mais diversos e variados

trazendo para dentro do seu campo de visatildeo elementos combinados natildeo apenas entre

materiais e recursos plaacutesticos mas abrindo a possiblidade de reconhecer-se o ator operador

como parte perceptiacutevel do boneco inserida por forccedila da sua capacidade de produccedilatildeo de

estiacutemulos sensiacuteveis na apresentaccedilatildeo

63

Dizer que algo eacute percebido como um objeto natildeo eacute dizer pouco No caso de Tillis fica

evidente que o termo eacute empregado com a finalidade principal de produzir uma distinccedilatildeo do

boneco em relaccedilatildeo ao que seria visto e entendido como a integridade um corpo vivo humano

ou animal Mas aleacutem disso o constante emprego de ferramentas semioloacutegicas para tratar das

definiccedilotildees leituras e explicaccedilotildees para o boneco teatral praticado por Tillis16

natildeo permite que

um esforccedilo analiacutetico que se proponha a dialogar com a sua obra se satisfaccedila em entender que

tal percepccedilatildeo se apresenta apenas como paracircmetro distintivo entre a percepccedilatildeo do boneco e a

do ator (do indiviacuteduo) vivente

Ocorre que a percepccedilatildeo do boneco como objeto (natildeo nos esqueccedilamos de que a mesma

expressatildeo eacute usada por Charles Monastier em seu artigo sobre o manipulador agrave vista) aponta

para possibilidades de entendimento a partir das quais essa percepccedilatildeo pode adquirir estatutos

os mais variados Uma maneira interessante de pensarmos o mecanismo da percepccedilatildeo do

boneco estaacute no manuseio de alguns dos fundamentos da semioacutetica de Charles Peirce que

postula que a percepccedilatildeo de um determinado objeto eacute o resultado de uma seacuterie de processos do

pensamento nos quais o que sobreveacutem natildeo depende apenas das caracteriacutesticas intriacutensecas do

objeto mas tambeacutem das suas condiccedilotildees de apreensatildeo

O boneco teatral visto como objeto emerge sobre nossa percepccedilatildeo a partir daquilo que

de forma inexoraacutevel ainda que por vezes elusiva ele natildeo eacute (ou seja um corpo vivo iacutentegro)

A apresentaccedilatildeo do boneco evolui sobre uma dinacircmica de emissatildeo de estiacutemulos perceptivos

ambiacuteguos haacute elementos que podem estar em sua movimentaccedilatildeo em sua relaccedilatildeo com a trama

do espetaacuteculo em sua forma de acordo com as caracteriacutesticas particulares desses elementos

que enviem ao espectador dados que o predisponham a imaginaacute-lo como tendo vida no

sentido direto em que a sua apresentaccedilatildeo produz a impressatildeo de uma presenccedila sobre a cena

Ao mesmo tempo satildeo dispostos pelo boneco em jogo elementos de significaccedilatildeo apontando no

sentido contraacuterio Elementos da forma da movimentaccedilatildeo da fala dos materiais constitutivos

que podem de acordo com as caracteriacutesticas particulares desses elementos reforccedilar o caraacuteter

de objeto inanimado do boneco

16

Natildeo se pode deixar de comentar que a escolha de termos e chaves de estudo apoiadas na semiologia por parte

de Tillis ocorre de modo a que o seu estudo se estabeleccedila em diaacutelogo frontal com as proposiccedilotildees de Henryk

Jurkowski numa dinacircmica quase constante de contradiccedilatildeo ao que propotildee o estudioso polonecircs Isto natildeo equivale

a dizer tudo uma vez que autores como Otakar Zich Jiri Veltruski e Petr Bogatyrev que servem de referecircncias

para ambos Jurkowski e Tillis jaacute haviam em um momento anterior utilizado a marionete como objeto de estudo

ou exemplo em seus escritos semioloacutegicos (GUINSBURG 1978)

64

Haacute a disposiccedilatildeo para consulta na Internet uma demonstraccedilatildeo de manipulaccedilatildeo indicada

como sendo uma masterclass do artista australiano Neville Tranter17

(Video 4) na qual um

dos alunos faz um exerciacutecio com um boneco chamado Zeno operado com uma das matildeos

dentro da cabeccedila para movimentaacute-la juntamente com a boca e a outra matildeo segurando uma

das matildeos do boneco de aproximadamente um metro de altura sentado em seu colo em

posiccedilatildeo semelhante agrave dos tradicionais bonecos usados em apresentaccedilotildees de ventriloquismo

Nessa demonstraccedilatildeo o aluno busca parodiar uma cena famosa do repertoacuterio do Muppet Show

de Jim Henson envolvendo uma muacutesica que ficou conhecida como Mahnah mahnah18

(Video

5) Durante a apresentaccedilatildeo o artista procurava executar a canccedilatildeo como se essa fosse um dueto

entre ele e o boneco e para isso operava alteraccedilotildees em seu timbre vocal buscava mover a

boca mais discretamente quando queria que acreditaacutessemos que era a vez do boneco cantar e

mais importante movimentava o boneco de forma caracteriacutestica aplicando sobre ele reaccedilotildees

e comportamentos que produziam uma forte impressatildeo de diferenccedila entre o corpo ndash e a

personalidade ndash do boneco e o seu Esse recurso sobrepunha-se agrave forte impressatildeo causada pela

evidente accedilatildeo do artista sobre o boneco sobre o dado aparente de que se o boneco se movia

o fazia por meio da intervenccedilatildeo de seu operador Num determinado momento o ator erra a

canccedilatildeo interrompe para comeccedilar de novo e na sequecircncia comete o mesmo erro Quando o

boneco abaixa a cabeccedila e cobre o rosto com a matildeo em sinal de desaprovaccedilatildeo a inevitaacutevel

percepccedilatildeo da matildeo do artista segurando a matildeo do boneco que executa o gesto de criacutetica

amplifica por meio da ambiguidade dos gestos sobrepostos tanto a surpresa quanto a

comicidade Ao fim da apresentaccedilatildeo o artista desvencilha-se delicadamente do boneco

deixando-o pousado sobre o banco Essa accedilatildeo simples e inevitaacutevel acaba por produzir uma

evidecircncia poderosa daquilo que vem sendo comentado acerca da percepccedilatildeo de objeto que se

tem do boneco A visatildeo do boneco Zeno sua cabeccedila inerte e seu corpo agora evidentemente

vazio sob a camisa combina o entendimento daquilo que a plateia sempre soube em

conjunccedilatildeo a um tipo de incocircmodo produzido pelo reconhecimento de uma potecircncia de vida

atribuiacuteda agravequela forma semidisforme

Haacute uma passagem do repertoacuterio da companhia Stuffed Puppets de Tranter especial

para este raciociacutenio O espetaacuteculo eacute The Nightclub de 1993 (Video 6) O cantor de cabareacute

Anthony apresenta em dueto com o mesmo Zeno do exemplo anterior a canccedilatildeo The old

17

Viacutedeo disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=eyLCIVdQR9Egt Consulta mais recente feita em

27022011 Neville Tranter eacute um artista de animaccedilatildeo australiano radicado na Holanda onde fundou e dirige a

companhia Stuffed Puppets 18

Duas versotildees dessa cena no Muppet Show tambeacutem estatildeo disponiacuteveis on line em

lthttpwwwyoutubecomwatchv=NA90IlymdZ4gt e lthttpwwwyoutubecomwatchv=Dx5v1z6L6Fwgt

Consulta mais recente feita em 27022011

65

puppeteer (o velho marionetista) No estilo musical proacuteprio do cabareacute alematildeo Anthony canta

a histoacuteria de um marionetista famoso e reconhecido juntamente com seu boneco Enquanto

canta eacute pontuado por intervenccedilotildees de Zeno (operado e vocalizado pelo proacuteprio ator) que

participa com especial ecircnfase no refratildeo tocado num ritmo ternaacuterio alegre e que tem as

seguintes palavras

Now Iacutem lying in the attic

In a dusty leather case

And Iacutem waiting for my partner

For his loving friendly face19

Zeno nessa parte da muacutesica que estaacute como que embalado no colo pelo cantor

Anthony canta como se fosse o boneco descrito na canccedilatildeo A segunda estrofe fala de como o

velho marionetista envelheceu perdeu prestiacutegio e acabou morrendo miseraacutevel e esquecido

Quando Anthony indica a deixa para o refratildeo Zeno natildeo consegue cantar aleacutem do primeiro

verso baixando a cabeccedila e assumindo uma postura que remete muito mais agrave imobilidade de

um objeto do que a uma contenccedilatildeo de sofrimento humano No entanto a imagem eacute clara e

intensa Enquanto vemos Anthony buscar retomar a canccedilatildeo dizendo alto palavras do refratildeo

como que exortando Zeno a retomar a apresentaccedilatildeo este encontra-se inapelavelmente

reconduzido agrave ineacutercia inanimizado pela dor

Esse uacuteltimo exemplo guarda uma peculiaridade poderosa acerca da ambiguidade

perceptiva do boneco A ineacutercia assumida por Zeno ao fim da canccedilatildeo funde o entendimento

de sua condiccedilatildeo de objeto com uma comunicaccedilatildeo tatildeo eficiente quanto sensiacutevel de um

sentimento pleno de humanidade Nada em toda a cena foi capaz de produzir sobre o

espectador um estiacutemulo imaginativo de autonomia existencial para aquele boneco do que o

momento em que provavelmente por escolha ele se entrega ao obliacutevio

Pois que eacute justamente a partir da percepccedilatildeo do boneco como objeto desprovido de

autonomia e voliccedilatildeo que se produz uma ruptura em sua estrutura perceptiva por meio da qual

somos capazes de perceber a sua qualidade de objeto inanimado (sua forma suas diferenccedilas

em relaccedilatildeo a um corpo vivo os indicativos de sua condiccedilatildeo original de ineacutercia) mas tambeacutem

nos permitimos perceber o boneco em termos daquilo que ele representa dentro (e para aleacutem)

do contexto da sua apresentaccedilatildeo (seria mais simples ou apenas redutor recorrermos ao termo

personagem dramaacutetica)

19

Traduccedilatildeo Agora estou guardado no poratildeo numa caixa de couro empoeirada Estou esperando por meu

companheiro por seu rosto amoroso e amigaacutevel Cena disponiacutevel em

lthttpwwwyoutubecomwatchv=7HcpBz8N8ZIgt Consulta mais recente feita em 27022011

66

Tillis iraacute usar o termo ldquovida imaginadardquo (1991 p 28) para buscar descrever o modo

como o puacuteblico se voluntaria a perceber o boneco sob a forma de uma presenccedila autocircnoma em

meio a uma dinacircmica perceptiva que alterna ilusatildeo e desilusatildeo Tillis tambeacutem menciona um

termo empregado por Coleridge para explicar a sua poesia de que esta encaminha o leitor a

empreender uma ldquosuspensatildeo voluntaacuteria do descreacuteditordquo20

(apud Tillis 1992 p 47) A

indicaccedilatildeo de accedilatildeo voluntaacuteria que o termo imaginada dota o primeiro termo em conjunccedilatildeo

com o empreacutestimo que toma da expressatildeo do poeta inglecircs para buscar explicar o fasciacutenio

exercido pelo boneco teatral sobre seu puacuteblico ajudam a compreender o quanto Tillis estaacute

interessado em perceber essa ldquovidardquo do boneco posto em jogo na cena como algo conferido

em grande conta pela disposiccedilatildeo do espectador De qualquer forma natildeo se pode ignorar em

vista dos esforccedilos teoacuterico-terminoloacutegicos de Tillis o quanto a emprego de termos como vida e

alma para explicar a apresentaccedilatildeo do boneco constiuti-se num verdadeiro problema

Primeiramente porque a imensa maioria das apresentaccedilotildees com bonecos claramente natildeo tecircm

como objetivo e efeito primordiais a produccedilatildeo de uma ilusatildeo acabada de vida autocircnoma e em

segundo lugar porque ainda haacute que se determinar e concordar nos meios da praacutetica e do

estudo do teatro de animaccedilatildeo um termo que possa compensar o apelo a forccedila metafoacuterica e a

validade referencial de vida e alma

O semioacutelogo Tcheco Otakar Zich entende os modos de percepccedilatildeo do boneco em cena

como alternados o que equivale dizer que o entendimento do boneco enquanto objeto e a

imaginaccedilatildeo de uma presenccedila autocircnoma natildeo satildeo sensaccedilotildees que acometem o espectador

simultaneamente mas uma de cada vez momento a momento (apud TILLIS p 54) A leitura

de Zich pode ser e seraacute mais comentada adiante mas a sua mera apresentaccedilatildeo jaacute se presta a

reforccedilar o entendimento da percepccedilatildeo do boneco em cena a partir de uma dinacircmica de

construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo da aceitaccedilatildeo de sua autonomia o que parece claro demanda

esforccedilo e engajamento por parte do espectador Marco Souza complementa a ideacuteia da seguinte

maneira

Eacute possiacutevel considerar [] o ldquocaraacuteter ilusoacuterio-realrdquo do teatro de animaccedilatildeo

como a estabilidade de uma presenccedila cecircnica na qual concreto e abstrato

limites e referecircncias satildeo rompidos e rearticulados em uma dimensatildeo

simboacutelica onde se instaura uma percepccedilatildeo diferenciada em que jaacute natildeo haacute

mais uma distinccedilatildeo absoluta entre sujeito e objeto (SOUZA 2005 p26)

Souza aborda o teatro de animaccedilatildeo como uma manifestaccedilatildeo cultural na qual se percebe o

exerciacutecio de dotaccedilatildeo de significados abstratos a elementos concretos Nesse sentido a

impressatildeo de autonomia do boneco que o seu jogo cecircnico pode vir a produzir natildeo se daacute de

20

No original ldquowilling suspension of disbeliefrdquo

67

outra forma senatildeo por meio de uma conjunccedilatildeo de elementos dentre os quais ato de projeccedilatildeo

realizado pelo espectador eacute fundamental

Por isso eacute delicado e virtualmente problemaacutetico o entendimento de que se busca a

produccedilatildeo de uma ilusatildeo de vida por meio do jogo do boneco O emprego excessivo do termo

associado a outros tais como alma e magia21

precisam ser cuidadosamente verificados pois

ainda que forneccedilam metaacuteforas eficientes podem causar seacuterios problemas de entendimento

uma vez que se insinuem para dentro da pedagogia e da teoria do teatro de animaccedilatildeo

Se natildeo vejamos dentre as modalidades mais conhecidas de teatro de animaccedilatildeo

poucas satildeo aquelas que natildeo reforccedilam em seus meios de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo certa

estilizaccedilatildeo na forma e no movimento do boneco Desde o bunraku ateacute o mamulengo passando

pelas experiecircncias abstracionistas dos baleacutes triaacutedicos de Oskar Schlemmer dos experimentos

de Depero e Prampolini22

junto ao Teatro dei Piccoli dos heroacuteis populares da luvas de feira na

Europa ateacute mesmo no emprego de animatrocircnicos23

parece claro que o desejo expresso pelos

artistas que depuram suas teacutecnicas de construccedilatildeo e manipulaccedilatildeo natildeo passa ou passa distante

de uma necessidade de iludir a plateia no sentido de natildeo estar diante de uma forma animada

mas diante de um ser vivo Se o desejo fosse o de transmitir impressatildeo incontestaacutevel de vida

melhor seria que se trabalhasse diretamente com atores Grande parte do encanto do teatro de

animaccedilatildeo reside na produccedilatildeo dessa percepccedilatildeo turbada e descontiacutenua entre aceitaccedilatildeo e

negaccedilatildeo que conduz o espectador a uma experiecircncia especiacutefica de desvendamento constante

da forma

Mas se parece cabiacutevel defender que a noccedilatildeo de vida natildeo eacute aquela que norteia a

qualidade especiacutefica da apresentaccedilatildeo do boneco restam duas questotildees A primeira eacute seria

entatildeo a noccedilatildeo de vida algo que mereccedila ser abolida do entendimento do boneco teatral E a

segunda se a impressatildeo de vida natildeo explica com precisatildeo suficiente o que vemos no jogo do

boneco que noccedilotildees e termos viriam em sua substituiccedilatildeo e por quecirc

Giorgio Agamben chama a atenccedilatildeo para a separaccedilatildeo semacircntica empregada pelos

gregos antigos que definia dois diferentes conceitos de vida (2002 pp9-20) O termo zoeacute se

referia a uma qualidade geneacuterica de vivente como em oposiccedilatildeo ao que eacute morto e a palavra

biacuteos designava um tipo de vida qualificada capaz de definir o ser vivente a partir de suas

21

Estudos apoiados em apreciaccedilotildees eminentemente etimoloacutegicas de termos como animaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo

acabam por contornar o esforccedilo de se renovar o olhar sobre as praacuteticas e efeitos do teatro de animaccedilatildeo e suas

transformaccedilotildees optando por ater-se em definiccedilotildees que permitem pouca ampliaccedilatildeo ou questionamento 22

A colaboraccedilatildeo entre o tradicional marionetista Romano Vitorio Podrecca e os futuristas Fortunato Depero e

Enrico Prampolini eacute abordada em (LISTA 1993) e (JURKOWSKI 1991) 23

Este trabalho emprega a sugestatildeo feita por Tillis e respeita o uso observado por artistas brasileiros que define

como sendo animatrocircnico o boneco operado diretamente por um ou mais operadores por meio eletrocircnico e

remoto diferindo do autocircmato cuja construccedilatildeo jaacute encerra uma sequecircncia de movimentos preacute estabelecida

68

posturas atividades e mecanismos de relaccedilatildeo Agamben parte dessas definiccedilotildees de vida para

encadear um pensamento da poliacutetica contemporacircnea no qual avalia as consequecircncias e

dinacircmicas da politizaccedilatildeo daquilo que ele chama de ldquovida nuardquo24

Neste ponto do trabalho

busco-me valer de aspectos mais imediatos de consideraccedilatildeo de tais conceitos no intento de

emprega-los como ferramentas para o entendimento da impressatildeo de vida que a apresentaccedilatildeo

do boneco eacute capaz de produzir Assim sendo pode-se dizer a respeito do boneco ao menos

em primeira apreciaccedilatildeo que eacute incapaz de possuir uma vida a partir do que se entende pelo

primeiro termo (zoeacute) mesmo que em diversas ocasiotildees o comportamento que assume durante

a apresentaccedilatildeo se restrinja a oferecer agrave audiecircncia sinais que conduzam apenas ao

entendimento ndash agrave imaginaccedilatildeo ndash da existecircncia de uma vida autocircnoma25

em situaccedilotildees

extremamente simples das quais o encanto da apresentaccedilatildeo decorre exclusivamente de

observaacute-lo desempenhar uma uacutenica atividade tal como andar acenar ou danccedilar A vida que se

atribui ao boneco em meio agrave sua apresentaccedilatildeo decorre exclusivamente do caraacuteter teatral que

essa comporta natildeo podendo ser vida sem estar forccedilosamente atrelada ao contexto teatral no

qual se insere e que eacute capaz de conjurar em sua apresentaccedilatildeo26

e sem contar com a

indulgecircncia da imaginaccedilatildeo de quem o assiste Parece-nos assim que o problema do emprego

do termo vida associado agrave percepccedilatildeo do boneco decorre do entendimento da existecircncia de um

elemento capaz de transmitir certa qualidade de vida sem no entanto possuiacute-la em seu aspecto

mais fundamental Para o boneco a vida seraacute sempre teatral cecircnica ficcional e imaginada

Como poderemos verificar mais adiante grande parte do interesse que se extrai da

apresentaccedilatildeo do boneco decorre justamente da sua capacidade de transmitir certa qualidade de

vida que natildeo tem como suporte uma autonomia ontoloacutegica de fato

Por isso mesmo a tentativa de resposta que se monta para a primeira pergunta

formulada eacute delicada e complicada Evidentemente a impressatildeo causada pelas apresentaccedilotildees

de quase todos os bonecos ndash ateacute mesmo alguns cujas formas e movimentaccedilotildees satildeo estilizadas

em grande conta ndash faz o puacuteblico tomar o boneco em algum grau como algo possuidor de

24

Agamben emprega em Homo Sacer o poder soberano e a vida nua um excurso argumentativo no qual parte

das concepccedilotildees de vida mencionada e da recuperaccedilatildeo de uma figura do direito romano antigo ndash o homo sacer ndash

para empreender uma leitura proacutepria da biopoliacutetica foucaultiana de modo a identificar o campo de concentraccedilatildeo

nazista como sendo o paradigma politico da modernidade 25

Quando Jurkowski compara as diferentes relaccedilotildees com a dramaturgia entre bonecos e atores vivos evoca o

fato de que o ldquoo ator necessita apoiar-se em um mundo de ficccedilatildeo enquanto que o boneco pode contentar-se em

copiar a vidardquo (op citp 3) Assim o pesquisador polonecircs introduz a capacidade do boneco de conjurar

teatralidade agrave sua accedilatildeo 26

Aqui nos reportamos agrave capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade que possui a apresentaccedilatildeo do boneco Tal

capacidade seraacute suficientemente abordada ao longo desta tese mas por hora basta-nos entender que qualquer

accedilatildeo executada com razoaacutevel sucesso por um boneco eacute capaz de por si conter elementos de reconhecida

teatralidade e dramaticidade

69

certa vida Se entendemos os bonecos ndash quaisquer bonecos natildeo importa suas formas e

dinacircmicas em cena ndash como representaccedilotildees do ser humano em variados graus de detalhamento

e tipificaccedilatildeo eis que a vida como uma das prerrogativas fundamentais da humanidade estaacute

em jogo E como foi mencionado anteriormente ideacuteias tais como vida e alma emprestam natildeo

se pode negar metaacuteforas eficientes para descrever o tipo de relaccedilatildeo que se estabelece entre

espectador e boneco no decurso de uma apresentaccedilatildeo bem sucedida em animaccedilatildeo A

complexidade da questatildeo se daacute na exata medida em que natildeo podemos nos aproximar dela com

a radicalidade de quem se potildee a propor o abandono de uma noccedilatildeo empregada desde haacute muito

como se a sua longevidade natildeo fosse indicativo de potecircncia e clareza comunicativa Afinal

quem haveria de negar que um boneco que se pareccedila razoavelmente com uma pessoa

apresentado com maestria parece vivo A questatildeo eacute que se o boneco parece vivo ele de fato

natildeo estaacute (pelo simples fato de parecer) e que mesmo essa semelhanccedila de vida natildeo ocorre

sem a indulgecircncia da plateia que por seu lado o compreende dentro de uma dinacircmica

perceptiva que confronta a imaginaccedilatildeo de vida com a atestaccedilatildeo de uma condiccedilatildeo de inegaacutevel

falta de autodeterminaccedilatildeo Assim sendo como poderemos entender a ponto de nomear a

totalidade dessa dinacircmica de percepccedilatildeo Certamente natildeo parece que a melhor escolha seja

considerar um de seus aspectos como sendo a totalidade da experiecircncia de percepccedilatildeo Assim

nos lanccedilamos ao exerciacutecio de incerteza que eacute a tentativa de dar conta da segunda questatildeo

Ao assistirmos ao jogo que o aluno de Neville Tranter realiza com o boneco Zeno

cantando a canccedilatildeo dos Muppets salta aos olhos as dinacircmicas de dissociaccedilatildeo corporal

empreendidas pelo artista nesse processo Satildeo empregados nesse exerciacutecio alguns recursos

teacutecnicos de direcionamento de atenccedilatildeo que tecircm como objetivo imprimir a percepccedilatildeo de uma

separaccedilatildeo corporal e volitiva entre manipulador agrave mostra e boneco Quando o manipulador

volta o rosto para o lado oposto onde se encontra o boneco este o olha dando a impressatildeo de

que seu movimento natildeo eacute guiado mas que implica em certa subversatildeo ao padratildeo esperado de

controle do manipulador sobre o boneco Muito da dinacircmica da apresentaccedilatildeo do ventriacuteloquo

por exemplo estaacute baseada no jogo cocircmico da subversatildeo e da discordacircncia entre o boneco e

seu operador e a forjada rebeldia do boneco eacute a maior fonte de comicidade do ato A

animaccedilatildeo estaacute constantemente lidando com a construccedilatildeo de corpos rebeldes que se ocupam

em afirmar diferenccedilas de natureza estrutural e volitiva em relaccedilatildeo ao(s) corpo(s) que os

operam Claro pode-se argumentar que o sucesso das apresentaccedilotildees dessas personagens que

postulam autonomia em relaccedilatildeo aos seus movimentadores eacute tambeacutem a construccedilatildeo de uma

alteridade que aponta no final das contas para uma impressatildeo de vida Tal impressatildeo pode

70

ocorrer em diversas ocasiotildees mas sempre como resultado da produccedilatildeo de uma diferenccedila

fiacutesica da percepccedilatildeo de um outro corpo

Balardim (2004 p 93) chama de dissociaccedilatildeo de movimentos a competecircncia teacutecnica

que permite ao artista de animaccedilatildeo comportar-se de modo a simular uma divisatildeo corporal que

apresente estruturas e vontades distintas Voltando nossas atenccedilotildees para as apresentaccedilotildees do

duo Hugo Suarez e Ines Pasic ainda que os olhos dos espectadores natildeo consigam ser

ludibriados a ponto de perder de vista o fato de que os personagens satildeo construiacutedos a partir do

joelho e das matildeos dos artistas natildeo resta duacutevida de que suas cenas constroacuteem corpos diferentes

aos deles proacuteprios corpos que interagem e dialogam com os seus operadores-atores de uma

maneira tal que conduz o espectador a reconhecer na cena o surgimento de outra presenccedila e

que essa presenccedila conteacutem certa qualidade

Muito do que se conhece em termos de preceitos teacutecnicos aplicaacuteveis sobre diversas

modalidades de teatro de animaccedilatildeo lida com a produccedilatildeo uma presenccedila corporificada por meio

do boneco ou do objeto Ou seja diversos dos princiacutepios universais de trabalho e treinamento

do operador de bonecos relaciona-se diretamente com a capacidade de dar forma ao

personagem animado e de afirmar o corpo que se cria a partir daiacute como algo diferente do

corpo de seu manipulador em sua integridade Vejamos brevemente algo sobre as noccedilotildees de

eixo e foco27

Quando se menciona eixo em diferentes processos de treinamento e formaccedilatildeo

do manipulador de bonecos de diversos estilos trata-se de determinar a integridade estrutural

o centro de articulaccedilatildeo e a loacutegica de locomoccedilatildeo do boneco Nesse processo trata-se de

construir um corpo para o boneco que possa postular a si mesmo a capacidade de transmitir

autonomia Trata-se segundo Balardim de posicionar o boneco ou objeto de modo a dar a

entender a accedilatildeo de forccedilas gravitacionais sobre ele sendo esta ldquoa marca de toda forma vivardquo

(p 103) Beltrame complementa a ideacuteia chamando atenccedilatildeo para o fato de que a forma mal

conduzida em termos de manutenccedilatildeo de seu eixo ldquoevidencia que ela estaacute sendo manipuladardquo

(2009 p 293) Um manipulador de bonecos de luva por exemplo precisa fazer com que o

seu personagem se instado a virar para o lado oposto para onde se encontrava direcionado o

faccedila girando sobre o eixo da suposta espinha dorsal do boneco em vez de fazecirc-lo a partir da

conveniecircncia de movimento do corpo do operador ou seja de sua proacutepria coluna Se assim

fosse o que deveria ser uma virada a ser executada sobre o eixo do proacuteprio boneco

transforma-se num salto em giro de grande amplitude para um boneco em escala reduzida

pois que ao girar a partir da proacutepria coluna o operador conduziria o braccedilo para um ponto

27

Haacute um capiacutetulo deste trabalho dedicado agrave pedagogia e agrave teacutecnica do artista de animaccedilatildeo Os conceitos

apontados aqui seratildeo abordados mais amiuacutede nesse momento

71

bastante distante daquele onde deveria se originar o movimento do boneco Produzir a

impressatildeo de integridade de forma e locomoccedilatildeo ao boneco eacute importante para causar a

impressatildeo de dissociaccedilatildeo corporal a qual nos referiacuteamos Quanto ao foco conceito que ainda

renderaacute discussotildees ao longo deste trabalho pode-se dizer por enquanto que se refere

diretamente ao controle da atenccedilatildeo que se dedica ao boneco e ao modo como o espectador o

percebe Aperfeiccediloar num boneco a sua qualidade focal equivale a deixar claro ao espectador

em que parte do espaccedilo repousa a sua atenccedilatildeo Podemos afirmar que as principais etapas do

direcionamento focal do boneco no sentido de produzir nele uma impressatildeo de autonomia

seriam na ordem definiccedilatildeo do foco quando eacute possiacutevel identificar com clareza onde estaacute a

atenccedilatildeo e o interesse do boneco conferindo assim a aparecircncia de uma vontade expressa por

meio da conduccedilatildeo da atenccedilatildeo e divergecircncia quando eacute dado perceber que o boneco natildeo

direciona sua atenccedilatildeo agraves mesmas coisas que seu manipulador e o faz inclusive obedecendo a

um ritmo interno que natildeo eacute o mesmo de seu operador

Outra questatildeo a ser considerada que pode vir a complementar a escolha da noccedilatildeo de

presenccedila agrave de vida estaacute ligada ao poder de teatralizaccedilatildeo que possui a apresentaccedilatildeo do boneco

Eruli menciona o boneco como sendo um corpo fundamentalmente teatral dependente da

cena para existir (ERULLI 1991 pp 7-8) Dessa afirmaccedilatildeo decorre tambeacutem a questatildeo que

determina o jogo do boneco como sendo um recurso de irresistiacutevel capacidade de conjuraccedilatildeo

de teatralidade Onde quer que o boneco se apresente da maneira que o fizer transformaraacute

seu entorno imediato em cena posto que sua dinacircmica de apresentaccedilatildeo dinamiza

caracteriacutesticas de evidente espetacularidade associadas a tensotildees entre realidade e irrealidade

crenccedila e descrenccedila presenccedila e alusatildeo que apontam para um claro caraacuteter de dramaticidade

Quando Tillis em busca de explicaccedilotildees para o duradouro apelo que o boneco exerce sobre

plateias em diversos lugares e eacutepocas verifica os parentescos atribuiacutedos ao boneco teatral

com imagens religiosas e brinquedos infantis A base argumentativa que estabelece para

refutar veementemente as teses de ascendecircncia ou descendecircncia do boneco teatral com as

imagens de culto e as bonecas de crianccedilas se encontra apoiada na afirmaccedilatildeo do historiador

norte americano Paul McPharlin de que ldquoquando os bonecos se tornam vivos em seus teatros

o encanto arrebatador que exercem eacute da ordem do teatro e do teatro apenasrdquo (McPHARLIN

apud TILLIS 1991 p 47 traduccedilatildeo minha) Nesse como em diversos outros casos de uso da

forma animadas com finalidades que natildeo sejam evidentemente teatrais o que se percebe natildeo eacute

o emprego de formas aparentadas do boneco teatral em eventos de naturezas diversas e sim o

uso de um recurso teatral para outras finalidades

72

O boneco teatral seja ele construiacutedo para a cena ou adaptado a partir de combinaccedilotildees

de materiais eou objetos ldquoencontradosrdquo apenas pode ser considerado como tal quando em

meio agrave apresentaccedilatildeo teatral Isto equivale dizer que um boneco feito para a cena digamos

uma bailarina de fios posta em exposiccedilatildeo ou usada como objeto de decoraccedilatildeo pode aludir

dada a sua forma ao boneco teatral contido nela em potecircncia mas apenas o evento teatral que

seu jogo instaura no momento em que se instaura eacute capaz de tornar o objeto em boneco

teatral Erulli considera o boneco como ldquonada aleacutem de um efeito teatralrdquo (1991 p 7) e usa

essa definiccedilatildeo como complementaccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de que ldquopor definiccedilatildeo o corpo da

marionete natildeo existerdquo (idem) Trata-se portanto de uma corporalidade transitoacuteria cuja

presenccedila se indissocia do estabelecimento da cena teatral

Se esse entendimento eacute correto talvez seja mais preciso imaginar que o jogo do

boneco animado esteja mais relacionado agrave produccedilatildeo de certa presenccedila qualificada que exerce

determinada funccedilatildeo em meio a uma apresentaccedilatildeo teatral do que propriamente a uma

impressatildeo de vida autocircnoma pois que essa impressatildeo de autonomia natildeo estaacute apenas

dificultada pelos signos de inanimidade dispensados por meio dos sistemas de significaccedilatildeo de

forma movimento e fala ela se encontra tambeacutem condicionada em grande parte pela

subordinaccedilatildeo dessa impressatildeo ao contexto de espetacularidade teatral ao qual o boneco em

jogo se encontra inapelavelmente atrelado

A presente argumentaccedilatildeo ganha em forccedila e possibilidades na medida em que nos

afastamos das formas que remetem de modo mais evidente agrave figura humana rumo a arranjos

mais proacuteximos agrave abstraccedilatildeo ou ateacute mesmo a tipos de bonecos com limitaccedilotildees de forma e

movimento mais acentuadas Dois bons exemplos do que se sugere seriam as figuras

bidimensionais estaacuteticas empregadas na modalidade de apresentaccedilatildeo chamada teatro de

brinquedo e algumas das formas distanciadas da imagem humana empregadas em atos da

companhia alematilde Muumlmmenchanz

O teatro de brinquedo28

ou teatro de papel emprega para a sua apresentaccedilatildeo figuras

pintadas em cartatildeo ou madeira que na imensa maioria dos casos natildeo apresenta nenhuma

possibilidade de movimento aleacutem do deslocamento lateral que a faz entrar e sair de cena

cumprir deslocamentos pontuais ou ser levemente movimentada de modo a indicar a accedilatildeo de

28

Teatro de brinquedo (Toy Theatre) remonta da Europa do seacuteculo XIX e eacute uma modalidade de teatro de

animaccedilatildeo criada para ser uma diversatildeo caseira Era feito em sua maioria em papel ou cartatildeo e costumava ser

vendido em kits em bancas de teatros e casas de oacutepera Assemelha-se ao modo de apresentaccedilatildeo em retaacutebulo

segundo descrita em Cervantes e consistia em uma caixa aberta em uma das faces (e vatildeos laterais para a

movimentaccedilatildeo das figuras) com espaccedilos para afixaccedilatildeo de cenaacuterios e outros elementos de cena As personagens

natildeo apresentam articulaccedilotildees e movimentam-se lateralmente sendo ligados a fios ou tiras de papel manipuladas

por meio dos vatildeos laterais da caixa-palco O grupo Sobrevento criou dois espetaacuteculos cuja esteacutetica empregou

elementos do Toy Theatre Um conto de Hoffman (1988) e O Theatro de Brinquedo (1993)

73

Figura 33 Grupo Sobrevento O Theatro de brinquedo (1993) Na foto Marco Aurecirch Sandra Vargas Luiz

Andreacute Cherubini e Miguel Vellinho

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Figura 34 Grupo Sobrevento Um conto de Hoffman (1988) Na foto Sandra Vargas e Miguel Vellinho

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Foto Luiz Andreacute Cherubini

74

fala da personagem Em casos de alteraccedilatildeo muito evidente da atitude ou da accedilatildeo de uma ou

mais personagens a figura pode ser removida da cena para ser substituiacuteda por outra figura da

mesma personagem em atitude correspondente Neste caso apesar de estarmos claramente

lidando com uma modalidade de teatro de animaccedilatildeo natildeo haacute nada (ou quase nada) na dinacircmica

da figura que indique uma autonomia Haacute no entanto a construccedilatildeo de uma corporeidade

indicativa de um determinado ente que compotildee a estrutura da apresentaccedilatildeo teatral bem como

de uma presenccedila especiacutefica e densamente determinada pelas condiccedilotildees discursivas e formais

dessa apresentaccedilatildeo Se podemos ou natildeo chamar a figura do teatro de brinquedo de boneco

teatral eacute especulaccedilatildeo que deixamos para fazer apoacutes considerar o segundo exemplo

Um dos atos mais ceacutelebres da companhia Muumlmmenchanz apresenta uma figura que

consiste num tubo articulado que em uma de suas extremidades exibe uma grande bola de

plaacutestico alaranjado (Video 7) A forma que de fato conta com um dos integrantes da

companhia no interior do tubo evolui de acordo com a sua proacutepria estrutura realizando

deslocamentos torccedilotildees e movendo a bola Num dado momento a bola se desprende do tubo

levando este a executar uma accedilatildeo semelhante a um movimento de succcedilatildeo para atraiacute-la

novamente A partir desse momento desenvolve-se em conjunto com a plateia um jogo no

qual a bola eacute arremessada por e para o tubo que demonstra prazer com o brinquedo Aqui

vemos a forma apresentar caracteriacutesticas comportamentais reconheciacuteveis e que apesar de em

aspecto mais geral natildeo assemelhar em nada com a figura humana apresenta certas qualidades

por meio das quais certa semelhanccedila pode ser surpreendida O modo como pende para a frente

a extremidade superior do tubo dando a entender uma fonte de foco ndash um ponto a partir do

qual forma parece projetar olhar e desejo o modo como reage agrave bola e agrave plateia (agraves vezes com

ansiedade outras com certa irritaccedilatildeo) deixando revelar algo de uma personalidade Neste

caso natildeo se pode negar que a construccedilatildeo da forma daacute a entender a forja de uma espeacutecie de

animal ou de ente dotado de individualidade Mas o que pode dizer a seu proacuteprio respeito a

pouquiacutessima semelhanccedila que a forma do Muumlmmenchanz tem em relaccedilatildeo a um ser vivo

reconheciacutevel

A figura de teatro de brinquedo se apresenta como uma espeacutecie de demonstraccedilatildeo do

quanto a animaccedilatildeo natildeo precisa obrigatoriamente se dedicar a qualificar o movimento de

objetos de modo a sugerir-lhes vida autocircnoma Ainda que se algo surge na percepccedilatildeo do

espectador como indicativo de alguma autonomia existencial esta se daacute invariavelmente por

meio da funccedilatildeo desempenhada pelo objeto em questatildeo no interior de uma apresentaccedilatildeo

teatral Jaacute haacute algum tempo me avizinhava da ideacuteia de que a produccedilatildeo de impressatildeo de vida

que funciona parcialmente (e discutivelmente) para alguns tipos de bonecos teatrais seria de

75

Figura 35 Muumlmmnechanz Atriz Floriana Frassetto

Fonte Revista PUCK ndash La marionnette et les autres arts ano 1 n4 Charleville-Meacuteziegraveres Institut

International de la Marionnette 1991 p 20

Figura 36 Muumlmmenchanz

Fonte (httpwwwmidioramacombrworks2009994the-best-of-mummenschanz)

76

fato numa tentativa de propor uma condiccedilatildeo que almejasse certa universalidade para a arte da

animaccedilatildeo de formas um tipo de inserccedilatildeo de um objeto dentro e um contexto teatral O que

ainda estaria para ser respondido corresponde agrave forma dessa inserccedilatildeo que eacute inegavelmente

especiacutefica e qualificada Dizer que o boneco desempenha a funccedilatildeo da personagem dramaacutetica eacute

redutivo e insuficiente posto que o teatro de animaccedilatildeo para aleacutem da presente discussatildeo

acerca dos afastamentos e desencontros do teatro com a forma dramaacutetica nem sempre esteve

preocupado em dispor tramas lineares em progressatildeo temporal conduzidas pela interaccedilatildeo

entre personagens Aleacutem disso eacute impreciso afirmar que bonecos representam sempre

entidades responsaacuteveis ainda que parcialmente pela conduccedilatildeo de uma trama espetacular

Por isso parece ao menos neste momento que o que qualifica a inserccedilatildeo do boneco no

contexto da apresentaccedilatildeo teatral eacute certa qualidade de presenccedila a mesma qualidade que insere

o boneco no contexto do espetaacuteculo teatral Trata-se de um modelo ciacuteclico de

retroalimentaccedilatildeo para o qual tanto a noccedilatildeo de presenccedila quanto a de inserccedilatildeo na cena teatral

qualificam-se uma pela outra

Mas se isso eacute verdade como lidamos com a criatura tubular do

Muumlmmenchanz Que contribuiccedilotildees ndash ou que desvios ndash essa forma lega ao raciociacutenio que se

busca levar adiante nesse momento A evoluccedilatildeo dessa forma sobre o palco seu jogo com a

bola e a coerecircncia dos seus arranjos corporais movimentos e sons claramente contribuem

para o entendimento expresso de que o jogo do boneco eacute por si instaurador de certa

qualidade teatral Mas a produccedilatildeo de sua presenccedila se apoacuteia sobre que tipo de impressatildeo

Ainda que se possa argumentar que um tubo encimado por uma bola guarda pouca

semelhanccedila com a figura humana natildeo eacute segredo que haacute bonecos considerados mais

aproximados da forma humana cujas estruturas desafiam bem mais a compreensatildeo da

anatomia do que uma forma vertical apoiada sobre o chatildeo cuja extremidade superior iniciou

como uma esfera para em seguida constituir-se na extremidade do tubo ligeiramente virado

para baixo como claro indicador de visatildeo e projeccedilatildeo de desejo A produccedilatildeo de semelhanccedila

em animaccedilatildeo se daacute na exata conjunccedilatildeo dos sistemas listados por Tillis de forma movimento

e fala Um boneco de luva pode perfeitamente ser uma meia com ou sem elementos no topo

dispostos agrave guisa de olhos e ainda assim imprimir com bastante clareza a ideacuteia de uma figura

aproximada do humano

O problema que o tubo do Muumlmmnechanz traz para o desenvolvimento deste

raciociacutenio eacute que de fato natildeo haacute forma animada que natildeo remeta de um jeito ou de outro agrave

lembranccedila de um ente vivo autocircnomo Sejam bonecos de luva objetos apresentados como

ideacuteias abstratas como a solidatildeo ou a morte (uma vez que satildeo presentificaccedilotildees de tais ideacuteias)

77

cartotildees pintados deslizando lateralmente em um palco de teatro de brinquedo um bastatildeo na

matildeo de um ator que faz um barquinho ou mesmo um grande corte de tecido movido por

diversas pessoas de modo a revelar certo tipo de comportamento Todos esses elementos

afirmam em seu caraacuteter de forma animada alguma semelhanccedila de vida aleacutem de um

antropomorfismo peculiar que assalta a percepccedilatildeo do espectador no momento em que este

percebe no objeto alguma coerecircncia fiacutesica e a simulaccedilatildeo da projeccedilatildeo do desejo

Seguindo entatildeo creio ser possiacutevel avanccedilar no esforccedilo de definiccedilatildeo iniciado com a

tentativa de Tillis agrave qual me permito inserir alguns pensamentos O boneco teatral passa a ser

um elemento teatral percebido pela plateia como algo diferente da integridade de um corpo

vivo e que por meio dos sistemas de signos da forma do movimento e da fala integra-se a

um contexto espetacular na funccedilatildeo de produtor de um tipo de presenccedila fundamentalmente

teatral

Neste ponto deparamo-nos com outra questatildeo Que pode parecer de importacircncia

menor mas cuja consideraccedilatildeo aponta rumos claros para reflexatildeo e treinamento acerca do

teatro de animaccedilatildeo Essa questatildeo eacute a da terminologia e da traduccedilatildeo dos termos Pois perseguir

a definiccedilatildeo de boneco teatral proposta por Tillis esbarra num complicador terminoloacutegico que

precisa ser ao menos esclarecido

Quando se busca como estamos neste momento fazendo uma definiccedilatildeo para o boneco

teatral que seja ampla e funcional recorrendo a fontes escritas em diversos idiomas surgem

divergecircncias que se estendem para aleacutem da escolha vocabular Tillis busca em sua pesquisa

estabelecer novas indagaccedilotildees e paracircmetros para a reformulaccedilatildeo ndash ou a formulaccedilatildeo enfim ndash de

uma esteacutetica para o boneco teatral Ocorre que Tillis iraacute empregar recursos e usos de seu

idioma o inglecircs para definir termos e por conseguinte as definiccedilotildees as quais esses termos se

atrelam Consideremos portanto o termo em inglecircs puppet cuja traduccedilatildeo mais usual e mais

proacutexima do que seria preciso em portuguecircs seria boneco ou boneco teatral Quando Tillis

inicia seu esforccedilo de reconhecimento de uma definiccedilatildeo eficiente a essa palavra recorre

inicialmente a uma verificaccedilatildeo de etimologia e apoiando-se numa definiccedilatildeo fornecida por

Paul McPharlin

Puppet [Boneco] deriva de pupa termo em latim para ldquomeninardquo ou

ldquobonecardquo ou ldquopequena criaturardquo A partiacutecula ndashet a torna um diminutivo uma

pequena criatura pequena A palavra marionnette de origem italiana-

francesa [que significa] ldquopequena pequena Mariardquo natildeo difere do inglecircs

puppet em seu significado baacutesico ainda que possua um final em duplo

diminutivo (apud TILLIS 1992 p 16 Traduccedilatildeo minha)

78

A aproximaccedilatildeo geneacutetica entre os termos puppet e marionnette notada por McPharlin

natildeo parece se repetir na palavra boneco escolhida para expressar a figura em portuguecircs que

deriva da boneca recreativa29

e como foi visto anteriormente a comparaccedilatildeo entre o boneco

teatral e a boneca infantil evoca questotildees que natildeo satildeo interessantes a este estudo

Mas o que parece ser particularmente digno de atenccedilatildeo no emprego das postulaccedilotildees de

Tillis em um estudo realizado em liacutengua portuguesa diz respeito a como o autor aplica o

termo puppet para qualificar objetos de teatro de animaccedilatildeo para os quais ao menos no Brasil

vem-se buscando ao longo dos uacuteltimos anos outros mecanismos descritivos

Ana Maria Amaral apresenta o termo teatro de formas animadas (AMARAL 1993) e

menciona o Congresso da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos realizado em Ouro

Preto em 1979 quando se decidiu convencionar boneco como sendo o termo geneacuterico para

definir o objeto animado que represente a figura de um homem ou animal De fato esse termo

vem a ser cunhado dessa forma para que se possa em primeiro lugar abarcar termos

empregados para estruturas especiacuteficas de bonecos como quando se usa marionete para falar

do boneco operado por meio de fios ou fantoche como referecircncia ao boneco de luva A

escolha dos termos geneacutericos surge como reconhecimento da infinidade de possibilidades de

forma e mecacircnicas de movimentaccedilatildeo presentes ao boneco teatral e que um esforccedilo de

categorizaccedilatildeo que busque isolar e nomear todas essas possibilidades eacute natildeo apenas infinito

mas desprovido de um sentido Para este estudo eacute mais valiosa a compreensatildeo de que o termo

boneco vai identificar um esforccedilo figurativo de reproduccedilatildeo da imagem do homem ou do

animal que se daacute em reconhecimento ao fato de que a linguagem teatral em questatildeo vinha jaacute

haacute algum tempo relacionando-se com poeacuteticas e vontades artiacutesticas para as quais a figuraccedilatildeo

da forma humana ou animal natildeo era mais uma questatildeo Amaral responde a essa percepccedilatildeo da

ampliaccedilatildeo das possibilidades figurativas do teatro de bonecos em uma reflexatildeo na qual se

aproxima do termo forma animada Motivada por esse reconhecimento de ampliaccedilotildees e

integraccedilotildees da linguagem do teatro de bonecos mas tambeacutem impulsionada por discussotildees

semelhantes conduzidas em outros paiacuteses e idiomas30

e do termo performing object usado

pelo artista e antropoacutelogo norte americano Frank Proschan em um estudo sobre a semioacutetica de

objetos em apresentaccedilotildees rituais e sociedade (apud AMARAL 1997 pp 25-6)

29

Definiccedilatildeo fornecida pelo Dicionaacuterio Michaelis Online em lthttpmichaelisuolcombrmodernoportuguesgt

Acesso em 22 de abril de 2011 30

Amaral menciona um coloacutequio realizado em 1985 na Itaacutelia onde se discutiu o emprego do termo figura e suas

variantes grafo-terminoloacutegicas em diversos idiomas como meio identificar esse teatro para o qual as implicaccedilotildees

antropomoacuterficas do termo boneco jaacute natildeo davam mais conta da totalidade das manifestaccedilotildees disponiacuteveis (1993

pp 241-3)

79

Assim o pensamento mais recente acerca da linguagem da animaccedilatildeo no Brasil tem se

dado no sentido de aceitar e incorporar termos que se suponham mais abrangentes e que

escapem ao aspecto tradicionalista e figurativo existente no teatro de bonecos Foi exatamente

essa necessidade de se lidar com uma base conceitual que pudesse dar conta da amplitude de

configuraccedilotildees desdobramentos e aproximaccedilotildees do boneco teatral que Amaral propocircs o termo

forma animada empregado amplamente e aceito por estudiosos e praticantes do teatro de

animaccedilatildeo O termo compreende o que se entende de maneira mais corrente como sendo o

boneco teatral mas reconhece em outros formatos de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo princiacutepios e

efeitos comuns

Mais recentemente o termo teatro de animaccedilatildeo parece ser o preferido de parte

consideraacutevel dos artistas e pensadores dedicados agrave linguagem natildeo apenas por sua

abrangecircncia mas sobretudo por apresentar uma linguagem performativa que se define a partir

de uma qualidade de accedilatildeo ou atitude (a animaccedilatildeo) ao inveacutes da necessidade de presenccedila de um

determinado elemento (o boneco ou forma animada) Ou seja a noccedilatildeo de teatro de animaccedilatildeo

ao inveacutes de teatro de bonecos ou de formas animadas define-se por meio de certa forma de

constituiccedilatildeo da cena e das relaccedilotildees especiacuteficas que se estabelecem entre os inteacuterpretes por um

lado e o puacuteblico por outro com a potecircncia teatral e sugestiva de objetos materiais e demais

elementos sobre a cena sem que haja a necessidade de se identificar um elemento

caracteriacutestico sobre a cena que dominaria o fluxo de atenccedilatildeo e em torno de cujo esforccedilo de

operaccedilatildeo caracteriacutestica toda a cena teatral se fundaria Aqui comeccedilamos a entender em que

grau devemos estar atentos ao ato de ler o material apresentado por Tillis

Para Tillis ndash de fato para o idioma inglecircs ndash o termo puppet iraacute abrigar tranquilamente

todo objeto dramaticamente relevante em uma apresentaccedilatildeo de teatro de bonecos Aliaacutes para

o idioma inglecircs o emprego do termo animaccedilatildeo (no caso animation) supotildee algumas questotildees

de entendimento jaacute que este eacute empregado em profunda relaccedilatildeo agrave modalidade cinematograacutefica

da qual fazem parte a animaccedilatildeo em stop-motion o claymation31

o desenho animado e a

animaccedilatildeo computadorizada

Natildeo se pode querer usar o texto de Tillis como ferramenta para estabelecimento de

uma definiccedilatildeo para o boneco sem perder de vista o quanto as diferenccedilas entre os idiomas

ensejam movimentos epistemoloacutegicos quase opostos O pesquisador norte americano busca

entender tudo o que se abriga sob um termo poderosamente sinteacutetico ao passo que estudiosos

31

Teacutecnica de animaccedilatildeo em stop motion com o emprego de modelos em barro ou massa de modelar

80

e artistas brasileiros empreendem jaacute haacute mais de duas deacutecadas um esforccedilo de pesquisa no

sentido de nomear categorias abrigaacuteveis sob um ainda inexistente termo sinteacutetico consensual

Este estudo optou por empregar o termo teatro de animaccedilatildeo como categorizaccedilatildeo

geneacuterica agrave linguagem teatral da qual se ocupa mas empregaraacute o termo teatro de bonecos

sempre que estiver diante de uma noccedilatildeo anterior agraves transformaccedilotildees notadas a partir do iniacutecio

do seacuteculo XX quando estiver mencionando um autor que emprega o termo ou quando houver

referecircncias agrave abrangecircncia que o termo puppet possui para o pensamento de Tillis Como este

trecho do capiacutetulo apresenta uma reflexatildeo que se daacute a partir das postulaccedilotildees do norte

americano sempre que for empregado o termo boneco este seraacute em adesatildeo agrave amplitude de

significaccedilotildees que o termo puppet tem para Tillis

Isto posto prossigamos com as consideraccedilotildees acerca da definiccedilatildeo do boneco

avaliando alguns pontos tatildeo delicados quanto recorrentes Retornemos assim agrave tentativa de

responder agrave pergunta deixada em aberto paraacutegrafos atraacutes sobre se a figura do teatro de

brinquedo poderia ser chamada de boneco teatral

A princiacutepio e sobretudo se levarmos em consideraccedilatildeo a definiccedilatildeo cunhada acima natildeo

deveria restar qualquer duacutevida de que a figura do teatro de brinquedo seria um boneco Essa

duacutevida aumenta claro se percebermos que no teatro de brinquedo as figuras recortadas

podem representar as personagens do drama contado mas constituir-se tambeacutem de elementos

de decoraccedilatildeo cecircnica tais como mobiliaacuterio fundos de cenografia nuvens revoadas de

paacutessaros e assim por diante Por outro lado eacute inegaacutevel a adesatildeo por parte de pensadores do

teatro de bonecos da noccedilatildeo muito bem expressa por Obrastzov de que ldquoO boneco foi criado

para ser moacutevel Apenas quando se move torna-se vivo e apenas nas caracteriacutesticas dos seus

movimentos ele adquire aquilo que chamamos comportamentordquo (apud TILLIS 1992 p 133)

Ao delicado impulso lateral concedido por vezes agraves figuras do teatro de brinquedo como

indicativo de fala ou de accedilotildees especiacuteficas podemos reconhecer muito pouco do tipo de

movimento professado por Obraztsov quando este afirma que ldquoem matildeos humanas qualquer

objeto () pode cumprir a funccedilatildeo de um objeto vivo na imaginaccedilatildeo associativa do homemrdquo

(idem p 23 traduccedilatildeo minha) Podemos tambeacutem encontrar pouca familiaridade entre esse tipo

de movimento de forte cunho indicativo e com pouca preocupaccedilatildeo mimeacutetica dos

movimentos graciosos dos bonecos de fio quando operados por exemplo por Phillip Huber

ou do vigor e virtuosismo das luvas chinesas da proviacutencia de Fujian estudadas por Roberta

Stalberg que se apresentam em lutas acrobaacuteticas (Figura 37)

A questatildeo que aqui se elabora eacute como aumentar a precisatildeo na descriccedilatildeo do boneco

por aquilo que este representa e como usar a convicccedilatildeo de que o movimento eacute um elemento

81

fundamental para tal definiccedilatildeo se estes podem variar enormemente em dinacircmica em intenccedilatildeo

e em resultado para o espectador Os bonecos para serem considerados como tais precisam

ser moacuteveis ou podem apresentar uma qualidade de movimento que natildeo se expressa em acircmbito

cineacutetico e articular Ampliemos a questatildeo a arte eacute capaz de produzir imagens que animizam

objetos e ideacuteias conferindo a elementos abstratos e inanimados uma suposta participaccedilatildeo no

desencadeamento de tramas e narrativas A chuva impede o encontro de amantes e uma

revoada de paacutessaros diz ao espectador que eacute veratildeo Um casaco eternamente pousado sobre

uma cadeira trata de uma ausecircncia que explica atitudes e conduz eventos a determinado

desfecho bem como um corvo imaginado pode pousar perto de Edgard Alan Poe para

sussurrar-lhe ldquonunca maisrdquo O teatro de animaccedilatildeo tem na consideraccedilatildeo dessas potecircncias um

de seus principais impulsionadores e tambeacutem algo que contribui para conferir um inegaacutevel

encanto aos sujeitos de seus dramas ainda que ndash mas provavelmente exatamente por que ndash

indefina seus contornos No teatro de animaccedilatildeo a humanidade natildeo surge como uma afirmaccedilatildeo

inescapaacutevel impressa na corporalidade de seus inteacuterpretes que relativiza sistematicamente os

contextos fantaacutesticos e imaginados que apresenta por outra brota como surpresa em meio aos

aacutepices estilizados do que se supunha uma escapada do humano

Talvez este momento da reflexatildeo possa ser sintetizado com o auxiacutelio de um

comentaacuterio de Veltruskyacute no qual o semioacutelogo apresenta uma escolha de palavras que merece

atenccedilatildeo

Os movimentos transmitidos pelos bonecos satildeo similares agravequeles dos seres

que representam Natildeo eacute uma questatildeo de ser uma formulaccedilatildeo mais ou menos

precisa um momento crucial da apresentaccedilatildeo do boneco estaacute em questatildeo

[] Os movimentos do boneco transmitem um significado de impulso

interno correspondente ao impulso que produz os movimentos dos seres

vivos e por contiguidade esse significado impliacutecito se reflete na proacutepria

mente do espectador tendendo assim atribuiacute-los uma vida proacutepria (apud

TILLIS p 133)

Aqui dois verbos satildeo de fundamental importacircncia transmitir e representar

Determinado a natildeo me desviar do propoacutesito de buscar entender o boneco pela forma como

este eacute percebido e natildeo pela forma como eacute feito para ser percebido sou forccedilado a reconhecer

que a transmissatildeo de um movimento em muito pode diferir da reproduccedilatildeo do mesmo Assim

tambeacutem ocorre quando confrontamos as diferenccedilas existentes entre reproduccedilatildeo e

representaccedilatildeo Se o movimento que o boneco transmite ao puacuteblico se relaciona diretamente

com a busca da compreensatildeo de um ldquoimpulso internordquo (da construccedilatildeo de uma autonomia) o

que passa a estar em jogo na apresentaccedilatildeo do boneco deixa de ser o caraacuteter de projeccedilatildeo

espacial do movimento para ser o exerciacutecio de um tipo de movimento que muito bem poderia

82

Figura 37 Bonecos de luva chineses da proviacutencia de Fujian

Fonte (httpwwwredbubblecompeopledavviart6374739-sock-puppet-of-south-fujian)

Foto davvi

A luva chinesa se notabiliza por movimentos acrobaacuteticos e vigorosos mostrando em geral cenas de lutade

danccedila e de operaccedilatildeo de objetos

Figura 38 Pulcinella e Salvatore Gatto

Fonte (httporiundinetsite)

Figura 39 Duas diferentes pegas para

bonecos de luva

Fonte Programa O Teatro do Sobrevento

83

estar caracterizado com fundamentos no conceito de accedilatildeo dramaacutetica presente nos escritos de

Constantin Stanislavski e muitos dos autores de alguma forma tocados por sua obra Ou seja

trata-se de um tipo de accedilatildeo (deslocamo-nos agora do termo anteriormente apresentado

movimento) que qualifica seu executante como partiacutecipe do intercacircmbio de desejos que

impulsionam o curso da trama Mas que qualifica o seu executante a partir do reconhecimento

de um impulso interior vital do qual suas atitudes e atividades se relacionam em decorrecircncia

direta Uma vez que esse impulso interior se caracteriza natildeo apenas por seu componente

volitivo mas como resultado da percepccedilatildeo de outras forccedilas tais como o senso criacutetico e a

capacidade afetiva passa a ser possiacutevel entender o movimento do boneco como uma

qualidade de estar em cena que lhe atribui caracteriacutesticas evocativas agrave condiccedilatildeo e ao

comportamento humanos

Isto equivale dizer que um elemento em cena poderia natildeo apresentar movimentaccedilatildeo e

nem forma assemelhadas ao ser humano mas se este estiver inserido na trama espetacular de

modo a fazer o puacuteblico entender que uma vida interior lhe produz certa vontade e que o

exerciacutecio dessa vontade potildee em movimento as accedilotildees que constituem a trama espetacular este

seria visto como um boneco

O Pulcinella executado pelo artista de bonecos de luva napolitano Salvatore Gatto

(Figura 38) eacute um objeto com forma movimento e fala que apresenta alguns aspectos de

semelhanccedila com o ser humano apesar dos claros recursos de estilizaccedilatildeo e deformaccedilatildeo

presentes nos trecircs aspectos listados32

Haacute poucas duacutevidas de que se trate de um boneco teatral

uma vez que pode ser adequadamente identificado com formas tradicionais remontando

mesmo aos finais do seacuteculo XVI na Europa As accedilotildees que executa em cena nos permite

identificar uma personagem dramaacutetica com motivaccedilotildees caracteriacutesticas fiacutesicas e

comportamentais que guardam alguma coerecircncia Nem sempre eacute capaz de nos iludir quanto a

possibilidade de possuir uma vida autocircnoma mas transmite ao puacuteblico indiacutecios de uma vida

imaginada subordinada ao contexto de sua apresentaccedilatildeo sem mencionar que seus atos de

espancamento assassinato e maquinaccedilotildees produzem consequecircncias importantes no

desenvolvimento da trama apresentada

Dada a profunda relaccedilatildeo do boneco teatral com a cena posto que sua vida imaginada

apenas pode ser atribuiacuteda em meio ao contexto teatral no qual se insere e que a apresentaccedilatildeo

de um boneco eacute suficiente para conjurar qualidades teatrais agrave apresentaccedilatildeo parece claro aqui

que o entendimento dessa vida imaginada e por conseguinte o ato de animaccedilatildeo que traz a

32

Gatto emprega um recurso de estilizaccedilatildeo vocal o swazzle Uma espeacutecie de apito rudimentar postado em geral

sob a liacutengua ou sob o palato de modo a conferir agrave voz do boneco um som esganiccedilado

84

reboque o proacuteprio entendimento de boneco teatral se encontra mais relacionada com a

participaccedilatildeo do boneco (ou do que ele representa) em uma trama espetacular do que

propriamente a sua capacidade de executar accedilotildees fiacutesicas no que diz respeito a movimento

articular e deslocamento espacial O que busca se afirmar aqui eacute que o boneco (e o ato que o

anima) se daacute na medida exata do tipo de participaccedilatildeo que este exerce sobre a cena e natildeo por

meio da observacircncia de qualidades intriacutensecas estabelecidas a priori da sua relaccedilatildeo com a

cena Se nos recordarmos dos trecircs sistemas de signos (de forma de movimento e de fala)

atribuiacutedos por Tillis como sendo inerentes ao boneco teatral cabe a atestaccedilatildeo de que natildeo se

pode localizar tais sistemas no boneco teatral senatildeo por meio de uma ampliaccedilatildeo da

compreensatildeo dos mesmo e no reconhecimento de que o boneco natildeo necessita para afirmar-se

como tal enviar agrave plateia signos claros e intensos pertencentes aos trecircs sistemas

simultaneamente Tillis admite a existecircncia de um tipo de movimento para o boneco que ele

chama de movimento impliacutecito (1992 p141) Para Tillis o movimento impliacutecito seria

extriacutenseco ao boneco e provocado por efeitos de cenografia e luz Ele exemplifica o seu

ponto com os dioramas religiosos do museu da comunidade restauracionista da cidade de Salt

Lake City nos Estados Unidos Ali um movimento de luz com alternacircncia de foco sobre

determinadas figuras estaacuteticas como estaacutetuas de cera indicaria que personagem seria o

emissor da fala apresentada no sistema de som do museu e sugeriria variaccedilotildees de expressatildeo

facial e pequenos gestuais por meio da alternacircncia de luz e sombra durante a apresentaccedilatildeo que

conta a histoacuteria do mormonismo na Ameacuterica do Norte

Ora o simples reconhecimento de que a noccedilatildeo de movimento para o boneco natildeo se

restringe a uma dinacircmica articular em conjunccedilatildeo com as demais questotildees aqui discutidas

conduzem a exemplos que parecem difiacuteceis de ser ignorados

O espetaacuteculo Terceira Margem apresentado no Rio de Janeiro em 200333

pelo grupo

de brasileiros radicados na Holanda Munganga com direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro apresentava

bonecos como peccedilas pouco articuladas sendo que algumas sequer possuiacuteam pontos de

articulaccedilatildeo (Figuras 40 e 41 Video 8) Entre elas destaca-se a peccedila uacutenica esculpida em

madeira que representava a personagem do Pai que no conto de Guimaratildees Rosa que inspirou

o espetaacuteculo decide largar a famiacutelia para viver dentro de uma canoa sendo levado pela

correnteza do Rio Satildeo Francisco Ainda que fosse apresentado como uma peccedila uacutenica natildeo

articulada e carregada no palco pelo ator a importacircncia da figura estaacutetica dentro da trama

contada a sua participaccedilatildeo na conduccedilatildeo da accedilatildeo do espetaacuteculo e da histoacuteria do conto

33

As referidas apresentaccedilotildees ocorreram em 16 e 17 de novembro de 2003 como parte das atraccedilotildees daquele ano

do festival riocenacontemporanea Essas apresentaccedilotildees constituiacuteram-se na estreia do espetaacuteculo

85

Figura 40 Munganga Teatro Terceira Margem (ator Carlos Lagoeiro)

Fonte (httpwwwmunganganl)

Foto Maarten Brinkgeve e Arijan van den Berg

Figura 40 Munganga Teatro Terceira Margem (ator Carlos Lagoeiro)

Fonte (httpwwwmunganganl)

Foto Maarten Brinkgeve e Arijan van den Berg

A apresentaccedilatildeo dos bonecos natildeo articulados sobre a cena se daacute por meio da relaccedilatildeo estabelecida pelo ator

com os mesmos

86

encenado satildeo de tal modo fundamentais que natildeo se pode escapar a atribuir agrave figura um

estatuto de personagem e por conseguinte de boneco teatral

O espetaacuteculo Isto natildeo eacute um cachimbo da companhia Truks eacute uma das poucas

incursotildees do grupo paulistano em teatro para adultos e se inspira na obra do pintor Reneacute

Magritte Haacute uma cena na qual um manequim com rodas vestido e com um par de seios agrave

mostra eacute operado alternadamente por uma atriz e um ator (Figuras 42 e 43) A cena aborda a

violecircncia contra a mulher com a atriz fazendo as vezes de um duplo para o manequim e o

ator seria algueacutem que a subjuga sexualmente com violecircncia Como a movimentaccedilatildeo conferida

agrave manequim se daacute sempre em meio a uma atitude de conduccedilatildeo da personagem apresentada por

cada um dos atores que com ela se relaciona natildeo se consegue atribuir ao seu deslocamento

um desejo autocircnomo da figura Esse movimento extriacutenseco e involuntaacuterio adere perfeitamente

agrave temaacutetica da cena fazendo da figura e da sua ineacutercia personagem central dessa passagem do

espetaacuteculo

Lidamos entatildeo com casos para os quais os signos de movimento do boneco natildeo podem

ser entendidos senatildeo em ampliaccedilatildeo agraves ideias de deslocamento e articulaccedilatildeo De fato natildeo

podemos chegar ao ponto de aferrarmos-nos a uma concepccedilatildeo de boneco teatral para a qual os

entendimentos de sua estrutura natildeo nos permitam perceber suas funccedilotildees teatrais

Tillis chega mesmo a vacilar no que diz respeito a esse modo de ver as coisas quando

ao tratar da apreciaccedilatildeo que Jurkowski faz sobre o Quixote de Joseph Krofta quando diz que

na cena em que o protagonista eacute pulverizado numa cena de espancamento entre um banco no

cenaacuterio um ator que reage agraves pancadas e um boneco de Don Quixote destruiacutedo por outros

atores que esse boneco seria natildeo mais que uma efiacutegie A aderecircncia da figura agrave personagem e

a sua importacircncia para a conduccedilatildeo da trama expressa natildeo apenas na obra de Cervantes mas

do espetaacuteculo teatral que dela faz uso natildeo nos permite lanccedilar matildeo de exigecircncias de certas

qualidades de movimento para atestar se este se trataria ou natildeo de um boneco Assim

entendemos o boneco teatral como uma figura inserida num contexto espetacular bem como

o ato de animar como sendo a estrutura relacional responsaacutevel por tal inserccedilatildeo

Tillis discute as diferenccedilas que considera existir entre o boneco teatral e o elemento

teatral que Proschan chama de performing objetct34

refutando a existecircncia de animaccedilatildeo em

diversas das ocasiotildees que constam da descriccedilatildeo de Proscham ldquobonecas de brincadeiras

infantis passando por paineacuteis e imagens acompanhadas por narrativas por peep shows e

objetos de maacutegica ateacute figurinos e adereccedilos de apresentaccedilotildees teatrais [] danccedilarinos

34

Uma traduccedilatildeo considerada satisfatoacuteria para o termo e que seraacute doravante empregada eacute objeto de

representaccedilatildeo

87

Figura 42 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo

Manequim (atriz Camila Prietto)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Figura 43 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo

Manequim (atriz Camila Prietto)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Figura 44 Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo Gaiola

Fonte (httpwwwtrukscombr)

A forma humana eacute evocada por semelhanccedila por movimento e por participaccedilatildeo na cena

88

mascarados devotos que carregam imagens em procissotildees e contadores de histoacuterias que

traccedilam imagens na areia ou na neverdquo (PROSCHAN apud TILLIS 1992 p78) Natildeo se pode

negar que a abrangecircncia das consideraccedilotildees de Proschan poderiam suscitar discussotildees acerca

de categorias especiais de apresentaccedilatildeo e dramatizaccedilatildeo tais como a brincadeira infantil a

procissatildeo e a marcaccedilatildeo sobre a areia ou a neve mas o argumento central empregado por Tillis

para descartar diversos exemplos do que eacute categorizado por Proschan (e pelo proacuteprio Tillis)

como sendo objeto de representaccedilatildeo eacute motivo de discordacircncia deste estudo Ao comentar uma

categoria de elemento de cena tratado por Jiri Veltruskyacute sob o termo objeto de encenaccedilatildeo35

Tillis natildeo a reconhece como possiacutevel forma animada no sentido em que a tais elementos natildeo

satildeo atribuiacutedos movimento ou fala de modo a forjar uma percepccedilatildeo de vida autocircnoma Ele

complementa o argumento afirmando que o puacuteblico natildeo consegue imaginar vida nesses

elementos vendo-os sempre e imutavelmente como os objetos que deveras satildeo (idem)

Aceitar o argumento de Tillis equivale a rebaixar a carranca que representa o Pai de Terceira

Margem e o manequim de Isto natildeo eacute um cachimbo a mobiacutelia cenograacutefica quando de fato natildeo

se pode negar que tais elementos participam da cena de modo preponderante com a mesma

intensidade com que satildeo capazes de produzir significados sobre a cena que versam acerca de

uma presenccedila que se abre agrave imaginaccedilatildeo de certa qualidade de vida Se acreditarmos que o ato

de animar estaacute invariavelmente relacionado agrave qualidade de participaccedilatildeo de um elemento sobre

a cena teatral e a importacircncia que este assume sobre a trama que a cena invoca natildeo seraacute

possiacutevel entender a forja de uma vida em cena que se decirc de outra maneira que natildeo em direta

relaccedilatildeo com as qualidades de narraccedilatildeo e figuraccedilatildeo da proacutepria cena Animar natildeo eacute dar a crer

que algo pensa e se move por si apenas eacute produzir uma participaccedilatildeo vital e integrada de um

elemento em uma cena teatral de modo a que ambos elemento e cena troquem entre si os

indiacutecios de uma presenccedila

Retornando agrave figura do teatro de brinquedo que natildeo apresenta possibilidades

articulares assemelhadas ao movimento humano com ainda menor poder de convencimento

acerca de possuir vida autocircnoma do que um boneco com mais recursos de movimentaccedilatildeo se

encontra inserido no contexto de uma trama espetacular de modo a transmitir ao seu

espectador (no que isso tem de distinto do ato ou tentativa de convencer ou iludir) a existecircncia

de uma vida interior que enseja accedilotildees capazes de impulsionar o desenvolvimento dos eventos

assistidos E eacute nesse ponto que o boneco do teatro de brinquedo se diferencia dos outros

35

Tillis recorre ao exemplo fornecido pro Veltruskyacute de uma porta e uma mesa mencionadas no Tartufo de

Moliegravere para as quais em determinados momentos da peccedila certas personagens direcionam falas e atitudes

tratando-as como iacutendices de outras personagens (op cit p 79)

89

recortes com funccedilatildeo mais notadamente cenograacutefica Ainda que natildeo se possa discordar de

certa qualidade teatral atribuiacuteda a uma cena que se compotildee a partir do entendimento de certa

essencialidade quando cada elemento contribui de maneira crucial para o estabelecimento e o

entendimento da obra nem todos esses elementos contribuem por meio da mobilizaccedilatildeo das

forccedilas que compotildeem a accedilatildeo de um espetaacuteculo teatral Um objeto em cena seraacute capaz de

mobilizar tais forccedilas por causa e resultado da evocaccedilatildeo de alguma qualidade humana que este

causa sobre a percepccedilatildeo da plateia

Retornamos assim a um dos exemplos usados anteriormente a combinaccedilatildeo tubo e bola

apresentada pelo grupo Muumlmmenchanz Sua forma natildeo remete senatildeo muito longinquamente a

uma figura humana por meio de certa postura ereta encimada por uma esfera o que poderia

tambeacutem evocar uma cabeccedila Muitos bonecos de luva conseguem perfeitamente transmitir uma

impressatildeo de antropomorfismo mais clara que a forma mencionada e ter no lugar da cabeccedila

uma esfera bastante semelhante De qualquer forma ainda que por vezes algo em sua forma

possa sugerir com um grande esforccedilo de imaginaccedilatildeo uma figura humana os acertos que

produzem tal impressatildeo satildeo provisoacuterios Natildeo leva muito tempo ateacute que a bola e o tubo

separem-se alterando para o puacuteblico a estrutura percebida do objeto ainda mais para o fim

da cena o tubo posta-se horizontalmente sobre a plataforma situada ao centro do palco unido

suas duas extremidades e assumindo a forma de um anel fechado Natildeo eacute portanto a evocaccedilatildeo

da forma humana o que produz a percepccedilatildeo desse objeto como um boneco teatral Natildeo haacute

tambeacutem nada em sua forma ou movimento que o identifique com alguma tradiccedilatildeo

reconhecida em teatro de bonecos Natildeo se parece com um boneco de luva de vara de

manipulaccedilatildeo direta de sombra Seguramente natildeo eacute uma maacutescara e creio natildeo haver argumento

que o caracterize como um figurino para o ator que o opera de dentro

Natildeo apresenta caracteriacutestica de fala a natildeo ser quando emite sons guturais na

imaginada tentativa de recuperar a bola separada do tubo

Seu movimento no entanto apresenta alguns indicativos mais claros Apresenta

direcionamento focal e dirige sua atenccedilatildeo no mais das vezes a partir do orifiacutecio superior do

tubo para pontos no espaccedilo com clareza e tensatildeo suficientes para produzir na plateia a

impressatildeo de que possui vontade e reage a estiacutemulos A extrema simplicidade do contexto no

qual se insere ndash o jogo de aproximaccedilatildeo e afastamento da bola pontuado pelo desejo de tecirc-la

proacuteximo a si ndash quase produz a percepccedilatildeo de que o objeto exibe sua autonomia de vida e

ldquoviverdquo independentemente do contexto mas eacute importante que natildeo nos iludamos Seraacute o

engajamento da forma num contexto ndash ainda que improvisado ndash a senha para a adesatildeo da

imaginaccedilatildeo da plateia Um boneco sem um motivo faz seus movimentos provocarem uma

90

percepccedilatildeo aleatoacuteria como um brinquedo de corda perde a capacidade de angariar atenccedilatildeo

apoacutes algumas repeticcedilotildees ou se tem seu deslocamento impedido por uma queda ou um

obstaacuteculo

Assim seja com bonecos cuja forma apresenta um desejo mais niacutetido de assemelhar-se

ao corpo humano seja com bonecos no qual a figura humana se encontra indicada por

algumas caracteriacutesticas visiacuteveis em meio a uma estrutura geral bastante estilizada ou numa

combinaccedilatildeo de elementos materiais sem a menos intenccedilatildeo inicial de evocar semelhanccedila

(mesmo porque os personagens dos dramas para bonecos podem perfeitamente natildeo serem

representaccedilotildees de seres humanos) apenas conseguiremos caracterizar um elemento numa

cena teatral como sendo um boneco se nele conseguirmos capturar qualquer qualidade

evocativa de humanidade Dessa forma passamos a abordar a existecircncia de um tipo de

semelhanccedila que ainda que natildeo seja de ordem fiacutesica pois que se faz identificaacutevel em signos de

movimento de relaccedilatildeo com a trama de emissatildeo de som ainda assim consegue operar sobre a

estrutura formal do elemento de cena suposto boneco produzindo assim para ele certa

qualidade que creio podermos dizer eacute antropomoacuterfica

Ora se somos capazes de concordar que seraacute uma qualidade de antropomorfismo o

que iraacute dar a entender um elemento em cena como um boneco teatral e se o consenso

alcanccedilado pelos fazedores e pensadores do teatro de animaccedilatildeo brasileiro foi de que seraacute

considerado boneco o elemento animado capaz de figurar um homem ou animal assim sendo

parece escapar ao seu propoacutesito a adoccedilatildeo de termos auxiliares para determinar o objeto

animaacutevel que natildeo eacute um boneco posto que o ato de animar poderaacute ser entendido como a

capacidade de conferir em algum niacutevel certa qualidade antropomoacuterfica ao elemento posto em

cena O que natildeo se pode ignorar no curso desta reflexatildeo no entanto eacute o quanto a busca de

uma terminologia mais abrangente para o objeto animado se situa na afirmaccedilatildeo de uma

ampliaccedilatildeo de possibilidades figurativas dadas ao boneco teatral e de como essa vontade

ampliadora aponta para desejos de apresentaccedilatildeo e discussatildeo do sujeito dramaacutetico que natildeo

estatildeo presentes em formatos considerados mais tradicionais do teatro de bonecos Por vezes a

produccedilatildeo de uma presenccedila qualificada sobre a cena pode se dar por meio de uma dinacircmica de

utilizaccedilatildeo de materiais cujos efeitos vatildeo e vecircm ao sabor da qualidade de seu manuseio ou do

curso da trama espetacular (como se daacute em espetaacuteculos do Ventoforte) ou pelo

estabelecimento de relaccedilotildees em cena que podem ateacute dispensar o objeto animaacutevel Em Les

91

Puces Savantes36

da companhia francesa Petits Miracles o casal de atores apresentava um ato

de pulgas amestradas sem que houvesse qualquer objeto representando os animais Os

espectadores postavam-se em torno de um picadeiro em miniatura com alguns objetos tais

como cadeiras um trapeacutezio e uma piscina Ainda que natildeo houvesse objetos para

representarem as pulgas artistas a atuaccedilatildeo do apresentador em conjunccedilatildeo com a

caracterizaccedilatildeo do espaccedilo e a disposiccedilatildeo dos truques efeitos e aspectos do relacionamento

entre o ator e as ldquopulgasrdquo provocavam no puacuteblico a imaginaccedilatildeo da presenccedila das pequenas

personagens na subordinaccedilatildeo que essa presenccedila estabelece com o contexto especiacutefico do

espetaacuteculo

Este uacuteltimo exemplo seria parece um caso claro e radical de o quanto o esforccedilo de

identificaccedilatildeo e conceitualizaccedilatildeo do boneco teatral ndash do objeto da figura da forma animada ndash

parece prescindir do reconhecimento de caracteriacutesticas intriacutensecas ao objeto Em substituiccedilatildeo

a isso segue-se o reconhecimento por parte do puacuteblico de meios e recursos de produccedilatildeo de

uma presenccedila qualificada sobre a cena feita em interaccedilatildeo com elementos teatrais tanto

dramatuacutergicos como plaacutestico-performativos e dos quais a dinacircmica dos atores pode ser

reconhecido como um dos mais proliacuteficos e recorrentes Essa afirmaccedilatildeo atinge mortalmente

aquela anteriormente mencionada de Jurkowski que vecirc o boneco como sendo o traccedilo

distintivo do teatro de bonecos Parece que natildeo haacute meio de aceitar a afirmaccedilatildeo de Jurkowski

sem levar em conta ao menos a existecircncia de questotildees acerca do estatuto do boneco teatral

que indeterminam seus contornos e suas diferenccedilas em relaccedilatildeo aos demais elementos da cena

teatral

A forma animada pode assim ser entendida como uma estrutura que se monta por

meio das relaccedilotildees teatrais que estabelece Dessas relaccedilotildees possiacuteveis a mais dinacircmica

recorrente e proliacutefica eacute sem sombra de duacutevida a que se estabelece com o artista que a opera

A relaccedilatildeo entre operador e objeto eacute o que na imensa maioria das vezes ditaraacute a dinacircmica

cecircnica do jogo da animaccedilatildeo pois a combinaccedilatildeo das duas entidades ndash objeto e operador ndash

impotildee a mecacircnica da estruturaccedilatildeo da forma da movimentaccedilatildeo da fala e da inserccedilatildeo da

personagem animada dentro do contexto do espetaacuteculo teatral Natildeo seria de se espantar a

afirmaccedilatildeo de que uma transformaccedilatildeo ampliaccedilatildeo ou mesmo reposicionamento conceitual do

que seria o boneco teatral ou a forma animada acarreta numa transformaccedilatildeo obrigatoacuteria na

consideraccedilatildeo na preparaccedilatildeo e no entendimento da funccedilatildeo do artista operador dentro do atual

36

A traduccedilatildeo literal para o tiacutetulo desse espetaacuteculo seria As pulgas espertas No entanto quando da sua

apresentaccedilatildeo na ediccedilatildeo de 2006 do festival SESI Bonecos do Mundo o espetaacuteculo recebeu o tiacutetulo em portuguecircs

de O circo de pulgas

92

teatro de animaccedilatildeo Natildeo eacute possiacutevel perceber uma alteraccedilatildeo na construccedilatildeo formal da

personagem animada sem que algo se altere no estatuto do artista e nas maneiras como a

integraccedilatildeo desse artista com o boneco engendra corpos Corpos esses que parecem em certas

praacuteticas mais recentes alterados em suas partes isoladas e no resultado das combinaccedilotildees que

monta tanto em termos de seus modos de estruturaccedilatildeo e relaccedilatildeo quanto na maneira como satildeo

percebidos pela plateacuteia

Assim formulamos a nossa segunda questatildeo que indaga os entendimentos as

apresentaccedilotildees e as competecircncias presumidas ao artista dedicado ao teatro de animaccedilatildeo

Figura 45 Cie Petits Miracles Les puces savantes (ator Jean-Dominique Kerignard)

Fonte (httpleminutemanaquaraycom)

93

232 Que formas e funccedilotildees podem ser atribuiacutedas ao artista de animaccedilatildeo

2321 A questatildeo terminoloacutegica

Iniciamos este momento buscando precisar um pouco mais qual seria o artista de

animaccedilatildeo que abordamos neste estudo com vistas a deixar de lado uma das diversas aacutereas de

indeterminaccedilatildeo formadas em torno dos entendimentos sobre o artista que se encarrega de lidar

com teatro de animaccedilatildeo seja a partir de uma escolha poeacutetica e profissional duradoura seja em

meio a uma experiecircncia momentacircnea Como em diversos momentos deste estudo buscaremos

partir de uma avaliaccedilatildeo da terminologia empregada

Alguns dos diversos termos empregados para descrever o artista do teatro de animaccedilatildeo

em portuguecircs satildeo bonequeiro marionetista fantocheiro titeriteiro ndash ou titereiro ndash (derivado

do castelhano) mamulengueiro (para o caso do artista dedicado a esse teatro em especial que

tambeacutem carregam as designaccedilotildees de mestre e de brincante) seguidos por outros termos que

como poderemos perceber logo adiante ocupam funccedilotildees ligeiramente distintas daquela das

primeiras palavras arroladas Satildeo os termos manipulador animador ator-manipulador ator-

animador operador Algumas outras palavras tambeacutem satildeo empregadas de modo a buscar

atender a funccedilotildees mais especiacuteficas tais como construtor e confeccionador

Ao virarmos nossa atenccedilatildeo para a primeira lista de palavras ainda que consigamos

identificar termos diretamente relacionados a formas determinadas dentro da linguagem do

teatro de animaccedilatildeo como satildeo os casos de fantocheiro37

e mamulengueiro esses termos

acabam por revelar-se por demais imprecisos para compreender a definiccedilatildeo do artista a partir

da sua funccedilatildeo de especialidade Termos tais como bonequeiro e marionetista podem ser

empregados indefinidamente para determinar o artista de teatro de bonecos no exerciacutecio da

funccedilatildeo da idealizaccedilatildeo da produccedilatildeo da construccedilatildeo dos bonecos e cenaacuterios bem como das

atividades relacionadas agrave operaccedilatildeo dos bonecos e agrave apresentaccedilatildeo de espetaacuteculos

Essa indefiniccedilatildeo possui um motivo evidente pois o emprego desses termos se daacute de

modo a fazer referecircncia a uma certa qualidade de artista de teatro de animaccedilatildeo que apesar de

bastante difundido e presente em nosso imaginaacuterio como encarnaccedilatildeo mais emblemaacutetica e

tradicional desse artista natildeo estaacute presente em todas as manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo

Refiro-me aqui agravequele artista de teatro de bonecos solitaacuterio e autosuficiente senhor de todas

37

O termo fantocheiro se refere no mais das vezes ao artista dedicado ao trabalho com o fantoche termo que

em portuguecircs tende a designar o boneco de luva Fato eacute que a origem dessa palavra o termo italiano fantoccino

(no plural fantoccini) poder ser empregado para referir-se a bonecos teatrais em variadas formas e meios de

operaccedilatildeo e natildeo apenas agrave luva

94

as etapas da criaccedilatildeo apresentaccedilatildeo e distribuiccedilatildeo do seu trabalho O artista que se encarrega

tanto do trabalho de construccedilatildeo quanto do de apresentaccedilatildeo do seu elenco valendo-se das

dimensotildees diminutas de muitos teatros de bonecos para encerraacute-lo numa mala e ldquoganhar o

mundordquo

Tillis em referecircncia agrave terminologia em liacutengua inglesa conta uma histoacuteria sobre o

emprego da palavra puppeteer cuja traduccedilatildeo aproxima-se em forma e significaccedilatildeo da

primeira parte da nossa lista de termos (TILLIS 1992 p 30) Tillis menciona Ellen Van

Volkenburg fundadora do Chicago Little Theatre que teria se saiacutedo com o vocaacutebulo por

inspiraccedilatildeo do termo empregado para o criador de mulas e condutor de charretes tracionadas

por esse animal muleteer (em portuguecircs muleteiro) Ainda que Tillis natildeo se aprofunde nos

motivos de Volkenburg parece ao menos curioso que o termo escolhido aleacutem da sonoridade

peculiar refira-se a uma funccedilatildeo dupla ou acumulada de criar e por as mulas para trabalhar A

referecircncia a essa funccedilatildeo muacuteltipla e acumulada para Volkenburg nos diz Tillis foi

considerado adequado devido ao seu caraacuteter de maleabilidade Um termo que abrigasse a

multicompetecircncia dos artistas que acorriam ao Chicago Little Theatre durante a primeira

deacutecada do seacuteculo XX que incorporaram um perfil a uma parte dos artistas de bonecos norte

americanos ndash e natildeo apenas norte americanos ndash que perdura ateacute nossos dias

Catin Nardi fundador e diretor artiacutestico da companhia Navegante de teatro de bonecos

define o que ele chama de marionetista como sendo ldquoum misto de ator diretor e artista

plaacutesticordquo (Nardi)38

De fato a explicaccedilatildeo de Nardi acompanha o entendimento do teatro de

animaccedilatildeo como sendo um processo de combinaccedilatildeo de meios expressivos ao menos no que se

refere agrave integraccedilatildeo entre criaccedilatildeo plaacutestica e criaccedilatildeo cecircnica Nardi explica

[] acho que tem um equiliacutebrio mesmo entre esses dois universos [da

construccedilatildeo e da apresentaccedilatildeo de bonecos] e satildeo dois universos inteiramente

diferentes [] porque na hora que vocecirc estaacute criando para construir

necessariamente vocecirc estaacute permanentemente pensando em cena [] Vocecirc

estaacute ali nesse universo de projeto de construccedilatildeo com uma finalidade teatral

cecircnica (Idem)

A imagem do artista de bonecos solitaacuterio e multicompetente estaacute de fato presente

com assiduidade na praacutetica e no pensamento ocidentais desde haacute muito tempo ainda que

longe de ocupar uma dominacircncia capaz de obliterar a consideraccedilatildeo de outras configuraccedilotildees

possiacuteveis para o artista de animaccedilatildeo Tillis recolhe a declaraccedilatildeo de um artista britacircnico David

Currel ldquoo marionetista eacute uma combinaccedilatildeo rara de escultor modelador pintor costureiro

eletricista carpinteiro ator escritor produtor desenhista e inventorrdquo (TILLIS apud Currel

38

Citaccedilatildeo extraiacuteda da entrevista que consta como anexo a esta tese

95

1987 p1) Entender esse tipo de artista ndash de funccedilatildeo artiacutestica ndash a partir de uma combinaccedilatildeo de

capacidades posta de modo a permitir tracircnsitos entre diferentes atividades e linguagens de

produccedilatildeo artiacutestica eacute algo que versa tanto a respeito do entendimento de um artista autocircnomo

no que toca a produccedilatildeo e gerenciamento de aspectos criativos e funcionais do evento teatral

quanto da forma como o teatro de animaccedilatildeo enseja e solicita a formaccedilatildeo de um artista que

consiga mostrar alguma operatividade multi e transdisciplinar de modo a atender as demandas

da proacutepria linguagem Cria-se assim o entendimento de um artista interessado e dedicado

ldquotanto agrave brincadeira propriamente dita quanto agrave sua preparaccedilatildeo e de seu espaccedilordquo39

Isto

permite a consideraccedilatildeo de que ldquopreparar o espaccedilo de jogordquo seria uma variaacutevel do proacuteprio

jogo Ou seja a animaccedilatildeo algo impossiacutevel de ser reduzida ao ato manipulatoacuterio do jogo de

apresentaccedilatildeo da forma diante do puacuteblico eacute algo que estaacute em operaccedilatildeo desde as suas etapas de

elaboraccedilatildeo

De fato se levarmos em consideraccedilatildeo a declaraccedilatildeo de Catim Nardi apresentada mais

acima deparamo-nos com a proposiccedilatildeo de um artista para o qual a integraccedilatildeo entre

linguagens e competecircncias eacute inerente ao proacuteprio meio de expressatildeo com o qual este lida Se

entendermos que segundo cremos estar contido nas palavras de Catim o teatro de animaccedilatildeo eacute

uma combinaccedilatildeo especiacutefica de linguagens expressivas cujo processo de criaccedilatildeo pode se dar

em provocaccedilatildeo muacutetua entre expressatildeo plaacutestica e expressatildeo cecircnica talvez seja liacutecito imaginar

o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco ou da forma animada como algueacutem capaz de

dinamizar estiacutemulos materiais e espetaculares e sobretudo de provocar um diaacutelogo

integrativo potente entre os aspectos expressivos contidos nos materiais e as qualidades

discursivas de estruturaccedilatildeo cecircnica

A discussatildeo eacute ampliada por meio daquilo que Alexandre Faacutevero fundador da Lumbra

Teatro de Animaccedilatildeo aponta como sendo as diferentes caracterizaccedilotildees do sombrista termo

por ele cunhado e desenvolvido para definir o artista dedicado agraves linguagem expressiva da

sombra de acordo com a linha de trabalho e pesquisa traccedilada por ele junto agrave Lumbra

eu posso dizer que existe o sombrista avanccedilado ou sombrista profissional

que eacute esse polivalente que eacute capaz de planejar uma obra de arte e executaacute-la

em todos os sentidos que isso possa abranger Depois tem os outros niacuteveis de

sombristas que eu considero que satildeo natildeo menores mas correspondentes ao

fazer teatral Entatildeo tem o sombrista teoacuterico que eacute o que especula que eacute o

que estuda que eacute o que busca na histoacuteria que coloca isso que traduz livros

que assiste espetaacuteculos que tem um senso criacutetico mas que no fundo no

fundo natildeo entende da mecacircnica da construccedilatildeo de um espetaacuteculo Depois a

39

Essa imagem resulta da adaptaccedilatildeo de uma frase semelhante dita pelo fundador da Companhia Caixa do

Elefante em um encontro entre a referida companhia e a PeQuod- Teatro de Animaccedilatildeo realizada em marccedilo de

2011 em Porto Alegre como parte do Projeto Rumos Itauacute Cultural A gravaccedilatildeo do debate que conteacutem a frase

consta nos anexos desta tese

96

gente pode passar para um outro tipo de sombrista que eacute um sombrista

curioso que aleacutem de pensar e se interessar ele experimenta coisas Ele pode

natildeo ganhar a vida com isso ele pode natildeo ser visto pelos outros como um

profissional mas ele experimentou ele testou ele brincou com isso Depois

tem um sombrista mais teacutecnico Ele entende o processo ele jaacute experimentou

ele consegue refletir ele tem referecircncias ele consegue criar de alguma

forma imagens complexas dentro dessa linguagem mas ele natildeo eacute capaz de

atuar Ele natildeo tem o trabalho ou talvez o interesse de se colocar em cena

em se expor como um ator da sombra E depois a gente vai ter entatildeo o

sombrista avanccedilado que eacute esse que consegue abarcar todas essas coisas E

se a gente tiver um ator que natildeo tenha algum desses aspectos do teoacuterico do

curioso do teacutecnico ele natildeo vai conseguir se desenvolver com uma

habilidade e uma performance adequada pelo menos hoje para trabalhar

dentro da nossa companhia Entatildeo eacute preciso ter essa soma de funccedilotildees

interesses habilidades e competecircncias para chegar num niacutevel onde eacute possiacutevel

criar uma obra de arte e se envolver em todos os aspectos (Faacutevero)40

Na declaraccedilatildeo de Faacutevero pelo menos trecircs questotildees satildeo caras agrave nossa discussatildeo A primeira

mais oacutebvia diz respeito agrave caracterizaccedilatildeo do que ele chama de ldquosombrista avanccediladordquo que se

daacute a partir da aquisiccedilatildeo de uma ldquopolivalecircnciardquo identificada natildeo apenas no tracircnsito entre

diferentes meios de expressatildeo mas na capacidade de engajar-se em todo o percurso de

criaccedilatildeo produccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de uma obra em teatro de sombras Na esteira da

caracterizaccedilatildeo da funccedilatildeo surge uma questatildeo que talvez a anteceda (ateacute mesmo no que essa

questatildeo se relaciona com o iniacutecio da presente discussatildeo) que eacute a da proacutepria necessidade que o

artista teve de cunhar um termo que definisse o artista em teatro de sombras O termo claro

estaacute se relaciona diretamente com o entendimento do teatro de sombras como sendo um meio

de expressatildeo em animaccedilatildeo que postula para si (ao menos segundo o entendimento de Faacutevero)

um conjunto de caracteriacutesticas de expressatildeo e teacutecnica que lhe sejam particulares Por fim

parece claro na declaraccedilatildeo de Faacutevero que a combinaccedilatildeo de competecircncias e possibilidades de

expressatildeo que caracterizam a polivalecircncia do ldquosombrista avanccediladordquo natildeo se restringem (ao

menos exclusivamente) agrave combinaccedilatildeo de uma discursividade plaacutestica com uma discursividade

cecircnica Nesse sentido e se podemos ampliar o entendimento expresso por Faacutevero para outras

modalidades de teatro de animaccedilatildeo (o que acreditamos ser cabiacutevel) parece mais adequado

supor que ao artista de animaccedilatildeo se supotildee uma atuaccedilatildeo transdisciplinar que natildeo se limita a um

cruzamento previsiacutevel entre a escultura e o teatro

40

Citaccedilatildeo extraiacuteda da entrevista que consta como anexo a esta tese

97

Figura 46 Steve Hansen (USA) Punch and Judy

Fonte AMARAL 1993 p 128

O marionetista como artista multicompetente e

responsaacutevel por todos os aspectos de criaccedilatildeo e

apresentaccedilatildeo

Figura 47 Cia Teatro Lumbra Saci Pererecirc a

lenda da meia noite

Fonte (httpwwwclubedasombracombr)

Foto Alexandre Faacutevero

O sombrista opera as formas e o equipamento da

apresentaccedilatildeo usando tambeacutem o seu corpo e

atuaccedilatildeo como matriz para as projeccedilotildees de sombras

Figura 48 Cia Navegante Teatro de Marionetes Musicircus (elaboraccedilatildeo e apresentaccedilatildeo de Catim Nardi)

Fonte (httpwwwatebemgcombr)

A elaboraccedilatildeo da apresentaccedilatildeo de um boneco se inicia jaacute nos processos de modelagem e definiccedilatildeo da

estrutura articular

98

No entanto natildeo se pode fechar os olhos para as manifestaccedilotildees de teatro de animaccedilatildeo

em que se divide e especializa funccedilotildees agraves vezes com grande detalhamento e sofisticaccedilatildeo O

exemplo mais evidente do que se afirma eacute sem duacutevida o bunraku (Figuras 50 e 51) A

separaccedilatildeo das suas funccedilotildees que obedece agrave estrita hierarquia natildeo se daacute apenas entre a equipe

encarregada da produccedilatildeo plaacutestica e os especialistas em apresentaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Haacute

divisotildees claras e riacutegidas mesmo dentro desses grupos maiores Eacute notoacuteria a divisatildeo que essa

forma de teatro japonesa estabelece entre os manipuladores dos bonecos que percorrem uma

trajetoacuteria longa de acuacutemulo de capacidades teacutecnicas e prestiacutegio desde a etapa de manipulaccedilatildeo

dos peacutes ateacute a mais honrada da cabeccedila do boneco passando pela manipulaccedilatildeo do braccedilo direito

e de personagens menores capazes de serem operados por apenas um manipulador Divisatildeo

mais criacutetica e evidente das funccedilotildees de representaccedilatildeo no bunraku se daacute no isolamento do

narrador que se apresenta num lugar separado do espaccedilo de representaccedilatildeo dos bonecos e

manipuladores e encarregando-se integralmente acompanhado pelo shemizen da

apresentaccedilatildeo vocal da narrativa e das vozes de todas as personagens do drama de origem

jocircruri Mesmo entre os construtores haacute riacutegida especializaccedilatildeo de funccedilotildees que encarregam

profissionais de partes especiacuteficas dos corpos dos bonecos e elementos de cena

Companhias mais recentes e afeitas a experimentaccedilotildees com a linguagem da animaccedilatildeo

usualmente dividem as funccedilotildees entre construtores e operadores das formas e haacute muito jaacute natildeo

eacute mais novidade a funccedilatildeo do encenador para o teatro de bonecos Aliaacutes pode-se afirmar com

grande seguranccedila que as caracteriacutesticas de forte visualidade e intercomunicaccedilatildeo entre

linguagens artiacutesticas e propostas figurativas observados em diversas companhias de animaccedilatildeo

fazem desse teatro um suporte proacutedigo para o desenvolvimento e a experimentaccedilatildeo da

encenaccedilatildeo como forccedila poeticamente propositiva Haacute mamulengueiros como Zeacute de Vina que

natildeo constroem seus bonecos Ganham ou compram de artesatildeos como Zeacute Lopes que por sua

vez constroacutei e apresenta o seu mamulengo41

Para buscar entender como essa variedade de funccedilotildees pode ter acompanhado o que se

supotildeem ser as transformaccedilotildees no modo de se fazer teatro de animaccedilatildeo no Brasil ao longo das

uacuteltimas deacutecadas foi feito um breve estudo de fichas teacutecnicas de algumas companhias

brasileiras dedicadas agrave linguagem Esse levantamento teve como objetivo tentar entender se

caracteriacutesticas de divisatildeo de tarefas e de nomeaccedilatildeo dos profissionais de animaccedilatildeo ao longo do

41

Os bonecos esculpidos para o mamulengo nordestino podem circular entre mestres ser vendidos emprestados

ou herdados A professora na UnB doutora Izabela Brochado no espetaacuteculo feito como parte da sua pesquisa

sobre formas e temas do mamulengo chamado Mariecircta a sabida usa em cena um boneco que lhe foi

presenteado por Mestre Sauacuteba A professora numa tentativa de recuperaccedilatildeo da origem do mesmo calcula que

tenha passado por outras matildeos de modo a possuir mais de 80 anos desde a sua confecccedilatildeo

99

Figura 49 Bunraku visatildeo do palco de bonecos mais o espaccedilo do narrador e do insstrumentista

Fonte Programa Bunraku Teatro Tradicional de Bonecos do Japatildeo

Foto Hisao Kawahara e Seisuke Miyake

Da esquerda para a direita vecirc-se os manipuladores (o mestre se veste de branco com a cabeccedila descoberta)

o gidayu (narrador) e o shemisen

Figura 50 Bunraku divisatildeo dos manipuladores

Fonte Revista PUCK ndash La marionnette et les autres arts Ano 3 no 7 Charleville-Meacuteziegraveres Institut

International de la Marionnette 1995

Da esquerda para a direita vecirc-se omozukai operador de cabeccedila e braccedilo direito (estaacutegio final de

treinamento) o ashizukai operador de peacutes e pernas (estaacutegio inicial) e o hidanzukai operador de braccedilo

esquerdo (estaacutegio intermediaacuterio)

100

Figura 51 Mestre Zeacute de Vina

Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil 2008

Foto Seacutergio Schnaider

Figura 52 Mestre Zeacute Lopes

Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil 2008

Foto Seacutergio Schnaider

Figura 53 Bonecos feitos por Mestre Zeacute Lopes

Fonte Curso de Teatro IARTEUFU

Foto Mario Piragibe

Personagens Praxeacutedio Caboclo de Pena e ldquoEspetorrdquo Peinha (alto) Pisa pilatildeo (mecanismo ao centro)

Violeiro Cobra Chibana e Velha (baixo)

101

tempo poderiam apontar para alteraccedilotildees no modo de entender e fazer teatro de animaccedilatildeo por

parte da companhias

Uma breve apreciaccedilatildeo de fichas teacutecnicas de espetaacuteculos das companhias Catibrum

Contadores de Estoacuterias Grupo Sobrevento e PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo revelaram maior

incidecircncia de diferenccedilas entre as equipes de confecccedilatildeo de bonecos e os elencos de atores

manipuladores do que convergecircncias ainda que essas existam parcialmente Dos grupos

verificados o que apresentou maior acuacutemulo de funccedilotildees foi a Catibrum de Belo Horizonte

que em seus primeiros espetaacuteculos (O dragatildeo que queria ver o mar ndash 1995 Andanccedilas ndash 1996)

discrimina funccedilotildees na ficha teacutecnica sem criar dissociaccedilotildees entre o elenco e a equipe de

confecccedilatildeo42

Em espetaacuteculos mais recentes a Catibrum pratica alternadamente a grafia de

equipes separadas a indicaccedilatildeo de que a confecccedilatildeo esteve a cargo do ldquoelencordquo e em seu

espetaacuteculo mais recente D Joatildeo inventa o Brasil de 2010 ndash num movimento bastante diverso

da praacutetica habitual da companhia as equipes estatildeo dividas com riqueza de especializaccedilatildeo

chegando a indicar responsaacuteveis pelos projetos dos bonecos pela criaccedilatildeo dos mecanismos

pela confecccedilatildeo pelo fabrico dos coletes de manipulaccedilatildeo ainda discriminando um elenco com

componentes que natildeo integram obrigatoriamente nenhuma das equipes encarregadas do

processo de construccedilatildeo dos bonecos e de suas mecacircnicas de movimentaccedilatildeo Cabe indicar

tambeacutem que a Catibrum dentre as companhias cujas fichas teacutecnicas foram estudadas eacute a

uacutenica que dedica uma entrada de sua lista de componentes ao elenco de bonecos

Os exemplos de maior separaccedilatildeo entre as equipes de apresentaccedilatildeo e construccedilatildeo foram

verificados em alguns espetaacuteculos do grupo Sobrevento como O Theatro de brinquedo de

1993 e Cadecirc meu heroacutei de 1998 Esses espetaacuteculos contaram com artistas especialmente

designados para a construccedilatildeo dos bonecos a serem usados na cena43

Em muitos casos no

Sobrevento a equipe de confecccedilatildeo eacute indicada de maneira elusiva ou sob forma resumida (O

Grupo) ou sob indicaccedilotildees ainda sutis tais como os indicativos de realizaccedilatildeo e concepccedilatildeo

(casos dos espetaacuteculos Bonecos Aqui Submundo e O anjo e princesa)

De modo mais geral o que se verificou nos casos estudados eacute a tendecircncia agrave divisatildeo

entre as equipes de construccedilatildeo de bonecos e de apresentaccedilatildeo mas tambeacutem se verifica a

incidecircncia de membros atuando em ambas a equipes criando trecircs diferentes qualidades de

envolvimento trabalho de acordo com a combinaccedilatildeo das duas funccedilotildees em questatildeo a do

42

A ficha teacutecnica do primeiro espetaacuteculo aponta apenas a equipe de confecccedilatildeo sem indicar os nomes do artistas

de manipulaccedilatildeo a do segundo indica os atores manipuladores (discriminados sobre a entrada elenco) sem no

entanto dedicar espaccedilo a indicar os confeccionadores dos bonecos 43

No primeiro caso a tarefa de desenhar as figuras do teatro de brinquedo foi de Gilson Motta e no segundo a

construccedilatildeo de bonecos de luva inspirados na modalidade chinesa foi do Mestre de mamulengo Sauacuteba

102

construtor e a do artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco permitindo ainda que alguns

elementos acumulem as duas funccedilotildees Frequentemente esses membros polivalentes satildeo

componentes fundadores ou tradicionais das companhias de teatro de animaccedilatildeo Natildeo eacute raro

que os diretores das companhias (isto foi verificado nos quatro exemplos levantados)

assumam em alguns trabalhos uma funccedilatildeo na equipe de construccedilatildeo

Esse raacutepido levantamento da divisatildeo de tarefas nas companhias de teatro de animaccedilatildeo

jaacute eacute suficiente para indicar o quanto a terminologia que se ocupa desses artistas eacute vaga O

levantamento natildeo daacute conta ndash e nem a isso se propotildee ndash de listar as especializaccedilotildees

contemporacircneas do trabalho no teatro de animaccedilatildeo mas buscar chamar atenccedilatildeo para a

ausecircncia no pensamento acerca do teatro de animaccedilatildeo de uma nomenclatura que decirc conta

das etapas de produccedilatildeo e apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo Isso talvez dificulte um pouco o trabalho

de pesquisa acerca das transformaccedilotildees da percepccedilatildeo e da funccedilatildeo do ator sobre a cena de

animaccedilatildeo Talvez permita ao pesquisador agir com menos cautela na proposiccedilatildeo de novas

terminologias (o que natildeo eacute a intenccedilatildeo deste trabalho) ou ainda auxilia-o a ter clareza da

verdadeira simplicidade escondida por traacutes da dificuldade em se conferir termos e descriccedilotildees

especiacuteficas a uma linguagem teatral que vem desde os iniacutecios do seacuteculo XX percorrendo um

trajeto rumo a uma crescente indissociaccedilatildeo do panorama mais geral do teatro

Se pensarmos no artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco em cena e sobretudo

para a funccedilatildeo que este desempenha o levantamento de fichas teacutecnicas do Grupo Sobrevento

pode revelar certas peculiaridades aleacutem de ensejar feacutertil discussatildeo Notaacutevel pela disposiccedilatildeo

em explorar diferentes formatos e estruturas de bonecos e formas animadas ao longo de seu

percurso o Sobrevento faz questatildeo nas listagens descritivas de seus espetaacuteculos de indicar

que propostas de animaccedilatildeo foram empregadas e combinadas em cada ocasiatildeo Isto desenha

um claro painel dos interesses de exploraccedilatildeo da variedade do teatro de animaccedilatildeo por parte da

companhia aleacutem de dimensionar o desafio aos quais seus membros se impotildeem O maior deles

eacute claramente o do desenvolvimento de competecircncias manipulativas que sejam satisfatoacuterias

diante da variedade de modos e teacutecnicas abordados Esse desafio eacute acompanhado pelo da

identificaccedilatildeo e reflexatildeo acerca da funccedilatildeo do inteacuterprete vivo sobre a cena de animaccedilatildeo

Percebe-se que a cada peccedila o grupo elege um termo para nomear o artista apresentador da

forma animada e que o termo escolhido iraacute buscar relacionar-se com a modalidade de

animaccedilatildeo empregada

Por exemplo nos espetaacuteculos Beckett e O Theatro de brinquedo os componentes do

elenco estatildeo identificados na ficha teacutecnica como interpretaccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Em ambos os

espetaacuteculos haacute alternacircncia de manipulaccedilatildeo agrave vista (no caso de Beckett manipulaccedilatildeo direta

103

sobre balcatildeo e em O Theatro de brinquedo uma variaccedilatildeo em escala ampliada da

manipulaccedilatildeo de figuras bidimensionais pintadas sobre cartatildeo) e atuaccedilatildeo realizada pelos

mesmos artistas encarregados pela operaccedilatildeo dos bonecos44

A ficha teacutecnica do espetaacuteculo

Cadecirc meu heroacutei Identifica os inteacuterpretes apenas sob a entrada manipulaccedilatildeo Isto se deve ao

fato de o espetaacuteculo empregar na maior parte do tempo a manipulaccedilatildeo de bonecos de luva

assemelhado aos da tradiccedilatildeo chinesa da proviacutencia de Jiang com operadores ocultos Ainda

que a peccedila apresente um epiacutelogo no qual os manipuladores saem detraacutes do aparato

cenograacutefico este se constitui num curto momento com fins de arremate conciliatoacuterio natildeo

podendo ser entendido como algo que descaracterize a escolha do grupo pelo emprego do

animador oculto para esse espetaacuteculo

Uma escolha como a feita pelo Sobrevento conduz a um tipo de indagaccedilatildeo semelhante

ao do momento anterior deste trabalho em que foi abordado o objeto animaacutevel Se

reconhecermos que aquilo a que se convencionou chamar teatro de animaccedilatildeo se monta sobre

uma unidade instaacutevel um ajuntamento complexo de formas e procedimentos que abriga

manifestaccedilotildees tatildeo distintas e discrepantes entre si chega um momento no trabalho de anaacutelise

em que uma escolha se faz necessaacuteria Esta se situaria entre a busca dos traccedilos distintivos

universais capazes de dar a reconhecer o teatro de animaccedilatildeo como modalidade ndash ou

linguagem ndash teatral e o entendimento de que se estaacute diante de uma coleccedilatildeo inconciliaacutevel que

natildeo oferece ao pesquisador uma oportunidade de estudo consistente que natildeo se faccedila senatildeo por

meio da separaccedilatildeo e do entendimento de cada manifestaccedilatildeo do que se convencionou chamar

teatro de animaccedilatildeo como se cada uma fosse uma modalidade espetacular sem relaccedilatildeo com as

demais

Esse problema estaacute presente no estudo dos dois elementos centrais da apresentaccedilatildeo em

animaccedilatildeo que satildeo o objeto animado e o artista operador As indagaccedilotildees que levam a

considerar o emprego e o significado de termos como boneco forma animada figura entre

outros satildeo afinal de natureza semelhante agravequelas que se deteacutem sobre se termos como

manipulador animador e operador satildeo apenas sinocircnimos ou se conteacutem significados proacuteprios

e se constituem em separaccedilotildees no entendimento e na praacutetica da apresentaccedilatildeo do boneco em

cena

De qualquer forma ainda que se reconheccedilam na busca pelas caracteriacutesticas geneacutericas

do teatro de animaccedilatildeo algo de redutor devido agrave proacutepria natureza desse esforccedilo natildeo parece a

44

O espetaacuteculo Beckett apresenta trecircs peccedilas curtas de Samuel Beckett sendo que apenas em O impromptu de

Ohio os atores se potildee em cena apartados da funccedilatildeo de operaccedilatildeo de bonecos que desempenham no dois

momentos anteriores Ato sem palavras e Ato sem palavras II

104

melhor escolha renunciar agraves caracteriacutesticas universais e buscar compreender a animaccedilatildeo como

uma linguagem teatral compreendida sob o vieacutes da variedade Primeiramente porque uma

tentativa de separar os tipos de animaccedilatildeo em formatos independentes redundaria em um

fracasso justificado por sua imensa diversidade e pelo constante cruzamento entre modos de

operaccedilatildeo e de construccedilatildeo cecircnico-dramatuacutergica verificado natildeo apenas nas vontades artiacutesticas

mais agrave vanguarda mas tambeacutem ndash e talvez sobretudo ndash nas invenccedilotildees e transformaccedilotildees que

podemos verificar nas suas manifestaccedilotildees associadas a tradiccedilotildees populares Em seguida e a

reboque do primeiro motivo devido agraves similitudes linguiacutesticas que nos satildeo dadas a perceber

pela proacutepria dinacircmica de intercacircmbios estabelecida entre as modalidades de teatro de

animaccedilatildeo Isto aliaacutes no leva a pensar nos caminhos percorridos pela animaccedilatildeo de formas ateacute

o ponto atual em que ao menos de acordo com as provocaccedilotildees colhidas no iniacutecio deste

trabalho cresce a dificuldade em se reconhecer distinccedilotildees claras entre forma e operador tanto

no que diz respeito a uma divisatildeo de funccedilotildees entre esses dois elementos sobre a cena quanto

no que tange aos seus proacuteprios limites fiacutesicos e sensiacuteveis

Portanto ainda que se reconheccedila que o artista de animaccedilatildeo ramifica-se em diversas

funccedilotildees que podem ou natildeo ser acumuladas pelo mesmo indiviacuteduo fica claro aqui que o

objeto do nosso estudo para este momento eacute aquele artista que se ocupa da apresentaccedilatildeo do

espetaacuteculo de animaccedilatildeo operando bonecos e formas animadas ou mesmo estabelecendo tipos

de relaccedilatildeo com a cena que natildeo supotildeem o ato manipulativo

Por esse motivo mesmo este trabalho acabou elegendo o termo operador para

designar o artista encarregado da apresentaccedilatildeo do boneco ou forma animada tanto aquele cuja

formaccedilatildeo e disposiccedilatildeo se concentra apenas no trabalho de apresentaccedilatildeo quanto ao artista de

competecircncias combinadas em situaccedilatildeo performativa Essa escolha se daacute com a consciecircncia de

que o termo conteacutem certa carga de impessoalidade e pouca relaccedilatildeo com o trabalho criador

artiacutestico mas se mostra eficiente ao evitar a carga de significaccedilatildeo existente em termos mais

consagrados de modo a permitir maior clareza no curso de raciociacutenio que emprenndo a partir

deste momento

Em um trabalho anterior apresentei o entendimento de que operador e forma

constituem sobre a cena uma estrutura muacuteltipla natildeo-complementar um organismo

performativo combinado (PIRAGIBE 2007) que desempenharia sobre a cena a funccedilatildeo do

ator O entendimento dessa funccedilatildeo tem por base algumas definiccedilotildees apresentadas por Patrice

Pavis (1998 2008) e Anne Ubersfeld (2005)45

O caraacuteter notadamente semioloacutegico das

45

Essa aproximaccedilatildeo do ator como funccedilatildeo tambeacutem se encontra apoiada na loacutegica empregada por Michel Foucault

ao tratar de autoria em uma aula inaugural chamada ldquoO que eacute um autorrdquo (2002)

105

anaacutelises desses autores aponta para o entendimento do ator como sendo uma funccedilatildeo

desempenhada sobre a cena teatral que apresenta relaccedilatildeo ativa no desenvolvimento da accedilatildeo

espetacular ao mesmo tempo em que articula com sua apresentaccedilatildeo as separaccedilotildees e

aproximaccedilotildees entre vida objetiva e vida imaginada Esse olhar que desobriga o entendimento

do ator como sendo um indiviacuteduo aponta para a proposiccedilatildeo de atores vistos como estruturas

corporais combinadas corpos parciais virtualidades e objetos Ainda a articulaccedilatildeo operada

pelo ator entre vida objetiva e vida imaginada (entre personagem e personalidade)

mencionada por Pavis como sendo um traccedilo fundamental da definiccedilatildeo de ator fornece a senha

para o entendimento de um ator de corpo desdobrado Claro as diversas maneiras de

relacionar forma animada e operador (oculto ou aparente) natildeo permitem que o

desdobramento corporal mencionado ocorra de modo dispor de maneira estrita e linear

funccedilotildees e elementos O objeto natildeo representa sempre a personagem de ficccedilatildeo nem o operador

faz obrigatoriamente agraves vezes do artista narrador nem mesmo essas ideacuteias podem ser

separadas com precisatildeo entre os componentes da estrutura performativa O que importa aqui eacute

a proacutepria dinacircmica de cisatildeo e combinaccedilatildeo corporal capaz de conduzir a plateia a percepccedilotildees

de ambiguidade simultacircnea o que Jurkowski chama de ldquoefeito de opalizaccedilatildeordquo (2000 pp35-

6)

Outra dualidade interessante verificada no teatro de animaccedilatildeo e que o entendimento

desse organismo combinado evoca eacute aquela que distingue a estrutura de origem do

movimento fonte criadora volitiva e autocircnoma da accedilatildeo do boneco de outro corpo cuja

percepccedilatildeo impressatildeo de autonomia e sentido cecircnico satildeo conferidos por influecircncia da vontade

e criaccedilatildeo deste primeiro Mais uma vez eacute necessaacuterio mencionar que nem sempre eacute possiacutevel

reconhecer com clareza os limites e separaccedilotildees entre esses corpos (admitindo que haja

separaccedilotildees e limites) Um exemplo oacutebvio eacute o do operador oculto que daacute a ver ao puacuteblico

apenas o boneco mas podemos mencionar mais uma vez as combinaccedilotildees corporais do Teatro

Hugo e Inecircs que usa os corpos dos operadores para construir seus bonecos e o trabalho de

Oichi Okamoto agrave frente do Don Doro Hyaki Puppet Theatre que operava um boneco em

tamanho real enquanto usava uma maacutescara com o intento de produzir sobre o espectador a

incerteza sobre qual seria o boneco qual o operador

Portanto ao postarmos nosso olhar sobre aquele que se encarrega da apresentaccedilatildeo no

teatro de animaccedilatildeo o que encontramos de fato eacute um artista diante de uma seacuterie de desafios em

termos de formaccedilatildeo e acuacutemulo de competecircncias dados os atravessamentos linguiacutesticos

possibilitados pela animaccedilatildeo contemporacircnea que ao considerar mais e mais a sua pluralidade

liguiacutestica as combinaccedilotildees materiais e a performance corporal do operador solicita a esse um

106

maior preparo mas que tambeacutem precisa ser entendido agrave luz da impressatildeo que sua

apresentaccedilatildeo produz sobre a plateia Parece que natildeo basta buscar entender o artista que se

apresenta em um contexto de teatro de animaccedilatildeo como um acumulador de competecircncias

pensaacute-lo a partir da uma capacitaccedilatildeo formal uma vez que esta natildeo se daacute com outro fito que

natildeo o de produzir certa variedade e qualidade de efeitos sobre a cena E se tais efeitos satildeo o

que de fato caracteriza a linguagem da animaccedilatildeo e identifica suas formas tradicionais e

transformaccedilotildees natildeo se pode ignorar a variedade de meios disponiacuteveis para alcanccedilaacute-los

Esse levantamento panoracircmico e um tanto apressado das fichas teacutecnicas jaacute eacute suficiente

para mostrar termos como manipulador animador e ator-manipulador sendo empregados

juntamente com generalizaccedilotildees tais como o mero emprego do termo elenco que parece

adequar-se a espetaacuteculos que lidam com o artista agraves vistas do puacuteblico na mesma medida em

que solicitam desse elenco competecircncias que natildeo se limitam agrave manipulaccedilatildeo de formas Assim

vemos companhias que buscam nomear seus artistas de apresentaccedilatildeo de modo a construir para

eles um campo de atuaccedilatildeo especiacutefico juntamente com companhias que exercitam alguma

aproximaccedilatildeo ao menos terminoloacutegica da funccedilatildeo do operador de formas com a do ator O

termo elenco eacute usado pela Pia Fraus que regularmente combina elementos de teatro de

animaccedilatildeo danccedila e teacutecnicas circenses Neste caso a escolha terminoloacutegica acompanha a

intenccedilatildeo por parte da companhia de produzir um ambiente espetacular multidisciplinar para o

qual a participaccedilatildeo do inteacuterprete natildeo revela uma competecircncia especiacutefica mas se daacute de um

modo ampliado e por vezes natildeo especializado46

Tillis opta por encerrar discussatildeo

46

Haacute que se reconhecer o caso especiacutefico da companhia Pia Fraus no que esta apresenta em termos de estrutura

empresarial Observa-se uma grande circulaccedilatildeo de elencos para os espetaacuteculos da companhia que lida com uma

estrutura capaz de apresentar o mesmo espetaacuteculo simultaneamente em lugares diferentes devido ao emprego de

diversos elencos Na entrevista que segue como anexo a esta tese o diretor Beto Andreetta fala de como a

companhia se empenha em determinar uma marca esteacutetica que seja independente da presenccedila em cena de

determinados artistas ldquoOnde eu natildeo estou a Pia Fraus estaacute igual [] Entatildeo despersonalisou eacute um modelo de

grupo Natildeo eacute muito usual no Brasil geralmente eacute mais personalizado A gente virou quase uma marca assim

quase um modo de fazer teatrordquo (ANDREETTA 2010) Isto se deve em grande parte agrave centralidade que os

objetos exercem em diversos dos espetaacuteculos da companhia e da dinacircmica de encenaccedilatildeo e operaccedilatildeo dos mesmo

que natildeo requer grande periacutecia Diversas companhias de teatro de animaccedilatildeo no Brasil acompanharam a tendecircncia

verificada no panorama brasileiro do teatro de grupos a partir da deacutecada de 1990 e se constituiacuteram como

coletivos suportados pela presenccedila e pela poeacutetica de um encenador que conferiam identidade a esses

ajuntamentos variaacuteveis de atores Como a Pia Fraus a companhia XPTO apresenta dinacircmica semelhante

funcionado em torno do esforccedilo criativo e das qualidades gregaacuterias do encenador Osvaldo Gabrieli Em ambos

os casos as identidades dos espetaacuteculos repousam bem mais sobre os objetos e a configuraccedilatildeo plaacutestica da cena do

que propriamente por meio da presenccedila de inteacuterpretes especiacuteficos No caso da Cia Lumbra dedicada ao teatro de

sombras eacute inegaacutevel a centralidade criativa de Alexandre Faacutevero ainda que este declare preocupaccedilatildeo e atenccedilatildeo

para a formaccedilatildeo de artistas competentes o suficiente para integrar os elencos de seus espetaacuteculos (FAacuteVERO

2011) Outro caso eacute o da Cia PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo que tal qual as mencionadas eacute criada e sustentada

em torno dos desejos artiacutesticos de seu diretor Miguel Vellinho mas que se vecirc diante de dificuldades quando

necessita substituir membros dos elencos de seu repertoacuterio pois que esses processos requerem um curva larga de

aprendizado especiacutefico nos modos manipulativos e a preocupaccedilatildeo com a queda de qualidade nos trabalhos eacute

verdadeira e constante

107

terminoloacutegica acerca do artista de apresentaccedilatildeo no teatro de animaccedilatildeo com a escolha do termo

operador para isolar a funccedilatildeo e diferenciaacute-la da evocaccedilatildeo agrave multicompetecircncia contida em

marionetista Este trabalho tem considerado tal opccedilatildeo apesar de entender que o termo eacute

redutor no que diz respeito agraves possibilidades teacutecnicas e poeacuteticas disponiacuteveis a esse artista que

trata de uma noccedilatildeo imprecisa de sua funccedilatildeo e atuaccedilatildeo

O emprego do termo generalizante elenco por parte natildeo apenas da Pia Fraus mas de

outras companhias como a PeQuod a Catibrum em fase mais recente e mesmo o emprego da

especificaccedilatildeo manipulaccedilatildeo e atuaccedilatildeo por parte do Grupo Sobrevento parece indicar ou

melhor reconhecer alguma semelhanccedila existente entre o trabalho do animador de bonecos e

formas e o trabalho do ator Se eacute possiacutevel reconhecer o crescente emprego de termos

generalizantes (elenco) ou de terminologias combinadas (ator-manipulador) para definir esse

artista natildeo se pode negar o quanto o emprego desses termos reconhece uma aproximaccedilatildeo

entre o operador de formas animadas e o ator de teatro Essa aproximaccedilatildeo embora bastante

evidente no ambiente multidisciplinar de aproveitamento contemporacircneo do operador posto agrave

mostra parece se dar nas diversas manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo

108

2322 Dois mirantes para o ator de animaccedilatildeo

Uma discussatildeo acerca dos entendimentos do artista de animaccedilatildeo como sendo um ator

jaacute se encontra presente nas vontades terminoloacutegicas recentes que cunha funccedilotildees tais como

ator manipulador ou ator bonequeiro O que se pretende nesse momento eacute verificar as

aproximaccedilotildees perceptivas e operativas dessas funccedilotildees de modo independente e anterior agraves

terminologias cunhadas para dar conta dos ambientes de multicompetecircncia contemporacircnea E

esta tentativa parte da consideraccedilatildeo de dois diferentes pontos de vista para a questatildeo Dois

locais de observaccedilatildeo que consideram respectivamente a funccedilatildeo e a presenccedila do artista sobre

a cena durante o proacuteprio ato da apresentaccedilatildeo e um entendimento do artista que se faz por

meio das competecircncias teacutecnico-linguiacutesticas que o qualificam para o exerciacutecio de suas

prerrogativas artiacutesticas e profissionais47

Esses dois lugares de observaccedilatildeo fornecem dados

para a postulaccedilatildeo de uma anaacutelise de caracteriacutesticas de atuaccedilatildeo presentes ou natildeo no trabalho do

operador de formas animadas

O primeiro desses mirantes eacute aquele do simples reconhecimento da presenccedila e da

influecircncia do artista sobre a cena Esse reconhecimento constroacutei o entendimento de que um

artista que participe de uma cena em teatro de animaccedilatildeo esteja ele oculto ou natildeo aos olhos do

puacuteblico desempenhando ou natildeo uma personagem em particular participando em maior ou

menor grau da operaccedilatildeo da forma preocupado mais ou menos com a apresentaccedilatildeo da

personagem ou com princiacutepios de operaccedilatildeo das formas possuindo formaccedilatildeo especiacutefica ou

natildeo estaraacute invariavelmente acionando em seu desempenho caracteriacutesticas proacuteprias de

atuaccedilatildeo

Para compreendermos melhor o que se afirma proponho que imaginemos trecircs

possibilidades distintas de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo na primeira delas vemos um boneco de

luva sendo mostrado do topo de uma empanada por um artista que o controla e eacute responsaacutevel

por sua vocalizaccedilatildeo O boneco tem uma voz que lhe eacute caracteriacutestica e volta e meia se refere

jocosamente agrave figura escondida atraacutes dos panos como algueacutem desagradaacutevel a quem este tem

que se submeter embora vez ou outra diga fazer o contraacuterio O segundo caso mostra trecircs

manipuladores atraacutes de um boneco de corpo inteiro que executa accedilotildees sobre um balcatildeo A

cena eacute silenciosa e cada um dos artistas ocupa-se exclusivamente de uma parte da anatomia do

47

Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado (PIRAGIBE 2007) proponho a compreensatildeo de um organismo

performativo combinado entre operador e forma como sendo a estrutura que desempenharia no teatro de

animaccedilatildeo a funccedilatildeo do ator teatral A discussatildeo posta aqui ainda que apresente uma seacuterie de pontos comuns

reporta-se ao ator como indiviacuteduo que desempenha uma funccedilatildeo especiacutefica sobre a cena teatral capaz de produzir

certa qualidade de impressatildeo diante do espectador e como repositoacuterio de caracteriacutesticas e competecircncias

performativas

109

Figura 54 Operador oculto Sesame Street (atriz Kathrin Mullen)

Fonte Revista Puppetry International no 10 Strafford UNIMA-US 2001 p 12

Os olhos atentos ao monitor permitem ao artista operador verificar os efeitos do seu desempenho em

trabalhos para cinema e televisatildeo

Figura 55 Operador aparente PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo Sangue Bom (atores da esquerda para a

direita Marise Nogueira Liliane Xavier Marcio Nascimento e Marcio Newlands)

Fonte (wwwsesibonecoscombr)

Foto Seacutergio Schnaider

Destaque para a expressatildeo da atriz ao centro (Liliane Xavier) que acompanha as reaccedilotildees esperadas para

a personagem animada Ainda que nem sempre seja desejaacutevel agrave cena o envolvimento da expressatildeo facial do

ator operador esta indica o esforccedilo de atuaccedilatildeo realizado de modo a impulsionar as reaccedilotildees no boneco

110

boneco Nenhum deles estabelece qualquer relaccedilatildeo direta com a cena fazendo o possiacutevel

para que suas participaccedilotildees sejam discretas o suficiente para natildeo desviar a atenccedilatildeo do puacuteblico

do boneco Por fim imaginemos um artista que dispotildee detraacutes de uma tela uma sequecircncia de

objetos projetados por um foco luminoso enquanto outro conta uma histoacuteria Desses objetos

muitos desempenham uma funccedilatildeo que poderiacuteamos entender como mais aparentada da

cenografia tal como silhuetas de paisagens transparecircncias com fundos de cenas mas tambeacutem

formas que caracterizam as personagens do conto que eacute narrado simultaneamente pelo outro

O primeiro dos casos apresenta um ator que natildeo se mostra em cena posto que estaacute

oculto atraacutes de uma empanada mas que se encontra engajado numa apresentaccedilatildeo cujos

recursos expressivos encontram-se divididos entre os atributos formais a potecircncia de

movimentaccedilatildeo e a teatralidade conjurada pelo boneco com a operaccedilatildeo o entendimento da

cena e do jogo com o puacuteblico e a voz desse ator A personagem que se apresenta natildeo eacute uma

construccedilatildeo nem o resultado de qualquer dos dois em particular mas o substrato do

acionamento de propriedades sensiacuteveis desse artista em sua relaccedilatildeo com a cena com os

espectadores e com o boneco (em seus aspectos simboacutelicos e materiais) O segundo caso

apresenta um esforccedilo manipulativo dividido entre trecircs operadores que por estarem agrave vista do

puacuteblico comportam-se de modo a direcionar a atenccedilatildeo do mesmo no sentido desejaacutevel aos

propoacutesitos da cena em questatildeo Sua participaccedilatildeo encaminha por mais discreta que seja

determinada leitura da personagem e da situaccedilatildeo da cena e a sua irrefutaacutevel visibilidade por

parte dos espectadores faz desse artista um componente inapelaacutevel da cena em exibiccedilatildeo Em

ambos os casos ainda que certas diferenccedilas possam ser percebidas natildeo se pode negar a

participaccedilatildeo desses artistas na construccedilatildeo e na apresentaccedilatildeo das personagens bem como o

fato de que a exposiccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo de suas interferecircncias eacute determinante na percepccedilatildeo das

cenas Esses artistas atuam isso natildeo se pode negar mas o fazem de modo a projetar

expressividade seja por esforccedilo solitaacuterio ou na conjunccedilatildeo com o trabalho de outros de modo

a complementar e qualificar a apresentaccedilatildeo do boneco Trata-se de um ator que natildeo usa a

forma para expressar-se mas que combina o seu esforccedilo com o de outros atores mais o

boneco no sentido de produzir uma apresentaccedilatildeo composicional O terceiro caso eacute mais

complexo uma vez que natildeo se pode entender na dinacircmica de troca ou de operaccedilatildeo de lacircminas

ou de silhuetas um esforccedilo solitaacuterio ou combinado de apresentaccedilatildeo de uma personagem

dramaacutetica Nossa compreensatildeo se constroacutei nesse caso por meio do reconhecimento de uma

atividade presente nos dois exemplos anteriormente mencionados mas ainda natildeo comentadas

e que talvez forneccedila dados mais soacutelidos para o entendimento das aproximaccedilotildees entre o ator e

o operador de formas animadas A participaccedilatildeo imediata e presencial de um operador de

111

formas que dispotildee personagens e encadeia diretamente os dados de uma determinada

narrativa o qualifica como uma espeacutecie de narrador que deve harmonizar a sua dinacircmica de

disposiccedilatildeo de quadros e figuras com a narrativa verbal mencionada A exibiccedilatildeo de uma figura

que desempenhe uma personagem na trama narrada o poraacute de imediato no mesmo patamar de

atuaccedilatildeo que os exemplos anteriores mas a disposiccedilatildeo de quadros e elementos fixos ou moacuteveis

que auxiliam a contar ou comentam a histoacuteria do narrador podem de acordo com a

complexidade dos elementos e o grau de interaccedilatildeo destes com a histoacuteria aproximar ou afastar

a sua participaccedilatildeo do que podemos entender como atuaccedilatildeo De qualquer forma eacute possiacutevel

identificar algumas caracteriacutesticas de narrador em seu desempenho o que podemos considerar

como algo que apresenta caracteriacutesticas claras de atuaccedilatildeo

Assim sendo ainda que natildeo possamos reconhecer certas qualidade especiacuteficas do

operador de formas em relaccedilatildeo ao ator natildeo se pode negar o reconhecimento certos pontos

comuns sobretudo no que diz respeito agrave qualidade de atuaccedilatildeo dos seus trabalhos e que se

ampliam agraves vista da audiecircncia que tenderaacute invariavelmente a entender como ator toda

presenccedila e participaccedilatildeo operativa sobre a cena

Esse modo de reconhecimento eacute semelhante agravequele que determina como boneco teatral

todo objeto visto pela plateia como tal natildeo importa se esta conteacutem caracteriacutesticas estruturais

que o identifiquem como boneco ou se obedece a descriccedilotildees preacutevias cunhadas por estudiosos

Os sentidos da plateia satildeo a chave de determinaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo chave essa que

amplia o seu alcance na consideraccedilatildeo dos modos de ocultaccedilatildeo do operador mas que retorna agrave

primeira proposiccedilatildeo na simples atestaccedilatildeo de que o operador se faz presente na forma que

opera

A outra aproximaccedilatildeo que norteia a discussatildeo acerca das caracteriacutesticas de atuaccedilatildeo

perceptiacuteveis no trabalho do artista de animaccedilatildeo se daacute pelo ponto de vista da formaccedilatildeo Esse

mirante eacute aquele que identifica um percurso formativo especiacutefico na constituiccedilatildeo do qual satildeo

elencados princiacutepios de treinamento e competecircncias operativas que satildeo particulares ao artista

de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo de modo a reconhecer princiacutepios que sejam comuns

aparentados ou totalmente especiacuteficos

A aproximaccedilatildeo formativa natildeo rivaliza com a aproximaccedilatildeo perceptiva natildeo satildeo de fato

leituras excludentes e ambas possuem legitimidade cada uma a seu modo No entanto a

aproximaccedilatildeo formativa impotildee a estudiosos e praticantes mais desafios e questotildees do que a

outra pois se situa no exato ponto de formulaccedilatildeo das questotildees praacuteticas mais delicadas quando

tratamos do campo ampliado do teatro de animaccedilatildeo que busca princiacutepios de entendimento e

112

Figura 56 Cia Teatro Lumbra Saci visto detraacutes da tela

Fonte (httpwwwclubedasombracombr)

Figura 57 Cia Truks E se as histoacuterias fossem diferentes (ator Henrique Sitchin)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

As imagens projetadas satildeo produzidas de modo diferente do teatro de sombras (projeccedilatildeo de filmagem da

mesa de trabalho do ator) ainda que se perceba uma personagem operada em sobra sobre a tela No

entantoeacute possiacutevel reconhecer na atividade de manipulaccedilatildeo das imagens sobre a mesa qualidades de

atuaccedilatildeo de relaccedilatildeo e de organizaccedilatildeo de discurso espetacular

113

criaccedilatildeo que sejam comuns agraves suas inuacutemeras manifestaccedilotildees ao mesmo tempo em que se

reconhece como campo de operaccedilotildees de transdisciplinaridade artiacutestica

Beltrame trata em sua tese de doutorado de questotildees relacionadas com aspectos

formativos do artista de formas animadas no Brasil Inicia apontando para o problema da

escassez de percursos formativos consistentes e consagrados para o artista de animaccedilatildeo no

Brasil resultando no entendimento de que a formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo se daacute no mais

das vezes dentro do de companhias por autodidatismo ou por meio de oficinas curtas que se

propotildeem a cobrir num curto espaccedilo de tempo uma gama ampla de competecircncias especiacuteficas

e complexas envolvendo aspectos de apresentaccedilatildeo e construccedilatildeo (BELTRAME 2001)

Beltrame complementa

Os cursos ou oficinas que se propotildeem a ensinar ldquoum pouco de tudordquo acabam

oferecendo um tipo de formaccedilatildeo rudimentar com pouca consistecircncia

Ensinando quase nada consolidam a visatildeo de que a profissatildeo do artista de

ator bonequeiro eacute pouco codificada e tem uma diversidade na definiccedilatildeo dos

postos podendo ser praticada por qualquer pessoa que tenha aprendido

alguns conhecimentos baacutesicos A passagem por um desses cursos jaacute permite

autoproclamar-se ldquoartistardquo (BOURDIEU 1996 p257) (BELTRAME 2001

p 49-50)

A necessidade que Beltrame identifica em se dar mais alternativas e consistecircncia agrave

formaccedilatildeo do artista de formas animadas no Brasil estaacute diretamente relacionada com a

preocupaccedilatildeo exposta na passagem citada expressa pelo professor da UDESC com a

qualidade dos trabalhos em animaccedilatildeo que se apresentam pelo Brasil e como muitas vezes a

linguagem eacute representada para puacuteblicos diversos muitos dos quais com poucas referecircncias

por meio de grupos de artistas pouco capacitados que se aproximam da linguagem com pouca

disposiccedilatildeo investigativa e apuro de construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo quase ausentes A isto se

acrescentam as participaccedilotildees pontuais de bonecos em espetaacuteculos teatrais na sua imensa

maioria destinada ao puacuteblico infantil que se datildeo sem qualquer atenccedilatildeo a princiacutepios baacutesicos de

construccedilatildeo e apresentaccedilatildeo do boneco teatral

A informalidade com que se trata questotildees de preparo e formaccedilatildeo dos artistas de

animaccedilatildeo o isolamento e a circunscriccedilatildeo do desenvolvimento de alguns trabalho a grupos

fechados natildeo raro pequenos nuacutecleos familiares e a ausecircncia de uma criacutetica e de uma esteacutetica

mais desenvolvida que busquem normalizar as praacuteticas e os pensamentos acerca do teatro de

animaccedilatildeo no Brasil ainda datildeo a ver uma linguagem pouco codificada e sujeita a ser

compreendida como fruto de uma artesania apressada e praacutetica de artistas pouco preparados48

48

Eacute fundamental que se mencione apesar da atualidade das declaraccedilotildees feitas que o panorama analisado por

Beltrame no ano de 2001 foi consideravelmente alterado desde entatildeo em grande parte por interferecircncia do

114

Natildeo se pode ignorar no entanto o quanto as iniciativas amadoras contribuem para a

sustentaccedilatildeo e o desenvolvimento da linguagem figurando sobretudo como ponto de partida

para o engajamento de profissionais em busca de consolidaccedilatildeo profissional e

aperfeiccediloamento Tambeacutem natildeo se pode ignorar que as estruturas nucleares de produccedilatildeo e

criaccedilatildeo em animaccedilatildeo satildeo mecanismos de garantia da variedade de formas e manifestaccedilotildees do

teatro de animaccedilatildeo que poderia sofrer algum tipo de abalo com a normalizaccedilatildeo e

sistematizaccedilatildeo dos pensamentos e praacuteticas envolvidas com a linguagem Natildeo se pode ignorar

tambeacutem o fato de que algumas das companhias mais inquietas e influentes do panorama

brasileiro atual (Catibrum Giramundo Contadores de Estoacuterias e Sobrevento para citar os

casos mais ceacutelebres) se originaram de nuacutecleos familiares ou se apoiam em algum niacutevel nessa

estrutura

Outra questatildeo bastante delicada eacute a da atribuiccedilatildeo de qualidade artiacutestica a trabalhos que

apresentam maior ou menor apuro teacutecnico Deve-se partir do entendimento de que a pesquisa

e o treinamento sistemaacuteticos podem dar a reconhecer iniciativas artiacutesticas cuidadosas seacuterias e

consolidadas por praacutetica e reflexatildeo mas natildeo eacute capaz de atribuir de modo inapelaacutevel a uma

apresentaccedilatildeo atributos de excelecircncia artiacutestica servindo mais como uma credencial de

intenccedilotildees do que a garantia de uma capacidade de agradar por subjetiva que esta uacuteltima se

configura Natildeo deixemos de lado tambeacutem que a defesa de que uma manifestaccedilatildeo artiacutestica

consolide seu espaccedilo em meio a um determinado panorama cultural e mercadoloacutegico

pressupotildee a criaccedilatildeo e a oferta de obras em quantidade e variedade mostrando diferentes

estaacutegios de apropriaccedilatildeo da linguagem e de intenccedilotildees artiacutesticas

Sendo assim faz-se necessaacuterio estimular o desenvolvimento da formaccedilatildeo do artista de

animaccedilatildeo e refinar a discussatildeo acerca da linguagem em acircmbito acadecircmico mas sem deixar de

reconhecer como parcela obrigatoacuteria desses estudos a variedade de manifestaccedilotildees da

linguagem e o empirismo dos processos autodidatas Um estudo que se proponha seacuterio no

sentido do levantamento de princiacutepios de formaccedilatildeo e treinamento para o artista de animaccedilatildeo

proacuteprio Beltrame Nota-se no ano de 2011 em comparaccedilatildeo com o quadro da deacutecada anterior a proliferaccedilatildeo de

cursos e profissionais de animaccedilatildeo figurando como professores e pesquisadores poacutes-graduados dentro de

instituiccedilotildees de ensino superior como satildeo os casos do professor doutor Valmor Beltrame e do professor

doutorando Paulo Balardim na UDESC da professora doutora Izabela Brochado na UnB da professora doutora

Adriana Schneider Alcure na UFRJ do professor mestre Miguel Vellinho na UNIRIO do professor mestre

Taacutecito Borralho na Universidade Federal do Maranhatildeo dentre outros Nota-se tambeacutem a criaccedilatildeo e a

consolidaccedilatildeo de festivais nacionais importantes dedicados agrave linguagem como satildeo os casos do FITB Festival

Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte produzido pela Cia Catibrum do SESI Bonecos do Brasil

e do Mundo e do Festival de Formas Animadas de Jaraguaacute do Sul promovido pela SCAR e pela UDESC que

comporta tambeacutem um seminaacuterio de estudos sobre teatro de formas animadas e que ensejou a criaccedilatildeo e

publicaccedilatildeo da revista Moacutein-moacutein de estudo de teatro de formas animadas

115

deve levar em consideraccedilatildeo o que se levanta por meio dos processos intuitivos de artistas

populares e das foacutermulas bem-sucedidas de formatos anteriores

Balardim conduz uma reflexatildeo que contrapotildee proposiccedilotildees dos estudiosos Dominique

Houdart e Franccedilois Lazaro49

naquilo que estes defendem acerca da necessidade da instituiccedilatildeo

de uma ldquogramaacuteticardquo para o trabalho em animaccedilatildeo Segundo Balardim ao passo que Lazaro

defende a instituiccedilatildeo de uma gramaacutetica traccedilada a partir da percepccedilatildeo Houdart chama a

atenccedilatildeo para um esforccedilo de codificaccedilatildeo teacutecnica e linguiacutestica que ultrapasse os limites de

manifestaccedilotildees consagradas por um olhar eurocecircntrico no sentido de buscar princiacutepios que

compreendam as diversas formas da animaccedilatildeo

Balardim tambeacutem diz que esses olhares natildeo se excluem mas reconhece que a simples

confrontaccedilatildeo das opiniotildees de Lazaro e Houdart datildeo luz a duas questotildees importantes sendo a

primeira o fato de que natildeo existe um meacutetodo formativo reconhecido para artistas de animaccedilatildeo

que contemple a variedade das suas manifestaccedilotildees e a segunda sendo justamente a dimensatildeo

do esforccedilo de generalizaccedilatildeo necessaacuterio para se cunhar um coacutedigo com tal abrangecircncia

Jaacute foi mencionado neste trabalho o quanto alguns formatos de animaccedilatildeo requerem um

processo de treinamento especiacutefico e longo sedimentando a compreensatildeo de que essa

formaccedilatildeo mais geneacuterica guardaria profundas relaccedilotildees com o levantamento dos ldquoprinciacutepios que

retornamrdquo da Antropologia Teatral Eacute licito neste ponto questionar se tal esforccedilo poderia de

fato contribuir para a organizaccedilatildeo de percursos formativos ou se ganharia contornos

geneacutericos em demasia para apontar com clareza procedimentos operativos

A necessidade de se lidar com princiacutepios de formaccedilatildeo mais amplos em suas aplicaccedilotildees

jaacute lanccedilou artistas e professores ao desafio de produzir relaccedilotildees apoiadas nas suas proacuteprias

experiecircncias Com vistas a entender elementos geneacutericos e especiacuteficos na atual compreensatildeo

dos processos de formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo no Brasil e de localizar como esses

processos situam as capacidades de atuaccedilatildeo dentro do trabalho do artista de aniaccedilatildeo passo

agora a tratar de duas dessas listagens pensadas feitas aplicadas e publicadas por brasileiros

a saber Paulo Balardim e Valmor Beltrame50

Primeiramente disporei lado a lado as duas listas organizadas apenas com os tiacutetulos

dos princiacutepios arrolados por ambos51

49

Colhida em Blog Intercacircmbio Caixa do Elefante e PeQuod lthttpwwwceartudescbr

ppgtpublicacoes_moinmoinhtmlgt Consulta feita em 20082011 50

Essas listagens encontram-se respetivamente em BALARDIM 2004 e BELTRAME 2009 51

Reconheccedilo que o estudo comparativo entre as duas listagens em relaccedilatildeo com praacuteticas de aula e processos

formativos de companhias enseja um estudo bem mais amplo e detalhado Parte desses esforccedilos estaacute sendo

ensaiada no trabalho de coordenaccedilatildeo de alunos bolsistas em Iniciaccedilatildeo Artiacutestica (bolsa PINAUFU) de

levantamento comparaccedilatildeo e criacutetica de princiacutepios formativos para o artista de animaccedilatildeo na elaboraccedilatildeo do

116

BALARDIM BELTRAME

Efeito retoacuterico

Decupagem de movimentos

Dissociaccedilatildeo de movimentos

Movimento eacute frase

Partitura de gestos e accedilotildees

Economia de meios

A teacutecnica do ator Subtexto

Neutralidade

Neutralidade

Eixos (interno e externo) Eixo do boneco e sua manutenccedilatildeo

Controle atencional Olhar como indicador da accedilatildeo

Desvio e foco de atenccedilatildeo Relaccedilatildeo frontal

Teacutecnica indutiva Foco

Triangulaccedilatildeo

Reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas

Respiraccedilatildeo do boneco

Contraste e intensidade

Hipertactibilidade

A comparaccedilatildeo e a criacutetica desses levantamentos de princiacutepios seria tatildeo interessante e

uacutetil a uma discussatildeo da formaccedilatildeo do artista de animaccedilatildeo quanto densa e demorada O que

empreendo neste momento eacute um breve apontamento e explicaccedilatildeo de toacutepicos selecionados com

vistas a perceber qualidades de atuaccedilatildeo no trabalho do artista de animaccedilatildeo sob a perspectiva

da abrangecircncia que norteia a construccedilatildeo das listas

As listas se encontram dispostas de modo a aproximar conceitos e princiacutepios que

sejam de alguma maneira aparentados Assim sendo ainda que natildeo corresponda agrave disposiccedilatildeo

original dos dois autores o termo neutralidade por exemplo encontra-se disposto na mesma

linha em ambas as tabelas ainda que refiram-se nas explicaccedilotildees de cada autor a conceitos

com algumas (poucas) diferenccedilas52

Ainda foram agrupados princiacutepios que segundo se

entendeu guardam maiores semelhanccedilas entre si (mesmo que em diversos casos perceba-se a

apresentaccedilatildeo de princiacutepios cujos conceitos satildeo muito proacuteximos ou desdobramentos de um

princiacutepio em dois ou mais na verificaccedilatildeo de uma lista para outra) Nesse estudo foram

deixados em destaque quatro princiacutepios ou dois grupos de princiacutepios aparentados53

O

curriacuteculo da disciplina que ministro no Curso de Teatro da UFU chamado Toacutepicos Especiais em Teacutecnicas

Artiacutesticas ndash Teatro de Formas Animadas e na estruturaccedilatildeo da metodologia do grupo de estudos sobre

expressividade com sombras corporais conduzido em parceria com a companhia teatral Trupe de Truotildees de

Uberlacircndia MG O que faccedilo aqui eacute levantar alguns aspectos que considero mais relevantes agrave indagaccedilatildeo que

conduz este momento do trabalho 52

A questatildeo da neutralidade para o artista de animaccedilatildeo eacute comentada em maior profundidade no capiacutetulo seguinte

desta tese no subtiacutetulo ldquoO foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituaisrdquo 53

Compreendo que outros princiacutepios que natildeo foram destacados seriam uacuteteis ao ponto de discussatildeo apresentado

tais como efeito retoacuterico ou partitura de gestos e accedilotildees Mas atenho-me aos escolhidos pelo bem de uma clareza

de comunicaccedilatildeo de fluecircncia de leitura e por consideraacute-los suficientes para o ponto que aqui se apresenta

117

primeiro grupo diz respeito agrave linha que dispotildee respectivamente a teacutecnica do ator na listagem

de Balardim e subtexto na de Beltrame Os princiacutepios expostos aderem na simples menccedilatildeo

dos termos que os nomeia a defesa da existecircncia de profundas semelhanccedilas teacutecnicas entre a

atuaccedilatildeo e a operaccedilatildeo de formas e bonecos seja na atestaccedilatildeo direta feita por Balardim do

emprego de uma teacutecnica de atuaccedilatildeo54

quanto no acionamento feito por Beltrame de um termo

que nomeia um princiacutepio capital para o estudo da atuaccedilatildeo realista sendo ldquouma criaccedilatildeo interna

do atorrdquo (BELTRAME 2009 p 293) Curiosamente as definiccedilotildees contextuais dos termos

apresentados por Beltrame e Balardim acabam justamente por apontar questotildees especiacuteficas do

trabalho com animaccedilatildeo como o entendimento expresso por Balardim de que a atuaccedilatildeo com o

objeto eacute o resultado de um esforccedilo de projeccedilatildeo de expressividade que combina a accedilatildeo direta

do ator com a avaliaccedilatildeo dos efeitos expressivos que a apresentaccedilatildeo da forma animada produz

sobre a percepccedilatildeo do puacuteblico que percebe a atuaccedilatildeo por meio da maneira como o ator faz o

boneco representar ou melhor atua junto com o boneco Para Beltrame o trabalho com o

subtexto estaacute diretamente relacionado agrave potecircncia discursiva do gestual do boneco que eacute capaz

de suplantar em constacircncia e relevacircncia o seu discurso verbal Eacute verdade que o mesmo pode

ser dito acerca da expressividade do ator vivo mas natildeo se pode negar que a boneco ou forma

animada se constitui numa caso especial posto que a sua discursividade gestual natildeo emana

apenas da reproduccedilatildeo do gestual humano mas das suas possibilidades especiacuteficas de

deslocamento e articulaccedilatildeo Nesse sentido entendemos a existecircncia de uma discursividade

gestual que eacute especiacutefica e proacutepria ao boneco teatral fazendo do subtexto como apresentado

por Beltrame em seu contexto particular uma caracteriacutestica que afirma a especificidade da

linguagem da animaccedilatildeo

A dupla seguinte de princiacutepios relacionados a respiraccedilatildeo do boneco na lista de

Berltrame e reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas na relaccedilatildeo de Balardim tratam de recursos e

atenccedilotildees que contribuem para causar impressatildeo de autonomia ontoloacutegica do boneco em

relaccedilatildeo ao artista que o opera A discussatildeo de Balardim eacute ampliaacutevel a variados recursos de

produccedilatildeo de impressatildeo de vida independente ao boneco ao passo que Beltrame encontra na

respiraccedilatildeo o elemento principal que iraacute nortear essa atenccedilatildeo A discussatildeo de Beltrame

identifica de modo claro a reproduccedilatildeo do movimento da respiraccedilatildeo como um recurso

fundamental para a jaacute mencionada transferecircncia de expressividade que pauta a atuaccedilatildeo com o

boneco pois que emoccedilotildees podem ser atribuiacutedas a uma determinada personagem por meio do

ritmo e da intensidade com que esta parece respirar (BELTRAME 2009 p 294) mas se

54

ldquoAo desejar que o puacuteblico creia haver vida onde natildeo haacute o ator-manipulador passa a representar com o seu

corpo a vida do objeto inanimadordquo (BALARDIM 2004 p84)

118

refere tambeacutem agrave respiraccedilatildeo como um recurso de integraccedilatildeo entre a apresentaccedilatildeo do boneco e a

atuaccedilatildeo do operador Ainda que natildeo se trate de um exerciacutecio de imaginaccedilatildeo muito exigente

aquele que parte da afirmaccedilatildeo de que haacute diversos bonecos objetos e formas que natildeo imitam

em suas apresentaccedilotildees a respiraccedilatildeo humana por meio de uma constante ritmada e sutil

ampliaccedilatildeo e recolhimento da provaacutevel caixa toraacutexica pode-se perfeitamente entender essa

respiraccedilatildeo como indicativo geneacuterico para toda sutil aplicaccedilatildeo de tensatildeo e alteraccedilatildeo de estado

no objeto de modo a fazer supor nele a presenccedila de uma vitalidade proacutepria O percurso de

Balardim escolhe abordar a questatildeo da reproduccedilatildeo das funccedilotildees bioloacutegicas ndash das quais o ato

de respirar figura entre as principais ndash a partir do entendimento de que a impressatildeo de vida

autocircnoma natildeo se produz por meio de qualquer movimento mas de um movimento

qualificado capaz de auxiliar a uma percepccedilatildeo caracteriacutestica da forma animada

O movimento do objeto animado deve ser portador de uma intenccedilatildeo (desejo

accedilatildeo) consciecircncia (um olhar que segue um movimento) ou um miacutenimo de

vida bioloacutegica (respiraccedilatildeo) O movimento associado agrave vida eacute imperativo

(BALARDIM 2004 p 105)

Em que pese o questionamento feito por este estudo acerca do movimento e da sua devida

conceitualizaccedilatildeo para o teatro de animaccedilatildeo salta aos olhos no trecho de Balardim a

participaccedilatildeo do artista de operaccedilatildeo de formas como uma forccedila autocircnoma criativa e disponiacutevel

ao jogo relacional com o boneco e com a cena

Esse exerciacutecio de anaacutelise por curto que possa parecer se presta a esclarecer que o

acionamento de propriedades de atuaccedilatildeo por parte de artistas de animaccedilatildeo natildeo eacute acidental

circunstancial ou mesmo uma invenccedilatildeo das recentes derrubadas de barreiras entre

modalidades espetaculares Trata-se de um recurso presente e inalienaacutevel ao trabalho e agrave

apreciaccedilatildeo do jogo do artista de animaccedilatildeo

Por outro lado o reconhecimento da existecircncia de princiacutepios e recurso que satildeo

especiacuteficos da linguagem ndash e das linguagens ndash de animaccedilatildeo nos modos de percepccedilatildeo e nos

percursos formativos desses artistas o identificam natildeo como um ator mas como um tipo

determinado de ator capaz de acionar competecircncias de atuaccedilatildeo em atendimento agraves demandas

de uma cena composta e plural Cariad Astles avalia essa demanda sob a perspectiva de que

o teatro de bonecos tem sido visto mais como uma aptidatildeo extra no curriacuteculo

do ator do que como um campo do bonequeiro especialista e o que eacute visto

como teatro de bonecos na cena eacute cada vez menos definido (ASTLES 2008

p 54)

A leitura mais precisa seria aquela que se faz a partir do entendimento de que o artista

desse teatro de animaccedilatildeo que sobrepotildee linguagens e busca acompanhar as tendecircncias de

pluralidade de meios das artes do seu tempo natildeo amplia seu cabedal de competecircncias e

119

funccedilotildees nem adquire um parentesco mais aproximado com o ator teatral como resultado de

uma transformaccedilatildeo no seu estatuto fundamental mas sim tem essas caracteriacutesticas

intemporais tornadas mais visiacuteveis por obra das transformaccedilotildees verificadas na cena de

animaccedilatildeo

Isto equivale dizer que mesmo que natildeo seja possiacutevel perceber um padratildeo de

comportamento e formaccedilatildeo do artista de apresentaccedilatildeo do teatro de animaccedilatildeo (manipulador

animador ou operador) natildeo se pode negar a existecircncia de qualidades e competecircncias de

atuaccedilatildeo no exerciacutecio de sua funccedilatildeo natildeo importa o quanto essa funccedilatildeo possa estar ou natildeo

adequada a paracircmetros de excelecircncia em desempenho

Se no iniacutecio do seacuteculo XX foi percebida no teatro ocidental a proliferaccedilatildeo de meacutetodos

de treinamento e escolas de formaccedilatildeo para atores bem como de teorias sobre o ator que

fizeram conviver entendimentos variados sobre a sua funccedilatildeo e formaccedilatildeo descrevendo um

percurso de ampliaccedilatildeo na quantidade e variedade de propostas daquilo que se entende como

sendo o ator teatral parece um tanto deslocada a ideacuteia de que o artista de animaccedilatildeo seria uma

outra espeacutecie de artista a partir do argumento de que este lidaria com alguns princiacutepios de

formaccedilatildeo e treinamento diferenciados

Reconhecer o artista de animaccedilatildeo como ator eacute sobretudo atentar para a sua

capacidade de produccedilatildeo de presenccedila e sentido sobre a cena teatral e reconhecer o caraacuteter de

atuaccedilatildeo em sua apresentaccedilatildeo ainda que esta ocorra em favor de conferir relevacircncia cecircnica a

outros elementos

Talvez agora possamos nos reaproximar da questatildeo que abriu este capiacutetulo com

clareza ampliada Quanto agrave pergunta de Jacques Feacutelix sobre se somos ainda marionetistas

parece claro que essa resposta jamais deixaraacute de ser afirmativa ainda que necessite ser

verificada agrave luz das transformaccedilotildees percebidas no proacuteprio estatuto da marionete e por

conseguinte da cena de animaccedilatildeo Parece que mesmo marionetistas somos atores por sempre

havermos sido e como tal afirmamos essa funccedilatildeo no sentido em que construiacutemos uma

apresentaccedilatildeo feita em diaacutelogo com o material Natildeo no sentido de comunicar por meio do

material mas comunicar juntamente com ele As transformaccedilotildees sofridas no estatuto da forma

animada e da cena de animaccedilatildeo exigem do artista que o apresenta a busca por novas formas

de relaccedilatildeo com o objeto natildeo para que este possa assumir novas funccedilotildees mas como resposta a

uma demanda encaminhada pelo proacuteprio material e suas possibilidades expressivas

120

3 ATOR E OBJETO TOPOGRAFIA DE UM CAMPO DE BATALHA

Nosso teatro de bonecos pode ter cenaacuterio figurino e

iluminaccedilatildeo

Ou natildeo

Pode ter teacutecnicos e direccedilatildeo

Ou natildeo

Como o teatro de atores

Ao contraacuterio do teatro de atores poreacutem pode natildeo ter atores

Ou natildeo

Grupo Sobrevento55

Passemos a partir deste momento a analisar questotildees relativas agraves tensotildees e

transformaccedilotildees percebidas nos tipos de relaccedilotildees que podem existir em cena entre o artista de

animaccedilatildeo e o boneco A arte da animaccedilatildeo com suas inserccedilotildees diversas nos contextos teatrais

mais variados sempre permitiu que se estabelecessem diferentes acordos relacionais entre

operador e objeto Tais acordos tem seus fundamentos e resultados cecircnicos apoiados nos

modos como esses dois elementos satildeo dados a perceber e dividem a atenccedilatildeo do puacuteblico sobre

a cena Uma maneira bastante objetiva de organizar os diferentes modos de apresentaccedilatildeo

conjunta de ator e marionete pode se dar sob o pretexto de uma ilustraccedilatildeo que conduza a uma

discussatildeo mais pormenorizada Portanto comecemos imaginando que haacute dois grandes grupos

de modos de apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo um onde o manipulador se encontra oculto das vistas

da plateacuteia e outro no qual o puacuteblico pode seja por impositivos teacutecnicos ou escolhas artiacutesticas

apreciar o trabalho do manipulador e incorporar essa percepccedilatildeo agrave totalidade do espetaacuteculo

Tal divisatildeo isso precisa ficar claro eacute arbitraacuteria circunstancial e natildeo eacute acompanhada por

outras chaves taxonocircmicas empregadas para o estudo do teatro de animaccedilatildeo tais como

formas materiais modos de operaccedilatildeo movimentaccedilatildeo e qualidades discursivas Sua escolha eacute

mais uma ferramenta argumentativa do que propriamente uma tentativa de classificaccedilatildeo

Como ponto de entrada para o estudo das possibilidades relacionais entre manipulador e

objeto a escolha por esta divisatildeo se daacute na esperanccedila de construir um raciociacutenio que a

desmonte ndash a classificaccedilatildeo ndash de dentro para fora mostrando suas inconsistecircncias e

impossibilidades mas montando um percurso reflexivo consistente no caminho

Pode-se supor portanto que um manipulador atraacutes de um pano ou de qualquer outra

estrutura de ocultaccedilatildeo estaacute trabalhando com a intenccedilatildeo de permitir ao boneco assumir a

centralidade da cena anulando aos sentidos da audiecircncia a sua participaccedilatildeo e contribuindo

assim para que se instaure mais facilmente uma impressatildeo de vida autocircnoma para o boneco

Ainda que seja comum a compreensatildeo de que a tendecircncia da ocultaccedilatildeo do manipulador por

55

Programa O teatro do Sobrevento

121

Figura 58a Manipulaccedilatildeo oculta inferior com bonecos de luva e de vara

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

Figura 58b Manipulaccedilatildeo oculta superior com boneco de tringle (bengala) + fio e com boneco de fio

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

122

Figura 58c Formas de manipulaccedilatildeo teatro negro fantoche com cabeccedila boneco habitaacutevel e manipulaccedilatildeo

com os peacutes africana

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

Figura 58d Formas de manipulaccedilatildeo boneco sobre balcatildeo e manipulaccedilatildeo direta boneco sobre balcatildeo com

varas bonecos de ventriacuteloquo de boca articulada com gatilho e sem gatilho

Fonte Encyclopeacutedie mondiale des arts de la marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

Ilustraccedilotildees Marcel Violette

123

traacutes de empanadas janelas e panos se identifica com as mais remotas tradiccedilotildees do teatro de

bonecos tal recurso nunca se configurou de fato num elemento unificador da performance

com teatro de bonecos anterior agraves uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XIX56

(Aliaacutes recordemo-nos

que de acordo com Steve Tillis natildeo haacute um traccedilo teacutecnico ou estiliacutestico capaz de normalizar o

que se compreende por teatro de bonecos) Se decidirmos ampliar nosso olhar para aleacutem de

formas consagradas na Europa em periacuteodos posteriores aos iniacutecios do seacuteculo XVII (e

precisamos fazecirc-lo pelo bem de um entendimento mais amplo) eacute possiacutevel mencionar agrave guisa

de uma raacutepida ilustraccedilatildeo os chamados marionetes de prancha (ou agrave la planchette) (Figuras

60a e 60b) que executavam alguns movimentos simples por meio de um fio preso agrave perna do

manipulador que precisava ter as matildeos livres para tocar o instrumento que produziria a

muacutesica que embalaria o quadro ou que guiaria a danccedila dos bonecos presos a uma pequena

prancha de madeira tendo o referido fio atravessado em seu corpo de modo a produzir sua

movimentaccedilatildeo Tillis nos oferece uma descriccedilatildeo de teatros de sombras javaneses e tailandeses

nos quais natildeo apenas eacute permitido ao puacuteblico posicionar-se na parte posterior da tela de

projeccedilatildeo como em alguns casos os proacuteprios bonecossilhuetas57

satildeo manipulados diante da

tela de sombras dando a ver consequumlentemente os seus operadores Haacute ainda outro tipo de

exemplo que nos eacute uacutetil no sentido em que nos ajuda a compreender como certos processos de

apresentaccedilatildeo dos bonecos em cena satildeo capazes de ampliar a proacutepria noccedilatildeo de animaccedilatildeo

Trata-se de entender que a interpretaccedilatildeo vocal seja esta por meio de atribuiccedilatildeo direta de uma

voz ao personagem representado pelo boneco seja pela apresentaccedilatildeo de uma narrativa para a

qual os bonecos servem de ilustraccedilatildeo ou comentaacuterio se configura num modo de identificaccedilatildeo

do boneco como partiacutecipe ativo da cena teatral Assim sendo eacute possiacutevel recorrer a pelo

menos dois outros exemplos que seriam o do bunraku que dispotildee o narrador num espaccedilo

especiacutefico do edifiacutecio teatral de modo a que a apreciaccedilatildeo de sua recitaccedilatildeo da narrativa jocircruri

acompanhada pelo shamisen possa ser combinada agrave das accedilotildees dos bonecos A famosa

passagem de Don Quixote58

(Figura 62) na qual o Cavaleiro da Triste Figura investe contra

uma apresentaccedilatildeo de bonecos descreve um retaacutebulo um tipo de apresentaccedilatildeo na qual

56

Se quisermos compreender a aproximaccedilatildeo de alguns elementos chave das vanguardas artiacutesticas europeacuteias

desse periacuteodo como um evento importante para o desencadeamento de transformaccedilotildees e intercacircmbios que se

percebem ainda hoje na linguagem da animaccedilatildeo de formas 57

Tais elementos satildeo em geral feitos e manuseados de modo a que o que se apresenta para o puacuteblico natildeo eacute ao

menos em uma primeira apreciaccedilatildeo o objeto mas sua projeccedilatildeo em sombra sobre uma tela Haacute discussotildees sobre

se o objeto manuseado entre a fonte de luz e a tela poderia ser considerado um boneco jaacute que o que se apresenta

eacute transformado pela influecircncia da luz e da superfiacutecie de projeccedilatildeo Nos casos descritos por Tillis a discussatildeo se

adensa uma vez que o posicionamento do puacuteblico por todos os lados da tela permite que se aprecie tambeacutem a

apresentaccedilatildeo do objeto manipulado e natildeo apenas da sua sombra projetada 58

Segunda Parte capiacutetulos XXV e XXVI (SAAVEDRA 2005 pp330-59)

124

pequenas figuras com movimentos limitados (algo semelhantes agraves figuras bidimensionais do

teatro de brinquedo)

Figura 59a Marionete ldquoagrave la planchetterdquo

italiana

Fonte BOEHN 1972 p 57

Gravura de J Dumont 1739

Figura 59b Marionete ldquoagrave la planchetterdquo

Fonte BOEHN 1972 p 58

Gravura francesa anocircnima aprox 1800

Figura 60 Teatro de bonecos Alemanha seacuteculo XVIII

Fonte BOEHN 1972 p 60

Figura 61 Don Quixote destroacutei o teatro

de bonecos

Fonte BOEHN 1972 p 63

Gravura de uma ediccedilatildeo francesa do livro

seacuteculo XVIII

125

satildeo apresentados dentro de uma caixa decorada com uma das faces abertas enquanto um

narrador posicionado diante do puacuteblico conta (ou canta) a histoacuteria para a qual os quadros

moacuteveis feitos pelos bonecos servem de ilustraccedilatildeo

Deve estar claro que o recurso da ocultaccedilatildeo do operador de bonecos natildeo pode ser

entendido como indicativo de praacuteticas superadas de arraigamento a valores retroacutegrados ou

mesmo como algo que impeccedila o desenvolvimento e a apresentaccedilatildeo de relaccedilotildees interessantes

entre ator e boneco De fato a ocultaccedilatildeo do ator ndash por diversos motivos ndash natildeo impede a sua

participaccedilatildeo na cena

Paulo Balardim tem algo a dizer a esse respeito

Agraves vezes o perceptiacutevel natildeo eacute visto mas sentido de outra forma Da mesma forma

o ator-manipulador oculto muitas vezes passa a ser mais percebido do que o

proacuteprio objeto visiacutevel mesmo encoberto pela escuridatildeo tapadeiras negras ou uma

tela de sombras O que ocorre eacute que natildeo basta para neantizar a proacutepria presenccedila

ocultar-se visualmente (BALARDIM 2004 p89)

Balardim prossegue referindo-se agrave importacircncia do trabalho de neutralizaccedilatildeo da expressividade

do operador de bonecos como fundamento importante para a sua formaccedilatildeo59

Com isto define

esse modo de aparecer mesmo estando oculto como sendo o resultado de uma imprecisatildeo

teacutecnica A passagem natildeo permite ignorar no entanto que da mesma forma como um

manipulador oculto pode ser percebido pela plateacuteia por meio de imprecisotildees de postura e

teacutecnica manipulativa este pode ser dado a ver por meio de escolhas poeacuteticas Eacute um recurso

usual em algumas companhias como por exemplo a Truks e a Morpheus Teatro60

(Figuras 63

e 64) o estabelecimento de um diaacutelogo entre o boneco e os seus manipuladores muitas vezes

o proacuteprio ator ou atriz que vocaliza a personagem No espetaacuteculo para crianccedilas Peacutes descalccedilos

da Morpheus Teatro os personagens principais satildeo duas crianccedilas que brincam numa caixa de

areia Florecircncia e Rodolfo representadas por bonecos Esses bonecos interagem com os atores

em momentos como o da entrada do menino Rodolfo que vem carregado no colo por uma

atriz que dialoga com ele assumindo a personagem da sua matildee (o boneco eacute vocalizado por

outro ator) mas haacute outra maneira de interaccedilatildeo que aborda diretamente a manipulaccedilatildeo dos

59

Em um encontro entre as companhias PeQuod e Caixa do Elefante realizado entre os dias 7 e 13 de marccedilo de

2011 em Porto Alegre como parte do projeto Itauacute Cultural Balardim declarou estar revendo tal consideraccedilatildeo

preferindo no momento aproximar-se da questatildeo da neutralidade a partir do conceito de foco como este eacute

empregado para descrever propriedade teacutecnicas do manipulador Mais a esse respeito ainda seraacute dito neste

capiacutetulo 60

Esta segunda foi criada a partir de um desdobramento da Truks quando o ator Joatildeo Arauacutejo comeccedilou a

trabalhar em 2002 num um projeto solo que posteriormente tonou-se o espetaacuteculo O princiacutepio do espanto

Atualmente a companhia conta com outros integrantes que anteriormente foram da Truks como eacute o caso de

Verocircnica Gerchman

126

bonecos quando os bonecos se reportam aos operadores diretamente solicitando objetos e

fazendo comentaacuterios

Os efeitos de metateatralidade possiacuteveis com esse recurso satildeo diversos como ocorre

na cena final de Filme Noir da companhia PeQuod em que o personagem Detetive percebe

os manipuladores que o seguram e luta em vatildeo para livrar-se das matildeos que o conteacutem e o

movimentam Outro espetaacuteculo que apresenta um momento semelhante eacute O princiacutepio do

espanto que constroacutei uma sequumlecircncia tocante da descoberta do operador por parte do boneco

(Figura 65) Desta forma nos encaminhamos tambeacutem para a percepccedilatildeo de posturas em cena e

procedimentos de

atuaccedilatildeo suplantam os aparatos teacutecnico-cenograacuteficos no que toca a sua participaccedilatildeo na cena

O trabalho do manipulador a movimentaccedilatildeo do boneco a vocalizaccedilatildeo o uso do espaccedilo dos

ritmos e da representaccedilatildeo das personagens e situaccedilotildees faz com que este se insinue sobre a

cena fazendo do boneco um meio de percepccedilatildeo de sua presenccedila O manipulador se faz

presente na accedilatildeo do boneco e essa presenccedila eacute parte indissociaacutevel da apresentaccedilatildeo

Isto natildeo quer dizer entretanto que o boneco eacute pouco mais que um canal de expressatildeo

para o ator que o apresenta Natildeo eacute correto entender que a interpretaccedilatildeo do manipulador se daacute

de modo a usar o boneco como um apoio ou trampolim para a sua expressatildeo Felisberto

Sabino da Costa declara que ldquono teatro de animaccedilatildeo a comunicaccedilatildeo que se estabelece com a

plateacuteia eacute intermediada pelo objeto ao passo que no teatro de ator natildeo haacute tal elemento de

intermediaccedilatildeordquo (COSTA 2001 p12) e Joseacute Parente escreveu que ldquoo que diferencia o ator do

ator-manipulador ou ator-bonequeiro eacute que enquanto o primeiro encarna ele mesmo o

personagem o segundo utiliza algum elemento material externo a ele (maacutescara boneco ou

objeto) para se expressarrdquo (PARENTE 2005 p113) Aliaacutes a noccedilatildeo apresentada por Sabino

da Costa qualificando o boneco em apresentaccedilatildeo como ldquoobjeto interpostordquo seraacute mencionada

em obras posteriores como por exemplo no cuidadosos trabalho feito por Marco Souza

(2005) no qual discute as relaccedilotildees entre corpos de atores e bonecos no teatro de animaccedilatildeo

pensando a partir do teatro Kuruma Ningyo do Japatildeo Mesmo tendo em vista o amplo alcance

do trabalho de Souza e a densidade das questotildees que apresenta eacute preciso olhar com certa

cautela a questatildeo da aceitaccedilatildeo agrave noccedilatildeo de boneco teatral como objeto interposto entre ator e

puacuteblico

Natildeo eacute possiacutevel compreender todas as trocas formais e semacircnticas passiacuteveis de serem

estabelecidas entre objeto e ator se a forma animada for tratada como um canal por meio da

qual a apresentaccedilatildeo do ator adquire certas qualidades Esta seria claramente numa atitude de

hierarquizaccedilatildeo das capacidades expressivas e de estabelecimento de uma escala de valores

127

Figura 62 Cia Truks Vovocirc

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Bonecos dirigindo-se aos atores que os operam

Figura 63 Morpheus Teatro Peacutes descalccedilos

Fonte (httpwwwflickrcomphotoszzzanotti

5607762523)

Foto Mariana Zanotti de Oliveira

Figura 64 Morpheus teatro O princiacutepio do espanto A descoberta do manipulador (ator Joatildeo Arauacutejo)

Fonte httpwwwflickrcomphotoseneas999573230847

Foto Eneas Lopes

128

estaacutetica no que se refere agrave apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo O boneco (objeto material forma)

possui uma seacuterie de qualidades formais cineacuteticas e simboacutelicas que postulam para si uma

importacircncia incontestaacutevel sobre a composiccedilatildeo da representaccedilatildeo Tillis se apoacuteia em estudiosos

como Otakar Zich Petr Bogatyrev e Henryk Jurkowski para dinamizar essas qualidades no

interior de trecircs sistemas de signos (forma movimento e fala) Eacute preciso perceber que sem

recuperar o discurso ultrapassado de sacralizaccedilatildeo do boneco e de atribuiccedilatildeo obrigatoacuteria de

propriedades maacutegicas agrave sua apresentaccedilatildeo o valor de sua presenccedila em cena se faz na

conjunccedilatildeo dos seus dois fundamentos performativos Ainda natildeo se pode em nenhum

momento desse tipo de estudo ceder agrave tentaccedilatildeo da generalizaccedilatildeo e fechar os olhos agrave

desconcertante variedade de modos de apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo nas quais as

relaccedilotildees entre objeto e ator podem conferir importacircncias variaacuteveis entre ambos com

dinacircmicas e trocas que podem se realizar no interior de uma mesma apresentaccedilatildeo

Manipulador e boneco fazem parte de uma estrutura performativa combinada e

instaacutevel sobre a qual se funda a linguagem e a teacutecnica do teatro de animaccedilatildeo Por ser instaacutevel

essa combinaccedilatildeo de componentes significantes sobre a cena pode se dar de diversas maneiras

mesmo dentro de uma mesma apresentaccedilatildeo ou espetaacuteculo As dinacircmicas dessas relaccedilotildees satildeo

guiadas pela administraccedilatildeo das tensotildees expressivas existentes entre esses dois componentes

da performance de animaccedilatildeo ator e forma

Creio que um bom exemplo do que se afirma pode ser verificado no trabalho do Grupo

Contadores de Estoacuterias mais especificamente na linha de atuaccedilatildeo que adotaram a partir do

iniacutecio dos anos 1980 Os Contadores de Estoacuterias iniciaram seus trabalhos com espetaacuteculos

feitos para a rua nos quais eram dispostos sobre a cena diversos elementos de caracterizaccedilatildeo

de personagens como cabeccedilas gigantes figuras de danccedilas dramaacuteticas brasileiras uso de

materiais diversos e narrativa fortemente pontuada pela muacutesica Classificado pelo grupo como

ldquoextravaganza em praccedila puacuteblicardquo61

o tipo de espetaacuteculo que caracteriza a primeira deacutecada de

existecircncia dos Contadores de Estoacuterias difere em muito da linha trabalho inaugurada com

Mansamente de 1980 A peccedila eacute composta por quadros independentes embora tematicamente

relacionados ndash flagrantes da vida interiorana do Brasil ndash sem palavras e com um tipo de

animaccedilatildeo que foi descrita da seguinte maneira pelo entatildeo criacutetico de teatro do Jornal do Brasil

Yan Michalski

A ousadia maior [do espetaacuteculo] fica por conta da concepccedilatildeo dos bonecos e

da teacutecnica de sua manipulaccedilatildeo As figuras tecircm o tamanho aproximado das

bonecas de crianccedilas consequumlentemente o cenaacuterio eacute construiacutedo de objetos

61

Programa do espetaacuteculo Museu Rodin Vivo apresentado no SESC Ipiranga SP entre 7 e 9 de julho de 1995

129

que parecem brinquedos A manipulaccedilatildeo prescinde de quaisquer recursos

de intermediaccedilatildeo como linhas fios ou paus Os dois manipuladores

tambeacutem responsaacuteveis pela criaccedilatildeo dos bonecos Raquel e Marcos Caetano

Ribas vestidos de malha e capuz negros movimentam os pequeninos

atores diretamente com as matildeos esculpindo praticamente as suas atitudes

corporais e os seus deslocamentos no espaccedilo (MICHALSKI 1980)

Diferentemente de outras companhias que lidam com manipulaccedilatildeo direta e anterior de

bonecos de corpo inteiro como a companhia PeQuod o grupo Sobrevento a companhia

Truks a Catibrum e tambeacutem (em alguns espetaacuteculos) o grupo Giramundo natildeo haacute em parte

consideraacutevel do trabalho dos Contadores de Estoacuterias o uso de um balcatildeo ou aparato sobre o

palco Os bonecos satildeo operados sobre o chatildeo com os manipuladores postados atraacutes dos

mesmos A ausecircncia desse palco suplementar no qual o balcatildeo para manipulaccedilatildeo direta se

transforma acaba por ampliar a visibilidade do ator-manipulador para o puacuteblico Ainda que

cobertos com roupas e maacutescaras pretas a manipulaccedilatildeo sobre o chatildeo praticada por Marcos e

Raquel Ribas aproxima bastante os corpos de manipuladores e bonecos Tal se daacute pela

ausecircncia da cobertura parcial que um balcatildeo ou palco elevado pode propiciar aleacutem de exigir

que o manipulador assuma posturas que podem interferir na apresentaccedilatildeo e no deslocamento

do boneco Em uma entrevista concedida no ano de 2009 Marcos explica a forma e a eficaacutecia

do procedimento de concessatildeo de ecircnfase ao boneco que emprega

No nosso espetaacuteculo a gente se veste de preto mas o fundo eacute azul Eu natildeo tento

me esconder porque se eu tentar vou aparecer o tempo todo natildeo tem jeito Entatildeo

prefiro que vocecirc se acostume com a minha presenccedila e preste atenccedilatildeo na histoacuteria

(2009)

Mas seraacute possiacutevel ao espectador ldquoacostumar-serdquo em meio agrave apreciaccedilatildeo da

representaccedilatildeo teatral agrave presenccedila do ator-manipulador que impulsiona o boneco e o supera em

iacutempeto e dimensotildees Talvez seja impossiacutevel para quem assiste ignorar absolutamente a

presenccedila do ator-manipulador aparente o que dificulta o entendimento de que tal presenccedila

natildeo seja capaz de

interferir negativamente na percepccedilatildeo da trama que o espetaacuteculo apresenta A esse respeito

Marcos Ribas e Yan Michalski parecem concordar pois a apreciaccedilatildeo que o criacutetico fez de

Mansamente produziu a seguinte percepccedilatildeo

Aos poucos a matildeo do manipulador em primeiro plano e do seu corpo por traacutes do

boneco se vai diluindo na mente do espectador embora nunca se pretenda

camuflaacute-la e o boneco vai adquirindo uma estranha vida autocircnoma como se

130

recebesse dos dedos que cada vez mais imperceptivelmente o movimentam uma

injeccedilatildeo de humanidade (1980)

O comentaacuterio de Michalski deixa claros alguns elementos que satildeo fundamentais para o

entendimento de como se percebe o ator operador de forma animada posto agrave vista do puacuteblico

no caso mencionado O primeiro destes a ser comentado eacute a impossibilidade da criaccedilatildeo de

uma impressatildeo de total desaparecimento por parte do manipulador e portanto a aceitaccedilatildeo do

espectador de sua presenccedila ainda que esta natildeo se decirc de modo a impedir o acompanhamento

da trama representada pelas accedilotildees dos bonecos outra questatildeo eacute a de que tal qualidade de

direcionamento da atenccedilatildeo natildeo se daacute de outra maneira que natildeo por meio de uma construccedilatildeo

gradual da aceitaccedilatildeo do espaccedilo ocupado pelo manipulador dentro da cena na qual a percepccedilatildeo

do espectador participa de uma suave negociaccedilatildeo acerca da conduccedilatildeo da sua atenccedilatildeo Essa

negociaccedilatildeo se estabelece inapelavelmente entre o espectador o manipulador e o boneco A

aceitaccedilatildeo de tais produtos da cena nos permite pensar com clareza que essa negociaccedilatildeo eacute

guiada por uma maneira especiacutefica do ator-manipulador se comportar em cena tanto no trato

com o boneco quanto na consideraccedilatildeo do puacuteblico Portanto trata-se do emprego de uma

determinada postura teacutecnica que daacute a ver uma maneira de o manipulador relacionar-se com o

boneco em cena

Jurkowski emprega o termo opalizaccedilatildeo para tratar da caracteriacutestica da apresentaccedilatildeo do

boneco por meio da qual o puacuteblico o percebe simultaneamente como mateacuteria inerte e como

sugestatildeo de vida ou seja ldquoalternacircncia entre o caraacuteter e a materialidade da figurardquo

(JURKOWSKI 2001 p35) O termo se refere agrave percepccedilatildeo simultacircnea de muacuteltiplos feixes de

luz incidindo sobre um mineral multifacetado ou seja a apresentaccedilatildeo do boneco encaminha

ao espectador

simultaneamente percepccedilotildees distintas e por vezes antagocircnicas de autonomia e

impressatildeo de vida Jurkowski elabora e aprofunda essa noccedilatildeo em diversos de seus textos

como o que se segue62

Haacute todavia algo mais ndash o efeito que decidi chamar ldquoopalizaccedilatildeordquo Quando o

movimento domina completamente um objeto sentimos que o personagem

nasce e se apresenta em cena Quando eacute a natureza do objeto o que a domina

continuamos a ver o objeto O objeto permanece sendo o objeto e a

personagem ao mesmo tempo Agraves vezes no entanto essa unidade se rompe

62

Vamos encontrar na reflexatildeo de George Didi-Huberman uma imagem semelhante ldquoA obra eacute um cristal mas

todo cristal se move sob o olhar que ele suscita Ora esse movimento natildeo eacute outro senatildeo o de uma cisatildeo sempre

reconduzida a danccedila do cristal em que cada faceta inelutavelmente contrasta com a outrardquo (DIDI-

HUBERMAN 2005 p 118)

131

por um curto espaccedilo para ser recuperada apoacutes um instante Isto eacute a que me

refiro como sendo ldquoopalizaccedilatildeordquo (JURKOWSKI 1990[1988] p53)63

Haacute o que se discutir acerca do modo como Jurkowski subordina impressatildeo de vida e

ldquodomiacutenio do movimentordquo na apresentaccedilatildeo da forma animada Ainda assim natildeo resta duacutevida

que reside exatamente nessa dupla percepccedilatildeo uma das mais fundamentais qualidades da

apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo E assim podemos nos referir agrave participaccedilatildeo do ator operador da

forma como um indicativo duplo de ineacutercia e vida para o objeto animado A percepccedilatildeo da sua

influecircncia sobre o boneco seja por meio da visatildeo da sua atuaccedilatildeo ou por meio de indiacutecios mais

sutis (intencionais ou acidentais) entendidos em meio aos aparatos de apoio e ocultaccedilatildeo

apontam para a dependecircncia do boneco por meio da simples revelaccedilatildeo da estrutura que o

opera mas tambeacutem resta sobre a cena como sendo a forccedila vital ndash o eacutelan ndash emprestada ao

boneco natildeo apenas por meio da movimentaccedilatildeo conferida pelas accedilotildees da operaccedilatildeo mas

tambeacutem pelo que eacute indicado e projetado ao boneco por meio da proacutepria presenccedila (vista ou

subentendida) do ator operador pela troca que se estabelece entre dois elementos distintos em

cena com o intento de constituir um ou mais corpos teatrais

Pode-se assim dizer que os modos de dar a ver em cena o boneco e o manipulador

encontram-se apoiados por estruturas sutis de estabelecimento de relaccedilotildees e conduccedilatildeo de

expressividade de ambos ainda que natildeo estejam suportados por estruturas teacutecnico-

cenograacuteficas de ocultaccedilatildeo do ator operador A companhia argentina Taller de Tiacuteteres

Triaacutengulo (do diretor Carlos Martinez) em um espetaacuteculo chamado Muchas Manos64

usava

uma empanada para bonecos de luva como mecanismo de ocultaccedilatildeo do elenco A escolha por

construir seus bonecos a partir de luvas (a peccedila de vestuaacuterio) que poderiam ser vestidas pelos

dois atores ou enchidas e operadas por meio de varas em diversas posiccedilotildees dispunha

variadas interpretaccedilotildees para a percepccedilatildeo do formato da matildeo humana que ocorria de

representar tanto o manipulador quanto os bonecos que compunham o espetaacuteculo e ainda em

jogos de enganos nas vezes em que o puacuteblico era logrado a entender o boneco-luva como

sendo um determinado personagem que posteriormente se mostrava como sendo a matildeo do

ator e vice e versa Ainda ocultando os manipuladores (durante grande parte do espetaacuteculo)

por traacutes da empanada o espetaacuteculo usava a forma da matildeo humana como uma senha para

63

Tillis vai empregar o termo ldquovisatildeo duplardquo(1992 p64) preferindo este ao de Jurkowski por consideraacute-lo

menos barroco Mas sobretudoo tendo em vista contrapor-se agrave proposiccedilatildeo de Otakar Zich na qual a percepccedilatildeo

do boneco se daacute em alternacircncia entre objeto e vida ao inveacutes da percepccedilatildeo composta e simultacircnea que as

terminologias de Tillis e Jurkowski sugerem 64

O espetaacuteculo foi assistido por mim no ano de 1994 no Festival Internacional de Teatro de Animaccedilatildeo realizado

no SESC Ipiranga SP

132

Figura 65 Contadores de Estoacuterias Mansamente

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

Foto Luciana Serra

Figura 66 Contadores de Estoacuterias

Maturando

Fonte

(httpwwwecparatyorgbr)

Foto JB

Figura 67 Contadores de Estoacuterias Em concerto

Fonte (httpwwwecparatyorgbr)

Foto Luciana Serra

133

indicar a presenccedila em cena dos manipuladores e ainda considerar a sua interferecircncia na trama

da peccedila

Dispositivos teacutecnico-cenograacuteficos de ocultaccedilatildeo da figura do ator que opera o boneco

haacute inuacutemeros que podem variar de acordo com a forma o tamanho e o modo de apresentaccedilatildeo

dos bonecos mas que tambeacutem podem estar relacionado a questotildees de uso do espaccedilo

disponiacutevel ou consagrado agrave representaccedilatildeo e tambeacutem a diferentes modos de apresentaccedilatildeo da

trama e de disposiccedilatildeo da dramaturgia Ainda podemos perceber que recursos de ocultaccedilatildeo

podem ser de natureza teacutecnico-cenograacutefica como eacute o caso de empanadas palcos paineacuteis

fossos fundos falsos vestuaacuterio e recursos de iluminaccedilatildeo mas tambeacutem podem ser de natureza

procedimental-performativa do trabalho do operador que compreende o trabalho de

suavizaccedilatildeo de reaccedilotildees faciais e corporais contenccedilatildeo gestual direcionamento da atenccedilatildeo do

manipulador na direccedilatildeo do boneco e outras posturas relacionadas Cabe dizer como

complemento obrigatoacuterio ao comentaacuterio feito agrave citaccedilatildeo de Paulo Balardim e ao entendimento

dos casos dos Contadores de Estoacuterias e do Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo que nenhum

dispositivo teacutecnico-cenograacutefico seraacute bem sucedido em suavizar a participaccedilatildeo do ator-

manipulador sobre a cena se natildeo for acompanhado adequadamente por um

dispositivo procedimental-performativo Natildeo se pode relutar em acreditar que as estruturas

teacutecnico-cenograacuteficas de ocultaccedilatildeo do manipulador servem como reforccedilos para os coacutedigos

relacionais de troca de ecircnfase cecircnica natildeo seus fatores de determinaccedilatildeo Talvez seja mesmo

possiacutevel acreditar que o emprego de panos e empanadas seja mais motivado por escolhas de

natureza teacutecnico-logiacutesticas do que por decisotildees esteacuteticas e narrativas da cena Os efeitos que

essas escolhas produzem sobre o modo de percepccedilatildeo da cena no entanto seguem um

caminho bastante diverso

A procura pela base teacutecnico-conceitual de definiccedilatildeo ou regecircncia do dispositivo

procedimental mencionado conduziu a um fundamento teacutecnico apresentado com ligeiras

distinccedilotildees tanto por Balardim quanto Beltrame identificado sob o termo neutralidade Trata-

se de um fundamento teacutecnico por meio do qual o ator se permite conferir expressividade ao

boneco ou forma animada partindo obrigatoriamente de uma atitude de atenuaccedilatildeo dos efeitos

da proacutepria presenccedila

134

Figura 68 Cia Truks Isto natildeo eacute um

cachimbo

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Ator oculto pela proacutepria estrutura da forma

animada que incorpora os seus braccedilos

Figura 69 Taller de Tiacuteteres Triaacutengulo Muchas manos

Fonte (httpwwwtriangulo-titerescomar)

Figura 70 Cia Truks Big Bang

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Boneco feito com saco plaacutestico O material eacute feito boneco pelo modo de operaccedilatildeo e pela relaccedilatildeo

estabelecida na cena com os atores operadores

135

sobre a cena Beltrame o trata como sendo a ldquopredisposiccedilatildeo do ator-animador para estar a

serviccedilo da forma animada tornar-se lsquoinvisiacutevelrsquo em cena atenuar sua presenccedila para valorizar a

do bonecordquo (BELTRAME 2009 p 294) e Balardim iraacute buscar referecircncias nos estudos da

psicologia para tratar a neutralizaccedilatildeo como um processo de despersonalizaccedilatildeo do inteacuterprete

por meio da supressatildeo de um comportamento que revele impulsos personalizantes (2004

pp88-9) De qualquer forma parte-se do entendimento de que ldquoeliminar caretas suspiros

olhares e economizar gestosrdquo seriam fundamentais ao ator operador de formas animadas para

que a afirmaccedilatildeo de sua presenccedila natildeo finde por obliterar a do boneco

O princiacutepio que rege a exortaccedilatildeo da neutralidade como atributo fundamental a uma

apresentaccedilatildeo bem sucedida em teatro de animaccedilatildeo eacute clara a presenccedila do inteacuterprete vivo seria

mais atraente do que a do boneco que luta para transmitir impressotildees de autonomia em meio a

uma forma que transparece a sua ineacutercia primordial a uma movimentaccedilatildeo que oscila entre a

imobilidade e o maquinal e uma voz que ainda que a ele atribuiacuteda natildeo eacute emitida pelo

boneco Lehman ainda que natildeo esteja tratando das diferenccedilas perceptivas entre a figura do

ator e a do boneco define de modo oportuno a potecircncia de significaccedilatildeo do corpo vivo em

cena

O corpo vivo eacute uma complexa rede de pulsotildees intensidades pontos de

energia e fluxos na qual processos sensoacuterio-motores coexistem com

lembranccedilas corporais acumuladas codificaccedilotildees e choques (LEHMAN 2007

p332)

Balardim estaacute justamente tratando das ldquolembranccedilas corporaisrdquo mencionadas por Lehman ao

mencionar que os gestos humanos satildeo resultados de anguacutestias e processos internos produtores

de experiecircncias afetivas Essa leitura encaminha o entendimento do gestual do ator vivo como

resultado ao menos parcial de um histoacuterico afetivo particular que adquire operatividade

cecircnica em negociaccedilatildeo direta com os termos de constituiccedilatildeo da narrativa espetacular

(dramaturgia composiccedilatildeo de personagem contracenaccedilatildeo encenaccedilatildeo) Isto equivale dizer que

o corpo do ator e seu comportamento dispotildeem diante do espectador caracteriacutesticas de

discursividade que antecedem e aderem ao proacuteprio discurso espetacular A combinaccedilatildeo dessas

duas instacircncias discursivas ndash o contexto da apresentaccedilatildeo teatral e a(s) narrativa(s) pessoal(is)

que transparecem por meio de caracteriacutesticas comportamentais dos atores ndash adensa e amplia

em possibilidades a leitura do espetaacuteculo tecendo personagens e situaccedilotildees que se comunicam

por meio de esquemas comportamentais compostos tambeacutem por reaccedilotildees furtivas

microexpressotildees e gestos involuntaacuterios cuja sutil expressividade pode tanto corroborar

quanto por em duacutevida ou ateacute mesmo negar uma construccedilatildeo dentro da narrativa espetacular

136

Natildeo cabe a discussatildeo da intencionalidade do gesto neste caso posto que tratamos ao mesmo

tempo de expressotildees de subjetividade que podem apresentar um grau de sutileza tal que

escapa ndash ou adere ndash a um processo consciente de construccedilatildeo cecircnica e sobretudo daquilo que

natildeo importa se intencional ou acidental atinge a percepccedilatildeo da plateia de modo a permitir uma

leitura do espetaacuteculo em perspectivas variadas mas vale mencionar que eacute possiacutevel que a

inserccedilatildeo inconsciente ou pouco refletida da expressividade do ator sobre a cena pode produzir

divergecircncias de leitura pouco desejaacuteveis

No boneco o gestual eacute resultado do impulso que o ator lhe confere Sua natureza

particular eacute oacutebvio dizer natildeo permite o envio de elementos de preacute discursividade por meio do

gestual pois que tais elementos no boneco advecircm exclusivamente de caracteriacutesticas de forma

podendo ser relacionados com estrutura e traccedilos fisionocircmicos os materiais de que eacute feito65

e

tambeacutem a potecircncia de movimento contida em seu formato66

(suas possibilidades de

movimentaccedilatildeo e pontos de articulaccedilatildeo) Essas caracteriacutesticas apesar de possuiacuterem vasta

potecircncia de significaccedilatildeo natildeo portam os elementos de memoacuteria pessoal e de autonomia

subjetiva transmitidos por meio do gesto de modo a serem combinadas aos elementos da

narrativa espetacular Um exemplo eloquente para a relaccedilatildeo entre forma e potecircncia de

movimento estaacute no espetaacuteculo da Cia Catibrum Homem Voa montada a partir do livro de

histoacuteria em quadrinhos Santocirc e os pais da aviaccedilatildeo de Joatildeo Spacca Os bonecos da histoacuteria

que trata da vida e das realizaccedilotildees e Alberto Santos Dumont foram feitos de modo a

reproduzir as ilustraccedilotildees do autor desenhista replicando a escolha de que alguns personagens

tem seus corpos combinados a maacutequinas e mecanismos (canhatildeo mola locomotiva balatildeo) de

acordo com os seus significados dentro da histoacuteria contada (Figuras 72 74a e 74b)

Assim sendo aquilo que o boneco porventura apresentar de gestualidade suplementar

ou involuntaacuteria natildeo ocorreraacute como transbordamento de uma subjetividade proacutepria mas como

revelaccedilatildeo da subjetividade do ator e muitas vezes como resultado de imprecisotildees

manipulativas Cabe aqui ressaltar que este estudo natildeo se propotildee a identificar ou advogar a

favou ou contra o apuro no desenvolvimento das teacutecnicas manipulativas tampouco exortar o

emprego deste ou daquele procedimento como mais ou menos desejaacuteveis para o

comportamento e a formaccedilatildeo do artista de teatro de animaccedilatildeo Reconhece isso sim que tudo

65

Haacute uma clara diferenccedila entre o emprego e a comunicaccedilatildeo de um material Bom exemplo disso estaacute na peccedila ldquoA

chegada de Lampiatildeo no Infernordquo da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo em que bonecos foram feitos em laacutetex mas

moldados e pintados de modo a darem a impressatildeo de serem bonecos de barro feitos no estilo do Mestre

Vitalino (Figura 73) 66

Aqui trata-se de forma ao falar de potecircncia de movimento Um boneco eacute capaz de transmitir ao puacuteblico certa

expectativa sobre o seu movimento apenas pela exposiccedilatildeo de sua forma Isto ocorre de modo bastante claro com

o boneco de luva mas pode ocorrer com praticamente todas as modalidades de bonecos ou formas animadas A

subversatildeo dessa expectativa trata exatamente de sua construccedilatildeo em um primeiro momento

137

Figura 71 Cia Catibrum Homem voa Neutralidade e expressividade

Fonte (httpwwwcatibrumcombr)

O ator agrave esquerda (Amaury Borges) reage ao personagem com a expressatildeo facial ao passo que o ator ao

centro (Lelo Silva) esforccedila-se para manter-se ldquoneutrordquo Natildeo eacute raro uma postura de neutralidade forccedilada

produzir mais divergecircncias de leitura da cena do que o envolvimento expressivo

Figura 72 PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no

inferno

Foto Simone Rodrigues

Bonecos em tecido e laacutetex imitando a

modelagem em barro de Mestre Vitalino

Figura 73b Cia Catibrum Homem voa Forma e potecircncia

de movimento

Fonte (httpwwwcatibrumcombr)

Figura 73b Cia Catibrum

Homem voa Forma e

potecircncia de movimento

Fonte

(httpwwwcatibrumcombr)

138

o que se mostra sobre a cena natildeo importa a sua motivaccedilatildeo ou origem eacute um componente

inalienaacutevel da mesma e a partir desse reconhecimento busca entender quais qualidades e

relaccedilotildees se estabelecem Foi escolhido conduzir este raciociacutenio a partir da consideraccedilatildeo de

algo entendido como um princiacutepio teacutecnico-pedagoacutegico (a neutralidade) com vistas investigar

sua validade e seus limites e na tentativa de assim justificar seu emprego ou apontar

alternativas teacutecnico-conceituais viaacuteveis

A neutralidade eacute tratada tanto por Beltrame como por Balardim como um

comportamento a ser cultivado pelo ator operador de formas animadas que possibilite ao

boneco ou objeto exercer a sua potencialidade expressiva sem que esta seja empanada pela

expressividade e poder de atraccedilatildeo que satildeo intriacutensecos agrave apresentaccedilatildeo do corpo vivo do ator

Mais que isso a neutralidade seria o estado original a partir do qual o ator permitiria que a

atuaccedilatildeo realizada junto com o boneco se fizesse de modo a encaminhar caracteriacutesticas de

atuaccedilatildeo resultantes de um diaacutelogo eficiente entre a potecircncia de accedilatildeo e expressatildeo do ator e os

elementos de significaccedilatildeo contidos na forma do boneco e naquilo que ele representa em cena

Balardim complementa a sua visatildeo acerca da neutralidade de uma forma que nos

serviraacute de partida para o aprofundamento de algumas questotildees

A neutralidade talvez seja a palavra-chave para uma boa manipulaccedilatildeo pois

ela eacute a base de todo um mecanismo psicoloacutegico acionado pelo ator-

manipulador que iraacute sobrecair sobre o puacuteblico A verdadeira neutralidade

implica ldquoestar neutrordquo e estar neutro eacute uma espeacutecie de natildeo-ser Estar neutro

eacute esvaziar-se de qualquer coisa que possa ser ao mesmo tempo em que o

objeto eacute Pois o objeto sendo eacute ele que assumiraacute toda a importacircncia no

momento em que eacute o foco da atenccedilatildeo Estar neutro neste momento eacute

concordar que nada mais importa aleacutem daquele objeto naquele momento

Neutralizar-se significa anular-se eliminar qualquer resquiacutecio da proacutepria

personalidade e do proacuteprio corpo para deixar que o objeto-personagem

imponha sua vontade sobre o corpo vencido do ator-manipulador

(BALARDIM 2004 p 89)

Parece ser neste ponto que a neutralidade tanto como chave analiacutetica quanto como

ferramenta teacutecnica deixa de servir a uma clara compreensatildeo e praacutetica das possibilidades

expressivas no teatro de animaccedilatildeo A anulaccedilatildeo da expressividade do ator operador sobre a

cena de animaccedilatildeo eacute vatilde como tentativa pouco feacutertil como opccedilatildeo poeacutetica e quase ausente

(mesmo sob a forma de tentativa) da cena contemporacircnea

Este estudo apresenta juntamente com a investigaccedilatildeo das possibilidades poeacuteticas do

animador aparente um questionamento um tanto agudo dos procedimentos de ocultaccedilatildeo do

ator-manipulador trata-se de um questionamento que supera a indagaccedilatildeo se a neutralizaccedilatildeo

da expressividade do ator que manipula o boneco pode ser entendida da forma como eacute

apresentada como um recurso teacutecnico de fato fundamental para uma percepccedilatildeo adequada da

139

apresentaccedilatildeo da forma animada e da cena teatral que a compreende O que indago aqui eacute se eacute

possiacutevel de fato lidar com a noccedilatildeo de neutralizaccedilatildeo ou ocultaccedilatildeo do ator tanto no que esta se

refere a um componente da teoria do teatro de animaccedilatildeo quanto no sentido de uma proposiccedilatildeo

teacutecnico-pedagoacutegica67

Ainda assim nos dois autores mencionados se percebe que a adesatildeo agrave noccedilatildeo de

neutralidade natildeo eacute incondicional sequer desprovida de suporte em experiecircncia e reflexatildeo

Valmor Beltrame reconhece o campo delicado sobre o qual o termo repousa

Este princiacutepio [da neutralidade] tem gerado muitas controveacutersias porque eacute difiacutecil

conceber a ideacuteia de presenccedila neutra na cena uma vez que tudo o que estaacute no palco

adquire significado A ldquoneutralidaderdquo eacute aqui concebida como predisposiccedilatildeo do

ator-animador para estar a serviccedilo da forma animada tornar-se ldquoinvisiacutevelrdquo em

cena atenuar sua presenccedila para valorizar a do boneco (BELTRAME 2008 p36)

Poderiacuteamos para efeito desta reflexatildeo ampliar a declaraccedilatildeo de Beltrame e dizer que tudo o

que estaacute no palco bem como tudo aquilo cuja atuaccedilatildeo provoca uma reverberaccedilatildeo expressiva

que alcanccedila o que se pode perceber sobre o palco adquire significado A afirmaccedilatildeo proposta

tem em vista trazer agrave tona a percepccedilatildeo de que a accedilatildeo de um animador oculto das vistas do

puacuteblico por um aparato teacutecnico-cenograacutefico ao manipular uma forma animada projeta sua

presenccedila sobre a performance do boneco que traz em sua dinacircmica elementos combinados do

boneco e do ator-manipulador Ainda a afirmaccedilatildeo abre-se de forma provocativa no sentido de

sugerir que a produccedilatildeo de estiacutemulos sensiacuteveis sobre o palco (efeitos de luz de som de contra

regragem) natildeo podem se furtar a evidenciar a accedilatildeo de um indiviacuteduo posicionado fora do

campo de percepccedilatildeo imediato do espectador e que pode ser entendido como um trabalho de

animaccedilatildeo uma vez que a sua funccedilatildeo produza efeitos sobre a cena que se mostrem como tendo

certo tipo de participaccedilatildeo na narrativa espetacular numa interaccedilatildeo direta entre a

intencionalidade do operador e as possibilidades expressivas especiacuteficas dos materiais e

recursos empregados Logo a busca do estado neutral entendida a partir de uma pretensatildeo de

ldquonatildeo-serrdquo em cena esbarra a princiacutepio no proacuteprio boneco cuja apresentaccedilatildeo combina

elementos da forma e do ator

67

Haacute um comentaacuterio que merece ser feito ainda que natildeo valha como ressalva ao que se afirma A acorrida de

artistas com formaccedilatildeo preacutevia em teatro a companhias de teatro de animaccedilatildeo bem como o recente crescimento de

disciplinas e profissionais de animaccedilatildeo em cursos de formaccedilatildeo de atores vem apresentando aos processos de

formaccedilatildeo e treinamento especial atenccedilatildeo ao processo de transferecircncia de expressividade e suavizaccedilatildeo da

impressatildeo causada em cena pelo ator operador A estrateacutegia formativa de ressaltar a necessidade de uma postura

mais ldquoneutrardquo a artistas e artistas em formaccedilatildeo acostumados a diferentes gerenciamentos do seu potencial

expressivo eacute o que tem sido identificado no processo de pesquisa que resultou neste trabalho como sendo

neutralidade como provocador pedagoacutegico

140

Eacute claro que o resultado obtido ainda que revele o operador tanto em presenccedila quanto

em participaccedilatildeo pode conduzir a criaccedilatildeo de outras presenccedilas teatrais Steve Tillis aborda ao

longo de sua proposta de reformulaccedilatildeo conceitual para o boneco dramaacutetico (TILLIS 1992)

diversas questotildees relativas ao jogo relacional entre o animador e o boneco Uma dessas

passagens eacute aquela em que Tillis trata da liberdade de expressatildeo que o boneco propicia ao

artista quando se trata de trabalhar com a saacutetira e a criacutetica dos costumes e da poliacutetica A

apresentaccedilatildeo da questatildeo revela um aspecto no miacutenimo curioso da construccedilatildeo relacional que se

daacute entre manipulador e boneco

O teatro de bonecos tambeacutem oferece ao artista a licenccedila do boneco para agir e

falar com uma liberdade impressionante O boneco natildeo sendo uma pessoa viva

natildeo pode assumir a responsabilidade por suas accedilotildees mas tais accedilotildees e palavras natildeo

pertencem diretamente ao artista de teatro de bonecos e assim ele nem ela

parecem possuir responsabilidade sobre o boneco (TILLIS 1992 p33)

Tillis ainda nos apresenta ainda um exemplo em tom fabulesco recolhido por Petr

Bogatyrev de um marionetista que intimado por ter feito ataques poliacuteticos entendidos como

subversivos em sua apresentaccedilatildeo vai a juiacutezo com o heroacutei Kasparek em sua matildeo para

argumentar que a culpa natildeo eacute dele mas do boneco Satildeo comuns tambeacutem relatos de

espectadores que sendo alvos de pilheacuteria por parte dos bonecos em brincadeiras de

mamulengo direcionam sua fuacuteria na direccedilatildeo do boneco-personagem e natildeo do mestre

mamulengueiro

Se dermos creacutedito ao relato de Bogatyrev e ainda assim relevarmos o fato de que eacute

possiacutevel que o marionetista da passagem estivesse argumentando apenas com ironia torna-se

plausiacutevel a consideraccedilatildeo de que em cena boneco e manipulador se constituem numa estrutura

combinada que natildeo exclui nem isola nenhum dos dois mas que encaminha a percepccedilatildeo de

uma presenccedila que ainda que reconheccedila sua participaccedilatildeo difere da do operador O exemplo

extraiacutedo do mamulengo reforccedila o entendimento de que o boneco por si soacute natildeo eacute capaz de

tornar-se alvo do ressentimento da viacutetima de zombaria inanimado que eacute mas tampouco o

mamulengueiro pode ser solitariamente imputado das provocaccedilotildees ditas do alto da empanada

Izabela Brochado relata casos de provocaccedilotildees feitas em meio a funccedilatildeo do mamulengo nas

quais a ira do espectador troccedilado projeta-se inteiramente sobre o boneco e natildeo sobre o

brincante por meio de xingamentos respostas e tentativas de agressatildeo Tambeacutem relata sobre

casos de excitaccedilatildeo sexual do puacuteblico masculino diante da danccedila das Quiteacuterias (BROCHADO

2007)

141

Figura 74 Punch and Judy ilustraccedilatildeo

Fonte (httpbabylonbaroquewordpresscom

categorypunch-judy)

Figura 75 Kasperle boneco de luva

Fonte BOEHN 1972 p145

Punch Kasperle Kasparek Petruchka Guignol Heroacuteis populares sob a forma de bonecos com licenccedila

para acusar autoridades e usar de violecircncia com seus indefectiacuteveis bastotildees

Figura 76 Mamulengo Riso do Povo Mestre Zeacute de Vina Passagem de danccedila

Fonte (httpaltaculturawordpresscom20100707mamulengo-riso-do-povo)

142

Aquilo que Tillis identifica como sendo a licenccedila concedida pelo boneco ao

manipulador para dizer verdades delicadas criticar os costumes ou agir com excesso de

violecircncia e licenciosidade natildeo parece tambeacutem apresentar a forma animada como sendo um

simples veiacuteculo ou suporte para a expressatildeo do ator-manipulador O boneco natildeo pode ser

entendido apenas como um canal de expressatildeo do ator ainda que o artista que o opera creia

nisso Sem argumentarmos acerca de qualidades de forma de movimentaccedilatildeo fala e inserccedilatildeo

na accedilatildeo teatral que satildeo exclusivos de cada tipo de forma animada eacute possiacutevel entender a

licenccedila como um fator de transformaccedilatildeo da capacidade de expressatildeo e articulaccedilatildeo temaacutetica do

artista de animaccedilatildeo Quem fala nesse caso ndash e para afirmar isto natildeo preciso citar a potecircncia

do boneco como ativador de processos inconscientes o

que seria certamente tanto vaacutelido como rico para discussatildeo ndash natildeo eacute o operador apoiado no

boneco e sim a combinaccedilatildeo de permissotildees impulsos improvisacionais e acolhimentos

estabelecidos entre o boneco e o artista vivo

Em minha dissertaccedilatildeo de mestrado parti da tentativa de definir o que cumpriria a

funccedilatildeo de ator no teatro de animaccedilatildeo para chegar ao entendimento da existecircncia de um ente

performativo dinacircmico resultante da combinaccedilatildeo da forma-boneco com o ator-manipulador

Um dos meus pontos de partida foi o entendimento de que a tentativa de se criar uma

correlaccedilatildeo direta de funccedilotildees identificando o manipulador com o inteacuterprete e o boneco com a

personagem se mostra uma maneira um tanto apressada e portanto imprecisa de exercitar a

percepccedilatildeo de manifestaccedilotildees

performativas do teatro de animaccedilatildeo num contexto mais amplo da arte teatral68

Levando-se

em consideraccedilatildeo a argumentaccedilatildeo conduzida ateacute agora neste capiacutetulo creio que natildeo seja um

problema lidar com a afirmaccedilatildeo de que desde suas origens o teatro apresentado com bonecos

e formas animadas dispotildee uma personagem criticamente desdobrada em transito constante

entre a identificaccedilatildeo com a ficccedilatildeo na qual se insere e seu rompimento por meio da burla do

comentaacuterio e da proacutepria condiccedilatildeo de objeto do boneco Isto pode ser percebido por exemplo

em situaccedilotildees nas quais o animador lanccedila matildeo de um recurso cocircmico proacuteprio da forma ou do

movimento especiacutefico do boneco muitas vezes rompendo com o proacuteprio fluxo da trama

apresentada Devido a sua estrutura de criaccedilatildeo livre muitos exemplos desse tipo podem ser

verificados em brincadeiras de mamulengo como o caso do personagem Janeiro69

(Figura

68

Pode-se indagar se o exerciacutecio de relacionar manifestaccedilotildees do teatro de animaccedilatildeo com a de outras formas de

apresentaccedilatildeo teatral seria algo de fato necessaacuterio mas este trabalho pretende demonstrar que o uso desta

ferramenta para o entendimento de alguns processos teacutecnicos e criativos do teatro de animaccedilatildeo natildeo eacute de todo

despreziacutevel 69

Outro nome para esse boneco muito usado pelo Mestre Zeacute de Vina eacute Janeiro-vai-janeiro-vem

143

78) um negro que se abisma com tudo o que vecirc e demonstra essa disposiccedilatildeo erguendo o

pescoccedilo especialmente construiacutedo para ser estendido ateacute aleacutem do limite maacuteximo de altura da

empanada De acordo com a receptividade que obteacutem do puacuteblico o improviso do mestre

mamulengueiro pode inventar justificativas para repetir tantas vezes quanto julgar eficiente o

recurso de erguer o pescoccedilo de Janeiro Outro exemplo pode ser percebido em um dos textos

recolhidos por Hermilo Borba Filho em sua pesquisa sobre o Mamulengo (1987) Na peccedila As

aventuras de uma viuacuteva alucinada recolhida do mestre Ginu num determinado momento a

personagem Viuacuteva retruca que natildeo aceita o convite feito a ela pelo Professor Tiridaacute devido a

sua condiccedilatildeo de viuacuteva A fala recolhida sugere um efeito de manipulaccedilatildeo que a acompanha

Natildeo quero natildeo cumpadre De jeito nenhum Olhe o dedinho dizendo que natildeo Taacute

vendo Natildeo quero natildeo (Idem p108)

Figura 77 Janeiro-Vai-Janeiro-Vem Mestre Zeacute Lopes

Foto Mario Piragibe

144

O trecho em que a Viuacuteva chama a atenccedilatildeo para o ldquodedinhordquo muito provavelmente foi

dito acompanhado por um movimento caracteriacutestico e cocircmico do braccedilo do boneco Chance haacute

tambeacutem

de que esse movimento seja especiacutefico e proacuteprio do boneco em questatildeo A repeticcedilatildeo da

negativa eacute de fato desnecessaacuteria para o entendimento da passagem (a fala em questatildeo eacute

complementar a uma fala anterior na qual a personagem jaacute explicita sua disposiccedilatildeo) e essa

ecircnfase pode ser entendida como a repeticcedilatildeo do efeito cecircnico especiacutefico provavelmente um

modo inusitado e cocircmico de mover o braccedilo do boneco em sinal de negativa

Esse tipo de comportamento pode ser entendido como resultado de um movimento de

separaccedilatildeo entre manipulador e boneco pois que o mestre mamulengueiro faz uso do boneco

em uma dimensatildeo eminentemente material produzindo assim um comentaacuterio jocoso sobre a

condiccedilatildeo de inanimado do boneco de modo a apresentar uma piada de metalinguagem Se nos

reportarmos agraves noccedilotildees de opalizaccedilatildeo defendida por Jurkowski e de visatildeo-dupla apresentada

por Tillis temos aqui uma passagem atraente e estimulante provocada justamente pela

simultaneidade de percepccedilatildeo do boneco em cena como objeto e como imaginaccedilatildeo de vida

autocircnoma

Podemos localizar nesse comportamento alguma semelhanccedila com o recurso dos

comediantes populares que a professora Neyde Veneziano chama de desdobramento (2004)

Esse recurso eacute um modo de transitar entre a interpretaccedilatildeo da personagem e a assunccedilatildeo da

personalidade do ator diante do puacuteblico como parte de um ldquopactordquo de reconhecimento e

comunicaccedilatildeo direta por meio do qual as ilusotildees da ficccedilatildeo teatral satildeo estranhadas ou

deslocadas para permitir um encontro direto entre o puacuteblico e seu ator preferido bem como

para inserir um comentaacuterio xistoso ou explicaccedilatildeo agrave accedilatildeo em curso O procedimento eacute

relativamente simples e bastante conhecido o ator suspende momentaneamente o curso da

accedilatildeo para fazer um comentaacuterio como que deixando de lado a personagem e agindo como ele

mesmo

Como arte com origens e formas notadamente populares o teatro de bonecos

apresenta em diversas das suas manifestaccedilotildees o emprego desses apartes comentaacuterios xistes

metalinguiacutesticos suspensotildees de accedilatildeo e intervenccedilotildees improvisadas Esses momentos satildeo

exemplos claros de aproveitamento do efeito de opalizaccedilatildeo ou visatildeo-dupla ainda que uma

noccedilatildeo natildeo seja redutiacutevel agrave outra No caso do teatro de animaccedilatildeo pode-se imaginar uma

modalidade de desdobramento que leva em consideraccedilatildeo a composiccedilatildeo ator e objeto

ampliando o entendimento dos limites corporais do binocircmio personagem-inteacuterprete e

propiciando dessa forma certa variedade de combinaccedilotildees

145

Quando o mestre de mamulengos deseja endereccedilar-se diretamente agrave plateia como ele

mesmo e natildeo por meio de um de seus personagens (para indicar uma pausa o fim da funccedilatildeo

ou para dar um aviso que natildeo se relacione diretamente com a brincadeira) este raramente se

desloca de traacutes da empanada para dar-se a ver mas passa a falar com uma voz despida das

caracteriacutesticas estilizadas de seus personagens e muitas vezes ainda exibe o boneco no vatildeo

da janela que se move caracteristicamente acompanhando o ritmo da fala do artista

Diferentemente do efeito de opalizaccedilatildeo o desdobramento supotildee uma disposiccedilatildeo

alternada entre personagem e inteacuterprete70

numa alternacircncia cadenciada de centralidades Ora

a personagem do drama estaacute mais agrave vista ora a personagem elaborada a partir da suposta

personalidade do inteacuterprete se mostra mais claramente Ainda que essa dinacircmica alternada

deixe resiacuteduos das duas fontes discursivas uma na outra natildeo se trata aqui de criar uma

percepccedilatildeo simultacircnea mas de se lidar com trocas ritmadas com finalidades cocircmicas

Para a animaccedilatildeo o desdobramento eacute intencional e posterior agrave opalizaccedilatildeo posto que

esse efeito eacute considerado intriacutenseco agrave proacutepria natureza da apresentaccedilatildeo da forma animada e se

realiza em acircmbito corporal dando a perceber os espaccedilos ocupados por forma e operador

Quando em Cuentos Pequenotildes Hugo Suarez retira o proacuteprio braccedilo de dentro da

camisa usada para compor a forma do palhaccedilo violonista feito a partir do seu proacuteprio joelho

juntamente com a clareza de comunicaccedilatildeo que daacute a entender a transferecircncia do controle do

braccedilo da personagem para o operador produz-se um efeito cocircmico que decorre justamente da

fraacutegil determinaccedilatildeo acerca desse controle Esse mesmo braccedilo usaraacute o violatildeo tocado pela

personagem para golpeaacute-lo e fazer o ator aproveitar-se da feacuteria conquistada pelo boneco feito

a partir do joelho do ator e de um nariz de palhaccedilo Sempre perceberemos a personagem feita

pelo joelho de Hugo em uma disposiccedilatildeo simultacircnea de objeto e vida mas tambeacutem por meio

de uma dinacircmica de trocas por meio da qual seu corpo se rearranjaraacute em combinaccedilotildees

constantes ora expandindo o corpo do animador ora da personagem e sempre identificando

aacutereas de controle comum ou indeterminado

Por isso a busca por se definir uma hierarquia estaacutevel entre manipulador e boneco em

termos de relevacircncia para a cena e expressividade seria se natildeo uma impossibilidade um

grande problema O presente estudo que tem como ponto de atenccedilatildeo os entendimentos e usos

da presenccedila e da subjetividade do ator-manipulador em praacuteticas contemporacircneas de teatro de

animaccedilatildeo no Brasil parte da aceitaccedilatildeo dessa estrutura como algo que se daacute como uma

70

Natildeo se pode ignorar aqui que a maneira como essa dualidade se expressa suscita algum questionamento pois

que natildeo se pode considerar sem ressalvas que um ator em cena possa de fato apresentar-se despido de qualquer

forma de composiccedilatildeo teatral mesmo que se apresente como sendo ldquoele mesmordquo

146

combinaccedilatildeo tensa para localizar aspectos e efeitos construiacutedos na radicalidade das

possibilidades de estabelecimento desse ente relacional Para que isso ocorra faz-se necessaacuteria

buscar aplicar um olhar renovado sobre aspectos de fundamentais da linguagem da animaccedilatildeo

como o que ora se apresenta da possibilidade de exclusatildeo da influecircncia do animador sobre a

apresentaccedilatildeo do boneco

Uma argumentaccedilatildeo que busco construir eacute a de que o proacuteprio ato de manipular

entendido como uma accedilatildeo do ator que implica ou natildeo na movimentaccedilatildeo do boneco que serve

para conferir ao objeto participaccedilatildeo relevante em um contexto de espetaacuteculo teatral por meio

da produccedilatildeo de uma presenccedila qualificada elaborar ou potildee em questatildeo o jogo da animaccedilatildeo

como sendo algo que se estabelece em diaacutelogo com a presenccedila do operador Afinal o aparato

que retirar a capacidade de o puacuteblico perceber o manipulador com perfeiccedilatildeo teacutecnica criando a

ilusatildeo completa de que o boneco se move e entra na cena totalmente por sua conta seraacute

tambeacutem um dispositivo teatral ndash teacutecnico ou dramatuacutergico ndash que natildeo conseguiraacute escapar ao

tema da ausecircncia do manipulador Desta forma teremos uma qualidade de presenccedila construiacuteda

diante de uma impressatildeo de ausecircncia O boneco em suas caracteriacutesticas de forma de

movimento de apresentaccedilatildeo de fala e de inserccedilatildeo no espetaacuteculo teatral trata inapelavelmente

de sua condiccedilatildeo de objeto e por conseguinte da existecircncia de um operador

Assim podemos concluir que a opccedilatildeo por usar um aparato de ocultaccedilatildeo dos atores-

manipuladores das vistas do puacuteblico natildeo eacute nem pode ser uma tentativa de criaccedilatildeo de uma

ilusatildeo de vida autocircnoma dos bonecos ndash ao menos natildeo uma tentativa cuidadosamente

considerada ndash da mesma forma que a exibiccedilatildeo do manipulador durante a apresentaccedilatildeo natildeo

pode ser seriamente subordinada a uma exibiccedilatildeo de periacutecia que conduziraacute a plateacuteia a perder

totalmente a impressatildeo de sua presenccedila

Aqui retomamos agraves ressalvas anteriormente feitas agrave noccedilatildeo de neutralidade como

desaparecimento e modo de o operador ldquonatildeo-serrdquo em cena Jaacute tratamos da impossibilidade

desse desaparecimento e de como da percepccedilatildeo de caracteriacutesticas do operador adveacutem

elementos que compotildeem a apresentaccedilatildeo da forma animada Tratamos tambeacutem desse efeito

intriacutenseco agrave animaccedilatildeo que eacute o conceito de opalizaccedilatildeo desenvolvido por Henryk Jurkowski

para o qual a percepccedilatildeo dupla e simultacircnea do boneco como objeto inerte e vida autocircnoma

pressupotildee a percepccedilatildeo da participaccedilatildeo do operador mesmo oculto

Ainda que possa a princiacutepio surtir algum efeito praacutetico preocupa em termos de clareza

e eficiecircncia o emprego da neutralidade como termo e como procedimento com vistas a

fornecer paracircmetros teacutecnicos que chamem a atenccedilatildeo de artistas em treinamento para uma

dosagem eficiente da expressividade do ator que se potildee a representar juntamente com a forma

147

animada Faz-se necessaacuterio para a compreensatildeo a comunicaccedilatildeo e o treinamento de uma

postura consciente acerca das atenccedilotildees necessaacuterias para a operaccedilatildeo de trocas vivas entre ator e

forma animada um fundamento teacutermino-procedimental que decirc conta justamente dessas

atenccedilotildees

Parece que a noccedilatildeo que se busca deve abordar com certa clareza a dinacircmica de

alternacircncias de ecircnfase de atenccedilatildeo entre manipulador e boneco ao longo da representaccedilatildeo

Tanto oculto atraacutes da empanada ou posto agrave vista do espectador o manipulador exerce certo

controle sobre o andamento da alternacircncia do foco que se move dele para o objeto Assim

entendemos a janela da empanada menos como esconderijo e mais como moldura por meio

da qual os estiacutemulos natildeo satildeo segregados mas ordenados de modo a encaminhar as escolhas e

ecircnfases que compotildeem narrativa espetacular Essa condiccedilatildeo atenta para alguns pontos

importantes e que de certa forma jaacute foram abordados os recursos de ocultaccedilatildeo satildeo tanto de

natureza teacutecnico-cenograacutefica (empanadas janelas figurino) como procedimental-

performativa mas estaacute claro que a eficaacutecia do primeiro recurso quando empregado encontra-

se inapelavelmente subordinado ao modo de emprego do segundo Esse segundo tipo de

recurso (o que envolve o comportamento do ator) permite um transito livre de aplicaccedilatildeo de

recursos e de gradaccedilatildeo de desdobramento presente nos diferentes modos de disposiccedilatildeo

corporal de ator e forma animada Outro ponto eacute a evidente limitaccedilatildeo do controle que mesmo

o mais dotado dos inteacuterpretes tem sobre a percepccedilatildeo da plateacuteia A por vezes incocircmoda mas

sempre estimulante certeza que natildeo se pode mandar na vontade do espectador e que a atenccedilatildeo

sobre as ecircnfases e focos sobre a cena podem ser sugestotildees de encaminhamento da atenccedilatildeo

mas jamais imposiccedilotildees

Outro ponto que merece atenccedilatildeo no que toca ao entendimento dos usos da ocultaccedilatildeo

do ator eacute a tentativa de se estabilizar dentro do possiacutevel a identidade visual ou a unidade

figurativa de um determinado espetaacuteculo de animaccedilatildeo A visatildeo do corpo do operador aqui natildeo

se daacute em prol do estabelecimento de uma ilusatildeo de vida autocircnoma mas de uma unidade

esteacutetica que pretende entregar ao espectador uma proposta artiacutestica que se pretenda

razoavelmente iacutentegra Um mundo habitado por pessoas com cabeccedila de madeira e corpos de

xita estampada estaria assim apresentado de maneira irregular se fosse constantemente

aborrecido pela intervenccedilatildeo de criaturas de carne e osso Outro belo exemplo seria o

espetaacuteculo Filme Noir da PeQuod no qual se buscava recriar a atmosfera dos filmes de

detetive em preto-e-branco Para isso os bonecos foram pintados e vestidos em escala de

cinza e toda a iluminaccedilatildeo foi pensada e feita de modo a natildeo escapar agrave palheta proposta O

diretor da montagem Miguel Vellinho menciona o emprego de filtros sobre os refletores de

148

modo a impedir a projeccedilatildeo do brilho amarelado proacuteprio dos filamentos das lacircmpadas

(VELLINHO 2005) Vellinho comenta entatildeo o encaminhamento das escolhas relativas agrave

caracterizaccedilatildeo dos atores na peccedila

Durante uma etapa do processo de montagem apresentamos um esboccedilo do

que seria o espetaacuteculo Foi aiacute que eu percebi que a cena natildeo imprimia o que

eu almejava justamente por estarem presentes os rosados rostos dos

manipuladores os vaacuterios tons castanhos de seus cabelos e uma infinita

variaccedilatildeo de cores que esmaeciam a proposta inicial Pela primeira vez fomos

obrigados a esconder matildeos e rostos dos manipuladores a fim de apagar

aquela invasatildeo de cores Necessariamente a cor teve que ser a preta por sua

absorccedilatildeo de luz e neutralidade absoluta (idem pp183-4)

E assim Filme Noir apresenta atores operadores de formas animadas vestidos

inteiramente de preto e parcialmente ocultos pela iluminaccedilatildeo recortada de Renato Machado

mais pelo bem de uma escolha de encaminhamento da narrativa esteacutetica do que pela

necessidade de permitir ao boneco expressar-se sem a competiccedilatildeo com a expressividade

inerente agrave presenccedila do ator humano ou mesmo por uma tentativa de criar a ilusatildeo de vida

autocircnoma

Cabe portanto buscar compreender que princiacutepio mais preciso e abrangente

substituiria a noccedilatildeo de neutralidade tanto para a compreensatildeo quanto para o lanccedilamento de

bases procedimentais para o artista de animaccedilatildeo Balardim e Beltrame parecem fornecer

indicativos bastante valiosos para essa perseguiccedilatildeo nas proacuteprias definiccedilotildees que elaboram

sobre a neutralidade Ainda dentro de uma perspectiva de anulaccedilatildeo da expressividade do ator

Balardim em dado momento menciona que a neutralidade consiste em ldquoabrir uma porta de

comunicaccedilatildeo com o inanimadordquo (2004 p88) estabelecendo uma qualidade oacutetima de atenccedilatildeo

do ator para com a forma que anima Nesse momento ele estaacute justamente tratando do

gerenciamento de atenccedilatildeo necessaacuterio ao ator operador de formas necessaacuterio para que esse

possa conjugar caracteriacutesticas e esforccedilos de modo obter o maacuteximo de rendimento da estrutura

conjugada que eacute criada juntamente com o boneco A partir dessa atenccedilatildeo o ator adquire maior

autonomia expressiva e amplia a consciecircncia acerca das possibilidades significativas que a

atuaccedilatildeo conjunta do organismo performativo composto permite Ou seja comunicar-se com a

forma natildeo consiste aqui num processo mistificado de se estabelecer um contato sutil com

vibraccedilotildees vitais encerradas dentro do objeto inanimado mas compreender quais novas

possibilidades de comunicaccedilatildeo de ritmo e de expressividade satildeo abertas a partir da

constituiccedilatildeo de um corpo rearranjado para onde nesse corpo a atenccedilatildeo ndash do ator e do puacuteblico

ndash converge e como se deve portar para que o foco dessa atenccedilatildeo esteja claro e pronto para

149

estabelecer o tipo de comunicaccedilatildeo desejada Beltrame parece acompanhar essa leitura ao

mencionar que na neutralidade abre-se a possibilidade de ldquover aleacutem do aparente olhar mais

profundamente e ver a possibilidade do movimento o lsquovir a serrsquo contido em cada objeto ou

bonecordquo (BELTRAME 2005 p294)

Noutra passagem Balardim defende o trabalho sobre a neutralidade como indicativo de

uma apresentaccedilatildeo cuidada em animaccedilatildeo afirmando que ldquotanto mais ela estaraacute presente quanto

mais atenccedilatildeo (a-tensatildeo relaxamento) do puacuteblico o objeto-personagem puder captarrdquo (idem

p90) Neste trabalho jaacute se falou ndash e ainda se falaraacute ndash das experiecircncias em animaccedilatildeo nas quais

a atenccedilatildeo da plateia natildeo repousa exclusivamente sobre a forma animada natildeo apenas pelas

impossibilidades jaacute mencionadas mas sobretudo pelas escolhas poeacuteticas que as norteiam

Portanto natildeo cabe aqui determo-nos sobre a criacutetica da definiccedilatildeo de um teatro de animaccedilatildeo no

qual a atenccedilatildeo recai toda sobre o ldquoobjeto-personagemrdquo71

mas atentar para o fato de que o

principal objetivo perseguido por meio do recurso da neutralidade eacute o de captar a atenccedilatildeo do

puacuteblico ainda que ao combinar a noccedilatildeo de atenccedilatildeo agrave de relaxamento Balardim esteja

evocando uma qualidade na clareza comunicativa da apresentaccedilatildeo do boneco com a qual este

trabalho em diversas passagens e de diversas formas natildeo compactua Beltrame menciona que

na neutralidade exercita-se a ldquoconsciecircncia de estar em cenardquo o que natildeo pode ser entendido de

outra maneira que natildeo a percepccedilatildeo exata dos efeitos produzidos pelas accedilotildees realizadas em

cena e por conseguinte a busca por uma disposiccedilatildeo eficiente das atenccedilotildees e dos focos

Eacute inegaacutevel neste ponto a importacircncia dos pensamentos de Balardim e Beltrame para o

percurso reflexivo aqui empreendido que parte da contribuiccedilatildeo de ambos no sentido de uma

sistematizaccedilatildeo dos estudos teacutecnicos do teatro de animaccedilatildeo feito no Brasil jaacute devidamente

apresentado em um contexto ampliado de possibilidades poeacutetico-operativas Os escritos de

ambos adquirem sua importacircncia no sentido exato em que apontam para a exortaccedilatildeo de uma

apropriaccedilatildeo consciente e responsaacutevel de um cabedal teacutecnico que permita ao artista de

animaccedilatildeo a devida exploraccedilatildeo das possibilidades da linguagem e lanccedilam bases

imprescindiacuteveis para um modelo pedagoacutegico em animaccedilatildeo moderno e comprometido com a

investigaccedilatildeo artiacutestica

Mesmo com as ressalvas apontadas parece que esses exerciacutecios de definiccedilatildeo de

neutralidade encaminham para a consciecircncia de que o controle da expressividade do ator

71

Sabemos que mesmo essa criacutetica apresenta seus enganos Se pensarmos numa concepccedilatildeo ampliada de forma

animada que inclui as corporalidades combinadas e ateacute mesmo a potecircncia de marionetizaccedilatildeo do corpo humano

em alguns contextos espetaculares imaginar o ldquoobjeto-personagemrdquo mencionado por Balardim a partir de uma

concepccedilatildeo estaacutetica de boneco teatral formalmente definido e exterior ao corpo do operador pode ser um

equiacutevoco

150

operador de formas sobre a cena se daacute ndash ou resulta ndash como um mecanismo de orientaccedilatildeo das

ecircnfases que iratildeo conferir certa qualidade agrave narrativa espetacular Deixa assim de ser uma

busca pela anulaccedilatildeo para tornar-se um gerenciamento de expressividades que opera como

focalizador um guia das possiacuteveis leituras de uma cena em trecircs dimensotildees que dispotildee planos

narrativos concomitantes e enreda os sentidos do espectador em meio a uma variedade

desnorteante de combinaccedilotildees expressivas

Haacute de fato um fundamento teacutecnico-reflexivo presente nos levantamentos jaacute

mencionados de Balardim e Beltrame que parece aproximar-se do presente encaminhamento

da reflexatildeo mas que pode suscitar diferentes leituras e aplicaccedilotildees Curiosamente todas nos

servem ainda que precisem ser devidamente isoladas consideradas e comparadas

151

21 O Foco e outros fundamentos teacutecnico-conceituais

A compreensatildeo usual do que seria o foco se estende por uma quantidade razoaacutevel de

elementos e eventos Em oacutetica o foco pode ser tanto o ponto para o qual converge um ou mais

feixes de luz quanto o ponto a partir do qual um feixe de luz diverge em direccedilatildeo e variedade

Ainda pode ser entendido como o proacuteprio feixe colimado compreendendo assim seus pontos

de origem e convergecircncia O foco de luz teatral relaciona-se obviamente com o refletor

luminoso de onde se origina o feixe mas parece ser livre de equiacutevocos a afirmaccedilatildeo de que sua

forma e funccedilatildeo se exercem em relaccedilatildeo ao seu ponto de chegada ou seja a aacuterea da cena a ser

iluminada oferecida no mais das vezes agrave percepccedilatildeo visual do espectador contribuindo assim

de maneira importante para o esquema de sugestatildeo da orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo que participa da

poeacutetica da encenaccedilatildeo

Para a teacutecnica fotograacutefica o foco pode ser entendido tanto como sendo o processo de

escolha da composiccedilatildeo do quadro que tende a selecionar temas por efeitos de centralizaccedilatildeo

ou distanciamento quanto o recurso por meio do qual ao realccedilar ou ampliar a nitidez da

percepccedilatildeo dos contornos de um dado elemento este se oferece agrave percepccedilatildeo visual com maior

ou menor dificuldade Curioso notar que ao tratarmos de qualidades visuais natildeo

abandonamos em momento nenhum a dinacircmica de convergecircncia e divergecircncia de feixes

luminosos A relaccedilatildeo do foco com a visatildeo nos faz entender que este se situa no centro de uma

dinacircmica perceptiva que lida com o direcionamento do olhar Trata-se de uma dinacircmica de

seleccedilatildeo que propotildee a organizaccedilatildeo de um discurso visual e ergue uma instacircncia intermediaacuteria

entre o objeto percebido e o observador deformando e refazendo o objeto no processo

Susan Sontag consegue exprimir com clareza o efeito perceptivo da seletividade

fotograacutefica

Atraveacutes da fotografia o mundo se torna uma seacuterie de partiacuteculas livres natildeo

relacionadas entre si e a histoacuteria passado e presente satildeo um conjunto de

anedotas e faits divers A cacircmera torna a realidade atocircmica manuseaacutevel e

opaca Eacute uma visatildeo do mundo que nega a inter-relaccedilatildeo e a continuidade mas

confere a cada momento o caraacuteter de misteacuterio (SONTAG apud BERGER

2003 p54)

Essa seletividade tem a capacidade de refundar o sensiacutevel ou ao menos propor o

estabelecimento de novas aproximaccedilotildees com ele Eacute uma fonte de narratividade o foco por ser

a partir dele e em relaccedilatildeo a ele que os elementos da percepccedilatildeo iratildeo se organizar de modo a

orientar uma leitura

152

O teatro como se sabe natildeo possui a mesma eficaacutecia (ou vontade) da fotografia no que

diz respeito ao isolamento dos elementos que compotildeem o discurso do que se apresenta De

fato eacute da natureza mesmo da arte teatral a disposiccedilatildeo simultacircnea de elementos de diferentes

sistemas de significaccedilatildeo (atores discurso dramatuacutergico efeitos iluminoteacutecnicos sonoros

accedilotildees simultacircneas microreaccedilotildees contaminaccedilatildeo de informaccedilotildees vindas de fora da aacuterea de

representaccedilatildeo entre outros) que ora propotildeem leituras resultantes das combinaccedilotildees

estabelecidas ora simplesmente restam como ruiacutedos que significam isoladamente e ateacute

mesmo propotildeem combinaccedilotildees inusitadas Assim sendo o foco no teatro cumpre uma funccedilatildeo

muito mais de sugerir a conduccedilatildeo da atenccedilatildeo do espectador do que propriamente produzir um

ponto de vista segregado e atomizado apontado por Sontag como sendo proacuteprio da fotografia

Pavis apresenta a questatildeo da focalizaccedilatildeo como sendo um recurso empregado pelo

autor de conferir maior visibilidade e impacto de um determinado tema em meio agrave sequecircncia

de eventos que constitui a accedilatildeo dramaacutetica (1998 pp208-9) Sem mencionar exemplos Pavis

atribui um caraacuteter notadamente eacutepico ao recurso Acompanhar o raciociacutenio do professor

francecircs identifica o recurso como uma teacutecnica de seleccedilatildeo de informaccedilotildees em meio a diversas

disponiacuteveis como quem conduz uma lanterna em meio a um quadro direcionando nosso

olhar para aquilo que interessa ser mostrado Determinadas aacutereas destacam-se pela

centralidade que ocupam na aacuterea iluminada e ainda que algo possa restar na completa

obscuridade seraacute possiacutevel enxergar muito do que estaacute em torno do centro da atenccedilatildeo sugerida

e muito ainda poderaacute ser visto por efeitos de rebatimento luminoso Ainda e sem abandonar a

analogia proposta Pavis reconhece tambeacutem a focalizaccedilatildeo a partir da consideraccedilatildeo de quem

segura e conduz a lanterna Um claro recurso de revelaccedilatildeo de um

componente de subjetividade na construccedilatildeo do discurso dramaacutetico Seguindo aleacutem e

considerando uma determinada perspectiva de criaccedilatildeo em teatro pode-se empregar a mesma

loacutegica para se identificar a poeacutetica da encenaccedilatildeo como algo que insere (sobrepotildee talvez seja

mais adequado) um ou mais pontos de focalizaccedilatildeo sobre a sequecircncia de eventos dispostos

diante do espectador

O foco organiza e provoca a percepccedilatildeo Estaacute presente tanto na instacircncia interna de

organizaccedilatildeo do discurso na sua produccedilatildeo mesmo quanto na instacircncia externa aquela que se

funda na percepccedilatildeo do espectador Haacute uma passagem ceacutelebre na obra reflexiva de Sergei

Eisenstein na qual eacute demonstrada como a alteraccedilatildeo da angulaccedilatildeo da cacircmera na captaccedilatildeo da

imagem de um objeto (no caso uma maacutescara) eacute capaz de produzir sensaccedilotildees diversas de

estatismo e movimento (2002 pp5760) (Figura 79)

153

Figura 78 Esquema de Serguei Eisenstein aplicaccedilatildeo de conflito por meio de alteraccedilatildeo focal

Fonte EISENSTEIN 2002 p 57

Figura 79 Foco alteraccedilatildeo de tema e ecircnfase na imagem por meio de distorccedilatildeo focal

Fonte (httpwwwzhpcombrdicasfoco-ou-a-falta-de-na-composicao-fotografica)

Foto Henrique Pimentel

154

Para se pensar a funccedilatildeo do foco no teatro de animaccedilatildeo deve-se em primeiro lugar

entender os processos teacutecnico-linguiacutesticos de emprego que lidam com modos e efeitos do

direcionamento da atenccedilatildeo e como a ativaccedilatildeo consciente e rigorosa dos efeitos de focalizaccedilatildeo

ordena o discurso da cena e permite a criaccedilatildeo da sensaccedilatildeo de autonomia imaginada e relaccedilatildeo

do objeto com o contexto espetacular Mas natildeo se pode perder de vista sobretudo ao lidarmos

com as vontades percebidas em empreendimentos artiacutesticos das uacuteltimas cinco deacutecadas

questotildees relativas agrave transposiccedilatildeo da questatildeo teacutecnica para o campo temaacutetico onde o teatro de

animaccedilatildeo indaga a sua proacutepria especificidade formal e lida com a questatildeo da focalizaccedilatildeo em

uma dinacircmica de alternacircncias e indefiniccedilotildees propositais produzindo focos elusivos

distorcidos e muacuteltiplos acompanhando de certa maneira natildeo apenas as vontades que

produzem um discurso menos formalizado mas tambeacutem a reorganizaccedilatildeo dos limites fiacutesicos

do boneco teatral Para que tal se decirc o percurso reflexivo deveraacute ser cuidadoso e detido

Vamos a ele

Em teatro de animaccedilatildeo existe uma compreensatildeo da noccedilatildeo de foco expressa por meio

de um princiacutepio teacutecnico recorrente em salas de ensaio Seria grosso modo a capacidade que o

ator que opera o boneco desenvolve de fazecirc-lo mostrar possibilidades de percepccedilatildeo e

sensibilidade Beltrame deixa clara essa noccedilatildeo ao afirmar que ldquoa noccedilatildeo de foco pode ser

exemplificada em momentos em que o boneco projeta o seu olhar para o objeto ou

personagem com que contracenardquo (2009 p292) Esta seria uma qualidade importante para a

dinacircmica perceptiva do boneco teatral uma vez que dirigir-se com precisatildeo espacial ao seu

interlocutor ou indicar acuradamente a percepccedilatildeo de elementos que lhe chamam a atenccedilatildeo

produz um efeito que contribui para a imaginaccedilatildeo de autonomia da forma animada ao

produzir o entendimento do objeto como possuidor de uma capacidade de percepccedilatildeo criando

dessa forma uma potecircncia de relaccedilatildeo

Em treinamentos e ensaios eacute recorrente a associaccedilatildeo do direcionamento focal com a

emulaccedilatildeo do olhar Mas Beltrame amplia a questatildeo ao tratar o olhar como recurso de

exemplificaccedilatildeo do foco ao inveacutes de sugerir uma relaccedilatildeo obrigatoacuteria entre focalizaccedilatildeo e

emulaccedilatildeo da visatildeo A variedade de formas materiais e dinacircmicas de movimentaccedilatildeo

apresentadas pelos elementos presentes no teatro de animaccedilatildeo fazem questionar a relaccedilatildeo

obrigatoacuteria entre focalizaccedilatildeo e olhar jaacute que certos bonecos simplesmente natildeo possuem olhos

nem se pode fazer uma correlaccedilatildeo direta entre a sua estrutura fiacutesica e um corpo humano ou

animal Pode-se buscar entatildeo para explicar a noccedilatildeo de foco a aproximaccedilatildeo com conceitos

tais como emulaccedilatildeo de percepccedilatildeo e imaginaccedilatildeo de projeccedilatildeo de interesse Quando Beltrame

mais adiante menciona o preceito corrente de que ldquoo boneco olha com a cabeccedila inteirardquo

155

Figura 80 Foco como emulaccedilatildeo do olhar

(Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto)

Foto Karim Sauro

Figura 81 Atenccedilatildeo do operador sobre o boneco como

orientaccedilatildeo focal (Cia Truks Vovocirc)

Fonte (httpwwwtrukscombr)

Figura 82 Convergecircncia focal entre ator e

boneco (PeQuod Peer Gynt ndash ensaio)

Foto Mario Piragibe

Figura 83 Focalizaccedilatildeo por contracenaccedilatildeo (El

Chonchoacuten Juan Romeo amp Julieta Maria ator Carlos

Pintildeeiro)

Fonte httpwwwsalta21comEl-Chonchon-

buenisimo-Destacadoshtml

Figuras 84a e 84b Divisatildeo de foco por expressatildeo (detalhes das Figuras 56 e 72)

156

(idem p 293 grifo meu) trata de como a impressatildeo do direcionamento focal se daacute em

movimentaccedilotildees que comprometem toda a estrutura da forma animada e natildeo por meio apenas

de uma conduccedilatildeo discreta e isolada do centro de percepccedilatildeo Isto contribui para o

entendimento de que o olhar ainda que possa ser uma referecircncia uacutetil na compreensatildeo e

execuccedilatildeo do direcionamento focal no boneco natildeo daacute conta do que seria o foco tanto em

termos conceituais quanto praacuteticos (ainda por que ao menos nesse caso o entendimento

separado entre conceito teoacuterico-reflexivo e fundamento praacutetico eacute falsa)

De toda maneira em casos como por exemplo na jaacute mencionada combinaccedilatildeo de tubo

articulado e bola do Muumlmmenchanz um direcionamento focal preciso eacute capaz de conduzir a

plateia a imaginar uma relaccedilatildeo eficiente entre a estrutura da forma animada e um corpo

iacutentegro e autocircnomo

Na disciplina optativa ministrada por mim no segundo semestre de 2010 para os

cursos de bacharelado e licenciatura em Teatro da Universidade Federal de Uberlacircndia foi

trabalhado um exerciacutecio no qual os alunos deveriam propor accedilotildees sobre pedaccedilos de tecidos

roupas velhas e pedaccedilos de papel amassado de modo a que estes pudessem ser entendidos

como formas animadas A questatildeo principal apresentada agrave turma era como e quando a peccedila de

material trabalhada deixava de ser apenas um retalho ou pedaccedilo de jornal e cedia espaccedilo para

a imaginaccedilatildeo de uma determinada presenccedila O que se percebeu foi que a identificaccedilatildeo de um

centro de percepccedilatildeo72

eacute fundamental para produzir a imaginaccedilatildeo de presenccedila e autonomia que

traccedila a linha entre apenas pano e pano usado como boneco Ainda que seja curioso perceber

que muitos alunos acabaram optando por moldar em seus materiais formas que se

assemelhassem a partes de corpos (pernas cabeccedilas narizes) uma operaccedilatildeo atenta ao

direcionamento focal da forma animada permitia que se imaginasse integridade corporal em

formas esquemaacuteticas parciais em objetos com pouca semelhanccedila com a forma humana

(Video 9) ou que evitavam a reproduccedilatildeo reconheciacutevel de membros ou traccedilos de feiccedilatildeo

Assim sendo eacute possiacutevel entender o foco como um componente teacutecnico-conceitual que

atua na emulaccedilatildeo da autonomia da forma animada mas natildeo se pode perder de vista a sua

importacircncia para a ordenaccedilatildeo do discurso espetacular em teatro de animaccedilatildeo De fato essas

duas funccedilotildees ndash emulaccedilatildeo de autonomia e ordenaccedilatildeo de discurso cecircnico ndash estatildeo imbricadas por

meio da noccedilatildeo anteriormente mencionada de como a percepccedilatildeo da forma animada se daacute

forccedilosamente a partir da instauraccedilatildeo de uma teatralidade

72

Por centro de percepccedilatildeo identifico o ponto na estrutura do boneco que reage e se direciona ao que se pretende

fazer a forma perceber e assim orientar a sua loacutegica de movimentaccedilatildeo

157

Figura 85a 85b 85c 85d Deslocamento e foco em trabalhos com materiais Aula Teatro de Formas

animadas (IARTE-UFU) Alunos Victor Rodrigues Viniacutecius Fonseca Gabriela Martins e Ana Claacuteudia

Zumpano

Foto Mario Piragibe

Figura 86 Centro de focalizaccedilatildeo impliacutecito Cia Truks Isto natildeo eacute um cachimbo

Fonte (httpwwwtrukscombr)

158

Beltrame menciona um princiacutepio teacutecnico-conceitual nomeado ldquoolhar como indicador

da accedilatildeordquo (idem) que parece apresentar com clareza a integraccedilatildeo entre a emulaccedilatildeo da

autonomia e a ordenaccedilatildeo do discurso da cena O princiacutepio trata de como o direcionamento

focal do boneco orienta

o espectador a dar-se conta dos dados e elementos que satildeo fundamentais para o

acompanhamento desejado da cena apresentada Aqui o direcionamento do foco do boneco

estaacute contribuindo conjuntamente para a percepccedilatildeo da autonomia do boneco e para o

ordenamento das ecircnfases da cena apresentada

Balardim em sua relaccedilatildeo de preceitos teacutecnicos para o ator de animaccedilatildeo natildeo relaciona

o foco em seu rol de princiacutepios mas trata da noccedilatildeo em uma perspectiva especiacutefica que parte

da concepccedilatildeo do que ele chama de ldquocontrole atencionalrdquo (2004 pp98-100) Sua preocupaccedilatildeo

maior repousa na conduccedilatildeo da atenccedilatildeo do puacuteblico e ainda que defenda o quanto o rigor no

endereccedilamento dos pontos focais da cena contribui para ldquoorientar o olhar do puacuteblico em

direccedilatildeo ao que precisa ver [a forma animada] para encontrar o que quer verrdquo (idem p100

grifos do autor) Balardim parece entender o esforccedilo de imprimir a forma animada como

sendo uma presenccedila qualificada dissociada do esforccedilo de ordenaccedilatildeo dos assuntos e ecircnfases da

cena na qual ela se insere A convicccedilatildeo expressa neste trabalho de que o boneco pelas

qualidades de convocaccedilatildeo de teatralidade existentes na sua apresentaccedilatildeo provoca uma relaccedilatildeo

de indissociabilidade entre concepccedilotildees e recursos de ordenamento do discurso cecircnico e de

emulaccedilatildeo de autonomia e presenccedila

A esse respeito pode ser mencionado um procedimento natildeo tratado por Belatrame e

Balardim que lida com o foco em casos de apresentaccedilatildeo de bonecos com atores operadores agrave

mostra Trata-se do direcionamento do olhar do animador durante a atuaccedilatildeo com o boneco

Percebe-se que quando o olhar do ator se encontra claramente direcionado sobre o boneco que

opera se produz na percepccedilatildeo do espectador um efeito eficiente de transferecircncia de atenccedilatildeo

que contribui para a imaginaccedilatildeo de autonomia e atenccedilatildeo detida sobre as accedilotildees do boneco

(Figura 82) Isto vale mesmo para bonecos operados agrave vista por mais de um ator Ocorre uma

orientaccedilatildeo da atenccedilatildeo que parte do ator em direccedilatildeo ao boneco e em seguida a partir do

boneco na direccedilatildeo de seu foco Se por acaso a atenccedilatildeo do ator desviar-se diretamente para o

foco final do boneco e ali pousar cria-se por forccedila desse direcionamento uma divisatildeo de

atenccedilatildeo que produz um efeito que tende a fazer com que boneco e ator dividam a centralidade

da atenccedilatildeo por efeito do foco comum e em casos extremos excluir o boneco do quadro de

atenccedilatildeo Ainda se a atenccedilatildeo do ator diverge em uma direccedilatildeo diversa do foco do boneco no

mais das vezes produzir-se-aacute uma ecircnfase em contraponto uma tensatildeo divergente que tende a

159

aplicar uma forccedila de atraccedilatildeo por instantes mais poderosa do que a do foco dirigido pelo

boneco Deve-se atentar no entanto que tais efeitos satildeo obtidos mais por forccedila da dinacircmica

de divergecircncia e convergecircncia da atenccedilatildeo do que propriamente como comprovaccedilatildeo da

atratividade superior do ator vivo em relaccedilatildeo ao boneco originalmente inerte Esse jogo de

divergecircncias e convergecircncias da atenccedilatildeo aponta para as diversas possibilidades de uso da

focalizaccedilatildeo com operador agrave vista partindo e multiplicando pontos de vista Natildeo eacute a intenccedilatildeo

deste estudo condenar os procedimentos de divergecircncia mas mais que isso perceber o quanto

de possibilidades de significaccedilatildeo estes permitem

Em termos objetivos a noccedilatildeo de foco como recurso de operaccedilatildeo por meio do qual se

emula no boneco um centro sensorial Os diversos empregos e noccedilotildees do foco para o teatro de

animaccedilatildeo aqui apresentados lidam com diferentes origens do direcionamento focal (o foco do

boneco o foco do ator o foco do espectador o foco da cena) e pontos de chegada no

miacutenimo avizinhados se natildeo idecircnticos Curioso notar que o destino final do foco no teatro de

animaccedilatildeo natildeo seja exatamente a forma animada mas os componentes discursivos da cena que

ela instaura no modo como se dispotildeem diante do espectador Essa disposiccedilatildeo natildeo significa

em momento algum a obrigatoriedade da instauraccedilatildeo de um discurso linear mas permite

simultaneidade e divergecircncia uma vez que a cena de animaccedilatildeo eacute suportada na percepccedilatildeo do

espectador pelo escoramento muacutetuo da autonomia da forma e da integridade da cena

Ainda podemos perceber que a aceitaccedilatildeo do princiacutepio do foco parece desalojar do

nosso campo de consideraccedilotildees a neutralidade como norteador para reflexatildeo e treinamento

Poderiacuteamos insistir na jaacute mencionada incapacidade de desaparecimento do ator na cena de

animaccedilatildeo mas parece-nos mais conveniente a consideraccedilatildeo de que a seleccedilatildeo perceptiva

operada por meio de recursos de focalizaccedilatildeo natildeo apenas reconhece os elementos perifeacutericos

ao centro focal mas contribui para a sua manutenccedilatildeo Ou seja a focalizaccedilatildeo natildeo ocorre por

meio da supressatildeo de elementos da cena mas pelo encaminhamento de signos que faz o

espectador reconhecer o status ocupado por cada um deles dentro da cena e o direcionamento

da atenccedilatildeo que aponta para seus nuacutecleos focais Isto equivale dizer que o natildeo ignoramos o que

eacute perifeacuterico mas usamos a percepccedilatildeo desses elementos como guia para o direcionamento da

atenccedilatildeo Eugecircnio Barba menciona algumas figuras do teatro oriental nas quais os atores se

encarregam de interpretar a ausecircncia Descreve os casos em que se emprega uma refinada

teacutecnica corporal para transmitir a impressatildeo de exterioridade agrave cena e desaparecimento da

personagem

[] o waki o ator secundaacuterio no Nocirc que frequumlemente expressa seu proacuteprio

natildeo-ser Ele coloca em accedilatildeo uma complexa teacutecnica corporal extracotidiana

160

para expressar-se a si mesmo mas chama atenccedilatildeo para a sua habilidade em

satildeo se expressar [] O kokken homem vestido de preto que auxilia o ator

principal no Nocirc e Kabuki eacute tambeacutem chamado a ldquorepresentar sua ausecircnciardquo

Sua presenccedila que expressa ou representa nada [] (BARBA amp

SAVARESE 1995 p10)

A descriccedilatildeo de Barba daacute a entender com razoaacutevel clareza que natildeo se trata nesses casos de

empregar uma teacutecnica para natildeo fazer-se notar mas sim dar-se a ver como algo exterior agrave accedilatildeo

dramaacutetica O esforccedilo dos artistas aqui natildeo repousa sobre o proacuteprio desaparecimento mas

sobre o direcionamento de atenccedilatildeo desejado seguindo coacutedigos estritos de comportamento

cecircnicos compreendidos por artistas e puacuteblico

Eacute por isso que se propotildee o entendimento de que seria mais preciso do ponto de vista

conceitual e mais funcional do ponto de vista da praacutetica que a noccedilatildeo de neutralizaccedilatildeo fosse

substituiacuteda pela de focalizaccedilatildeo Deixariacuteamos assim de incorrer em equiacutevocos de reflexatildeo e

treinamento e voltariacuteamos nossos olhos para possibilidades teacutecnico-conceituais que

considerassem a cena de animaccedilatildeo a partir da sua variedade de recursos figurativos e

possibilidades discursivas O foco tambeacutem resta como conceito rico que permite entender e

visualizar a integraccedilatildeo entre boneco e accedilatildeo teatral definindo-se como a produccedilatildeo de uma

sensibilidade dentro da cena de animaccedilatildeo que sustentaraacute ao mesmo tempo a imaginaccedilatildeo de

autonomia da forma animada e a integridade da cena teatral

Pelo cumprimento das funccedilotildees aqui mencionadas podemos eleger o foco como sendo

o principal fundamento teacutecnico-reflexivo a nortear o entendimento e o preparo do ator de

apresentaccedilatildeo em formas animadas A atenccedilatildeo ao foco eacute o que permite realizar a apresentaccedilatildeo

da forma animada e a construccedilatildeo da cena que esta instaura mesmo em meio a uma cena de

animaccedilatildeo que opta por dispensar a linearidade do discurso e de uma forma animada que tem

seus contornos tornados indecisos por efeito das relaccedilotildees ambiacuteguas e provisoacuterias que

estabelece com materiais e corpos de atores O alcance e a presenccedila desse preceito sobre a

cena animada tambeacutem pode nos ajudar a pensar acerca de uma das principais caracteriacutesticas

do recurso do animador aparente que apesar de ser facilmente percebida durante a

experiecircncia praacutetica tem a sua definiccedilatildeo dificultada por palavras e argumentos que insistem

em esconder-se Quando Jurkowski comenta uma montagem de Don Quijote dirigida por

Josef Kofta em 1977 refere-se ao emprego do animador aparente como operando sobre a cena

ldquodiferentes meios de expressatildeordquo (JURKOWSKI 1990 p64) que dispunham

simultaneamente variados meios de figuraccedilatildeo de personagens e situaccedilotildees (personagens

representados por bonecos e atores ao mesmo tempo objetos simbolizando personagens

diferentes tipos de bonecos representando o mesmo personagem recursos sonoros indicando a

161

presenccedila e a accedilatildeo de um determinado personagem) A cena se tornava assim segundo

Jurkowski num conjunto de ldquoaacutetomos cecircnicosrdquo dispostos ao mesmo tempo O ator aparente

natildeo era apenas o elemento capaz de estabelecer e evidenciar tais diferenccedilas Sua visibilidade

bem como sua possibilidade de interferecircncia ativa era o elemento capaz de operar dar

sentido e por conseguinte constituir uma cena com essa combinaccedilatildeo de diferentes traccedilos

O tracircnsito do ator em meio agraves formas de materiais traccedilos e escalas variadas eacute o

elemento capaz de impor agrave cena um ordenamento discursivo que natildeo se daacute apenas por

recursos de direcionamento do olhar mas de interaccedilatildeo operaccedilatildeo e narraccedilatildeo Sua influecircncia

natildeo ordena o discurso da cena num sentido da implementaccedilatildeo de uma sequecircncia loacutegica nem

do estabelecimento de conexotildees racionais entre eventos e figuras mas de uma aproximaccedilatildeo

criada por meio da relaccedilatildeo que dinamiza a percepccedilatildeo e a interconexatildeo dos elementos da cena

heterogecircnea O ator dessa forma opera como um catalisador de elementos que satildeo dessa

maneira oferecidos agrave percepccedilatildeo em uma potecircncia de significaccedilatildeo ampliada

Por isso a opccedilatildeo pelo ator operador de formas posto agrave vista tambeacutem abre a

possibilidade para uma cena na qual a heterogeneidade formal e narrativa caracteriacutesticas do

teatro de animaccedilatildeo se apresente em evidecircncia radical O artista de animaccedilatildeo aparente natildeo

opera apenas o boneco opera a organizaccedilatildeo espacial temporal e formal do espetaacuteculo num

tipo de desdobramento que lhe confere certo status de narrador ou construtor da realidade

apresentada Nas palavras de Didier Plassard

Alternadamente narrador e personagem sobrepondo-se agrave accedilatildeo e deslizando nela o

ator torna-se o lugar de uma dissociaccedilatildeo entre os diferentes planos da

representaccedilatildeo ao mesmo tempo em que sua forma pode fazer desaparecer os

inteacuterpretes de seu drama (PLASSARD 1995 p19)

Estamos diante da tarefa de nos debruccedilarmos sobre aspectos relacionais de dois

elementos que possuem uma carga teatral poderosa ator e marionete A combinaccedilatildeo entre

esses elementos nunca produz sobre a cena acomodaccedilotildees ou unidades pelo contraacuterio Eacute da

constante fricccedilatildeo entre seus potenciais expressivos que surge uma das dimensotildees mais

encantadoras e diversas da arte teatral dimensatildeo esta que adere de maneira inapelaacutevel sobre

teorias e praacuteticas para o ator e para a cena de nosso tempo

162

32 Quem manda em quem Soberanias da cena de animaccedilatildeo

Vocecirc natildeo o movimenta vocecirc o deixa mover-se essa eacute a

arte

E G Craig

Jaacute foi comentado neste trabalho o fato de que em termos gerais natildeo se pode

estabelecer uma hierarquia estaacutevel para determinar a relevacircncia que ator e boneco exercem

sobre a cena um em relaccedilatildeo ao outro sobretudo nas ocasiotildees em que o ator operador da

forma se apresenta agraves vistas do puacuteblico A dificuldade de se precisar qual desses dois ocuparia

a centralidade do ato artiacutestico no que diz respeito a seus processos criativos e a seus modos

de recepccedilatildeo podem ser explicados pela combinaccedilatildeo de alguns argumentos Em primeiro lugar

podemos (sempre para quase todas as questotildees de entendimento acerca da arte em questatildeo)

evocar a grande diversidade de processos efeitos e manifestaccedilotildees relacionadas ao teatro de

animaccedilatildeo Podemos perceber que a maneira como se trabalha e se percebe a integraccedilatildeo entre

animador e boneco varia bastante entre formatos tais como o teatro de sombras indiano que

dispotildee seus espectadores dos dois lados da tela de projeccedilatildeo pondo seus operadores agrave mostra a

manipulaccedilatildeo de ateacute trecircs operadores por boneco do bunraku que isola e revela o narrador

vocalizador e que ainda que apresente a maioria dos seus operadores trajados em coberturas

negras exibe o operador mais experiente em branco e com a cabeccedila descoberta o uso da

empanada para bonecos de luva como nas apresentaccedilotildees do Punch and Judy onde se joga

constantemente por meio de chistes e jogos verbais com a existecircncia do manipulador e que

usualmente apresenta outro artista diante da empanada para provocar dinacircmicas de integraccedilatildeo

com o puacuteblico (essas caracteriacutesticas satildeo encontradas tambeacutem com muita forccedila no

mamulengo) ou as apresentaccedilotildees de narrativas ilustradas como se verifica em apresentaccedilotildees

nas quais satildeo contadas histoacuterias pontuadas pelo emprego de objetos e o jaacute mencionado

formato de retaacutebulo descrito por Cervantes na famosa passagem de Don Quixote

Em todos os exemplos mencionados se verifica que a apresentaccedilatildeo do boneco se daacute

em relaccedilatildeo ao ator que o opera de uma maneira que suplanta a funccedilatildeo da movimentaccedilatildeo O

suposto problema apresentado a partir do fato de que o operador natildeo pode distanciar-se do

boneco para operaacute-lo faz do ator uma espeacutecie de apecircndice obrigatoacuterio continuaccedilatildeo ou

duplicaccedilatildeo corporal Mas essa percepccedilatildeo conjunta se daacute bem menos pela proximidade fiacutesica

do que pelo fato de que a apresentaccedilatildeo do boneco teatral pressupotildee tambeacutem uma atuaccedilatildeo

desdobrada na qual recursos expressivos satildeo trocados entre operador e forma animada

163

produzindo aproximaccedilotildees (no engajamento na accedilatildeo da cena na funccedilatildeo de transmissatildeo de um

sujeito teatral) e diferenccedilas (de forma de corpo de origem da voz)

Alcanccedilamos assim outro argumento interessante e que pode ser verificado Ator e

marionete se constituem numa unidade que se constroacutei e desconstroacutei constantemente diante da

plateacuteia num arranjo fundamentalmente tenso Haacute de fato como jaacute mencionamos uma

dinacircmica de percepccedilatildeo muacuteltipla e simultacircnea na apresentaccedilatildeo do boneco que Jurkowski

chama de efeito de opalizaccedilatildeo mas tambeacutem eacute verdade que em cena operador e boneco

podem alternadamente e de acordo com particularidades da apresentaccedilatildeo chamar para si a

centralidade da accedilatildeo mais significativa da cena

As trocas e diaacutelogos entre operadores e bonecos observados em alguns momentos da

Cia Truks (o espetaacuteculo Vovocirc por exemplo) integra na accedilatildeo direta da cena os atores

operadores para em seguida fazecirc-los retornar ao segundo plano de atenccedilatildeo (tendo o boneco

ocupando o centro da zona focal) Satildeo dinacircmicas de perguntas reaccedilotildees e piadas nas quais por

um instante os manipuladores interagem em contra-cena com o boneco provocando breves

alteraccedilotildees no status cecircnico do operador Jaacute em Peer Gynt da cia PeQuod em momentos

como o que o ator descreve as condiccedilotildees de seu banimento segurando sem cuidados

manipulativos o boneco da personagem central apenas para indicar representa aquela

personagem lida-se com um status cecircnico para o ator que alcanccedila o limite do alijamento do

boneco da condiccedilatildeo de forma animada para mostraacute-lo apenas como iacutendice da personagem

teatral Em dado momento boneco eacute acomodado no joelho do ator que se abaixa para

prosseguir com a cena operando-o agrave vista A dinacircmica de status de cena aqui opera outras

variaccedilotildees sobre a percepccedilatildeo de ator e boneco que se desdobram em torno de uma mesma

personagem produzindo variaccedilotildees de possibilidades diferentes das do primeiro exemplo

Ana Maria Amaral apresenta sua versatildeo acerca da questatildeo de poderes entre

manipulador e boneco em um contexto mais tradicional de apresentaccedilatildeo e usa para tal o

verbo servir73

No teatro o ator cria o personagem cria a imagem do seu personagem No teatro

de bonecos a imagem do personagem jaacute vem pronta e o ator-manipulador apenas

serve o bonecordquo (AMARAL 1993 p73)

Para Amaral a questatildeo natildeo reserva surpresas e ainda que possa estar se referindo a um

modo mais tradicional de apresentaccedilatildeo com o boneco (o que talvez natildeo seja o caso) evoca

73

ldquoNo teatro o ator cria o personagem cria a imagem do seu personagem No teatro de bonecos a imagem do

personagem jaacute vem pronta e o ator-manipulador apenas serve o bonecordquo (AMARAL 1993 p73) A escolha de

palavras nessa passagem eacute fundamental para o entendimento que nesta obra a autora entende como resolvida a

questatildeo de dominaccedilotildees em se tratando do teatro de bonecos tradicional

164

Figura 87a 87b 87c 87d O boneco como indicativo da personagem PeQuod Peer Gynt

Fotos Simone Rodrigues

165

uma distribuiccedilatildeo de tarefas simples e direta harmoniosa A personagem assim pode ser

reduzida agrave sua imagem restando ao manipulador no que toca agrave construccedilatildeo da personagem

serviacute-la

Ana Maria Amaral evoca no texto duas possiacuteveis significaccedilotildees para a noccedilatildeo de servir

e assim permite que natildeo se perca de vista certa relaccedilatildeo de servidatildeo do ator para com o boneco

teatral No entanto amplia a leitura do termo com a noccedilatildeo de apresentaccedilatildeo empregando o

verbo em alusatildeo ao serviccedilo do garccedilon que atende ao cliente mas que tambeacutem apresenta e

dispotildee diante dele o prato solicitado Para Amaral o ator natildeo serve ao boneco ele serve o

boneco no sentido de apresentar oferecer agrave percepccedilatildeo Agrave primeira vista pode parecer que esta

leitura se posiciona de maneira bastante clara acerca de conferir a centralidade da cena ao

boneco que seria tambeacutem o sustentaacuteculo da ilusatildeo cecircnica e o portador das informaccedilotildees

referentes agrave personagem dramaacutetica No entanto parece que a escolha de palavras feita por

Amaral remete a uma dinacircmica de insurgecircncia como um motim de serviccedilais Aquele que

serve o manipulador tambeacutem entrega aos sentidos ndash em sacrifiacutecio em refeiccedilatildeo ndash do puacuteblico

o boneco que apenas consegue afirmar seu poder de dominar as atenccedilotildees mediante a entrega

de seu controle a outro Dessa maneira evolui o jogo de poder sobre a cena de animaccedilatildeo

concessatildeo como estrateacutegia de dominaccedilatildeo e traiccedilatildeo ao outro como meio para entronizaacute-lo

Tillis recolhe e comenta de Jurkowski uma aproximaccedilatildeo mais criacutetica da questatildeo da

servidatildeo entre ator e boneco Usando como exemplos as apresentaccedilotildees em formato de

retaacutebulo (como no teatro de Mestre Pedro descrito por Cervantes em Don Quixote) e dos

intermediaacuterios entre boneco e plateia (como ocorre no Petrushka no Punch and Judy e no

mamulengo) (TILLIS 1992 pp 69-70) Para Jurkowski em apresentaccedilotildees nas quais a forma

animada se apresenta como suporte ou ilustraccedilatildeo para uma narraccedilatildeo verifica-se uma situaccedilatildeo

de servidatildeo do boneco em relaccedilatildeo ao ator narrador mas quando o ator eacute um intermediaacuterio

entre o boneco protagonista e o puacuteblico esse status de serviccedilo estaria invertido

Pode-se argumentar que os casos usados como exemplo natildeo se constituem em relaccedilotildees

claras entre boneco e ator operador uma vez que natildeo se verifica uma relaccedilatildeo manipulativa

clara entre artista e forma Mas se retornarmos ao capiacutetulo anterior no qual foi observado que

a atuaccedilatildeo do trabalho do animador consiste em inserir o objeto dento do contexto de

representaccedilatildeo teatral podemos sim localizar qualidades de interaccedilatildeo passiacuteveis de se

estabelecer para este estudo ao menos uma relaccedilatildeo entre forma e operador

Ainda assim cabe a observaccedilatildeo da questatildeo da servidatildeo em situaccedilotildees de relaccedilatildeo

manipulativa mais evidente Busquemos novamente a passagem de Peer Gynt da PeQuod

descrito anteriormente Ao iniacutecio da cena da descriccedilatildeo do banimento pode-se afirmar que a

166

funccedilatildeo de iacutendice da personagem cumprido pelo boneco caracteriza um estatuto de serviccedilo nos

termos apresentados por Jurkowski do boneco para o ator Mas no momento seguinte quando

o boneco eacute acomodado no joelho do ator que passa a operaacute-lo de modo a oferece-lo ao centro

focal da cena o estatuto se inverte

Se entendemos o fenocircmeno da apresentaccedilatildeo do boneco teatral numa dinacircmica de

percepccedilatildeo simultacircnea a dinacircmica de dominacircncias da centralidade focal eacute alternada De fato eacute

fundamental o estabelecimento da primeira circunstacircncia para que a dinacircmica de dominacircncias

adquira o seu ritmo e a sua significacircncia

Observa-se sobretudo em manifestaccedilotildees mais recentes de teatro de animaccedilatildeo uma

intermitecircncia na maneira como se percebe o boneco uma vez que haacute tambeacutem uma dinacircmica

de arranjos provisoacuterios no ato de formaacute-lo e apresenta-lo Como jaacute foi mencionado a proacutepria

sugestatildeo de vida imaginada de sua apresentaccedilatildeo a sua presenccedila qualificada se apoacuteia sobre

uma significaccedilatildeo dupla opalizada Ocorre que em manifestaccedilotildees mais recentes os temas e as

configuraccedilotildees sensiacuteveis do boneco teatral adicionaram a essa percepccedilatildeo jaacute ambiacutegua de sua

apresentaccedilatildeo uma dinacircmica de usurpaccedilotildees e dominacircncias tanto da atenccedilatildeo do espectador

quanto da capacidade propositiva que guia a criaccedilatildeo em cena Este momento do trabalho se

dedica a analisar de dentro a relaccedilatildeo entre manipulador e forma animada em meio agraves

transformaccedilotildees de estrutura fiacutesica do boneco e das escolhas temaacuteticas nas manifestaccedilotildees

contemporacircneas de teatro de animaccedilatildeo tendo como provocador da discussatildeo a sugestatildeo de

que o equiliacutebrio tenso existente entre animador e boneco eacute o resultado de uma dinacircmica de

poderes que atuam nas duas maneiras de abordar a relaccedilatildeo que se daacute sobre a cena entre ator e

objeto o aspecto da constituiccedilatildeo da apresentaccedilatildeo e o da percepccedilatildeo da mesma

Sobre o primeiro desses aspectos o que se trata eacute justamente a tentativa do

entendimento dos poderes que atuam nos modos como o ato da animaccedilatildeo se daacute ou seja quais

poderes se potildeem em causa durante o ato manipulativo que centraliza uma apresentaccedilatildeo com

bonecos Ou seja qual eacute o conjunto de forccedilas que define e localiza o exerciacutecio do controle no

ato de animar

Parece quase evidente a afirmaccedilatildeo de que o operador exerce um tipo de poder

inapelaacutevel sobre o boneco teatral uma vez que seraacute a partir da accedilatildeo do manipulador sobre o

boneco que este poderaacute exercer sua prerrogativa de participaccedilatildeo qualificada sobre a cena

Assim seria muito simples entender que o controle exercido pelo operador sobre a forma eacute

uma espeacutecie de ato subordinativo no qual se vecirc claramente a aplicaccedilatildeo de uma vontade sobre

um objeto exercido em sentido uacutenico e de modo indefensaacutevel No entanto a natureza da

forma animada e em um sentido mais amplo da cena teatral com seus aspectos constitutivos

167

particulares e suas condiccedilotildees de estabelecimento complexificam essa atribuiccedilatildeo de controle e

subverte fluxos de dominacircncias aparentemente estaacuteveis

Busquemos entatildeo uma ferramenta que pareccedila uacutetil para o entendimento do controle

como sendo um fluxo de poderes que mostre tambeacutem algumas concepccedilotildees que possam ser

verificadas em meio ao jogo da animaccedilatildeo ainda que isto natildeo sirva para fazer mais que um

exerciacutecio reflexivo ou buscar metaacuteforas ricas para tratar de teatro de bonecos agrave luz de outros

saberes A ferramenta escolhida eacute uma seacuterie de concepccedilotildees acerca do poder e do ordenamento

juriacutedico ocidental apresentado por Michel Foucault (1998-II) e tambeacutem desdobramentos

feitos por Giorgio Agamben de algumas questotildees apresentadas pelo mesmo Foucault acerca

de soberania e de mecanismos de poder (2002 2005) Desse esforccedilo decorre uma tentativa de

localizar caracteriacutesticas de dominacircncia que possam dar a ver a estrutura relacional que

sustenta o ente performativo combinado ator-boneco mas tambeacutem vislumbrar os possiacuteveis

reflexos que o controle no jogo da animaccedilatildeo (seus entendimentos e mecanismos) visto como

uma economia de poderes produz na condiccedilatildeo e no comportamento humano

Primeiramente nos debruccedilamos sobre o tipo de relaccedilatildeo apontado por Foucault

exercido entre o poder monaacuterquico e o ordenamento juriacutedico de onde emanava a autoridade

do rei e ao qual ele se submetia Foucault aponta que ldquoeacute a pedido do poder real em seu

proveito e para servir-lhe de instrumento ou justificaccedilatildeo que o edifiacutecio juriacutedico de nossas

sociedades foi elaboradordquo (2008-II p 180) Dessa forma esse ordenamento montado em

torno da autoridade do rei tambeacutem funciona como instacircncia limitadora na medida exata em

que determina as condiccedilotildees do exerciacutecio de sua autoridade O limite era assim um

componente fundamental para estabelecer o estatuto por meio do qual o poder do rei era

reconhecido Agrave condiccedilatildeo de exerciacutecio do poder real dos sistemas sobre o qual seu poder se

permitia reconhecer Foucault daacute o nome de soberania

Se entendermos por soberania um sistema de legitimaccedilatildeo de poder que natildeo emana de

uma fonte uacutenica e estaacutevel mas que necessita de um sistema de outorga que confere aos

proacuteprios suacuteditos uma parcela desse poder sob a forma do reconhecimento da autoridade entatildeo

talvez seja possiacutevel imaginar que para o nosso caso a proacutepria concepccedilatildeo de controle natildeo se

possa desenhar de outra forma senatildeo como um feixe de linhas bidirecionais das quais emana

para os dois lados forccedilas de controle e forccedilas de permissatildeo

O poder do operador de bonecos eacute subordinado a um sistema de forccedilas de controle que

satildeo exercidos em sentido contraacuterio pois se vecirc limitado simultaneamente e como dupla

manifestaccedilatildeo de um mesmo fenocircmeno pelas condiccedilotildees de apresentaccedilatildeo da forma animada e

168

pelo esforccedilo de instauraccedilatildeo da cena teatral o que muitas vezes pode se dar apenas pelo modo

de apresentaccedilatildeo da forma animada

O conhecimento e o respeito agrave estrutura do boneco e da cena na qual este se insere eacute

fundamental para que se estabeleccedila o ato de animaccedilatildeo Natildeo basta ao operador movimentar um

boneco ou forma para que este adquira significaccedilatildeo teatral Faz-se necessaacuterio que essa

operaccedilatildeo se decirc em relaccedilatildeo aos atributos do boneco e da cena Em muitos casos o

estabelecimento dessa relaccedilatildeo natildeo se daacute sem a apropriaccedilatildeo de competecircncias teacutecnico-

perceptivas que parte obrigatoriamente do entendimento e do respeito agraves naturezas

especiacuteficas tanto da forma quanto da cena

Por exemplo bonecos de fios em geral possuem uma qualidade de movimentaccedilatildeo que

exige do seu operador mais respeito agrave sua estrutura do que a imposiccedilatildeo de um desejo de

movimentaacute-lo Dependendo da extensatildeo do fio do peso do boneco e da natureza do

movimento (em geral giros e torccedilotildees) seraacute necessaacuterio ao operador provocar o movimento

pouco antes do momento em que este deveraacute ser percebido pela plateia Isto ocorre por forccedila

do tempo necessaacuterio para que o estiacutemulo atravesse o fio e impulsione a parte do corpo do

boneco a ser movimentada Bonecos de fio tambeacutem podem apresentar dificuldades no que

toca ao teacutermino de certo gestual Pode-se determinar com a forccedila exercida sobre o fio o

momento em que certos movimentos (em geral de trajetoacuteria pendular) satildeo iniciados mas

dependeraacute da accedilatildeo da gravidade do peso e das relaccedilotildees de atrito exercidas no proacuteprio boneco

o momento em que o movimento cessaraacute Assim a accedilatildeo do operador transita entre o exerciacutecio

de uma vontade a obediecircncia agrave natureza proacutepria do boneco e nunca nos esqueccedilamos das

demandas especiacuteficas da cena na qual se insere a apresentaccedilatildeo do boneco

Pode-se comeccedilar a imaginar que a atribuiccedilatildeo de poderes para a cena de animaccedilatildeo se daacute

em alternacircncias entre a capacidade de movimentaccedilatildeo do operador e os impositivos de forma e

movimento contidos no boneco A cena teatral como lugar de instauraccedilatildeo dessa dinacircmica de

dominacircncias e como resultado obrigatoacuterio dela passa a ser o objetivo e a condiccedilatildeo de

atribuiccedilatildeo dos poderes que emanam do operador e do boneco posto que fora dela (da cena)

ambos perdem forccedilosamente as caracteriacutesticas que os definem

Giorgio Agamben apresenta a questatildeo da soberania como algo que se assenta sobre

um paradoxo posto no entendimento da exceccedilatildeo como um componente inapelaacutevel da norma

juriacutedica Pois uma vez que para Agamben ldquoo soberano estaacute ao mesmo tempo dentro e fora

do ordenamento juriacutedicordquo (p 23) passa a ser da natureza da soberania destacar-se do

ordenamento que a compreende para criar um espaccedilo de definiccedilatildeo das exceccedilotildees bem como

169

para abrigar por meio de uma ldquoexclusatildeo inclusivardquo aquilo que estaacute fora (ou que eacute banido) da

norma

Para nosso estudo o paradoxo da soberania encontra logo de saiacuteda diaacutelogos possiacuteveis

com o jaacute mencionado efeito de opalizaccedilatildeo mas mais talvez por sua composiccedilatildeo paradoxal do

que por dar a ver aspectos internos do controle no ato da animaccedilatildeo Ainda assim talvez seja

possiacutevel reconhecer uma dinacircmica de inclusotildees e exclusotildees no endereccedilamento de

expressividade feito na direccedilatildeo do boneco por parte do ator operador Nesse sentido o controle

pode ser entendido a partir do ato de transferecircncia de expressividade naquilo em que retira

relevacircncia cecircnica do ator operador para dar ao espectador algo que o exclui mas que

apresenta evidentes elementos de atuaccedilatildeo que se datildeo por meio da accedilatildeo do animador

Compreender que manipular eacute representar juntamente com a forma faz da diferenccedila fiacutesico-

formal notaacutevel entre ator e objeto algo que natildeo se daacute a ver senatildeo em simultaneidade com a

percepccedilatildeo de um organismo performativo que os compreende obrigatoriamente

O ator operador de formas animadas assim se encontra nesse entre-espaccedilos de

produzir uma apresentaccedilatildeo que lhe eacute fisicamente exterior mas por meio de uma dinacircmica

operativa que o compreende natildeo apenas do ponto de vista de sua funccedilatildeo de operador mas por

meio da expressividade e da subjetividade que constroem e datildeo a ver a atuaccedilatildeo Por sua vez a

forma animada exerce na proacutepria dualidade de objeto inerte e vida imaginada a sua potecircncia

expressiva Nenhum dos dois sintetiza a estrutura de apresentaccedilatildeo tampouco se encontra em

condiccedilotildees de se por totalmente alheio a esta sob a pena de suspensatildeo do proacuteprio estatuto da

teatralidade sob o qual se fundam os termos da sua atuaccedilatildeo em relaccedilatildeo

Assim se nossa ferramenta analiacutetica foi escolhida e empregada com razoaacutevel eficaacutecia

podemos passar a entender o controle o jogo de forccedilas que tem lugar na produccedilatildeo da

apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo como um fluxo de dominacircncias em duas direccedilotildees sendo que a

subordinaccedilatildeo a um fluxo legitima a dominacircncia em sentido oposto e vice e versa Vimos

tambeacutem que os dois elementos do organismo performativo combinado ator e forma

encontram-se simultaneamente dentro e fora deste produzindo uma estrutura expressivamente

potente por sua fragilidade

Uma apresentaccedilatildeo com bonecos dispotildee diante do espectador um tecido dinacircmico e um

tanto complexo de dominacircncias nas quais tanto ator quanto objeto satildeo ao mesmo tempo e a

seu proacuteprio modo soberanos e subordinados O ator operador personifica o domiacutenio da

vontade sobre a mateacuteria do animado sobre o inanimado determinando com suas matildeos os

movimentos do boneco Ao boneco compete ao menos em primeira apreciaccedilatildeo um domiacutenio

170

inapelaacutevel do espaccedilo instaurado a partir da cena teatral no qual estaacute inserido e do qual eacute

criador e mantenedor por efeito de sua apresentaccedilatildeo

A percepccedilatildeo dessas dominacircncias exercidas por meio de trocas alternacircncias e

subversotildees na cena de animaccedilatildeo chama atenccedilatildeo para uma das precauccedilotildees metodoloacutegicas

acerca da consideraccedilatildeo do poder apontadas por Foucault a terceira delas

O poder deve ser analisado como algo que circula ou melhor como algo que

soacute funciona em cadeia Nunca estaacute localizado aqui ou ali nunca estaacute nas

matildeos de alguns nunca eacute apropriado como uma riqueza ou um bem O poder

funciona e se exerce em rede Nas suas malhas os indiviacuteduos natildeo soacute

circulam mas estatildeo sempre em posiccedilatildeo de exercer este poder e de sofrer sua

accedilatildeo nunca satildeo o alvo inerte ou consentido do poder satildeo sempre centros de

transmissatildeo Em outros termos o poder natildeo se aplica aos indiviacuteduos passa

por eles (2002 p 183)

Acreditar que a dinacircmica de dominaccedilotildees na relaccedilatildeo da construccedilatildeo da apresentaccedilatildeo da forma

animada se processa tal como Foucault projeta para outras circunstacircncias em rede pode ser

capaz de desarmar concepccedilotildees estaacuteticas acerca dos modos pelos quais os poderes satildeo trocados

na cena de animaccedilatildeo Isto equivale a compreender com mais clareza o quanto o boneco pode

ser coautor da sua apresentaccedilatildeo e tambeacutem como as trocas de dominacircncias entre ator e forma

natildeo devem ser vistas apenas pelo vieacutes do embate e da usurpaccedilatildeo mas como exerciacutecios

variados de um mesmo poder Ainda o entendimento de um poder que atravessa os

indiviacuteduos ou os elementos constitutivos da apresentaccedilatildeo ao inveacutes de deles emanar em

sentidos limitados pode apontar para uma variaccedilatildeo da capacidade de produzir significados na

apresentaccedilatildeo da forma animada que se diferencia substancialmente da metaacutefora recorrente do

controle determinista exercido pelo puxador de fios sobre o indiviacuteduo aprisionado por

circunstacircncias superiores a ele74

Com um objetivo comum a constituiccedilatildeo da cena teatral boneco e manipulador se

encontram ligados numa noccedilatildeo de controle que compreende poderes comuns e que natildeo

precisa um foco claro de emanaccedilatildeo Entretanto natildeo se pode dizer que a teia que os conecta

assume a forma de uma colaboraccedilatildeo

Como jaacute foi mencionado haacute um movimento revoltoso no interior da estrutura

combinada entre ator e boneco no ato da apresentaccedilatildeo que produz uma dinacircmica perceptiva

peculiar Nunca pacificada a dinacircmica expressiva da cena de animaccedilatildeo apresenta um

paradoxo no efeito de opalizaccedilatildeo e produz em diversas das experiecircncias mais recentes uma

alternacircncia proposital de relevacircncia cecircnica indo do ator ao boneco e a ele retornando Isto se

caracteriza sob a forma de uma alternacircncia de usurpaccedilotildees e de acordos instaacuteveis Essa

74

Essa questatildeo seraacute vista mais de perto no subcapiacutetulo que trata das potecircncias metafoacutericas do boneco

171

dinacircmica se potildee a favor de uma cena que favorece o jogo de esconder empreendido por

boneco e manipulador ao mesmo tempo em que eacute por esse jogo alimentada

Exemplos do que se afirma satildeo os muitos espetaacuteculos teatrais que fazem conviver

performances de atores e bonecos os quais demandam do ator um rendimento que o faccedila

valer-se natildeo apenas de sua capacidade de tornar o boneco cenicamente expressivo mas que

use a sua proacutepria expressatildeo (e as suas proacuteprias expressotildees) em favor da cena Em diversos

desses casos quando eacute dado ao espectador presenciar a accedilatildeo dos bonecos simultaneamente agrave

accedilatildeo dos atores que os movimentam os espetaacuteculos satildeo formados por combinaccedilotildees de mais

de um niacutevel de ficccedilatildeo criando relaccedilotildees mais complexas de encadeamento dramatuacutergico

moldando e recombinando discursos simultacircneos para os quais a implosatildeo de uma instacircncia

ficcional natildeo resulta na suspensatildeo da apresentaccedilatildeo mas apenas num golpe teatral que ainda

que discuta o instituto da ilusatildeo teatral natildeo suspende o discurso espetacular Esses niacuteveis de

ficccedilatildeo ndash a accedilatildeo dos bonecos a accedilatildeo dos manipuladores ndash podem de fato apresentar-se em

planos distintos apesar de simultacircneos da mesma maneira como podem combinar-se em

interaccedilotildees que podem se processar de diversas maneiras

A Cia Truks de teatro de bonecos se vale em diversos de seus espetaacuteculos da

expressatildeo facial dos manipuladores para fazer comentaacuterios acerca da accedilatildeo dos bonecos

assentindo incentivando ou reprovando suas atitudes Essas expressotildees podem ser

endereccediladas apenas agrave plateacuteia ou ao boneco numa espeacutecie de diaacutelogo silencioso O jaacute

mencionado espetaacuteculo Cuentos Pequentildeos da companhia servo-peruana Hugo e Inecircs

apresenta bonecos montados com combinaccedilotildees de roupas e adereccedilos com partes do corpo do

ator em cena criando esquetes cocircmicos nos quais esses personagens contracenam com o

proacuteprio animador O efeito cocircmico eacute amplificado pela percepccedilatildeo do duplo envolvimento do

ator nos pequenos conflitos mostrados como eacute o caso da cena que mostra um muacutesico de rua

feito a partir do joelho dobrado do ator com um nariz de palhaccedilo preso a ele O personagem se

potildee a tocar um pequeno violatildeo e recebe alguns trocados em retribuiccedilatildeo mas eacute secretamente

roubado pelo proacuteprio animador A cena resulta em grande parte devido ao jogo de integraccedilatildeo

e dissociaccedilatildeo corporal entre manipulador e forma animada uma vez que o par de matildeos que

executa a peccedila ao violatildeo e gesticula de espanto ao perceber que foi roubado eacute o mesmo que

subtrai a feacuteria do chapeacuteu posto diante do personagem-artista de rua

Em Peer Gynt da companhia PeQuod haacute vaacuterios momentos em que atores suspendem

a accedilatildeo de manipular os bonecos para assumirem eles mesmos as vezes da personagem

representada pelo boneco Para casos como o descrito o manipulador enfraquece

deliberadamente a importacircncia do boneco como representante da personagem para tomar a

172

sua frente ainda que a totalidade do espetaacuteculo e certos laccedilos de semelhanccedila (de

caracterizaccedilatildeo de gestual de discurso) permitem agrave plateacuteia natildeo desfazer o elo que torna ator e

boneco partes indissociaacuteveis do conjunto performativo encarregado de mostrar a personagem

Neste ponto ocorre o entrelaccedilamento dos aspectos de percepccedilatildeo da accedilatildeo dos poderes

sobre a cena de animaccedilatildeo O primeiro jaacute abordado foi o aspecto constitutivo da apresentaccedilatildeo

em animaccedilatildeo Passamos agora a nos debruccedilar sobre o aspecto de percepccedilatildeo da cena ou seja

quais forccedilas satildeo postas em jogo de modo a dar maior ou menor centralidade da cena para o

boneco ou para o ator que o opera e que campos essa dinacircmica perceptiva se revela mais

significativa

Neste momento do estudo a noccedilatildeo de soberania sobre a cena de animaccedilatildeo passa a ser

considerada como a capacidade de angariar a atenccedilatildeo do espectador bem como de sustentar e

conduzir as caracteriacutesticas esteacuteticas e discursivas sobre as quais se assenta a cena teatral

Para este caso percebe-se de fato a apresentaccedilatildeo da forma animada sob a forma de

uma disputa constante que se estabelece entre duas forccedilas produtoras de sentido revelada e

dinamizada por efeitos de focalizaccedilatildeo Considerando essa alternacircncia focal por meio da

percepccedilatildeo de uma disputa posta em questatildeo ainda por que a potecircncia produtora de sentido da

percepccedilatildeo sobreposta de ator e forma animada se daacute sem acomodaccedilotildees ou harmonizaccedilotildees

passo a buscar entender essa alternacircncia de centralidade focal e desdobramento corporal da

forma animada entre ator e objeto por meio da tentativa de identificar o que seria um certo

exerciacutecio de poder ou soberania na cena de animaccedilatildeo

As dinacircmicas de apresentaccedilatildeo dessa soberania parecem poder ser percebidas atuando

sobre trecircs diferentes campos de problematizaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre ator e forma ou em

obediecircncia ao rumo terminoloacutegico que essa discussatildeo vem assumindo trecircs diferentes campos

de batalha que poderiam tambeacutem ser tidos como lugares a partir dos quais se produzem

entendimentos e acordos procedimentais para a percepccedilatildeo da relevacircncia cecircnica do emprego da

animaccedilatildeo e da determinaccedilatildeo dos recursos teacutecnico-linguiacutesticos que estabelecem essa

percepccedilatildeo

O primeiro desses lugares eacute aquele onde se determina que estruturas estaacuteveis ou

combinadas representam sujeitos na cena teatral Quais formas e procedimentos constroem e

datildeo a ver algo como uma personagem dramaacutetica na combinaccedilatildeo entre ator e boneco e como

esses dois elementos organizam a dinacircmica de percepccedilatildeo dessas estruturas de discurso a partir

de uma corporalidade desdobrada O segundo campo eacute o lugar onde se trata da interferecircncia

maior ou menor que cada um desses corpos exerce alternadamente sobre a construccedilatildeo da

cena teatral Ou seja como animador e boneco conduzem o espectador no sentido de

173

estabelecer um acircmbito discursivo especiacutefico que contribua em maior ou menor grau para a

instauraccedilatildeo de certa teatralidade Sobre quais bases essa cena se estabelece e como o corpo de

sobreposiccedilotildees instaura uma narrativa teatral especiacutefica de modo a lidar com um tipo de

representaccedilatildeo que se apoacuteia num caraacuteter de heterogeneidade O terceiro campo eacute o que trata

das potecircncias semacircnticas do corpo desdobrado em relaccedilatildeo agraves percepccedilotildees e concepccedilotildees do

sujeito na contemporaneidade Quais metaacuteforas de poder e comportamento essa estrutura

indica e como a sua dinacircmica dialoga com percepccedilotildees atuais acerca de indiviacuteduo sociedade

poder e dominacircncias

Os trecircs campos de disputa de soberania satildeo interdependentes e simultacircneos A

apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo ativa essas trecircs modalidades de disputa que ocorrem

sempre uma a reboque da outra ainda que por vezes apenas uma ou duas delas possam ser

mais claramente percebidas

Se no primeiro capiacutetulo chegamos ao entendimento de que o principal agente da

apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo eacute de fato o boneco ou a forma animada cuja estrutura

percebida desdobrou-se para atrair elementos heterogecircneos ao ponto de incorporar o proacuteprio

ator operador (oculto ou posto agrave vista) nesse momento repomos em jogo essa consideraccedilatildeo

para olhar mais de perto os limites e integraccedilotildees percebidos entre ator e forma animada A

combinaccedilatildeo que se vecirc em cena entre ator e boneco ergue uma estrutura que por dinacircmica e

multiforme que eacute constitui-se no repositoacuterio de tensotildees e disputas que caracteriza o

espetaacuteculo de animaccedilatildeo Outros agentes seratildeo admitidos e teratildeo suas importacircncias

reconhecidas oportunamente mas por hora dediquemo-nos a explicar os campos ndash ou os

tabuleiros tablados ndash de disputa de poder e exerciacutecio de soberania na cena de animaccedilatildeo

174

321 Primeiro campo de batalha o sujeito da cena

De modo geral e um tanto simplificador eacute possiacutevel entender que a forma animada em

cena representa uma personagem dramaacutetica75

O aparato que oculta a visatildeo do manipulador ao

puacuteblico contribui com a funccedilatildeo de oferecer ao espectador o boneco como sendo o que haacute de

sensiacutevel na personagem ou seja a sua integridade A voz que sai de traacutes da empanada pode

ser facilmente atribuiacuteda ao personagem cuja aparecircncia eacute representada pelo boneco A

aceitaccedilatildeo de uma convenccedilatildeo teatral simples permite que se reconheccedila a voz do animador

como pertencente ao boneco que realiza a movimentaccedilatildeo caracteriacutestica agrave pontuaccedilatildeo do ritmo

e das ecircnfases da fala Ou seja numa peccedila de teatro de animaccedilatildeo natildeo resta duacutevida de que o

boneco eacute o que representa a personagem do drama cabendo ao manipulador permitir ao

boneco apresentar-se como tal sem interferecircncias que comprometam a ilusatildeo teatral A loacutegica

parece perfeita mas se pensarmos que basta ao manipulador uma pequena manifestaccedilatildeo de

auto desvelamento tanto intencional como resultado de imperiacutecia para que o entendimento ndash

e tambeacutem a estrutura ndash da personagem que se vecirc sobre a cena se desfaccedila ou ganhe em

complexidade ndash e talvez em interesse Jaacute falamos sobre a impossibilidade do desaparecimento

do ator operador ainda que oculto agora talvez seja vaacutelido tratar um pouco dos resultados

oferecidos por essa impossibilidade

A identificaccedilatildeo de uma personagem dramaacutetica (ainda estamos falando da personagem

dramaacutetica) com o ator que a interpreta eacute isto bem sabemos realizaacutevel em diversos niacuteveis de

aproximaccedilatildeo que pode ir desde a busca pela indiscernibilidade entre personagem e inteacuterprete

(de eficaacutecia discutiacutevel) ateacute o emprego intencional de mecanismos de dissociaccedilatildeo como a

criacutetica ou a narraccedilatildeo Em grande parte dessas praacuteticas interpretativas o que se observa eacute a

busca por um encaixe nunca perfeito de uma personagem sobre um inteacuterprete Eacute bem sabido

que diversas iniciativas artiacutesticas mais recentes tanto no campo da encenaccedilatildeo quanto da

dramaturgia tecircm levado a estaacutegios bem mais criacuteticos a relaccedilatildeo entre inteacuterprete e personagem

conduzindo por vezes agrave elipse ou esvaziamento de uma dessas duas estruturas Basta recordar

a duplicaccedilatildeo das personagens Ela entre Fernanda Torres e Fernanda Montenegro em The

75

Pode-se fazer acerca dessa afirmaccedilatildeo uma espeacutecie de objeccedilatildeo ciricular Ou seja a capacidade de conjuraccedilatildeo

de teatralidade da apresentaccedilatildeo do boneco (mateacuteria discutida neste trabalho em mais de um momento) contribuiu

para que as histoacuterias de suas manifestaccedilotildees se contassem sem reportar uma relaccedilatildeo de proximidade com a do

desenvolvimento de um acervo dramatuacutergico especiacutefico e sobretudo com matrizes textuais que mantivessem

caracteriacutesticas proacuteprias da forma dramaacutetica Por outro lado essa capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade

mencionada potildee em jogo elementos do drama como forma que parecem ser inescapaacuteveis (accedilatildeo em tempo

presente accedilatildeo que se revela em trocas interpessoais tensatildeo entre forccedilas) Daiacute decorre que a apresentaccedilatildeo do

boneco teatral natildeo precisa estar apoiada em um texto dramaacutetico apesar de ndash ou em parte por que ndash a sua

apresentaccedilatildeo por si conteacutem evidentes elementos de dramaticidade

175

Flash and Crash Days de Gerald Thomas ou mesmo aludir agrave escrita de Valeacutere Novarina que

em textos como O animal que habita o tempo ou Diante da Palavra escreve num fluxo

discursivo contiacutenuo lidando com a dinacircmica textual e o vocabulaacuterio de modo a afastar-se o

suficiente da escritura dramatuacutergica consagrada para que se perca de vista a presenccedila de falas

de sujeitos falantes e de accedilatildeo dramaacutetica

Com o teatro de animaccedilatildeo o que ocorre eacute que a as accedilotildees de desvelamento do

manipulador que podem muitas vezes ocorrer a partir da mera atestaccedilatildeo de que natildeo haacute de sua

parte a possibilidade de um alheamento absoluto da accedilatildeo do espetaacuteculo abrem espaccedilo para

que o meio de expressatildeo da personagem dramaacutetica seja uma estrutura criticamente

desdobrada que pode muitas vezes ao mesmo tempo produzir pulverizaccedilotildees da personagem

como quando separa voz e corpo ou accedilatildeo e forma como criar reverberaccedilotildees de figuras

duplicadas ou desdobradas em diferentes possibilidades simultacircneas

Em Terceira Margem adaptaccedilatildeo do grupo Munganga (direccedilatildeo de Carlos Lagoeiro) ao

conto A terceira margem do rio de Guimaratildees Rosa a encenaccedilatildeo usava figuras estaacuteticas algo

semelhantes agraves carrancas de barcos do rio Satildeo Francisco para representar alguns dos

personagens do conto principalmente o do Pai aquele que decide viver sobre uma canoa

sendo levado pelo rio O estatismo das esculturas de madeira carregadas pelo ator em algumas

situaccedilotildees duplicava para o espectador a percepccedilatildeo dessas personagens que entendiam tanto a

forma e a presenccedila dos objetos esculpidos como algumas reaccedilotildees e falas do elenco como

vestiacutegios a serem combinados para produzir a percepccedilatildeo de uma estrutura participante da accedilatildeo

do conto Em espetaacuteculos como O Velho da Horta da Cia PeQuod Homem Voa da Cia

Catibrum e grande parte do repertoacuterio da Cia Truks a leitura que o puacuteblico faz da personagem

eacute uma combinaccedilatildeo da forma e dos movimentos do boneco com as falas e reaccedilotildees dos atores

que os operam e vocalizam O olhar do espectador oscila sem traumas entre o boneco e a

expressatildeo dos atores produzindo com essa combinaccedilatildeo um entendimento da personagem

Essa dinacircmica que por vezes pulveriza e por outras duplica e faz reverberar a

personagem produz um determinado nuacutemero de aacutereas de atrito e campos de disputa entre

boneco e ator que satildeo perceptiacuteveis tanto nos processos de construccedilatildeo do espetaacuteculo quanto

nos modos como as personagens satildeo recebidas pela audiecircncia

Quando aqui se defende a animaccedilatildeo como um estatuto relacional estabelecido entre

ator-manipulador e boneco o se que pretende afirmar eacute que haacute uma maneira sutil de proceder

no contato que se daacute entre os dois que produz efeitos claramente perceptiacuteveis e que nem

sempre podem ser obtidos por emprego de teacutecnicas evidentes Na questatildeo de dominacircncia que

trata da conduccedilatildeo da personagem pode-se notar que reside em pequenos ajustes

176

procedimentais e que natildeo se relacionam apenas com procedimentos claros muito menos no

emprego da forccedila sugestiva de recursos teacutecnicos como iluminaccedilatildeo e sonoplastia para que a

cena de Em Concerto dos Contadores de Estoacuterias na qual se mostra uma jovem iacutendia

banhando-se tenha como tema central o banho da jovem ao inveacutes de algueacutem que movimenta

um boneco Existe a construccedilatildeo de um estado de atuaccedilatildeo em relaccedilatildeo que cria por forccedila de sua

dinacircmica particular separaccedilatildeo e indiscernibilidade entre os sujeitos mostrados por boneco e

ator que se oferecem agrave percepccedilatildeo num fluxo de alternacircncias contiacutenuas Em discussatildeo

conduzida num intercacircmbio entre as companhias PeQuod e Caixa do Elefante chegou-se a

definir o trabalho do ator em formas animadas a partir da proposiccedilatildeo de ldquodizer com ele [o

boneco]rdquo76

Em A chegada de Lampiatildeo no Inferno da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo a figura

miacutetica do catildeo de trecircs cabeccedilas Ceacuterbero guardiatildeo da porta do inferno eacute feito pela integraccedilatildeo

corporal de trecircs atores cada um manipulando uma das cabeccedilas do catildeo (Figura 89) O efeito eacute

anti ilusionista posto que os atores satildeo postos agrave mostra sendo possiacutevel inclusive e apesar da

dinacircmica de deslocamento integrado que empregam discerniacute-los individualmente Mas a

personagem que jaacute se notabiliza pela forma composta das trecircs cabeccedilas se percebe tambeacutem

pelas expressotildees dos atores e por sua corporalidade combinadas pelos trecircs atores e pela

integraccedilatildeo entre corpo humano e boneco

No exemplo jaacute mencionado do Don Doro Hyaki Puppet Theatre (Figura 90) o efeito

da combinaccedilatildeo entre ator e boneco alterna a percepccedilatildeo em separado do guerreiro banido e da

amante que o segue para o exiacutelio com o de um fardo uniforme representando em si o estatuto

do banimento O ator Oichi Okamoto atua com uma maacutescara e um boneco em tamanho

natural que representa em princiacutepio uma mulher (a amante do fragmento de drama Nocirc

abordado no espetaacuteculo) Seu modo de operar a boneca metaforiza por meio do ato de

manipulaccedilatildeo a conduccedilatildeo feita pelo homem agrave mulher no contexto histoacuterico-social especiacutefico

Mas o ator e bailarino japonecircs se vale da dificuldade de distinccedilatildeo entre os corpos para

produzir um golpe cecircnico significativo Proacuteximo ao final do espetaacuteculo as maacutescaras satildeo

retiradas de modo a mostrar que num determinado momento da accedilatildeo os papeacuteis se inverteram

Diferentemente do arranjo do iniacutecio do espetaacuteculo no momento da retirada das maacutescaras

pode-se ver que quem estava desempenhando a mulher era Okamoto e que a maacutescara do

guerreiro estava no boneco Quando a troca se deu natildeo se sabe Sem mencionar as pertinentes

76

Postagem de 9 de marccedilo de 2011 do blog Intercacircmbio PeQuod e Caixa do Elefante

(httpcaixadoelefantepequod2011blogspotcom) como parte das atividades propostas pelo Programa Rumos

Itauacute Cultural

177

Figura 88 Ceacuterbero PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo A chegada de Lampiatildeo no Inferno

Foto Simone Rodrigues

Figura 89 Don Doro Hyaky Puppet Theatre

Fonte Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2008

178

implicaccedilotildees de criacutetica comportamental suscitadas por esse efeito o que a periacutecia corporal e

manipulativa de Okamoto nos aponta eacute a possibilidade de se criar um efeito eficiente de

indiscernibilidade entre operador e forma por meio de uma dinacircmica integrativa de atuaccedilatildeo

Ainda que se possa argumentar que a apresentaccedilatildeo de Okamoto possa ser resultado de uma

aplicaccedilatildeo rigorosa de recursos teacutecnicos e trabalho corporal objetivo sem que haja a

necessidade de construir uma relaccedilatildeo especiacutefica entre ator e objetos no interior do ato

performativo esta resta como uma demonstraccedilatildeo de rompimento hieraacuterquico e funcional entre

ator e forma animada na qual natildeo eacute possiacutevel reconhece-los por meio de posturas ocupaccedilotildees e

atitudes De fato o que Okamoto faz eacute em grande parte fazer com que seu corpo associado

aos apecircndices de vestimenta e mascaramento ndash e na proacutepria incapacidade de perceber onde

comeccedila o seu corpo e o do boneco ndash seja tratado como parte ou todo de uma forma animada

O corpo do ator operador de formas posto agrave vista natildeo estaacute de todo livre da atuaccedilatildeo de forccedilas

de manipulaccedilatildeo

Outro exemplo que pode nos ajudar estaacute em um dos viacutedeos para Internet da seacuterie

Metamorphosen idealizado e executado pela performer marionetista e encenadora alematilde Ilka

Schoumlnbein77

(Video 10) Nele a artista que produziu seus materiais a partir de moldes de seu

proacuteprio corpo mostra em um camarim de teatro uma crianccedila crescida e deformada (ou uma

anatilde) sentada no colo de uma mulher de postura hieraacutetica com o rosto coberto por uma espeacutecie

de maacutescara neutra feito de modo rude a ponto de revelar mesmo de longe uma tez bastante

irregular A meninaanatilde usa um velho vestido amarelado e puiacutedo O modo como se posta no

colo da figura estaacutetica e enlutada sugere dependecircncia ou incapacidade Ao som de uma

cantiga em que uma voz infantil canta acompanhada por um acordeatildeo ou realejo a figura

infantilizada faz evoluccedilotildees entre o luacutedico e o grotesco sem que a mulher que a sustenta esboce

qualq uer reaccedilatildeo Ateacute que num determinado momento um meneio de cabeccedila feito pela

mulher vestida de preto eacute acompanhado por uma reaccedilatildeo de repreensatildeo e medo da menina que

solicita e recebe um afago no encontro dos dois rostos

Pouco tempo de observaccedilatildeo nos permite perceber que a atriz veste a maacutescara em seu

rosto e opera a cabeccedila da menina com uma das matildeos Grande parte do que nos faz ver seus

corpos como sendo distintos estaacute no tom e na cobertura da roupa Os peacutes que balanccedilam sem

tocar o chatildeo satildeo atribuiacutedos agrave menina mas Schoumlnbein se vale dos complementos corporais e

das roupas para produzir a sensaccedilatildeo de duas presenccedilas distintas Aqui tambeacutem natildeo se percebe

uma relaccedilatildeo clara entre operador e boneco embora se possa admitir que haacute uma posiccedilatildeo que

77

Viacutedeo disponiacutevel em lthttpwwwyoutubecomwatchv=wU_tSc51_ksampfeature=relatedgt

179

define um estatuto hieraacuterquico e uma situaccedilatildeo de controle entre as duas figuras da cena Ainda

que se possa argumentar que a impressatildeo das presenccedilas sobre a cena estatildeo solidamente

apoiadas sobre o aparato construiacutedo e nos jogos de dissimulaccedilatildeo do corpo da artista natildeo se

pode negar que a percepccedilatildeo dos sujeitos da cena realizam-se em plenitude no ato e na

potecircncia de relaccedilatildeo entre ambos

O sujeito da cena no teatro de animaccedilatildeo eacute por aquilo que se oferece agrave percepccedilatildeo do

espectador o resultado de uma seacuterie de acordos (e subversotildees) bastante sutis eminentemente

relacional Essa presenccedila qualificada surge portanto subordinada agraves relaccedilotildees que com ela se

estabelece em um fluxo do que determino como sendo disputas e eacute isso o que a define e

molda como fenocircmeno da cena teatral A atribuiccedilatildeo do sujeito da cena sobre uma estrutura

corporal estaacutevel sucumbe ante a variedade de combinaccedilotildees de forma e de forccedilas de atenccedilatildeo e

relaccedilatildeo que podem envolver natildeo apenas boneco e ator mas qualquer recurso produtor de

sentido sobre a cena teatral

180

322 Segundo campo de batalha o lugar do teatro

Natildeo podemos jamais aplicar os mesmos padrotildees ao ser

humano e ao boneco O boneco natildeo pode nunca viver a

menos que represente O homem natildeo jamais representar a

menos que viva

Alexandre Bakshi

Tillis resgata uma noccedilatildeo apresentada pelo artista de animaccedilatildeo norte americano Basil

Milovsorof de que o boneco seria possuidor de uma ldquoteatralidade inatardquo (1992 p 65 67) e a

emprega para discutir bonecos cujas apresentaccedilotildees satildeo de tal maneira esquemaacuteticas e simples

que seria difiacutecil reconhecer nelas qualidades de apresentaccedilatildeo teatral Seriam bonecos feitos

para executar uma accedilatildeo determinada como jogar malabares evoluir em barras agraves quais estatildeo

presos ou movimentar seus corpos de modo a sugerir uma danccedila78

Tillis acompanha

Milovsorof no entendimento de que toda apresentaccedilatildeo com boneco encerra devido agrave presenccedila

do boneco um caraacuteter inapelaacutevel de teatralidade que se daacute por meio de uma relaccedilatildeo que esta

estabelece com alguns elementos da forma dramaacutetica

Em todos os casos a tentativa envolve a representaccedilatildeo de uma ilusatildeo

Assim mesmo se o contexto da representaccedilatildeo envolve um malabarista vivo

em oposiccedilatildeo ao teatro a pretensa vida do boneco malabarista se daacute em uma

personagem de um malabarista vivo Ainda que seja apenas um ldquoobjetordquo

seus signos abstratos nesse caso os movimentos caracteriacutesticos do

malabarismo levam a plateia a imaginar que este possui a ldquovidardquo de um

malabarista Essa pretensatildeo cria ao menos um tipo rudimentar de drama ldquoa

apresentaccedilatildeo de um malabaristardquo (TILLIS 1992 p 68 traduccedilatildeo minha)

No momento em que faz essa afirmaccedilatildeo Tillis estaacute num esforccedilo de reconhecer a existecircncia do

efeito de ldquovisatildeo-duplardquo uma variante da opalescecircncia jurkowskiana em toda apresentaccedilatildeo

com bonecos79

e parece apoiar sua argumentaccedilatildeo sobre um caraacuteter de representaccedilatildeo que

conferiria a esse ldquofaz-de-contardquo certo estatuto ficcional ou em suas palavras ldquode uma ilusatildeordquo

Jurkowski amplia a discussatildeo acerca da teatralidade inata da forma animada ao

justificar a descontinuidade de uma produccedilatildeo literaacuteria para a cena de bonecos devido ao fato

de que este natildeo precisa se apoiar numa escrita dramatuacutergica convencional para produzir uma

situaccedilatildeo teatral uma vez que ldquocriar vida com o auxiacutelio de marionetes toca de uma certa

maneira a ficccedilatildeordquo (1991 p3)

78

Bons exemplos de manifestaccedilotildees mais recentes dessa forma de apresentaccedilatildeo satildeo os artistas de bonecos de fios

norte americanos Frank Paris (1914-1984) (Video 11) e Philip Huber (Figura 10) Apresentaccedilotildees sob a forma de

espetaacuteculos de variedades com bonecos geralmente executando nuacutemeros de canto e danccedila Acerca de Paris haacute

um viacutedeo de uma de suas performances em lthttpwwwyoutubecomwatchv=rJ0u6sfuO-Yampfeature=relatedgt

Huber tem viacutedeos e imagens de seus trabalhos postados no website lthttpwwwhubermaironetescomgt 79

Cabe aqui a recordaccedilatildeo de que Tillis natildeo emprega em seu estudo termos ampliados como forma animada

preferindo ao inveacutes disso propor uma ampliaccedilatildeo da definiccedilatildeo da palavra puppet para compreender outros

arranjos e consideraccedilotildees

181

Figura 90 Malabarista de fio

Fonte (Puppetry International no 9

Strafford UNIMA-US 2001 p44)

Figura 91 Maneacute Gostoso

Fonte (httpwwwartesolorgbr)

Esse boneco comum como brinquedo popular faz evoluccedilotildees

sobre os bastotildees como se fosse um ginasta ou acrobata

182

Podemos ampliar essa discussatildeo com a ajuda dos conceitos de opalizaccedilatildeo de

Jurkowski e de visatildeo-dupla de Tillis ao afirmar que uma apresentaccedilatildeo com formas animadas

eacute capaz de conjurar teatralidade por meio de recursos que tocam necessariamente a tensatildeo da

percepccedilatildeo simultacircnea do boneco como objeto inerte e como vida imaginada Essa capacidade

jaacute foi comentada em nosso primeiro capiacutetulo e pode nesse momento ter sua apreciaccedilatildeo

ampliada por meio da consideraccedilatildeo de que a simultaneidade perceptiva da forma opalizada do

boneco produz mesmo quando a apresentaccedilatildeo se limita a reproduccedilatildeo de uma danccedila uma

dinacircmica perceptiva criacutetica que guarda algumas caracteriacutesticas de dramaticidade das quais a

mais importante eacute a disposiccedilatildeo de um embate tenso e direto entre as duas instacircncias de

ontologia dispostas simultaneamente pela apresentaccedilatildeo do boneco Essa questatildeo eacute capaz de

ser ampliada de modo consideraacutevel se entendermos a forma do boneco com algo possuidor de

uma discursividade peculiar e potente

O antagonismo dramaacutetico nesse caso migra para o interior de forccedilas em embate postas

em jogo ndash e realizadas em grande parte nos sentidos do espectador ndash nas contradiccedilotildees

dispostas pela aparecircncia de autonomia que a apresentaccedilatildeo do boneco teatral faz sugerir Pode-

se afirmar que ao ator vivo faz-se necessaacuteria certa quantidade de condiccedilotildees e caracteriacutesticas

para que a sua atuaccedilatildeo possa ser entendida como espetacular ao boneco basta apresentar o

misteacuterio e a maravilha do encadeamento de passos ou a impressatildeo de deter sua atenccedilatildeo sobre

algo

Entendemos assim que o teatro de animaccedilatildeo possui uma capacidade inata de conjurar

certa espetacularidade segregando tempo e espaccedilo de modo a instaurar a partir da

apresentaccedilatildeo do boneco a cena teatral De fato essa teatralidade inata pode ser tambeacutem

bastante afetada pela mobilidade relacional e pelas dinacircmicas focais que se verificam entre

ator e objeto Variaccedilotildees dessas relaccedilotildees possiacuteveis podem afetar a percepccedilatildeo do espaccedilo o

entendimento da trama exposta o sentido de representaccedilatildeo e os focos de narratividade do

espetaacuteculo Passemos agora a explorar algumas das maneiras pelas quais o teatro de bonecos

explora recursos especiacuteficos de teatralidade e como a dinacircmica relacional do ator pode

dinamizar e refletir-se sobre a constituiccedilatildeo e percepccedilatildeo desses recursos

Steve Tillis encaminha uma reflexatildeo acerca da capacidade que o boneco possui de

evocar e dar corpo a realidades fantaacutesticas Dentre os autores que menciona chama atenccedilatildeo

um fragmento de texto de Michael Malkin no qual se apresenta um conceito caro ao teatro de

animaccedilatildeo

O teatro de bonecos desempenhou um papel vital no desenvolvimento do que

pode ser considerado o conceito dramaacutetico de impossiacutevel plausiacutevel [Este] eacute o elo

183

entre o mundo real e o reino da pura fantasia Eacute nesse sentido que o que o teatro

de bonecos representa um conceito teatral baacutesico representa a imaginaccedilatildeo

dramaacutetica em uma de suas formas mais fluidas (MALKIN apud TILLIS 1998

p37)

A ideacuteia apresentada por Malkin de ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo eacute um recurso valioso para

dar credibilidade a accedilotildees executadas por bonecos tanto as mais realistas quanto as mais

fantaacutesticas e tambeacutem eacute empregado em algumas linguagens fiacutesicas de expressatildeo como a

miacutemica Trata-se a princiacutepio de simular subordinaccedilotildees de natureza fiacutesica atuando sobre corpos

sobre as quais elas natildeo se aplicam A aplicaccedilatildeo desse princiacutepio domina grande parte dos

processos de educaccedilatildeo treinamento e ensaio de atores-manipuladores que precisam lidar

como o boneco como se este estivesse sujeito por exemplo agrave lei da gravidade Para fazer um

boneco saltar por exemplo a simples retirada de seus peacutes do chatildeo e a sua movimentaccedilatildeo ateacute o

ponto de chegada natildeo satildeo suficientes para deixar sobre a plateacuteia a impressatildeo de que o que

assistiram foi um salto Faz-se necessaacuterio que o corpo do boneco se aproxime do chatildeo com

uma dobra dos joelhos dando a impressatildeo de que eacute necessaacuterio tomar impulso que a

decolagem acompanhe o esticamento de pernas e tronco mediado pelo movimento de braccedilos

caracteriacutestico da mediaccedilatildeo de equiliacutebrio que fazemos para saltar e finalmente aterrissar com

os peacutes adiante do corpo seguido por nova dobra dos joelhos e aprumo final do corpo O

boneco manipulado natildeo estaacute submetido agrave gravidade como o corpo humano estaacute mas imitar

essa subordinaccedilatildeo com o boneco garante natildeo apenas a inteligibilidade de suas accedilotildees mas

sobretudo uma qualidade de atenccedilatildeo dispensada pelo espectador que segundo Tillis eacute uma

das causas principais pela atraccedilatildeo especial que a apresentaccedilatildeo com bonecos exerce sobre a

plateacuteia Quanto mais simples e limitado em movimentos eacute o boneco como eacute o caso da luva a

aplicaccedilatildeo desse princiacutepio acompanha a produccedilatildeo de efeitos de grande comicidade Mas o

conceito de impossiacutevel plausiacutevel natildeo se aplica apenas agrave mimetizaccedilatildeo de atitudes realiacutesticas Eacute

quando tratamos de situaccedilotildees de fato fantaacutesticas quando as atitudes do boneco extrapolam os

limites do corpo humano eacute que se obtecircm as impressotildees mais intensas sobre a plateacuteia Nesses

casos o impossiacutevel plausiacutevel consiste na aplicaccedilatildeo de alguns procedimentos de subordinaccedilatildeo agrave

fiacutesica que ainda que natildeo bastem para identificar como humanamente possiacutevel que um homem

voe ou que seja atingido por um cofre sem perder a vida imprimam na atitude corporal do

boneco um certo envolvimento com o evento fantaacutestico Eacute preciso afinal tomar impulso e

erguer os braccedilos antes de levantar vocirco

O espetaacuteculo Sangue Bom da Cia PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo apresenta alguns bons

exemplos de aplicaccedilatildeo do impossiacutevel plausiacutevel sobretudo nas passagens abertamente

184

inspirada em desenhos animados Num dado momento o Caccedilador tenta aprisionar o Vampiro

jogando uma rede sobre ele Desastradamente o Caccedilador acaba prendendo a si mesmo e na

tentativa de livra-se daacute alguns passos para traacutes saindo assim de cima do balcatildeo que lhe faz as

vezes de chatildeo Sem saber que perdeu o apoio paira suspenso no ar por alguns instantes ateacute

que se daacute conta de que natildeo haacute chatildeo sob seus peacutes Essa situaccedilatildeo impossiacutevel eacute seguida por um

movimento intencionalmente realizado pelos manipuladores do boneco que representa o

Caccedilador de fazer o tronco do boneco ultrapassar seus braccedilos que seguem como que erguidos

devido a observacircncia do fato de que em uma queda estendida os braccedilos por serem mais leves

que o tronco caem por uacuteltimo

Tillis natildeo demora a afirmar que o impossiacutevel plausiacutevel natildeo eacute um conceito exclusivo da

animaccedilatildeo apesar de ser um princiacutepio essencial para sua estruturaccedilatildeo teacutecnica e uma das

pedras fundamentais da linguagem que usa o fantaacutestico como um de seus temas centrais e

que emprega de grande apuro teacutecnico e esforccedilo de atenccedilatildeo para representar a vida mais

corriqueira Natildeo eacute de se admirar portanto que para o teatro de animaccedilatildeo a construccedilatildeo de uma

ilusatildeo seja algo tatildeo central para a linguagem e um campo onde se trafega entre combinaccedilotildees

complexas pois que a simples instauraccedilatildeo de uma impressatildeo de autonomia eacute suportada e

atravessada por diversas forccedilas de instabilizaccedilatildeo o resultado de uma elaboraccedilatildeo da qual

participam diversas forccedilas concorrentes

O impossiacutevel plausiacutevel eacute um recurso por meio do qual o teatro de animaccedilatildeo dispotildee

diante do espectador uma realidade espetacular posta em destaque Amplia assim a percepccedilatildeo

simultacircnea da visatildeo-dupla na accedilatildeo do boneco teatral para o ambiente ampliado dos provaacuteveis

limites da encenaccedilatildeo com seus coacutedigos e sua combinaccedilatildeo mais sofisticada de elementos de

teatralidade Vemos dessa maneira essa percepccedilatildeo opalizada figurar tambeacutem em recursos de

ordem de encenaccedilatildeo e dramaturgia

A obra de Roger-Daniel Bensky acerca da dramaturgia francesa para marionetes

(1969) aponta a existecircncia de duas correntes temaacuteticas dominantes em espetaacuteculos com

bonecos a fantasia (feeacuterie) e a caricatura social Ambos os casos lidam de modo bastante

pronunciado com a suplantaccedilatildeo de limites da realidade seja por meio da superaccedilatildeo de seus

limites ou pela deformaccedilatildeo constituindo-se em terreno vaacutelido para o emprego de um

elemento teatral cuja percepccedilatildeo se desdobra entre a evocaccedilatildeo agrave vida e o pertencimento ao

mundo dos objetos A apresentaccedilatildeo com o boneco segrega um espaccedilo que se afirma

eminentemente teatral na medida exata em que transforma os signos de realidade que busca

representar para dentro de um acircmbito de inescapaacutevel simbolismo Em obra mais recente o

mesmo Bensky aponta

185

Contudo podemos dizer de maneira geral que por oposiccedilatildeo a uma

representaccedilatildeo realista ou ldquofisioplaacutesticardquo da natureza o siacutembolo comporta

uma representaccedilatildeo ldquoideoplaacutesticardquo do real O siacutembolo exprime a realidade por

meio de uma transfiguraccedilatildeo do ser em signo A marionete devido a sua

plasticidade e sua capacidade transformadora enquadra-se claramente dentro

de tais criteacuterios Podemos assim formular uma primeira lei esteacutetica o teatro

de bonecos permite uma representaccedilatildeo simboacutelica da realidade (BENSKY

2000 p 28 ndash traduccedilatildeo minha)

Curioso eacute notar que essa realidade alterada destacada simboacutelica natildeo se instaura se

natildeo por meio de uma dinacircmica de visatildeo-dupla ou seja da percepccedilatildeo simultacircnea de

plausibilidade e impossibilidade Uma realidade posta em crise desde seu interior pelas

forccedilas que a constituem Os mesmos fundamentos que datildeo forma ao esse domiacutenio

ldquoideoplaacutesticordquo mencionado por Bensky satildeo aqueles que o revelam como uma impossibilidade

ou quem sabe como uma realidade circunscrita pelos limites da representaccedilatildeo teatral

Haacute nessa dinacircmica de crenccedila e descrenccedila um elemento central apontado por Bensky e

Balardim que eacute absolutamente impossiacutevel de ser ignorado O fundamento primordial dos

campos de batalha aqui arrolados que eacute a percepccedilatildeo do espectador Natildeo seraacute possiacutevel

prosseguir na avaliaccedilatildeo das condiccedilotildees de segregaccedilatildeo do real na dinacircmica relacional entre ator

e boneco sem inserir na questatildeo a disponibilidade agrave percepccedilatildeo do puacuteblico

Segundo Bensky ldquodevido a sua irrealidade primitiva a marionete poderaacute apenas

adquirir o poder de evocar o real graccedilas a uma cumplicidade ativa por parte do espectadorrdquo

(idem p36) Ou seja a potecircncia significativa da forma animada natildeo se realiza por forccedila

exclusiva das instacircncias produtoras do espetaacuteculo e depende que o seu puacuteblico aceite o jogo

proposto Cabe ao artista ndash e agrave forma ndash lanccedilar matildeo de recursos de atraccedilatildeo e esperar poder

sugerir uma cumplicidade criativa

Balardim aponta a existecircncia de uma predisposiccedilatildeo ao jogo que parte do espectador

mas ressalta que essa predisposiccedilatildeo deve ser incentivada por recursos de induccedilatildeo e

direcionamento da atenccedilatildeo presentes nos modos e qualidades de operaccedilatildeo da forma animada

Se imaginarmos que tais recursos de incentivo agrave predisposiccedilatildeo do espectador repousam

evidentemente sobre caracteriacutesticas de periacutecia manipulativa mas tambeacutem sobre modos de

conduccedilatildeo da narrativa espetacular (dos quais alguma periacutecia manipulativa faz parte mas que

pode variar em termos de direcionamento de atributos teacutecnicos de acordo com caracteriacutesticas

do espetaacuteculo e da maneira como a forma animada nele se insere) estamos levando em

consideraccedilatildeo que o trabalho de instauraccedilatildeo de realidade segregada especiacutefica em determinado

espetaacuteculo de animaccedilatildeo requer do ator a accedilatildeo de qualidades manipulativas natildeo apenas da

forma animada mas de todos os elementos que compotildeem a cena Mas o que isto equivaleria a

186

dizer a essa altura da reflexatildeo Que o ator em teatro de animaccedilatildeo dispensa sensibilidade e

teacutecnica manipulativa a todos (ou quase todos) os componentes da representaccedilatildeo ou que a

cena de animaccedilatildeo seria aquela em que todos os componentes da representaccedilatildeo conteacutem de

certa forma alguma qualidade de forma animada

Mas em que niacutevel a participaccedilatildeo do ator-manipulador pode vir a interferir na conduccedilatildeo

dessa narrativa ideoplaacutestica da cena de animaccedilatildeo e de que maneiras a sua participaccedilatildeo

qualifica a segregaccedilatildeo do real que se opera Ora fica claro desde jaacute que a percepccedilatildeo do ator

por parte da plateacuteia necessariamente impotildee caracteriacutesticas agrave narrativa espetacular que

forccedilosamente o incorpora agrave sua estrutura Por exemplo um manipulador que interfira na accedilatildeo

da cena de bonecos por efeito de uma imperiacutecia tem grande possibilidade de deformar a accedilatildeo

dramaacutetica de maneira indesejaacutevel alterando tambeacutem o modo como a plateacuteia percebe e aceita o

espetaacuteculo O efeito provocado por uma interferecircncia mal calculada pode vir a se refletir de

diversas formas sobre o jogo de crenccedila e descrenccedila que se estabelece entre a plateia e a cena

Os arranjos relacionais que se estabelecem em cena entre manipulador e boneco

assumem grande influecircncia sobre o modo de recepccedilatildeo do espetaacuteculo Assim sendo um

espetaacuteculo que lide com a ocultaccedilatildeo dos manipuladores e opte por natildeo envolvecirc-los na trama

central da peccedila tende a lidar com a conduccedilatildeo de uma narrativa com alguma estabilidade ainda

que a jaacute comentada inevitabilidade na consideraccedilatildeo da presenccedila do ator operador mesmo

oculto encaminhe a percepccedilatildeo do espectador a entender as accedilotildees de bonecos e atores como

sendo distintas e simultacircneas Uma vez posto agrave mostra como ocorre com espetaacuteculos de

manipulaccedilatildeo direta ou em espetaacuteculos que apresentam uma combinaccedilatildeo de participaccedilotildees de

atores e bonecos o ator passa a integrar a cena de modo a poder assumir outras possibilidades

de interaccedilatildeo com a accedilatildeo espetacular e com as formas animadas No espetaacuteculo Sangue Bom

da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo na qual ainda que natildeo se perceba uma interaccedilatildeo entre

manipulador e boneco que sugira uma dinacircmica de contracenaccedilatildeo haacute no figurino e na atitude

dos manipuladores a montagem de um dinacircmica relacional que se daacute entre os personagens

representados pelos bonecos e a sugestatildeo de que os manipuladores formam uma equipe de

estivadores medievais vestidos em trapos que agem como serviccedilais sinistros da accedilatildeo da peccedila

O espetaacuteculo natildeo faz dialogarem ou relacionarem-se diretamente atores e bonecos mas a

disposiccedilatildeo simultacircnea das accedilotildees de bonecos e atores operadores eacute fundamental para

caracteriacutesticas do espetaacuteculo no que diz respeito a questotildees de ritmo tensotildees apresentaccedilatildeo de

personagens e recursos de comicidade

Diversas possibilidades de relaccedilatildeo se abrem a partir do partido cecircnico do animador

aparente O que se pode perceber no entanto eacute que a opccedilatildeo por tal partido cecircnico torna mais

187

agudas as questotildees de soberania mencionadas neste capiacutetulo que precisam ser vistas com

atenccedilatildeo uma vez que alteram consideravelmente a maneira como se percebe a cena de

animaccedilatildeo e assim demandam atitudes calculadas no sentido de preservar as ecircnfases

pretendidas ao espetaacuteculo

O Grupo Sobrevento possui um espetaacuteculo para crianccedilas chamado Cadecirc meu heroacutei

Nele se usa um texto do argentino Horacio Tignanelli e eacute apresentado com bonecos de luva

aproximados aos da teacutecnica de luva chinesa80

A histoacuteria de como a Princesa Colherzinha de

Mel busca se livrar das garras de seu algoz e apaixonado Baratildeo recorrendo ateacute mesmo agrave

Internet para contratar heroacuteis de encomenda eacute mostrada sobre uma grande estrutura de

empanadas combinadas que descreve as ameias e janelas do castelo do vilatildeo O espetaacuteculo

lida com os atores operadores ocultos atraacutes da estrutura cenograacutefica e natildeo se estabelece

qualquer tensatildeo de identidade entre boneco e operador ateacute o final do espetaacuteculo quando a

Princesa finalmente se sensibiliza aos apelos amorosos do Baratildeo Assim que selam seu

compromisso os dois bonecos entatildeo se comprometem a promover o encontro entre duas

pessoas que vivem sob eles e que tambeacutem demonstram certa amargura solitaacuteria Saem entatildeo

detraacutes das empanadas os bonecos com os manipuladores que os vestem Luiz Andreacute

Cherubini e Sandra Vargas O diaacutelogo que se segue passa a confundir os limites entre

manipulador e boneco natildeo se pode mais ter total clareza de qual das partes emite a fala

proferida alternadamente pelos dois atores pois que boneco e manipulador confundem-se no

exato momento em que a apariccedilatildeo dos dois atores tambeacutem produz um desmonte do conto de

aprisionamento da donzela Passamos assim a ter uma apresentaccedilatildeo que prima por um

encontro mais proacuteximo entre atores e puacuteblico deixando o conto de fadas no longiacutenquo de uma

lembranccedila ou sugestatildeo Se direcionarmos a atenccedilatildeo aos bonecos animados permitimos que

estes habitem um espaccedilo agrave parte de uma ficccedilatildeo envolvente e maravilhosa mas parece que dar

a cena ao ator eacute tambeacutem transformaacute-la no caso do teatro de animaccedilatildeo num espaccedilo de

dissociaccedilatildeo ficcional uma encruzilhada de possibilidades de envolvimento que exacerba o

caraacuteter luacutedico e o pacto com a plateacuteia para o estabelecimento da verdade da cena Eacute claro que

a cena de animaccedilatildeo natildeo pode se dar ao luxo de fundar sua ficccedilatildeo numa ou noutra

prerrogativas Seu efeito final eacute o resultado do fluxo incessante de dominaccedilotildees e partilhas

produzido pela dinacircmica do organismo performativo combinado

80

Os atores da companhia fizeram um treinamento da referida teacutecnica com o mestre chinecircs Yang Feng A luva

chinesa difere da luva ocidental entre outras coisas em detalhes de sua empunhadura que permite ao boneco

movimentos de giro e salto mais facilmente A luva chinesa eacute conhecida por sua dinacircmica e leveza e por ser

especializada para realizar cenas de lutas e danccedilas acrobaacuteticas aleacutem de permitir ao menos nas matildeos de grandes

mestres como Yang Feng realizar movimentos extremamente especializados e raros para esse tipo de boneco

como o manuseio de pequenos objetos e malabarismos

188

Outro exemplo que serve a esta reflexatildeo eacute o jaacute citado espetaacuteculo Homem Voa da

Companhia Catibrum de teatro de bonecos de Belo Horizonte A montagem emprega

preferencialmente a manipulaccedilatildeo direta sobre balcatildeo em combinaccedilatildeo com projeccedilotildees e

sombras Diferentemente de exemplos anteriormente mencionados nos quais haacute momentos

pontuais de diaacutelogo entre atores operadores e bonecos ou do Sangue Bom da PeQuod em que

a visibilidade dos atores acompanha uma tentativa proposital de incorporaccedilatildeo agrave ambiecircncia do

espetaacuteculo Homem Voa lida com os operadores agrave mostra a partir de uma clara adesatildeo da

neutralidade como estrateacutegia de conduccedilatildeo focal do espetaacuteculo e empregando uma orientaccedilatildeo

procedimental clara sobre a busca por esse efeito que se verifica pelas posturas impassiacuteveis e

atentas dos atores em vestes escuras e com os rostos descobertos e olhos voltados para os

bonecos Curioso eacute notar que ainda que do ponto de vista da orientaccedilatildeo focal o modo de

apresentaccedilatildeo dos atores em Homem Voa encaminhe a

189

atenccedilatildeo do puacuteblico para a accedilatildeo eleita pela encenaccedilatildeo como sendo central esta pode se

caracterizar como uma atitude de renuacutencia agrave participaccedilatildeo no espetaacuteculo Jaacute foi comentado

neste trabalho que tudo aquilo que faz parte do campo perceptiacutevel do espetaacuteculo teatral se

encontra inapelavelmente incorporado a ele Nesse sentido as escolhas de interaccedilatildeo entre ator

e forma natildeo devem ignorar o fato de que nenhum desses elementos eacute capaz de se alijar da

constituiccedilatildeo do espetaacuteculo num fluxo incessante de produccedilatildeo de relaccedilatildeo e sentido Abrir matildeo

dessa prerrogativa eacute cedecirc-la a outrem

Figura 92 Sobrevento Cadecirc meu heroacutei(atores Sandra Vargas e Luiz Andreacute Cherubini)

Fonte (httpwwwsobreventocombrfichatec_heroihtm)

Figura 93 Sobrevento Cadecirc meu heroacutei

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

190

323 Terceiro campo de batalha a potecircncia metafoacuterica

A ideacuteia de que bonecos satildeo criaturas inanimadas controladas

por seres humanos eacute incorreta e a posiccedilatildeo eacute exatamente o

oposto o artista estaacute agrave mercecirc de seus bonecos

Walter Wilkinson

O terceiro dos campos de batalha das relaccedilotildees entre ator e objeto na cena de animaccedilatildeo

eacute talvez o mais vasto e delicado de ser abordado Primeiramente porque a potecircncia de

significaccedilatildeo do boneco ndash do ato da animaccedilatildeo e das condiccedilotildees de animador e animado ndash resulta

em mateacuteria que se assenta nas origens da expressividade com a forma animada antecedendo

em tempo e relevacircncia agraves discussotildees teacutecnico-esteacuteticas que vinham sendo conduzidas ateacute o

momento O poder do teatro de animaccedilatildeo de metaforizar o humano em suas condiccedilotildees

existenciais nas formas que assumem as suas relaccedilotildees nas ligaccedilotildees que este estabelece

coletivamente e no modo como elabora aquilo que lhe eacute inapreensiacutevel talvez seja o motivo

fundamental da existecircncia e longevidade de uma manifestaccedilatildeo artiacutestica que se encarrega de

promover uma imaginaccedilatildeo de vida em algo que se percebe primordialmente como um objeto

Em segundo lugar porque a jaacute mencionada variedade de manifestaccedilotildees em teatro de animaccedilatildeo

produz desdobrando-se em tempo e espaccedilo inuacutemeras leituras da condiccedilatildeo individual do ser

humano assumindo feiccedilotildees antagocircnicas entre si e assentando-se sobre diversas concepccedilotildees e

filosofias

Finalmente a tentativa de entender o quanto os arranjos perceptivos que se

estabelecem entre ator e forma sobre a cena dialogam com concepccedilotildees correntes acerca da

condiccedilatildeo do homem na contemporaneidade e das relaccedilotildees que este estabelece consigo e com

o coletivo lida com um esforccedilo de entendimento de um presente imediato cuja extrema

proximidade o torna esquivo ao olhar dificultando seu entendimento tambeacutem pelo fato de em

diversas ocasiotildees produzir sentidos que se relacionam de maneira nem sempre harmoniosa

entre as suas condiccedilotildees de produccedilatildeo e os seus modos de recepccedilatildeo

Quando pensamos nas formas mais recentes de exploraccedilatildeo cecircnica a partir das relaccedilotildees

possiacuteveis entre ator e forma animada uma figura se sobressai Sobretudo com o emprego do

aproveitamento da expressividade do operador aparente verificamos que os temas para

espetaacuteculos de animaccedilatildeo se desenvolvem apoiados em grande parte sobre recursos de

metateatralidade dos quais podemos considerar como situaccedilatildeo mais comum aquela que

mostra o boneco que adquire consciecircncia dos fios que o susteacutem e variaccedilotildees do mesmo tema

de acordo com diferentes estruturas de bonecos e modos de abordagem

191

O final de Filme Noir da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo mostra uma luta tragicocircmica

entre a personagem central da trama ndash o Detetive ndash e seus manipuladores O espanto

produzido pela revelaccedilatildeo de sua condiccedilatildeo de boneco e o consequente esforccedilo para libertar-se

das matildeos dos operadores termina com a afirmaccedilatildeo da condiccedilatildeo de objeto do boneco Deixado

inerte sobre uma prateleira as reflexotildees da voz em off que ateacute pouco antes eram atribuiacutedas a

ele selam a ruptura entre o discurso e a forma da personagem na alegaccedilatildeo de que ldquonatildeo passa

de uma voz gravadardquo81

Haacute uma apresentaccedilatildeo com um boneco que representa um pierrocirc operado por fios

atribuiacuteda ao artista de animaccedilatildeo e encenador francecircs Philippe Genty82

apresentada no

programa televisivo do maacutegico britacircnico Paul Daniels83

(Video 12) no qual apoacutes realizar

alguns volteios e caminhadas o boneco percebe a presenccedila do operador e vai aos poucos se

dando conta do cordame que o sustenta e que o movimenta Tal tomada de consciecircncia eacute

seguida por um movimento de cobrir o rosto com o braccedilo e movimentar a cabeccedila indicativo

de choro Em seguida o boneco passa a retirar as cordas nas quais se prende perdendo

sucessivamente o movimento de cada articulaccedilatildeo que solta do fio Ainda que vaacute aos poucos

empilhando-se sobre si mesmo perdendo ao mesmo tempo a capacidade de mover-se e a de

produzir imaginaccedilatildeo de vida o boneco segue em seu intento ateacute que reste sobre o chatildeo de

modo a natildeo permitir a distinccedilatildeo de suas partes corporais Apoacutes o uacuteltimo fio ser retirado a matildeo

do boneco pousa sobre o chatildeo e vira-se indicando sua morte Quando o foco luminoso se abre

o operador natildeo estaacute mais sobre o palco apenas o que antes foi o pierrocirc amontoado

Outro espetaacuteculo que merece menccedilatildeo eacute O princiacutepio do espanto (2002) da Morpheus

Teatro de bonecos O ato realizado com um boneco de manipulaccedilatildeo direta eacute conduzido por

apenas um ator (Joatildeo Arauacutejo) e traz como curiosidade ao fato de se haver desenvolvido uma

pega para a sua boca na parte posterior da cabeccedila do boneco deixando os dois braccedilos livres

para a operaccedilatildeo de um boneco que usualmente requer trecircs condutores O espetaacuteculo eacute

inspirado ndash a ponto de ser citado na apresentaccedilatildeo e figurar no tiacutetulo do espetaacuteculo ndash num

trecho inicial das Elegias de Duiacuteno de Rainer Maria Rilke

Quem se eu gritasse

Entre as legiotildees de Anjos me ouviria

E mesmo se inesperadamente um deles me acolhesse ao coraccedilatildeo

Eu sucumbiria perante sua existecircncia mais forte

81

A referida sequecircncia se encontra descrita e melhor comentada em PIRAGIBE 2007 pp 73-84 82

Atribuiccedilatildeo natildeo confirmada 83

Disponiacutevel na Internet em lthttpwwwyoutubecomwatchv=SphHaiW7fzggt Haacute de fato poucas referecircncias

acerca do viacutedeo sem data ou mesmo uma informaccedilatildeo clara se o operador se trataria de fato de Philippe Genty

Paul Daniels conduziu um programa de maacutegica e variedades exibido pela rede de televisatildeo britacircnica BBC entre

os anos de 1979 e 1994 chamado The Paul Daniels Magic Show

192

Pois o belo natildeo eacute senatildeo o princiacutepio do espanto

Que mal conseguimos suportar

E ainda assim o admiramos pois

Sereno deixa de nos destruir84

O trecho de Rilke eacute tratado de maneira ambiacutegua no espetaacuteculo uma vez que se percebe certa

subversatildeo do entendimento oacutebvio do controle do ator sobre o boneco A partir do momento

em que o boneco manipulado pelo ator entra em cena o vemos criar uma seacuterie de accedilotildees

envolvendo objetos que os cercam inclusive uma relaccedilatildeo comicamente narciacutesica com um

quadro numa moldura que depois eacute dado a ver tratar-se de um espelho O trecho final do

espetaacuteculo aborda o reconhecimento por parte do boneco da presenccedila e da accedilatildeo do operador

conduzindo-o do espanto a uma tentativa violenta de libertaccedilatildeo e culminando em aceitaccedilatildeo e

o reconhecimento por parte do boneco de que sua existecircncia eacute algo forjado O espetaacuteculo

termina com o boneco reagindo de modo a aceitar a morte em conjunto com o ator O uacuteltimo

movimento da peccedila de apagar uma vela eacute executado por ambos e ambos desaparecem

Tanto o boneco movido pelo ator quanto o ator que subordina seu ldquosentido de serrdquo no boneco

que anima

A potecircncia de significaccedilatildeo e envolvimento contida em cenas como as descritas diz

respeito exatamente ao modo como eacute possiacutevel reconhecer alguns aspectos da condiccedilatildeo

humana ou pelo menos de como certas correntes de pensamento abordam questotildees da

condiccedilatildeo humana como algo duramente subordinado a forccedilas que lhe suplantam e das quais

muitas vezes natildeo se tem consciecircncia Aqui o operador natildeo representa o humano que passa a

ser mostrado por meio do estado e do comportamento do boneco Ator e boneco natildeo se

mostram como forccedilas integradas e interdependentes mas como entes separados que ocupam

posiccedilotildees muito definidas em uma cadeia de hierarquia e subordinaccedilatildeo A forccedila controladora

se encontra exterior ao que eacute controlado mas impondo a esse um tipo de dominacircncia para a

qual a tentativa de libertaccedilatildeo equivale agrave renuncia agrave existecircncia A atitude do boneco de romper

com seus fios pode ser entendida tanto como uma afirmaccedilatildeo da liberdade ainda que agrave custa

da proacutepria vida ou uma discussatildeo sobre a inconsciecircncia da humanidade acerca de seus

proacuteprios mecanismos de existecircncia levando-a a investir agraves cegas contra aquilo que a sustenta

De qualquer forma a cena do pierrocirc de fios versa indiscutivelmente sobre uma condiccedilatildeo

humana de subordinaccedilatildeo quase irrecorriacutevel apresentando boneco e operador como indicativos

da fragilidade do arbiacutetrio humano e de forccedilas de determinaccedilatildeo que podem ser de natureza

divina ataacutevica ou social

84

Citaccedilatildeo retirada do programa do espetaacuteculo

193

Figura 94 Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto ator JoatildeoArauacutejo

Fonte (httpwwwmorpheusteatrocombr)

Foto Henrique Sitchin

Figura 95 Morpheus Teatro O princiacutepio do espanto ator JoatildeoArauacutejo

Fonte (httpwwwmorpheusteatrocombr)

Foto Henrique Sitchin

194

O retrato da vida humana como presa de forccedilas de determinaccedilatildeo contra as quais natildeo

se pode investir animou quase toda a tragediografia grega e estaacute presente em diversos temas

da criaccedilatildeo dramatuacutergica muitas vezes transfigurada sob a forma das relaccedilotildees do homem com

o poder como se vecirc constantemente o indiviacuteduo apresentado por Shakespeare como sendo um

ldquojoguete do destinordquo (Ricardo III Henrique VI McBeth Medida por Medida dentre outras)

mas tambeacutem sob o jugo da complexidade e dos preconceitos das estruturas sociais o que

aparece em diversas obras da literatura romacircntica (Madame Bovary A dama das cameacutelias)

ou mesmo por uma combinaccedilatildeo pouco tolerante de atavismo e regras sociais como estaacute

retratado por Garcia Lorca em obras como Yerma e Bodas de Sangue

Eacute inegaacutevel entatildeo que essa visatildeo da marionete como metaacutefora do homem preso a

determinismos de variadas origens natildeo apenas se mostra em arranjos simples de estruturaccedilatildeo

da cena de animaccedilatildeo como tem claras relaccedilotildees com temas do teatro e da literatura expostos

em algumas obras de qualidade e vigor significativos No entanto natildeo parece que o teatro de

animaccedilatildeo contemporacircneo se satisfaccedila em apenas empregar efeitos de metateatralidade de

relaccedilatildeo entre operador e forma para tratar de um indiviacuteduo aprisionado por cordas de controle

inexoraacutevel Parece isso sim que o recurso ao humor e agrave ironia para tratar da questatildeo da

subordinaccedilatildeo os jogos de indiscernibilidade da origem do controle e a crescente cooptaccedilatildeo do

corpo do ator para dentro da cena de animaccedilatildeo em arranjos de composiccedilatildeo corporal e de

objetificaccedilatildeo do corpo do ator apresenta novas possibilidades de disposiccedilatildeo relacional entre

ator e boneco aleacutem de trazer agrave baila uma discussatildeo menos fatalista e simplificada das relaccedilotildees

do homem com as forccedilas de determinaccedilatildeo

Tillis aponta que as metaacuteforas mais usuais na apresentaccedilatildeo com a forma animada satildeo

aquelas relacionadas a criaccedilatildeo e controle (p 160) Para isso inicia a sua verificaccedilatildeo com os

jogos teatrais observados mesmo no objeto ritual e no brinquedo infantil De fato essas duas

circunstacircncias de emprego da figura assemelhada agrave forma animada (tornada boneco por meio

da sua capacidade de conjuraccedilatildeo de teatralidade) lidam cada uma a seu modo com a

apresentaccedilatildeo de um estatuto que determina uma dinacircmica de controle Seja por meio da

ineacutercia que solicita uma atuaccedilatildeo de autoridade e cuidado maternal pelo estatismo hieraacutetico

que suplanta a humanidade e sugere reverecircncia ou outras relaccedilotildees possiacuteveis De fato parece

ser liacutecito supor que a relaccedilatildeo entre objeto e indiviacuteduo nos contextos de jogo ou ritual apenas

sugerem as relaccedilotildees de controle e criaccedilatildeo quando adquire nela mesma alguma caracteriacutestica

teatral seja por meio de componentes espetaculares de evocaccedilatildeo de certa visualidade

sugestiva ou por meio do estabelecimento de uma tensatildeo relacional destacada ao menos em

parte da realidade imediata para repor em jogo identidades e situaccedilotildees

195

A potecircncia metafoacuterica da relaccedilatildeo entre operador e forma torna-se de acordo com a

construccedilatildeo da reflexatildeo deste trabalho num campo de batalha na medida direta em que essa

relaccedilatildeo ao inveacutes de abandonar os temas nucleares de criaccedilatildeo e controle apontados por Tillis

vale-se das variaccedilotildees integrativas entre ator e forma das transformaccedilotildees na consideraccedilatildeo do

boneco teatral e na ampliaccedilatildeo de possibilidades de atuaccedilatildeo do ator operador para ampliar as

formas de abordagem dos temas nucleares com a construccedilatildeo de discursos ambiacuteguos criacuteticos

e mesmo subversivos

Se nos reportarmos a jaacute mencionada Filme Noir da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo

podemos perceber que mesmo apoacutes a mal sucedida tentativa do boneco Detetive de libertar-se

de seus manipuladores sendo posto inerte sobre uma prateleira a voz em off atribuiacuteda agrave

personagem natildeo cessa O texto dito desmonta o fatalismo da accedilatildeo anterior de modo a natildeo ser

mais possiacutevel entender a voz como componente de uma construccedilatildeo estaacutevel de personagem

Por uma convenccedilatildeo qualquer esta voz deve parecer que estaacute na minha

cabeccedila que satildeo os pensamentos de algueacutem Os meus pensamentos Este foco

de luz assim tambeacutem daacute esta impressatildeo E vocecirc aiacute na cadeira acredita nisso

Ei isso eacute uma voz gravada Soacute isso Eacute soacute uma voz gravada85

Nesse sentido o uso da ironia desfaz tanto o aspecto traacutegico da sujeiccedilatildeo do boneco mas

tambeacutem contribui para produzir uma duacutevida acerca da proacutepria integridade da personagem que

passa a ser visto ironicamente como uma combinaccedilatildeo acidental de elementos

O uso da ironia aqui produz natildeo apenas uma espeacutecie de desmontagem subversiva da

condiccedilatildeo traacutegica da sujeiccedilatildeo mas tambeacutem aponta para algo que seraacute fundamental para a

discussatildeo de questotildees mais recentes em animaccedilatildeo que anima tambeacutem grande parte da criaccedilatildeo

teatral sobretudo no que diz respeitos a novas concepccedilotildees de dramaturgia e personagem O

retorno cocircmico agrave questatildeo do controle refaz e adensa o proacuteprio mecanismo desse controle

detonando feixes em direccedilotildees opostas e produzindo com isso sujeitos sem contornos

definidos espalhados entre corpos A produccedilatildeo espanhola El Avaro do grupo Taacutebola Rassa

(Figura 97) possui um momento que explica bem o que se afirma Trata-se de uma

interpretaccedilatildeo do Avarento de Molieacutere feito com boneco criados a partir de torneiras e peccedilas

de hidraacuteulica manipulados sobre balcatildeo com o ator operador segurando a torneira que faz as

vezes de cabeccedila da personagem com uma das matildeos e usando a outra como matildeo da proacutepria

personagem Na passagem em que Harpagatildeo sofre de deliacuterios paranoicos de que estariam

atraacutes de sua fortuna o boneco se daacute conta da presenccedila do ator operador o que amplia o seu

85

VELLINHO Miguel Filme noir Mimeo A narraccedilatildeo do texto apresentada em off durante as apresentaccedilotildees

do espetaacuteculo Filme noir eacute feita pelo ator Renato Peres

196

desespero pois passa a supor a existecircncia de um monstro querendo roubar-lhe Apoacutes mais um

tempo o boneco vira-se para o ator e faz um jogo de verificaccedilotildees do qual decorre o

entendimento de que a sua voz eacute emitida pelo operador Em seguida o boneco acalma-se e diz

ldquoEste natildeo eacute um monstro este sou eurdquo

O exemplo de El Avaro apresenta tambeacutem uma questatildeo que foi mencionada em outros

momentos deste trabalho que eacute o emprego de partes do corpo do manipulador para compor a

forma do boneco nesse caso o compartilhamento da terminaccedilatildeo de um dos braccedilos e da matildeo

Esse uso natildeo eacute exclusivo da montagem em questatildeo O espetaacuteculo O patinho feio da

companhia catarinense Gats (Figura 98) apresenta as aves do conto de Andersen combinando

os braccedilos das atrizes a complementos de seu figurino podendo ser mangas bufantes ou

sacolas plaacutesticas Jaacute foram citados outros empregos semelhantes em trabalhos de Hugo e Inecircs

Ilka Schoumlnbein e tantos outros sem mencionar a objeccedilatildeo formulada por Tillis acerca da

proposta de desconsideraccedilatildeo da luva como boneco teatral por Jurkowski devido ao fato de

esta ser de fato uma matildeo adereccedilada

A combinaccedilatildeo de partes do corpo do ator operador agrave estrutura visiacutevel do boneco

amplia a problemaacutetica da discernibilidade entre os dois tornando ainda mais esquiva agrave

percepccedilatildeo a sujeiccedilatildeo do boneco pelo ato de controle uma vez que amplia a ambiguidade

corporal da personagem mostrada pelo ente combinado A visagem de uma relaccedilatildeo de

sujeiccedilatildeo se perde em meio a um jogo de atuaccedilatildeo compartilhada na qual natildeo se consegue mais

perceber a forma do boneco como algo independente ao corpo do ator

De fato esse recurso faz um pouco mais que dissipar impressotildees de subordinaccedilatildeo ele

atrai o corpo do ator (ao menos as partes envolvidas) para o interior do que se pode considerar

como sendo a forma animada Transforma o braccedilo em boneco (ou em uma parte dele) faz o

que eacute percebido invadir o terreno daquilo que eacute mecanismo interno de produccedilatildeo da

apresentaccedilatildeo na exata medida em que nos mostra um braccedilo manipulando a si proacuteprio na

relaccedilatildeo que este estabelece com o a personagem que o boneco representa

Esse tipo de efeito traz ator e marionete para uma espeacutecie de terreno comum de

atuaccedilatildeo Ainda que se perceba com muita forccedila o quanto a relaccedilatildeo de manipulaccedilatildeo produz

significados e divide estaacutegios semacircnticos dentro do espetaacuteculo86

percebe-se na realizaccedilatildeo de

que atores postos agrave vista passam a integrar o campo visiacutevel do espetaacuteculo uma tentativa de

86

Como por exemplo em Sangue Bom da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo em que mesmo que se perceba

alguns jogos de integraccedilatildeo entre operadores e bonecos estaacute dada com clareza a separaccedilatildeo dos diferentes estaacutegios

do espetaacuteculo do qual cada um dos grupos participa Homem Voa da Cia Catibrum aplica certa ecircnfase nessa

separaccedilatildeo investindo numa atitude de neutralidade que se revela pouco eficaz como tal devido agrave postura

197

Figura 96 Tabola Rassa (Espanha) El Avaro (atores Asier Saenz e Olivier Benoit)

Fonte (httpwwwtabolarassacom)

Figura 97 Gats O patinho feio

Fonte (Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2008)

excessivamente alheada dos atores operadores de formas Aqui mais que no primeiro exemplo a decalagem

entre os ldquoestaacutegiosrdquo da representaccedilatildeo

198

estilizaccedilatildeo da participaccedilatildeo dos atores o que desnaturaliza seus comportamentos levando-os

assim a serem entendidos como figuras de naturezas natildeo muito afastadas dos bonecos que

operam

Podemos para este momento mencionar uma boa quantidade de exemplos eficazes os

chapeacuteus de abas largas usados pelos atores do Sobrevento em Beckett (Figuras 99 e 100) e em

O princiacutepio do espanto os andrajos que cobrem os corpos de operadores em Sangue Bom e

ateacute mesmo a singeleza dos oacuteculos escuros vestidos pela dupla de manipuladores do Grupo

Animasonho em Bonecrocircnicas87

(Figura 101) Mas essa desnaturalizaccedilatildeo pode estar presente

em esforccedilos de comportamento neutro como ocorre em peccedilas como O patinho feio da Gats e

Homem voa da companhia Catibrum mas parece que essa consideraccedilatildeo adquire feiccedilotildees de

maior radicalidade efeitos de confusatildeo do corpo do ator com o objeto

O espetaacuteculo La fin des terres da companhia Philippe Genty (Video 13) mostra num

determinado momento uma bailarina que move casas em miniatura de um ponto a outro do

palco Retira alguma delas de uma elevaccedilatildeo que daacute ao espectador a impressatildeo de ser um

morro feito de uma forraccedilatildeo qualquer coberto por um tecido azul Apoacutes todas as casas serem

retiradas dessa pequena elevaccedilatildeo sobre o palco num determinado momento e com uma

movimentaccedilatildeo precisa mostra-se ao puacuteblico que de fato aquela elevaccedilatildeo era composta por

um grupo de bailarinos posicionados de modo a conferir a impressatildeo caracteriacutestica A

primeira cena de Peer Gynt da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo eacute toda feita de modo a dar a

centralidade da cena para a relaccedilatildeo dos bonecos (o protagonista Peer Gynt e sua matildee de

nome Aase) ainda que apresente atores operadores agrave mostra Em um determinado momento

quando a personagem da matildee anuncia que natildeo permitiraacute que Peer Gynt arruiacutene a festa de

casamento da filha do latifundiaacuterio local a atriz vocalizadora da personagem Aase eacute iccedilada

pelo ator vocalizador de Peer Gynt88

por meio de um sistema de cabos e roldanas Percebe-se

uma clara alteraccedilatildeo na forma da cena que deixa apresentar as personagens por meio dos

bonecos para lidar com representaccedilotildees dos atores mas cabe ressaltar que no iccedilamento da atriz

que passa a apresentar a personagem sem o jogo direto com o boneco parece que se dota os

atores com certa qualidade marionete antes de dar-lhes a centralidade da cena

Curioso notar que por variados mecanismos percebe-se em diversas manifestaccedilotildees

um movimento de cooptaccedilatildeo do ator para dentro de um entendimento deste como forma

87

O grupo gauacutecho Animasonho foi criado em 1984 pelos gecircmeos Tiaraju e Ubiratan Carlos Gomes

Bonecrocircnicas eacute uma sucessatildeo de quadros variados com bonecos de luva e manipulaccedilatildeo direta e estaacute no

repertoacuterio da companhia desde a sua fundaccedilatildeo Apoacutes a morte de Tiaraju Ubiratan tem apresentado o espetaacuteculo

sendo acompanhado pelo artista de animaccedilatildeo Carlos (Cacaacute) Senna 88

Essa distinccedilatildeo se faz necessaacuteria devido ao fato de que no espetaacuteculo em questatildeo os bonecos satildeo operados por

mais de um ator

199

Figura 98 Grupo Sobrevento Beckett (Ato

sem palavras 1)

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Figura 99 Grupo Sobrevento Beckett (O impromptu de

Ohio)

Fonte (httpwwwsobreventocombr)

Figura 100 Animasonho Bonecrocircnicas (atores Cacaacute Senna e Ubiratan Carlos Gomes)

Fonte (Programa SESI Bonecos do Brasil e do Mundo 2010)

Foto Seacutergio Schnaider

200

animada Esse movimento de cooptaccedilatildeo contribui para estabelecer entre ator e boneco um

estatuto relacional mais aproximado a um estado de equivalecircncia do que da sujeiccedilatildeo de um

pelo outro

Quando Valmor Beltrame identifica em parte do movimento teatral ocidental a partir

de fins do seacuteculo XIX a tendecircncia que ele identificaraacute como marionetizaccedilatildeo do ator (2005)

estaacute de fato apontando para o modo como alguns pensadores e realizadores de teatro usaram o

boneco como modelo para propor uma reforma no modo de atuaccedilatildeo que dominava os palcos

da Europa nas deacutecadas finais do seacuteculo XIX

Se pensarmos nos estilos de representaccedilatildeo dos atores europeus sobretudo aqueles que

dominaram os teatros neoclaacutessico e romacircntico89

eacute possiacutevel perceber ateacute mesmo por meio das

criacuteticas feitas aos seus estilos de representaccedilatildeo por precursores da encenaccedilatildeo tais como

Edward Gordon Craig e Constantin Stanislavski e pelo historiador e criacutetico teatral italiano

Silvio DacuteAmico90

a dominacircncia de um modo de representar que se valia de recursos

declamatoacuterios e lugares comuns de gestual e expressatildeo e que tambeacutem permitia que o ator

intrometesse sua personalidade no modo de apresentaccedilatildeo da personagem que era eivada de

apartes comentaacuterios interpelaccedilotildees ao puacuteblico repeticcedilotildees e preparaccedilotildees de grandes passagens

da peccedila O primeiro momento da era dos encenadores veio a ser tambeacutem aquele que clamou

por um ator que subordinasse seu trabalho em favor de uma proposta de espetaacuteculo unificado

e que dispensasse com maior cuidado sua atenccedilatildeo agrave apresentaccedilatildeo da personagem e agraves

determinaccedilotildees do encenador em detrimento agrave exibiccedilatildeo de dotes virtuosiacutesticos e demais

recursos que interrompessem a unidade da experiecircncia do espetaacuteculo

Natildeo por acaso muitos pensadores e encenadores desse periacuteodo viram no ensaio de

1810 de Heinrich Von Kleist intitulado ldquoSobre o teatro de marionetesrdquo uma provocaccedilatildeo que

permitiu a elaboraccedilatildeo de uma utopia para ator dos tempos modernos Entre outras tantas

questotildees Kleist aponta como vantagem do boneco de fios em relaccedilatildeo ao bailarino humano o

fato de o primeiro natildeo possuir afetaccedilatildeo o que em grande parte pode ser entendida como uma

insinuaccedilatildeo das vontades e caracteriacutesticas do corpo que se apresenta sobre os resultados da

mesma91

Ao indicar a accedilatildeo do manipulador e a forccedila da gravidade como os responsaacuteveis pela

produccedilatildeo de um movimento repleto de uma qualidade esteacutetica que ele identifica sob a noccedilatildeo

89

Faz-se necessaacuterio deixar claro aqui que tais estilos satildeo mencionados com o intuito de referir-se aos modos de

representaccedilatildeo de ator dominantes em seus respectivos periacuteodos e lugares de florescimento mais do que evocar

os pressupostos esteacuteticos e ideoloacutegicos de suas origens liacutetero-dramatuacutergicas 90

Beti Rabetti empreende uma anaacutelise clara da atualccedilatildeo criacutetica de D`Amico e de suas impressotildees acerca dos

atores de seu tempo no artigo Eleonora Duse por Silvio DacuteAmico a interpretaccedilatildeo que se esconde in Folhetim

no 20 Rio de Janeiro Teatro do Pequeno Gesto jul-dez 2004 pp 22-33 91

ldquoPois a afetaccedilatildeo aparece como o senhor sabe quando a alma (vis motrix) encontra-se em qualquer outro ponto

que natildeo seja o centro de gravidade do movimentordquo (KLEIST 2005 p20)

201

de graccedila Kleist sugere a produccedilatildeo de um corpo artiacutestico atravessado de tal forma pelo que o

cerca que sua apresentaccedilatildeo adquire uma essencialidade que tende ao divino A movimentaccedilatildeo

do boneco seria assim uma danccedila que exprime o universo ao inveacutes de um desejo pessoal de

expressatildeo e exibiccedilatildeo Para muitos dos autores encenadores que pensaram o teatro provocados

por Kleist92

a encenaccedilatildeo poderia ser entendida como essa totalidade que unifica e media os

diferentes componentes da cena teatral inclusive o trabalho do ator

A vontade que impulsionava nos primeiros anos do seacuteculo XX criadores em teatro a

obter maior domiacutenio sobre os resultados de seus processos suportada grandemente pelo

desejo de uma afirmaccedilatildeo artiacutestica da obra teatral se valia igualmente de uma leitura do

boneco feita a partir de uma determinada noccedilatildeo de controle Isto se apresentava no contexto

de um embate claro acerca de qual funccedilatildeo seria central para a apresentaccedilatildeo teatral se a

instacircncia de criaccedilatildeo momentacircnea e da relaccedilatildeo direta com a audiecircncia ndash a atuaccedilatildeo ou a da

criaccedilatildeo da apresentaccedilatildeo com pretensotildees de totalidade normalizada de modo a conservar e

repetir seus valores discursivos ndash a autoria do texto e da encenaccedilatildeo Helga Finter trata dessa

questatildeo a partir da construccedilatildeo de uma imagem eficiente para a cena normalizada

A cena como maacutequina de escrever superdimensionada cujo teclado possui

fios de arame postados diante dos olhos do autor-encenador encaminham

seus pensamentos que se organizam no espaccedilo eis uma utopia de teatro que

o futuro reserva Esse desejo de escritura dentro do espaccedilo se manifestaraacute

primeiramente atraveacutes de uma nova ideacuteia de corpo do ator Deste modo o

ator biomecanicizado taylorizado distanciado povoaraacute os projetos de um

novo teatro de Craig a Meyerhold dos futuristas a Brecht (FINTER 1991

p 25 ndash traduccedilatildeo minha)

A discussatildeo acerca da adoccedilatildeo da marionete como modelo pedagoacutegico para o ator de

um teatro em transformaccedilatildeo encontra apoio em outras questotildees que natildeo apenas a de uma

determinada leitura do efeito de controle A discussatildeo que Meyerhold levanta acerca do

ldquoTeatro de feirardquo93

assim o atesta Mas salta aos olhos o quanto a ideacuteia do boneco eacute

empregada para sugerir controle ndash do artista sobre seu corpo e seus recursos expressivos mas

principalmente da instacircncia criadora da unidade artiacutestica do espetaacuteculo teatral sobre os

elementos dispostos em cena Finter chega a mencionar os usos de corpos marionetizados em

performances poliacuteticas de estados totalitaacuterios (paradas e comiacutecios nazi-fascistas e stalinistas)

como aacutepice sombrio da apropriaccedilatildeo e desfiguraccedilatildeo espetacularizante do corpo humano (idem

p26) Seria possiacutevel aqui identificar um tipo de pensamento que associa o boneco ao uso do

92

Beltrame menciona em seu trabalho Maurice Maeterlink Alfred Jarry e Vsevolod Meyerhold Mas seria

possiacutevel adicionar a essa lista os nomes de Federico Garcia Lorca Michel de Ghelderode e Oskar Schlemmer 93

Mencionada no primeiro capiacutetulo desta tese (p 28)

202

corpo em espetaacuteculo como massa a serviccedilo de um poder que o desfigura e o reorganiza em

brasotildees frases e siacutembolos

Ocorre que se por um lado eacute liacutecito pensar ndash e empregar ndash o boneco como modelo de

reformulaccedilatildeo do comportamento do ator ndash e do indiviacuteduo ndash a partir do entendimento de um

controle normalizador disciplinar e unidirecional natildeo se pode ignorar outras potecircncias de

significaccedilatildeo e atuaccedilatildeo do boneco teatral que satildeo de fato regidas pela ambiguidade e pela

subversatildeo

Tillis alcanccedila uma questatildeo fundamental apresentada pelo teatro de animaccedilatildeo ao

comentar uma produccedilatildeo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste para a Sinfonia Claacutessica

de Sergei Prokofieff Para essa apresentaccedilatildeo o puacuteblico se depara com uma caixa de cena em

estilo rococoacute postada dentro do palco e diante dela uma plateia vestida agrave moda do seacuteculo

XVII silenciosamente postada de costas para o puacuteblico e tambeacutem uma orquestra igualmente

virada em direccedilatildeo agrave abertura da cena Reproduzo aqui a citaccedilatildeo que Tillis extrai da descriccedilatildeo

feita pelo diretor da companhia Peter Moacutelnar Gaacutel

Num palco de corte em estilo rococoacute (o palco dentro do palco) os bonecos

apresentam uma comeacutedia italiana tradicional com riacutegido convencionalismo

O teacutedio artificial e cortecircs eacute entretanto quebrado repetidas vezes pelas

apariccedilotildees [do boneco] de um gato no palco dentro do palco Ante essa visatildeo

um cachorrinho de madame mimado [pertencente a um ldquoespectadorrdquo e

presumivelmente vivo agrave sua proacutepria maneira] se enfurece e comeccedila uma luta

Os dois animais perseguindo-se vatildeo gradualmente destruindo esse mundo de

arte forjado Varas de luz satildeo quebradas as pernas do palco caem

instrumentos satildeo destruiacutedos de modo a revelar seus componentes mecacircnicos

no fosso da orquestra ateacute um espectador com uma peruca branca [que

imaginaacutevamos ser vivo] eacute abatido de modo a revelar que natildeo eacute senatildeo uma

casca oca devorada por cupins um boneco vazio (Gaacutel apud TILLIS 1992

p 165)

Tillis pauta seu comentaacuterio acerca da apresentaccedilatildeo da companhia de Budapeste pelo efeito

que esta produz em termos de desfazer as certezas do puacuteblico entre o que seria real Esse

golpe de certa forma investe muito mais em apresentar certa incerteza acerca da proacutepria

natureza da realidade do que tratar de questotildees de dominaccedilatildeo e controle A questatildeo do

controle se chega a ser em algum momento apresentado pela apresentaccedilatildeo apenas se daacute para

ser em seguida destruiacuteda por um ataque irocircnico e desnorteante que investe sobre uma

consideraccedilatildeo da realidade como algo transitoacuterio se natildeo enganoso

Por isso e por outras questotildees o boneco deixa de ser uma metaacutefora integral para o

comportamento fanaacutetico ou subordinado uma vez que haacute diversos elementos que

caracterizam a sua apresentaccedilatildeo (expressatildeo fixa gestualidade caracteriacutestica revelaccedilatildeo dos

203

meios de manipulaccedilatildeo teatralidade inerente) que tematizam a natureza da realidade e que satildeo

capazes de questionar seus meios de controle mesmo enquanto estes se exercem sobre ele

Nesse sentido pode ser possiacutevel desdobrar a dualidade da opalizaccedilatildeo jurkowskiana ndash objeto

inerte vida imaginada ndash a partir da suposiccedilatildeo de uma loacutegica de controle ndash sou comandado

comando94

e que se desdobra em real ndash irreal

Eis que assim o boneco entendido como corpo subordinado controlado traraacute como

resultado da sua proacutepria dinacircmica de apresentaccedilatildeo o democircnio transgressor dos chistes

licenciosos em praccedila puacuteblica da inversatildeo dos valores de morte e sexo da violecircncia cocircmica e

da suplantaccedilatildeo dos limites da mortalidade Pois que o boneco natildeo eacute capaz de transmitir a

subordinaccedilatildeo a uma dominaccedilatildeo sem deixar em resiacuteduo a impressatildeo de uma dominaccedilatildeo

efetuada em sentido contraacuterio ou ateacute mesmo a apreensibilidade de um fluxo estaacutevel de

dominaccedilatildeo

O boneco opaliza o proacuteprio fluxo de dominacircncias na produccedilatildeo de indeterminaccedilotildees de

controle O boneco se impotildee ao operador para que ambos sejam o que podem ser em cena

Natildeo haacute hierarquias visiacuteveis nem passiacuteveis de suportar uma reflexatildeo mais detida

Retorno aqui ao artigo de Helga Finter quando este trata da tendecircncia agrave maquinizaccedilatildeo

dos corpos de atores e bailarinos verificada a partir dos anos 1970 mas o faz partindo de um

olhar que a diferencia das apropriaccedilotildees em prol dos discursos totalitaristas Finter defende que

a mecanizaccedilatildeo dos corpos no teatro da poacutes-modernidade (seu estudo se encontra centrado nos

trabalhos dos encenadores Robert Wilson e Richard Foreman) se opotildee agrave dominaccedilatildeo totalitaacuteria

no sentido em que o espetaacuteculo outorga ao espectador uma liberdade de leitura que desmonta

os impositivos dos discursos de dominaccedilatildeo

A partir das accedilotildees fornecidas o espectador cria um espaccedilo que dobra a cena

que ele tem diante dos olhos ele a transforma construindo outra cena da

percepccedilatildeo onde o teatro acontece sem ser um lugar preciso O teatro propotildee

assim uma dioacuteptrica que interroga a faculdade do olhar que ouve e a de

ouvir com os olhos (FINTER 1991 pp 26-7)

Supor que o comportamento maquiacutenico dos corpos de atores e bailarinos nos espetaacuteculos de

Wilson e Foreman mencionados por Finter se relaciona de alguma forma com um aspecto de

marionetizaccedilatildeo eacute tambeacutem propor um entendimento desse efeitoprocesso de modo diferente

complementar talvez ao que Beltrame identifica como sendo a marionetizaccedilatildeo do ator Se

para o teatro da virada do seacuteculo XX havia importacircncia em associar o ator agrave marionete com

94

Jaacute foi mencionada a questatildeo da construccedilatildeo de uma impressatildeo de autonomia como sendo um preceito

linguiacutestico importante ao teatro de animaccedilatildeo Natildeo haacute de fato como inserir uma forma animada em uma cena

teatral sem conferir-lhe certa capacidade de transgressatildeo

204

vistas a propor uma atitude de atuaccedilatildeo onde se percebe maior subordinaccedilatildeo a outras instacircncias

de constituiccedilatildeo da cena a partir de certo momento mais aproximado agrave virada do seacuteculo XXI e

aleacutem pode-se supor que a noccedilatildeo de marionetizaccedilatildeo ou mesmo de objetualizaccedilatildeo do ator eacute

algo que versa sobre a representaccedilatildeo de uma identidade em movimento sobre uma abertura

perceptiva que natildeo eacute manipulada por efeito de uma dominaccedilatildeo mas que se oferece a

manipulaccedilotildees variadas ndash com os sentidos do espectador desempenhando um papel

fundamental ndash com vistas a ampliar-se a pluralizar-se a opalizar-se

Retornando aos exemplos da atriz iccedilada em Peer Gynt e aos bailarinos transformados

em morro de Philippe Genty mas tambeacutem lembrando dos bonecos fundidos aos corpos dos

atores no trabalho de Hugo Suarez e Inecircs Pasic e de Histoacuteria de lenccedilos e ventos com seus

tecidos papeacuteis atores e formas combinadas eis que a cena de animaccedilatildeo natildeo se esquiva em

transformar em marionete o que nela estiver Todo corpo toda mateacuteria posta em cena num

contexto de animaccedilatildeo eacute marionetizado (tornado marionete) por um efeito de estranhamento

que desloca a coisa da sua leitura habitual para em seguida confrontar essa leitura com novos

sentidos que satildeo adquiridos no contexto da apresentaccedilatildeo Parece natildeo haver potecircncia de

significaccedilatildeo em animaccedilatildeo que natildeo lide com a ambiguidade ontoloacutegica posta na percepccedilatildeo

simultacircnea de objeto inerte e vida imaginada

O pensamento de uma cena de animaccedilatildeo composta por diversos elementos

marionetizados em detrimento agrave identificaccedilatildeo de um boneco ou forma animada definida em

limites formais e potecircncia de significaccedilatildeo nos leva novamente ao iniacutecio deste trabalho

quando se discutia o suposto desaparecimento dos bonecos no teatro de bonecos Se o estatuto

do boneco teatral se alterou a ponto de abrigar virtualmente tudo o que se apresenta sobre a

cena em termos de potecircncia metafoacuterica a cena de animaccedilatildeo torna mais agudos os seus

caracteres vitalistas

A professora Cariad Astles trata de como o teatro de animaccedilatildeo afirmou-se

transdisciplinar a partir daquilo que ela chama de ldquoperda do corpo do bonecordquo (2008) Nesse

processo a crescente visibilidade do ator operador faz aderir a sua percepccedilatildeo o entendimento

desse boneco cujo corpo perdeu-se

Com esse crescimento da visibilidade do bonequeiro os significados no

teatro de bonecos passaram a se relacionar com a ideacuteia de criaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo no palco mais do que com a ficccedilatildeo dos bonecos enquanto

personagens [] No entanto o aspecto mais importante de ser observado

natildeo eacute de ver o bonequeiro como animador mas de vecirc-lo como um entre

vaacuterios corpos animados Sem duacutevida mais do que estar no comando o

bonequeiro com frequecircncia parece ser dominado e estar agrave mercecirc dos corpos

animados agrave sua volta (idem 2008 p56)

205

Essa equivalecircncia no modo de se perceber o corpo do ator sobre a cena de animaccedilatildeo faz com

que Astles mencione as teorias animistas que atribui certa qualidade de vida a tudo o que nos

cerca Essa teoria vai ao encontro tambeacutem com a consideraccedilatildeo do lugar do homem no

mundo agrave luz das mais recentes posturas de conservacionismo ambiental e sustentabilidade

planetaacuteria para as quais o ser humano eacute apenas parte de uma cadeia de relaccedilotildees vitais

deixando de ser visto num lugar de dominaccedilatildeo sobre a natureza criada para servi-lo

Uma demonstraccedilatildeo do focirclego dessa temaacutetica para as artes contemporacircneas estaacute na

obra de James Cameron de 2009 o filme Avatar que apresenta a fantasia de um ecossistema

utoacutepico o planeta Pandora no qual suas formas de vida se conectam em encaixes neurais por

meio dos quais se acessa uma espeacutecie de consciecircncia compartilhada O nome do planeta eacute

sugestivo pois evoca algo ndash a caixa de Pandora ndash que deve permanecer encerrado em si

mesmo e para o que qualquer interferecircncia externa pode ser desastrosa Tambeacutem remete no

que se refere ao tema da interdependecircncia entre as coisas a um poder que natildeo se exerce na

separaccedilatildeo das individualidades mas na afirmaccedilatildeo do conjunto e na inexistecircncia de um poder

estaacutevel

Mas a discussatildeo mais interessante que o filme reserva agrave condiccedilatildeo atual do teatro de

animaccedilatildeo estaacute num dos seus mecanismos de maior efeito visual apresentada sob a forma dos

corpos clonados dos habitantes do referido planeta que satildeo habitados pelas consciecircncias dos

exploradores humanos por meio de um aparato tecnoloacutegico de controle O recurso atrai a

atenccedilatildeo ainda por que apresenta mecanismos de controle de corpos virtualizados que se datildeo

paralelamente na trama do filme e no seu proacuteprio processo de feitura na qual os atores

representavam juntamente com versotildees de seus corpos feitos em computaccedilatildeo graacutefica O

processo foi convenientemente incorporado agraves estrateacutegias de divulgaccedilatildeo do filme e

amplamente explorado pela imprensa em mateacuterias de bastidores A operaccedilatildeo da imagem

virtualizada tanto por teacutecnicos de efeitos visuais quanto pelos proacuteprios atores e o

detalhamento das personagens em computaccedilatildeo graacutefica (para as quais se pocircde atribuir sutilezas

de expressotildees faciais ainda natildeo vistas nesse tipo de animaccedilatildeo) chamam atenccedilatildeo para uma

qualidade de desdobramento corporal que apresenta algumas semelhanccedilas com o recurso

explorado pela ficccedilatildeo Pode-se dizer assim que natildeo satildeo apenas as personagens do filme que se

desdobram fisicamente em seus ldquoavataresrdquo isto tambeacutem ocorre com os atores

Neste ponto reencontramo-nos com a reflexatildeo de Astles acerca das novas formas de

constituiccedilatildeo corporal do boneco teatral no ponto em que esta indica a grande incidecircncia de

criaccedilatildeo e exploraccedilatildeo e corpos hiacutebridos resultados de combinaccedilotildees de materiais de

complementos corporais de intervenccedilotildees do corpo do animador sobre o objeto e vice-e-versa

206

Como jaacute foi mencionado neste trabalho tambeacutem Astles chama a atenccedilatildeo para a disposiccedilatildeo do

debate acerca de identidades que se apreende a partir do emprego desse recurso Para Astles a

heterogeneidade no emprego de materiais e formas para apresentar o boneco natildeo se presta

apenas para ldquotestar entendimentos culturais do corpo humanordquo (idem p 60) mas remete

especialmente ao entendimentos atuais de corpo e identidade como algo inseparaacutevel agrave

equipagem e agraves teacutecnicas de ornamento que se verificam e prosperam nos dias de hoje As

teacutecnicas de transformaccedilatildeo corporal com objetivos esteacuteticos e emblemaacuteticos (cirurgias

tatuagens percings implantes) assim como os dispositivos tecnoloacutegicos de comunicaccedilatildeo

(computadores chips telefones moacuteveis multifuncionais meacutetodos de operaccedilatildeo remota)

ampliam o alcance da percepccedilatildeo e da visibilidade do indiviacuteduo permitindo ateacute

desdobramentos virtuais e auto-ficcionalizaccedilotildees que podem ocorrer em ambientes de jogo e

vida virtual95

ou ateacute mesmo em redes sociais online Assim o boneco perde um corpo

apreensiacutevel e estaacutevel na medida em que joga com leituras possiacuteveis de uma corporalidade

individual cada vez mais composta e projetada Astles complementa essa ideacuteia da seguinte

maneira

O corpo do boneco pode ser visto como emblemaacutetico da mortalidade

vulneraacutevel e destrutiacutevel mas intrinsecamente ligado ao universo da mateacuteria e

das memoacuterias duradouras que restam nas coisas Nesse tipo de teatro o

boneco perdeu todos os vestiacutegios de si mesmo enquanto personagem ou

como algo completo O corpo do boneco transformou-se em identificaccedilatildeo

(idem)

Quando se comenta ao longo deste trabalho que se operou uma mudanccedila de estatuto no que

se pode considerar o boneco teatral natildeo se pode ignorar o quanto essa possiacutevel mudanccedila eacute

capaz de repor em jogo os modos como o boneco metaforiza o humano em diversas de suas

condiccedilotildees existenciais No campo de batalha das potecircncias significativas as cordas (ou

bastotildees luvas feixes de luz discursos e demais atribuiccedilotildees possiacuteveis) perdem o caraacuteter de

amarra controladora para tornar-se cada vez mais outro tipo de viacutenculo No jogo da

representaccedilatildeo conjunta e natildeo-harmocircnica dos corpos desdobrados boneco e ator satildeo

componentes de uma estrutura ideogramaacutetica elementos autocircnomos que se combinam para a

produccedilatildeo de uma leitura diversa e ampliada (EISENSTEIN 2002 p 35) que diz em

conjunccedilatildeo mas que se recusa a produzir um uniacutessono

95

Exemplos disso satildeo ambientes de experiecircncia virtual como o Second Life ltwwwsecondlifecomgt e jogos

MMORPG (Massive Multiplayer Online Role-Palying Game ndash Jogo de interpretaccedilatildeo de personagens online e em

massa) tais como World of Warcraft da empresa Blizzard Entertainment

207

Figura 101 Compagnie Philippe Genty Voyageurs Immobilles

Fonte (httpwwwscenewebfr201006philippe-genty-en-tournee-avec-voyageurs-immobiles)

Foto Pascal Franccedilois

208

4 CONCLUSOtildeES

O palco apesar de contar com a figura humana inteira em cena

tem a mais complexa de todas as tarefas a de transcender o

corpo

Gerald Thomas

Estivemos ao longo do uacuteltimo capiacutetulo tratando da questatildeo de criaccedilatildeo e da

apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo como sendo decorrecircncia das possibilidades relacionais e

de significaccedilatildeo entre o boneco ou forma animada e o artista que atua com ela (seja por meio

de uma accedilatildeo de controle ou pelo estabelecimento de um ato relacional) A dinacircmica e a

capacidade de estabelecimento de um tipo de tensatildeo produtora de efeitos opalizantes entre

esses dois agentes da cena de animaccedilatildeo componentes daquilo que este trabalho escolheu

chamar de organismo performativo combinado deflagra uma seacuterie de embates revelando em

seus processos de constituiccedilatildeo e apresentaccedilatildeo algo que resolvemos tratar como sendo campos

de batalha ou seja espaccedilos de disputa ou fendas de visibilidade da ambiguidade estrutural do

boneco em animaccedilatildeo que revelam os atritos entre ator e objeto e fazem desses atritos pontos

de interesse do observador e de exploraccedilatildeo das possibilidades expressivas e de significaccedilatildeo da

linguagem teatral da animaccedilatildeo

Este momento do trabalho tem por objetivo buscar uma loacutegica integradora capaz de

relacionar os principais apontamentos produzidos no decurso das duas reflexotildees que o

compotildeem Eacute sobretudo o momento de se buscar a confirmaccedilatildeo da colaboraccedilatildeo reflexiva que

sempre julguei existir entre o esforccedilo de entender as funccedilotildees e as configuraccedilotildees do artista de

animaccedilatildeo no panorama atual do teatro brasileiro e a compreensatildeo dos embates relacionais

entre ator e forma que moldaram a configuraccedilatildeo da linguagem da animaccedilatildeo como esta vem

sendo percebida e praticada

Portanto sobrepondo-se ao trabalho de separaccedilatildeo e identificaccedilatildeo daquelas que

podemos chamar de as conclusotildees possiacuteveis a este percurso reflexivo urge que estas sejam

ampliadas e adensadas num exerciacutecio de estabelecimento de conexotildees e relaccedilotildees notaacuteveis

entre os dois percursos Desnecessaacuterio apontar que parte desse trabalho teve iniacutecio na proacutepria

labuta argumentativa enfrentada no interior dos dois capiacutetulos centrais da tese

Se haacute de fato um ponto de partida eficiente para o esforccedilo que agora se empreende

este parece ser com alguma seguranccedila a discussatildeo sobre o alegado desaparecimento do

boneco do teatro de animaccedilatildeo em favor de uma participaccedilatildeo crescente de um operador de

formas cada vez mais consciente das qualidades de atuaccedilatildeo que aciona e que de acordo com

as criacuteticas de Feacutelix e Jurkowski se apresenta mais propenso a dispensar o boneco em favor de

209

uma atuaccedilatildeo centrada no ator De fato o crescente aproveitamento dos recursos expressivos

do ator de animaccedilatildeo em cena que vem sendo apontado como caracteriacutestica importante das

investigaccedilotildees teacutecnico-linguiacutesticas do teatro de animaccedilatildeo brasileiro desde meados da deacutecada de

1970 (remontando a um pouco antes em paiacuteses da Europa e nos Estado Unidos) parece surgir

como um desejo de criaccedilatildeo de uma cena de animaccedilatildeo com possibilidades de expressatildeo

ampliadas O que se verifica eacute que a presenccedila e a expressividade do ator no teatro de

animaccedilatildeo desempenha uma funccedilatildeo importante nesse processo de criaccedilatildeo de uma cena mais

surpreendente e heterogecircnea Pode-se dizer do ator sobre a cena de animaccedilatildeo

apressadamente que este eacute um elemento de cataacutelise capaz de transformar a disposiccedilatildeo

heterogecircnea do moderno teatro de animaccedilatildeo numa composiccedilatildeo espetacular harmocircnica e

inteligiacutevel Pode-se ateacute mesmo negligenciar a reflexatildeo acerca do que seriam de fato essa

harmonia e inteligibilidade e acerca da necessidade da existecircncia de um agente desses

atributos para a produccedilatildeo de sentido em um espetaacuteculo teatral posto que essa suposiccedilatildeo se faz

problemaacutetica sob diversos outros aspectos Seguimos entatildeo com a evidecircncia de que a

exposiccedilatildeo do ator operador de formas pode ser entendida muito mais como um mecanismo de

provocaccedilatildeo de tensotildees e de cisotildees perceptivas do que propriamente como um agente a favor

de uma percepccedilatildeo harmonizada O ator posto agrave vista natildeo torna os corpos iacutentegros ele

participa de uma dinacircmica perceptiva de separaccedilatildeo e fragmentaccedilatildeo Isto se mostra nos corpos

compartilhados do Teatro Hugo e Inecircs na alternacircncia de modos de apresentaccedilatildeo das

personagens da PeQuod na atenccedilatildeo que o ator operador deposita sobre o boneco de modo a

conduzir o olhar da plateia Dessa afirmaccedilatildeo podemos com alguma seguranccedila discordar de

Tillis quando este propotildee que ldquosob os signos apresentados pelo ator a audiecircncia natildeo consegue

deixar de ver uma pessoa vivardquo (TILLIS 1992 p82) Talvez a plateia natildeo consiga deixar de

reconhecer alguns elementos da vitalidade inerente ao ator vivo mas creio jaacute termos

evidecircncia suficiente para declarar que essa percepccedilatildeo de vida ainda que inevitaacutevel em certos

aspectos natildeo eacute capaz de negar a produccedilatildeo de uma percepccedilatildeo em sentido contraacuterio que

estranha o corpo do ator em cena e lhe confere caracteriacutesticas de objeto Deste entendimento

decorre que o ator tanto em sua qualidade de propulsor da atividade manipulativa da

animaccedilatildeo quanto nas impressotildees que a sua exibiccedilatildeo sobre a cena de animaccedilatildeo produz eacute

tragado para dentro daquilo que o puacuteblico iraacute entender com forma animada Se eacute possiacutevel

reconhecer a exposiccedilatildeo qualificada do ator operador como traccedilo marcante nas experiecircncias

recentes em teatro de animaccedilatildeo esta natildeo se daacute no sentido do entendimento exclusivo de uma

valorizaccedilatildeo do trabalho do ator sobre uma cena heterogecircnea (ainda que essa questatildeo apresente

a sua importacircncia) mas sobretudo no sentido do entendimento de que o desejo de afirmar a

210

animaccedilatildeo a partir de um desejo de construccedilatildeo de heterogeneidades impocircs alteraccedilotildees ao

estatuto de percepccedilatildeo e entendimento da forma animada de modo a integrar em sua estrutura

o corpo a accedilatildeo e a subjetividade do ator que (tambeacutem) a opera

Ao lado desse entendimento encontra-se tambeacutem a aceitaccedilatildeo do efeito de opalizaccedilatildeo

(nos termos de Jurkowski) ou de visatildeo-dupla (nos termos de Tillis) como sendo o elemento

central de explicaccedilatildeo da dinacircmica perceptiva da forma animada A percepccedilatildeo do boneco em

apresentaccedilatildeo como sendo um objeto inerte e ao mesmo tempo vida que se imagina produz

uma percepccedilatildeo dinacircmica resultante do embate do envio de estiacutemulos que mesmo

contraditoacuterios sustentam a apresentaccedilatildeo em animaccedilatildeo O operador exposto amplifica a

percepccedilatildeo da ambiguidade ontoloacutegica do boneco posto que a imaginaccedilatildeo da autonomia eacute

sistematicamente perturbada pela visatildeo da origem do movimento

Contudo essa visibilidade amplifica tambeacutem o entendimento do ator como parte da

estrutura da forma animada Da vida imaginada ao objeto que emerge da dinacircmica relacional

entre forma e operador resulta tambeacutem alguma objetualizaccedilatildeo do ator que pode se dar por

meio dos recursos de focalizaccedilatildeo que por vezes concedem ao boneco a centralidade da cena

obrigando o ator a dosar a sua expressividade por meio da divisatildeo da expressividade entre

ator e forma que faz do ator parte da expressatildeo de uma subjetividade ficcional por meio do

compartilhamento de partes do corpo com a forma animada indefinindo limites e

estabelecendo desdobramentos corporais ou mesmo por meio do emprego de recursos de

narraccedilatildeo que posicionam o ator num lugar claramente exterior ao centro da accedilatildeo de onde

controla ou eacute controlado pela exposiccedilatildeo verbal da histoacuteria que a peccedila conta

Mas podemos tambeacutem nos deparar com recursos mais radicais de objetualizaccedilatildeo do

ator na cena de animaccedilatildeo que eacute quando este se comporta ou eacute levado pelas circunstancias da

cena a comportar-se como objeto Comentamos o exemplo da atriz que eacute iccedilada durante Peer

Gynt da PeQuod ndash Teatro de Animaccedilatildeo mas podemos recorrer a uma grande variedade de

exemplos similares como os jogos de ilusionismo de Phillip Genty que datildeo a impressatildeo de

transformar bailarinos em silhuetas em Fin des Terres as coberturas proteacuteticas de Ilka

Schoumlnbein que restringem os movimentos da atriz de modo a forccedilar uma movimentaccedilatildeo

maquinal e os grandes objetos de vestir existentes em Coquetel Clown da XPTO que produz

sobre a cena corpos expandidos e multicoloridos

Parece entatildeo que o ator seu corpo e sua potecircncia expressiva se torna material para

construccedilatildeo de bonecos Essa consideraccedilatildeo enriquece a cena e as possibilidades de

entendimento das dinacircmicas de animaccedilatildeo Vejamos agora como tratar da expressividade do

ator com sendo material de criaccedilatildeo de formas animadas jaacute foi dito a respeito da importacircncia

211

do movimento para o ato de animar e tambeacutem de como natildeo se pode restringir o entendimento

desse movimento a deslocamentos e atividades articulares Optou-se por ampliar o conceito

apresentado por Tillis de movimento impliacutecito de modo a supor que a participaccedilatildeo qualificada

em uma trama espetacular eacute por si soacute produtora e reveladora de um impulso participante da

narrativa espetacular Ampliamos agora um pouco mais esse entendimento ao propor que a

dinacircmica de direcionamentos focais contidas na apresentaccedilatildeo do ator (e tambeacutem em recursos

teacutecnicos como os de som e de luz) pode determinar certa qualidade de movimento agrave forma

como tambeacutem qualifica essa forma em sua relaccedilatildeo com a trama espetacular Se recordarmos

do exemplo da cena com o manequim em Isto natildeo eacute um cachimbo da Cia Truks pode-se

perceber que a qualidade de inserccedilatildeo do objeto na cena natildeo se daacute apenas por meio de

produccedilatildeo de deslocamentos giros e ativaccedilotildees articulares mas tambeacutem em acordos relacionais

sutis como a busca por uma troca de olhares e quando se busca produzir um espelhamento de

atitudes entre o objeto e a atriz

O entendimento de que o ato de animar natildeo se relaciona obrigatoriamente com a

produccedilatildeo de um deslocamento ou de uma atividade articular natildeo apenas amplia a variedade

das possiacuteveis configuraccedilotildees do boneco teatral como tambeacutem amplia os entendimentos do ato

de animar ateacute possibilidades mais sutis e variadas de jogos relacionais entre ator e objeto Eacute

exatamente por esse motivo que este trabalho reconhece no operador de formas qualidades

operativas proacuteprias da atuaccedilatildeo e no princiacutepio do foco o elemento teacutecnico-conceitual

fundamental a partir do qual se desdobram e se desenvolvem as possibilidades para a

fundaccedilatildeo de uma gramaacutetica ampla e precisa do trabalho do ator de animaccedilatildeo em ambientes

multidisciplinares

Dentre os diversos entendimentos e usos da focalizaccedilatildeo arrolados neste trabalho

aquele que se define por meio da sugestatildeo de direcionamento da atenccedilatildeo do espectador como

produccedilatildeo das ecircnfases que organizam a narrativa da cena iraacute se relacionar com um princiacutepio

tambeacutem considerado fundamental quando se trata de atuaccedilatildeo em animaccedilatildeo que eacute a noccedilatildeo de

transferecircncia de expressividade O ator emprega recursos de expressividade proacutepria para

produzir uma apresentaccedilatildeo que ainda que natildeo busque (e natildeo consiga) em todas as ocasiotildees

transferir integralmente a sua expressividade para a apresentaccedilatildeo do boneco tampouco o faz

solicitando para si mesmo a centralidade da accedilatildeo Esse conceito que ajuda a definir a funccedilatildeo

do artista de animaccedilatildeo ressalta tambeacutem o caraacuteter de atuaccedilatildeo da sua atividade O

reconhecimento de competecircncias e funccedilotildees de atuaccedilatildeo no artista de operaccedilatildeo de formas

animadas parece estar corroborado no levantamento de princiacutepios pedagoacutegicos de escolas

212

dedicadas agrave linguagem da animaccedilatildeo feito por Beltrame (2001)96

dentre os quais figura com

destaque a preocupaccedilatildeo com uma formaccedilatildeo que contemple aspectos do trabalho do ator

Ainda em referecircncia ao trabalho de Beltrame a formulaccedilatildeo de que ldquoteatro de

animaccedilatildeo eacute teatrordquo (idem p 192) empresta agrave reflexatildeo acerca da formaccedilatildeo do artista de

animaccedilatildeo o entendimento de que este natildeo participa de uma modalidade espetacular separada e

altamente especiacutefica mas sim de uma arte teatral que como tal lida com princiacutepios e efeitos

comuns A afirmaccedilatildeo se relaciona intensamente com outro apontamento do qual se extrai que

ldquoo teatro de bonecos natildeo pode estar confinado em si mesmo como linguagem artiacutesticardquo (idem

p 193) Ao lado de corroborar a natureza eminentemente teatral do teatro de animaccedilatildeo essa

uacuteltima afirmaccedilatildeo lida tambeacutem com a sua vocaccedilatildeo integradora De fato posto que a linguagem

do teatro de animaccedilatildeo se estrutura sobre uma composiccedilatildeo de recursos expressivos que

transitam do teatral ao escultoacuterico aceitando em meio a essa dinacircmica tornar-se um local de

interseccedilatildeo entre diversas outras linguagens expressivas como a danccedila a muacutesica a pintura e as

artes em miacutedias digitais Curioso eacute notar que essa maneira de definir algo que seria demasiado

especiacutefico da linguagem da animaccedilatildeo toca de maneira bastante direta uma compreensatildeo que

se tem a respeito da arte do teatro partindo-se das suas caracteriacutesticas gregaacuterias e associativas

O artista de animaccedilatildeo por meio do direcionamento focal que resulta na transferecircncia

de expressividade encontra o seu especiacutefico na disposiccedilatildeo de ser entendido como objeto

Assim sendo o ator de animaccedilatildeo eacute aquele que se presta a um tipo de operaccedilatildeo manipulativa

seja ela feita por interferecircncia da sua proacutepria dinacircmica de atuaccedilatildeo pelas contribuiccedilotildees da

dinacircmica relacional estabelecida com o objeto ou pela maneira como este se insere em uma

determinada poeacutetica de encenaccedilatildeo

Aqui torna-se inescapaacutevel a consideraccedilatildeo da animaccedilatildeo a como algo desdobrado em si

para em seguida indagarmo-nos acerca da real existecircncia desse desdobramento O teatro de

animaccedilatildeo se caracteriza na sua variedade na sua irresistiacutevel aproximaccedilatildeo com outras

manifestaccedilotildees artiacutesticas na posiccedilatildeo que marca como ponto de encontro de expressividades

combinadas na faacutecil adesatildeo que assume a um ambiente de multidisciplinaridade e de

derrubada de fronteiras artiacutesticas como uma modalidade espetacular especiacutefica e ao mesmo

tempo como uma linguagem que se afirma num movimento de desaparecimento em meio agraves

alternativas expressivas que opera Ou seja o seu especiacutefico eacute o desaparecimento a

indefiniccedilatildeo E isto se afirma com a total consciecircncia de que o panorama atual do teatro de

96

Beltrame realiza para a pesquisa que resulta em sua tese de doutorado estudos relacionados agrave Eacutecole

Supeacuterieure Nationale des Arts de la Marionnette (Charleville-Meacuteziegraveres Franccedila) e da Escuela de Titiriteros del

Teatro General San Martin (Buenos Aires Argentina) aleacutem do levantamento de 18 instituiccedilotildees dedicadas agrave

formaccedilatildeo de profissionais de teatro de animaccedilatildeo em diversos paiacuteses

213

animaccedilatildeo natildeo exclui formatos severamente codificados com traccedilos temas e teacutecnicas

definidos e claros

Assim o teatro de animaccedilatildeo se entende como sendo um gecircnero teatral definido uma

manifestaccedilatildeo espetacular entendida no modo de dar agrave cena elementos que satildeo percebidos

como objetos mas que se escolhe imaginar como sendo agentes autocircnomos e independentes

de uma trama espetacular e ao mesmo tempo uma linguagem ou um conjunto de dispositivos

linguiacutesticos capaz de operar arranjos transdisciplinares sobre a cena teatral A discussatildeo se

estende ateacute o ponto em que se reconhece qualidades teatrais em todas as manifestaccedilotildees do

boneco como este eacute definido neste trabalho de modo a supor que mesmo as modalidades mais

tradicionais e codificadas do teatro de animaccedilatildeo (ou de bonecos) seriam a princiacutepio teatro

para as quais os recursos linguiacutesticos da animaccedilatildeo assumiriam alguma hegemonia em meio

aos recursos de constituiccedilatildeo da cena

Parece que essa percepccedilatildeo do teatro de animaccedilatildeo como uma linguagem sem aderecircncia

obrigatoacuteria a um estilo ou a um formato espetacular adquire maior radicalidade nas

experiecircncias de encenaccedilatildeo verificadas a partir da segunda metade do seacuteculo XX

desencadeando um movimento de matildeo dupla no qual natildeo se consegue ver ndash porque de fato

natildeo haacute ndash uma lideranccedila em termos de vontade artiacutestica ao passo que encenadores buscaram

acionar mais e mais elementos e dispositivos linguiacutesticos caros (por desejo ou coincidecircncia)

ao teatro de animaccedilatildeo muitos artistas de teatro de bonecos se imbuiacuteram de um desejo de

integraccedilatildeo de possibilidades expressivas forccedilando os limites da linguagem ateacute um ldquoponto de

encontrordquo de possibilidades expressivas O ambiente geral de questionamento acerca dos

limites entre as artes torna esse um movimento sem liacuteder ou ponto de partida Cada vez mais o

teatro de animaccedilatildeo eacute teatro posto que a proacutepria tendecircncia ao desaparecimento em meio aos

cruzamentos linguiacutesticos que se verifica nas suas caracteriacutesticas estruturais natildeo lhe eacute

exclusiva ou melhor derruba a rigidez dos formatos consagrados para mostra-lo sobre toda

cena em que se pretender acionar qualquer dos seus princiacutepios de linguagem

E assim reafirma-se o emprego do termo teatro de animaccedilatildeo em detrimento a outras

terminologias que subordinam a linguagem agrave presenccedila de um objeto especiacutefico O estatuto

ampliado do boneco teatral (ou da forma animada) que aqui se defende eacute aquele que entende

essa forma como resultado obrigatoacuterio do ato relacional estabelecido entre ator e objeto Essa

leitura permite o vislumbre de um boneco feito de materiais reagrupaacuteveis de combinaccedilotildees

transitoacuterias e de corpos criados a partir de conduccedilotildees de atenccedilatildeo (como no caso das jaacute

mencionadas Puces savantes) Da mesma maneira permite o entendimento de um ator

tornado objeto por meio de uma dinacircmica perceptiva que integra corpos e funccedilotildees O ator de

214

animaccedilatildeo passa assim a ser um ator de teatro marcado por uma multicorporalidade que o

permite desdobrar-se desaparecer e tornar-se objeto tudo isso como meio e resultado do ato

de animar

No que diz respeito ao ator no teatro de animaccedilatildeo parece justo afirmar tratar-se de um

artista diante de uma evidente demanda de atuaccedilatildeo que se caracteriza e se amplia em dois

sentidos complementares O primeiro deles eacute aquele que lida com a linguagem da animaccedilatildeo

entendida como definida e especiacutefica Parte do princiacutepio teacutecnico-conceitual da projeccedilatildeo de

expressividade e lida com capacidades de direcionamento focal apenas para citar os preceitos

mais abordados neste trabalho o segundo sentido eacute inalienaacutevel ao primeiro e trata justamente

da dinacircmica de interfaces artiacutesticas que define a linguagem da animaccedilatildeo e que entende o

artista de animaccedilatildeo como sendo um algueacutem instado a promover encontros entre linguagens e

competecircncias teacutecnico-artiacutesticas Nesse sentido o que se observa dentro das companhias eacute uma

demanda por artistas capazes de trabalhar natildeo apenas no entendimento da estrutura da cena

que lhe permita conduzir o fluxo de atenccedilotildees de modo consciente e dominado mas tambeacutem

de artistas capazes de operar com propriedade e autonomia os cruzamentos linguiacutesticos

solicitados pela proacutepria cena de animaccedilatildeo

Tratar do animador posto agrave vista no teatro de animaccedilatildeo do momento atual eacute tratar de

maneira obrigatoacuteria dos desafios teacutecnicos e dramatuacutergicos impostos a um artista disposto a

dominar e conduzir os fluxos de atenccedilatildeo com autonomia e criatividade num processo de

produccedilatildeo de indefiniccedilotildees formais e expressivas entre operador e forma

215

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MESCHKE Michael Algumas reflexotildees impopulares relativas agrave moral titiriteira na UNIMA

Mamulengo Revista da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos ano 0 n 3 Rio de

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MEYERHOLD Vsevolod El teatro de feria Revista PUCK ndash El tiacutetere y las otras artes

ano 1 no1 Bilbao Institut International de la Marionnette Centro de documentacioacuten de

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MICHALSKI Yan Bonecos de vanguarda Jornal do Brasil Rio de Janeiro 5 de novembro

de 1980 caderno B p2

MONESTIER Claude Manipulaccedilatildeo agrave vista de marionetas e objetos Mamulengo Revista

da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos ano 0 n 3 Rio de Janeiro ABTB junjul

1974 pp 13-4

NASCIMENTO Paulo Ricardo O atuador ldquoInBusteirordquo Teatro com bonecos 31092009

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NUNES Sandra Meyer A marionete comometaacutefora do corpo danccedilante um convite agrave

percepccedilatildeo Moacutein-moacutein Revista de estudos sobre teatro de formas animadas ano 6 no 7

Jaraguaacute do Sul SCARUDESC 2005 pp125-43

OPHRAT Hadass The visual narrative stage design for puppet theatre e pur si muove

UNIMA magazine ano 1 no1 Charleville-Meacuteziegraveres Institut International de la

Marionnette 2002 pp 31-3

PARENTE Joseacute O papel do ator no teatro de animaccedilatildeo Moacutein-moacutein Revista de estudos

sobre teatro de formas animadas ano 1 no 1 Jaraguaacute do Sul SCARUDESC 2005

pp105-17

PLASSARD Didier La cage aux merveilles agrave propocircs dacuteALIS Revista PUCK ndash La

marionnette et les autres arts ano 1 n4 Charleville-Meacuteziegraveres Institut International de la

Marionnette 1991 pp57-60

_______________ La traverseacutee des figures Revista PUCK ndash La marionnette et les autres

arts ano 4 n8 Charleville-Meacuteziegraveres Institut International de la Marionnette 1995 pp15-9

RABETI Beti Eleonora Duse por Silvio DacuteAmico a interpretaccedilatildeo que se esconde

Folhetim no 20 Rio de Janeiro Teatro do Pequeno Gesto jul-dez 2004 pp 22-33

VARGAS Sandra amp VELLINHO Miguel Sobrevento mudando os rumos do teatro de

animaccedilatildeo Entrevista concedida a Antocircnio Guedes Faacutetima Saadi e Walter Lima Torres

221

Revista Folhetim n 8 Rio de Janeiro Teatro do Pequeno Gesto set-dez de 2000 pp60 ndash

92

VARGAS Sandra O teatro de objetos histoacuteria ideacuteias e reflexotildees Moacutein-moacutein Revista de

estudos sobre teatro de formas animadas ano 6 no 7 Jaraguaacute do Sul SCARUDESC

2010 pp 27-43

VELLINHO Miguel Festivais de teatro de animaccedilatildeo no Brasil (2000-2009) Moacutein-moacutein

Revista de estudos sobre teatro de formas animadas ano 6 no 7 Jaraguaacute do Sul

SCARUDESC 2010 pp208-22

__________________ Accedilatildeo Aproximaccedilotildees entre a linguagem cinematogrpaacutefica e o teatro

de animaccedilatildeo Moacutein-moacutein Revista de estudos sobre teatro de formas animadas ano 1 no

1 Jaraguaacute do Sul SCARUDESC 2005 pp169-86

VENEZIANO Neyde Revistando o bauacute revisteiro O Percevejo revista de teatro criacutetica e

esteacutetica ano 12 no 13 Rio de Janeiro PPGT-UNIRIO 2004 pp30-41

Teses e dissertaccedilotildees

ANDRADE Elza de Mecanismos de comicidade na construccedilatildeo da personagem

Propostas metodoloacutegicas para o trabalho do ator 2005 Tese (Doutorado em Teatro) ndash

Programa de Poacutes Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Arte (CLA) Universidade

Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro

BELTRAME Valmor Animar o inanimado a formaccedilatildeo profissional no teatro de

bonecos 2001 Tese (Doutorado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes Cecircnicas (CAC)

Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP) Satildeo Paulo

CASTRO Kelly Elias de O ator no teatro de animaccedilatildeo contemporacircneo trajetoacuterias rumo

agrave criaccedilatildeo da cena 2009 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes

Cecircnicas (CAC) Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Satildeo Paulo

COSTA Felisberto Sabino da A poeacutetica do ser e natildeo ser procedimentos dramatuacutergicos

do teatro de animaccedilatildeo 2001 Tese (Doutorado em Artes Cecircnicas) ndash Departamento de Artes

Cecircnicas (CAC) Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes (ECA) Universidade de Satildeo Paulo (USP)

Satildeo Paulo

PIRAGIBE Mario Ferreira Papel Tinta Madeira Tecido Um estudo da conjugaccedilatildeo de

elementos dramatuacutergicos e espetaculares no teatro contemporacircneo de animaccedilatildeo a

experiecircncia da companhia PeQuod 2007 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Teatro) ndash Programa de

Poacutes-Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Artes (CLA) Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro

VIEIRA Miguel Vellinho Ilo Krugli e a construccedilatildeo de um novo espaccedilo poeacutetico para o

teatro infantil no Brasil 2008 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Teatro) ndash Programa de Poacutes-

Graduaccedilatildeo em Teatro (PPGT) Centro de Letras e Artes (CLA) Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) Rio de Janeiro

222

Entevistas

KRUGLI Ilo Entrevista com Ilo Krugli especial para a Revista Mamulengo entrevista

[maio de 1984] Mamulengo Revista da Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro de Bonecos ano 11

n 12 Curitiba ABTB 1984 pp 11-4 Entrevista concedida a Fanny Abramovitch

RIBAS Marcos Caetano amp RIBAS Rachel ldquoNatildeo quero bater papo aqui forardquo entrevista [24

de outubro de 2009] Satildeo Paulo Suplemento de saacutebado do Jornal Brasil Econocircmico pp 27-

32 Entrevista concedida a Phydia de Athayde

VARGAS Sandra amp VELLINHO Miguel Sobrevento mudando os rumos do teatro de

animaccedilatildeo entrevista Folhetim n8 Rio de Janeiro set-dez de 2000 pp 60-92 Entrevista

concedida a Faacutetima Saadi

Programas de espetaacuteculos eventos e portfoacutelios

Programa do evento 10 Anos de Ventoforte 1984

Programa do espetaacuteculo Museu Rodin Vivo Satildeo Paulo SESC Ipiranga julho de 1995

Programa do espetaacuteculo Em Concerto Paraty Contadores de Estoacuterias 1998

O Teatro do Sobrevento Satildeo Paulo Grupo Sobrevento 2004

Vinte e cinco anos com Pia Fraus Satildeo Paulo Pia Fraus 2009

Bunraku Teatro tradicional de Bonecos do Japatildeo Fundaccedilatildeo JapatildeoSociedade Cultura

Artiacutestica 2002

Webites e Weblogs

A Caixa do Elefante Teatro de Bonecos lthttpwwwcaixadoelefantecombrgt

Catibrum Teatro de Bonecos lthttpwwwcatibrumcombrgt

CBTIJ ndash Centro Brasileiro de Teatro para a Infacircncia e Juventude lt httpwwwcbtijorgbrgt

Clube da sombra Cia Teatro Lumbra lthttpwwwclubedasombracombrgt

Cia Truks Teatro de Bonecos lthttpwwwtrukscombrgt

Giramundo Teatro de Bonecos lthttpgiramundoorggt

Grupo Contadores de Estoacuterias lthttpwwwecparatyorgbrindexhtmgt

223

Grupo Sobrevento lthttpwwwsobreventocombrgt

Morpheus Teatro lthttpwwwmorpheusteatrocombrgt

Intercacircmbio PeQuod e Caixa do Elefante 2001 lthttpcaixadoelefantepequod2011

blogspotcomgt

IPM ndash International Puppetry Museum lthttppuppetrymuseumorggt

Pequod ndash Teatro de Animaccedilatildeo ltwwwpequodcombrgt

XPTO Brasil lthttpwwwxptobrasilcomgt

Viacutedeos

GRUPO CONTADORES DE ESTOacuteRIAS TEATRO ESPACcedilO Grupo Contadores de

estoacuterias O teatro de bonecos de Paraty [Filme-viacutedeo] Realizaccedilatildeo Grupo Contadores de

Estoacuterias e Teatro Espaccedilo Paraty Espaccedilo Cultural Paraty 2009 1 disco DVDNTSC 104

min Color Son

RIBEIRO Mariacutelia Andreacutes SILVA Fernando Pedro da TAVARES Mariana Giramundo

Um histoacuteria de tiacuteteres e marionetes [Filme-viacutedeo] Coordenaccedilatildeo de projeto de Mariacutelia

Andreacutes Ribeiro e Fernando Pedro da Silva direccedilatildeo e roteiro de Mariana Tavares Belo

Horizonte CArte sd 1 cassete VHSNSTC 25 min Color Son

Peer Gynt Cia PeQuod de Teatro de animaccedilatildeo (110 min) 2006 DVD

Enciclopeacutedias e dicionaacuterios

JURKOWSKI Henryk amp FOUC Thieri (orgs) Encyclopeacutedie mondiale des arts de la

marionnette Montpelier UNIMAEntretemps 2009

PAVIS Patrice Diccionario del teatro dramaturgia estetica e semiologia (1ordf edicioacuten)

Barcelona Paidoacutes 1998

224

ANEXO A

RUMO A UMA

ESTEacuteTICA DO

BONECO

O BONECO COMO ARTE TEATRAL

Steve Tillis

Traduccedilatildeo de Mario Ferreira Piragibe

225

Ao meu avocirc materno Jacob Gelfland

226

SUMAacuteRIO

Prefaacutecio p 225

Introduccedilatildeo p 226

PARTE I DEFININDO E EXPLICANDO O BONECO

1 Definiccedilotildees consagradas p 237

2 Explicaccedilotildees consagradas p 250

3 Uma nova base para definiccedilatildeo e explicaccedilatildeo p 277

PARTE II DESCREVENDO O BONECO

4 Descriccedilotildees consagradas p 301

5 Uma nova base para descriccedilatildeo p 323

CODA ndash Metaacutefora e o boneco

p 363

227

PREFAacuteCIO

Eu natildeo me envolvi com bonecos por meio de um interesse de infacircncia e sim devido a

haver me empregado no Dr Edison Traveling Medicine Show (Show itinerante de medicina

do Dr Edison) uma trupe vagabunda com qual eu me lancei na estrada muitos anos atraacutes

Aquele show parou de viajar desde aquela eacutepoca mas meu envolvimento com os bonecos

prosseguiu por muitos anos como ator e agora ao que parece como estudioso Em todos

esses anos contraiacute diversas diacutevidas as quais natildeo terei como pagar inteiramente mas que

reconheccedilo de bom grado

Toby Grace o saudoso Ray Nelson Bob Brown Ken Moses e Bart P Roccoberton

Jr diretores de respeitaacuteveis companhias itinerantes me ensinaram quase tudo o que sei sobre

apresentaccedilotildees com bonecos sem as suas ajudas eu sequer teria iniciado este estudo Bob

Brown foi tambeacutem amaacutevel a ponto de me permitir acesso agrave sua biblioteca pessoal Cheryl

Koehler e Carol Wolfe experientes artistas de teatro de bonecos se dispuseram a discutir

muitas das ideacuteias aqui apresentadas

Karl Toepfer David Kahn e Ethel Walker professors da San Jose State University

ensinaram-me muito do que sei acerca de escrita acadecircmicasem as suas ajudas eu natildeo teria

como completar este estudo Karl Toepfer tambeacutem me auxiliou como orientador e foi o

Virgiacutelio do meu Dante no mundo arcano da teoria literaacuteria e dramaacutetica

Lou Furman da Washington State University e Doris Grubidge da Universidade de

Wisconsin Oshkohs forneceu criacuteticas valiosas e encorajamento vital Eu tambeacutem recebi

apoio de Henryk Jurkowski o principal estudioso em teatro de bonecos no mundo O leitor

logo notaraacute que eu discordo do professor Jurkowski em uma seacuterie de questotildees Quando tive a

ocasiatildeo de alertaacute-lo sobre dessas discordacircncias ele gentilmente respondeu ldquoAh mas somos

estudiosos Eacute nossa funccedilatildeo discordarrdquo Natildeo importa quais questotildees nos separem minha visatildeo

acerca de teatro de bonecos teria permanecido empobrecida natildeo fosse o estiacutemulo concedido

por aprender e discordar do professor Jurkowski

Marilyn Brownstein Maureen Melino Kellie Cardone Ruyh Adkins e Susan Baker

todos da Greenwood Press trabalharam com afinco sobre meus manuscritos amassados sem

a assistecircncia dessas pessoas e de seus diversos colaboradores eu natildeo teria sido capaz de

oferecer ao leitor um livro apreciaacutevel

Finalmente eacute com o maior prazer que eu aproveito esta oportunidade para agradecer a

minha mulher Adrienne Baker por seu apoio generoso concedidos de todas as maneiras e por

228

sua feacute inabalaacutevel que que eu poderia algum dia ter algo de uacutetil a dizer E tambeacutem gostaria de

agradecer ao nosso filho Sam Tillis por ter tido a dececircncia de tirar sonecas bastante regulares

e extensas

Apenas eu sou o responsaacutevel por toda e qualquer bobagem que o leitor encontrar neste

livro

229

INTRODUCcedilAtildeO

Bonecos tecircm sido usados em apresentaccedilotildees teatrais por todo o mundo e desde tempos

remotos Cada continente habitado ostenta sua proacutepria tradiccedilatildeo de bonecos sejam elas

associadas a culturas tribais ou citadinas a civilizaccedilotildees desenvolvidas ou com ambas Mas

apesar de sua ubiquumlidade o boneco tem recebido pouca atenccedilatildeo em estudos de teoria teatral

Este livro iraacute se dedicar a problemas fundamentais em teatro de bonecos com o

intento de estabelecer uma base teoacuterica e um vocabulaacuterio descritivo para uma esteacutetica geral do

boneco A amplitude de tais problemas e a aproximaccedilatildeo a ser utilizada em tal abordagem seraacute

explicada mais adiante nesta introduccedilatildeo mas seraacute melhor comeccedilarmos com algumas

evidecircncias da vasta amplitude de apresentaccedilotildees com bonecos

Na Nigeacuteria membros da tribo Ibabio ajuntam-se durante o dia ao ar livre numa aacuterea

arenosa Diante deles estatildeo lenccediloacuteis costurados um no outro e pendurados em trilhos de

madeira acima desse mural de lenccediloacuteis estatildeo figuras de um peacute de altura de homens e mulheres

cada uma construiacuteda a partir de alguns pedaccedilos de madeira esculpida e pintada As figuras

parecem mover-se e falar por si mesmas de fato satildeo movidas por meio de conjuntos de

varas e as suas vozes satildeo distorcidas e artificiais Mostram cenas cocircmicas e licenciosas de

ldquoeventos pontuais da cultura tribal [incluindo] cenas da vida domeacutestica assim como uma

quantidade de referecircncias satiacutericas dos sistemas dominantes dos governos tribal e colonialrdquo

(Malkin 1977 64-65 ver tambeacutem Proschan 1980 24 208)

Em Java aldeotildees sentam-se no frio da noite para celebrar algum evento local No

lugar da celebraccedilatildeo uma grande tela de tecido de algodatildeo branco eacute esticada em uma moldura

de madeira e detraacutes dela haacute um lampiatildeo aceso entretanto o termo ldquodetraacutesrdquo natildeo possui um

sentido real uma vez que os populares sentam-se diante de ambos os lados da tela Entre a

tela e o lampiatildeo estatildeo variadamente figuras de homens mulheres deuses animais e ateacute

mesmo exeacutercitos inteiros em marcha tais figuras satildeo cortadas e pintadas elaboradamente em

peccedilas de couro curtido de buacutefalo-da-aacutegua e variam em altura de meio peacute ateacute quatro peacutes A

maioria da plateacuteia assiste agraves sombras produzidas por essas figuras enquanto que o resto presta

atenccedilatildeo agraves proacuteprias figuras e pode perceber que tais figuras tecircm seus movimentos produzidos

por meio de varas por apenas uma pessoa que tambeacutem daacute as falas ricamente diferenciada de

personagem a personagem entretanto sem qualquer distorccedilatildeo que retire a naturalidade das

falas A muacutesica que acompanha eacute praticamente contiacutenua produzindo fundo canccedilotildees ou

alcanccedilando a frontalidade da representaccedilatildeo em intervalos da accedilatildeo As figuras apresentam uma

230

histoacuteria mitoloacutegica alternadamente cocircmica traacutegica heroacuteica a respeito de deuses a

apresentaccedilatildeo constitui-se numa parte integral da celebraccedilatildeo e duraraacute do pocircr do sol ateacute a

aurora (Brandon 1970 35-69 Ulbricht 1970 5-14)

Estes satildeo exemplos diferentes de teatro dramaacutetico a apresentaccedilatildeo nigeriana foi

presenciada no iniacutecio do seacuteculo [NT seacuteculo XX] e deriva de uma tradiccedilatildeo que de acordo com

a nossa fonte se manteacutem mas que natildeo remonta a um passado tatildeo distante a apresentaccedilatildeo

javanesa ocorreu na deacutecada de 1960 e deriva de uma tradiccedilatildeo de teatro de bonecos que

remonta talvez ao seacuteculo nono e seguramente ao seacuteculo onze (Brandon 1970 3) As

apresentaccedilotildees partilham a peculiaridade de apresentar objetos como se estivessem vivos O

termo usual para descrever tal figura eacute ldquobonecordquo

Em Londres Inglaterra um agrupamento de pessoas aproveitando o lazer no Regentacutes

Park se juntam diante de uma tenda oblonga seis peacutes de altura com uma abertura na frente

Dentro daquela abertura estatildeo figuras de seis peacutes que representam um corcunda e sua esposa

ambos feitos de tecido e madeira ambos parecendo mover-se e falar por sua proacutepria conta de

fato os movimentos e as falas lhes satildeo conferidos por um homem apenas escondido no

interior da tenda A fala da mulher eacute um falsete esganiccedilado poreacutem claro ao passo que a fala

do corcunda eacute distorcida e antinatural a esposa repete o que fala o corcunda para que assim

sejam compreendidas O corcunda iraacute em diversos momentos da apresentaccedilatildeo jogar o seu

bebecirc de uma janela matar um policial e confrontar-se com o democircnio trata-se de uma

comeacutedia (Speaight 1990 [1955] 208-18)

Em Washington D C crianccedilas de uma escola foram levadas em um ocircnibus escolar

ateacute o Kennedy Center for the Performing Arts no grande palco diante deles estatildeo partes

superdimensionadas de uma casa e um jardim e atraacutes desses dispositivos cecircnicos estatildeo trecircs

vocalizadores acompanhados pela Orquestra Sinfocircnica Nacional Um ator-cantor representa

uma crianccedila enquanto que diversas figuras satildeo apresentadas como sendo a matildee da crianccedila e

tambeacutem personagens da sua vida de fantasia A figura da matildee possui dez peacutes de altura

construiacuteda de fibras naturais e artificiais eacute movimentada por meio de mastros e varas por

meio da accedilatildeo oacutebvia de dois operadores sua voz eacute feita por uma das vocalizadoras Os

personagens fantasiosos entre os quais se incluem os nuacutemeros de um a nove satildeo feitos de

espuma de borracha satildeo manipulados visivelmente por operadores e suas falas satildeo

apresentadas pelos demais vocalizadores A fala de cada personagem eacute tatildeo natural quanto eacute

possiacutevel ser de acordo com as caracteriacutesticas da oacutepera O ponto fundamental da peccedila eacute uma

discussatildeo entre matildee e garoto e a subsequumlente fuga da crianccedila para o mundo de fantasia

231

Mais uma vez esses exemplos de teatro dramaacutetico satildeo um tanto diversos entre si A

apresentaccedilatildeo inglesa um ato de ldquoPunch and Judyrdquo feito por Percy Press Jr aconteceu em

1977 e deriva diretamente de uma tradiccedilatildeo de boneco que remonta ao seacuteculo XVII e

indiretamente de uma tradiccedilatildeo de teatro de atores que pode ser seguida ateacute a Roma Antiga

(Baird 1965 95) A apresentaccedilatildeo americana ocorreu em 1981 sob a direccedilatildeo de Bob Brown a

natildeo de corre de nenhuma tradiccedilatildeo em particular mas antes incorpora diversas praacuteticas do

teatro contemporacircneo Contudo tambeacutem compartilham a peculiaridade de apresentar as

figuras teatrais conhecidas como bonecos

No estado de Rajasthan India aldeotildees satildeo convidados agrave noite a irem ateacute os degraus do

templo local por uma casta de artistas que estendem um tecido brilhantemente colorido entre

dois postes e posicionam um lampiatildeo junto a cada lateral do pano Diante do pano estaacute

sentado um dos artistas tocando um tambor tambeacutem na frente estaacutes suspensa em uma vara

de bambu uma coleccedilatildeo de figuras cada uma com ateacute dois peacutes de altura feitas em madeira e

pano Quando chega o momento dessas figuras serem usadas satildeo soltas do bambu e assumem

accedilatildeo vigorosa seus movimentos obviamente controlados por fios que vatildeo das figuras ateacute

pessoas posicionadas acima Suas falas natildeo satildeo mais que ruiacutedos mas ruiacutedos cuidadosamente

articulados O tocador de tambor serve de tradutor clareando o que eacute apenas sugerido pelos

balbucios As figuras em accedilatildeo satildeo um palhaccedilo idiota e uma menina que se transforma num

ogre eles representam uma histoacuteria cocircmica de um amor frustrado (Baird 1965 46-55 Samar

1960 64-70)

Em Osaka Japatildeo pessoas daquela e de outras cidades visitam um salatildeo elaborado

dedicado a um estilo peculiar de teatro Sobre um palco largo estaacute uma plataforma baixa atraacutes

da qual estaacute um cenaacuterio e um fundo pintado em um dos limites da plataforma estatildeo sentados

dois homens um narrador e um instrumentista Sobre a plataforma estatildeo as figuras de um

homem e uma mulher essas figuras construiacutedas de muitas partes de madeira esculpida e

pintada estatildeo esplendidamente vestidas e adornadas com perucas e tecircm ateacute cinco peacutes de

altura Trecircs homens estatildeo visivelmente atraacutes cada uma das figuras obviamente conduzindo

seus movimentos por meio de contato direto com as matildeos e varas A fala das figuras eacute feita de

uma maneira estilizada ainda que natural pelo narrador apoiado pela execuccedilatildeo expressiva do

instrumentista o narrador e o instrumentista tambeacutem apresentam narraccedilotildees e muacutesicas mais

geneacutericas As figuras apresentam uma trama complexa que culmina no suiciacutedoo dos dois

amantes uma cortesatilde e um aprendiz (Adachi 1985 12-30)

Esses uacuteltimos exemplos satildeo os mais diacutespares entre si a apresentaccedilatildeo indiana foi

presenciada na deacutecada de 1950 e deriva de uma tradiccedilatildeo ldquocom seacuteculos de idaderdquo (Baird 1965

232

46) a apresentaccedilatildeo japonesa ocorreu em 1977 e deriva de uma tradiccedilatildeo datada do final do

seacuteculo XVI (Adachi 1985 3) Elas tambeacutem partilham a peculiaridade do boneco

Esses seis exemplos demonstram as extraordinaacuterias dimensotildees do fenocircmeno do

boneco Em cada um dos pares de exemplos apresentados encontramos diversos meios de

apresentaccedilatildeo Assim para se considerar apenas um aspecto limitado do espetaacuteculo nosso

exemplo nigeriano usa figuras tridimensionais operadas por varas ao passo que as figuras

javanesas ainda que operadas por varas natildeo satildeo tridimensionais mas planas e servem ao

propoacutesito de projetar sombras nosso exemplo inglecircs emprega figuras pequenas vestidas nas

matildeos de seus operadores enquanto que as figuras do exemplo americano satildeo na maior parte

dos casos maiores que seus operadores nosso exemplo indiano usa figuras simples operadas a

partir de um plano superior por meio de alguns poucos fios enquanto que as figuras japonesas

construiacutedas e articuladas de uma maneira tatildeo elaborada que solicitam ateacute trecircs operadores por

figura

Ainda em cada uma de nossas duplas de exemplos vemos contextos culturais de

apresentaccedilatildeo diversos Assim nossos exemplos da Nigeacuteria da Inglaterra e da Iacutendia satildeo

manifestaccedilotildees relativamente objetivas de cultura popular enquanto que os exemplos de Java

dos Estados Unidos e Japatildeo satildeo apresentaccedilotildees bem mais complexas que aspiram a ser e satildeo

entendidas como sendo arte

Esses satildeo apenas seis exemplos Inumeraacuteveis outros poderiam embora natildeo precisem

ser arrolados uma vez que os seis apresentados demonstram por si as dimensotildees do fenocircmeno

que se examina empregando diversos meios baseado na cultura popular ou em arte

sofisticada a figura teatral conhecida como boneco atravessa histoacuteria e geografia

Este livro no entanto natildeo analisaraacute o teatro de bonecos como este se manifesta em

termos geograacuteficos ou histoacutericos em nenhuma cultura em particular Estudos sobre bonecos

em muitas culturas ainda que natildeo o bastante jaacute existem e satildeo frequumlentemente bem sucedidos

em demonstrar os usos tradicionais do boneco Este livro natildeo faraacute uma relaccedilatildeo desses estudos

muito menos apresentaraacute uma histoacuteria e geografia do boneco Tais relaccedilotildees gerais tambeacutem jaacute

estatildeo disponiacuteveis mas tendem a ignorar os problemas teoacutericos relacionados agraves tentativas de

comparar e diferenciar as apresentaccedilotildees com bonecos Iremos contudo debruccedilarmo-nos

sobre o alcance vasto da atividade do boneco como uma tentativa de localizar o que haacute nela

de constante e de variaacutevel atraveacutes de todos os limites de tempo e espaccedilo

Aleacutem disso este livro natildeo iraacute analisar as praacuteticas teacutecnicas do teatro de bonecos tais

como modos de construccedilatildeo e manipulaccedilatildeo Manuais dedicados agraves teacutecnicas apropriadas para

muitos embora natildeo todos dos estilos de teatro de bonecos estatildeo disponiacuteveis e satildeo

233

frequumlentemente bem sucedidos em explicar como construir e apresentar o boneco em cada

circunstacircncia Este livro natildeo iraacute listar esses manuais muito menos apresentar um guia para a

mecacircnica praacutetica do teatro de bonecos Tais listagens gerais tambeacutem estatildeo disponiacuteveis ainda

que tenham uma tendecircncia negligenciar quaisquer problemas de natureza teoacuterica Iremos no

entanto debruccedilar-nos sobre as maneiras com as quais bonecos satildeo feitos para apresentarem-

se numa tentativa de descobrir o que eacute constante e o que eacute variaacutevel nas possibilidades de

apresentaccedilatildeo com bonecos

O fenocircmeno do boneco tambeacutem existe numa variedade de contextos que satildeo

distinguiacuteveis para aleacutem dos limites de histoacuteria e da geografia e que lanccedilam matildeo de todos os

meios teacutecnicos agrave disposiccedilatildeo da arte do boneco

Este livro entretanto natildeo iraacute examinar o boneco como eacute encontrado no contexto da

religiatildeo onde serve como objeto de ritual ou de presenccedila sagrada Nem iraacute examinar o boneco

como eacute encontrado no contexto da educaccedilatildeo onde eacute encontrado como ferramenta de

aprendizado e jogo construtivo Nem finalmente iraacute examinar o boneco como o vemos no

contexto da terapia onde eacute encontrado como agente de cura e auto-exploraccedilatildeo A discussatildeo

do teatro de bonecos em qualquer desses contextos eacute tangencial ao nosso interesse imediato

que eacute o boneco no contexto do teatro onde serve primordialmente para entreter Nossa

discussatildeo pode se mostrar uacutetil para o estudo do boneco nesses outros contextos mas o estudo

de tais utilidades deveraacute ser delegado a outros

Este livro entatildeo eacute dedicado agrave observaccedilatildeo e anaacutelise transcultural da apresentaccedilatildeo do

boneco teatral ou para dizer de outra maneira dedica-se aos fundamentos da arte do boneco

como uma arte teatral Sendo assim nosso problema teoacuterico central eacute como poderemos

compreender o fenocircmeno do boneco como este se apresenta em suas vaacuterias manifestaccedilotildees

teatrais

Havendo jaacute circunscrito tatildeo severamente as limitaccedilotildees deste livro faz-se necessaacuterio

reduzir seu alcance ainda mais uma vez que as complexidades da apresentaccedilatildeo do boneco satildeo

tais que natildeo haveraacute espaccedilo para tratar de nenhum problema que natildeo decorra do proacuteprio

boneco Assim sendo problemas tais como aqueles que existem nas relaccedilotildees do boneco com

o texto da performance com a sua associaccedilatildeo agrave muacutesica com caracteriacutesticas metatextuais e

ateacute numa escala maior com o(s) artista(s) de animaccedilatildeo devem ser deixados para um estudo

futuro

Nosso problema aqui eacute o boneco em si Abordar essa questatildeo demandaraacute uma atenccedilatildeo

escrupulosa e embora tal atenccedilatildeo natildeo seja comum no que se escreve acerca do teatro de

bonecos ela natildeo eacute desconhecida de fato pode-se dizer que o tema foi abenccediloado pelo tempo

234

Uma referecircncia remota ao teatro de bonecos javanecircs pode ser encontrado na Meditaccedilatildeo de

Ardjuna composta pelo poeta da corte do Rei Airlangga (1035-1049 D C)

Haacute pessoas que choram satildeo bonecos tristes e exaltados observando-as

embora saibam que natildeo passam de pedaccedilos de couro recortado manipulados

e postos para falar Tais pessoas satildeo como os homens que sequiosos por

prazeres sensuais vivem em um mundo de ilusotildees natildeo percebem que as

alucinaccedilotildees maacutegicas que vecircem natildeo satildeo reais (citado em Brandon 1970 3)

Os elementos baacutesicos da arte do boneco elementos que satildeo constantes em todos os

exemplos apresentados anteriormente satildeo mencionados nessa passagem a figura esculpida o

movimento e a fala atribuiacutedos a essa figura e a plateacuteia que a reconhece como um instrumento

do teatro e que ainda assim participa da ilusatildeo que esta cria

Vamos olhar por um momento para os elementos relativos ao proacuteprio boneco que

tornam possiacutevel a resposta da plateacuteia O exame de tais elementos pode ser considerado um

estudo da semioacutetica do boneco um estudo dos signos por meio dos quais o boneco comunica

Como sugere a passagem acima e nossos exemplos anteriores demonstram trecircs tipos

de signos montam ou constituem o boneco signos de forma de movimento e de fala Pode-se

dizer que esses signos qualquer que seja a sua natureza especiacutefica emergem dos sistemas

siacutegnicos gerais de forma movimento e fala Os signos especiacuteficos que constituem o boneco

relacionam-se com signos que satildeo geralmente reconhecidos como signos de vida ou seja

com signos associados agrave presenccedila da vida Para dar um exemplo simples um boneco pode

possui uma boca assim como seres vivos possuem a boca pode ser feita para abrir e fechar

assim como ocorre em seres vivos e associado agrave boca pode haver a sugestatildeo da existecircncia de

fala assim como seres vivos falam Mas quando esses signos satildeo apresentados pelo boneco

deixam de significar a de fato existecircncia de vida Os signos encontram-se abstraiacutedos da vida

passando a ser apresentados por algo que natildeo possui uma vida autocircnoma

Eacute em resposta aos signos apresentados pelo boneco signos que normalmente

significam vida que a plateacuteia aceita no boneco sua suposta vida O estudo dessa relaccedilatildeo

dinacircmica entre o boneco e a sua plateacuteia pode ser considerado como um estudo da

fenomenologia do boneco o estudo do fenocircmeno da apresentaccedilatildeo do boneco como um evento

teatral

Este livro seguiraacute o exemplo do poeta da corte de Airlangga e tentaraacute cuidar do boneco

examinando como a apresentaccedilatildeo de signos abstratos criam uma ilusatildeo de vida que a plateacuteia

entende natildeo ser real e desenvolveraacute um conceito chamado visatildeo dupla o qual postula que

uma audiecircncia percebe o boneco de duas maneiras simultacircneas como um objeto apresentado

e como uma vida imaginada

235

O problema teoacuterico do boneco seraacute abordado diretamente Assim em nossa primeira

parte perguntamos como se pode definir o boneco ou o que pode ser considerado um

boneco Tambeacutem indaga como o boneco pode ser explicado ou qual eacute o fundamento da

atratividade do boneco atraveacutes de sua diversidade histoacuterica e geograacutefica Apoacutes discutir as

soluccedilotildees mais usuais dadas a esses problemas nos capiacutetulos 1 e 2 novas soluccedilotildees seratildeo

desenvolvidas e apresentadas no capiacutetulo 3 A segunda parte deste livro pergunta como o

boneco pode ser descrito ou que teoria taxonocircmica oferece um padratildeo satisfatoacuterio para

comparar e discriminar diversas apresentaccedilotildees de bonecos O capiacutetulo 4 discute as soluccedilotildees

mais conhecidas para esse problema ao passo que no capiacutetulo 5 uma nova soluccedilatildeo seraacute

desenvolvida e aplicada Como um tema recorrente para este estudo o uso do termo ldquobonecordquo

como uma metaacutefora seraacute examinado pois o poder de tal emprego metafoacuterico encontra-se

surpreendentemente iluminado pelas soluccedilotildees que conquistaremos

Este livro se destina a um puacuteblico hiacutebrido sob a premissa de que a praacutetica do boneco

pode contribuir para a formaccedilatildeo teatral enquanto que inversamente a formaccedilatildeo teatral pode

enriquecer a praacutetica do boneco Assim sendo este livro foi escrito tanto para os estudiosos do

teatro quanto para os praticantes da arte do boneco na esperanccedila de que membros de ambos

os grupos possam de suas proacuteprias perspectivas sobre a arte do boneco como arte teatral

tambeacutem foi escrito para o puacuteblico em geral pois que muitas dessas pessoas devem sentir-se

curiosas quanto a essa forma de arte ubiacutequa ainda que desdenhada Especialistas podem crer

que muito espaccedilo tem sido devotado a questotildees com as quais eles jaacute satildeo familiares

estudiosos entretanto precisam compreender que muitos leitores natildeo iratildeo encontrar tanta

familiaridade com termos como semioacutetica e fenomenologia ao passo que os praticantes Do

teatro de bonecos precisam reconhecer que muitos dos leitores teratildeo pouca informaccedilatildeo acerca

das muitas complexidades da apresentaccedilatildeo do boneco Leitores que natildeo sejam nem

estudiosos nem praticantes talvez se constitua na parte mais importante de nosso puacuteblico

pois satildeo em uacuteltima anaacutelise aqueles a quem os estudiosos se esforccedilam para iluminar e os

praticantes lutam para divertir A esses leitores devem ser disponibilizadas informaccedilotildees

detalhadas que bastem apresentadas numa maneira clara de modo a unir tanto os aspectos

praacuteticos como teoacutericos da arte do boneco

O modo geral de aproximaccedilatildeo deste livro seraacute pegando emprestados termos da

linguumliacutestica sincrocircnico no sentido daquilo que se opotildee ao que eacute diacrocircnico Uma aproximaccedilatildeo

diacrocircnica o estudo de uma mateacuteria por meio de seu desenvolvimento histoacuterico e geograacutefico

com consideraccedilatildeo aos detalhes de suas praacuteticas teacutecnicas pressupotildee que uma metodologia para

tal estudo exista Mas como veremos nenhuma teoria ou vocabulaacuterio satisfatoacuterios jaacute foram

236

criados para o boneco teatral Uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica o estudo dos princiacutepios

estruturais de uma mateacuteria busca o desenvolvimento de teoria e vocabulaacuterio necessaacuterios por

meio de uma esmerada observaccedilatildeo e anaacutelise isolamento e exploraccedilatildeo das constantes e

variaacuteveis fundamentais do boneco como estas se configuram em todas as suas manifestaccedilotildees

teatrais Assim o estudo sincrocircnico se mostra um proacutelogo valioso ainda que extenso a

qualquer estudo diacrocircnico rigoroso

Mas seria uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica apropriada ao estudo para o teatro de bonecos

Henryk Jurkowski um produtor e estudioso polonecircs que serviu com grande distinccedilatildeo como

secretaacuterio geral e presidente da UNIMA (Union Internationale de la Marionnette) tem seacuterias

duacutevidas

[Essa] aproximaccedilatildeo tem sido usada com relativa frequumlecircncia por estudiosos

contemporacircneos que discutem as caracteriacutesticas do teatro de bonecos A arte

do boneco para essas pessoas parece ser um monoacutelito sincronicamente

unificado ainda que o teatro de bonecos contemporacircneo seja uma rica e

variada totalidade servindo-se de elementos culturais de diferentes

proveniecircncias e eacutepocas (1988 [1983] 62)

De fato o ponto central do importante ensaio de Jurkowski ldquoOs sistemas siacutegnicos do

teatro de bonecosrdquo eacute o de que o boneco pode ser encontrado diversamente a serviccedilo de

ldquosistemas siacutegnicos vizinhosrdquo do ldquosistema siacutegnico do teatro viventerdquo do ldquosistema siacutegnico do

teatro de bonecosrdquo e de um teatro baseado na ldquoatomizaccedilatildeo de todos os elementos do teatro de

bonecosrdquo (1988 [1983] 68) Jurkowski argumenta que aproximaccedilotildees sincrocircnicas ignoram

essa variedade de empregos do boneco e assim inevitavelmente interpretam incorretamente

as realidades do boneco como existem em ldquoeacutepoca[s] teatra[is] concreta[s] determinada[s]

pela tradiccedilatildeo territorial e culturalrdquo (1988 [1983] 62)

Mais que isso ainda que uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica fosse viaacutevel Jurkowski sugere

que seu valor seria miacutenimo

Se toda a amplitude do teatro de bonecos for tomada como um campo de

investigaccedilatildeo cientiacutefica uma tarefa preliminar seria registrar ou listar os seus

diversos elementos Esse registro poderaacute ser da alguma utilidade como

demonstrarivos dos meios de expressatildeo do teatro de bonecos mau eu creio

que natildeo nos diraacute muito mais a respeito da arte do boneco de que aquilo que

noacutes jaacute sabemos (1988 [1983] 62)

Como eacute possiacutevel responder a tais consideraccedilotildees

Primeiramente o estudioso citado por Jurkowski com sendo o expoente mais agrave

vanguarda a da aproximaccedilatildeo sincrocircnica Petr Bogatyrev nunca conduziu nenhum estudo

sistemaacutetico acerca do boneco tampouco criou nada aleacutem de um tipo preliminar de registro ou

iacutendice sobre a arte do boneco Bogatyrev sugeriu que haveria utilidade em um esforccedilo dessa

237

natureza mas o foco de sua atenccedilatildeo natildeo estava no boneco em si mas principalmente no teatro

de bonecos como uma forma de arte folcloacuterica (ver Bogatyrev 1983 [1973])

Em segundo lugar independentemente do que Bogatyrev possa ou natildeo ter feito

empregar uma aproxima sincrocircnica ao estudo do boneco natildeo significa necessariamente

considerar o teatro de bonecos como sendo ldquomonoacutelito sincronicamente unificadordquo

Certamente muitas ou mesmo a maioria das discussotildees acerca de teatro de bonecos peca por

assumir alguma forma de teatro de bonecos como uma forma modelo ou ideal de fato

Bogatyrev pode ser condenado por essa falta Ainda assim uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica

poderia se dar com atenccedilatildeo total da diversidade diacrocircnica multicultural do boneco a ainda

assim buscar algum entendimento acerca das constantes e variaacuteveis a serem encontradas num

atravessamento dessa diversidade

Em terceiro lugar a criaccedilatildeo de um iacutendice dos ldquomeios de expressatildeordquo do teatro de

bonecos seria de uma utilidade bem maior do que Jurkowski gostaria de permitir Seria bem

provaacutevel que tal iacutendice pudesse contar a Jurkowski pouco mais do que aquilo que ele jaacute sabia

Isto natildeo seria surpreendente uma vez que Jurkowski sabe mais sobre bonecos do que

qualquer outra pessoa viva Mas tambeacutem natildeo seria surpreendente se algumas poucas pessoas

sejam elas praticantes estudiosos ou espectadores de teatro de bonecos saibam tanto quanto

ele e ainda assim encontrem valor num trabalho que encontre um sentido na diversidade

diacrocircnica do boneco

Um iacutendice dos meios de expressatildeo disponiacutevel ao boneco nos forneceraacute um vocabulaacuterio

adequado para a discussatildeo de como certos bonecos e tradiccedilotildees de bonecos criam teatro

forneceraacute as bases para o entendimento da amplitude das praacuteticas de apresentaccedilatildeo do boneco

e para comparaccedilotildees significativas entre diversas apresentaccedilotildees em teatro de bonecos Ainda

iraacute demonstrar os meios pelos quais o teatro de bonecos se constitui numa forma peculiar de

teatro uma forma que prazerosamente desafia sua audiecircncia a considerar questotildees

fundamentais sobre o que significa ser um objeto e o que significa possuir vida

E assim apesar dos receios de Jurkowski nossa aproximaccedilatildeo seraacute sincrocircnica

Entretanto devemos estar alertas ao aviso de Jurkowski contra tomar a arte do boneco como

sendo um todo monoliacutetico e tambeacutem desafiados por sua afirmaccedilatildeo de que tal aproximaccedilatildeo

talvez natildeo ensine muito

Independente de quaisquer discordacircncias que se possa ter com Jurkowski natildeo restam

duacutevidas de que ele mesmo concordaria com o fato de que o propoacutesito de nosso estudo eacute

auxiliar na compreensatildeo do fenocircmeno do boneco teatral Sergei Obrastzov indiscutivelmente

o artista de teatro de bonecos mais importante do seacuteculo XX escreveu ldquoNatildeo devemos nos

238

esquecer quantas pessoas pensam [que o teatro de bonecos] natildeo vale a pena ser levado a seacuterio

que aqueles que o estudam estatildeo perdendo o seu tempordquo (1967 [1965] 17) Este livro eacute uma

tentativa de mostrar o quanto o teatro de bonecos merece ser levado a seacuterio Pois trata-se de

uma forma uacutenica e vital de arte teatral uma forma que por sua proacutepria natureza conduz a

uma compreensatildeo renovada da humanidade como a contrutora e a destruidora dos mitos sobre

si mesma e sobre o mundo

239

- I -

DEFININDO E EXPLICANDO O BONECO

1

DEFINICcedilOtildeES CONSAGRADAS

Do que estatildeo falando as pessoas quando falam de bonecos A palavra ldquobonecordquo [NT

puppet]97

eacute imediatamente compreensiacutevel a qualquer pessoa a quem a liacutengua inglesa seja

familiar e indubitavelmente conjura uma ideacuteia definitiva na mente de todos afinal quase

todo o mundo jaacute assistiu uma vez ou outra alguma peccedila de bonecos ou jaacute ouviu o termo

boneco como metaacutefora para descrever pessoas em determinadas circunstacircncias na vida Mas

haveraacute alguma consistecircncia compartilhada entre pessoas nessas ideacuteias acerca do boneco que

surgem da observaccedilatildeo individual O fardo da definiccedilatildeo eacute o de sugerir uma ideacuteia comum

baseada na observaccedilatildeo coletiva de modo a conferir significado a uma palavra Definiccedilotildees no

entanto podem ser coisas curiosas

A palavra boneco eacute o caso em questatildeo o boneco tem estado entre noacutes por seacuteculos

incontaacuteveis e ainda permanece sem uma definiccedilatildeo que seja funcional Talvez dada a

diversidade diacrocircnica do boneco e a subsequumlente variedade de observaccedilotildees e ideacuteias dadas a

ele pelas pessoas seja de fato impossiacutevel defini-lo A R Philpott um artista de animaccedilatildeo e

autor inglecircs repara que ldquoa definiccedilatildeo perfeita esquiva-se dos teoacutericos historiadores

marionetistas dicionaristasrdquo (1969 209) veremos neste capiacutetulo o quanto a definiccedilatildeo perfeita

tem sido esquiva Ainda assim o esforccedilo para se desenvolver uma definiccedilatildeo funcional se natildeo

perfeita eacute vaacutelida pois talvez possa se descobrir afinal alguma semelhanccedila identificaacutevel nos

diferentes usos da palavra boneco

Paul McPharlin o estudioso do teatro de bonecos norte americano mais importante do

seacuteculo XX nos fornece a etimologia baacutesica da palavra na liacutengua inglesa

Puppet [Boneco] deriva de pupa termo em latim para ldquomeninardquo ou

ldquobonecardquo ou ldquopequena criaturardquo A partiacutecula ndashet a torna um diminutivo uma

pequena criatura pequena A palavra marionnette de origem italiana-

francesa [que significa] ldquopequena pequena Mariardquo natildeo difere do inglecircs

97

(NT) No original o termo usado eacute puppet Essa palavra seu significado e origem etimoloacutegica seratildeo

explorados largamente ao longo deste capiacutetulo O termo escolhido para a traduccedilatildeo eacute boneco palavra que em

portuguecircs conduz a uma variedade de interpretaccedilotildees ligeiramente diversa do seu equivalente em inglecircs A

traduccedilatildeo buscaraacute suprir com explicaccedilotildees e notas os pontos discordantes mas eacute tambeacutem importante que o leitor

esteja atento a tal diferenccedila dado o impacto conceitual que a escolha terminoloacutegica pode causar

240

puppet em seu significado baacutesico ainda que possua um final em duplo

diminutivo Relativamente uma novidade para a liacutengua inglesa a palavra

apaixonou os artistas por parecer mais elegante do que o velho e simples

puppet (1949 5)

Sendo a questatildeo de elegacircncia a suma da diferenccedila reconhecida entre as duas palavras

seraacute melhor seguir o emprego contemporacircneo e permanecer com a palavra puppet [boneco]

para o fenocircmeno geral sob discussatildeo e reservar o termo marionete para um tipo particular de

boneco

Obviamente a definiccedilatildeo impliacutecita nesta etimologia eacute inadequada natildeo se pode

entretanto esperar que a etimologia explique o significado de uma palavra em seu uso integral

e atual devido a transformaccedilotildees linguumliacutesticas e praacutetica que ocorrem com o tempo As

definiccedilotildees dos dicionaacuterios para a palavra puppet satildeo ligeiramente melhores do que aquela

sugerida pela etimologia e satildeo nada menos que hilaacuterias ldquoUma figura (geralmente pequena)

representando um ser humano um brinquedo de crianccedila Uma figura humana com juntas

articuladas movidas por meio de fios ou cabos uma marioneterdquo (Oxford English Dictionary)

ldquoUma figura pequena de um ser humano que por meio de fios ou cabos eacute posta a representar

teatro de zombaria marioneterdquo (Funck and Wagnalls) Mais definiccedilotildees bastante semelhantes

agraves citadas natildeo precisam ser adicionadas

O que haacute de errado nisso Natildeo eacute a confusatildeo com o termo marionete que natildeo eacute mais

que uma digressatildeo O que haacute de errado eacute que independentemente da etimologia do termo um

boneco natildeo precisa ser pequeno muito menos ldquorepresentar uma ser humanordquo nem ser como

uma boneca de crianccedila nem ser movida ldquopor fios ou cabosrdquo e nem ldquorepresentar teatro de

zombariardquo o que quer que isso signifique

Eacute insustentaacutevel a justificativa de que tais definiccedilotildees satildeo imprecisas porque

acompanham o entendimento comum ou mal entendimento uma vez que eacute bastante frequumlente

se ouvir ou ver bonecos grandes bonecos que representam animais bonecos altamente

sofisticados e assim por diante Qualquer que seja a loacutegica por traacutes dessas definiccedilotildees

estuacutepidas elas natildeo podem ser levadas a seacuterio

McPharlin cuja etimologia apresentamos define o boneco como sendo ldquoum elemento

teatral movido por controle humanordquo (1949 1) Bill Baird um dos produtores mais influentes

do teatro de bonecos norte americano do seacuteculo XX define o boneco como ldquouma figura

inanimada posta em movimento pelo esforccedilo humano diante de uma plateacuteiardquo (1965 13) A

maioria das definiccedilotildees formuladas por estudiosos e praticantes de teatro de bonecos apenas

reapresentam os elementos impliacutecitos ou expliacutecitos nas definiccedilotildees acima portanto

trabalhemos com elas

241

Essas definiccedilotildees satildeo obviamente superiores agravequelas fornecidas pela etimologia ou

pelos dicionaacuterios Observam corretamente o fato de que o boneco eacute um elemento teatral e que

existe diante de uma plateacuteia e ainda fazem uma distinccedilatildeo fundamental entre o boneco que

apresenta e a boneca com a qual uma crianccedila pode brincar solitariamente Essa boneca pode

ateacute mesmo ser usada como boneco mas parece oacutebvio que nem todas as bonecas satildeo bonecos

e inversamente nem todos os bonecos satildeo bonecas A definiccedilatildeo tambeacutem observa

corretamente que o boneco eacute algo ldquosob controle humanordquo e ldquomovido por esforccedilo humanordquo

fazendo assim uma distinccedilatildeo fundamental entre o boneco que responde a um controle

imediato e variaacutevel e o autocircmato que eacute motivado por algum dispositivo mecacircnico ou

eletrocircnico para apresentar inapelavelmente uma seacuterie de accedilotildees Igualmente um autocircmato

desse tipo pode ser usado como um boneco mas parece bastante oacutebvio que nem todo

autocircmato eacute um boneco e tambeacutem nem todo boneco eacute autocircmato Finalmente a amplitude

dessas definiccedilotildees se encaminha em direccedilatildeo ao vasto escopo de atividades que as pessoas

querem dizer quando falam do boneco

Apesar dessas vantagens as definiccedilotildees de McPharlin e Baird sofrem de trecircs problemas

seacuterios O primeiro problema existe independentemente da amplitude das definiccedilotildees e se

impotildee a partir da falha em se considerar completamente as possibilidade inerentes ao sistema

de signos de forma do boneco McPharlin escreve que o boneco eacute um ldquoelemento teatralrdquo mas

no decorrer de seu trabalho (ver McPharlin 1938 e 1949) ele aceita sem discussotildees aquilo que

Baird esclarece que a figura do boneco eacute inanimada Mas o boneco precisa de fato ser

inanimado

Alguns exemplos podem ser uacuteteis Usemos por exemplo a figura teatral de um bebecirc

trazido ao palco por um ldquopairdquo que obviamente o opera e canta-lhe uma canccedilatildeo de ninar o

bebecirc olha em torno para a plateacuteia brinca com o pai e assim por diante Sua cabeccedila eacute

esculpida em madeira e seu corpo um saco de tecido Quando ele se vira para dormir expotildee

costas nuas que natildeo eacute nada aleacutem da matildeo de seu operador (Obrastzov 1985 [1981] 84-7)

Ou entatildeo a figura de um becircbado que canta uma canccedilatildeo inebriada de tristeza e durante

todo o tempo servindo-se de um copo de vodka atraacutes do outro Sua cabeccedila eacute de tecido

recheado com uma boca que abre e fecha seu corpo eacute pouco mais que uma camisa pendurada

em espaacuteduas de madeira A matildeo que enche reiteradamente o copo entretanto ligada ao corpo

por uma manga eacute a matildeo de fato do operador (Obrastzov 1985 [1981] 115-7) Nenhum dos

elementos teatrais nesses dois exemplos eacute inteiramente inanimado uma vez que ambos

incorporam e expotildeem carne viva mesmo assim poucas pessoas negariam que se trata de

242

bonecos As possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da forma natildeo se encerram com

figuras que satildeo inteiramente inanimadas

Exemplos mais radicais podem ser apresentados Tomemos por exemplo as figuras

hipoteacuteticas de dois amantes Acompanhados por ldquoSentaacutevamos sozinhos perto de um rio

murmuranterdquo de Tchaikovsky os amantes se encontram pela uacuteltima vez aproximam-se um o

outro riem e choram suspiram de tristeza abraccedilam-se e beijam-se e finalmente despedem-

se Suas cabeccedilas satildeo pouco mais que pequenas esferas de madeira e seus corpos natildeo satildeo outra

coisa que natildeo as matildeos nuas do operador dos dois personagens As esferas de madeira estatildeo

presas a um dedo de cada matildeo (Obrastzov 1985 [1981] 107-8)

E tomemos as figuras de dois combatentes sem dizer uma palavra discutem e lutam e

um eacute subjugado fazendo o outro triunfante Mas as figuras natildeo passam de matildeos humanas A

matildeo triunfante se torna um muro a matildeo vencida torna-se um punho fechado e bate contra a

parede o muro natildeo cede e a matildeo subjugada cai a matildeo triunfante fecha o punho ambas as

matildeos esticam-se palmas abertas num gesto que silenciosamente pergunta ldquoPor quecircrdquo

Haacute pouco ou nada inanimado nas figuras desses dois exemplos matildeos vivas dominam

a apresentaccedilatildeo E ainda as matildeos das maneiras como satildeo usadas podem ser consideradas

bonecos pois natildeo satildeo entendidas pelo puacutebico apenas como pares de matildeos mas tambeacutem como

sendo algo aleacutem de matildeos As possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da forma

abrangem figuras que natildeo satildeo predominantemente inanimadas e ateacute mesmo figuras que natildeo

satildeo inanimadas de modo algum

O uacuteltimo desses exemplos eacute um sketch sobre o Muro de Berlim apresentado por Burr

Tillstrom para a Convenccedilatildeo Internacional de Teatro de Bonecos de 1980 as trecircs anteriores

satildeo sketches de Obrastzov que escreve

O princiacutepio [do boneco de luva]98

consiste em apenas dois elementos a matildeo

humana e a cabeccedila do boneco [O corpo do boneco] eacute apenas um figurino

Mas dispa o boneco de luva e deixe a sua matildeo exposta com a cabeccedila do

boneco em seu dedo que o boneco permaneceraacute um boneco (1950 186)

De fato como pudemos perceber pode-se ir tatildeo longe a ponto de retirar a cabeccedila do

boneco e a matildeo humana poderaacute permanecer como um boneco Mas se eacute assim e as

possibilidades da forma do boneco podem ir a ponto de se poder abjurar qualquer uso do

98

N T Nesta passagem o termo empregado (hand puppet) seria traduzido mais literalmente por ldquoboneco de

matildeordquo e de fato como se veraacute no decorrer o livro este termo abrangeraacute praacuteticas que ampliam as possibilidades

da luva tradicional Foi escolhido o termo boneco de luva para esta passagem por trecircs motivos a saber 1 o

termo hand puppet traduz em diversos exemplos o que em portuguecircs chama de boneco de luva 2 boneco de

luva eacute uma expressatildeo mais familiar na liacutengua portuguesa para o boneco descrito na passagem 3 o trecho citado

de Obrastzov de fato menciona em termos de forma e teacutecnica o emprego de um boneco de luva

243

inanimado entatildeo como poderemos considerar o ator um boneco e ainda assim compreender a

existecircncia de uma distinccedilatildeo entre ator e boneco

Obrastzov faz uma observaccedilatildeo esclarecedora a respeito de sua cena com a figura do

bebecirc ldquoMinha matildeo direita sobre a qual eu visto o boneco vive separadamente de mim com

um ritmo e uma personalidade proacuteprias [Ela] conduz um diaacutelogo silencioso comigo ou me

ignorando ao mesmo tempo vive sua vida independentementerdquo (1950 155) Essa ldquovida

separadardquo do boneco com ldquouma personalidade proacutepriardquo eacute um ponto vital Parece evidente que

quando uma plateacuteia vecirc as costas da matildeo do operador como sendo as costa do bebecirc ela

compreende que a matildeo natildeo eacute apenas uma matildeo mas mais importante como parte da figura do

bebecirc Semelhentemente quando uma plateacuteia vecirc a matildeo do operador como sendo a matildeo da

personagem representada pelo boneco ela eacute percebida natildeo apenas como uma matildeo humana

mas mais importante como sendo a matildeo da figura Em cada um desses casos a matildeo que

veste o boneco ldquovive separadamenterdquo e eacute reconhecida separadamente do ator e faz parte na

percepccedilatildeo do puacuteblico da mesma natureza do resto da figura Ou seja natildeo eacute percebida tanto

como sendo uma matildeo mas como um objeto

Este princiacutepio se estende agraves matildeos que Obrastzov usa como corpos de bonecos e agraves

matildeos que Tillstrom usa para representar corpos um muro e as ideacuteias de raiva supremacia e

anguacutestia mental Devido aos modos pelos quais as matildeos satildeo usadas nas formas desses

bonecos mesmo se ndash como ocorre com Tillstrom ndash elas satildeo o uacutenico elemento da forma e

devido aos modos pelos quais se daacute movimento e voz aos bonecos a matildeo do ator pode ser

entendida como algo ldquoseparadordquo dele mesmo Assim o ator pode ser considerado um boneco

quando este se apresenta de tal maneira que a plateacuteia eacute conduzida a entendecirc-lo natildeo apenas

como algo vivo tambeacutem em seu todo ou em parte como um objeto

Outra questatildeo surge em decorrecircncia dessa afirmaccedilatildeo como seraacute possiacutevel distinguir

entre um ator que eacute entendido como um objeto e um ator que se apresenta com uma maacutescara

ou figurino Para dar um simples exemplo o Mickey Mouse que sauacuteda os visitantes na

Disneylacircndia pode ser considerado um boneco

Essa questatildeo eacute especialmente difiacutecil de ser respondida devido o desejo de muitas

pessoas envolvidas com o boneco de anexar a maacutescara no campo do teatro de bonecos Baird

escreve

Maacutescaras estatildeo a exatamente um ou dois passos evolucionaacuterios do boneco

Quando um danccedilarino solitaacuterio mascarado comeccedilou a surgir como artista

era o comeccedilo da performance teatral e um passo de deslocamento da

maacutescara em seu processo de transformaccedilatildeo em boneco Gradualmente a

maacutescara moveu-se para cima para fora da cabeccedila e foi posta diante do

244

corpo Mais tarde moveu-se mais para longe e foi feita viver por

manipulaccedilatildeo (1965 30)

As bases antropoloacutegicas para a afirmaccedilatildeo de Baird satildeo evidentemente discutiacuteveis

mas claramente demonstram sua crenccedila num relacionamento iacutentimo entre o ator mascarado ou

aparatado e o boneco

Peter Arnott o antigo artista e pesquisador inglecircs que apresentava o repertoacuterio claacutessico

com bonecos iria bem mais adiante no que se refere a essa intimidade ldquoPodemos dizer que

sempre que um ator veste uma maacutescara ndash seja literalmente como nas peccedilas gregas e romanas

ou figurativamente como quando representa um papel fortemente tipoloacutegico ndash ele estaacute

abnegando sua individualidade e fazendo de si mesmo um bonecordquo (1964 77) Uma anexaccedilatildeo

como essa certamente termina indo longe demais pois poderia transformar grande parte

daquilo que conhecemos como teatro de atores como parte do teatro de bonecos A definiccedilatildeo

de boneco pode dificilmente ser esticada a esse ponto de modo a natildeo atingir todo o resto

alijando a palavra de qualquer significado particular

Para se distinguir entre o ator subsumido no boneco e o ator vestindo uma maacutescara ou

um figurino devemos considerar a percepccedilatildeo da plateacuteia se o puacuteblico entender a maacutescara ou

figurino como nada aleacutem de uma vestimenta em um ator vivo entatildeo eacute exatamente o que isso

seraacute mas se o puacuteblico enxergar o ator em maacutescara ou figurino como uma parte do objeto

entatildeo ele deve ser reconhecido como boneco Nosso Mickey Mouse com sua fisionomia

estrutural notadamente humana certamente natildeo eacute percebido como um objeto natildeo sendo

assim um boneco mas apenas um ator numa roupa

O primeiro problema com as definiccedilotildees de McPharlin e Baird entatildeo pode ser

resolvido com o entendimento de que as possibilidades proacuteprias ao sistema de signos de

forma do boneco transcende ao inanimado O boneco eacute um ldquoobjetordquo apenas no entendimento

da plateacuteia Seraacute uacutetil quando natildeo se puder perceber explicitamente a percepccedilatildeo da plateacuteia o

emprego das aspas como modo de nos lembrar que a palavra natildeo se limita ao que eacute

inanimado mas mais que isso refere-se implicitamente agrave percepccedilatildeo da plateacuteia sobre a figura

em questatildeo

Se este primeiro problema com as definiccedilotildees existe independentemente de sua

amplitude o segundo problema se apresenta justamente por causa dessa amplitude Na

tentativa de ampliar as possibilidades daquilo que pode ser considerado boneco o conceito

termina por ser aberto demais Quando McPharlin escreve que ldquoo boneco move-se sob

controle humanordquo e Baird que ele ldquose move por esforccedilo humanordquo eles sugerem que qualquer

elemento teatral movido dessa forma passa a ser um boneco Mas seraacute isso verdadeiro

245

Usemos um exemplo teoacuterico mundano uma bengala estaacute apoiada contra um painel

cenograacutefico de modo a representar uma janela num determinado momento um contra-regra

move a bengala e o painel ateacute outro local A bengala e o painel satildeo certamente ldquoelementos

teatraisrdquo e tambeacutem ldquoobjetos inanimadosrdquo com certeza foram ldquomovidos sob controle

humanordquo ou ldquomovidos por meio de esforccedilo humanordquo Ainda assim seria difiacutecil de imaginar

que algueacutem os quisesse chamar de bonecos Seria eacute claro perfeitamente possiacutevel usar

bengalas e paineacuteis como bonecos eacute possiacutevel usar isso deve ser dito qualquer coisa como um

boneco Mas claramente a bengala e o painel em questatildeo natildeo satildeo bonecos De alguma

maneira os bonecos devem distinguir-se de adereccedilos e cenaacuterios pelo fato de que nem todo o

objeto movido sobre a cena pode ser considerado boneco

Uma soluccedilatildeo para esse problema eacute vagamente sugerida pelo emprego por parte de

McPharlin da palavra teatral que poderia ser empregada para sugerir algo de natureza mais

significativa do que adereccedilos e cenaacuterio Marjorie Batchelder uma grande forccedila do teatro de

bonecos norte americano tambeacutem uma estudiosa e uma produtora natildeo se contenta com uma

simples sugestatildeo ldquoo boneco eacute um ator participando em algum tipo de apresentaccedilatildeo teatralrdquo

(1947 xv) Isto se afirma de uma maneira tal que nem a bengala nem o painel podem ser

entendidos como se estivessem atuando embora ambos participem a suas maneiras de uma

representaccedilatildeo teatral Mas a soluccedilatildeo de Batchelder embora natildeo seja uma tentativa de fazer

com que representaccedilatildeo com atores seja considerada teatro de bonecos se apresenta como um

problema semacircntico o boneco eacute certamente um ator de certa forma mas como jaacute vimos ele

dever se distinguir do ator de alguma maneira se o termo boneco possui algum significado

Batchelder faz a sua distinccedilatildeo referindo-se aos ldquomeios mecacircnicosrdquo de motivaccedilatildeo do boneco

(1947 xv) Isto no entanto tambeacutem eacute problemaacutetico bonecos de luva bem como matildeos usadas

como bonecos satildeo motivados sem o emprego de meios mecacircnicos mais que isso a confusatildeo

semacircntica entre boneco e ator persiste apesar da distinccedilatildeo Para se evitar essa confusatildeo seraacute

uacutetil examinar precisamente como o boneco pode ser percebido como um ator

Vejamos mais uma vez o uso que Baird faz do termo inanimado Essa palavra nos

compele considerar natildeo apenas a palavra em si mas tambeacutem ao seu oposto Obrastzov

escreve a respeito do ldquoprocesso por meio do qual o inanimado se torna animadordquo (1967

[1965] 19) Se o boneco eacute algo inanimado entatildeo sua significacircncia teatral natildeo se cria pelo fato

dele ser movido com tal mas por ser animado Nem a bengala nem o painel do exemplo

oferecido haacute pouco podem ser entendidos como tendo sido animados Esta soluccedilatildeo no

entanto embora seja um tanto comum apresenta certas dificuldades semacircnticas

246

Iniciemos com uma dificuldade menor a palavra animaccedilatildeo tem sido empregada de

forma bastante ampla pela induacutestria cinematograacutefica significando desenhos animados

Embora haja grande similaridade entre desenhos animados e teatro de bonecos e embora

certas estilos de animaccedilatildeo de bonecos tais como ldquoClaymationrdquo possam ser criados apenas

com o emprego de teacutecnicas de desenho animado natildeo se deve negligenciar as diferenccedilas

existentes entre esses dois meios mais significantes que as suas semelhanccedilas empregando o

mesmo termo para categorizaacute-los

A dificuldade maior eacute a que animar algo quer dizer no senso literal da palavra dar-lhe

o sopro da vida Como metaacutefora isto possui grande significado para a animaccedilatildeo de bonecos

Mas fora do acircmbito metafoacuterico eacute absurdo pois eacute claro o boneco natildeo estaacute de fato vivo Como

admite Obrastzov

De fato nenhum objeto inanimado pode ser animado ndash nenhum tijolo

retalho brinquedo (ainda que mecacircnico) ou boneco teatral ndash natildeo importa

quatildeo virtuosiacutestica seja a sua movimentaccedilatildeo quando eacute manipulado pelo

marionetista Qualquer que seja a circunstancia os objetos relacionados

acima permaneceratildeo como objetos desprovidos de quaisquer aspectos

bioloacutegicos Entretanto em matildeos humanas qualquer objeto ndash o mesmo tijolo

retalho sola de sapato ou garrafa ndash pode cumprir a funccedilatildeo de um objeto vivo

na imaginaccedilatildeo associativa do homem Pode mover-se rir chorar ou declarar

seu amor (1985 [1981] 264)

A animaccedilatildeo como ela eacute natildeo se relaciona de fato com o boneco teatral antes o que se

relaciona com o boneco teatral eacute o movimento dado a um objeto de modo tal que ele possa

como diz Obrastzov ldquopreencher a funccedilatildeo de um objeto vivo na fantasia associativa do

homemrdquo ou nos termos de seus estudos ser imaginado como estando vivo Assim embora

adereccedilos e cenaacuterios possam ser movimentados em cena o movimento que se daacute ao boneco se

daacute de forma a encorajar a imaginaccedilatildeo de vida

Outras questotildees associadas surgem o boneco permaneceria boneco mesmo quando

natildeo eacute movimentado e repousa num armaacuterio ou museu Concedemos a vaacuterios objetos

desprovidos de uso o tiacutetulo de boneco mas sob qual autoridade Michael R Malkin um

produtor e estudioso norte americano informa que ldquobonecos africanos frequumlentemente

manteacutem pequena relaccedilatildeo com os conceitos ocidentais de como deve se parecer um boneco [e

assim] uma identificaccedilatildeo clara e inequiacutevoca de muitas figuras [como sendo bonecos] satildeo

geralmente complicadas de serem obtidasrdquo (1977 71)

As implicaccedilatildeo disso satildeo de grande importacircncia Pois apenas por meio da identificaccedilatildeo

de familiaridades com tradiccedilotildees particulares de teatro de bonecos que podemos identificar

certos objetos ou de modo mais geral com certas famiacutelias de objetos como sendo bonecos

Assim noacutes do ocidente podemos reconhecer certas classes de objetos como sendo dedicados

247

especialmente para serem usados como bonecos tais como bonecos de luva ou marionetes e

podemos facilmente chamar de boneco um objeto que pertenccedila a tal classe Mas uma extensa

variedade de objetos pertencentes a classes de objetos que natildeo satildeo especialmente dedicadas a

teatro de bonecos tais como matildeos humanas esferas de madeira utensiacutelios de cozinha entre

outras tecircm de fato sido usados como bonecos Decorre daiacute que a conferencia do tiacutetulo de

boneco a qualquer objeto em repouso ou mais especificamente que natildeo esteja em

performance poderaacute apenas ser sugestiva O boneco natildeo pode ser definido apenas em termos

da sua forma Mais que isso precisa ser definido como algo que natildeo um objeto ou uma classe

de objetos caracterizados por formas fiacutesicas especiacuteficas o boneco precisa ser definido assim

tendo associado a ele o sistema de signos complemetar que auxilia a plateacuteia e imaginaacute-lo vivo

Malkin entende essa necessidade Como escreveu noutro artigo ldquoo objeto animado

torna-se um boneco natildeo quando o operador assume controle total sobre ele mas no momento

infinitamente mais sutil quando o objeto parece desenvolver uma vida independenterdquo (1980

9)

O segundo problema entatildeo pode ser resolvido por meio do entendimento de que o

movimento de um elemento sobre o palco natildeo necessariamente invoca ou pretende invocar agrave

imaginaccedilatildeo da plateacuteia que este possui vida De fato seraacute uacutetil quando natildeo se provocar de

modo expliacutecito a imaginaccedilatildeo da plateacuteia o emprego de aspas como maneira e lembrar ao leitor

que a palavra natildeo busca supor que o boneco possua uma vida real mas antes provocar

implicitamente a receptividade da imaginaccedilatildeo da plateacuteia quando em contato com a figura em

questatildeo

O terceiro problema com as definiccedilotildees de McPharlin e Baird eacute a sugestatildeo de que o

movimento seja a caracteriacutestica definidora do boneco McPharlin declara categoricamente que

ldquoeacute o movimento verdadeiro ou ilusoacuterio que confere animaccedilatildeo a um bonecordquo (1938 81) O

movimento eacute claro eacute um dos trecircs sistemas de signos de cujos signos se constitui o boneco e

de acordo com McPharlin pode ser perfeitamente o mais significativo dos trecircs sistemas

referidos Segundo escreve Louis Duranty um francecircs do seacuteculo XIX ldquoo que os bonecos

fazem domina inteiramente o que dizemrdquo (citado em Veltruskyacute 1983 97)

Por outro lado o boneco durante a sua apresentaccedilatildeo pode permanecer imoacutevel por

longos periacuteodos de tempo e pode em raras ocasiotildees permanecer sem mover-se de fato

durante toda a apresentaccedilatildeo e ser algo aleacutem de uma mera figura decorativa ndash ou seja ser algo

mais que uma estaacutetua Isto se daacute porque o sistema de signos da fala tambeacutem se faz disponiacutevel

ao boneco e na ausecircncia do movimento do boneco as possibilidades especiacuteficas desse

sistema de signos em conjunccedilatildeo com o sistema de signos da forma pode permitir agrave plateacuteia

248

imaginar que o boneco possui vida Os sistemas de signos de forma e fala satildeo de uma

importacircncia vital para o teatro de bonecos e ao negligenciaacute-los as definiccedilotildees de McPharlin e

Baird negligenciam alguns dos aspectos constitutivos do boneco

Henryk Jurkowski cujas duacutevidas acerca da aproximaccedilatildeo sincrocircnica foram discutidas

em nossa introduccedilatildeo oferece uma definiccedilatildeo para o teatro de bonecos que incorpora todos os

trecircs sistemas de signos disponiacuteveis ao boneco

O teatro de bonecos eacute uma arte teatral sendo que a caracteriacutestica baacutesica e

principal que o diferencia do teatro de atores sendo que os objetos que falam

e se apresentam fazem uso temporal de fontes vocais e motoras que se

encontram fora do objeto As relaccedilotildees entre o objeto (o boneco) e as fontes

de energia [os vocalizadores eou manipuladores] alteram-se

constantemente e tais variaccedilotildees satildeo de grande importacircncia semioloacutegica e

esteacutetica (1988 [1983] 79-80)

Devemos notar que esta se trata de uma definiccedilatildeo para o teatro de bonecos e natildeo do

boneco em si Ainda assim podemos certamente ver elementos essenciais a uma definiccedilatildeo do

boneco aqui o boneco eacute um objeto ao qual se daacute ldquouso temporalrdquo de ldquoenergia vocal e motorardquo

externas o que eacute de importacircncia decisiva

Ao apresentar essa definiccedilatildeo Jurkowski parece estar fazendo o mesmo tipo de

afirmaccedilatildeo sincrocircnica que desacreditou anteriormente Seja como for a sua definiccedilatildeo jaacute seria

um avanccedilo em relaccedilatildeo agraves definiccedilotildees de McPharlin e Baird apenas pelo reconhecimento que

apresenta de cada um dos trecircs sistemas de signos Mas ela vai aleacutem disso Sua insistecircncia na

separaccedilatildeo e no relacionamento entre o objeto e suas ldquofontes de energiardquo prepara o caminho

para uma anaacutelise de como os sistemas de signos operam independentemente e associados Haacute

no entanto tambeacutem trecircs problemas com a definiccedilatildeo de Jurkowski

O primeiro problema eacute que ao mesmo tempo em que a definiccedilatildeo reconhece os trecircs

sistemas de signos separadamente parece sugerir que movimento e fala devem estar presentes

se quisermos aceitar um determinado objeto como sendo um boneco Jurkowski menciona o

ldquoobjeto que fala e se apresentardquo ldquoas fontes fiacutesicas das forccedilas motoras e vocaisrdquo (grifo nosso)

Aleacutem disso ao contraacuterio das afirmaccedilotildees categoacutericas de McPharlin acerca do movimento

Jurkowski faz-se categoacuterico acerca da fala Charles Magnin um historiador do teatro francecircs

do seacuteculo XIX argumenta que ldquoa separaccedilatildeo entre palavra e accedilatildeo eacute precisamente aquilo que

constitui a peccedila de bonecosrdquo (citado em Proschan 1983 20) Jurkowski refina essa discussatildeo

ldquoA possibilidade de separaccedilatildeo entre o objeto falante e a fonte fiacutesica da palavra eacute a qualidade

distintiva do bonecordquo (1988 [1983] 79)

Mas consideremos dois casos no primeiro uma danccedila narrativa eacute apresentada por

figuras inanimadas movimentadas sobre a cena em acompanhamento agrave muacutesica no segundo

249

uma danccedila narrativa eacute apresentada sobre um palco por bailarinos vivos em acompanhamento

agraves vozes das personagens No primeiro caso apesar da ausecircncia de qualquer fala as figuras em

cena dificilmente seriam consideradas como algo que natildeo bonecos no segundo caso apesar

da presenccedila de se uma fonte separada para as falas o bailarinos vivos dificilmente seriam

considerados algo que natildeo danccedilarinos vivos A insistecircncia de Jurkowski de que os sistemas de

signos de fala e movimento operam sempre em conjunccedilatildeo conduz agrave negaccedilatildeo daquilo que

poderia ser obviamente considerado boneco Ao refinar o argumento de Magnin com a

alegaccedilatildeo de que a separaccedilatildeo que se daacute eacute entre fala e objeto em vez de fala e accedilatildeo Jurkowski

evita o completo absurdo mas a sua insistecircncia na primazia da fala sobre o movimento ainda

assim aponta para tal direccedilatildeo O problema das relaccedilotildees entre os dois sistemas de signos pode

entretanto ser facilmente resolvido se natildeo houver ecircnfase de nenhum dos sistemas de signos

sobre o outro a priori mas permitir que seus signos existam separadamente ou

conjuntamente em conjunccedilatildeo com a proacutepria forma do objeto na proacutepria constituiccedilatildeo do

boneco

O segundo problema com a definiccedilatildeo de Jurkowski eacute que quando fala do boneco como

um objeto ele se refere exatamente ao seguinte algo de uma natureza completamente

inanimada Assim o teatro de bonecos natildeo pode incorporar qualquer parte do ator vivo ao

boneco De fato como veremos mais adiante Jurkowski chega a ponto de considerar

desconsiderar o boneco de luva como boneco pois a plateacuteia presta atenccedilatildeo agrave miacutemica da matildeo

do operador para a qual o boneco em si natildeo passaria de um figurino (1988 [1979] 21-2)

Assim Jurkowski limita severamente as possibilidades disponiacuteveis ao sistema de signos da

forma do boneco e mais ele desafia o entendimento geral daquilo que a palavra boneco que

dizer Esse problema como vimos pode ser resolvido em se levando a seacuterio a percepccedilatildeo do

puacuteblico o que eacute percebido como sendo um objeto independentemente de sua verdadeira

natureza pode igualmente ser percebido como um boneco

O terceiro problema com a definiccedilatildeo de Jurkowski eacute que ao mesmo tempo em que

considera os trecircs sistemas de signos do boneco natildeo menciona o propoacutesito da apresentaccedilatildeo

dos signos do boneco a criaccedilatildeo de algo que uma plateacuteia imaginaraacute como sendo vivo

Jurkowski natildeo estaacute desatento a esse propoacutesito pois escreve sobre o boneco ldquotanto como

boneco quanto como personagem teatralrdquo (1988 [1983] 78) Mas essa mesma atenccedilatildeo natildeo eacute

encontrada em sua definiccedilatildeo Esse problema pode ser solucionado com o simples

reconhecimento do resultado teatral que se deseja a vida imaginada do boneco que ocorre

quando seus signos satildeo apresentados de forma competente

250

Deve-se ser registrado que Jurkowski recentemente expressou duacutevidas quanto a sua

definiccedilatildeo ldquoEu tenho duvido da possibilidade de se criar uma definiccedilatildeo coerente e universal

para o teatro de bonecos moderno Imagino que teremos que estudar cada gecircnero daquilo

que eacute considerado teatro de bonecos de modo a determinar suas caracteriacutesticas e suas

linguagensrdquo (1990 18) Essa duacutevida surge do desenvolvimento daquilo que Jurkowski chama

de ldquoteatro de bonecos no sentido mais amplordquo no qual o boneco ldquopossui uma natureza e

estrutura profana [ao inveacutes de sagrada]rdquo e na qual ldquoo artista natildeo mais serve ao boneco faz o

boneco servira ele e agraves suas ideacuteiasrdquo (1990 17) Devido agrave sua profunda preocupaccedilatildeo com a

questatildeo da ldquoservidatildeordquo sobre a qual ainda veremos mais Jurkowski natildeo consegue deixar de

acreditar que as produccedilotildees nas quais a apresentaccedilatildeo do operador for de significacircncia igual ou

superior agrave do boneco devem ser de uma natureza do que a do teatro de bonecos convencional

Natildeo obstante o ponto central da definiccedilatildeo do boneco depreendido a partir da definiccedilatildeo dada

por Jurkowski para o teatro de bonecos natildeo parece ser afetada por esse desenvolvimento no

teatro de bonecos moderno e manteacutem as mesmas forccedilas e fraquezas que temos discutido

Antes de estabelecer as bases para uma nova definiccedilatildeo para o boneco vamos resumir

brevemente as anaacutelises em curso Lembremos que o primeiro problema localizado nas

definiccedilotildees de McPharlin e Baird eacute que apesar de sua amplitude elas natildeo permitem a

participaccedilatildeo do ator como boneco natildeo contemplando de maneira justa as possibilidades

inerentes ao sistema de signos da forma Esse problema se resolve no entendimento de que o

ator vivo pode apresentar-se em parte ou em todo de modo a permitir que a plateacuteia o entenda

da mesma maneira como entende o restante da figura ou seja como um objeto

O segundo problema com essas definiccedilotildees eacute que em sua amplitude elas natildeo

distinguem entre boneco e cenaacuterio ou adereccedilo uma vez que ignoram o propoacutesito de animaccedilatildeo

do movimento do boneco Esse problema se resolve com o entendimento de que o movimento

conferido ao boneco se daacute com o propoacutesito expliacutecito de sugerir agrave plateacuteia que esta imagine que

o boneco possui algo que de fato natildeo tem uma vida independente

O terceiro problema com essas definiccedilotildees eacute que enfatizando a questatildeo do movimento

como fazem ignoram a importacircncia do sistema de signos da forma do boneco e

principalmente da fala O problema se resolve com o entendimento de que forma e fala satildeo

de fato dois dos trecircs sistemas de signos fundamentais do boneco

A definiccedilatildeo de Jurkowski resolve esse terceiro problema mas lhe impotildee uma nova

virada na alegaccedilatildeo de que os sistemas de signos de movimento e fala devem ser empregados

conjuntamente e que desses dois o sistema da fala seria o mais significante Ainda sua

definiccedilatildeo insiste na questatildeo de que o boneco deve ser puramente um objeto sem incorporar

251

qualquer parte do ator vivo Finalmente sua definiccedilatildeo natildeo reconhece o efeito teatral da

apresentaccedilatildeo do boneco Mas como jaacute foi visto todos esses problemas possuem soluccedilotildees

Ao juntarmos todas as nossas soluccedilotildees o caminho torna-se livre afinal para

respondermos a pergunta apresentada no iniacutecio deste capiacutetulo quando as pessoas mencionam

o boneco teatral estatildeo se referindo a elementos que satildeo reconhecidos por uma plateacuteia como

sendo objetos aos quais satildeo conferidos forma movimento e frequentemente fala de uma

maneira tal que a plateacuteia os imagina como possuidores de uma vida

A formulaccedilatildeo dessa resposta eacute o exato ponto de partida para o entendimento de uma

compreensatildeo teoacuterica completa do boneco Mas antes que tal entendimento possa ser

desenvolvido seraacute necessaacuterio explorar a natureza do interesse universal pelo boneco explorar

assim as diversas explicaccedilotildees jaacute apresentadas acerca da sobrevivecircncia do boneco Tal

exploraccedilatildeo iraacute em uacuteltima apreciaccedilatildeo no conduzir ateacute uma expansatildeo da definiccedilatildeo baacutesica ateacute

aqui oferecida jaacute que o problema dessa explicaccedilatildeo eacute como iremos perceber profundamente

relacionado com o de definiccedilatildeo Apenas quando descobrirmos as bases da continuidade da

existecircncia teatral do boneco estaremos aptos a entender a natureza esteacutetica particular do

boneco como objeto percebido e vida imaginada

252

2

EXPLICACcedilOtildeES CONSAGRADAS

Estivemos explorando aquilo que as pessoas querem dizer quando mencionam o

boneco teatral mas o que eacute que o boneco tem de mais para ser mencionado Batchelder

apresenta a questatildeo ldquoimaginamos quais seriam as qualidades inerentes ao teatro de bonecos

que lhe conferiram vitalidade suficiente para manter-se como uma arte independente e qual

encanto fundamental lhe garantiu a popularidade que possui entre os mais variados tipos de

pessoasrdquo (1947 278) A tarefa a ser desempenhada por essa explicaccedilatildeo eacute o de demonstrar o

que satildeo essas qualidades ou mesmo demonstrar que uma uacutenica qualidade relaciona-se a toda

a arte do boneco Natildeo deve haver duacutevidas de que o teatro de bonecos possui uma determinada

quantidade de qualidades que lhe sejam proacuteprias Mas haveraacute qualquer explicaccedilatildeo acerca de

sua sobrevivecircncia e apelo que se apoacuteie sobre uma qualidade constante que exista juntamente

e atraveacutes de todas as outras

Outros autores tecircm proposto soluccedilotildees a este problema mas tais soluccedilotildees raramente

tecircm sido sistematicamente revisadas de modo que as relaccedilotildees entre tais soluccedilotildees natildeo tecircm sido

estabelecidas claramente A presente anaacutelise consideraraacute as soluccedilotildees anteriormente propostas

em trecircs seccedilotildees cada uma dedicando-se a um dos principais componentes de uma produccedilatildeo em

teatro de bonecos o artista o boneco e a plateacuteia Deve-se mencionar que alguns autores tecircm

proposto soluccedilotildees que atravessam esses limites um tanto arbitraacuterios entre os grupos citados e

que o propoacutesito desta anaacutelise natildeo eacute tanto categorizar as possiacuteveis soluccedilotildees quanto eacute encontrar

um modo coerente de trazecirc-las agrave luz

EXPLICACcedilOtildeES BASEADAS NO ARTISTA

Natildeo deve haver questatildeo acerca do fato de que o teatro de bonecos oferece uma seacuterie de

possibilidades interessantes ao artista de teatro Essas possibilidades satildeo de trecircs qualidades

baacutesicas primeiro o teatro de bonecos oferece ao artista uma oportunidade extraordinaacuteria de

controle sobre um meio segundo oferece ao artista a licenccedila do boneco para falar e atuar com

grande liberdade sem o risco de retaliaccedilatildeo terceiro oferece ao artista um meio que natildeo eacute por

sua proacutepria natureza limitada pela realidade

No teatro de bonecos o artista pode desempenhar todas as funccedilotildees necessaacuterias agrave

produccedilatildeo da peccedila e frequentemente eacute exatamente isso o que acontece David Currel um

artista de teatro de bonecos inglecircs vangloria-se de que ldquoo marionetista eacute uma combinaccedilatildeo

253

rara de escultor modelador pintor costureiro eletricista carpinteiro ator escritor produtor

desenhista e inventorrdquo (1987 [1985] 1)

Deve-se tomar em consideraccedilatildeo que o proacuteprio emprego do termo marionetista99

parece

sugerir essa noccedilatildeo de um artista solitaacuterio e multi controlador Essa palavra foi cunhada no

iniacutecio do seacuteculo XX pela fundadora do Chicago Little Theatre Marionettes Ellen Van

Volkenburg Louise Martin nos conta que ldquonatildeo se sabia como chamar o ator-manipulador

naquela eacutepocardquo e que Van Volkenburg natildeo sem um certo receio sair-se com o termo

puppeteer criado com base do termo usado para definir o condutor de uma charrete de mulas

muleteer (1945 5) Uma boa parte do teatro de bonecos norte americano encontra suas raiacutezes

direta ou indiretamente no Chicago Little Theatre Marionettes e parte de sua heranccedila eacute

justamente a palavra puppeteer A palavra eacute certamente bem mais maleaacutevel do que locuccedilotildees

tais como contrutor de bonecos operador de bonecos vocalizador de bonecos e assim por

diante E assim sendo como indica Currel como todas essas funccedilotildees a ainda outras satildeo

usualmente desempenhadas por uma uacutenica pessoa o surgimento do termo marionetista era

algo provavelmente inevitaacutevel Na verdade a grande organizaccedilatildeo dedicada ao avanccedilo da arte

do teatro de bonecos nos Estados Unidos chama-se Puppeteers of America [Marionetistas da

Ameacuterica]

No entanto a palavra traz em si a pressuposiccedilatildeo do artista multi controlador Se como

se pode perceber no nosso exemplo japonecircs algumas pessoas projetam e criam a cabeccedila a

peruca e o figurino do boneco ao passo que outras pessoas operam a figura que resulta dessa

combinaccedilatildeo em cena ao mesmo tempo em que outras lhe concedem a voz o termo

marionetista natildeo seria nesse caso impreciso Erik Koacutelar um estudioso Tcheco fala do

marionetista como existindo em ldquounidade inseparaacutevel com o seu bonecordquo (1967 [1965] 32)

Mas em nosso exemplo japonecircs haacute dois ou trecircs operadores e o boneco ainda pode ser

transferido paro o controle de ainda outros operadores Podemos de fato falar de uma iniatildeo

inseparaacutevel entre o boneco e qualquer um desses operadores sem mencionar os diversos

construtores e especialmente o vocalizador que fornece uma contribuiccedilatildeo vital agrave

apresentaccedilatildeo do boneco podemos falar com grande validade do marionetista no sentido que

Currel daacute ao termo Como maneira de tentar iluminar tais dificuldades este estudo evita o

emprego do termo marionetista em favor de termos mais precisos quando necessaacuterio e

99

O autor refere-se ao termo puppeteer que possui grande afinidade com palavra marionetista Assim optou-se

por empregar o termo traduzido apenas indicando quando houver referecircncias agrave sonoridade ou a outros aspectos

especiacuteficos da palavra inglesa

254

artista de bonecos quando um termo mais geneacuterico mas menos comprometido fizer-se

necessaacuterio

O artista de bonecos especialmente sob a faceta de marionetista pode assegurar-se de

que nenhum de seus colaboradores iraacute lhe impor a sua visatildeo artiacutestica especiacutefica uma vez que

este dispensa a necessidade de qualquer colaboraccedilatildeo Arnott argumenta que ldquoo problema que

aflige aquele que se propotildee a criar uma obra na arte do teatro eacute a questatildeo da unidade ocorre

que unidade eacute algo que se alcanccedila com maior facilidade quando apenas uma mente criativa

se envolve no processordquo (1964 74) E como observa Batchelder o teatro de bonecos oferece

ao artista de teatro a melhor oportunidade de obter tal unidade uma vez que ldquoo espetaacuteculo de

bonecos usualmente se constroacutei em uma escala inferior agravequela necessaacuteria para o teatro

humano assim consegue-se mais facilmente alcanccedilar a siacutenteserdquo (1947 280)

Quando artistas mencionam o problema em se alcanccedilar unidade ou siacutentese na

expressatildeo artiacutestica estatildeo sugerindo que a colaboraccedilatildeo eacute mais um impedimento que uma ajuda

A colaboraccedilatildeo da qual mais se ressente eacute aquela que se estabelece com atores Arthur

Symons um escritor de teatro norte americano da virada do seacuteculo [XX] reclamava que ldquoo

ator vivente mesmo quando concorda em subordinar-se agraves necessidades da pantomima

sempre apresenta aquilo que ele orgulhosamente chama de temperamento em outras

palavras muito capricho pessoalrdquo (1909 3) Symons foi uma influecircncia significativa para

Edward Gordon Craig o britacircnico visionaacuterio do teatro que fez uso dessa linha de raciociacutenio

para o seu extremo loacutegico apesar de altamente teoacuterico ldquoO ator deve partir e em seu lugar

viraacute a figura inanimada ndash a qual poderemos chamar Supermarioneterdquo (1911 81)

Craig gostaria de possuir um controle absoluto sobre cada aspecto de seu teatro ainda

que outros operassem ou mesmo fossem as suas ldquoSupermarionetesrdquo o seu controle ainda

assim natildeo seria diminuiacutedo Como aponta Irene Eynat-Confino

Nos cadernos de anotaccedilotildees sobre as ldquoUumlber-Marionsrdquo Craig apresenta

diversas razotildees para se inventar a Supermarionete [Entre elas estaacute o

desejo de] eliminar o elemento de acaso na atuaccedilatildeo Uma vez que Craig

pretendia fornecer planos cuidadosamente planejados para cada movimento

as falhas humanas [de operadores ou atores] natildeo teriam grandes

consequumlecircncias (1987 89)

Seria talvez vaacutelido apontar que Craig jamais produziu de fato qualquer espetaacuteculo do seu

teatro de Supermarionetes Pelo menos uma razatildeo para tal aleacutem das usuais dificuldades

financeiras que afligiam Craig eacute clara a extrema dificuldade que haacute para qualquer pessoa de

manter um controle absoluto sobre qualquer empresa teatral substancial De fato Batchelder

255

faz uma indicaccedilatildeo dessa questatildeo quando aborda o fato de a ldquoescala menorrdquo do teatro de

bonecos ser algo desejaacutevel ainda as produccedilotildees de Peter Arnott eram one-man shows

Muitos artistas de bonecos seguindo Craig procuram criar uma arte unificada e

sinteacutetica por meio do emprego de um controle absoluto aproximado agravequeles do pintor ou do

escultor Mas parece ser uma suposiccedilatildeo estranha de que o melhor das artes existe apenas

como expressatildeo do artista solitaacuterio A colaboraccedilatildeo no teatro certamente jaacute produziu grande

arte ndash maior nos parece do que qualquer artista teatral solitaacuterio jaacute produziu E tal arte tem

sido capaz de alcanccedilar unidade e siacutentese apesar ou ateacute mesmo por causa dos vaacuterios egos e

visotildees de seus colaboradores Pode-se argumentar de fato que esses egos e visotildees

juntamente com o talento que os acompanha produzem um efeito simbioacutetico um sobre o

outro resultando num trabalho bem maior do que aquele alcanccedilado por uma pessoa apenas

De modo mais significativo o controle artiacutestico absoluto natildeo eacute uma caracteriacutestica

geneacuterica do teatro de bonecos Entre os exemplos apresentados na introduccedilatildeo do livro o

Punch and Judy britacircnico era uma apresentaccedilatildeo solitaacuteria e seu inteacuterprete Percy Press Jr foi

responsaacutevel por todos os aspectos nela envolvidos ainda que alguns desses aspectos fossem

tradicionais e requeressem meramente a sua mediaccedilatildeo Mas todos os outros exemplos foram

empreitadas colaborativas O exemplo japonecircs era o que envolvia o maior nuacutemero de artistas

dois ou trecircs operadores para cada boneco com ateacute trecircs bonecos em cena de cada vez ao

menos um instrumentista e em certas ocasiotildees trecircs ou quatro dentro e fora da cena ao menos

um narrador e por vezes trecircs ou quatro dentro e fora da cena e nos bastidores uma boa

quantidade de figurinistas escultores de cabeccedilas peruqueiros aderecistas e assim por diante

(Adachi 1985 9-11)

O controle artiacutestico absoluto tampouco eacute uma caracteriacutestica exclusiva do teatro de

bonecos Qualquer one-man show com um ator oferece ao artista o mesmo niacutevel de controle

que eacute oferecido ao espetaacuteculo solitaacuterio de teatro de bonecos Por exemplo a produccedilatildeo de Hal

Halbrook de Mark Twain Tonight eacute uma produccedilatildeo tatildeo autocircnoma quanto pode ser qualquer

produccedilatildeo em teatro de bonecos Deve-se ser apontado tambeacutem que a oportunidade de controle

que o teatro de bonecos oferece ao artista se daacute na maior parte das vezes por questotildees

financeiras do que por escolhas artiacutesticas ao menos nos Estado Unidos Dada a realidade

financeira das produccedilotildees de teatro de bonecos seraacute apenas por meio do trabalho solitaacuterio que

o artista poderaacute se sustentar a colaboraccedilatildeo apresenta o risco de ruiacutena financeira

A oportunidade de controle entatildeo natildeo eacute invariavelmente aproveitada no teatro de

bonecos e natildeo eacute uma oportunidade exclusiva desse teatro Por mais valiosa que seja tanto

artiacutestica como economicamente e mesmo levando em conta a frequecircncia com que eacute

256

empregada natildeo seraacute uma uacutenica qualidade que iraacute explicar a sobrevivecircncia do encanto que

exerce o boneco

O teatro de bonecos tambeacutem oferece ao artista a licenccedila conferida pelo boneco para

agir e representar com uma liberdade notaacutevel O boneco por natildeo ser uma pessoa viva natildeo

pode ser responsabilizado por suas accedilotildees e palavras mesmo assim essas accedilotildees e palavras natildeo

satildeo exatamente pertencentes ao artista de bonecos e assim nenhum dos dois parecem carregar

essa responsabilidade Dessa forma o boneco eacute especialmente adequado para a exposiccedilatildeo de

convenccedilotildees sociais e consequecircncias Dois exemplos iratildeo demonstrar ateacute que ponto essa

licenccedila eacute tomada

Bart P Roccoberton Jr Diretor do Programa de Teatro de Bonecos na Universidade de

Cinnecticut (Storrs) conta uma histoacuteria sobre sua visita agrave casa de um famoso artista de teatro

de bonecos norte americano A visita deveria incluir uma olhada na coleccedilatildeo de bonecos do

artista e depois um jantar Assim que chegou Roccoberton foi saudado pelo boneco mais

famoso do artista Foi esse boneco eacute claro operado pelo artista que o guiou pela coleccedilatildeo de

bonecos ao passo que o artista usando sua voz normal fez apenas alguns comentaacuterios

esporaacutedicos Quando se aproximou a hora do jantar Roccoberton testemunhou uma discussatildeo

entre o artista e o boneco o artista sugeriu que se servisse uma bebida e em seguida o jantar

enquanto que o boneco insistia que precisava descansar desejando que o convidado chato

fosse embora Roccoberton ficou aturdido ao ouvir o artista relutantemente concordar com o

boneco em pouco tempo lhe foi mostrada a porta e o artista se desculpava pelo mau gecircnio do

boneco (Roccoberton 1982)

Bogatyrev relata uma licenccedila semelhante ldquoUm certo marionetista foi intimado

acusado de ter feito ataques poliacuteticos do alto do palco de bonecos O marionetista apareceu na

corte carregando o boneco Kašpaacuterek e anunciou que que natildeo sua culpa mas de Kašpaacuterekrdquo

(1983 [1973] 54) Infelizmente natildeo sabemos se as explicaccedilotildees do artista forma aceitas na

corte

Esses exemplos satildeo claro extremos mas o boneco durante a sua apresentaccedilatildeo guarda

para si uma liberdade extraordinaacuteria Lembremo-nos de nossas consideraccedilotildees sobre ldquoPunch

and Judyrdquo Punch comete uma seacuterie de assassinatos violentos todos para a satisfaccedilatildeo de sua

plateia George Speaight em seu estudo magistral A histoacuteria do teatro de bonecos inglecircs

traccedila a linhagem de Punch e conclui

Aproximado historicamente Punch natildeo seraacute visto como um monstro

inumano que passa a sua vida espancando e matando todos aqueles que

cruzam o seu caminho mas como o velho comediante que apenas mata

cada novo personagem que surgido depois dele como a forma mais raacutepida de

257

dar um fim agravequela cena e seguir para a proacutexima Talvez essa seja a razatildeo

fundamental pela qual noacutes rimos de Punch e natildeo nos sentimos horrorizados

Noacutes percebemos que por traacutes de suas vitoacuterias pelo porrete repousa o

arqueacutetipo ldquodaquele que leva as bofetadasrdquo o palhaccedilo primitivo e eterno

(1990 [1995] 184-5)

Natildeo haacute duacutevidas de que Punch eacute uma versatildeo em boneco do palhaccedilo arquetiacutepico Ainda assim

essa natildeo parece uma explicaccedilatildeo suficiente para uma comeacutedia que contenha tanta brutalidade

incessante Precisamos apenas imaginar tal apresentaccedilatildeo feita por atores de carne e osso natildeo

seria algo insuportaacutevel De fato tanta matanccedila aleatoacuteria eacute vista raramente se alguma vez foi

vista no teatro cocircmico feito com atores

O boneco entretanto como natildeo passa de um ldquoobjetordquo teatral natildeo pode ser percebido

como algo que possua a mesma responsabilidade do ldquovivordquo mesmo este sendo um ator num

papel e assim os assassiacutenios sucessivos de uma duacutezia de personagens mais ou menos torna-

se motivo de riso e natildeo de preocupaccedilatildeo Deve-se mencionar tambeacutem que a licenccedila dada ao

boneco em cena natildeo estaacute limitada agraves accedilotildees fiacutesicas Como aponta McPharlin ldquoPunch

certamente pode passar dos limites sem provocar ofensa ao mandar seus comentaacuterios aacutecidos

acerca de assuntos delicados bem mais do que pode o ator vivordquo (1938 16)

A permissatildeo dada ao boneco eacute exibida mais frequentemente em espetaacuteculos de saacutetira e

paroacutedia e isso se atribui ao entendimento de que o boneco natildeo eacute uma pessoa viva e portanto

eacute livre para apresentar uma imagem corrosiva daqueles que satildeo Arnott em um comentaacuterio ao

trabalho de Obraztsov observa que ldquoeacute no campo da saacutetira que o teatro de bonecos parece ter

estabelecido o maior interesse sobre o puacuteblico adulto Os bonecos se oferecem faacutecil e

obviamente agrave caricaturardquo (1964 50)

O proacuteprio Obrastzov faz uma distinccedilatildeo entre trecircs tipos diferentes de saacutetira ou paroacutedia

agraves quais o boneco eacute especialmente adequado a ldquoparoacutedia de lsquodescriccedilatildeorsquo [um tipo de] paroacutedia

sobre um personagem determinado [na qual] a pura imitaccedilatildeo [de uma caracteriacutestica ou

comportamento] eacute o cerne da descriccedilatildeordquo a ldquoparoacutedia lsquode generalizaccedilatildeorsquo [uma paroacutedia de]

um grupo de pessoas que possuam caracteriacutesticas especiacuteficas em termos profissionais sociais

de outra natureza em comumrdquo na qual tais caracteriacutesticas satildeo caricaturadas e o tipo de

paroacutedia que ldquoconsiste em parodiar um determinado assunto ou temardquo que pode ser

chamada de saacutetira temaacutetica (1950 164-5)

A paroacutedia de descriccedilatildeo funciona de uma maneira simples que natildeo carece de maior

detalhamento devemos perceber apenas que o seu sucesso depende da familiaridade da

plateia com a pessoa sendo parodiada A paroacutedia de generalizaccedilatildeo eacute bem ilustrada no exemplo

dado por Obrastzov

258

Haacute alguns cantores de oacutepera ou de concertos para os quais a apresentaccedilatildeo

natildeo passa de um pretexto para ele mostrar os seus talentos Eles

consideram isso necessaacuterio para exibir a sua respiraccedilatildeo e portanto arrastam

a fermata por meio minuto Eu queria fazer graccedila de um cantor desse tipo

Da sua voz ldquomajestosardquo seu temperamento ldquoimensordquo seu andar vanglorioso

suas matildeos amassando a muacutesica e a torccedilatildeo exagerada do pescoccedilo para as

ldquobrilhantesrdquo notas mais altas (1950 167)

Obrastzov construiu um boneco representando esse cantor ele subiu ao palco pleno de uma

autoglorificaccedilatildeo pomposa saboreando cada maneirismo que demonstrava essa gloacuteria no

decorrer da muacutesica finalizando-a com uma nota tatildeo alta e longa que o pescoccedilo do boneco

esticou-se ateacute atingir quatro vezes o seu tamanho original (1950 167-8) Obrastzov tambeacutem

daacute exemplos das saacutetiras temaacuteticas que ele criou mas essas natildeo precisam ser descritas em

detalhes a apresentaccedilatildeo nigeriana descrita anteriormente serviraacute como exemplo Juntamente

com as paroacutedias de descriccedilatildeo que mostra sobre membros da tribo a peccedila apresentou uma

saacutetira mais abrangente acerca da vida e do governo tribais (Messenger 1971 208)

Claramente entatildeo o boneco oferece ao artista meios altamente eficazes para fazer uso

da saacutetira ou da paroacutedia O boneco eacute especialmente capaz de apontar os pontos fracos em

todos os niacuteveis do ser humano A significacircncia disso eacute corroborada pela experiecircncia de todos

aqueles que trabalham com teatro de bonecos nos Estados Unidos saacutetira e paroacutedia satildeo os

pilares do teatro de bonecos como este se apresenta aqui para o puacuteblico adulto

E eacute claro a saacutetira e a paroacutedia natildeo se limitam ao teatro de bonecos para adultos o

ldquoPunch and Judyrdquo conteacutem muitos elementos de paroacutedia Judy natildeo seria uma paroacutedia de

generalizaccedilatildeo para a esposa megera Punch tambeacutem embarca em querelas com um policial e

um carrasco de forca natildeo seriam tambeacutem esses personagens paroacutedias generalizantes de tipos

familiares

Apesar de ser altamente conhecida a vocaccedilatildeo do boneco para a saacutetira e a paroacutedia essa

licenccedila natildeo se constitui num fator significante em todas as apresentaccedilotildees de teatro de bonecos

A apresentaccedilatildeo javanesa descrita na introduccedilatildeo por exemplo natildeo se apoiou nesse recurso

exceto em aliacutevios cocircmicos ocasionais a licenccedila dada ao boneco para a burla eacute pouco usada

em apresentaccedilotildees dramaacuteticas com temaacutetica mitoloacutegica De fato parece mesmo que a maioria

das apresentaccedilotildees tradicionais relacionadas a passagens da mitologia demonstram um

interesse limitado em explorar a licenccedila do boneco dedicadas como satildeo em apresentar as

histoacuterias de deuses e heroacuteis

Ainda que o teatro de atores natildeo faccedila uso de toda a gama de licenccedilas que o boneco

possui o teatro oferece licenccedilas suficientes para que se permitam accedilotildees e falas que natildeo seriam

tolerados fora do teatro Imagine-se apenas qual seria a reaccedilatildeo do puacuteblico a um MacBeth na

259

vida real ou agrave nudez e vulgaridade ou mesmo a quase-traiccedilatildeo e blasfecircmia que se aceita como

coisa normal no teatro E eacute claro produccedilotildees com atores de peccedilas como Every Man in his

Humour (Cada homem em seu humor) de Ben Jonson ou Serious Money (Dinheiro de

verdade) de Caryl Churchill assim como os trabalhos de inuacutemeros imitadores cocircmicos nos

lembram que o teatro de atores possui uma ampla capacidade de engajar-se em saacutetira e

paroacutedia

O boneco tambeacutem oferece ao artista um meio de que natildeo se encontra limitado pela

natureza atribuiacutedo agrave percepccedilatildeo de que porque o boneco natildeo eacute mais que uma figura teatral

uma indicativo este pode ser feito para mostras seres de toda natureza imaginaacutevel e cada um

desses tipos participa da mesma ldquorealidaderdquo teatral que qualquer outro

Batchelder escreve que ldquoo sucesso persistente do teatro de bonecos se apoacuteia sobre a

facilidade com a qual este potildee em justaposiccedilatildeo o real e o imaginaacuterio dotando ambos de igual

plausibilidaderdquo (1947 292) Malkin argumenta em desenvolvimento a essa mesma ideacuteia

O teatro de bonecos tem desempenhado um papel vital no desenvolvimento

daquilo que pode ser chamado de o conceito dramaacutetico do impossiacutevel

plausiacutevel [Esta] eacute a ligaccedilatildeo entre o mundo do real e o reino da fantasia

pura Eacute nesse sentido que o teatro de bonecos representa a imaginaccedilatildeo

dramaacutetica em uma de suas formas mais fluentes (19756-7)

A importacircncia do ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo se afirma na experiecircncia de todos aqueles que

trabalham com teatro de bonecos nos Estados Unidos a fantasia e o folclore repletos de

personagens impossiacuteveis satildeo os fundamentos do teatro de bonecos como este se apresenta

aqui para plateias de crianccedilas

Eacute claro que o ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo natildeo se limita ao teatro de bonecos para crianccedilas

Recordemo-nos de nossos exemplos norte americano e indiano apresentados anteriormente

no segundo a figura de uma menina eacute transformada na de um ogre no primeiro nuacutemeros

ganham ldquovidardquo Por todo o mundo artistas de teatro de bonecos apresentando-se tanto para

crianccedilas como para adultos valem-se da capacidade do boneco de fundir os mundos da

realidade e da fantasia

Apesar da difusatildeo da noccedilatildeo de ldquoimpossiacutevel plausiacutevelrdquo entretanto a fusatildeo entre

realidade e fantasia natildeo se constitui num elemento presente em todo teatro de bonecos Nosso

exemplo nigeriano natildeo se apoiou muito sobre essa questatildeo pois a capacidade de apresentar o

impossiacutevel de maneira plausiacutevel natildeo eacute algo particularmente proacuteprio agrave saacutetira social De fato

pode ser que a maioria dos artistas tradicionais dedicados agrave paroacutedia e agrave saacutetira abdiquem

combinar os dois mundos preferindo explorar em profundidade apenas o mundo do real

260

Ainda que o teatro de atores natildeo consiga integrar o real e o fantaacutestico com a mesma

facilidade proacutepria do teatro de bonecos ele pode apresentar de maneira convincente esses

mundos integrados produccedilotildees de trabalhos tais como ldquoO sonho de uma noite de veratildeordquo de

Shakespeare e ldquoPeter Panrdquo de James Barrie demonstram natildeo apenas que o teatro de atores

pode desafiar o teatro de bonecos nessa questatildeo mas que o teatro de atores pode oferecer

dimensotildees que natildeo estatildeo disponiacuteveis ao teatro de bonecos Pois o vocirco de um Peter Pan vivo

natildeo pode evocar mais admiraccedilatildeo e espanto do que o vocirco de uma marionete

Na medida em que o boneco oferece sua licenccedila especiacutefica por um lado e sua aptidatildeo

para o impossiacutevel plausiacutevel por outro parece claro que nenhuma dessas qualidades pode por

si soacute ser aquela que explica a permanecircncia global do boneco De fato como pudemos

observar apresentaccedilotildees tradicionais que se apoiam sobre uma tendem a natildeo necessitar da

outra Mas ainda essas qualidades possuem uma certa relaccedilatildeo entre si apoiadas como satildeo no

fato de que o boneco natildeo eacute uma pessoa viva mas apenas um recurso teatral Assim sendo

precisamos em seguida considerar o modo pelo qual eacute possiacutevel ao boneco criar uma

apresentaccedilatildeo teatral

EXPLICACcedilOtildeES BASEADAS NO BONECO

Eacute axiomaacutetico o fato de que a apresentaccedilatildeo teatral pressupotildee representaccedilatildeo ou como

tambeacutem se pode querer dizer jogo de faz-de-conta de uma maneira ou de outra O boneco eacute

feito para representar uma personagem como pudemos ver na introduccedilatildeo por meio da

disposiccedilatildeo de signos escolhidos de seus sistemas siacutegnicos constitutivos de forma movimento

e fala O encanto difundido e persistente do boneco pode ser explicado por sua maneira

particular de dispor signos de modo a que ele possa representar algo que natildeo eacute

Batchelder como foi verificado anteriormente argumenta que o teatro de bonecos

permanece devido a sua ldquofacilidade [para a] justaposiccedilatildeo [entre[ o real e o imaginaacuteriordquo Essa

facilidade ela sugere surge do fato de que ldquoa caracterizaccedilatildeo direta eacute a qualidade mais forte do

boneco atuante Natildeo haacute fingimento Um boneco eacute a personagem que ele apresenta natildeo eacute um

ser humano vestido como se fosse e fingindo ser a personagemrdquo (1947 288) Essa capacidade

de caracterizar diretamente Batchelder defende permite a justaposiccedilatildeo de elementos reais e

imaginaacuterios uma vez que ambos satildeo apresentados para a plateacuteia sem a interferecircncia da

simulaccedilatildeo dos atores vivos

O argumento de Batchelder de que o boneco natildeo oferece fingimento entretanto natildeo

se sustenta pois o boneco eacute certamente engajado em fingimento embora seja um fingimento

diferente daquele do ator vivo O ator finge ser algueacutem que ele natildeo eacute o boneco finge ser algo

261

que natildeo eacute ao aparentar possuir vida Esse fingimento eacute fundamental para todo o teatro de

bonecos e natildeo pode ser negligenciado Contrariamente a Batchelder entatildeo uma explicaccedilatildeo

do boneco deve levar em consideraccedilatildeo a maneira como o boneco eacute capaz de mostrar essa vida

de fingimento

Eacute lugar comum observar que o teatro de bonecos tradicionalmente conquistou tal

aparecircncia por recriar o teatro de atores que por sua vez ldquoimitardquo a vida McPharlin escreveu

A histoacuteria do teatro de bonecos ateacute seu ressurgimento como arte

independente foi um percurso de imitaccedilatildeo do teatro maior Ele abraccedilou

Punch quando ele foi praticamente jogado para fora do palco Apresentou

moralidades medievais em plena Renascenccedila Celebrou acoplamentos e

cercos navais ateacute que se tornassem lendaacuterios Perpetuou danccedilas e volteios de

vaudeville quando esses jaacute estavam envelhecidos Isto fez dele um ramo

menor e imitativo do teatro (1949 395)

A loacutegica histoacuterica para essa recriaccedilatildeo em escala reduzida do teatro de atores esse emprego de

aspectos ldquodescartadosrdquo eacute simples o teatro de atores que para ser feito emprega escala e

custos superiores podia ser montado normalmente apenas em alguns centros urbanos o teatro

de bonecos que podia viajar facilmente ndash em muitos casos mas costas de apenas uma pessoa

ndash tinha como recriar o teatro de atores e reproduzi-lo infinitamente sem maiores dificuldades

nos rincotildees rurais O juiacutezo de que o teatro de bonecos eacute uma forma de teatro derivativa pouco

original proveacutem dessa histoacuteria

O ressurgimento ao qual McPharlin se refere ocorreu aproximadamente na virada do

seacuteculo XX e pode ser caracterizada precisamente na afirmaccedilatildeo do teatro de bonecos como

uma forma de teatro original e natildeo uma forma de expressatildeo derivativa Nas palavras de

Jurkowski o boneco desenvolveu o seu proacuteprio ldquosistema siacutegnicordquo teatral (1988 [1983] 76)

A histoacuteria recitada por McPharlin eacute ratificada por Jan Maliacutek da Tchecoslovaacutequia que

jaacute serviu como secretaacuterio geral da UNIMA ldquopor muitos seacuteculos o teatro de bonecos

representou um tipo de ediccedilatildeo em miniatura do tetro de atores De fato ateacute hoje

encontramos entre os operadores de bonecos uma tendecircncia de fazer seus bonecos o mais

aproximado possiacutevel da realidade humanardquo (1967 7) A condenaccedilatildeo que faz Maliacutek aos

artistas de hoje em dia natildeo se refere a que sejam culpados por recriar o teatro de atores mas

antes que satildeo culpados de tentar imitar a realidade humana como ela eacute

Vamos agora fazer uma pausa para contemplar o teatro de bonecos como se este fosse

uma recriaccedilatildeo do teatro de atores Natildeo haacute duacutevidas que tal recriaccedilatildeo jaacute foi bastante comum ao

menos no ocidente Jurkowski nos informa que ldquofontes coletadas na Polocircnia indicam que

italianos em 1666 apresentaram-se um dia como atores e no outro como marionetistasrdquo

fazendo precisamente a mesma peccedila (1988 [1983] 71) Mas ainda que a peccedila fosse a mesma

262

seria possiacutevel que a plateia natildeo tivesse consciecircncia do que estava assistindo Mesmo se os

artistas de tetro de bonecos estivessem buscando imitar as formas os movimentos e as falas

dos atores vivos de todas as formas possiacuteveis ainda suas imitaccedilotildees seriam natildeo mais que

imperfeitas e natildeo haveria como confundir os bonecos com atores vivos Independente do que

de extraordinaacuterio o espetaacuteculo tivesse oferecido agrave plateia havia agora o prazer ou desprazer

adicionado de assistir a bonecos tentando representar como se fossem atores vivos Isto natildeo

se potildee de modo a sugerir que uma recriaccedilatildeo dessa natureza seja uma coisa boa mas que

certamente natildeo eacute uma coisa simples a ponto de ser rejeitado como meramente derivativo A

recriaccedilatildeo do teatro de atores eacute algo que se complica no fato de que os bonecos afinal de

contas natildeo satildeo humanos

Vamos tambeacutem contemplar a questatildeo da recriaccedilatildeo do teatro de atores pelo boneco de

uma perspectiva global Entre os exemplos oferecidos na introduccedilatildeo apenas a apresentaccedilatildeo

britacircnica de ldquoPunch and Judyrdquo pode ser identificada como uma recriaccedilatildeo atualizada e

miniaturizada de uma tradiccedilatildeo de teatro de atores que eacute a commedia dellacutearte E de fato

como enfatiza Speaight a tradiccedilatildeo do Punch assumiu a sua forma claacutessica apenas quando

combinou suas raiacutezes da commedia dellacutearte com fontes nativas da Inglaterra o que muito

provavelmente foi de maior significacircncia para as suas estruturas e caracterizaccedilotildees (1990

[1955] 218-30) Pode-se retorquir que as tradiccedilotildees de teatro de bonecos representadas pelos

exemplos da Nigeacuteria Java Japatildeo e Iacutendia precediam ou eram contemporacircneas de tradiccedilotildees

locais de teatros com atores Mas como Malkin aponta em sua uacuteltima questatildeo ldquoUma histoacuteria

completa do teatro na Iacutendia seria de forma mais ampla uma histoacuteria das diversas e complexas

formas de teatros de bonecos na Iacutendiardquo (1975 4) Questotildees semelhantes podem ser postas em

relaccedilatildeo a diversas tradiccedilotildees de teatro de bonecos natildeo-ocidentais A conclusatildeo trivial de que o

teatro de bonecos eacute uma imitaccedilatildeo do teatro de atores eacute verdadeira talvez para grande parte do

teatro de bonecos europeu de tempos passados Natildeo eacute verdadeira no entanto para o

fenocircmeno geral do boneco o teatro de bonecos aparece comumente como algo original em si

e natildeo como um derivativo do teatro de atores

Mas como sugere Maliacutek a recriaccedilatildeo em miniatura do teatro de atores natildeo se constitui

num problema imediato uma vez que jaacute natildeo eacute mais tatildeo praticada nos dias de hoje quando o

cinema e a televisatildeo levam regularmente apresentaccedilotildees dramaacuteticas aos mais remotos rincotildees

do mundo Pode-se encontrar concordacircncia quase universal com a proposiccedilatildeo oferecida pela

pioneira artista de teatro de bonecos russa Nina Efiacutemova ldquoO teatro de bonecos natildeo deveria

ser nunca nunca ser uma reproduccedilatildeo em miniatura do teatro grande pois possui suas

proacuteprias leis dadas por suas condiccedilotildees especiacuteficasrdquo (1935 106)

263

Mais que isso o problema que se percebe desde a virada do seacuteculo XX tem se dado

com o boneco como uma imitaccedilatildeo da vida humana Tal imitaccedilatildeo pode ser caracterizada como

o desejo de do artista de teatro de bonecos de que o boneco seja tatildeo realista quanto eacute possiacutevel

em termos de forma movimento e fala Vsevolod Meyerhold num ensaio no qual implora aos

atores para que ldquoencontrem espaccedilo para a criatividade pessoalrdquo faz essa longa menccedilatildeo ao

boneco

Haacute dois teatros de bonecos o diretor do primeiro quer que seus bonecos se

pareccedilam e se comportem como seres humanos Em suas tentativas de

reproduzir a realidade ldquocomo ela realmente eacuterdquo ele aperfeiccediloa os bonecos

mais e mais ateacute que finalmente chega a uma soluccedilatildeo bem mais simples para

o problema substitui os bonecos por pessoas de verdade

O outro diretor se daacute conta de que o seu puacuteblico aprecia os

movimentos e posturas [do boneco] que apesar de todas as tentativas desse

reproduzir a vida sobre a cena natildeo consegue assemelhar-se agravequilo que o

espectador encontra na vida comum

Eu descrevi esses dois teatros de bonecos de modo a fazer com que o

ator reflita se quer assumir o papel do boneco subserviente ou se prefere

fazer um teatro como aquele no qual o boneco se manteve fiel a si mesmo e

natildeo se rendeu aos esforccedilos do diretor em transformaacute-lo em outra coisa O

boneco natildeo quis se transformar numa reacuteplica exata do ser humano porque o

mundo do boneco eacute uma terra fantaacutestica de faz-de-conta e o homem que ele

representa eacute tambeacutem um homem de faz-de-conta (1969 [1913] 128-9)

Se o valor da imitaccedilatildeo da vida foi uma vez aceito de maneira geral por artistas de bonecos e

se ainda permanece uma tendecircncia nesse sentido no teatro de bonecos de hoje em dia como

reclama Maligravek ainda assim muitos artistas de teatro de bonecos e estudiosos satildeo unacircnimes

em depreciaacute-la Como escreve Larry Engler um reconhecido inteacuterprete norte americano

Bonecos que tentam imitar os movimentos humanos frequentemente criam

uma sensaccedilatildeo de realismo superficial Uma vez esgotada essa sensaccedilatildeo de

novidade a plateia passa a perceber as diferenccedilas entre as accedilotildees humanas e

as do boneco Bonecos que criam ilusatildeo de vida por meio de movimentos

exclusivos para tais construccedilotildees conseguem mais facilmente encorajar uma

plateia no sentido de aceitar a existecircncia viva de um objeto de fato

inanimado (1973 16)

Baird declara com ainda maior ecircnfase ldquoQuando marionetistas tentam copiar o animal

humano fracassam A coacutepia mecacircnica da vida pode ser surpreendente curiosa ou mesmo

amedrontadora mas natildeo viva ao passo que a sugestatildeo contida num boneco pode ser plena de

vidardquo (1965 15)

Engler e Baird estatildeo claramente corretos ao sugerirem que as possibilidades para o

teatro de bonecos satildeo limitadas quando a intenccedilatildeo eacute simplesmente imitar e que o teatro de

bonecos eacute bem mais viacutevido quando se encontra livre para ldquocriar a ilusatildeo de vidardquo por meio de

sugestatildeo Entretanto deve ser recordado que em meio a tantas limitaccedilotildees teatrais o boneco

264

imitativo eacute capaz de provocar prazer natildeo apenas por meio da verossimilhanccedila de sua imitaccedilatildeo

mas por meio da proacutepria accedilatildeo de imitar onde se incluem mesmo as suas falhas de

verossimilhanccedila A plateia eacute livre para aproveitar a tentativa da cena dramaacutetica bem como a

proacutepria cena dramaacutetica

A capacidade do boneco de representar por meio da imitaccedilatildeo natildeo eacute apenas algo

limitador para o teatro de bonecos eacute tambeacutem apenas um aspecto limitado do teatro de

bonecos Tais imitaccedilotildees podem ser uacuteteis em saacutetiras e paroacutedias como no exemplo vindo da

Nigeacuteria onde tais elementos satildeo centrais para a apresentaccedilatildeo mas mesmo em saacutetira e paroacutedia

natildeo satildeo sempre encontradas como vemos em ldquoPunch and Judyrdquo onde apesar do emprego da

paroacutedia no espetaacuteculo natildeo haacute um a tentativa de imitaccedilatildeo realiacutestica

E eacute claro o desejo da verossimilhanccedila certamente natildeo se encontra em todas as

apresentaccedilotildees com bonecos como se mostra nos exemplos do Japatildeo Iacutendia e Java O

espetaacuteculo japonecircs repudiou a imitaccedilatildeo da realidade ao permitir agrave plateia ver os

movimentadores e vocalizadores dos bonecos e fazendo esses bonecos moverem-se e falarem

de maneira altamente formalizada Os espetaacuteculos javanecircs e indiano repudiaram tais imitaccedilotildees

ao permitirem que bonecos fora da cena pendessem sem vida agrave plena vista da plateia Ainda

no espetaacuteculo indiano eram conferidas aos bonecos falas distorcidas e artificiais e no

espetaacuteculo javanecircs exibiam uma forma de movimentaccedilatildeo altamente estilizada

Deve ser lembrado que o tema da fantasia eacute juntamente com a saacutetira e a paroacutedia um

dos quais o boneco eacute particularmente adepto e enquanto a saacutetira e a paroacutedia apoiam-se na

imitaccedilatildeo ainda que de uma forma exagerada e distorcida dificilmente se poderia dizer que a

fantasia envolve alguma imitaccedilatildeo da realidade O Diabo aparece ao final da apresentaccedilatildeo de

ldquoPunch and Judyrdquo um ogre no espetaacuteculo indiano e nuacutemeros ldquovivosrdquo na peccedila norte

americana podem personagens como esses serem realmente imitados de forma significativa

Miles Lee um artista da Gratilde Bretanha desenvolve o argumento de Meyerhold de que

haveria duas formas de aproximaccedilatildeo do teatro de bonecos A primeira baseada na imitaccedilatildeo ao

passo que ldquoa outra eacute impressioniacutestica Sua meta natildeo eacute apresentar uma imagem fotograacutefica

mas uma interpretaccedilatildeo Isso se alcanccedila por meio de seleccedilatildeo exagero e distorccedilatildeo de

caracteriacutesticas significantes Natildeo existe para conquistar aprovaccedilatildeo por sua esperteza teacutecnica

mas para expressar uma ideacuteia ou emoccedilatildeo poeacuteticardquo (1958 35)

Essa ldquooutrardquo aproximaccedilatildeo de Lee se aproxima do ldquooutrordquo teatro de bonecos de

Meyerhold e eacute aquela que a maioria dos teatros de bonecos contemporacircneos e grande parte

do teatro de bonecos em culturas natildeo-europeacuteias escolheram seguir A palavra

impressioniacutestica entretanto natildeo recebeu uma aceitaccedilatildeo incondicional como descriccedilatildeo dessa

265

aproximaccedilatildeo De fato nenhuma palavra adquiriu tal aceitaccedilatildeo Vimos anteriormente que

Obrastzov escreveu sobre o boneco como uma generalizaccedilatildeo ao passo que outros referem-se

ao boneco com um siacutembolo Stancho Gerdjikov antigo diretor do Teatro de Bonecos de Soacutefia

(Bulgaacuteria) oferece ainda outro termo quando escreve que ldquoo boneco possui uma vantagem

incontestaacutevel sobre todos os outros atores suas possibilidades inatas e ilimitadas para a

estilizaccedilatildeordquo (1967 [1965] 42)

Seria apenas justo perceber de passagem que essa natildeo eacute uma ldquovantagem

incontestaacutevelrdquo pois de fato eacute uma diferenccedila entre as forccedilas relativas de bonecos e atores

vivos Natildeo fica claro se Gerdjikov pretende levar o argumento tatildeo longe quanto o fez Craig

que sugere que ldquoo corpo do homem eacute por natureza totalmente inuacutetil enquanto material para

uma arterdquo (1911 61) Se eacute faacutecil apontar as limitaccedilotildees do ator vivo eacute igualmente simples

sugerir as limitaccedilotildees comensuraacuteveis do boneco Mas sem forccedilar ateacute extremos a questatildeo ainda

seria bem aceita as ldquopossibilidades para a estilizaccedilatildeordquo satildeo certamente inerentes ao boneco

pois o artista eacute livre pra criar o boneco como bem escolher

Os termos impressionismo generalizaccedilatildeo simbolismo e estilizaccedilatildeo satildeo todos

destinados a descrever a aproximaccedilatildeo nominativa do tetro de bonecos mas o que estaacute sendo

de fato descrito Seria justo analisar os meios pelos quais operam tanto a aproximaccedilatildeo

imitativa quanto essa ldquooutrardquo

A imitaccedilatildeo da vida deveria conter os sinais abstratos que constituem o boneco

apresentado da maneira mais realiacutestica possiacutevel tanto em quantidade quanto em qualidade

Dessa maneira a forma de um boneco imitativo de um ser humano possuiriam os detalhes

anatocircmicos apropriados tais como olhos nariz membros e assim por diante representados e

proporcionados de forma semelhante agrave da vida A movimentaccedilatildeo desse boneco seria tatildeo

desprovida de evidecircncias de seus aspectos mecacircnicos quanto fosse possiacutevel para que

parecesse que o proacuteprio boneco fosse responsaacutevel pelas suas motivaccedilotildees e incluiacutesse um

nuacutemero de detalhes tatildeo grande ndash tais como olhos moacuteveis boca que se movesse matildeos que

pudessem agarrar ndash quanto fosse possiacutevel Finalmente a fala desse boneco seria a fala normal

de um ser humano apropriada para ele dita de tal maneira que o proacuteprio boneco parecesse o

responsaacutevel por sua elocuccedilatildeo

A ldquooutrardquo maneira de considerar o boneco ndash impressioniacutestica simbolista e assim por

diante ndash evita intencionalmente a tentativa da imitaccedilatildeo mas natildeo apresenta nenhum meio novo

ou diferente para fazecirc-lo Os signos abstratos de vida entre os trecircs sistemas de signos de

forma movimento e fala permanecem sendo os meios pelos quais o boneco faz parecer

possuir vida Nessa ldquooutrardquo consideraccedilatildeo entretanto natildeo se dota esses signos de uma

266

qualidade realiacutestica os olhos podem ser bototildees alaranjados as matildeos grosseiramente

superdimensionadas a movimentaccedilatildeo pode ser obviamente mecacircnica a fala apresentada por

uma fonte obviamente externa Tambeacutem os signos abstratos de vida natildeo se apresentam em

uma quantidade realiacutestica a cabeccedila pode consistir em nada aleacutem de uma esfera com uma

indicaccedilatildeo de um nariz as pernas podem simplesmente natildeo existir ao boneco pode ser

permitida apenas possibilidades limitadas de movimentos e fala ou tecirc-las inteiramente

negadas

Essas entatildeo satildeo as diferenccedilas entre as duas formas de aproximaccedilatildeo a consideraccedilatildeo

imitativa emprega signos abstratos de vida em tais qualidade e quantidade de modo a simular

vida da maneira mais aproximada possiacutevel a ldquooutrardquo consideraccedilatildeo usa os signos abstratos de

vida em qualidade variada e quantidade limitada dando a perceber que uma simulaccedilatildeo

verdadeira eacute algo impossiacutevel

Seguindo a partir dessa anaacutelise se uma das formas de aproximaccedilatildeo eacute chamada de

imitativa a outra poderia ser chamada de conceitual pois que nela o boneco dispotildee de signos

abstratos de vida numa qualidade que apresenta em conceito sinais de vida mais realiacutesticos e

em uma quantidade que apresenta o conceito do quociente inteiro dos signos realiacutesticos

Todos os diversos termos usados para aquilo que eacute considerado boneco recaem

essencialmente sobre a capacidade conceitual do boneco em oposiccedilatildeo agrave sua capacidade

imitativa

Mas a polaridade existente entre essas duas consideraccedilotildees que parece existir

independente daquilo que chamamos a ldquooutrardquo consideraccedilatildeo eacute falsa e surge apenas do desejo

de algumas pessoas envolvidas com teatro de bonecos em anatematizar a imitaccedilatildeo De fato os

meios disponiacuteveis a todos os artistas de teatro de bonecos satildeo os mesmos a qualidade e a

quantidade de signos abstratos Bonecos imitativos e conceituais natildeo passam de extremidades

daquilo que pode ser chamado o continuum de representaccedilatildeo do boneco A localizaccedilatildeo de

qualquer boneco em meio a esse continuum depende daqualidade e quantidade dos signos

abstratos nos quais o artista investe

Uma explicaccedilatildeo para o boneco baseada em sua natureza representacional segue a

partir dessa anaacutelise Em cada um dos exemplos de apresentaccedilotildees apresentados anteriormente

os bonecos muito certamente representam por meio da qualidade e da quantidade de seus

signos abstratos personagens que se situam no continuum em algum lugar entre o imitativo e

o conceitual Como representaccedilotildees os bonecos satildeo investidos de certa qualidade e quantidade

de signos abstratos e tal investidura encoraja a plateia a imaginar os bonecos como

possuidores de vida

267

Uma explicaccedilatildeo do boneco como representaccedilatildeo tambeacutem apresenta a virtude de sugerir

uma forma baacutesica na qual o teatro de bonecos se distingue do teatro de atores vivos Como

sugerem Gerdjikov e outros o artista de animaccedilatildeo pode investir o boneco com indicaccedilotildees

abstratas de vida na qualidade e na quantidade que bem escolher o ator vivo pode assumir

maneirismos e negligenciar aspectos das possibilidades significativas da atuaccedilatildeo mas natildeo

obstante se encontra limitado nas escolhas que podem ser feitas pois natildeo lhe eacute dada a

possibilidade de escapar agrave fisiognomonia100

humana A aparecircncia do ator pode ser

determinada ateacute o limite das artes da maquiagem e do vestuaacuterio os movimentos do ator

podem ocorrer apenas ateacute o ponto em que seus muacutesculos e ossos lhe permitirem ainda que

com a ajuda de dispositivos mecacircnicos a fala do ator pode ser apresentada apenas com um

certo limite de possibilidades de variaccedilatildeo e em geral eacute apresentada apenas pelo proacuteprio ator

Ainda mais importante o ator vivo apesar de todos os esforccedilos possiacuteveis permanece

sendo nada aleacutem de um ator algueacutem que finge ser outra pessoa Obrastzov sugere que o poder

do boneco ldquorepousa no proacuteprio fato de sua inanimidade Em cena um homem pode

apresentar outro homem mas natildeo pode apresentar a humanidade em geral por ser ele

mesmo um homem O boneco natildeo eacute um homem e por esse mesmo motivo ele consegue

apresentar uma imagem geral da humanidaderdquo (1967 [1965] 19) Eacute essa capacidade

representativa geral do boneco bem como a sua capacidade de representar por meio de signos

abstratos que certa vez chamou atenccedilatildeo de Maurice Maeterlink que ldquopercebeu que atores

humanos como eram limitados por suas caracteriacutesticas fiacutesicas natildeo eram veiacuteculos apropriados

para carregar as figuras arquetiacutepicas com as quais ele povoava o seu palcordquo (Knapp 1975

77)

Seria a natureza particular do boneco como objeto representacional a uacutenica qualidade

que explicaria o seu encanto duradouro Talvez seja um dado necessaacuterio para tal explicaccedilatildeo

mas natildeo suficiente

Onde quer que os signos apresentados pelo boneco possam estar no continuum da

representaccedilatildeo a percepccedilatildeo da plateia sobre o boneco permanece inalterada Os poderes de

representaccedilatildeo do boneco o permitem representar personagens do mundo real e do mundo

imaginaacuterio por meio da qualidade e da quantidade dos seus signos abstratos de vida Mas

determos nossa atenccedilatildeo sobre o boneco como um ldquoobjetordquo constituiacutedo a partir desses signos

tanto em particular quanto em geral natildeo o credita como sendo uma personagem dramaacutetica

ldquovivardquo Sugerir que o encanto duradouro do boneco pode ser explicado por sua capacidade de

100

NT Fisiognomonia a leitura de qualidades de comportamento e personalidade de um indiviacuteduo por meio de

seus traccedilos fisionocircmicos

268

representar a vida solicita a pergunta de porque a plateia estaacute disposta a traduzir as

representaccedilotildees do boneco em vida

Embora tenhamos identificado uma maneira particular de representaccedilatildeo como sendo

uma constante para toda a apresentaccedilatildeo de um boneco essa constante por si soacute natildeo consegue

a uacutenica qualidade que explica o apelo do boneco O teatro de bonecos envolve algo mais que

apenas a capacidade representativa do boneco E esse algo se refere agrave imaginaccedilatildeo de vida que

a plateia confere ao boneco

EXPLICACcedilOtildeES BASEADAS NA PLATEacuteIA

A plateia de uma apresentaccedilatildeo de teatro de bonecos faz algo que parece mediante

alguma anaacutelise extraordinaacuterio durante a apresentaccedilatildeo ela escolhe imaginar ao menos em

certo grau que os objetos apresentados sobre a cena possuem vida Como jaacute vimos o boneco

encoraja esse ato de imaginaccedilatildeo fazendo uso de signos abstratos de vida Mas a imaginaccedilatildeo

de vida natildeo acompanha necessariamente a representaccedilatildeo da vida Talvez a qualidade

distintiva que pode explicar o encanto duradouro do boneco diga respeito agrave disposiccedilatildeo da

plateia a realizar o salto que vai da percepccedilatildeo de abstraccedilotildees representativas ateacute a imaginaccedilatildeo

de vida

McPharlin menciona duas soluccedilotildees tradicionais a esse problema antes de apresentar

uma de sua proacutepria lavra

O boneco tem exercitado uma fascinaccedilatildeo sobre a humanidade desde a

invenccedilatildeo do teatro Isto pode possuir certa relaccedilatildeo com o sentimento

maternal se bonecos satildeo bonecas que escaparam do berccedilaacuterio para subir ao

palco Como acreditava Charles Nodier [Revue de Paris novembro 1842]

pode ter alguma relaccedilatildeo com a reverecircncia religiosa se eles satildeo descendentes

das imagens divinas como preferia pensar Charles Magnin [Magnin 1862]

Mas quando os bonecos se tornam vivos em seus teatros o encanto

arrebatador que exercem eacute da ordem do teatro e do teatro apenas (1938 1)

Seraacute melhor se comeccedilarmos com a soluccedilatildeo de McPharlin de que ldquoo encanto arrebatador do

boneco eacute o do teatro apenasrdquo Num trabalho posterior ele elabora a sua visatildeo ldquoQuando os

bonecos tomam vida deixa-se de pensar em madeira e fios passa-se a ser absorvido para

dentro da accedilatildeo A plateia aceitando as convenccedilotildees do boneco projeta-se a si mesma neles

com o mesmo tipo de empatia que poderia sentir por atores vivosrdquo (1949 1) Assim a ldquovidardquo

do boneco natildeo eacute de fato algo problemaacutetico em qualquer sentido mas eacute meramente a

aceitaccedilatildeo de uma convenccedilatildeo teatral particular

Podemos assim ser remetidos a uma famosa declaraccedilatildeo de Coleridge a respeito de

poesia

269

Meus esforccedilos [satildeo] direcionados a pessoas e personagens que satildeo

sobrenaturais ou ao menos romacircnticos de modo a transferir de nossa

natureza interior um interesse humano e uma semelhanccedila com a verdade

suficientes para se obter dessas sombras da imaginaccedilatildeo aquela suspensatildeo

voluntaacuteria da descrenccedila para aquele momento em que se constitui a feacute

poeacutetica (1951 [1817] 527)

McPharlin parece ter essa ldquosuspensatildeo voluntaacuteria da descrenccedilardquo em mente quando sugere que a

audiecircncia ldquoaceitando a convenccedilatildeo dos bonecosrdquo deixe de pensar na natureza verdadeira dos

bonecos mas ldquoprojete-se a si mesma neles com a mesma empatia que sentiria por qualquer

ator vivordquo

Coleridge cunhou o termo ldquosuspensatildeo da descrenccedilardquo para descrever a sua proacutepria

poesia em oposiccedilatildeo agrave de William Woodsworth ele mais tarde aplicou essa noccedilatildeo em seus

trabalhos sobre teatro Em sua pesquisa Theories of the Theatre (Teorias do teatro) Marvin

Carlson menciona que Coleridge in ldquoProgress of the Dramardquo

fala de uma ldquocombinaccedilatildeo de vaacuterias ou de todas as belas artes para um todo

harmonioso dotado de uma finalidade proacutepriardquo sendo essa finalidade a de

imitar a realidaderdquo (objetos accedilotildees ou paixotildees) sob uma aparecircncia da

realidaderdquo A palavra chave eacute ldquosemelhanccedilardquo e esta solicita certa

contribuiccedilatildeo por parte do espectador Peccedilas teatrais ldquodevem produzir uma

espeacutecie de feacute parcial temporaacuteria que o espectador estimula em si mesmo e a

sustenta por meio de uma contribuiccedilatildeo voluntaacuteria de sua proacutepria parterdquo

(1984 221)101

Para McPharlin essa ldquosuspensatildeo voluntaacuteria da descrenccedilardquo ou ainda ldquouma feacute parcial

temporaacuteriardquo trabalha em duas etapas a plateia aceita o boneco como se fosse um ator vivo

da mesma forma como o ator eacute aceito no curso da representaccedilatildeo de uma determinada

personagem assim o boneco-como-ator-vivo eacute aceito como se fosse a personagem

representada

McPharlin quer legitimar o boneco como sendo um instrumento do teatro e sente

talvez que tal legitimaccedilatildeo apenas se sustentaraacute se a distinccedilatildeo entre o boneco e o ator vivo for

abolida A plateia certamente consegue sentir tanta empatia pelo boneco quanto pode sentir

pelo ator vivo mas seraacute que a plateacuteia consegue ldquoparar de pensar em madeira e fiordquo Coleridge

sugere que no teatro de atores a plateia o ator sem dificuldade como sendo o personagem

representado McPahrlin sugere igualmente que no teatro de bonecos o puacuteblico aceita o

boneco sem dificuldades como sendo o personagem representado A sugestatildeo de Coleridge

jaacute eacute suficientemente problemaacutetica McPharlin solicita agrave plateia que negue o que estaacute

101

A passagem foi traduzida em cotejamento com a versatildeo em portuguecircs do livro mencionado CARLSON

Marvin Teorias do teatro Estudo histoacuterico-criacutetico dos gregos agrave atualidade traduccedilatildeo Gilson Ceacutesar Cardozo

de Souza Satildeo Paulo Ed da UNESP 1997 (Prismas) p215

270

claramente diante de seus olhos No teatro de atores uma pessoa representa outra pessoa

enquanto que no teatro de bonecos um objeto representa uma pessoa o modo de

representaccedilatildeo eacute fundamentalmente diferente

O poder da convenccedilatildeo teatral natildeo eacute algo sem limite e se parece exagerado sugerir que

qualquer plateia negaria o que estaacute diretamente diante de si parece absurdo sugerir que toda

plateia estaria disposta a cometer tal negaccedilatildeo Como jaacute foi indicado a substituiccedilatildeo do ator

pelo boneco pode ser qualquer coisa menos neutra nenhum membro de uma plateia que

tenha passado da idade de cinco anos seria capaz de relevar completamente o fato essencial de

que natildeo possui vida realmente Por essa razatildeo a soluccedilatildeo de McPharlin de que a plateia aceita

o boneco por convenccedilatildeo e responde a ele como responderia a um ator vivo natildeo pode ser

suportada

Eacute possiacutevel tambeacutem aproximar-se dessa questatildeo por outra direccedilatildeo Se como argumenta

McPharlin natildeo haacute diferenccedila fundamental entre o reconhecimento do ator e o do boneco por

parte da plateia entatildeo o que se ganha com o uso do boneco em lugar do ator A pergunta

torna-se especialmente aguda quando bonecos satildeo empregados em dramas escritos para

atores como em drama shakespeariano Porque deveria o artista escolher usar bonecos e o

puacuteblico desejar assistir bonecos se a peccedila eacute sabida como algo que funciona perfeitamente

bem com atores Apenas algum tipo de diferenccedila fundamental existente entre o ator e o

boneco pode explicar o impulso de empregar um ao inveacutes de outro Os poderes da convenccedilatildeo

certamente tecircm lugar no teatro de bonecos mas natildeo da mesma maneira como o faz no teatro

de atores vivos

Haacute uma variaccedilatildeo interessante do argumento sobre a convenccedilatildeo que estaacute

impliacutecito natildeo apena em McPharlin mas em algumas das soluccedilotildees discutidas anteriormente

Essa variaccedilatildeo sustenta que no mundo convencional artificial do teatro apenas um ator

convencional e artificial seria apropriado

Quando um ator vivo se encontra cercado por o que obviamente natildeo passa de adereccedilos

e paineacuteis ele ou ela pode parecer bastante ridiacuteculo levando a seacuterio situaccedilotildees que poderiam

natildeo ser compartilhadas com nenhuma plateia aqui de fato demanda-se alguma suspensatildeo

voluntaacuteria da descrenccedila e aqui reside um problema usual da representaccedilatildeo teatral viva As

soluccedilotildees tendem a seguir um ou outro caminho tornar todo o material de cena o mais

realiacutestico possiacutevel ou dispensaacute-lo por completo apoiando em contrapartida em descriccedilotildees

sugestivas e miacutemica Mas aqui restam as limitaccedilotildees de ordem praacutetica para se encenar de modo

realiacutestico por um lado ao passo que por outro lado a completa ausecircncia de objetos e cenaacuterios

pode legar ao ator um olhar vazio em meio a um palco nu

271

Outra soluccedilatildeo que remete agrave trageacutedia grega eacute apresentar o ator da maneira mais

irrealiacutestica possiacutevel por meio do emprego de elementos tais como maacutescaras e figurino De

fato tal forma de apresentaccedilatildeo excede a mera aparecircncia do ator como sugere o estudioso

claacutessico John Jones ldquoa funccedilatildeo fundamental do chamado megafone na maacutescara dramaacutetica

grega eacute certamente a de alterar a voz e natildeo de amplificaacute-lardquo (1980 [1962] 44) A questatildeo

permanece no entanto de que o ator vivo eacute algo de uma natureza diferente do seu entorno

teatral o ator eacute um indiviacuteduo vivo embora seja algueacutem que finge ser outra pessoa enquanto

isso o entorno da cena permanece resolutamente teatral

Laacuteszloacute Halaacutesz um psicoacutelogo associado ao Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste

sugere que ldquoa contradiccedilatildeo sempre presente entre o ator vivo lsquonaturaliacutesticorsquo e os cenaacuterios anti-

naturaliacutesticos criados pelos artistas cessa de existir no universo dos bonecos aqui a

personagem anti-naturaliacutestica do boneco e as cercanias anti-naturaliacutesticas fundem-se em

perfeita harmoniardquo (1978 59) A retirada da realidade que o boneco empreende se encontra

em harmonia com a retirada da realidade empreendida pelo entorno de cena que o

compreende Esta pode ser a qualidade que explica a persistecircncia do boneco o boneco se

conforma intrinsecamente agrave artificialidade do teatro onde por convenccedilatildeo a plateia estaacute

disposta a imaginar o boneco como possuidor de uma vida da mesma maneira como estaacute

disposta a imaginar o ambiente da cena teatral como a representaccedilatildeo da realidade da peccedila

Em meio aos exemplos dados anteriormente as mais sofisticadas das produccedilotildees

cedem creacutedito a essa soluccedilatildeo tanto nas apresentaccedilotildees japonesa quanto norte americana

mundos teatrais exclusivos se estabeleceram integrando bonecos e ambientes das cenas de

uma forma que natildeo poderia ser duplicada pelo teatro de atores Os menos sofisticados dos

nossos exemplos entretanto expuseram uma seacuteria limitaccedilatildeo para o nosso argumento nem na

apresentaccedilatildeo inglesa nem na nigeriana foram criados quaisquer ambientes teatrais

substanciais pois em cada um desses casos o emprego de adereccedilos eou cenaacuterio era

severamente limitado Se pouco ambiente de cena eacute criado como pode a integraccedilatildeo do

boneco com esse ambiente ser de importacircncia central

Deszouml Szilaacutegyi diretor e ldquoteoacutericordquo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste

argumenta que a integraccedilatildeo natildeo eacute de fato uma explicaccedilatildeo suficiente

Por muito tempo se argumentou que o teatro de bonecos era a arte integrada

ideal De fato esta fornece um prazer particular para o espectador Mas

o preacute requisito baacutesico para tal apreciaccedilatildeo esteacutetica refinada eacute a existecircncia de

uma cultura apropriada Se eacute assim entatildeo por quecirc o boneco alcanccedila um

impacto tatildeo poderoso e elementar sobre as plateias menos sofisticadas

sobretudo com crianccedilas A resposta deve ser porque no teatro de bonecos

272

natildeo eacute a experiecircncia esteacutetica que se constitui no fator primordial e sim o

impacto psicoloacutegico imediato exercido pelo boneco (1967 [1965] 35)

Szilaacutegyi emprega o termo ldquoexperiecircncia esteacuteticardquo como se isso fosse algo que decorresse

apenas de vasta sofisticaccedilatildeo o termo pode ser empregado num sentido mais simples e mais

fundamental Sua conclusatildeo entretanto eacute bem realizada o teatro de bonecos pode fazer

grande uso ndash sem no entanto necessitar ndash da integraccedilatildeo entre as convenccedilotildees do boneco e do

teatro Mais que isso o boneco exerce um impacto psicoloacutegico mais amplo sobre qualquer

tipo de plateia sofisticada ou natildeo Tal impacto deve ser reconhecido nas duas teorias

mencionadas por McPharlin apenas para desconsiderar sem maiores comentaacuterios o boneco

como ldquodescendente das imagens divinasrdquo e o boneco como o brinquedo que ldquoescapou do

berccedilaacuteriordquo

O argumento de que o boneco deve seu encanto duradouro agrave sua derivaccedilatildeo da figura

religiosa recebe seu apoio mais entusiasmado vindo de Craig ldquoHoje no periacuteodo menos

auspicioso [para o boneco] muitas pessoas se referem a ele como sendo uma boneca de certo

modo superior ndash por pensar que este se desenvolveu a partir da boneca Isso eacute incorreto Ele eacute

um descendente das imagens de pedra dos antigos templos ndash ele eacute hoje uma forma um tanto

degenerada de deusrdquo (1911 82)

Esse argumento a respeito da descendecircncia do boneco eacute discutiacutevel Sem duacutevida

diversas culturas tecircm usado figuras inanimadas para adoraccedilatildeo e ritual pode-se duvidar

entretanto se a figura religiosa que se move e fala seria de fato a progenitora do boneco ou se

seria apenas uma figura com fala e movimento de certa forma similar ao boneco Natildeo

obstante a similaridade oacutebvia entre os dois sugere que a figura religiosa teria de fato

emprestado ao boneco algo de sua aura sagrada

Certos tipos de bonecos parecem ser de fato reminiscentes da figura religiosa a

estatura delicadamente formal dos bonecos maiores-que-pessoas ou quase-tatildeo-grande-quanto-

pessoas pode sugerir a presenccedila da deidade o movimento lento e majestoso do boneco de fio

pode sugerir a dignidade do divino e a apariccedilatildeo oscilante do boneco de sombras pode sugerir

a sombra de um deus sobre a face da terra A grande pequenez do boneco de luva entretanto

com sua inclinaccedilatildeo para atividades raacutepidas e impetuosas torna mais complicado imaginar o

boneco de luva como dotado de tal tipo de elevaccedilatildeo assim terminamos por tomaacute-los por

algum tipo de duende ou democircnio

Ou talvez natildeo seja uma semelhanccedila fiacutesica entre o boneco e a figura religiosa o que os

aproxime mas quem sabe alguma uma associaccedilatildeo metafoacuterica como o deus concede a vida e

exercita controle sobre a humanidade assim a humanidade concede e controla a ldquovidardquo do

273

boneco Isto conduz para bem distante das especulaccedilotildees antropoloacutegicas de Craig mas parece

ser mais convincente Ainda que muitas plateias em teatros de bonecos natildeo sejam constituiacutedas

por pessoas com grande envolvimento com figuras religiosas de quem dificilmente se

esperaria que reconhecessem no boneco qualquer origem ritualiacutestica ou de idolatria todas

essas pessoas possuem alguma noccedilatildeo ainda que atenuada do poder dos deuses em dar a vida

e de controlaacute-la e poderiam associar o boneco a tal

O problema com o argumento associativo eacute que natildeo eacute suficientemente amplo a ponto

de acomodar a diversidade do teatro de bonecos Tais limitaccedilotildees estatildeo apresentadas em

nossos exemplos da Nigeacuteria e da Inglaterra O primeiro com sua ecircnfase na saacutetira e o

segundo com suas travessuras ultrajantes parecem surdos a quaisquer interpretaccedilotildees

religiosas mesmo tendo na lembranccedila a batalha de Punch com o democircnio Seriam as plateias

conduzidas a refletir sobre o divino por meio das representaccedilotildees satiacutericas licenciosas de

coacutepulas e de representaccedilotildees grosseiramente cocircmicas de assassinato

Se a suposta descendecircncia religiosa do boneco eacute algo nobre a suposta ascensatildeo do

boneco da boneca do berccedilaacuterio eacute desafortunadamente ignoraacutevel Tal ascensatildeo sugeriria para

Craig bem como para outros que o boneco natildeo seria muito mais que um brinquedo

desenvolvido Agrave luz disso a maioria dos artistas de teatro de animaccedilatildeo atribuiriam ao

argumento pouca credibilidade e seguiriam McPharlin e Craig ao oferecem nada aleacutem de

poucas palavras depreciativas antes de seguirem adiante

Tal como o argumento sobre a figura religiosa o que trata do encanto duradouro do

boneco como algo que se deve agrave derivaccedilatildeo do boneco a partir da boneca infantil natildeo

apresenta em uacuteltima apreciaccedilatildeo qualquer prova de que o boneco literalmente ascendeu da

boneca Tal ascendecircncia eacute tatildeo provaacutevel ou improvaacutevel quanto a descendecircncia da figura

religiosa Mais que isso o argumento se encontra baseado nas similaridade oacutebvias entre certos

tipos de bonecos com a boneca infantil e sugere que a boneca poderia haver emprestado ao

boneco algo do seu encanto pessoal

Anteriormente quando analisaacutevamos as definiccedilotildees de boneco teatral foi feita uma

distinccedilatildeo entre o boneco e a boneca sob o fundamento do uso teatral do boneco tal distinccedilatildeo

natildeo nega as similaridades entre os dois mas aponta suas funccedilotildees distintas com a boneca

apresentando apenas uma funccedilatildeo de natureza privada Ainda resta ser visto se o apelo do

boneco pode ser uma derivaccedilatildeo do apelo da boneca

Alguns tipos de bonecos parecem ser especialmente reminiscecircncias da boneca o

tamanho reduzido e os movimentos simples do boneco de luva pode evocar agrave plateia certa

lembranccedila de brinquedos infantis bonecos de vara e bonecos que combinam vara e luva

274

embora maiores ainda sim apresentam escala reduzida em relaccedilatildeo ao tamanho do ser

humano Mas outros tipos de bonecos parecem desafiar tal reminiscecircncia Pequenez de fato

natildeo eacute uma caracteriacutestica estanque do boneco bonecos de dimensotildees quase humanas ou

maiores dificilmente seriam considerados assemelhados agrave bonecas e tendem a ser qualquer

coisa menos atraentes Ainda a distacircncia fiacutesica existente entre o operador do boneco e a

marionete que tambeacutem ocorre com outros tipos de bonecos parece ser diferente da relaccedilatildeo de

proximidade estabelecida entre a crianccedila e sua boneca

Ou talvez natildeo seraacute qualquer semelhanccedila fiacutesica entre o boneco e a boneca o que os une

na imaginaccedilatildeo mas antes uma associaccedilatildeo metafoacuterica similar agrave verificada na anaacutelise do

argumento acerca da figura religiosa como a crianccedila acredita e exerce controle sobre a vida

encantada da boneca assim as pessoas acreditam e exercem controle sobre a ldquovidardquo encantada

do boneco teatral Malgrado a pouca consideraccedilatildeo com que se busca sustentar esse

argumento este parece possuir tanta validade quanto o argumento religioso Embora muitos

membros de plateias de teatro de bonecos jaacute tenham deixado de brincar com bonecas haacute

tempos todos tecircm a consciecircncia ainda que atenuada da capacidade de conferir vida e do

poder de controle da imaginaccedilatildeo infantil e pode associar o boneco a essa experiecircncia

O problema com esse argumento associativo eacute que ele tambeacutem eacute insuficientemente

amplo de modo a acomodar a diversidade do boneco Suas limitaccedilotildees estatildeo expostas nos

exemplos das apresentaccedilotildees dos espetaacuteculos japonecircs e norte americano O primeiro com suas

representaccedilotildees de vida insistentemente formais estaacute a mundos de distacircncia do poder

encantatoacuterio da crenccedila infantil ao passo que o segundo apesar de suas representaccedilotildees de vida

emergirem diretamente da imaginaccedilatildeo infantil despreza a ideacuteia mesma de que a crianccedila

possui qualquer controle sobre essas representaccedilotildees Poderiam ser as plateias conduzidas a

lembrarem-se do encanto das bonecas de infacircncia enquanto assistem a uma representaccedilatildeo

intensa de um duplo suiciacutedio ou de uma crianccedila sendo escarnecida pelas figuras da sua

imaginaccedilatildeo

O argumento de que o boneco descende da figura religiosa ou ascendeu da boneca

infantil satildeo em primeira apreciaccedilatildeo mutuamente contraditoacuterios mas como pudemos ver a

verdadeira linhagem do boneco de uma forma ou de outra natildeo eacute algo tatildeo importante quanto

as associaccedilotildees metafoacutericas que boneco enseja agrave sua plateia As associaccedilotildees sugeridas por

esses argumentos satildeo similares pois que ambas dizem respeito agrave imaginaccedilatildeo voluntaacuteria do ser

humano ao controle da ldquovidardquo do boneco por meio de associaccedilotildees tanto com a figura

religiosa quanto com a boneca infantil Embora nenhum desses argumentos sugira qualquer

qualidade que explique o apelo do boneco as associaccedilotildees metafoacutericas subjacentes que

275

compartilham eacute prenhe de significado Na conclusatildeo deste estudo examinaremos mais

detalhadamente a questatildeo da metaacutefora e do boneco por hora seraacute suficiente perceber que o

boneco como metaacutefora agrave humanidade tem sido citado em culturas muito distintas e distantes

em tempo e espaccedilo

Otakar Zich um semioacutetico Tcheco oferece uma anaacutelise da resposta da audiecircncia ao

boneco que conteacutem ecos curiosos desses argumentos acerca do encanto do boneco mas sua

questatildeo eacute de uma natureza inteiramente diferente

Os bonecos podem ser percebidos tanto como pessoas vivas ou bonecas

inertes Como podemos percebecirc-los apenas de uma maneira por vez

deparamo-nos com duas possibilidades

a) Percebemos os bonecos como bonecas [e] enfatizamos seu caraacuteter de

inanimidade Seraacute o material de que eacute feito que nos chamaraacute atenccedilatildeo para o

boneco como algo sobre o que estamos detendo nossa atenccedilatildeo Nesse caso

natildeo conseguimos levar a seacuterio sua fala e seus movimentos portanto os

consideramos cocircmicos e grotescos Noacutes os percebemos como

bonequinhas mas eles nos exigem que os tomemos por pessoas e isso

invariavelmente nos diverte

b) [Ou] podemos conceber os bonecos como se fossem seres vivos por

meio da ecircnfase sob a percepccedilatildeo de suas expressotildees realiacutesticas seus

movimentos sua fala e entendecirc-los como reais Nossa percepccedilatildeo de que o

boneco natildeo estaacute vivo recede e somo assaltados por um sentimento de

alguma forma inexplicaacutevel enigmaacutetico arrebatador Nesse caso os bonecos

parecem agir misteriosamente Aqui nos deparamos com algo totalmente

inatural ndash ou seja vida num material inanimado inorgacircnico (citado em

Bogatyrev 1983 [1973] 48)

A primeira possibilidade de percepccedilatildeo apontada por Zich parece relacionar-se com o

argumento de que a plateia associa o boneco agrave boneca infantil ao passo que a segunda

possibilidade parece relativa agrave argumentaccedilatildeo que a plateia associa o boneco agrave figura religiosa

De fato seu ponto eacute mais sutil ainda que mais dogmaacutetico qualquer que seja a associaccedilatildeo

feita pela plateia o boneco apenas pode ser percebido como ldquococircmico e grotescordquo ou

ldquoinexplicaacutevel [e] enigmaacuteticordquo

Bogatyrev empreende certa quantidade de criacutetica sobre a anaacutelise de Zich (1983 [1973]

49-62) e ambos satildeo criticados por Jurkowski (1988 [1983] 57-61) e Veltruskyacute (1983 108-

9) Veltruskyacute escreve contudo que uma criacutetica ldquopermanece vaacutelida o que equivale dizer que

haacute apresentaccedilotildees de bonecos que natildeo satildeo cocircmicas nem misteriosas mas simplesmente seacuteriasrdquo

(1983 109) Essa criacutetica ainda que uacutenica eacute devastadora Zich sugere que uma plateia percebe

o boneco de apenas duas maneiras e isso eacute incorreto Nosso exemplo vindo do Japatildeo indica

que sua plateia natildeo percebe o boneco nem como ldquococircmico e grotescordquo nem como

ldquoinexplicaacutevel [e] enigmaacuteticordquo mas nas palavras de Veltruskyacute como ldquosimplesmente seacuteriordquo A

teoria de alternativas de Zich falha em dar conta do boneco em toda a sua diversidade o apelo

276

do boneco natildeo necessita ser de uma maneira ou de outra102

Resta aqui a questatildeo de Zich na

qual o boneco apenas pode ser percebido ldquoapenas de uma maneira por vezrdquo Mas esse seria o

caso Retornaremos a esse ponto crucial no proacuteximo capiacutetulo

Por hora permanecemos dedicados ao apelo do boneco e para isso seraacute preferiacutevel

considerar o niacutevel mais fundamental de envolvimento da plateia Miles Lee um autor e

inteacuterprete britacircnico escreve que ldquoum boneco embora manipulado habilmente pelo

marionetista nunca estaraacute completamente vivo ateacute que receba estiacutemulo adicional por meio da

imaginaccedilatildeo da plateiardquo (1958 8) Apenas a contribuiccedilatildeo da imaginaccedilatildeo da plateia pode

permitir ao boneco ter ldquovidardquo Este eacute certamente o ponto no qual a ldquomeia feacute temporaacuteriardquo

sugerida por Coleridge se aplica ao teatro de bonecos mas trata-se de uma meia feacute diferente

daquela aplicado sobre o teatro de atores

Heinrich von Kleist em seu ensaio tatildeo famoso quanto enigmaacutetico ldquoSobre o teatro de

marionetesrdquo sugere que ao contraacuterio do ator vivo o boneco possui uma graccedila especial que

emerge de sua falta de consciecircncia (1978 [1810] 1212) Isto conteacutem a sugestatildeo complementar

de que tal consciecircncia deve ser fornecida pela audiecircncia Maeterlink provavelmente de

maneira intencional torna explicita tal implicaccedilatildeo em sua crenccedila de que os bonecos ldquoganham

vida apenas quando o espectador projeta seu substrato inconsciente sobre elerdquo (Knapp 1975

77) Poderia-se evadir semanticamente a respeito de ldquosubstrato inconscienterdquo mas a sugestatildeo

aprece correta O boneco natildeo eacute mais do que um objeto constituiacutedo de signos abstratos que

opera sobre a percepccedilatildeo da plateia cabe agrave plateia conferir significado a esses signos por meio

de um ato de imaginaccedilatildeo reconhecendo uma sentido de vida ao boneco em resposta aos seus

signos abstratos De outra forma o boneco permaneceraacute apenas um objeto independente da

qualidade e quantidade desses signos

Mas se eacute esse o caso ainda fica por ser entendido o porquecirc de a plateia estaacute preparada

para emprestar a sua vontade imaginativa ao boneco por que uma plateia deveria se

incomodar em projetar a sua consciecircncia para imaginar a existecircncia de vida Como jaacute vimos

as associaccedilotildees metafoacutericas do boneco com a figura religiosa e com a boneca infantil oferecem

duas razotildees possiacuteveis ainda que nenhuma seja suficiente em si mesmas postas juntas

entretanto conduzem agrave sugestatildeo de que o poder da metaacutefora exerce um impacto psicoloacutegico

geral sobre a plateia tornando-a desejosa de conceder ao boneco a sua ldquovidardquo

102

Mas a mim parece que Zich estaacute mais mencionando uma dinacircmica perceptiva para o boneco que natildeo

sobrepotildee diferentes percepccedilotildees mas se daacute em alternacircncia de modos de apreensatildeo do boneco por parte do

puacuteblico

277

Szilaacutegyi menciona que haacute dois aspectos do impacto psicoloacutegico do boneco ldquo(1) sobre

a cena do teatro de bonecos diante dos olhos do espectador o supremo ato da criaccedilatildeo estaacute

acontecendo ndash mateacuteria morta sem vida eacute transformada em algo vivo (2) o boneco natildeo

importa em que forma apareccedila eacute bem no fundo da mente do homem um siacutembolo primordial

do ser humanordquo (1967 [1965] 35) As associaccedilotildees metafoacutericas envolvendo o boneco como

figura religiosa e brinquedo infantil estatildeo aqui unidas e encerradas numa associaccedilatildeo

psicoloacutegica mais geral A plateia estaacute disposta a imaginar o boneco como algo possuidor de

vida porque esse ato preenche o desejo humano baacutesico de entender o mundo atraveacutes do prisma

da consciecircncia humana A falta de consciecircncia do boneco como objeto de percepccedilatildeo eacute assim

um convite agrave plateia para participar na criaccedilatildeo de uma ldquovidardquo similar agrave sua proacutepria

Seria entatildeo o desejo psicoloacutegico de imaginar vida a explicaccedilatildeo sincrocircnica para o

boneco que viacutenhamos perseguindo Talvez possa ser melhor descrito como foi a explicaccedilatildeo

do boneco como objeto de representaccedilatildeo como condiccedilatildeo necessaacuteria mas natildeo suficiente

para tal explicaccedilatildeo

O desejo psicoloacutegico que conduz a plateia a imaginar que o boneco possui vida natildeo eacute

de fato operativo apenas com o boneco como pudemos perceber figuras religiosas e bonecas

de crianccedilas por si soacute podem perfeitamente ser imaginadas como possuidoras de vida De

fato eacute possiacutevel imaginar vida na casa que fica do outro lado da rua na fumaccedila que se ergue

volteante de um cigarro ou cachimbo ou mesmo no computador em que as pessoas escrevem

As janelas semicerradas da casa podem ser os olhos pesados de um gigante sonolento a

aparecircncia espectral da fumaccedila do cachimbo pode ser a forma vaporosa de algum espiacuterito do

ar a execuccedilatildeo de tarefas complexas realizadas pelo computador pode ser o produto de alguma

inteligecircncia ainda que nenhuma dessas coisas em sua existecircncia normal sejam qualquer tipo

de boneco Figuras religiosas bonecas casas fumaccedila de cachimbo computadores

juntamente com uma miriacuteade de outros lugares comuns satildeo inconscientemente ainda que

presentes e na maior das vezes sem qualquer intenccedilatildeo signos que podem ser imaginados

como indicativos de vida Se o desejo psicoloacutegico de imaginar vida explica o encanto

duradouro do boneco segue-se natildeo apenas que tudo pode vir a ser um boneco mas que tudo eacute

de fato boneco o que eacute absurdo

O desejo psicoloacutegico de imaginar vida pode ser caracterizado como promiacutescuo ndash

disposto a dispensar sua atenccedilatildeo sobre cada objeto que passar por seu campo de visatildeo ao

inveacutes de limitar sua atenccedilatildeo sobre o ldquoobjetordquo mais especiacutefico que eacute o boneco Mais que isso

essa promiscuidade de desejo oblitera a verdadeira percepccedilatildeo do objeto em favor de sua vida

imaginada o objeto em si mesmo apenas serve de estiacutemulo para um prazer imaginativo

278

Deve ser recordado que McPharlin argumenta que a plateia responde por convenccedilatildeo

ao boneco como se esse fosse um ator ou seja como uma personagem dramaacutetica e que essa

argumentaccedilatildeo eacute falha porque ignora o verdadeiro ldquoobjetordquo que eacute o boneco O argumento do

desejo psicoloacutegico ainda que seja mais sutil e persuasivo finda por cair viacutetima da mesma

fraqueza o foco permanece sobre a ldquovidardquo do boneco sob a forma de personagem dramaacutetica

e negligencia a maneira particular pela qual tal imaginaccedilatildeo eacute estimulada Para sugerir que o

encanto duradouro do boneco possa ser explicado por sua capacidade de abrigar a imaginaccedilatildeo

de vida levanta a questatildeo de como o boneco seiria de modo significativo um objeto diferente

de qualquer outro objeto no mundo

Assim embora tenhamos isolado a constante existente em toda apresentaccedilatildeo com

bonecos do desejo psicoloacutegico da plateia de que o boneco tenha vida essa constante por si

apenas natildeo eacute a uacutenica qualidade que explica o boneco Assim como o teatro de bonecos

envolve algo mais que a capacidade representativa do boneco como objeto percebido tambeacutem

envolve algo mais que o desejo do espectador de imaginar que o boneco esteja vivo Esse algo

mais pode ser identificado quando levamos em consideraccedilatildeo a percepccedilatildeo juntamente com a

imaginaccedilatildeo o ldquoobjetordquo juntamente com a ldquovidardquo

279

3

UMA NOVA BASE PARA

DEFINICcedilAtildeO E EXPLICACcedilAtildeO

O leitor teraacute sem duacutevida percebido certa simetria entre as soluccedilotildees necessaacuterias

embora insuficientes propostas agraves conclusotildees das uacuteltimas duas seccedilotildees do capiacutetulo anterior A

primeira soluccedilatildeo eacute a de que o apelo duradouro e difundido do boneco deriva da sua

capacidade peculiar de como um objeto apresentar signos representativos abstratos ao passo

que a segunda soluccedilatildeo eacute a de que o encanto do boneco deriva do desejo da plateia em

imaginar vida como algo presente em tudo no mundo Uma explicaccedilatildeo sincrocircnica do apelo do

boneco uma explicaccedilatildeo aplicaacutevel a todas as manifestaccedilotildees em teatro de bonecos precisaraacute

dar-se conta desses dois aspectos precisaraacute levar em consideraccedilatildeo a natureza dual que abarca

o objeto representativo percebido e a vida psicologicamente imaginada

VISAtildeO-DUPLA

Seraacute uacutetil retornar a Otakar Zich que defende como jaacute vimos que a plateia pode perceber o

boneco de duas maneiras como uma boneca inanimada ou como um ser vivo Para se evitar

confusotildees com emprego especializado do termo percepccedilatildeo feito neste estudo vamos

reafirmar que para Zich a plateia pode reconhecer o boneco como sendo uma boneca

inanimada ou um ser vivo Natildeo seriam essas duas maneiras os aspectos da natureza do

boneco como sendo ldquoobjetordquo e como ldquovidardquo Zich argumenta que o reconhecimento do

boneco feito pela plateia eacute uma proposiccedilatildeo alternativa Mas pode a plateia de fato reconhecer

ldquoo boneco apenas de uma maneira por vezrdquo como insiste Zich A argumentaccedilatildeo de Zich jaacute

foi criticada anteriormente por sua incapacidade de reconhecer os bonecos que natildeo satildeo

entendidos nem como sendo ldquococircmicos e grotescosrdquo quando reconhecidos como objetos

inanimados nem ldquoenigmaacuteticos e surpreendentesrdquo quando o boneco eacute visto como ser vivo A

criacutetica de agora eacute a que essas duas maneiras de percepccedilatildeo natildeo satildeo necessariamente antiteacuteticas

Natildeo seria possiacutevel para a plateia perceber o boneco de duas maneiras de uma vez

Thomas Green e W J Pepicello estudiosos norte americanos das aacutereas de teatro e

linguiacutestica sugerem que a percepccedilatildeo do puacuteblico natildeo eacute exclusivamente uma questatildeo de

alternativa

Enquanto a audiecircncia sabe num certo grau que o boneco eacute apenas um signo

(especificamente um metoniacutemia) os observadores satildeo levados a ignorar

280

esse fato em favor das convenccedilotildees artiacutesticas da forma de arte [Ainda

assim] apesar da convenccedilatildeo de se ignorar a presenccedila humana em espetaacuteculos

com bonecos certas tradiccedilotildees [produzem uma] tensatildeo vinda da percepccedilatildeo

alternada feita pela plateia do boneco como um ldquoatorrdquo independente e como

um objeto manipulado (1983 155)

Green e Pepicello defendem que a plateia ldquoignorardquo duas coisas distintas o boneco ldquocomo

sendo apenas um signordquo e ldquoa presenccedila humana nos espetaacuteculos de bonecosrdquo

presumivelmente os fatos mais ou menos oacutebvios de que os bonecos satildeo movidos e tecircm suas

vozes dadas por humanos O primeiro desses fatos parece eacute sempre ignorado ao passo que o

uacuteltimo natildeo eacute ignorado em ldquocertas tradiccedilotildeesrdquo tal como o bunraku japonecircs que natildeo faz

qualquer esforccedilo de ocultaccedilatildeo do envolvimento humano Nessas tradiccedilotildees Green e Pepicello

percebem uma oscilaccedilatildeo na percepccedilatildeo da plateia ldquoentre objeto como sendo ator (ie

possuidor de vida) e agido (ie objeto inanimado)rdquo (1983 157) Essa oscilaccedilatildeo eacute

essencialmente um deslocamento raacutepido e recorrente entre as duas maneiras de

reconhecimento do boneco apresentado por Zich

Embora essa teoria ofereccedila um avanccedilo significativo sobre a de Zich ao permitir um

relacionamento entre os dois aspectos do boneco haacute dois problemas com ela A primeira eacute

que a oscilaccedilatildeo entre o boneco como ldquoatorrdquo e ldquoagidordquo natildeo eacute considerada como universalmente

operativa estaacute sugerido que se o operador do boneco natildeo se encontra visiacutevel tal oscilaccedilatildeo natildeo

ocorreria a desatenccedilatildeo universal do boneco como sendo ldquoapenas um signordquo iraacute predominar

complementada pela desatenccedilatildeo pontual do operador invisiacutevel Green e Pepicello sugerem

que a ldquovidardquo do boneco como expressa por meio de ldquoconvenccedilotildees artiacutesticasrdquo seraacute mais

valorizada do que a natureza do boneco como sendo um ldquoobjetordquo constituiacutedo de signos Ou

para apresentar de modo mais simples sem a presenccedila visiacutevel do operador de bonecos os dois

aspectos do boneco natildeo seratildeo postos em tensatildeo

O segundo problema eacute o da loacutegica conflituosa de oscilaccedilatildeo e desconsideraccedilatildeo a

oscilaccedilatildeo contradiz a sugestatildeo de que enquanto que a plaacuteteiacutea estaacute consciente de que ldquoem certo

niacutevelrdquo o boneco eacute ldquomero signordquo essa atenccedilatildeo eacute em uacuteltima consideraccedilatildeo ignorada Ou a plateia

oscila ente os dois aspectos do boneco numa tensatildeo equilibrada ou os dois aspectos natildeo estatildeo

em equiliacutebrio e o boneco entendido como ldquovidardquo domina o boneco entendido como ldquoobjetordquo

Embora Green e Pepicello natildeo procurem resolver essa contradiccedilatildeo o modo como limitam a

oscilaccedilatildeo no teatro de bonecos para quando haja a ldquopresenccedila humanardquo de um operador de

bonecos visiacutevel implica em que como regra atenccedilatildeo e desatenccedilatildeo do boneco como sendo

ldquomero signordquo eacute a percepccedilatildeo mais fundamental do boneco realizado pela audiecircncia Mais uma

281

vez de modo mais simples oscilaccedilatildeo e desconsideraccedilatildeo satildeo incompatiacuteveis e dada a escolha

entre elas Green e Pepicello parecem sugerir que a desconsideraccedilatildeo seja a mais comum

A despeito desses problemas haacute muito a ser creditado agraves sugestotildees e Green e

Pepicello Se ocorre apenas nas tradiccedilotildees que expotildeem a presenccedila humana do operador de

bonecos e se tambeacutem apenas de uma maneira que natildeo apenas permite certa percepccedilatildeo

simultacircnea da dupla natureza do boneco eles ajudam a quebrar a condicionalidade imposta

por Zich

Jurkowski vai mais aleacutem Ele natildeo limita a percepccedilatildeo da natureza dual do boneco como

ldquoobjetordquo e como ldquovidardquo apenas agraves tradiccedilotildees que incluem a presenccedila humana sobre a cena

Inserido no ldquosistema de signos do teatro de bonecosrdquo ele reconhece aqui que chama de ldquoa

opalescecircncia do bonecordquo que significa ldquoa dupla existecircncia do boneco que eacute percebida (e

demonstrada) tanto como boneco quanto como personagem cecircnicordquo (1988 [1983] 78)103

Ou

como ele explica num outro artigo

Quando o movimento domina completamente um objeto noacutes sentimos que a

personagem estaacute nascida e presente em cena Quando eacute a natureza do objeto

que o domina ainda vemos o objeto O objeto eacute ainda o objeto e a

personagem ao mesmo tempo Eacute o que eu quero dizer quando me refiro a

ldquoopalizaccedilatildeordquo (1988 [1984] 41)104

Assim opalescecircncia ou opalizaccedilatildeo refere-se agrave percepccedilatildeo simultacircnea feita pela plateia da

natureza dual do boneco uma dualidade de percepccedilatildeo ou como nos termos do seu estudo

uma tensatildeo entre os dois aspectos do boneco de ldquoobjetordquo e ldquovidardquo Embora este seja ainda um

grande avanccedila em relaccedilatildeo a Zich apresenta tambeacutem um problema

Simplesmente Jurkowski natildeo considera opalizaccedilatildeo como algo inerente ao proacuteprio

boneco Ele argumenta que isso tem sido operativo apenas a partir do advento do que ele

chama de ldquoo sistema de signos do teatro de bonecosrdquo ldquoO boneco vem produzindo esse efeito

de opalizaccedilatildeo desde o seacuteculo XVIII O boneco era [natildeo antes de] naquele tempo considerado

um objeto e um personagem vivo ao mesmo tempordquo (1988 [1984] 41) Em breve iremos

considerar a discussatildeo de Jurkowski dos diversos ldquosistemas de signosrdquo nos quais o boneco

pode ser empregado para o momento basta notar que nos contextos de ldquosistemas de signos

proacuteximosrdquo e no ldquosistema de signos do teatro viventerdquo Jurkowski acredita que o boneco pode

ser percebida apenas como sendo respectivamente ldquoobjetordquo ou ldquovidardquo Opalescecircncia entatildeo

natildeo eacute inerente a toda a apresentaccedilatildeo de bonecos mas apenas em certos estilos dessas

103

(NT) El sistema de signos del tiacutetere in Consideraciones sobre el teatro de tiacuteteres Bilbao Concha de la Casa

1990 (Ensayos) pp 54-79 104

Mesma obra pp 48-53

282

apresentaccedilotildees De acordo com Jurkowski a condicionalidade de Zich foi abolida apenas no

periacuteodo em que esse estilo de apresentaccedilatildeo tornou-se corrente no ocidente

Peacuteter Moacutelnar Gaacutel um cenoacutegrafo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste natildeo

oferece um termo explanatoacuterio proacuteprio mas sai-se bem em acabar completamente com a

condicionalidade de Zich ao descrever umas das ldquocaracteriacutesticas peculiaresrdquo de seu teatro

Tudo eacute o que eacute e ainda algo mais um objeto reconheciacutevel e um objeto

transfigurado ao mesmo tempo Sobre a cena de bonecos um espanador pode

simbolizar uma bela princesa iluminada pela gloacuteria mas precisamos nunca

nos esquecer de que aquilo permanece um espanado Enquanto os objetos

perdem seus sentidos originais e transformam-se em outra coisa ainda

preservam sutilmente deu caraacuteter original (1978 14)

Pode-se jogar com a expressatildeo ldquopreservar sutilmenterdquo pois de acordo com a loacutegica da

descriccedilatildeo o aspecto do boneco como ldquoobjeto reconheciacutevelrdquo eacute mantido em tensatildeo com o seu

aspecto enquanto ldquoobjeto transfiguradordquo A exceccedilatildeo disso Gaacutel estaacute obviamente lidando com o

que Green e Pepicello chamaram de oscilaccedilatildeo e Jurkowski chama de opalescecircncia

Mais uma vez entretanto o reconhecimento simultacircneo dos dois aspectos do boneco eacute

circunscrito Gaacutel o limita ainda que de modo impliacutecito aos trabalhos do seu proacuteprio teatro

Como ele natildeo estaacute buscando explicar o teatro de bonecos de maneira ampla tal limitaccedilatildeo eacute

compreensiacutevel O Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste baseia conscientemente o seu

trabalho sobre a tensatildeo inerente agrave natureza dual do boneco e Gaacutel considera isto como a

grande forccedila de seu teatro Ele natildeo discute se tal tensatildeo pode ser encontrada em qualquer

apresentaccedilatildeo com bonecos

Finalmente consideremos um comentaacuterio feito pelo brilhante estudioso polonecircs Jan

Kott referente ao que ele acredita ser o aspecto mais caracteriacutestico do bunraku

O bunraku eacute praticamente o uacutenico teatro de bonecos no qual o mecanismo se

encontra completamente desnudado A esteacutetica dessa arte consiste na

evocaccedilatildeo de uma ilusatildeo absoluta e na sua equivalente absoluta destruiccedilatildeo

Bunraku eacute simultaneamente um teatro no qual bonecos atuam em dramas

humanos ndash riso e laacutegrimas amor e oacutedio trapaccedilas auto sacrifiacutecio e

assassinato ndash e um metateatro cujos protagonistas satildeo os manipuladores que

operam os bonecos o narrador e o [muacutesico] metateatro cujas accedilotildees

dramaacuteticas consistem em revelar a ilusatildeo teatral (1976 100)

Mais uma vez parecemos estar lidando com a mesma ideacuteia essencial de oscilaccedilatildeo e

opalizaccedilatildeo mas agora em termos pelos quais a apresentaccedilatildeo do boneco eacute ldquosimultaneamente

teatro e metateatrordquo Claramente a vida que o puacuteblico imagina no boneco eacute teatro ao passo

que a exposiccedilatildeo intencional do boneco como objeto percebido eacute metateatro

A tarefa da anaacutelise em curso tem sido mostrar que a visatildeo alternada de Zich eacute

insustentaacutevel e que de fato a percepccedilatildeo simultacircnea dos dois aspectos do boneco eacute uma

283

caracteriacutestica definidora de ao menos alguns estilos de teatro de bonecos ou de um certo

periacuteodo do teatro de bonecos ou de dois teatros de boneco em particular ainda que estes

sejam amplamente divergentes Ainda natildeo se sugere que todo boneco em qualquer eacutepoca em

quaisquer teatros e tradiccedilotildees convida a plateia a perceber de uma soacute vez seus dois aspectos

e ainda natildeo eacute sugerido que por meio da tensatildeo inerente a essa percepccedilatildeo duplicada o boneco

prazerosamente desafia a compreensatildeo da sua plateia acerca do que significa ser um ldquoobjetordquo

e do que significa possuir ldquovidardquo

O boneco falando propriamente existe apenas como um processo particular de

apresentaccedilatildeo no qual o puacuteblico reconhece um elemento teatral com sendo um objeto feito

para apresentar signos abstratos de vida o que encoraja a plateia a satisfazer seu desejo

psicoloacutegico de imagina que o objeto percebido possui de fato vida

Esse processo eacute aquilo a que Green e Pepicello se referem quando escrevem acerca de

oscilaccedilatildeo o que Jurkowski quer dizer quando escreve sobre opalizaccedilatildeo o que Gaacutel aborda

quando escreve sobre o boneco como sendo ldquoum objeto reconheciacutevel e um objeto

transfigurado ao mesmo tempordquo e do que Kott trata quando escreve sobre ldquosimultacircneos

teatro e metateatrordquo contrariamente a todos esses autores entretanto esse processo natildeo se

encontra limitado ao teatro de bonecos mas eacute central para o fenocircmeno do boneco em meio a

toda a sua diversidade temporal e geograacutefica

Um termo preciso e auto-explicativo faz-se necessaacuterio para nomear esse processo

Oscilaccedilatildeo de Green e Pepicello natildeo necessariamente sugere uma flutuaccedilatildeo constante na

percepccedilatildeo que a plateia tem dos dois aspectos do boneco Opalizaccedilatildeo de Jurkowski embora

agradavelmente poeacutetico requer uma exegese substancial para tornar-se compreensiacutevel Gaacutel e

Kott natildeo sucedem em fornecer qualquer termo Poderiacuteamos chamar o processo de visatildeo dupla

pois no decorrer da apresentaccedilatildeo a plateia vecirc o boneco por meio da percepccedilatildeo e da

imaginaccedilatildeo como objeto e como vida ou seja vecirc o boneco de duas maneiras

simultaneamente

Uma tensatildeo constante existe no interior dessa visatildeo dupla criada pelo boneco cada um

dos aspectos do boneco eacute inescapaacutevel e ainda assim um contradiz o outro O boneco eacute e natildeo eacute

o que cada um de seus aspectos faz aparentar Chikamatsu Monzaemon o mais renomado

autor de bunraku japonecircs escreveu que ldquoarte eacute algo que repousa sobre a margem delicada que

separa o real do irreal Eacute irreal e ainda assim natildeo eacute irreal eacute real e ainda assim natildeo eacute realrdquo

(citado em Brecht 1988 2706) A arte do boneco certamente repousa sobre essa ldquomargem

delicadardquo pois o reconhecimento que a plateia faz do boneco por meio de percepccedilatildeo e

imaginaccedilatildeo apresenta um conflito entre o boneco como objeto e como vida O que pode ser

284

chamado de a condiccedilatildeo ontoloacutegica do boneco se encontra sempre no interior da margem de

duacutevida seu lugar nessa margem eacute a sua caracteriacutestica mais distintiva

Basil Milovsoroff um artista de animaccedilatildeo norte americano do seacuteculo XX troccedila que

ldquotalvez a verdadeira beleza do boneco seja a sua teatralidade inatardquo (1976 5) O que eacute

proposital no teatro vivo eacute inato ao boneco um processo de representaccedilatildeo que eacute

inerentemente faz-de-conta e que se apoacuteia sobre a produccedilatildeo de uma visatildeo dupla que daacute a

reconhecer o ldquoobjetordquo do boneco como possuidor de ldquovidardquo

Seria incorreto dizer que que toda a arte do boneco se empenha conscientemente em

produzir visatildeo-dupla de fato tal empenho natildeo tem sido central para o fenocircmeno do boneco

Como vimos no exemplo de Jurkowski da companhia de teatro italiana que se apresentava

alternadamente com atores e com bonecos visatildeo-dupla pode muito bem ter sido

frequentemente considerada um efeito colateral indesejaacutevel Ainda assim visatildeo-dupla eacute uma

constante em toda apresentaccedilatildeo com bonecos seja intencionalmente ou natildeo fornecendo assim

a explicaccedilatildeo sincrocircnica para o encanto disseminado e duradouro do boneco uma vez que cria

em todas as plateias o prazer de um paradoxo profundo e iluminador provocado por um

ldquoobjetordquo que tem ldquovidardquo

Assim sendo as sugestotildees no sentido de uma definiccedilatildeo sobre as quais se avanccedilou

anteriormente podem agora ser complementadas com uma explicaccedilatildeo sincrocircnica para o

boneco o boneco eacute um elemento teatral compreendido pela plateia como sendo um objeto ao

qual se confere forma movimento e frequentemente fala de modo a satisfazer o desejo da

plateia de imaginaacute-lo como tendo vida criando a visatildeo-dupla de percepccedilatildeo e imaginaccedilatildeo o

boneco desafia agradavelmente a compreensatildeo da audiecircncia acerca do relacionamento entre

objetos e vida

O prazer paradoxal criado entre por meio do processo de visatildeo-dupla do boneco opera

num niacutevel fundamental sob os prazeres mais oacutebvios fornecidos pelo ldquoobjetordquo do boneco com

seus signos abstratos de forma movimento e fala e pela ldquovidardquo do boneco como sendo uma

personagem dramaacutetica em meio a uma narrativa Nossa intenccedilatildeo natildeo tecircm sido a de apequenar

esses prazeres pois na quase infinita variedade das suas manifestaccedilotildees eles tecircm conquistado

milhotildees incontaacuteveis de coraccedilotildees melhor nossa intenccedilatildeo tem sido demonstrar que sob esses

pode ser encontrado um prazer mais complexo operativo em todas as apresentaccedilotildees com

bonecos

Natildeo se deve no entanto imaginar que esse prazer mais complexo esse prazer do

paradoxo ontoloacutegico exija de sua plateia algum niacutevel admiraacutevel de reflexatildeo esteacutetico-

filosoacutefica O processo de visatildeo-dupla natildeo exige que a plateia esteja cocircnscia dele E assim

285

enquanto eacute verdadeiro que o boneco envie solicitaccedilotildees especiais agrave sua plateia tambeacutem eacute

verdade que tais solicitaccedilotildees podem ser cumpridas por qualquer grupo de crianccedila em jardim

da infacircncia As exigecircncias satildeo nada aleacutem de a plateia estar receptiva aos signos abstratos de

vida que constituem o boneco e desejosa de ver o mundo atraveacutes do prisma da consciecircncia

humana a partir de tal receptividade e desejo todo o resto se seguiraacute

Em uacuteltimo caso um grande problema em teatro de bonecos eacute a proacutepria facilidade com

que suas demandas especiais satildeo alcanccediladas Peter Arnott contemplando aquilo que ele

acredita serem os baixos padrotildees costumeiramente encontrados em teatro de bonecos conclui

que ldquonatildeo haacute duacutevidas que teatro de bonecos eacute algo fatalmente simples Haacute uma atraccedilatildeo

irresistiacutevel que se sente em direccedilatildeo a essas criaturinhas irrequietasrdquo (1964 40) O que haacute de

ldquofatalmente simplesrdquo eacute a capacidade inata do boneco em criar o prazer paradoxal da visatildeo-

dupla quase independentemente da qualidade das produccedilotildees em questatildeo o boneco iraacute

estimular um determinado prazer por meio do desafio que lanccedila agrave plateia a considerar a

ontologia de um ldquoobjetordquo com ldquovidardquo

Arnott sugere que essa facilidade eacute em uacuteltimo caso a razatildeo pela qual o teatro de

bonecos ao menos no ocidente foi tido em menor consideraccedilatildeo

Quando o boneco por si soacute eacute tatildeo atraente importa tanto assim o que ele

faz Assim cria-se um ciacuterculo vicioso O adulto perspicaz chega agrave conclusatildeo

de que pode esperar apenas entretenimento superficial [Ele entatildeo]

acredita natildeo conseguir levar mais que crianccedilas e grupos que vivem do teatro

de bonecos satildeo forccedilados a dar ao puacuteblico aquilo que ele deseja

Inevitavelmente o entretenimento oferecido natildeo consegue erguer-se acima

de um determinado padratildeo (1964 40-1)

O prazer paradoxal do processo de visatildeo-dupla do boneco eacute tatildeo faacutecil de ser criado que pode

conduzir a certa preguiccedila entre os artistas de bonecos Deve-se apenas notar que tal preguiccedila

e o teatro de bonecos mediacuteocre dela advindo satildeo a responsabilidade de determinados artistas

e natildeo do proacuteprio teatro de bonecos Como pudemos ver a partir dos nossos exemplos

introdutoacuterios quando os artistas natildeo caem presas de tal preguiccedila conseguem criar produccedilotildees

teatrais magistrais e importantes ndash que seriam possiacuteveis apenas se feitas com bonecos

UM TESTE DE VISAtildeO-DUPLA

O leitor iraacute se recordar de nossa introduccedilatildeo que Jurkowski questiona o valor de

qualquer aproximaccedilatildeo sincrocircnica argumentando que a diversidade diacrocircnica do teatro de

bonecos eacute tal que o boneco poderaacute ser compreendido apenas por meio da discussatildeo de seu

emprego em contextos teatrais especiacuteficos Seria justo testar as ideacuteias deste estudo contra os

variados contextos enumerados por Jurkowski Se o boneco visto como processo de visatildeo-

286

dupla pode ser operativo em toda situaccedilatildeo entatildeo a visatildeo-dupla pode pode perfeitamente ser

considerada como algo que opera sincronicamente em todo o teatro de bonecos

Uma breve revisatildeo Jurkowski argumenta que ldquoa presenccedila de um boneco natildeo eacute sempre

e inevitavelmente constitutiva de um sistema de signos do teatro de bonecosrdquo (1988 [1983]

67) Mais que isso o boneco pode ser posto a serviccedilo de ldquosistemas de signos aparentadosrdquo o

ldquosistema de signos do teatro vivordquo o ldquosistema de signos do teatro de bonecosrdquo ou um sistema

de signos contemporacircneo caracterizado pela ldquoatomizaccedilatildeo de todos os elementos do teatro de

bonecosrdquo (1988 [1983] 68 71 76 79)

O emprego que faz Jurkowski do termo sistema de signos eacute diferente daquele usado

neste estudo o primeiro refere-se a sistemas de significaccedilatildeo teatral abrangentes como os

acima listados no quais o boneco eacute empregado o segundo refere-se a trecircs sistemas de

significaccedilatildeo especiacuteficos ndash forma movimento e fala ndash apresentados pelo boneco Infelizmente

quase nada suporta a diferenccedila entre os dois usos do termo105

mas para os nossos propoacutesitos

o termo ldquosistema de signosrdquo deve ser distinto do emprego mais amplo que Jurkowski faz do

termo

Jurkowski demonstra a variedade de empregos do boneco num levantamento sobre ldquoa

longa jornada do boneco atraveacutes dos diferentes sistemas de signosrdquo no teatro europeu Ele

aponta apropriadamente que esses empregos embora cronologicamente muito espalhados

natildeo se sucedem no tempo mas coexistem hoje em dia (1988 [1983] 68)

Apoacutes uma breve revisatildeo acerca de bonecos em tempos claacutessicos ele se deteacutem sobre a

Idade Meacutedia e o Renascimento dos quais cita o emprego de bonecos em ldquosistemas de signos

vizinhosrdquo Apoacutes definir teatro como sendo ldquoatores (vivos ou bonecos) que num lugar especial

apresentam personagens imaginadas de acordo com um drama preacutevio ou improvisado sendo

assistidos por um puacuteblico reunido intencionalmente ou por acasordquo ele argumenta que

ldquodemonstraccedilotildees com bonecos [nesse periacuteodo] sempre se ressentiram de alguns elementos [do

teatro] natildeo apresentavam dramas ou os bonecos natildeo eram personagensrdquo (1988 [1983] 68)

Jurkowski menciona dois tipos particulares de emprego de bonecos Primeiro havia

bonecos que ldquotentavam ser vivos como homens Eacute claro natildeo o conseguiam e assim pareciam-

se com caricaturas de seres humanosrdquo Segundo havia bonecos ldquousados como ilustraccedilotildeesrdquo por

ldquobardos e contadores de histoacuteriasrdquo tais como ldquopinturas em pergaminhordquo eram usadas (1988

[1983] 69)

105

NT No original em inglecircs o termo cuja significaccedilatildeo eacute usada por Tillis eacute grafado com hiacutefen (sign-system)

inexistente no termo como usado por Jurkowski (sygn system) No trecho em causa Tillis estaria comentando que

ldquoo hiacutefen carrega o peso de distinguir os dois termosrdquo mas foi modificado devido agrave decisatildeo da traduccedilatildeo de natildeo

empregar o hiacutefen na grafia de nenhuma das concepccedilotildees do termo

287

O primeiro tipo de emprego para um sistema de signos para o qual Jurkowski natildeo daacute

um nome mas que poderia ser identificado como espetaacuteculo eacute exemplificado por ldquobonecos

de truquesrdquo dos quais ldquose incluem bonecos de metamorfose e de nuacutemeros circenses Os

bonecos de metamorfose satildeo dispositivos teacutecnicos que eram exibidos para surpreender a

plateia Nisso eram muito bem sucedidos assim como os de nuacutemeros circenses (malabaristas

danccedilarinos sobre corda bamba acrobatas e outros)rdquo (1988 [1983] 70) Os bonecos de truque

que existem ateacute os dias atuais natildeo apresentam qualquer pretensatildeo de serem personagens num

drama eles ldquotentam ser algo real e sendo reais [tornam-se] objetos de interesse puacuteblico e

espetacularrdquo (1988 [1983] 700) Ou seja servem como objetos de curiosidade Como se

aplicaria a visatildeo-dupla a esse emprego

A chave estaacute na noccedilatildeo de Milovsoroff acerca da teatralidade inata do boneco Essa

qualidade intriacutenseca foi discutida anteriormente vimos que ao passo que a tentativa do ator eacute

ser uma personagem especiacutefica a do boneco eacute estar vivo Em todos os casos a tentativa

envolve a representaccedilatildeo de uma ilusatildeo Assim mesmo se o contexto da representaccedilatildeo envolve

um malabarista vivo em oposiccedilatildeo ao teatro a pretensa vida do boneco malabarista se daacute em

uma personagem de um malabarista vivo Ainda que seja apenas um ldquoobjetordquo seus signos

abstratos nesse caso os movimentos caracteriacutesticos do malabarismo levam a plateia a

imaginar que este possui a ldquovidardquo de um malabarista Essa pretensatildeo cria ao menos um tipo

rudimentar de drama ldquoa apresentaccedilatildeo de um malabaristardquo E assim vemos que de fato

podemos usar o conceito de visatildeo-dupla para identificar no boneco de truque ambos os

elementos evocados por Jurkowski

O segundo tipo de emprego citado por Jurkowski eacute aquele apresentado pelo boneco

para o sistema de signos vizinho da arte do contador de histoacuterias O exemplo de Jurkowski

vem do Don Quixote de Cervantes

O boneco do teatro renascentista de Mestre Pedro (Cervantes) eacute uma espeacutecie

de apresentaccedilatildeo de contador de histoacuterias Um menino se posiciona diante do

retablo [palco para bonecos] e aponta aos seus bonecos enquanto conta a

histoacuteria de Don Gaiferos e Melisandra A fala do menino eacute quase que

exclusivamente narraccedilatildeo apenas ocasionalmente inserindo as palavras das

figuras da accedilatildeo O papel principal dessa representaccedilatildeo pertence ao menino

ele eacute o ator principal O retablo e seus bonecos natildeo satildeo mais que ilustraccedilatildeo

Sempre que necessaacuterio o menino responde a comentaacuterios feitos pela plateia

Ele entatildeo eacute um verdadeiro intermediaacuterio mas media a reaccedilatildeo do puacuteblico

diante do texto (das palavras) e natildeo diante dos bonecos (1988 [1983] 64)

Esse uso dos bonecos se opotildee segundo Jurkowski ao notado nas apresentaccedilotildees de

ldquoPetrushkardquo nas quais um ator se comporta como um intermediaacuterio entre o boneco e a plateia

tocando muacutesica e interpretando as palavras do boneco

288

Natildeo haacute duacutevida de que no caso do teatro de Don Pedro o boneco de retablo

servia ao ator (contador de histoacuterias) ao passo que na comeacutedia de Petrushka

era o ator (muacutesico) que servia aos bonecos No primeiro caso a histoacuteria eacute o

elemento constitutivo da apresentaccedilatildeo no segundo caso eacute o heroacutei boneco

Eu me atreveria a dizer que os bonecos entraram em dois sistemas de signos

um tanto diferentes (1988 [1983] 64-5)

Os ldquodois sistemas de signos um tanto diferentesrdquo satildeo o da narraccedilatildeo de histoacuterias e do teatro de

bonecos propriamente ditos O ponto de Jurkowski eacute que essa questatildeo sobre se o boneco serve

ou eacute servido altera a compreensatildeo que se tem dele por parte da audiecircncia pois no teatro de

Don Pedro os bonecos apenas fazem aquilo que uma sequecircncia de imagens faria ndash ilustrar a

histoacuteria ndash e assim se ressentiriam de caracteriacutesticas dramaacuteticas proacuteprias

E jaacute que os bonecos no teatro de Don Pedro natildeo sejam pinturas num pergaminho

mesmo que sua funccedilatildeo seja similar natildeo eacute a mesma A diferenccedila eacute precisamente a visatildeo-dupla

criada pelo boneco Eacute crucial notar que quando Don Quixote se enfurece com a narrativa ele

natildeo ataca o contador da histoacuteria ndash quem segundo Jurkowski eacute o ator principal da produccedilatildeo ndash

mas ataca os bonecos Se o narrador estivesse ilustrando seu conto com desenhos num

pergaminho seria difiacutecil imaginar Don Quixote rasgando o rolo em sua fuacuteria ao inveacutes disso

ele atacaria o narrador Os bonecos ainda que a serviccedilo do narrador possuem um significado

que ultrapassa de longe aquele fornecido por figuras pintadas numa tela uma significacircncia

predicada pela visatildeo-dupla que o boneco provoca

Din Quixote eacute eacute claro insano essa insanidade o conduz a considerar a vida que

imagina terem os bonecos como algo que suplanta a percepccedilatildeo deles como sendo objetos

Assim os bonecos sofrem o ataque como sendo os agentes ldquovivosrdquo do drama apesar da

apresentaccedilatildeo do contador da histoacuteria A presenccedila do boneco no lugar de figuras desenhadas

natildeo eacute um evento neutro e mais uma vez percebemos que de fato ambos os elementos do

teatro participantes do conceito de visatildeo-dupla evocados por Jurkowski podem ser

encontrados nesse uso do boneco

Jurkowski acompanha o boneco nos periacuteodos barroco e romacircntico quando participou

do sistema de signos do teatro vivo Noacutes jaacute vimos como uma companhia italiana em excursatildeo

pela Polocircnia se apresentava alternadamente com bonecos e atores Na era barroca bonecos

apresentando oacuteperas entraram na moda

Em propagandas da eacutepoca os administradores de teatros de bonecos

garantiam ao puacuteblico que seus bonecos representavam como atores vivos

Hoje em dia eacute difiacutecil de acreditar que um boneco poderia imitar um ator tatildeo

perfeitamente a ponto de passar por sua miniatura Entretanto isso era um

tanto possiacutevel no teatro de bonecos operiacutestico do seacuteculo XVII A atuaccedilatildeo de

atores e cantores vivos naquela eacutepoca era completamente esquemaacutetica Os

cantores permaneciam numa fila na abertura do proscecircnio e faziam gestos

289

esquemaacuteticos Imitar tal atuaccedilatildeo era faacutecil para o boneco especialmente

desde que a luz natildeo fosse muito clara e a rede de conexotildees [postada diante

do palco] escondesse os fios de controle [do boneco] (1988 [1983] 72)

Oacutepera com bonecos natildeo deve ser confundido com teatro popular uma vez que era apresentada

para as classes mais educadas em cidades onde a oacutepera era provavelmente bastante

apresentada Juntamente com os operadores de bonecos as produccedilotildees de oacutepera com bonecos

requeriam uma boa quantidade de cantores e instrumentistas Claramente os financiadores de

oacutepera com bonecos esperavam capitalizar juntamente a uma plateia que escolheu ver

especificamente ldquobonecos [que] atuam como atores vivosrdquo Se a plateia soubesse previamente

a cerca da natureza da apresentaccedilatildeo o que parece se o caso entatildeo o acorrimento a tais

apresentaccedilotildees eacute dependente ao menos em parte de um desejo de se ver bonecos em vez de

atores vivos

Os aspectos fundamentais da descriccedilatildeo de Jurkowski satildeo o do boneco tido como um

ator miniaturizado e a ldquorede de conexotildeesrdquo que escondia o os meios de operaccedilatildeo dos bonecos

A plateia estava consciente de que o que assistia natildeo tinha uma dimensatildeo humana e mais

ainda que natildeo era apresentada sem dissimulaccedilatildeo Isto equivale a dizer que a plateia sabia que

estava assistindo a uma imitaccedilatildeo da oacutepera ldquovivardquo e natildeo a de verdade O fato de tais produccedilotildees

serem derivativas natildeo estaacute em questatildeo mesmo assim parece claro que a plateia entendia o

boneco como sendo um inteacuterprete teatral especiacutefico e que assistiam a oacuteperas com bonecos

precisamente para obter prazer dessa distinccedilatildeo

Teatro de bonecos popular no sistema de signos do teatro vivo veio de acordo com

Jurkowski em dois estaacutegios

O primeiro estaacutegio de adaptaccedilatildeo cobriu o modelo do teatro barroco e seu

repertoacuterio incluindo histoacuterias biacuteblicas mitos evangile [NT evangelho)

paraacutebolas peccedilas hagiograacuteficas e dois temas famosos do renascimento ldquoDon

Juanrdquo e ldquoDoktor Faustrdquo O segundo estaacutegio de adaptaccedilatildeo cobriu o

repertoacuterio romacircntico e seu modelo de teatro Teatros de bonecos na

Alemanha Franccedila Beacutelgica e Boecircmia adaptaram repertoacuterio cenaacuterios e

figurinos do melodrama imitando o teatro vivo (1988 [1983] 75)

Jurkowski natildeo daacute um exemplo de bonecos no sistema de signos do teatro mas um exemplo

do ldquosegundo estaacutegio de adaptaccedilatildeordquo parece ser a tradiccedilatildeo de bonecos belgas de Liegravege nos

quais os romances de Carlos Magno eram apresentados bonecos esplendidamente vestidos

operados de cima por meio de bastotildees grossos presos agraves cabeccedilas dos bonecos

Tal como as elegantes oacuteperas com bonecos os teatros de bonecos populares como o

de Liegravege era em muitas maneiras derivativos do teatro vivo mas novamente a substituiccedilatildeo

de bonecos por atores inescapavelmente alterava a apresentaccedilatildeo Na medida em que os teatros

290

de bonecos populares imitavam teatro vivo a anaacutelise vista sobre a oacutepera com bonecos

demonstra como a presenccedila do boneco transforma a imitaccedilatildeo em algo de uma natureza

diferente De fato entretanto a tradiccedilatildeo de Liegravege suplantou em muito a imitaccedilatildeo do teatro

vivo Malkin nota que nessa tradiccedilatildeo ldquociclos completos de peccedilas poderiam requerer oitocentas

figuras elaboradamente esculpidas e vestidas Geralemente se levava diversos meses de

apresentaccedilotildees em seacuterie para completar o dramardquo (1977 24) Pode-se duvidar se o teatro vivo

alguma vez empregou tantos personagens em uma apresentaccedilatildeo que se estendesse por tal

periacuteodo de tempo Embora a tradiccedilatildeo de Liegravege empregasse certas convenccedilotildees do teatro vivo

ela explodiu as convenccedilotildees de tamanho de elenco e duraccedilatildeo de histoacuteria

E fez mais que isso Fez uso de bonecos que eram de dimensotildees inteiramente

diferentes Como Malkin explica ldquoas plateias sabiam que figuras maiores eram mais fortes

ou mais nobres que as figuras menores Dessa maneira Carlos Magno deve ter

aproximadamente cinco peacutes de altura (NT aproximadamente um metro e meio) ao passo que

uma personagem menor deveria ter menos de dezoito polegadas de altura (Malkin 1977 24-

5) O emprego e tais variaccedilotildees de tamanho para transmitir informaccedilotildees sobre as personagens

eacute claro impossiacutevel no teatro feito com atores Assim noacutes vemos que mesmo quando serve

agravequilo que Jurkowski chama de sistema de signos do teatro vivo o boneco invariavelmente

difere do ator por meio da apresentaccedilatildeo cuidadosa de seus recursos caracteriacutesticos

A proacutexima parada de Jurkowski na jornada do boneco se deteacutem sobre os cem anos em

torno da virada do seacuteculo XX quando bonecos apoacutes alguns esforccedilos pioneiros adentrou no

sistema de signos do teatro propriamente dito como sendo ldquocriaturas artificiais [que]

comportam-se de sua proacutepria maneira especialrdquo (1988 [1983] 76-7)

A caracteriacutestica distintiva desse sistema de signos eacute que eacute o boneco que eacute servido e a

natureza particular do boneco que eacute explorada Essa natureza eacute o que Jurkowski chama de

opalescecircncia eacute como jaacute vimos similar agrave nossa ideacuteia de visatildeo-dupla Dessa maneira natildeo seraacute

necessaacuterio demonstrar a distinccedilatildeo teatral do boneco em para esse sistema de signos Seraacute

vaacutelido no entanto notar duas questotildees sobre o sistema de signos do teatro de bonecos pois

que este possui duas manifestaccedilotildees distintas

Primeiro esse sistema de signos se exemplifica em certos tipos de teatro de bonecos

tradicional como as apresentaccedilotildees de ldquoPunch and Judyrdquo e ldquoPetrushkardquo A primeira

ocasionalmente e a segunda geralmente tecircm um ator como intermediaacuterio entre o boneco e a

plateia Esse ator ldquoserve ao bonecordquo ajudando com sua apresentaccedilatildeo junto ao puacuteblico

Eacute interessante no entanto que Jurkowski localize essas tradiccedilotildees onde o faz jaacute que

ambas dividem uma ancestralidade reconheciacutevel ao menos em parte com o teatro de atores da

291

commedia dellrsquoarte e talvez tambeacutem com a comeacutedia de atoes da Roma Antiga (Baird 1965

96 103) Entatildeo estes natildeo deveriam ser localizados no sistema de signos do teatro vivo Que

eles natildeo sejam isso eacute indicativo do esquema de Jurkowski no qual a questatildeo mais importante

eacute a do serviccedilo em ambas as tradiccedilotildees eacute o boneco que eacute servido Nosso exemplo da introduccedilatildeo

vindo da Iacutendia no qual um muacutesico traduz para a plateia as falas incompreensiacuteveis dos

bonecos eacute um outro exemplo desse serviccedilo As fronteiras entre os sistemas de signos de

Jurkowski baseados apenas em termos de serviccedilo parecem um tanto tecircnues quando

examinados sob qualquer outra perspectiva

Segundo o sistema de signos do teatro e bonecos eacute exemplificado por ldquoteatros de

bonecos artiacutesticosrdquo nos quais o serviccedilo prestado aos bonecos por intermediaacuterios vivos ou

companheiros de palco eacute amplamente explorado de modo a que o bonecos pode ser entendido

como sendo explicitamente ldquorsquocomo bonecosrsquo [com] os bonecos tidos como personagem

cecircnico e objeto material ao mesmo tempordquo (1988 [1983] 78) Jurkowki menciona uma

quantidade de produccedilotildees onde se ldquoconfrontam o teatro de bonecos com o teatro vivo de modo

a intensificar as caracteriacutesticas do teatro de bonecosrdquo ou que permitem ao boneco estar

ldquoconsciente do fato de que eacute manipulado por algueacutemrdquo e estar ldquoconscienterdquo de ser um boneco

explorando o boneco com uma ldquometaacutefora da impotecircncia e do controle por forccedilas externasrdquo

(1988 [1983] 79)

Eacute claro o argumento deste estudo de que enquanto que o processo de visatildeo-dupla do

boneco eacute explicitamente explorado por tais teatros artiacutesticos eacute implicitamente explorado por

todos os usos do boneco Mas Jurkowski estaacute certamente correto ao identificar a exploraccedilatildeo

expliacutecita dos dois aspectos do boneco ldquopersonagem cecircnico e objeto material ao mesmo

tempordquo como algo fundamental ao periacuteodo que McPharlin chama de ldquoo renascimento do

bonecordquo (1938 i)

Jurkowski conclui a sua histoacuteria com o boneco contemporacircneo no qual ldquotodos os

elementos do teatro de bonecos [estatildeo] atomizadosrdquo (1988 [1983] 67) Com isso ele quer

dizer que as teacutecnicas tradicionais do teatro de bonecos incluindo encenaccedilatildeo o relacionamento

entre o boneco e o operador e a apresentaccedilatildeo dos bonecos juntamente com atores estatildeo

ldquodespedaccediladasrdquo e que tal teatro eacute ldquocaracterizado pela pulsaccedilatildeo constante dos meios de

expressatildeo e de seus relacionamentosrdquo (1988 [1983 81-2)

Nesse tipo final de teatro de bonecos os elementos da apresentaccedilatildeo estatildeo atomizados

e nenhum deles pode ser identificado como estando a serviccedilo de outros Isto poderia ser

chamado de desconstruccedilatildeo do teatro de bonecos embora Jurkowski natildeo use esse termo Seu

exemplo de uma produccedilatildeo polonesa

292

[Josef Krofta] dirigiu uma adaptaccedilatildeo proacutepria de Don Quixote de Cervantes

Ele pocircs no palco uma quantidade de atores vivose alguns bonecos As

personagens principais (pe Don Quixote e Sancho Panccedila) eram

representadas duplamente por homens e bonecos Num momento viacuteamos as

personagens representadas por homens em outro momento por bonecos e

algumas vezes por ambos A cena da derrota de Don Quixote na estalagem

era representada usando diferentes meios de expressatildeo Um ator com um

bastatildeo em sua matildeo batia no banco onde se imaginava que Don Quixote

estava deitado outro ator fingindo ser espancado guinchava como um louco

outro estava destruindo o boneco de Don Quixote (1988 [1983] 67)

Deve ser notado que autores e artistas envolvidos com o teatro de bonecos consideram

a histoacuteria de Don Quixote quase irresistiacutevel Talvez porque contenha natildeo apenas o admiraacutevel

incidente com o teatro de bonecos de Don Pedro mas tambeacutem um tema recorrente de

paradoxo ontoloacutegico como o do moinho tomados por um monstro Esse paradoxo ontoloacutegico

eacute como jaacute sugerimos essencial para o boneco

Jurkowski argumenta que na produccedilatildeo de Krofta ldquopodemos encontrar uma nova

combinaccedilatildeo dos meios de expressatildeo e assim de certa forma um novo sistema de signosrdquo o

teatro de bonecos que deve ser compreendido em seus proacuteprios termos (1988 [1983] 67) Mas

haveria algo nessa produccedilatildeo em especial ou em produccedilotildees atomizadas de modo similar que

natildeo seria compreensiacutevel por meio da abordagem sincrocircnica mostrada neste estudo

Na cena descrita haacute pouco Jurkowski encontra significacircncia na atomizaccedilatildeo da

personagem Don Quixote sendo representada por um espaccedilo num banco um ator fingindo ser

espancado e uivando como um louco e a destruiccedilatildeo do boneco Don Quixote Esta eacute

certamente um fragmento complexo de encenaccedilatildeo mas a cena de fato apresenta um boneco

A figura torturada de Don Quixote doficilemnte pode ser considerado um boneco mesmo por

meio da definiccedilatildeo de Jurkowski pois para a qual natildeo se concede movimento nem fala A

personagem de Don Quixote foi certamente atomizada mas o boneco natildeo pois que ali natildeo haacute

um boneco A figura teatral de Don Quixote parece natildeo ser mais que um adereccedilo uma efiacutegie

de Don Quixote sujeitada a danos fiacutesicos de uma maneira simboacutelica um tanto comum no caso

de efiacutegies A significacircncia de tal cena para a compreensatildeo do boneco parece um tanto

limitada

Sem possuir familiaridade com a produccedilatildeo em questatildeo pode-se parecer difiacutecil

comentar sobre como ou mesmo se bonecos ou adereccedilos semelhantes a bonecos podem ser

usados em outras cenas Mas imaginemos a seguinte cena um ator representando Don

Quixote se encontra no fundo do palco estudando lendo sobre cavalaria ele se deteacutem para

olhar na direccedilatildeo da plateia Um pequeno boneco tambeacutem representando Don Quixote surge

na frente da cena agrave direita totalmente vestido como um cavaleiro montado em Rocinante Agrave

293

medida em que o boneco Don Quixote cavalga o ator repara em sua presenccedila e o segue com

os olhos Ele para brevemente ao centro do palco e o ator diz um texto para ele Quando o

boneco sai de cena pela esquerda baixa o ator deita o seu livro e alcanccedila um elmo de

cavaleiro que estaacute em sua escrivaninha (Essa cena foi proposta para uma montagem de Don

Quixote segundo adaptaccedilatildeo feita para o Pickwick Puppet Theatre por Ken Moses 1980)

Nessa cena imaginaacuteria a personagem de Don Quixote se encontra atomizada de uma

maneira similar agravequela descrita por Jurkowski Mas nela a representaccedilatildeo de Don Quixote

apresentada no proscecircnio eacute para qualquer definiccedilatildeo um boneco Jurkowski estaacute certo ao

argumentar que a atomizaccedilatildeo de personagem ldquoestressa as funccedilotildees teatrais e metafoacutericardquo

(1988 [1983] 81) Mas apesar de tal ecircnfase o boneco continua sendo entendido como um

boneco

Assim se conclui o levantamento de Jurkowski acerca da jornada do boneco atraveacutes

dos sistemas de signos Eacute significativo notar que o bunraku natildeo encontra espaccedilo no esquema

de Jurkowski pois embora o bunraku ldquopossa ser comparado com os teatros de bonecos mais

avanccedilados da Europa e dos EUA de nosso tempordquo ele difere desses teatros por ser seacuteculos

mais antigo e por se constituir num sistema fechado ao passo que o teatro de bonecos

contemporacircneo eacute ldquoobviamente um sistema abertordquo (1988 [1983] 65-67) Essa incapacidade

em considerar o bunraku vem da base esquemaacutetica para os modelos europeus para os quais os

teatros de bonecos natildeo-europeu falham previsivelmente em enquadrar-se Como poderiacuteamos

levar a seacuterio uma aproximaccedilatildeo diacrocircnica que mal consegue se dar conta dos teatros de

bonecos praticados em mais de trecircs quartos do mundo

O sistema de signos do teatro de bonecos no sentido empregado por Jurkowski eacute

aquele que num niacutevel fundamental recria-se a si mesmo em cada tradiccedilatildeo de teatro de

bonecos talvez mesmo a cada apresentaccedilatildeo com bonecos uma vez que o boneco eacute feito para

apresentar uma variedade quase infinita de signos e combinaccedilotildees de signos Como escreve

Jurkowski ldquoAs relaccedilotildees entre o objeto (boneco) e as fontes de energia [os vocalizadores e

manipuladores] mudam o tempo todordquo (1988 [1983] 79-80) Ele estaacute correto no fato de que

isto distingue o teatro de bonecos do teatro de atores Neste a presenccedila do ator vivo restringe

natildeo apenas os signos que podem ser apresentados mas tambeacutem em sua maneira de

apresentaccedilatildeo devido a essa presenccedila eacute possiacutevel postular alguns aspectos estaacuteveis de um

sistema de signos para o teatro de atores Mas Jurkowski estaacute incorreto ao sugerir que o

boneco tem sido empregado a serviccedilo de quatro possiacuteveis sistemas de signos deve-se dizer

antes que os sistemas de signos do boneco em sua diversidade diacrocircnica eacute incomensuraacutevel

e que natildeo haacute uma uacutenica coisa que possa ser exatamente idealizada como teatro de bonecos

294

Deve-se assim examinar o boneco como sendo um medium teatral especiacutefico e ver como este

pode possuir uma natureza tatildeo voluacutevel

Ao contraacuterio do que apresenta Jurkowski pode-se facilmente discutir no mesmo

focirclego os bonecos do bunraku Petruschka as personagens no teatro de Mestre Pedro e

mesmo a personagem do malabarista fazendo seus truques na calccedilada de uma cidade

qualquer Em todos os caso o boneco eacute percebido como um objeto que por meio da

apresentaccedilatildeo dos trecircs sistemas de signos eacute imaginado como estando vivo o paradoxo

ontoloacutegico dessa visatildeo-dupla cria um prazer que acompanha outro qualquer e todos os demais

prazeres oferecidos pelo boneco

BONECOS OBJETOS DE REPRESENTACcedilAtildeO E ATORES

O conceito de visatildeo-dupla permite-nos compreender o processo essencial do teatro de

bonecos como sendo uma arte teatral Mas eacute claro o boneco eacute apenas uma maneira de se

apresentar teatro ao redor do mundo o que tem sido chamado de ldquoobjeto de representaccedilatildeordquo106

tambeacutem se encontra envolvido na apresentaccedilatildeo teatral e obviamente teatro eacute algo

apresentado muito frequentemente por meio do ator O que distingue o boneco do objeto de

representaccedilatildeo e do ator Ou para apresentar a questatildeo de outra maneira de que modo a visatildeo-

dupla provocada pelo boneco difere da maneira pela qual objetos de representaccedilatildeo e atores

satildeo vistos pela plateia

Frank Proschan um dedicado estudioso norte americano nas aacutereas de teatro de

bonecos e cultura popular situa o boneco na categoria de objeto de representaccedilatildeo ao qual

ldquoinvestimos com os poderes de falar e mover-serdquo (1983 3) Mais adiante ele define objetos

de representaccedilatildeo como sendo ldquoimagens materiais de seres humanos animais ou espiacuteritos que

satildeo criados apresentados ou manipulados em narrativas ou apresentaccedilotildees dramaacuteticas Mesmo

que o teatro de bonecos esteja no centro dessa definiccedilatildeo natildeo se encontra sozinhordquo (1983 4)

Num artigo anterior entretanto Proschan localiza o boneco diferentemente de acordo com a

seguinte categoria ldquoBonecos natildeo satildeo senatildeo exemplos extremos de objetos de representaccedilatildeo

uma categoria de fenocircmeno que se estende desde as bonecas de brincadeiras infantis

106

NT A palavra empregada no original eacute performing object um termo usado por Frank Proschan em estudo

de antropologia significando ldquoimagens concretas do homem do animal ou de espiacuteritos criados apresentados ou

manipulados em narrativas ou espetaacuteculos dramaacuteticosrdquo (PROSCHAN apud AMARAL Teatro de animaccedilatildeo

Satildeo Paulo Ateliecirc Editorial 1997 pp 25-6) Esse termo eacute citado por Ana Maria Amaral como uma das raiacutezes

conceituais para a cunhagem da noccedilatildeo de ldquoforma animadardquo (in AMARAL Ana Maria Teatro de formas

animadas Satildeo Paulo Edusp 1993 (Texto amp Arte 2)) A escolha do termo traduzido levou em consideraccedilatildeo

que apesar da semelhanccedila semacircntica e uso corrente que o termo forma animada possui entre praticantes e

estudiosos da animaccedilatildeo no Brasil a descriccedilatildeo do termo oferecida por Tillis nesse mesmo capiacutetulo torna o seu

emprego inadequado sendo necessaacuterio uso de algo mais abrangente como eacute o caso de objeto de representaccedilatildeo

295

passando por paineacuteis e imagens acompanhadas por narrativas por peep shows e objetos de

maacutegica ateacute figurinos e adereccedilos de apresentaccedilotildees teatrais (para mencionar apenas alguns

exemplos)rdquo (1981 554) Outros exemplos satildeo por ele mencionados tais como ldquodanccedilarinos

mascaradosrdquo ldquodevotos que carregam imagens em procissotildeesrdquo e ldquocontadores de histoacuterias que

traccedilam imagens na areia ou na neverdquo todos ele diz ldquomanifestam o desejo de dar vida a coisas

sem vida do modo como animam objetos em apresentaccedilotildees dramaacuteticas e usam imagens

materiais como substitutos para atores humanosrdquo (1983 3)

A categoria ldquoobjeto de representaccedilatildeordquo eacute consideravelmente ampla e segundo a

definiccedilatildeo de Proschan incorpora praacuteticas que possuem categorias proacuteprias tudo o que as faz

aparentadas eacute o fato de empregarem coisas sem vida que satildeo animadas Uma categoria ampla

como essa poderia certamente incluir o teatro de bonecos embora como pudemos ver os

proacuteprios termos sem vida e inanimado satildeo imprecisos se natildeo totalmente incorretos a ponto

de apresentarem um valor duacutebio

Devemos perguntar entretanto se o boneco seria nos termos de Proschan um

exemplo central de objeto de representaccedilatildeo ou um exemplo extremo Pois se o boneco for

central entatildeo a essecircncia do objeto de representaccedilatildeo deve ser a essecircncia do boneco ao passo

que se for extremo entatildeo pode ser possiacutevel argumentar que o boneco seria suficientemente

diferente de modo a justificar uma categorizaccedilatildeo em separado Responder agrave questatildeo requer

um meio de organizar a gama de atividades coberta pela categoria ldquoobjeto de representaccedilatildeordquo

Infelizmente Proschan natildeo oferece um recurso organizacional e assim o boneco pode ser

tanto central quanto extremo dependo da circunstacircncia retoacuterica Seraacute preferiacutevel analisa alguns

dos objetos de performance mencionados pro Proschan de modo a nos ajudar a entender a

organizaccedilatildeo da categoria e o lugar ocupado pelo boneco dentro ou fora dela

Dois tipo de objetos de representaccedilatildeo mencionados por Proschan situam-se fora do

contexto do teatro ldquoimagens [carregadas por devotos] numa procissatildeo religiosardquo e ldquobonecas

de brincadeiras infantisrdquo Natildeo seraacute talvez coincidecircncia que como pudemos ver o boneco

tenha sido explicado como tendo evoluiacutedo e adquirido o seu carisma da figura religiosa e do

brinquedo de crianccedila Ambos satildeo no sentido mais amplo objetos feitos para representar Mas

nenhum deles eacute usado com finalidades ldquonarrativas ou dramaacuteticasrdquo ou para dizer de outra

forma nenhum deles se relaciona com a representaccedilatildeo teatral em si Assim sendo talvez

Proschan natildeo devesse incluiacute-los e assim natildeo os discutirem aqui

Em meio ao contexto do teatro estatildeo os exemplos de Proschan dos ldquopaineacuteis e imagens

acompanhados por narrativasrdquo que poderiam incluir os ldquocontadores de histoacuterias que traccedilam

imagens na areia ou na neverdquo assim como os ldquodanccedilarinos mascaradosrdquo e ldquoadereccedilos de

296

apresentaccedilotildees teatraisrdquo Esses trecircs tipos de atividade podem ser identificados como

envolvendo respectivamente objetos de narraccedilatildeo objetos de mascaramentofantasia e

objetos de encenaccedilatildeo

Jaacute tratamos de objetos de narraccedilatildeo em nossa discussatildeo sobre o exemplo de Jurkowki

do teatro de bonecos de Mestre Pedro Esses objetos sejam eles paineacuteis ilustrados ou imagens

traccediladas na areia ou na neve se parecem no sentido de que ainda que lhes possa ser atribuiacuteda

fala natildeo se lhes pode conferir movimento A sua ldquoanimaccedilatildeordquo para empregar o termos

inadequado de Proschan eacute tatildeo limitada que pode-se mesmo duvidar se isto seria de fato

animaccedilatildeo satildeo nada mais ou nada menos que ilustraccedilotildees pictoacutericas do tipo comumente

encontrado em livros infantis

Tambeacutem jaacute tratamos de objetos de mascaramentofantasia em nossa discussatildeo sobre

se um ator vestindo uma maacutescara ou figurino poderia ser considerado um boneco Devemos

adicionar agora que enquanto objetos de mascaramentofantasia podem possuir movimento

eles natildeo tem e natildeo podem ter uma fala atribuiacuteda pois que qualquer fala associada a eles seraacute

simplesmente a fala do ator ou bailarino que o use Mais uma vez sua animaccedilatildeo eacute tatildeo limitada

que pode-se indagar se esta de fato existe jaacute que o movimento dado a ele seraacute natildeo mais que o

movimento da apresentaccedilatildeo do ator ou bailarino que o vista estando relacionado com o ator e

natildeo com o objeto

Objetos de encenaccedilatildeo ainda natildeo foram abordados Proschan oferece pouco comentaacuterio

acerca deles e nenhum exemplo de fato Veltruskyacute entretanto fornece uma discussatildeo

extensa e nos informa que estes incluem adereccedilos e cenaacuterios e podem ldquoestar presentes como

objetos reais ou como signos como ocorre com espadas de madeira colunas de cartatildeo aacutervores

pintadas etcrdquo (1983 85) De acordo com Veltruskyacute objetos de encenaccedilatildeo satildeo

Animados pela atuaccedilatildeo quando as personagens representam tratando-os

como se fossem seres vivos ou quando estes ocultam personagens vivos

No Tartufo de Moliegravere III7 apoacutes uma breve cena com Tartufo Orgonte

corre ateacute a porta pela qual expulsou seu filho ao final da cena anterior e

encaminha agrave porta uma fala raivosa que seria dirigida ao filho No Ato

IV2 Elmira e Orgonte movem uma mesa ateacute um determinado lugar e o

homem se esconde sob a mesma para ouvir a conversa entre Elmira e

Tartufo da cena seguinte durante essa conversa a atriz repetidamente dirige

a atenccedilatildeo do espectador para a mesa e para a personagem escondida sob ela

fazendo sons a ele encaminhados (1983 86)

Isto envolve uma concepccedilatildeo ampla de animaccedilatildeo de fato e compreende muito fracamente a

concepccedilatildeo de Proschan de ldquoobjetos de representaccedilatildeordquo que estipula que tais objetos seriam

ldquoimagens materiais de seres humanos animais ou espiacuteritosrdquo Pode-se considerar a porta e a

mesa de Moliegravere como imagens materiais dos espiacuteritos de portas e mesas mas novamente

297

entatildeo natildeo algueacutem pode escolher ainda pensar que a porta e a mesa natildeo foram de forma

alguma animadas e natildeo passam dos adereccedilos ou objetos que parecem ser O proacuteprio

Veltruskyacute demonstra consciecircncia dessa segunda escolha e alerta que ldquouma concepccedilatildeo

ampliada de personificaccedilatildeo pode borrar as distinccedilotildees entre bonecos por um lado e por outro

como objetos percebidos sobre a cena como agentesrdquo (1983 88) O objeto de encenaccedilatildeo natildeo

tem a ele atribuiacutedos nem movimento nem fala ainda que ele possa ser movido ou ter falas a

ele endereccediladas ele natildeo pode e a ele natildeo pode ser atribuiacuteda a pretensatildeo de mover-se ou falar

por si mesmo e seraacute animado apenas por meio da accedilatildeo que ocorre ao seu redor

Portanto parece que objetos de encenaccedilatildeo se encontram em um dos extremos do arco

de atividades daquilo que pode ser considerado objeto de representaccedilatildeo um extremo marcado

por um senso de animaccedilatildeo quase inexistente e altamente atenuado Objetos de narraccedilatildeo

parecem se situar proacuteximos ao centro sendo objetos de representaccedilatildeo para os quais a

animaccedilatildeo eacute de alguma forma existente por meio de uma imputaccedilatildeo ocasional de fala mas

ainda um tanto tecircnue Objetos de mascaramentofantasia parecem estar no outro extremo do

arco um extremo marcado por um senso mais substancial de animaccedilatildeo vindo do movimento

que lhe eacute atribuiacutedo

Na extensatildeo desse arco de atividades dos objetos de representaccedilatildeo entretanto o

proacuteprio objeto eacute visto pela plateia como sendo um objeto e apesar dos seus niacuteveis relativos

de animaccedilatildeo eacute imaginado pela plateia como sendo nada aleacutem de um objeto Isto deve estar

claro mesmo em se tratando de objetos de mascaramentofantasia uma maacutescara ou figurino

natildeo eacute nada aleacutem de um objeto vestido por um ser vivo seja este um ator ou um bailarino natildeo

se imagina vida que seja inerente agrave maacutescara ou ao figurino em si mas ao ser vivo que os

veste

Aleacutem do limite extremo desse arco de objetos de representaccedilatildeo provocando visatildeo-

dupla na mente dos espectadores vem o boneco tal como o objeto de representaccedilatildeo ele eacute

visto como sendo um objeto mas diferentemente do objeto de representaccedilatildeo imagina-se que

este possui vida Nesse sentido ele difere de modo essencial Um caso em questatildeo seria o

exemplo de Jurkowski da produccedilatildeo polonesa de Don Quixote A efiacutegie do cavaleiro

desafortunado que eacute espancada por um dos atores eacute um objeto de representaccedilatildeo de encenaccedilatildeo

visto e entendido como sendo nada aleacutem de um objeto mas tendo uma tecircnue animaccedilatildeo

conferida pela accedilatildeo que o cerca Se este fosse de fato animado ou mais precisamente se a ele

fossem atribuiacutedos movimentos e fala de modo a que a plateia imaginasse que possuiacutea uma

vida proacutepria apenas entatildeo ele seria um boneco O boneco eacute claramente um objeto de

298

representaccedilatildeo como Proschan os define mas o conceito de visatildeo-dupla nos permite

reconhecer que a definiccedilatildeo pode apenas incluir o boneco em seu sentido mais amplo

Com o boneco situado dentro do arco de objetos de representaccedilatildeo ele tambeacutem se situa

naquilo que podemos considerar o arco de atividades relativas ao ator Como pudemos ver

McPharlin sugere que o boneco eacute visto pela plateia da mesma maneira como o ator eacute visto

ldquoQuando tornam-se vivos em seus teatros o apelo irresistiacutevel eacute aquele do teatro somenterdquo

(1938 1) Batchelder declara diretamente que ldquoo boneco eacute um ator participando de algum tipo

de apresentaccedilatildeo teatralrdquo (1947 xv) Mas enquanto que a posiccedilatildeo do boneco no arco de

atividades dos objetos de representaccedilatildeo solicitou certa discussatildeo antes de ser identificada

como algo aleacutem desse espectro a identificaccedilatildeo de seu posicionamento em meio ao arco das

atividades de atuaccedilatildeo natildeo parece estar tatildeo em duacutevida Mesmo McPharlin e Batchelder

concordariam que o boneco difere de alguma forma do ator vivo

O ator tem sido o objeto de vastos estudos muitos deles controvertidos o volume de

teoria referente agrave atuaccedilatildeo mais que compensa a escassez do que se refere ao objeto de

representaccedilatildeo Seraacute impossiacutevel oferecer aqui algo aleacutem da mais breve discussatildeo acerca da

atuaccedilatildeo que deve apoiar-se na maior parte tanto no conhecimento do leitor acerca dessa

teoria quanto em sua falta de interesse nesse tema

Tendo feito essa ressalva devemos notar como fizemos com os objetos de

representaccedilatildeo trecircs pontos ao longo do espectro da teacutecnica de atuaccedilatildeo num extremo atuaccedilatildeo

naturaliacutestica rumo ao centro atuaccedilatildeo distanciada e no outro extremo atuaccedilatildeo com maacutescaras

ou fantasias Esses termos seratildeo esclarecidos com algumas descriccedilotildees dos exemplos

Em atuaccedilatildeo naturaliacutestica a proacutepria personalidade do ator e seu status como tal

encontram-se submersos sob a personagem que ele ou ela representa o ator ao maior grau

possiacutevel deseja ser reconhecido pela plateia apenas como aquela personagem O semioacutelogo

Karl Elam se refere a tal atuaccedilatildeo como ldquoilusionistardquo contendo ldquoprinciacutepios mimeacuteticos que

lsquoautenticamrsquo a representaccedilatildeordquo (1980 59) Tal tipo de atuaccedilatildeo eacute frequentemente associada ao

diretor russo Constantin Stanislavski e tem sido o estilo dominante de atuaccedilatildeo ao longo do

seacuteculo XX Ele se apoacuteia unicamente na convenccedilatildeo surpreendentemente abrangente de que a

plateia simplesmente reconheceraacute o que vecirc sobre o palco como sendo a mais crua realidade

Na atuaccedilatildeo distanciada a personalidade do ator e seu status como tal natildeo submergem

completamente num grau maior ou menor o ator natildeo deseja ser reconhecido apenas como a

personagem que representa mas tambeacutem como indiviacuteduo eou como ator Elam descreve as

ldquoconvenccedilotildees do encaminhamento direto de falardquo e a ldquoreferecircncia meta teatralrdquo nesse tipo de

atuaccedilatildeo na qual a ldquoquebra da ilusatildeo mimeacuteticardquo eacute uma ocorrecircncia mais ou menos frequente

299

(1980 59) Bertolt Brecht eacute talvez o expoente mais familiar de tal atuaccedilatildeo e seu famoso

Efeito V identificado em inglecircs tanto como alienaccedilatildeo ou estranhamento107

eacute central para a

questatildeo evitando que plateia se aproxime em demasia de uma identificaccedilatildeo com a

personagem dramaacutetica De fato atuaccedilatildeo distanciada possui uma histoacuteria longa e variada

James Brandon nos informa que no Japatildeo ldquofaz parte do lsquojogorsquo do Kabuki para o espectador

ver o ator-como-ator assim como a personagem no dramardquo (Brandon 1975 42) A base da

atuaccedilatildeo distanciada onde quer que esta ocorra se encontra na convenccedilatildeo teatral de

ldquorealidaderdquo sendo intencionalmente adicionada a outras convenccedilotildees que a enfraquecem

Na atuaccedilatildeo com maacutescaras e fantasias o ator natildeo busca se passar por uma personagem

dramaacutetica naturaliacutestica nem deseja ser reconhecido como uma pessoa ou como um ator

representando um papel Antes como escreve Malkin ldquoalgo se interpotildee entre [o ator] e a

plateia [que] faz parte de misteacuterio ritual siacutembolo e do intelectordquo (1975 7) Embora o ator

seja certamente vivo a apresentaccedilatildeo eacute transformada pelo objeto maacutescarafantasia que ele ou

ela veste Podemos novamente usar o exemplo mundano de Mickey Mouse saracoteando pela

Disneylacircndia natildeo haacute duacutevida de que estamos na presenccedila de um ator de um tipo extremo que

ainda que natildeo participe exatamente de misteacuterio ritual e assim por diante ainda assim

representa uma mediaccedilatildeo transformadora de maacutescara e fantasia

Por todo esse arco de teacutecnicas de atuaccedilatildeo apesar das convenccedilotildees metateatrais e das

interposiccedilotildees feitas pelas maacutescaras e fantasias o ator natildeo eacute percebido pela plateia como algo

que natildeo seja vivo o ator tambeacutem eacute imaginado como estando vivo mesmo que essa vida

imaginaacuteria natildeo seja geralmente a do ator mas da personagem que representa Isto deve estar

claro mesmo com a representaccedilatildeo com maacutescaras e fantasias o ator com a maacutescara ou com a

fantasia eacute entendido e imaginado como estando vivo enquanto que a maacutescara ou fantasia eacute

obviamente um objeto sob o seu controle direto A natureza de objeto da maacutescarafantasia natildeo

eacute entendida como inerente ao ser vivo que a veste mas agrave maacutescarafantasia em si

Para aleacutem do limite da abrangecircncia do ator vivo provocando visatildeo-dupla na mente de

sua plateia surge o boneco como o ator imagina-se que este esteja vivo mas diferentemente

do ator ele eacute entendido como um objeto Nesse sentido o boneco difere essencialmente do

ator

O boneco e o ator tecircm os mesmos trecircs sistemas de signos a sua disposiccedilatildeo e isso pode

fazer parecer que a plateia os reconheceria de modo semelhante Bogatyrev aponta entretanto

que ldquoapesar do fato de o ator expressar dignidade real por meio de seu figurino sinalizar sua

107

Os termos mais usados em portuguecircs para caracterizar o efeito V brechtiano satildeo distanciamento e estranhamento

300

idade por seu modo de caminhar indicar que representa um estrangeiro por seu modo de falar

e assim por diante ainda o veremos natildeo apenas como um sistema de signos mas como uma

pessoa vivardquo (1976 [1938] 48) Sob os signos apresentados pelo ator a audiecircncia natildeo

consegue deixar de ver uma pessoa viva Veltruskyacute escreve

O corpo do ator entre na situaccedilatildeo dramaacutetica com todas as suas

propriedades Um ser humano vivo natildeo pode compreensivelmente alijar-se

de algumas delas e manter em si apenas aquelas necessaacuterias agrave situaccedilatildeo dada

Isso eacute o que faz com que a figura do ator seja mais complexa e rica e

estamos tentados a dizer mais concreta se comparados a outros suportes de

signos (1964 [1940] 84-85)

O ser vivo que eacute o ator complica a artificialidade dos signos que apresenta por meio da

personagem com a apresentaccedilatildeo simultacircnea dos signos de vida real Mas o boneco natildeo possui

vida de fato Dispa o boneco e o ator de seus signos teatrais e ainda se teraacute por um lado uma

pessoa viva ao passo que o boneco teraacute deixado de existir Alexandre Bakshy um escritor

norte americano do iniacutecio do seacuteculo XX expressa essa diferenccedila com um aforismo

satisfatoacuterio ldquoNatildeo podemos jamais aplicar os mesmos padrotildees ao ser humano e ao boneco

O boneco natildeo pode nunca viver a menos que represente O homem natildeo pode jamais

representar a menos que vivardquo (citado em Batchelder 1947 287)

A distinccedilatildeo entre o ator e o boneco entre a pessoa entendida como estando viva e o

boneco entendido como um objeto possui ramificaccedilotildees teatrais significativas Obraztsov

escreve que ldquoo boneco natildeo eacute um homem eacute a alegoria de um homem Como todas as alegorias

ele possui o poder de generalizar a realidaderdquo (1967 [1965] 20) Maeterlink considera

grandemente essa mesma questatildeo agrave sua proacutepria maneira ldquoUm homem pode falar apenas por

seu proacuteprio nome natildeo possui o direito de falar em nome de todo o mundo dos mortosrdquo

(citado em Jurkowski 1988 [1979] 12-13) O boneco entretanto possui esse direito pelo fato

de natildeo estar assoberbado por sua proacutepria vida real Ele pode falar em nome de qualquer

homem ou qualquer grupo de homens Como eacute sugerido por Kleist ldquoa graccedila aparece em sua

feiccedilatildeo mais pura naquela forma humana que ou natildeo possui qualquer consciecircncia ou possui

uma consciecircncia infinita ou seja no boneco ou no deusrdquo (1978 [1810] 1212) Pelo fato de

que a uacutenica consciecircncia que o boneco pode ter eacute aquela a ele investida por uma audiecircncia

anocircnima e potencialmente infinita pode-se imaginar que este suporte a consciecircncia de um

mundo anocircnimo e infinito

As relaccedilotildees entre o boneco e o objeto de representaccedilatildeo e entre o boneco e o ator

podem ser claramente definidas o boneco se encontra logo aleacutem das extremidades dos

alcances tanto do objeto de representaccedilatildeo quanto da atuaccedilatildeo Embora se possa entender que o

301

boneco se encontre no interior de tais alcances de acordo com as definiccedilotildees oferecidas o

conceito de visatildeo-dupla o esclarece como sendo um fenocircmeno distinto agrave sua proacutepria feiccedilatildeo

Mas aproximado do boneco em cada um dos mencionados alcances estatildeo o objeto de

representaccedilatildeo e mascaramento ou fantasia por um lado e o ator que veste uma maacutescara ou

fantasia pelo outro Anteriormente discutimos sobre a tentativa de pessoas ligadas ao teatro de

boneco em anexar a maacutescara devido agraves suas relaccedilotildees de proximidade entre boneco e maacutescara

isto natildeo seria surpreendente Tambeacutem natildeo seria surpreendente se estudiosos e praticantes no

campo da maacutescara tentassem anexar o boneco Como pudemos ver entretanto o boneco

difere essencialmente do objeto de representaccedilatildeo de mascaramentofantasia e do ator que

veste uma maacutescara ou fantasia e o entendimento do boneco requer que este se considere

como um fenocircmeno distinto se mesmo relacionado

Seria talvez uacutetil apresentar esquematicamente as relaccedilotildees aqui discutidas

Objetos de representaccedilatildeo Bonecos Atores

Encenaccedilatildeo

Narraccedilatildeo

Mascaramentofantasia

Bonecos

Maacutescarafantasia

Distanciada

Naturaliacutestica

Percepccedilatildeo Objeto Percepccedilatildeo Objeto Percepccedilatildeo Vida

Imaginaccedilatildeo Objeto Imaginaccedilatildeo Vida Imaginaccedilatildeo Vida

Julie Taymor uma artista do teatro norte americano contemporacircneo que mistura

brilhantemente cada um dos meios discutidos acima mais especialmente em sua produccedilatildeo

Juan Darien justifica seus usos explicando que ldquoa alteraccedilatildeo de escala a fusatildeo de meios ndash

atores vivos junto com atores com maacutescaras junto com bonecos ndash nos ajuda a mover-nos por

diferentes niacuteveis de realidaderdquo (1983 114)

O sabor de Juan Darien eacute capturado por Stephen Kaplin um estudioso e artista de

teatro de bonecos norte americano que ajudou a montar e apresentou na referida produccedilatildeo

Em uma cena poderosa Juan um jovem rapaz que havia sido um filhote de

tigre oacuterfatildeo e que foi salvo da arma de um caccedilador pela piedade de uma matildee

presencia a morte de sua matildee adotiva Ao inicio da cena Juan eacute representado

por um boneco no estilo bunraku mas no momento da morte de sua matildee o

boneco Juan eacute substituiacutedo por um menino ator A matildee moribunda

representada por uma atriz em uma maacutescara senta-se em sua cama e busca

alcanccedilar o menino Ele toca em seu rosto mascarado Ela cai para traacutes morta

deixando a maacutescara vazia nas matildeos do menino Apoacutes um dueto pesaroso do

Latin Requiem Juan escala ateacute o topo de [uma] cidade em miniatura e

enterra a maacutescara da matildee junto a [uma] igreja do tamanho de um brinquedo

(1989 48)

302

Existe uma poesia eficiente na mobilidade entre ldquodiferentes niacuteveis de realidaderdquo nessa cena

Kaplin nota que ldquoa anguacutestia do menino diante da morte do uacutenico ser humano que lhe devotou

amor o humaniza Essa transformaccedilatildeo interna eacute indicada metaforicamente em se transferindo

o papel de Juan do boneco para o humanordquo (1989 48-49) Igualmente significativo eacute o

momento da morte da matildee relacionado agrave retirada da maacutescara o siacutembolo de sua persona

A mistura de meios natildeo apenas permite a Taymor lidar com um conto de realismo

fantaacutestico ao estilo da recente literatura latino americana mas tambeacutem a permite produzir

efeitos teatrais eloquentes versando sobre a natureza da humanidade Por meio do emprego de

ldquoalteraccedilatildeo de escalardquo entre objetos de representaccedilatildeo atores e bonecos ela permite que cada

meio desafie e enriqueccedila os outros e compele a plateia a confrontar ideias conflitantes sobre o

que seria ldquoobjetordquo e o que seria ldquovidardquo Distinguir o boneco do objeto de representaccedilatildeo e do

ator a partir do suporte da visatildeo-dupla provoca natildeo apenas o isolamento do boneco em relaccedilatildeo

aos demais mas mais que isso explica os relacionamentos entre os trecircs meios e esclarece os

modos pelos quais podem interagir

303

- II -

DESCREVENDO O BONECO

4

DESCRICcedilOtildeES CONSAGRADAS

Quando as pessoas falam em bonecos ainda que consigam ou natildeo articular

precisamente o que eacute um boneco e ainda que estejam ou natildeo interessadas em explicar a

natureza do encanto do boneco elas empregam certas palavras para descrever como um

boneco ou espetaacuteculo com bonecos eacute similar ou diferente de outros afinal cada obra de arte

existe dentro do contexto geral de sua arte e uma apreciaccedilatildeo significativa de uma obre requer

algum entendimento de sua relaccedilatildeo com tal contexto Mas quais satildeo os termos usados para

criar distinccedilotildees entre trabalhos em teatro de bonecos e como tais distinccedilotildees modelam as

discussotildees acerca do teatro de bonecos A base descritiva eacute um vocabulaacuterio que pode ser

usado para comparaccedilatildeo e contraste Infelizmente o vocabulaacuterio descritivo para o boneco eacute

limitado e confuso

O meacutetodo mais simples de descriccedilatildeo envolve pouco mais que um afloramento de

adjetivos aplicado para bonecos ou espetaacuteculos especiacuteficos este boneco eacute pequeno aquele eacute

grande esta peccedila eacute colorida aquela eacute teatralmente complexa Exemplos dessa metodologia

satildeo uma legiatildeo Eis uma da artista russa Nina Efimova oferecida com a advertecircncia de que

suas contribuiccedilotildees natildeo satildeo essencialmente acadecircmicas ldquoA menina cigana move-se

majestosamente Sua face radiante eacute branca absolutamente descolorada Os cabelos satildeo feitos

de cordas desfiadas imersas em tinta preta e enrolado em forma de aneacuteis O vestido suave eacute

de uma tintura resplandecente amarelo canaacuterio e de musselina lilaacutesrdquo (1935 149)

A descriccedilatildeo conteacutem informaccedilotildees detalhadas e uacuteteis para a re-criaccedilatildeo do leitor de um

boneco em particular eacute entretanto limitado para comparaccedilatildeo e contraste desse boneco com

outros a menos eacute claro se o efeito da corda desfiada em oposiccedilatildeo a uma corda que natildeo

tenha sido desfiada esteja em questatildeo Tal meacutetodo de descriccedilatildeo eacute limitado ainda que forneccedila

bastante informaccedilatildeo pelo fato de que seu vocabulaacuterio natildeo eacute adequado para comparaccedilatildeo e

contraste Natildeo diz respeito agravequilo que eacute considerado sistema descritivo ou seja com

descriccedilotildees taxonocircmicas que permitam comparaccedilotildees e contrastes entre bonecos Uma vez que

304

tais sistemas tais taxonomias pareccedilam oferecer as melhores chances de desenvolvimento de

tal vocabulaacuterio

Taxonomia eacute uma ciecircncia mal compreendida Segundo Stephen Jay Gould professor

de biologia e geologia da Universidade de Harvard explica no livro Wonderful Life (Vida

Maravilhosa)

Taxonomia (a ciecircncia da classificaccedilatildeo) eacute constantemente subvalorizada como uma

forma gloriosa de arquivamento ndash com cada espeacutecie em sua pasta como um selo

em seu espaccedilo determinado no aacutelbum mas a taxonomia eacute uma ciecircncia

fundamental e dinacircmica dedicada a explorar as causas dos relacionamentos e

similaridades entre os organismos Classificaccedilotildees satildeo teorias sobre as bases da

ordem natural e natildeo categorias arbitraacuterias dispostas apenas para evitar o caos

(1989 98)

Eacute claro que o nosso estudo natildeo diz respeito agrave ordem natural dos organismos como o

de Gould quando discute a taxonomia da fauna preacute cambriana Natildeo obstante os princiacutepios da

ldquociecircncia da classificaccedilatildeordquo satildeo significantes para o estudo do teatro de bonecos assim como

para o estudo de todas as artes uma vez que o problema de descrever ldquorelaccedilotildees e

similaridadesrdquo solicitam agrave teoria taxonocircmica E assim como Gould sugere em seu livro

taxonomias e as teorias nelas embutidas delineiam poderosamente a maneira como as

pessoas compreendem e discutem seus temas

O simples meacutetodo de descriccedilatildeo retirado de Efimova parece basear-se na teoria de que

cada boneco eacute uacutenico Isto eacute certamente verdadeiro mas apenas num sentido literal Apesar de

tal exclusividade cada boneco eacute de determinadas maneiras parecido e diferente de outros

bonecos e compreenderemos melhor acerca do valor uacutenico de cada boneco se pudermos

entender seu lugar no mundo dos bonecos em geral

O teatro de bonecos como pudemos perceber anteriormente e cada autor dedicado ao

teatro de bonecos eacute forccedilado a notar possui raiacutezes tradicionais em muitas culturas Talvez isto

seja o porquecirc de um dentre os dois meacutetodos de taxonomias predominantes fazer uso da

variedade de tradiccedilotildees de bonecos como seu princiacutepio de organizaccedilatildeo Este meacutetodo eacute

diacrocircnico em abordagem e pode ser chamado de meacutetodo histoacuterico-geograacutefico

O livro bastante difundido de Bill Baird The Art of the Puppet (A arte do boneco)

emprega esse meacutetodo Este natildeo eacute apenas um dos livros mais vendidos sobre teatro de bonecos

jamais publicado mas eacute tambeacutem um apanhado perpicaz e delicioso acerca do fenocircmeno do

boneco Um exame do sumaacuterio do livro deixa claro os princiacutepios baacutesicos do meacutetodo histoacuterico-

geograacutefico O capiacutetulo 3 ldquoHeranccedila orientalrdquo lida com as tradiccedilotildees de bonecos da Iacutendia e da

Indoneacutesia o capiacutetulo 4 ldquoAnjos democircnios amp Todomundordquo trata das do norte e do leste da

Europa o capiacutetulo 5 ldquoKaraghioz um deleite turcordquo com as do sudoeste europeu Os trecircs

305

capiacutetulos seguintes tratam das tradiccedilotildees de respectivamente Inglaterra Itaacutelia e ldquoO Orienterdquo

sendo a China e o Japatildeo os trecircs capiacutetulos finais relata a histoacuteria do teatro de bonecos

ocidental em respectivamente o fim do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX o final do

seacuteculo XIX e os idos do seacuteculo XX (1965 5)

The Art of the Puppet demonstra o valor organizacional do meacutetodo historico-

geograacutefico especialmente para o trabalho popular Tal valor entretanto natildeo se encontra na

taxonomia apresentada uma vez que o meacutetodo possui dois problemas significantes um

praacutetico outro teoacuterico

O problema praacutetico eacute que o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico se parte sobre um exame

detido sobre a histoacuteria e a geografia envolvidas Os periacuteodos histoacutericos que Baird apresenta

satildeo pouco mais que construccedilotildees artificiais De fato ele apenas demonstra interesse nas

alteraccedilotildees histoacutericas quando discute a Europa Ocidental encontra-se geralmente em silecircncio

acerca das mudanccedilas verificadas com o tempo para as culturas orientais provavelmente sob a

suposiccedilatildeo de que leitores ocidentais natildeo estariam interessados em tais questotildees ou

provavelmente sob a suposiccedilatildeo de que o oriente eacute atemporal Mas mesmo em suas discussotildees

sobre as tradiccedilotildees ocidentais seu senso histoacuterico parece um tanto arbitraacuterio

Para usar um exemplo o capiacutetulo de Baird sobre o seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX se

intitula ldquoO impacto do Gecircniordquo e discute o papel sobre o teatro de bonecos desempenhado por

luminares tais como Gluck Gozzi Seraphin Sand e Bizet Mas a proximidade temporal entre

essas pessoas natildeo sugerem de modo algum qualquer unidade de pensamento em direccedilatildeo ao

boneco existente entre eles ou durante esse periacuteodo enquanto que movimentos culturais mais

amplos poderiam estar em curso Baird se envolve em nada aleacutem de uma forma glorificada de

arremessar nomes para levar adiante o argumento de que finalmente o teatro de bonecos

estava sendo levado a seacuterio Mas como Baird bem sabe essas pessoas natildeo formaram qualquer

escola especiacutefica de pensamento acerca do boneco e tiveram pouco impacto sobre o curso do

teatro de bonecos europeu De fato mesmo individualmente o envolvimento dessas figuras

com o teatro de bonecos tendeu a ser incidental e superficial O verdadeiro envolvimento de

George Sand com o teatro de bonecos era limitado a costurar as roupas dos bonecos de seus

filhos e compor algumas descriccedilotildees de suas tentativas teatrais Sobre Sand Edward Gordon

Craig escreve que ldquoa dignidade ou a profundidade dos bonecos estatildeo perdidos nelardquo (citado

em McPharlin 1938 14) McPharlin Comenta na mesma linha que faltava a Sand qualquer

ldquopercepccedilatildeo para a esteacutetica do bonecordquo (1938 14) E dentre todos os famosos personagens

citados por Baird Sand era talvez a mais relacionada com o teatro de bonecos

306

As aacutereas geograacuteficas que Baird apresenta satildeo ainda mais problemaacuteticas tanto pelo que

incluem pelo que excluem Novamente um exemplo a junccedilatildeo que Baird faz das muitas

tradiccedilotildees dos teatros de bonecos indianos eacute para se dizer o miacutenimo ousada quando ele

amontoa junto a essas tradiccedilotildees as diversas tradiccedilotildees de bonecos da Indoneacutesia ele se torna

temeraacuterio A sua discussatildeo dessas tradiccedilotildees em conjunto eacute feita devido ao fato de estarem

num sentido amplo geograficamente proacuteximas e porque muitas delas foram influenciadas

pela literatura hindu mas como o proacuteprio Baird sugere as relaccedilotildees entre as diversas tradiccedilotildees

indianas satildeo um tanto nebulosas (1965 46-60) Aleacutem disso as relaccedilotildees entre qualquer das

tradiccedilotildees indianas com as inuacutemeras tradiccedilotildees da Indoneacutesia eacute um assunto de substancial

controveacutersia Como nos diz Brandon ldquoa teoria acerca da origem indiana do Wayang [ou seja

de bonecos javaneses] tem sido amplamente debatida com resultados inconclusivosrdquo (1970

3)

E entatildeo haacute a questatildeo do que deve ser excluiacutedo Novamente um singelo exemplo entre

os limites geograacuteficos do capiacutetulo de Baird sobre ldquoHeranccedila Orientalrdquo (India e Indoneacutesia) e

ldquoTradiccedilatildeo Orientalrdquo (China e Japatildeo) estatildeo localizadas tradiccedilotildees fascinantes de teatros de

bonecos que natildeo podem ser incorporadas a nenhum dos capiacutetulos pelo fato de serem

simplesmente muito diferentes A tradiccedilatildeo thai do Nang yai usa sombras de mais de dois

metros de altura por um de largura geralmente manipuladas em frente agrave tela a tradiccedilatildeo

birmanesa do Yoke thay emprega marionetes controladas por ateacute sessenta fios contando

histoacuterias baseadas na sabedoria budista e histoacuteria da Birmacircnia (NT O paiacutes eacute hoje conhecido

como Mianmar) a tradiccedilatildeo vietnamita dos bonecos aquaacuteticos emprega figuras operadas por

longas varas de bambu e mecanismos extravagantes de fios que se apresentam num palco

elevado em meio a fogos de artifiacutecio espoucantes no meio de um lago (Malkin 1977 120-

33)

As aacutereas geograacuteficas agraves quais Baird se refere como Leste ou Oriente exemplificam os

problemas praacuteticos do meacutetodo histoacuterico-geograacutefico a separaccedilatildeo de cada uma inclui tradiccedilotildees

que satildeo relativamente independentes enquanto que postas juntas excluem tradiccedilotildees que satildeo

significativas agraves suas maneiras

Natildeo parece haver nenhuma soluccedilatildeo imediata para esse problema praacutetico de histoacuteria e

geografia Enquanto que as supersimplificaccedilotildees de Baird satildeo mal sucedidas uma classificaccedilatildeo

completa para os bonecos com base na histoacuteria e na geografia natildeo parece ser algo ainda

possiacutevel devido em parte a uma certa carecircncia de textos que relatem em detalhes certa

quantidade de tradiccedilotildees de bonecos A bibliografia de Baird conteacutem pouco mais que um

punhado de trabalhos dedicados a bonecos natildeo ocidentais (1965 249) o informativo de

307

Malkin Traditional and Folk Puppets of the World (Bonecos tradicionais e populares do

mundo) oferece apenas uma duacutezia pouco mais de fontes natildeo ocidentais adicionais (1977

187-91) O problema natildeo se deve tanto agraves pesquisas de Baird e de Malkin que compilaram

tanta informaccedilatildeo quanto puderam das fontes publicadas acessiacuteveis e mais exatamente agrave

pobreza de tais fontes Ateacute que estudos adicionais sejam conduzidos o meacutetodo histoacuterico-

geograacutefico eacute forccedilado por necessidade a recorrer a limites histoacutericos e geograacuteficos artificiais

O problema teoacuterico com o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico eacute que se toda manifestaccedilatildeo de

teatro de bonecos deve ser visto primordialmente dentro do contexto de suas tradiccedilotildees

histoacutericas e geograacuteficas entatildeo os proacuteprios bonecos natildeo poderatildeo ser facilmente considerados agrave

parte desses contextos tradicionais Ou para dizer de outra maneira o meacutetodo histoacuterico-

geograacutefico concede pouca permissatildeo para comparaccedilotildees entre bonecos de tradiccedilotildees diferentes

Mais uma vez usando um exemplo a tradiccedilatildeo do Karaghioz fundada na Greacutecia e derivada de

uma apresentaccedilatildeo turca faz uso do que eacute geralmente conhecido como teatro de sombras

assim como uma tradiccedilatildeo particular na China e tambeacutem haacute teatros de sombra

contemporacircneos na Europa e na Ameacuterica De que maneiras esses diversos teatros de sombras

se parecem e em que maneiras diferem O meacutetodo histoacuterico-geograacutefico obscurece as

similaridades oacutebvias trazendo a atenccedilatildeo para as diferenccedilas oacutebvias de histoacuteria e geografia Mas

uma anaacutelise de tais similaridades natildeo poderia levar luz natildeo apenas para o estudo do teatro de

sombras em geral mas para as escolhas ocultas e para as implicaccedilotildees dessas tradiccedilotildees

mesmas

De fato Baird oferece uma breve comparaccedilatildeo de algumas dessas tradiccedilotildees de teatro de

sombras notando que a forma como o bastatildeo de controle se conecta ao objeto que produz a

sombra difere entre tradiccedilotildees permitindo dessa forma diferentes movimentos para os bonecos

(1965 79) Essa eacute entretanto uma das raras ilustraccedilotildees de tais comparaccedilotildees presentes no

livro Eacute revelador que essa mesma comparaccedilatildeo apoacuteie-se sobre o meacutetodo taxonocircmico que

discutiremos em breve uma vez que ao meacutetodo histoacuterico-geograacutefico falte o vocabulaacuterio para

comparar e contrastar

Deve parecer injusto o uso de tal criticidade sobre uma obra popular como a de Baird

Deve ser dito no entanto que trabalhos populares satildeo praticamente os uacutenicos trabalhos sobre

teatro de bonecos disponiacuteveis em liacutengua inglesa e que tais trabalhos representam a discussatildeo

que os precederam e moldam as discussotildees que os seguem Por tais razotildees tal criticismo

parece ser natildeo apenas justo como necessaacuterio Os dois problemas baacutesicos identificados no

livro de Baird podem ser percebidos em qualquer estudo geral que empregou o meacutetodo

histoacuterico-geograacutefico

308

Deve ser reiterado no entanto que o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico tem amplo valor

sempre que os autores manteacutem seu foco numa determinada aacuterea histoacuterico-geograacutefica

Trabalhos como On Thrones of Gold Three Javanese Shadow Plays (Em tronos de ouro trecircs

peccedilas javanesas de sombras) Speaightacutes History of the English Puppet Theatre (A histoacuteria de

[George] Speaight do teatro de bonecos inglecircs) de Brandon Backstage at Bunraku (Os

bastidores do Bunraku) de Adachi Chinaacutes Puppets (Bonecos da China) de Stalberg e The

Karagiozis Heroic Performance in Greek Shadow Theatre (A apresentaccedilatildeo heroacuteica dos

Karagiozis no teatro de sombras grego) de Linda Myrsiade satildeo guias valiosos para as

tradiccedilotildees que examinam Quando uma lista de obras aleacutem dessas tratando de outras tradiccedilotildees

puder ser citada o meacutetodo histoacuterico-geograacutefico poderaacute finalmente fornecer bases de acordo

com um vocabulaacuterio adequado para uma esteacutetica do boneco completa e diacrocircnica

Este estudo tem usado com regularidade termos descritivos que tecircm as suas bases em

outro meacutetodo taxonocircmico um que atualmente domina as discussotildees em liacutengua inglesa a

respeito do teatro de bonecos de fato os termos satildeo empregados regularmente mesmo em

textos histoacuterico-geograacuteficos tal como o trabalho de Baird O meacutetodo do qual esses termos

derivam tem moldado as discussotildees acerca do boneco tatildeo profundamente que trataacute-lo como

um meacutetodo entre outros pode parecer surpreendente Esse meacutetodo que geralmente mas natildeo

exclusivamente perfaz uma aproximaccedilatildeo sincrocircnica parte da observaccedilatildeo de que o boneco eacute

uma construccedilatildeo fiacutesica que deve ser manipulada e deve ser chamado de meacutetodo objeto-

controle

Esse meacutetodo de classificaccedilatildeo taxonocircmica inicia com uma divisatildeo fundamental Como

apresenta a questatildeo Cyril Beaumont um marionetista inglecircs de meados do seacuteculo XX ldquoTodos

os bonecos podem ser compreendidos em dois grupos arredondados ou tridimensionais e

planos ou bidimensionaisrdquo (1958 17) Essa divisatildeo se baseia naquilo que parece ser o criteacuterio

mais oacutebvio para classificaccedilatildeo de boneco como objetos e eacute observado tanto explicitamente

quanto implicitamente pela maior parte dos autores que discutem a questatildeo a partir de uma

abordagem formal de alguma maneira (ver Blackham 1948 1-5 Veltruskyacute 1983 69

McPharlin 1938 85-92 Arnott 1964 58-65)

Para aleacutem dessa divisatildeo fundamental o meacutetodo objeto-controle organiza os bonecos

de acordo com certos tipos baseados na forma como satildeo controlados O que segue eacute a versatildeo

de Beaumont de sua taxonomia (1958 17)

309

Planos (bidimensional)

1 bonecos de papel ou cartatildeo

2 sombras

Arredondados (tridimensionais)

1 bonecos de fio ou marionetes

2 bonecos de vara

3 bonecos de jiga (jigging puppets)

4 bonecos de luva ou bonecos de matildeo

5 bonecos controlados magneticamente

6 bonecos japoneses de trecircs manipuladores

A maior parte desses termos seraacute familiar alguns podem soar idiossincraacuteticos As

familiaridades e idiossincrasias seratildeo mostradas por meio de uma observaccedilatildeo de outras

taxonomias do tipo objeto-controle

Olive Blackham um autor e artista da marionete inglecircs da metade do seacuteculo XX

oferece a seguinte classificaccedilatildeo de bonecos aqui apresentada de forma resumida (1948 1-5)

Planos (bidimensionais)

1 Bonecos que datildeo a ver suas substacircncias (ex ldquoteatro de brinquedordquo)

2 Bonecos que datildeo a ver as suas sombras

a Figuras ldquoopacasrdquo que projetam ldquosilhuetasrdquo (ou ldquosombras negrasrdquo)

b Figuras ldquocoloridas e transluacutecidasrdquo que projetam ldquosombras coloridasrdquo

Arredondados (tridimensionais)

1 Bonecos manipulados por cima por meio de fios (ex marionetes convencionais)

2 Bonecos manipulados por cima por meio de varas (ex os ldquobonecos de Liegravegerdquo ou os ldquoda Siciacuteliardquo)

3 Bonecos manipulados por baixo por meio de varas (ex bonecos de vara convencionais)

4 Bonecos manipulados por baixo poacute meio de cabos polias ou outros dispositivos (ex ldquoos grandes

bonecos japosesesrdquo presumivelmente bonecos de bunraku)

5 Bonecos manipulados pelas matildeos por baixo (ex bonecos de luva ou bonecos de matildeo)

A terminologia de Blakham eacute um tanto desajeitada mas tal falta de jeito emerge em

parte do desejo de apresentar certa loacutegica sistemaacutetica Certas distinccedilotildees satildeo feitas entre as

possiacuteveis disposiccedilotildees do operador do boneco (abaixo ou acima do boneco) e entre

verdadeiros modos de controle do boneco (fios varas etc) O esforccedilo eacute bem intencionado

mas por razotildees que ainda seratildeo esclarecidas permanece insuficiente

Em sua tese ldquoAsthetic of the Puppet Revivalrdquo [Esteacutetica do renascimento do boneco]

McPharlin natildeo traccedila uma taxonomia formal ainda assim haacute uma taxonomia impliacutecita em seu

310

trabalho e ele faz referecircncias a marionetes bonecos de matildeo e ldquoos cinco outros principais

tipos de bonecosrdquo (1938 33) Quando as analisa entretanto ele discute um total de apenas

seis tipos Satildeo em sua ordem de anaacutelise

1 Bonecos de fio

2 Bonecos de vara ou bastatildeo

3 Bonecos de jiga (jigging-puppets)

4 Bonecos de matildeo

5 Bonecos de papel ou cartatildeo

6 Sombras

Noutro momento de sua tese McPharlin faz uma breve menccedilatildeo aos bonecos do

bunraku ldquobonecos de quatro peacutes de altura feitos com tal elaboraccedilatildeo mecacircnica que podem

erguer suas sobrancelhas e fechar seus punhosrdquo (1938 56) como natildeo faz qualquer menccedilatildeo

aos bonecosmarionetes de bastatildeo de Liegravege e da Siciacutelia pode-se considerar o boneco do

bunraku como sendo seu seacutetimo tipo

Arnott se satisfaz em enumerar ldquoquatro tipos principais de bonecosrdquo (1964 58) Satildeo

em ordem de discussatildeo

1 Bonecos de luva

2 Sombras

3 Bonecos de vara

4 Marionetes

Natildeo restam duacutevidas de que esses satildeo os termos mais familiares ao longo dessa anaacutelise

das taxonomias objeto-controle Ainda assim todos os termos usados por esses autores sejam

dignos de consideraccedilatildeo pois os mais idiossincraacuteticos relacionam-se com esse meacutetodo tanto

quanto os mais familiares

De acordo com a taxonomia de Beaumont o primeiro tipo eacute o de ldquobonecos de papel ou

cartatildeordquo planos tambeacutem mencionado por Blackham e McPharlin Ainda segundo Beaumont

os mais famosos desses bonecos satildeo ldquoassociados ao drama juvenil o teatro de brinquedo

fortemente ativo da segunda metade do seacuteculo XIX quando jovens produtores adquiriam seus

atores das folhas lsquolisas de um penny e coloridas de doisrsquordquo (1958 19) Blackham sugere que

esse tipo era ldquooriginalmente um brinquedo para crianccedilasrdquo (1948 1) McPharlin desfaz desse

tipo rapidamente declarando que ldquoeacute restrito demais em movimentos para dar alternativas ao

311

artista e quando este brinca com esses bonecos se encontra mais apto a gastar mais energia

com a panoacuteplia cecircnica do que com as proacuteprias figurasrdquo (1938 91)

Gunther Boumlhmer um estudioso alematildeo contemporacircneo aponta

[Esse] teatro imbuiacutea a filigranada magnificecircncia do [diorama] com uma ilusatildeo

de vida Como possui figuras moacuteveis que podem ser deslizadas de um lado a

outro por meio de fios varas ou mesmo magnetos o teatro de papel eacute

contado em meio agraves muitas formas de teatro de bonecos Fundamentalmente eacute

associado de perto ao teatro ldquovivordquo o qual em completo contraste agraves

intenccedilotildees do teatro de boneco busca imitar o mais proacuteximo e com mais

autenticidade possiacutevel (1971 [1969] 53)

Seguindo Boumlhmer e de acordo com todas as definiccedilotildees discutidas anteriormente o

teatro de brinquedo natildeo eacute estritamente falando teatro de bonecos sua imitaccedilatildeo natildeo se

relaciona tanto com a accedilatildeo dramaacutetica quanto o glamour e a grandiosidade do teatro de atores

Isto natildeo pretende sugerir que o teatro de brinquedo natildeo possa ser usado como teatro de

bonecos mas apenas para reconhecer que geralmente natildeo eacute muito usado como tal Embora

seja um fenocircmeno fascinante agrave sua proacutepria maneira parece ser mais apropriadamente

estudado a partir de perspectivas outras que a da esteacutetica do boneco

Perdido em meio agraves muitas referecircncias ao teatro de brinquedo haacute dois tipos de bonecos

similares que poderiam muito bem serem caracterizados usando os termos de Blackham

como bonecos ldquoplanosrdquo ldquoque datildeo a ver as suas substacircnciasrdquo Embora natildeo possuam nomes

genericamente aceitos podem ser chamados de bonecos de recortes e bonecos de painel

O boneco de recortes natildeo eacute nada aleacutem do que seu nome sugere o contorno de uma

figura cortado em algum material como papel cartatildeo ou madeira com uma cobertura de

pintura ou figurino A produccedilatildeo de Bob Brown para The Enchantede Child (A crianccedila

encantada) o exemplo americano de nossa introduccedilatildeo faz uso efetivo de tais bonecos

recortados para os personagens menores que satildeo entendidos pela personagem principal como

elementos riacutegidos e artificiais satildeo movimentados como um todo ou possuem uma ou duas

articulaccedilotildees para permiti-los possuir braccedilos moacuteveis Todos os movimentos satildeo dados por

meio de varas pelo operados encarregados dos bonecos de recortes Embora suas

possibilidades de movimentaccedilatildeo sejam algo limitadas suas formas e fala combinadas com os

movimentos que lhes satildeo dados permitem agrave plateacuteia imaginaacute-los como tendo vida

O boneco de painel eacute um pouco mais complexo Na produccedilatildeo do Teatro de Bonecos

Estatal de Budapeste de Haacutery Jaacutenos de Kodaacutely muitas das figuras satildeo nas palavras de

Gyoumlrgy Krooacute um membro da companhia ldquofiguras unidimensionais [que satildeo] moacuteveis e que

podem em algumas ocasiotildees usadas como telasrdquo (1978 54) Por unidimensional Krooacute queria

312

dizer que o boneco apresentava apenas um aspecto para a audiecircncia Enquanto que o boneco

de recorte separa a figura da personagem de seu painel original de cartatildeo ou madeira o

boneco de painel permanece essencialmente uma unidade autocircnoma de trainel Seu

movimento deve ser dado de duas maneiras a unidade com a figura deve possuir um ou dois

aspectos moacuteveis tais como uma manga de tecido dentro da qual o manipulador pode por e

mover seu braccedilo ou um dispositivo mecacircnico que permite partes do boneco como olhos e

boca abrirem-se e fecharem-se A unidade como um todo pode ser movida com rodas para

diversos locais no palco Eacute esse segundo tipo de movimento que permite aos bonecos serem

usados como telas assim como qualquer trainel pode ser usado

Bonecos de recortes e bonecos de painel excetuando-se o seu uso para a criaccedilatildeo de

sombras parecem natildeo ser regularmente empregados em nenhuma das grandes tradiccedilotildees

Ainda assim por todas as definiccedilotildees discutidas anteriormente estes satildeo bonecos ainda que

natildeo tenham sido percebidos por taxocircnomos adeptos do tipo objeto-controle

Seguintes na lista de tipos de bonecos de Beaumont vecircm os bonecos de sombras que

possuem um lugar em todas as nossas listas Sombras satildeo essencialmente nada mais que

bonecos de recorte usualmente controlados por varas Os autores das listas notam juntamente

com Blackham que suas sombras projetadas podem ser tanto negras quanto coloridas

dependendo da transparecircncia de seus materiais McPharlin comenta que essas formas tais

como as de teatro de brinquedo ldquodevem ser consideradas restritas em movimento mas natildeo

em fascinaccedilatildeo uma luz brilha atraveacutes da tela e a tela estaacute sempre em uma sala escura

Voltamo-nos em direccedilatildeo agrave luz tal como girassoacuteis [Boneco de sombras] nunca transmitem

ilusatildeo de vida verdadeira Eles criam um reino de fantasia com o qual noacutes da realidade

podemos nos fundirrdquo (1938 91-2) Natildeo passa de um detalhe terminoloacutegico apontar que

espetaacuteculos de sombras como o nosso exemplo javanecircs natildeo acontecem numa sala escura mas

ao ar livre com o escuro da noite A questatildeo de McPhalin eacute que o teatro de sombras fascina

porque a sombra eacute uma presenccedila fantaacutestica sobre uma tela banhada de luz a sombra eacute

particularmente livre da imitaccedilatildeo verossiacutemil pois possui apenas duas dimensotildees

Natildeo eacute um jogo de palavras entretanto indicar que nem McPharlin nem qualquer

outros dos nossos autores de listas perceberam que em diversas tradiccedilotildees de teatros de

sombras parte da plateacuteia quando natildeo toda ela frequumlentemente quando natildeo sempre avistam

o proacuteprio boneco e natildeo apenas a sua sombra A tradiccedilatildeo Nang yai da Tailacircndia na qual

muitas das apresentaccedilotildees ocorrem na frente da tela de projeccedilatildeo jaacute foi mencionada seraacute

tambeacutem lembrado que em nosso exemplo javanecircs o puacuteblico regularmente senta-se em ambos

os lados da tela

313

Jiřiacute Veltruskyacute um estudioso associado ao Ciacuterculo Linguiacutestico de Praga reconhece que

algumas vezes o proacuteprio boneco de sombra eacute dado a ver mas apesar desse reconhecimento

ele preferiria banir a sombra do reino do teatro de bonecos Como ele escreve em seu ensaio

ldquoManipulaccedilatildeo e atuaccedilatildeordquo108

Este artigo lida apenas com bonecos em sentido estrito ou seja bonecos

tridimensionais () O teatro de sombras foi deixado de lado () [Ainda que em Java

as pessoas agraves vezes vejam o boneco] natildeo haacute duacutevida de que no teatro de sombras em

geral eacute a sombra projetada sobre a tela natildeo o proacuteprio objeto como no teatro de

bonecos o que atrai a atenccedilatildeo Na formulccedilatildeo oportuna de [Charles] Magnin [1862

181] o teatro de sombras natildeo faz parte da natureza da escultura moacutevel como eacute o

teatro de bonecos mas da pintura moacutevel (1983 69)

As verdadeiras qualidades que nas estimativas de McPharlin fazem o boneco de

sombras uacutenico o torna de acordo com Veltruskyacute e Magnin sequer um boneco Como seraacute

possiacutevel decidir se a sombra eacute ou natildeo um boneco

Podemos iniciar percebendo um erro de percepccedilatildeo fundamental cometido tanto por

McPharlin como Veltruskyacute apesar de a projeccedilatildeo da sombra sobre a tela seja de fato

bidimensional o boneco que projeta essa sombra natildeo Apesar da convenccedilatildeo de classificar

bonecos como sendo bi ou tridimensionais eacute oacutebvio que natildeo haacute objetos capazes de possuir

apenas duas dimensotildees Embora a terceira dimensatildeo do boneco de sombras a profundidade

seja um tanto insubstancial ela ainda assim existe De fato o mesmo permanece vaacutelido para

bonecos de recorte e de painel todos satildeo objetos fiacutesicos e todos possuem algumas

profundidade Contraacuterio agrave divisatildeo fundamental da taxonomia objeto-controle natildeo haacute algo

como um boneco bidimensional e o boneco de sombra eacute um ldquoobjetordquo como eacute qualquer outro

boneco

Pode-se prosseguir apontando que ainda que a plateacuteia jamais veja o boneco

diretamente a sombra que se vecirc eacute a criaccedilatildeo do boneco interposto entre a tela de projeccedilatildeo e a

fonte de luz No teatro de sombras javanecircs o boneco geralmente movido paralelamente agrave

tela pode tambeacutem ser movimentado entre a tela e a fonte de luz fazendo com que a sombra

fique maior e mais difusa ou menor e mais bem definida Ele pode tambeacutem ser girado contra

a tela para virar-se na direccedilatildeo oposta fazendo com que a sombra se reduza numa linha fina

antes de completar-se novamente Mais raramente pode ser dado algum movimento agrave fonte

de luz com o boneco permanecendo imoacutevel fazendo com que a sombra tanto mude de

formato quanto se mova pela tela (Brandon 1970 35) Seja qual for o modo do movimento a

sombra na tela eacute meramente o efeito a causa implica no boneco O teatro de sombras natildeo eacute

108

No texto em inglecircs o artigo tem o tiacutetulo ldquoPuppetry and actingrdquo

314

ldquopintura moacutevelrdquo como consideram Magnin e Veltruskyacute mas eacute tanto ldquoescultura moacutevelrdquo

quanto qualquer outra forma de teatro de bonecos sua mobilidade uacutenica entre os bonecos eacute

geralmente empregada para a criaccedilatildeo de sombras

Pode-se concluir seguindo esta anaacutelise apontando que McPharlin e Veltruskyacute

cometem um erro de anaacutelise mirando apenas na sombra do boneco de sombras Como o

proacuteprio Veltruskyacute admite em algumas tradiccedilotildees o proacuteprio boneco eacute assistido Mas mesmo

quando natildeo eacute o objeto fiacutesico do boneco por traacutes da tela eacute a origem da sombra e de seu

movimento e a plateacuteia estaacute sempre informada acerca desse fato O boneco de sombras eacute de

todas as maneiras um ldquoobjetordquo ao qual se daacute uma vida imaginaacuteria mesmo se eacute a sombra o que

angaria a maior atenccedilatildeo

Deve ser mencionado entretanto que esta conclusatildeo ainda que vaacutelida em um sentido

teoacuterico vai no sentido contraacuterio das tradiccedilotildees linguumliacutesticas de uma seacuterie de culturas a divisatildeo

dos bonecos em classes bi e tridimensionais natildeo eacute apenas um preconceito ocidental Como

nos informa Roberta Stalberg uma estudiosa americana contemporacircnea da cultura chinesa

O termo geneacuterico para o teatro de sombras na China hoje em dia eacute pi-ying xi

ou ldquoteatro de sombras de courordquo porque as figuras satildeo feitas em couro mas

anteriormente o termo mais difundido para essa forma era deng-ying xi ou

ldquoteatro de sombras de lanternardquo Figuras de sombra nunca foram chamados de

mu-ou ou boneco uma vez que os chineses sempre consideraram haver uma

distinccedilatildeo entre essas figuras bidimensionais e os bonecos tridimensionais

(1984 86)

Natildeo pode haver duacutevidas de que o teatro de sombras possui a sua proacutepria histoacuteria tanto

na China como em outros lugares Ainda assim eacute justo marcar que Stalberg natildeo hesita em

discutir essas figuras bidimensionais num livro dedicado ao estudo geral dos teatros de

bonecos chineses e que tradiccedilotildees linguiacutesticas como a da China poderiam ser baseadas melhor

em circunstacircncias histoacutericas e socioloacutegicas relacionadas ao desenvolvimento do teatro de

sombras em qualquer cultura Apesar das tradiccedilotildees linguumliacutesticas o teatro de sombras faz uso

de ldquoobjetosrdquo que necessariamente existem em trecircs dimensotildees e satildeo empregadas como

qualquer boneco para guardar a ideacuteia de ldquovidardquo

Beaumont entatildeo segue para bonecos ldquoarredondados ou tridimensionaisrdquo comeccedilando

por ldquobonecos de fio ou marionetesrdquo Estes ele diz ldquobuscam imitar todos os movimentos de

um ser humano dos quais em geral satildeo representaccedilotildees em miniaturardquo (1958 17) A primeira

afirmaccedilatildeo eacute assim se espera um exagero porque usar um boneco afinal se humanos podem

imitar accedilotildees humanas muito melhor No exemplo indiano citado na introduccedilatildeo marionetes de

uma forma muito simples satildeo usadas Cada uma possuindo natildeo mais que dois fios uma

315

ligando a cabeccedila do boneco agrave matildeo do operador e dando um volta ateacute a cintura do boneco

outra ligada a uma das matildeo do boneco ateacute a matildeo do operador e descendo ateacute a outra matildeo do

boneco Um boneco assim embora seja capaz de executar movimentos mais sutis do que se

poderia esperar natildeo pode ser indicado como podendo imitar nada que se aproxime de ldquotodos

os movimentos do ser humanordquo A questatildeo de Beaumont provavelmente eacute a de que

marionetes geralmente possuem corpos com movimentos nos quatro membros quando a

maioria dos outros tipos de bonecos natildeo tecircm Arnott sugere por esse motivo que elas satildeo os

ldquomais satisfatoacuteriosrdquo dos bonecos (196460) e a marionete tem seu lugar assegurado em todas

as listas de tipos de bonecos que empregam o meacutetodo objeto-controle

Mas qual seria o traccedilo distintivo da marionete Anott ao definiacute-las descreve-as como

sendo ldquofiguras articuladas controladas de cima por meio de cordas ou fiosrdquo (1964 60) Seria o

traccedilo distintivo o controle por cima ou o emprego de cordas ou fios Devemos nos recordar

que a listagem de Blackham distingue entre ldquobonecos trabalhados de cima por meio de fiosrdquo e

aqueles ldquotrabalhados de cima por meio de varasrdquo Tal distinccedilatildeo eacute importante porque as

possibilidades de movimento criadas pelos diferentes meios de controle natildeo satildeo todos os

mesmos

McPharlin escreve que o ldquoboneco de fio eacute bem capaz de imitar de uma forma ampla

quase todos os tipos de movimentos realiacutesticos Criacuteticos que reclamam do seu caminhar

saltitante foram agraciados pelo azar com demonstraccedilotildees ruinsrdquo (1938 85) Ele tambeacutem

aponta que ldquono campo do natildeo-realismo o boneco de fio se sobressai Ele eacute graccedilas aos

seus fios independente da gravidaderdquo (1938 86) Harro Siegel um artista de teatro de

bonecos alematildeo contemporacircneo ressalta ldquoa qualidade oniacuterica flutuante submissa da

marioneterdquo (1967 [1965] 21) Note-se entretanto que McPharlin eacute cuidadoso ao empregar o

termo bonecos de fios uma vez que essa qualidade oniacuterica assim como seus ldquomovimentos

realiacutesticosrdquo estatildeo aleacutem da capacidade da marionete controlada por cima por varas

Jean Gross conta que na tradiccedilatildeo de Liegravege de marionetes ldquoo uacutenico instrumento de

controle direto eacute uma uacutenica vara de metal ligado a um anel no topo da cabeccedila Isso quer dizer

que o boneco se move de uma maneira muito riacutegida de uma maneira distante da humanardquo

(1987 107) E como diz Baird sobre as marionete sicilianas

Seu movimento eacute ereto e controlado apenas pelo iacutempeto da vara de ferro que

ergue ou gira o corpo a partir do pescoccedilo O movimento de balanccedilo do corpo

tambeacutem governam os passos de pernas duras O [boneco] balanccedila uma perna

para traacutes para ganhar impulso e entatildeo com um giro do corpo marcha adiante com

uma pancada (1965 120)

316

Se o traccedilo distintivo da marionete for o controle por cima entatildeo as possibilidades de

movimento desse tipo natildeo podem ser generalizadas e para classificar um boneco como sendo

uma marionete eacute dizer menos o que seria de se esperar Se o traccedilo distintivo for o uso de fios

entatildeo um tipo separado dever ser arrolado como eacute por Blackham para definir as marionetes

de Liegravege e da Siciacutelia juntamente com muitas outras operadas por meio de hastes

A questatildeo aqui eacute que nem mesmo o tipo de boneco apontado como estando no

pinaacuteculo do teatro de bonecos por muitos taxonomistas do tipo objeto-controle natildeo eacute de fato

um uacutenico e discreto tipo de boneco a confusatildeo a ser percebida entre as classificaccedilotildees de

ldquomarioneterdquo eacute indicativa do que se pode encontrar na maioria das classificaccedilotildees do tipo

objeto-controle

Os proacuteximos na listagem de Beaumont satildeo os bonecos de vara sendo seu traccedilo

distintivo como nos explica Blackham sua operaccedilatildeo por traacutes por meio de varas esses

bonecos tambeacutem estatildeo presentes em todas as nossas listas objeto-controle A nossa

performance nigeriana fornece um bom exemplo esses bonecos possuem duas hastes

internas uma fornecendo suporte em geral outra operando o movimento da boca podem

possuir hastes e bastotildees adicionais para o movimento das matildeo ou pernas (Boumlhmer 1971

[1969] 108) A quantidade e funccedilotildees das hastes varia consideravelmente em diferentes

tradiccedilotildees e geralmente permitem nuances de movimentos notaacuteveis

Batchelder em seu estudo soacutelido Bonecos de vara e o Teatro Humano escreve que ldquoo

boneco de vara [eacute] uma figura manipulada por baixo do chatildeo do palco por meio de (1) varas

(2) varas e fios ou (3) matildeos e varas de tal maneira que se pode obter um movimento

cuidadosamente controladordquo (1947 xix) O ldquomovimento cuidadosamente controladordquo possiacutevel

ao boneco de vara eacute percebido por todos os nossos autores Arnott sugere que ldquoabsoluta

precisatildeo de controle eacute possiacutevelrdquo e que ldquoessas figuras possuem grande dignidade e belezardquo

(1964 59) Muitos estudiosos e praticantes concordam com Boumlhmer que ldquoo boneco de vara

ocupa um lugar entre a luva e a marionete Enquanto que apresenta muito da destreza e

vitalidade da primeira tambeacutem apresenta o charme complicado e a sutil individualidade da

outrardquo (1971 [1969] 37)

O aspecto mais interessante da definiccedilatildeo de Batchelder eacute o quanto esta eacute inclusiva Tal

inclusatildeo expotildee mais uma vez os problemas do meacutetodo objeto-controle quatildeo ampla uma aacuterea

classificativa de bonecos pode ser para ser incluiacutedo em determinado tipo e qual a relaccedilatildeo

entre os bonecos pertencentes a essa aacuterea de alcance

Batchelder escreve que bonecos controlados ldquopor matildeos e por bastotildeesrdquo devem ser

considerados bonecos de vara A caracteriacutestica especiacutefica dos Muppets de Jim Henson eacute a

317

boca articulada de cada figura O sapo Kermit109

eacute um bom exemplo a matildeo do operador sobe

pelo interior de um corpo de tecido e espuma ateacute uma cabeccedila de tecido com uma boca

articulada Ao abrir e fechar a sua matildeo e ao movecirc-la de diversas maneiras o(a) operador(a)

abre e fecha a boca e confere agrave cabeccedila movimentaccedilotildees expressivas A outra matildeo do operador

controla duas varas cada qual ligada a uma das matildeos do boneco dando movimento aos seus

braccedilos por sua vez ligados aos ombros (Henson Associates 1980 16) De acordo com a

definiccedilatildeo de Batchelder Kermit deveria ser considerado um boneco de vara De fato seus

braccedilos satildeo movimentados com varas de uma maneira consistente com esse tipo mas de fato

parece ser a sua boca articulada intimamente controlada pela matildeo de seu operador seu traccedilo

mais caracteriacutestico

Em que lugar dessa taxonomia deveriacuteamos situar um boneco como Kermit E como

poderiacuteamos classificar tambeacutem um boneco com boca articulada mas com braccedilos que satildeo

mangas e luvas dentro das quais o operador e algumas vezes um assistente potildee seus braccedilos e

matildeos tal como ocorre em muitos outros Muppets Ou ainda com uma boca articulada mas

sem quaisquer braccedilos tal como Ollie o personagem do programa ldquoKukla Fran and Ollierdquo do

marionetista Burr Tillstrom Ou ainda como classificar um boneco com uma boca articulada

e olhos e sobrancelhas tambeacutem articuladas mas sem qualquer outro movimento tal como a

maiorias dos bonecos de ventriacuteloquos Por incriacutevel que pareccedila tais bonecos satildeo muito

raramente mencionados na literatura sobre teatro de bonecos embora sejam uma das mais

populares manifestaccedilotildees da animaccedilatildeo ocidental

Parece absurdo chamar qualquer desses bonecos de bonecos de vara uma vez que

com a exceccedilatildeo de Kermit eles natildeo possuem quaisquer varas de operaccedilatildeo apesar disso natildeo se

encaixam em nenhum outro lugar dentro da taxonomia objeto-controle No miacutenimo uma nova

classificaccedilatildeo parece ser necessaacuteria bonecos de boca articulada110

E dadas as qualidades

particulares dos bonecos de ventriacuteloquos uma segunda nova classificaccedilatildeo parece tambeacutem ser

necessaacuteria

Beaumont em seguida lista os bonecos de jiga111

e finalmente encontramos uma breve

pausa da controveacutersia McPharlin tmabeacutem relaciona o tipo mas este eacute ignorado por

Blackhamm e Arnott assim como por muitos outros McPharlin escreve sobre os bonecos de

jiga

109

NT No Brasil o nome deste personagem eacute traduzido como Caco o sapo 110

NT No Brasil pode-se encontrar o termo marote para classificar um tipo de boneco aproximado da categoria

sugerida por Tillis 111

No nordeste do Brasil um boneco aparentado desse tipo eacute o conhecido como ldquoManeacute Gostosordquo Um boneco de

madeira que faz giros acrobaacuteticos quando se pressionam os bastotildees aos quais estaacute preso por um sistema muito

simples de cordas e elaacutesticos

318

Satildeo o tipo de bonecos que se vecirc como brinquedos nas esquinas das cidades agraves

veacutesperas do natal um par de aacutegeis danccedilarinos que saltitam com uma vida

sobrenatural no meio de um fio no qual uma extremidade estaacute presa a um poste e

a outra ao joelho do animador ou os negrinhos [sic] de jiga cujos peacutes satildeo postos

em vocirco pelas vibraccedilotildees de uma taacutebua martelada em sua extremidade fixa pela

matildeo do operador A amplitude de movimento de tais bonecos eacute por demais restrito

e pouco controlaacutevel para uso artiacutestico (1938 88-89)

O uacuteltimo dos dois exemplos dados por McPharlin eacute tambeacutem conhecido como

marionete agrave la planchette (Beaumont 1958 18)

O desdeacutem de McPharlin ao valor artiacutestico do boneco de jiga eacute duro poreacutem apropriado

De fato esses bonecos podem fazer muito pouco aleacutem de saltitar Pode-se imaginar se natildeo

seriam mais brinquedos do que bonecos teatrais Sem duacutevida satildeo usados mais frequentemente

como brinquedos mas dentro do contexto da apresentaccedilatildeo de esquina segundo descrito por

McPharlin eles devem ser de acordo com todas as definiccedilotildees discutidas na Parte I deste

livro ser considerados bonecos teatrais

Os bonecos de jiga exemplificam ainda outro problema com o meacutetodo objeto-controle

a um tipo menor de boneco como esse pareceraacute difiacutecil conseguir equiparaccedilatildeo taxonocircmica

juntamente com tipos altamente desenvolvidos e difundidos tais como o boneco de sombra

ou a marionete Mas devido ao fato de ser uacutenico em seu modo de controle por meio de

vibraccedilotildees semialeatoacuterias e devido agrave sua longa e por que natildeo dizer ilustre histoacuteria no

ocidente o meacutetodo objeto-controle lhe dedica uma menccedilatildeo desconexa

Seguindo a lista de Beaumont encontramos os ldquobonecos de luva ou bonecos de matildeordquo

e com isto entramos novamente na briga As qualidades caracteriacutesticas do boneco de luva satildeo

universalmente reconhecidas Arnott explica que ldquoa figura possui uma cabeccedila oca braccedilos e

um corpo longo no formato de uma manga de camisa o operador insere sua matildeo no corpo e

controla a cabeccedila e os braccedilos com seus dedosrdquo (1964 58) ldquoPunch and Judyrdquo eacute o exemplo

arquetiacutepico da bonecaria de luva e bonecos de luva aparecem em todas as listas

Ainda assim num ensaio acerca da histoacuteria do teatro de bonecos Jurkowski comenta

que ldquoo boneco de luva e o boneco de sombra situam-se fora da arte dos bonecosrdquo (1967

[1965] 26) Ele natildeo chega a articular a sua objeccedilatildeo ao boneco de sombra mas em outra

passagem parafraseia o estudioso alematildeo do princiacutepio do seacuteculo XX Fritz Eichler para o

efeito de que ldquoo boneco de luva natildeo deve ser considerado lsquopuramentersquo boneco pois eacute de fato

a matildeo do marionetista que eacute a sua alma O boneco de luva seria entatildeo um lsquoprolongamentorsquo do

ator [e deveria ser considerado] um prolongamento do teatro de miacutemicardquo (1998 [1979] 21-

22)

319

O argumento de Eichler como eacute apresentado por Jurkowski se apoacuteia na ideacuteia de que a

matildeo viva do operador no interior do boneco eacute o verdadeiro foco da atenccedilatildeo da plateacuteia e que o

que se percebe como sendo o boneco de luva natildeo passa de uma fantasia para essa matildeo a

figura natildeo estaacute ldquoseparada do corpo de seu manipuladorrdquo e natildeo obedece agraves ldquosuas proacuteprias leis

mecacircnicasrdquo (1998 [1979] 22) Dessa forma Punch de fato natildeo eacute um boneco nem mesmo

nesse caso o seria Kermit que tambeacutem eacute pouco mais que a matildeo vestida de seu operador

Como seria possiacutevel resolver se bonecos de luva e todos os outros bonecos apoiados na matildeo

do operador satildeo ou natildeo satildeo bonecos de fato

Deve-se comeccedilar admitindo que a matildeo do manipulador eacute metaforicamente a ldquoalmardquo

do boneco de luva mas que o boneco de luva ainda assim eacute algo diferente da matildeo humana

Como jaacute foi visto Obrastzov sugere que essa alteridade emerge da percepccedilatildeo da plateacuteia de

que a matildeo estaacute ldquoseparadardquo de seu operador ldquocom um ritmo e um caraacuteter proacutepriosrdquo (1950

155) Ou como jaacute argumentamos a plateacuteia percebe a figura apresentada pela matildeo como se

esta fosse um objeto da mesma forma como essa perceberia qualquer objeto Em miacutemica a

plateacuteia entende o miacutemico como uma figura humana inteira com o boneco de luva a plateacuteia

entende a matildeo do operado como algo divorciado dele e como um objeto agrave sua proacutepria

maneira Tal percepccedilatildeo da matildeo tanto vestida como nua faz a distinccedilatildeo da miacutemica

Pode-se prosseguir notando que o proacuteprio Jurkowski comenta que ldquopara o puacuteblico

[bonecos de luva] satildeo bonecos porque satildeo criaturas artificiais comportam-se de agrave sua proacutepria

maneira e podem apresentar um personagem diferente em cenardquo (1998 [1983] 76-77) Esse

comentaacuterio expotildee um ponto importante a desconsideraccedilatildeo do boneco de luva se baseia numa

consideraccedilatildeo a priori de que o boneco precisa ser um objeto inteiramente inanimado operado

por algum dispositivo mecacircnico mas qual eacute a base para tal consideraccedilatildeo O entendimento

popular se apoacuteia unicamente na percepccedilatildeo da plateacuteia de que o boneco eacute uma ldquocriatura

artificialrdquo o que interessa para esse criteacuterio convenientemente eacute que o boneco eacute percebido

como se fosse um objeto

Isto pode ser possiacutevel concluir com a observaccedilatildeo de Jurkowski quando este fala do

boneco de luva como sendo capaz de ldquoapresentar um personagem diferente sobre a cenardquo

Essa capacidade do boneco de apresentar um personagem que a plateacuteia pode imaginar como

tendo uma vida forjada toda sua inescapavelmente o separa do teatro de miacutemica O boneco

pode dar a entender que possui uma vida proacutepria devido ao uso dos signos da forma

movimento e fala o que satildeo toda a sua existecircncia o miacutemico em contraste possui uma vida

de fato e natildeo importa quais signos performaacuteticos ele ou ela apresentem essa vida jamais seraacute

questionada O meacutetodo objeto-controle uma vez que classifica bonecos de acordo com a

320

natureza de objetos e seus modos de controle faz objeccedilotildees agrave possibilidade do boneco de luva

Mas contrariamente ao meacutetodo objeto-controle nem a natureza do objeto nem a maneira de

de controle buscam sustentar se uma determinada figura teatral eacute ou natildeo um boneco

Toda essa questatildeo tambeacutem reintroduz a questatildeo da distinccedilatildeo entre o boneco e o ator

vivente que usa uma maacutescara ou um figurino Considerar o Muppet Big Bird112

no qual o

operador se encontra inteiramente dentro da figura teatral conferindo-lhe inteiramente sua

motivaccedilatildeo (Henson Associates 1980 9-16) De acordo com Eichler e talvez Jurkowski Big

Bird deveria ser entendido como ldquouma extensatildeo do teatro miacutemicordquo Mas seguindo nossa

anaacutelise anterior este seria considerado um boneco pois sua fisionomia eacute distinta da de seu

operador enquanto que o Mickey Mouse anteriormente discutido eacute bem mais claramente o

figurino e a maacutescara do ator vivente Entatildeo como se classificaria o Big Bird O meacutetodo

objeto-controle natildeo nos fornece sequer uma dica

Devemos tambeacutem nos indagar como fizemos em nossa discussatildeo acerca dos bonecos

de vara da amplitude de tipos de bonecos que podem ser considerados bonecos de luva

Pudemos ver o quanto o boneco no estilo Muppet desafia a sua tipificaccedilatildeo enquanto boneco

de vara e este natildeo faz menos quanto agrave sua classificaccedilatildeo como boneco de luva Mesmo

estando apoiado na matildeo do operador este eacute um tanto distinto da luva tradicional mais

obviamente no que diz respeito agrave sua boca articulada A taxonomia objeto-controle

simplesmente natildeo daacute conta desse tipo de boneco

E ainda haacute o boneco tradicional coreano Numa pesquisa sobre a histoacuteria do teatro

coreano Oh-Kon Cho escreve

O boneco coreano natildeo pertence a nenhuma das mais familiares categorias de

boneco Ao inveacutes disso combina aspectos de [diversos tipos] O corpo do

boneco coreano a vara principal eacute segura pela matildeo o que eacute uma remanescecircncia

do boneco de luva seus braccedilos um pouco parecido com a marionete satildeo

manipulados por fios por baixo e a qualidade uacutenica dos movimentos de braccedilos

traz agrave lembranccedila de algumas plateacuteias as movimentaccedilotildees riacutegidas dos bonecos de

vara (1988 309)

Tal boneco parece ter sido especialmente feito para atormentar os taxonomistas do tipo

objeto-controle e apresentar ainda outras dificuldades agraves objeccedilotildees aos bonecos de luva O

boneco coreano eacute construiacutedo de uma maneira similar agrave dos bonecos de luva tradicionais mas

ao inveacutes os dedos dos operadores possuiacuterem controle direto sobre a cabeccedila e os braccedilos a

cabeccedila se controla por meio de uma vara central enquanto que os braccedilos satildeo controlados por

fios (Cho 1979 27) Para uma plateacuteia que natildeo seja acostumada com a sua construccedilatildeo e

112

NT No Brasil esse personagem ganhou o nome Garibaldo

321

operaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista se tratar de um boneco de luva tradicional seus

movimentos podem tambeacutem parecer semelhantes aos dos bonecos de luva diferindo apenas

em sua menor capacidade para curvar-se para frente no pescoccedilo e cintura e que a tendecircncia

de movimento dos braccedilos eacute para cima e para baixo ao inveacutes de para dentro e para fora

De fato muitas companhias de teatro de bonecos no ocidente assumem a praacutetica de

usar bonecos de luva tradicionais e inserir uma vara central atraveacutes do corpo ateacute a cabeccedila

podendo ainda operar as matildeos do boneco de dentro de seu figurino com os dedos A

vantagem dessa teacutecnica eacute a de retirar o peso da cabeccedila do boneco do ldquodedo da cabeccedilardquo do

operador tornando para ele mais faacutecil manter o boneco em operaccedilatildeo por longos periacuteodos de

tempo

Em ambos os casos o boneco manteacutem a sua aparecircncia de boneco de luva e muito dos

movimentos de boneco de luva mas perde aquilo que Eichler chama de sua ldquoalmardquo Se a matildeo

vivente pode ser dispensada de modo tatildeo faacutecil e casual o quanto deveriacuteamos nos preocupar

com a alma do boneco uma vez que o boneco eacute percebido como um objeto iacutentegro e com uma

vida proacutepria a ele atribuiacuteda

Retornando agrave nossa discussatildeo da classificaccedilatildeo do boneco de luva devemos a seguir

considerar como o meacutetodo objeto-controle classificaria um boneco que certamente faz uso da

matildeo mas que dificilmente poderia ser considerado um objeto de fato que necessite de

controle

Esse problema eacute apresentado natildeo apenas em teatro de bonecos tal como no sketch

apresentado por Burr Tillstrom com a matildeo nua sobre o muro de Berlim113

ou pelas

performances apresentadas pelo renomado performer francecircs Yves Joly com luvas nas matildeos

(ver Obraztsov 1985 [1981] 265-69) o difundido ainda que pouco documentado uso de

matildeos nuas em conjunccedilatildeo com uma fonte de luz para criar sombras sobre uma tela ou parede

natildeo encontra lugar na taxonomia objeto-controle Tampouco possui o uso igualmente

difundido e pouco documentado do punho nu fechado de modo a que o movimento para cima

e para baixo do polegar represente o movimento da boca Pode parecer absurdo classificaacute-los

como bonecos de matildeo dada a descriccedilatildeo universalmente aceita para esse tipo de boneco mas

de que mais poderiam ser chamados O meacutetodo objeto-controle natildeo consegue classificar nem

nomear esse tipo de animaccedilatildeo embora isto seja inegavelmente um tipo de boneco mesmo

que rudimentar

113

NT O viacutedeo dessa apresentaccedilatildeo pode ser visto no Youtube no endereccedilo

lthttpwwwyoutubecomwatchv=RCRvarruS9ggt

322

A seguir na lista de Beaumont encontramos ldquobonecos controlados magneticamenterdquo

Essa eacute a mais idiossincraacutetica das classificaccedilotildees de Beaumont e qua natildeo consta e nenhuma

outra das listas vistas O proacuteprio Beaumont menciona apenas um exemplo no trabalho de um

Senhor Cecil Brinton antes de encerrar o assunto (1958 18)

A caracteriacutestica particular do boneco controlado magneticamente natildeo parece ser o

magnetismo em si mas o fato de que o controle se realiza sem que haja contato entre o

mecanismo de controle e o boneco Se Beaumont estivesse escrevendo hoje ele teria

provavelmente ampliado a sua classificaccedilatildeo para incluir bonecos controlados eletronicamente

ou bonecos aacuteudio-animatrocircnicos que satildeo similarmente motivados ao menos em parte sem

contato direto entre os mecanismos de controle eletrocircnico e os mecanismos eletrocircnicos dentro

do boneco (Henson Associates 1980 13)

A discussatildeo sobre bonecos que satildeo controlados via magnetismo ou eletrocircnica sem

contato fiacutesico reintroduz a questatildeo da distinccedilatildeo entre o boneco e o autocircmato As figuras um

tanto anestesiadas que acenam aos visitantes dos passeios na Disneylacircndia e as criaturas

notoriamente escandalosas que assediam a sensibilidade de adultos que levam seus filhos agraves

pizzarias Chuck E Cheese parecem ser autocircmatos ao inveacutes de bonecos animatrocircnicos Mas

qual eacute a base para essa distinccedilatildeo

Nenhuma distinccedilatildeo natural pode ser percebida em termos das suas formas o grupo

musical do Chuck E Cheese parece-se mais ou menos com o Electric Mayhem a banda

musical do Muppet Show Tambeacutem natildeo se percebe uma distinccedilatildeo direta em termos de fala a

muacutesica eacute diretamente atribuiacuteda a ambos os grupos e nos dois casos a muacutesica eacute preacute gravada

Haacute no entanto uma distinccedilatildeo clara entre seus movimentos ou mais precisamente em suas

possibilidades de movimentaccedilatildeo o grupo do Chuck E Cheese pode se mover apenas da

maneira e na sequumlecircncia para a qual foi programada os muacutesicos Muppets respondem aos

comandos de seus operadores de modo que natildeo podem ser previstos em termos de modo e

ordem

Deve ser notado que esta comparaccedilatildeo pode ser de alguma forma enganosa uma vez

que a banda Muppet natildeo eacute de fato controlada eletronicamente Mas ainda que fosse e ainda

que tal controle limitasse seus movimentos a sequumlecircncia de sua movimentaccedilatildeo ainda estaria

sob o controle de seus operadores

A diferenccedila entatildeo entre o autocircmato e o boneco eacute a de potencial de movimento Ainda

que uma breve percepccedilatildeo dos dois possam levar a plateacuteia a acreditar que satildeo funcionalmente

intercambiaacuteveis uma percepccedilatildeo mais prolongada exporia o fato de que o autocircmato natildeo pode

323

sustentar na plateacuteia uma imaginaccedilatildeo de vida devido a sua relativa pobreza de possibilidades

de movimento ao passo que o boneco pode

Retornando a Beaumont a inclusatildeo do boneco movido magneticamente expotildee uma

fraqueza fundamental do meacutetodo objeto-controle que jaacute foi apontada anteriormente haacute um

nuacutemero infinito de objetos que podem ser usados como bonecos e uma quantidade ainda

desconhecida de meios de controle A taxonomia objeto-controle natildeo possui meios de acolher

novos objetos novos modos de controle ou novas combinaccedilotildees entre objetos e controle O

melhor que consegue fazer eacute simplesmente adicionar cada novo modo agrave lista sempre que o

trabalho de um ldquoSenhor Cecil Brintonrdquo for percebido como o fez Beaumont com o boneco

controlado magneticamente Mas uma lista assim passiacutevel de contribuiccedilotildees infinitas eacute mais

que apenas desajeitada ela falha em uacuteltima anaacutelise em permitir comparaccedilotildees e contrastes

significativos entre diferentes bonecos

O uacuteltimo item relacionado por Beaumont eacute o dos ldquobonecos japoneses de trecircs

manipuladoresrdquo ou como satildeo conhecidos mais comumente bonecos de bunraku Arnott os

deixa completamente de fora de sua listagem embora esteja consciente de sua existecircncia

(1964 79-80) talvez por perceber a futilidade em tentar fazecirc-los encaixar num sistema de

descriccedilatildeo dominado por conceitos ocidentais Como jaacute discutimos nosso exemplo japonecircs de

performance de teatro de bonecos em certa profundidade basta aqui apenas registrar que o

meacutetodo objeto-controle classifica o bunraku como sui generis essencialmente deixando de

lado a aproximaccedilatildeo sincrocircnica e adotando para esse caso princiacutepios taxonocircmicos proacuteprios ao

meacutetodo histoacuterioco-geograacutefico

Assim exaurimos em mais de um sentido a lista de tipos de Beaumont Como

pudemos perceber ela agrupa bonecos um tanto dessemelhantes e ignora inteiramente uns

tantos outros tipos de bonecos De fato o caso de trabalhar dentro das dadas limitaccedilotildees talvez

permitisse alcanccedilar uma forma de classificaccedilatildeo que fosse mais abrangente e coerente mas as

limitaccedilotildees parecem nulificar o exerciacutecio

A teoria embutida no meacutetodo objeto-controle eacute como jaacute deve estar oacutebvio que bonecos

satildeo objetos inanimados de tipos distintos e determinados e que o modo como satildeo controlados

eacute o seu elemento mais importante Como tambeacutem jaacute deve ter ficado oacutebvio tal teoria eacute

insustentaacutevel Bonecos podem ser ou natildeo objetos inanimados sua variedade de formas eacute

ilimitada e a maneira como satildeo operados descreve surpreendentemente pouco a seus

respeitos

Aleacutem das questotildees de objeto e controle o meacutetodo oferece pouco vocabulaacuterio

descritivo Trata-se pouco acerca das possibilidades de forma e movimento disponiacuteveis ao

324

boneco e nada a respeito das possibilidades de fala uma vez que objeto e controle natildeo

abordam tal questatildeo Parece impressionante que uma teoria sobre teatro de bonecos se

disponha a renunciar a uma discussatildeo detalhada sobre forma e movimento e a toda e qualquer

discussatildeo da fala mas eacute isso que acontece com o meacutetodo objeto-controle O meacutetodo fracassa

em reconhecer que bonecos existem para se apresentarem e assim evitam discutir as

complexidades da performance do boneco

Como conclusatildeo as taxonomias histoacuterico-geograacutefica e objeto-controle natildeo permitem

uma descriccedilatildeo mais completa do boneco A taxonomia histoacuterico-geograacutefica empregando um

meacutetodo diacrocircnico confiam em distinccedilotildees histoacuterico-geograacuteficas aleatoacuterias para evitar ser

sufocada pela infinita variedade de tradiccedilotildees de bonecos O meacutetodo se justificaria se estivesse

disposto de fato a considerar cada uma das diversas tradiccedilotildees e descobrir como estas se

desenvolveram e influenciaram umas agraves outras no correr do tempo e do espaccedilo mas a relativa

pobreza de informaccedilotildees sobre muitas tradiccedilotildees bonequeiras e a falta de um vocabulaacuterio

adequado para a descriccedilatildeo dessas tradiccedilotildees sobre as quais temos informaccedilotildees tornam

impossiacutevel o uso do meacutetodo para algo com maiores inspiraccedilotildees

A taxonomia objeto-controle a tentativa de uma anaacutelise sincrocircnica postula a

existecircncia de pouco mais que sete tipos de controle para bonecos mas as diferenccedilas descritas

entre esses tipos satildeo um tanto vagas e os proacuteprios tipos falham em abrigar uma quantidade

relevante de modos de controle Devido a sua concentraccedilatildeo sobre a maneira de controlar o

boneco o meacutetodo oferece pouca informaccedilatildeo no que diz respeito agrave forma e movimento e

nenhuma acerca da fala para o boneco

Se como jaacute foi considerado anteriormente o boneco eacute percebido como um objeto

ainda que se imagine vida conferida a ele devido a sua capacidade de produzir signos

abstratos de vida nos trecircs sistemas siacutegnicos de forma movimento e fala entatildeo ocorre que a

descriccedilatildeo do boneco deve possuir informaccedilotildees sistemaacuteticas relativas a esses sistemas de

significaccedilatildeo Seria tolo eacute claro abandonar os vocabulaacuterios descritivos das duas taxonomias

consagradas jaacute que tradiccedilotildees construiacutedas sobre particularidades de histoacuteria e geografia

obviamente existem e o modo e controlar o boneco eacute obviamente algo importante Mas tais

vocabulaacuterios precisam ser substancialmente incrementados e inseridos no contexto de uma

teoria mais abrangente se quisermos ansiar por uma descriccedilatildeo completa para o boneco

325

5

UMA NOVA BASE

PARA DESCRICcedilAtildeO

Encontra-se aleacutem do horizonte deste estudo a tentativa de uma taxonomia diacrocircnica

completa para o boneco o que seria equivalente a delinear a historia global do teatro de

bonecos Como foi explicado anteriormente muito pouca informaccedilatildeo existe ateacute o momento

sobre a qual estabelecer tal delineamento e haacute um vocabulaacuterio muito esparso disponiacutevel para

a sua explicaccedilatildeo Nada pode ser feito aqui para amenizar essa falte de informaccedilatildeo mas

podemos certamente contribuir no desenvolvimento do vocabulaacuterio necessaacuterio ao

examinarmos como o boneco como um determinado fenocircmeno teatral pode ser usado para

dispor signos da cada um dos trecircs sistemas siacutegnicos que possam atender ao desejo psicoloacutegico

da plateacuteia de imaginaacute-lo como tendo vida Examinaremos cada um desses sistemas siacutegnicos

por sua vez e considerar as variaacuteveis contidas em cada sistema a localizaccedilatildeo de signos

particulares dispostos ou produzidos por meio de tais variaacuteveis junto ao continuum de

representaccedilatildeo do boneco e as relaccedilotildees entre os proacuteprios trecircs sistemas siacutegnicos

Antes de nos aprofundarmos nos sistemas siacutegnicos entretanto seraacute de utilidade

considerar a natureza geral dos signos do boneco Edward Gordon Craig apontando o

naturalismo no teatro de atores proclama ldquojogue fora a aacutervore verdadeira jogue fora a

realidade da inflexatildeo jogue fora a realidade da accedilatildeo e vocecirc se inclinaraacute na direccedilatildeo de jogar

fora o ator Cessaraacute a necessidade de haver uma figura viva que nos confunda de modo a

ligarmos realidade e arterdquo (1911 81) Eacute claro pode-se argumentar que ldquorealidade e arterdquo natildeo

satildeo necessariamente opostas mas a acusaccedilatildeo de Craig aponta para uma questatildeo essencial

Natildeo haacute nada de realidade ou pode-se dizer de vida real no boneco haacute apenas arte os

proacuteprios signos que constituem o boneco

Jaacute vimos que os signos abstratos do boneco podem estar localizados ao longo de um

continuum de representaccedilatildeo que abriga desde o imitativo ateacute o estilizado ateacute o conceitual de

acordo com a qualidade e a quantidade dos signos Quase todos os autores sobre teatro de

bonecos reconhece a importacircncia da qualidade e quantidade dos signos ldquoUm boneco deve ser

sempre mais que o seu complemento vivente ndash mais simples mais triste mais perverso mais

flexiacutevel O boneco eacute uma essecircncia e uma ecircnfaserdquo (Baird 1965 15) ldquo[Bonecos] devem

326

condensar sintetizar tudo o que eacute essencial e caracteriacutestico nas diversas qualidades da

natureza humanardquo (Obraztsov 1967 [1965] 20) inumeraacuteveis citaccedilotildees como essas poderiam

ser mencionadas

Proschan destaca a quantidade limitada de signos no boneco por meio de uma analogia

uacutetil

Assim como uma palavra eacute abreviada por meio da retirada de certas letras e

a preservaccedilatildeo de apenas aquelas mais importantes assim os signos teatrais

usam apenas as marcas mais cruciais de seus referentes Entretanto

diferentemente das palavras a abreviaccedilatildeo de signos teatrais natildeo resultam

numa reduccedilatildeo de tamanho ou massa apenas uma reduccedilatildeo na densidade ou

quantidade de elementos (1983 38n)

O boneco entretanto faz mais que apenas reduzir a quantidade de signos pois as

ldquomarcas mais cruciaisrdquo que satildeo preservadas satildeo elas mesmas alteradas em quantidade devido

agrave limitaccedilatildeo de seu proacuteprio nuacutemero e aos exageros aos quais eles satildeo entatildeo sujeitados

Green e Pepicello oferecem um vislumbre para dentro da natureza particularmente

teatral dos signos do boneco

Quando bonecos ldquofalamrdquo eles [provavelmente] movem suas mandiacutebulas e

usualmente gesticulam mas tais comportamentos natildeo satildeo a fonte do som

Dessa forma embora tenhamos uma parte do processo da fala humana

manifestada no boneco este se constitui em natildeo mais que um signo para a

produccedilatildeo da fala Semelhantemente bonecos natildeo andam de fato satildeo

movidos pelo manipulador A movimentaccedilatildeo de uma aacuterea do palco ateacute outra

poderia ser realizada de modo bem mais simples e eficiente do que fazer

uma marionete imitar a locomoccedilatildeo humana Portanto o que ocorre natildeo eacute

uma logiacutestica simples A marionete apresenta um mero signo de animaccedilatildeo

(1983 153)

Essa anaacutelise pode parecer oacutebvia mas de fato conteacutem uma percepccedilatildeo importante os signos

dispostos pelo boneco satildeo tatildeo intencionais quanto podem ser signos teatrais sua intenccedilatildeo

seja ela percebida ou natildeo pelo artista marionetista eacute conduzir a plateacuteia a imaginar vida

enquanto percebe um objeto De fato ldquoo que ocorre natildeo eacute uma logiacutestica simplesrdquo os signos

de vida abstratos do boneco provocam o processo de visatildeo dupla

Mas enquanto o boneco eacute bastante intencional poderia ele ser considerado

inteiramente intencional Elam nota que no teatro de atores ldquoa plateacuteia inicia com a suposiccedilatildeo

de que cada detalhe eacute um sinal intencional e que o que natildeo puder ser relacionado agrave

representaccedilatildeo como tal seraacute convertido num sinal referente agrave vida real dos atores ndash isto natildeo eacute

em nenhum caso excluiacutedo da semioserdquo (1980 9) Em teatro de bonecos contudo natildeo haacute

atores vivos em direccedilatildeo aos quais se possam ser convertidos sinais natildeo relacionados agrave

representaccedilatildeo E assim Veltruskyacute sugere ldquoUm boneco que representa uma personagem possui

apenas as caracteriacutesticas fiacutesicas de uma pessoa real necessaacuterias para aquela situaccedilatildeo

327

dramaacutetica todos os componentes do boneco satildeo signos intencionaisrdquo (citado em Proschan

1983 15)

Este eacute em geral o desejo do artista marionetista mas Veltruskyacute exagera o caso Signos

natildeo intencionais seratildeo inevitavelmente misturados aos intencionais A execuccedilatildeo estrutural do

boneco jamais conseguiraacute superar totalmente a aridez do material do qual ele foi feito a

manipulaccedilatildeo que produz movimento jamais superaraacute os detalhes mecacircnicos do boneco em

operaccedilatildeo e as limitaccedilotildees fiacutesicas do(s) seu(s) operador(es) e a performance vocal estaraacute

sempre submetida agraves limitaccedilotildees vocais do emissor da voz do boneco

E pior que isso Mesmo que os signos do boneco sejam dispostos exatamente como o

desejado e sem quaisquer signos acidentais combinados a plateacuteia poderaacute perceber tais signos

de maneiras indesejaacuteveis Signos transmitem invariavelmente uma multiplicidade de

significados para aleacutem do controle do artista e nenhum artista poderaacute dar conta da amplitude

de significados que poderatildeo ser captados pela plateacuteia em resposta a quaisquer signos

apresentados E mais como vimos Proschan sugerir a plateacuteia deve natildeo apenas reconhecer os

signos dispostos mas tambeacutem preencher os espaccedilos em branco entre os signos ou sejadeve

adicionar aqueles signos que ficaram de fora na abreviaccedilatildeo Embora o artista deva dirigir essa

atividade de preenchimento ele ou ela natildeo tem como controlaacute-la O boneco eacute seguramente um

inteacuterprete tatildeo intencional quanto pode o teatro oferecer Mas natildeo eacute e natildeo pode ser

completamente intencional Se tal limitaccedilatildeo afasta o teatro de bonecos de alcanccedilar o status de

ciecircncia exata isso natildeo eacute mais que presumiacutevel uma vez que o teatro de bonecos eacute uma arte e

toda arte apresenta significados tanto intencionais quanto acidentais

Completar espaccedilos em branco eacute uma parte importante da performance do teatro de

bonecos Os signos dos bonecos nunca satildeo uma coleccedilatildeo completa de sinais de vida natildeo

importa quanto o boneco possa ser feito para imitaacute-la Espera-se que a plateacuteia complemente

de alguma maneira os signos dispostos para que possa imaginar o objeto como tendo vida Eacute

claro a plateacuteia possui o seu desejo psicoloacutegico de completar esses espaccedilos vazios para

outorgar ao boneco a sua ldquovidardquo Talvez uma razatildeo para a intensidade do envolvimento da

plateacuteia em espetaacuteculos de bonecos advenha desse papel desempenhado pela plateacuteia como co-

criador da performance Esse papel envolve a co-criaccedilatildeo da comeacutedia por meio de

contracenaccedilatildeo verbal como discute Proschan (1987 30-44) mas estende-se para aleacutem disso

para incluir a co-criaccedilatildeo de signos sugeridos e tambeacutem como jaacute pudemos observar da

ldquoconsciecircnciardquo para o boneco

Segundo Ivan Koacuteos um diretor e cenoacutegrafo do Teatro de Bonecos Estatal de

Budapeste

328

O mais importante na representaccedilatildeo visual da cena para o boneco eacute que ela

dispotildee algo que se dirige rumo agrave imaginaccedilatildeo do espectador sem concluir

esse processo Em um determinado momento a ideacuteia eacute deixada em aberto

para ser completada pelo espectador Tomemos um exemplo familiar

alguns dos bonecos natildeo tecircm bocas ainda que o espectador tenha a sensaccedilatildeo

de que em certos momentos apropriados o boneco sorria ou demonstre seus

sentimentos por meio de expressotildees faciais (citado em Gaacutel 1978 20)

Esse princiacutepio eacute operativo para todos os trecircs sistemas siacutegnicos do boneco eacute um

aspecto vital ainda que frequentemete ignorado em toda a performance do boneco

O entendimento de que o boneco eacute constituiacutedo por signos de trecircs sistemas particulares

foi criado como vimos na introduccedilatildeo seacuteculos atraacutes pelo poeta da corte do rei javanecircs

Airlangga E tal foi acolhido com grande vigor e isso natildeo eacute nada surpreendente por

estudiosos do campo da semiologia Cabe recordar que na definiccedilatildeo de Jurkowsky para o

teatro de bonecos o boneco eacute mencionado como sendo um ldquoobjeto que fala e representa [isto

eacute move-se]rdquo (1988 [1983] 79) Veltruskyacute tambeacutem dsicute os trecircs sistemas siacutegnicos e sugere

que os signos ldquotransmitem sentido por similaridaderdquo

O objeto inanimado eacute mais ou menos similar a um ser humano ou

antropomoacuterfico A accedilatildeo fiacutesica a ele imposta eacute mais ou menos similar agraves

accedilotildees ou comportamento do mesmo ser representado A apresentaccedilatildeo

vocal tambeacutem significa a apresentaccedilatildeo vocal do ser representado por meio de

similaridade [embora difira dos outros em ser real em si mesmo de modo

que] o signan e o signatum satildeo aqui essencialmente os mesmos alguns

distorcedores de voz usados em teatro de bonecos tendem a atenuar ou

suprimir essa caracteriacutestica (1983 71)

A relaccedilatildeo ldquomais ou menos similarrdquo do boneco com a vida eacute o que noacutes temos chamado

de as variaacuteveis qualidades e quantidades dos signos abstratos do boneco A caracterizaccedilatildeo de

Veltruskyacute do boneco como sendo um ldquoobjeto inanimadordquo eacute como pudemos ver infeliz e

carente de modificaccedilatildeo Ao usar os termos signan e signatum ele quer dizer que o sistema

siacutegnico da fala difere dos demais sistemas siacutegnicos no fato de que os signos de fala presente

satildeo enviadas pela proacutepria fala presente seja esta ou natildeo atribuiacuteda ao boneco

Green e Pepicello concordam que o sistema siacutegnico da fala eacute diferente Eles

escreveram que ldquocanais satildeo sistemas que consistem de uma fonte de mensagem um meio

de transmissatildeo (para os nossos propoacutesitos tanto visual quanto auditivo) e um receptorrdquo

(1983 147) Eles entatildeo assinalam que para o canal visual ldquoum esquema cineacutetico em escala

reduzida cria um coacutedigo convencional por meio da centralizando da atenccedilatildeo numa

quantidade selecionada de movimentos realizados pela figura animadardquo e tambeacutem que ldquoum

segundo coacutedigo funcionando no canal visual eacute a aparecircncia fiacutesica do proacuteprio bonecordquo (1983

329

151) ou seja eles indicam aquilo que este estudo tecircm chamado de os sistemas siacutegnicos de

movimento e forma Dentro do canal da audiccedilatildeo eles apontam ldquoum sistema de fala

simplificado ou reduzido em escalardquo (1983 148) Para Green e Pepicello os sistema da fala

difere dos outros na ordem em que este faz uso de canais de transmissatildeo separados

As diferenccedilas existentes e a importacircncia relativa dos sistemas siacutegnicos de movimento e

fala satildeo temas de discussotildees substanciais Como temos visto muitos artistas tais como

McPharlin Obraztsov e Baird seguem Duranty na afirmaccedilatildeo de que ldquoo que os bonecos

fazem domina inteiramente o que eles falamrdquo (citado em Veltruskyacute 1983 97) enquanto que

muitos estudiosos como Jurkowski e Veltruskyacute seguem Magnin na afirmaccedilatildeo de que ldquoa

separaccedilatildeo entre palavra e accedilatildeo eacute precisamente o que constitui a apresentaccedilatildeo do bonecordquo

(citado em Proschan 1983 20) As diferenccedilas existentes e a relativa importacircncia desses

sistemas de signos seratildeo abordadas mais adiante nesse capiacutetulo

Segue uma tabela que correlaciona trecircs pontos baacutesicos no continuum da representaccedilatildeo

siacutegnica com os trecircs sistemas de signos do boneco sob cada um dos sistemas de signos estatildeo

listados as variaacuteveis principais que operam as variaccedilotildees de qualidade e quantidade dos signos

representativos Todos os termos empregados nessa tabela seratildeo explicados em nossa anaacutelise

particulares dos sistemas de signos

Forma

Movimento Fala

Imitativo

Figurativo Com o boneco Personagem

Estilizado

Seleccedilatildeo

Exagero

Apesar do boneco Caricatura

Conceitual

Natildeo figurativo

Operador presente

Contra o boneco Voz modificada

Falante presente

Variaacuteveis Atributos fiacutesicos

Tamanho

Materiais

Presenccedila do operador

Mecacircnica de controle

Pontos de controle

Pontos de articulaccedilatildeo

LuzCenografia

Paralinguacuteistica

DialetoLinguagem

Modificaccedilatildeo vocal

Presenccedila do falante

Os trecircs pontos relacionados no continuum da representaccedilatildeo dos signos natildeo satildeo mais

que seus pontos finais e um ponto em seu meio Dados os quase infinitos nuacutemeros e permutas

possiacuteveis para as variaacuteveis em cada sistema de signos e dada a natureza sineacutergica de tais

330

permutas seria impossiacutevel localizar com total precisatildeo a localizaccedilatildeo de cada signo em meio

ao continuum Mas a tabela nos ajudaraacute a atribuir localizaccedilotildees geneacutericas aos signos e

compreender a forma como tal atribuiccedilatildeo pode ser feita

Deve ser notado que parece natildeo haver precedentes de tal tabulaccedilatildeo dos sistemas de

signos do boneco assim sendo nosso esforccedilo deve ser considerado nada mais que um esforccedilo

experimental de organizar a discussatildeo acerca dos signos do boneco

Deve tambeacutem ser registrado que questotildees diacrocircnicas seratildeo inevitavelmente

atravessadas por esta discussatildeo dos signos Por exemplo a presenccedila em cena dos operadores

dos bonecos no Bunraku produzem significados diferentes em plateacuteias japonesas e natildeo-

japonesas Ou para apresentar a questatildeo de outra maneira a existecircncia de determinadas

convenccedilotildees de apresentaccedilatildeo projetam percepccedilotildees variadas do boneco em plateacuteias diferentes

Natildeo deve haver duacutevidas de que convenccedilotildees de apresentaccedilatildeo determinadas satildeo um aspecto

importante para a arte do boneco e isso precisa ser afirmado em qualquer discurso diacrocircnico

Um dos propoacutesitos do discurso sincrocircnico que sucede eacute desenvolver um meio de se identificar

tais convenccedilotildees para a discussatildeo diacrocircnica Para este estudo eacute tarefa suficiente identificar e

discutir a amplitude das possibilidades para a significaccedilatildeo do boneco

O SISTEMA DE SIGNOS DA FORMA

Os signos de forma para o boneco satildeo ou podem ser dispostos intencionalmente de

modo tal que natildeo haja nada que o compare com o teatro vivente Como pudemos ver os

signos podem ser inteiramente inanimados em natureza uma mistura de animados e

inanimados ou inteiramente animados Batchelder escreve

[O artista] pode dar [ao boneco] toda a graccedila ou dignidade ou distorccedilatildeo ou

feiuacutera que a peccedila solicite Ele seleciona as caracteriacutesticas fiacutesicas que sejam

essenciais a uma determinada personagem e o expressa com simplicidade e

forccedila Ele natildeo eacute atrapalhado pelas limitaccedilotildees da anatomia humana

Ademais ele natildeo se encontra confinado agrave representaccedilatildeo de seres humanos

(1947 281)

Nossa preocupaccedilatildeo aqui natildeo eacute a de discutir todas as escolhas que os artistas podem

fazer para construir bonecos antes eacute a de apontar as variaacuteveis mais importantes nas formas

dos bonecos e descrever como estas satildeo empregadas para criar signos abstratos de vida Tais

variaacuteveis incluem feiccedilotildees e tamanhos de bonecos o material fiacutesico apresentado para a plateacuteia

e a presenccedila ou ausecircncia sobre o palco de seu(s) operador(es)

As feiccedilotildees do boneco satildeo detalhes anatocircmicos tais como olhos nariz boca e

membros tanto quanto eacute a forma geral do boneco Diversas tradiccedilotildees ditam a quantidade e a

331

qualidade dos sinais de aparecircncia dos bonecos Em nosso exemplo japonecircs ldquohaacute

aproximadamente quarenta diferentes tipos de cabeccedila mais comuns e algo em torno de trinta

formas especiaisrdquo as diferenccedilas entre esses tipos dependem das caracteriacutesticas das feiccedilotildees

ldquohomem e mulher jovem velho e meia idade bom e maligno ndash cada um com seus detalhesrdquo

(Adachi 1985 87) Todas essas feiccedilotildees entretanto satildeo para a maior parte dos casos

igualmente representativas em qualidade e quantidade Ou seja todas as cabeccedilas de bonecos

possuem traccedilos de uma qualidade quase realiacutestica e todos eles possuem uma complementaccedilatildeo

completa das feiccedilotildees incluindo orelhas ainda que estas estejam quase sempre ocultas sob

perucas Ainda todos os bonecos possuem braccedilos em formatos realiacutesticos bonecos

masculinos possuem pernas em formato semelhante ao humano ao passo que os femininos

possuem roupas que ocultam a ausecircncia das pernas

Em nosso exemplo javanecircs haacute tambeacutem a determinaccedilatildeo tradicional da qualidade e

quantidade dos sinais de aparecircncia

As diversas centenas de figuras de homens deuses e ogres podem ser

classificadas e identificadas por meio de vinte e cinco formas fiacutesicas

Formato do corpo tipo de peacute formato de nariz formato de olhos e a

inclinaccedilatildeo da cabeccedila satildeo cinco dos mais cruciais De acordo com os textos

javaneses mais detalhados haacute treze diferentes formatos de olhos treze

formatos de nariz e dois ou trecircs diferentes formatos para o corpo o peacute e a

inclinaccedilatildeo da cabeccedila Esses tipos diferentes de atributos fiacutesicos podem ser

combinados em duacutezias de diferentes tipos de bonecos identificaacuteveis

(Brandon 1970 40-1)

Mais uma vez a aparecircncia de diversos bonecos satildeo na maioria dos casos igualmente

representativos em qualidade e quantidade Os atributos faciais satildeo muito estilizados em

qualidade com as formas dos olhos nariz e boca sendo substancialmente exageradas As

formas dos corpos e dos braccedilos tambeacutem satildeo exageradas a um niacutevel quase grotesco os corpos

tendem a ser tanto emaciados quanto inchados enquanto que os braccedilos em sua extensatildeo

maacutexima podem exceder a altura da figura inteira (Malkin 1977 108-9) A variedade de

caracteriacutesticas fiacutesicas para esses bonecos de sombra eacute substancial incluindo toda a gama de

formas faciais e de membros Deve-se notar o fato entretanto que grande parte dos bonecos

satildeo mostrados em perfil ao passo que todos os quatro membros estatildeo sempre visiacuteveis apenas

a metade de uma face ldquocheiardquo pode ser vista de cada vez

Os signos de aparecircncia no bunraku japonecircs satildeo de uma qualidade e quantidade

bastante aproximadas agraves dos homens vivos ao passo que os signos de aparecircncia dos bonecos

de sombra javaneses satildeo de uma qualidade e quantidade estilizados ambos satildeo ditados pela

tradiccedilatildeo Mas eacute claro tais signos natildeo poder ser tatildeo determinados e devem poder ser

332

livremente escolhidos para as apresentaccedilotildees Uma descriccedilatildeo de alguns bonecos da peccedila O

Mandarim Miraculoso do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste demonstra o modo pelo

qual bonecos com diferentes qualidade e quantidade de signos de aparecircncia podem ser usados

conjuntamente

Os rufiotildees natildeo possuem rostos Seus toacuteraxes convexos se pronunciam como

os abdomes de grandes insetos A face da menina eacute igualmente vazia sua

aparecircncia de boneca eacute enfatizada pela ausecircncia de olhos nariz ou boca nada

aleacutem de um oval liso estaacute ali Sua personalidade pode ser percebida pelos

movimentos sedutores de seus membros pernas finas e longas e braccedilos

convidativos Quando o Mandarim aparece daacute a impressatildeo de ser a mais

humana entre as figuras estranhamente maacutegico como eacute O Mandarim possui

um rosto Possui feiccedilotildees humanas Entre os sem rosto socado como uma

massa informe ele representa a humanidade (Gal 1978 28)

Nessa produccedilatildeo os rufiotildees e a menina possuem aparecircncias altamente estilizadas as

qualidades exageradas dos formatos de seus corpos denotam as suas naturezas esta qualidade

eacute aumentada pela ausecircncia a total falta em quantidade de elementos faciais O Mandarim

pelo contraste assinalado tem uma aparecircncia quase realiacutestica na qualidade e quantidade de

seus atributos faciais O efeito produzido por tal contraste natildeo deve ser subestimado Por meio

da apresentaccedilatildeo de signos de fisionomia variados os personagens se distinguem

profundamente

Natildeo parece haver nenhuma grande tradiccedilatildeo na Euraacutesia que se apoacuteie regularmente em

feiccedilotildees natildeo realista para o boneco Malkin nos conta entretanto que ldquoBonecos africanos

usualmente guardam pequena semelhanccedila com os conceitos ocidentais de como um boneco

deve aparentarrdquo (1977 71) isso sugere que signos de aparecircncia natildeo realista natildeo devem ser

incomuns nas tradiccedilotildees africanas E eacute claro satildeo bastante comuns em diversas produccedilotildees

contemporacircneas

Indo para outra produccedilatildeo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste aprendemos que

ldquoos personagens em Aventuras satildeo [representados por] objetos Satildeo eles um terno num

cabide um guarda chuva um chapeacuteu de uniforme uma peruca feminina e um chapeacuteu estolas

golas de pelo e daiacute em diante Desses objetos a tragicomeacutedia humana a peccedila filosoacutefica

evoluirdquo (Gal 1978 40) Os signos de aparecircncia dos bonecos dos personagens representados

um homem uma mulher satildeo sujeitados a um processo radical de seleccedilatildeo tudo o que resta eacute o

que parece ser elementos de seus figurinos e adereccedilos Ainda assim tais elementos

combinam com o auxiacutelio vital de movimentos e falas para criar personagens Os signos de

aparecircncia desses bonecos satildeo distantes do realiacutestico a ponto de fazer com que os bonecos

sejam irreconheciacuteveis fora da apresentaccedilatildeo como bonecos

333

Enquanto que os signos de aparecircncia em Aventuras satildeo sujeitados a uma seleccedilatildeo

radical os signos que permanecem natildeo passam por um processo de exagero igualmente

radical o terno a peruca e por aiacute adiante satildeo claramente aquilo que satildeo O processo de

metoniacutemia a representaccedilatildeo de algo por um ou mais de seus atributos eacute certamente embora

natildeo exclusivamente parte dessa representaccedilatildeo

Signos de aparecircncia entretanto podem tambeacutem ser feitos natildeo realiacutesticos por meio de

exagero radical no qual um processo metafoacuterico toma o lugar do processo metoniacutemico Bill

Baird tem para um sketch de ficccedilatildeo cientiacutefica um personagem boneco chamado Crutchface

(NT Cara de muleta) Eacute feito de quatro pedaccedilos de madeira um tem a forma de uma banana

inflada com uma marca de mordida acima de sua parte inferior outra eacute um cilindro pequeno

com olhos negros em suas pontas que penetra a primeira parte logo acima de sua metade

projetando-se para fora em ambos os lados outros dois tecircm a forma de diapasotildees cujas

extremidades de uma haste tocam o chatildeo e cujas extremidades bifurcadas encaixam-se no

cilindro com os ldquoolhosrdquo sugerindo que esses diapasotildees sejam pernas (1965 219)

A seleccedilatildeo quantitativa de signos de aparecircncia estaacute presente aqui no fato de que

Crutchface natildeo possui torso nem braccedilos Mas mais importante eacute o exagero qualitativo e a

justaposiccedilatildeo dessas caracteriacutesticas que restam os formatos da cabeccedila e olhos satildeo exagerados

para aleacutem do grotesco e satildeo pouco mais que sugestotildees a conexatildeo das pernas aos olhos eacute

chocante e sugestiva de uma personalidade totalmente deformada Crutchface talvez seja um

nome muito rude para um boneco cujos signos de aparecircncia satildeo apresentados por meio de

exagero radical com tanta forccedila metafoacuterica

Os signos de aparecircncia na forma do boneco entatildeo transitam do imitativo ao estilizado

ao conceitual de acordo com os niacuteveis de sua aparente humanidade em qualidade e

quantidade se sua quantidade foi sujeita a algum grau de seleccedilatildeo e sua qualidade a alguns

exageros ou se a sua qualidade eou quantidade foram radicalmente alteradas para longe da

aparecircncia humana

A proacutexima variaacutevel da forma a ser considerada eacute a da dimensatildeo do boneco McPharlin

argumenta que ldquoo uacutenico momento em que o tamanho do boneco eacute relevante eacute quando [o

boneco eacute] propositalmente contrastado com a escala humanardquo (1938 75) Ainda que tal

contraste com a escala humana certamente apresente consequumlecircncias significativas McPharlin

estaacute errado ao afirmar que o signo da dimensatildeo do boneco eacute irrelevante para os demais casos

Uma compreensatildeo das consequumlecircncias do tamanho requer o reconhecimento de que os

signos de dimensatildeo trabalham de duas diferentes maneiras A primeira eacute quando o boneco

estaacute em contraste com o seu palco apropriado com seus cenaacuterios eou adereccedilos eou com

334

outros bonecos com os quais se apresenta isso pode ser chamado de o tamanho relativo do

boneco A plateacuteia distingue o boneco natildeo de acordo com uma noccedilatildeo humana de escala mas

num sentido relativo de acordo com a escala apresentada pela proacutepria apresentaccedilatildeo A

segunda maneira eacute quando o boneco eacute contrastado propositalmente ou natildeo com a escala

humana isto pode ser chamado o tamanho absoluto do boneco A plateacuteia percebe o boneco

num sentido absoluto como maior que o tamanho real aproximado ao tamanho real ou

menor

O tamanho relativo do boneco produz sentido no contraste com outros bonecos agrave sua

volta Esse signo natildeo eacute como jaacute vimos em McPharlin geralmente reconhecido pelos autores

de teatro de bonecos Batchelder aponta

Pessoas sem familiaridade com bonecos supreendem-se constantemente ao

descobrirem que as figuras que pareciam possuir tamanho real sobre o palco

satildeo de fato bem pequenas

Basicamente esta eacute simplesmente uma questatildeo do relacionamento entre o

boneco e o que o cerca mobiacutelia cenaacuterio e propriedades satildeo construiacutedas em

proporccedilatildeo com as figuras e assim o olho aceita a cena inteira como tendo

tamanho real mesmo que algo na escala humana seja eventualmente

introduzida na composiccedilatildeo (1947 284)

Batchelder refere-se aqui a uma ilusatildeo convencional em teatro de bonecos na qual

tudo sobre o palco incluindo o proacuteprio palco se encontra em escala uniformemente reduzida

Mas assim como McPharlin ela parece abstraiacuteda da possibilidade de se apresentar bonecos

crescidos juntamente com os pequenos ou de se apresentar bonecos de qualquer tamanho em

meio a cercanias em qualquer escala

Em nosso exemplo javanecircs os bonecos diferem substancialmente em tamanho entre

si Essa discrepacircncia relativa natildeo se daacute em funccedilatildeo de diferenccedilas de altura naturaliacutesticas ou

seja natildeo eacute uma questatildeo de pequenos bebecircs e adultos crescidos H Ulbritch um estudioso

alematildeo contemporacircneo aponta que em geral ldquoquanto maiores satildeo mais violenta eacute a sua

natureza Personagens espirituais satildeo finos e pequenos em tamanhordquo (1970 7)

Similarmente signos de dimensatildeo relativa satildeo apresentados na tradiccedilatildeo de bonecos de

Liegravege Nesse caso entretanto o tamanho relativo eacute empregado com uma hierarquia

convencional revertida

335

Figuras grandes [satildeo] mais fortes ou mais nobres que as menores Dessa

forma Carlos Magno deveria ter aproximadamente cinco peacutes de altura (NT

aproximadamente um metro e meio) ao passo que uma personagem menor

deveria ter menos de dezoito polegadas de altura (Malkin 1977 24-5)

O tamanho relativo dos bonecos nessas duas tradiccedilotildees eacute uma violaccedilatildeo intencional da

ilusatildeo convencional aludidas por McPharlin e Batchelder e eacute tudo menos inconsequumlente jaacute

que transmite por meio de um entendimento convencional informaccedilotildees vitais acerca das

personagens apresentadas

Signos de dimensatildeo relativa podem tambeacutem ser empregados para se estabelecer a

relaccedilatildeo do boneco com o que o cerca Obraztsov detalha tal uso em uma produccedilatildeo do Teatro

de Bonecos Central Estatal de Moscou

Queriacuteamos mostrar um vilarejo ucraniano no momento em que se encerra a

missa e os aldeotildees estatildeo indo para suas casas Nosso palco nessa cena

consistia em cinco planos horizontais em ascensatildeo gradual No primeiro

plano havia cabanas grandes imediatamente abaixo e no plano mais ao

fundo ficava uma pequena igreja

Para cada um [dos personagens] fizemos cinco tamanhos diferentes de

bonecos que variavam de tamanho entre quatro polegadas (aprox 10 cm) a

dois peacutes e seis (aprox 80 cm) Bonecos pequenos emergiam de dentro da

igreja saiacuteam em diversas direccedilotildees e desapareciam por traacutes de aacutervores e

cabanas Detraacutes das aacutervores bonecos maiores surgiam para o plano seguinte

e entatildeo ainda maiores e quando apareciam no primeiro plano estavam

substancialmente crescidos Dessa forma lidamos com perspectiva (1954

13-4)

O Pickwick Puppet Theatre de maneira similar usou bonecos de tamanhos relativos

em sua produccedilatildeo de 1980 Don Quixote dirigida por Kevin Moses Bonecos do heroacutei e de

Sancho Panccedila variavam entre 20 centiacutemetros e 24 metros de altura e eram em geral usados

para criar equivalentes a efeitos cinematograacuteficos de planos abertos e close-ups o menos dos

bonecos estando praticamente perdido em meio ao vasto horizonte do palco e os maiores

dominando o palco com suas presenccedilas dominadoras

O tamanho absoluto do boneco eacute um signo que natildeo apresenta significados pelo

contraste com o que cerca a figura ou com os demais bonecos mas intrinsecamente O

boneco de luva com sua estatura diminuta quase natildeo consegue evitar parecer encantador e

divertido Jaacute vimos que as associaccedilotildees metafoacutericas decorrentes do seu tamanho assemelhado

ao de um brinquedo podem produzir um impacto substancial sobre as plateacuteias Vimos

tambeacutem em nossas consideraccedilotildees do exemplo inglecircs como eacute permitido ao boneco de luva

Punch dizer e fazer coisas que seriam insuportaacuteveis no teatro vivente e que seriam

igualmente insuportaacuteveis se feitos e ditos por bonecos bem maiores em tamanho Isso pode se

336

dar porque Punch se encontra protegido natildeo apenas por seu status geral de boneco mas por

seu status particular de luva ndash ou seja pelo charme e ludicidade associadas a esse tamanho

absoluto

Reciprocamente o boneco maior que o ser vivo com sua estatura impressionante

dificilmente natildeo pareceraacute poderoso e agourento Vimos que as associaccedilotildees metafoacutericas

provocadas por seu tamanho oliacutempico pode ter a sua maneira de impactar uma plateacuteia Em

nosso exemplo norte americano The Enchanted Child apenas duas personagens satildeo

representadas por bonecos maiores que seres humanos a matildee da crianccedila e sua professora

ambas capazes de levar a crianccedila a um terror paroxiacutestico O Bread and Puppet Theatre usa

bonecos torres que se estendem ateacute 35 metros de altura Tais bonecos possuem ldquopoder

estatura e dignidade e [eles] predispotildeem [a companhia] a uma visatildeo sombria da existecircncia

humanardquo (Brecht 1988 1 304) Provavelmente esses bonecos predispotildeem a uma ldquovisatildeo

sombria da vidardquo precisamente devido agrave sugestatildeo de divindade impressionante associada a seu

tamanho absoluto

Os signos de dimensatildeo na forma do boneco natildeo satildeo tatildeo simples de serem

categorizados juntamente com o continuum da representaccedilatildeo como satildeo os signos de

aparecircncia Ainda que haja outras maneiras pelas quais podem ser apresentadas aleacutem das mais

usualmente reconheciacuteveis as escolhas oferecidas natildeo satildeo extensas como as dos signos de

aparecircncia Isto ocorre porque signos de dimensatildeo podem ser alterados apenas em termos de

qualidade para qualquer boneco natildeo pode haver reduccedilatildeo em sua quantidade pois o boneco

possui apenas um tamanho ainda que muitos bonecos possam ser usados para representar um

personagem em particular Pode-se sugerir entretanto que sempre que signos de dimensatildeo

satildeo transmitidos de modo a criar a ilusatildeo convencional do teatro de bonecos como referido

por McPharlin e Batchelder sua qualidade eacute realiacutestica e imitativa quando eacute relativa e

enfatiza relaccedilotildees estabelecidas entre os bonecos e o que o cerca sua qualidade se sujeita ao

exagero e agrave estilizaccedilatildeo e quando os signos satildeo absolutos e exagerados o bastante para

produzir sentido em sua radicalidade sua qualidade eacute irrealiacutestica e conceitual

A variaacutevel seguinte a ser considerada no sistema de signos de forma eacute a dos materiais

que o boneco apresenta ao puacuteblico Batchelder comenta ldquoSendo os bonecos criaturas

imaginadas pode-se ter liberdade nos materiais a partir dos quais satildeo construiacutedosrdquo Tal

liberdade encontra expressatildeo em trecircs maneiras diferentes os materiais podem ser escolhidos

por serem baratos porque satildeo faacuteceis para se trabalhar ou porque apresentam meios

comunicativos proacuteprios As duas primeiras maneiras natildeo nos dizem respeito aqui nossa

atenccedilatildeo repousa sobre as possibilidades de comunicaccedilatildeo dos signos de material

337

McPharlin cita uma lista de materiais para bonecos apresentada por E Gordon Craig ndash

ldquopapel cartatildeo couro zinco madeira tecido papier macheacute e gessordquo ndash aos quais adiciona

ldquodiversos sinteacuteticos modernos como madeira plaacutestica borracha em corte ou moldada

ceracircmica [bem como] outros materiais especiais [tais como] metal vidro pedra [e] fibrardquo

(1938 71-2) A essa lista jaacute extensa pode-se adicionar virtualmente qualquer material

conhecido pelo homem incluindo como jaacute vimos a proacutepria mateacuteria do operador do boneco

McPharlin prossegue afirmando que ldquoos materiais podem ser empregados devido agraves

suas proacuteprias qualidades visuais e taacuteteis [por exemplo] vidro cobre e plumas para

transparecircncia maleabilidade e leveza tambeacutem devido a adequaccedilatildeo agrave forma ou agraves qualidades

simboacutelicasrdquo (1938 73) A afirmaccedilatildeo eacute confirmada por Peacuteter Molnaacuter Gaacutel um construtor de

bonecos do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste ldquoO material escolhido deve possuir em

si mesmo algo para transmitir Pode afetar o espectador agrave sua proacutepria maneira e evocar

associaccedilotildees e sensaccedilotildees nos amantes da arterdquo (1978 17)

Devemos recordar que a produccedilatildeo do Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste de O

mandarim miraculoso havia rufiotildees cujos rostos eram feitos de couro sem feiccedilotildees O emprego

do couro na confecccedilatildeo desses rostos eacute algo tatildeo significante quanto a ausecircncia dos detalhes

faciais uma vez que o couro produziu uma sensaccedilatildeo de endurecimento Se os rostos sem

detalhes fossem recobertos por uma gaze branca as associaccedilotildees produzidas seriam

inteiramente diferentes O signo de material do couro eacute vital agrave forma e agrave caracterizaccedilatildeo dos

bonecos

O exerciacutecio de se imaginar bonecos familiares feitos de um material completamente

diferente demonstra a importacircncia de tais signos Uma das muitas razotildees para o sucesso dos

Muppets por exemplo parece ser o fato de que suas faces flexiacuteveis satildeo natildeo apenas capazes

de uma movimentaccedilatildeo expressiva mas tambeacutem bastante agradaacuteveis devido agrave suavidade que

transmitem Se personagens como digamos Bert and Enie (NT conhecidos na versatildeo

brasileira como Beto e Ecircnio) fossem feitos com exatamente as mesmas feiccedilotildees mas a partir

de um metal reluzente ou de couro ou mesmo de madeira o efeito produzido pelo signo de

material seria substancialmente diferente

Os signos de material do boneco podem ser embora nem sempre incluir o seu

figurino Adachi menciona um figurinista japonecircs ldquoNo Bunraku o boneco eacute o figurino o

figurino eacute a personagemrdquo (1985 119) Trata-se de um exagero pois como pudemos ver haacute

quarenta tipos diferentes de cabeccedila para bonecos de Bunraku cuidadosamente diferenciadas

por suas caracteriacutesticas Se o figurino fosse de fato a personagem natildeo haveria necessidade

de se elaboras as cabeccedilas dos bonecos Figurinos satildeo entretanto uma parte fundamental da

338

forma de muitos bonecos e as discussotildees mencionadas dos signos de material devem ser

feitas de modo a incluir os materiais de que satildeo feitos os figurinos dos bonecos

Os signos de material na forma do boneco natildeo satildeo tatildeo simples de serem categorizadas

juntamente com o continuum de representaccedilatildeo do que os signos de dimensatildeo Cada um dos

materiais mencionados e todos os que natildeo foram mencionados como bototildees que se usam

para fazer olhos zipers para bocas tecidos fios ou perucas para cabelos e aiacute por diante

possuem suas qualidades particulares Ainda que cada boneco apresente no miacutenimo um signo

de material a maioria deles apresenta mais que um ao se considerar tambeacutem a vestimenta do

boneco a quantidade de signos de material apresentados por qualquer boneco em particular se

tornar rapidamente extremamente numeroso de fato

Seria seguro sugerir entretanto que quando signos de material de uma maneira

relativamente discreta como ocorre usualmente com tecido madeira espuma e isopores eles

tendem na direccedilatildeo da ponta realiacutestica e imitativa da escala Similarmente quando os materiais

satildeo usados de modo a chamar certa atenccedilatildeo para o seu emprego como ocorre geralmente com

o couro fibras bototildees e zipers suas qualidades possuem um aspecto de auto-exagero e assim

tendem em direccedilatildeo agrave aacuterea de estilizaccedilatildeo da escala E quando os materiais satildeo usados de modo

a chamar a atenccedilatildeo para eles insistentemente como eacute o caso de materiais menos usados tais

como metais vidro e curiosamente partes de corpos vivos apontam na direccedilatildeo da ponta

irrealista e conceitual da escala

Antes de concluirmos nosso levantamento sobre as principais variaacuteveis de forma

parece uacutetil atentar para uma menos importante que as jaacute discutidas e que eacute um aspecto da

forma que poderiam natildeo ser considerada uma variaacutevel em si mas que pode vir a ter uma forte

influecircncia sobre a forma do boneco

A variaacutevel mencionada eacute precisamente a cor Em algumas tradiccedilotildees a cor da face ou

da roupa de um boneco pode trazer significados No teatro de sombras javanecircs ldquoa cor eacute um

indicativo importante de humor ou estado emocional Um boneco com um wanda (face ou

face e corpo) dourado transmite dignidade e calma ao passo que o preto pode querer dizer

raiva ou forccedila O vermelho indica tempestuosidade ou fuacuteria Juventude ou inocecircncia

podem ser passados por um rosto brancordquo (Brandon 1970 50)

Associaccedilotildees em geral de cores com emoccedilotildees tais como o vermelho com a fuacuteria satildeo

sem duacutevida quase universais Mas parece raro quando a cor eacute codificada no grau em que

ocorre no teatro de sombras javanecircs onde possui conotaccedilotildees mais especiacuteficas que geneacutericas

Na medida em que pode apresentar tais associaccedilotildees entretanto e na medida em que pode ser

sujeitada a certa codificaccedilatildeo a cor eacute outra ndash se natildeo universal ndash variaacutevel da forma do boneco

339

O aspecto de forma que natildeo seja uma variaacutevel em si mesma pode ser chamada de

transferecircncia uma vez que envolve a transferecircncia de caracteriacutesticas humanas agrave forma de um

animal Os Muppets satildeo talvez o mais famoso exemplo do que se apresenta Kermit o sapo e

Miss Piggy natildeo satildeo percebidos pela plateacuteia com maior ou menor seriedade do que o satildeo os

bonecos de forma humana Bert e Ernie Eacute como se Kermit e Piggy fossem pessoas que por

acaso satildeo animais

A transferecircncia simplifica ainda que enriqueccedila as caracterizaccedilotildees Simplifica ao

oferecer um conjunto de caracteriacutesticas facilmente reconheciacuteveis se Miss Piggy fosse

mostrada como um ser humano suas caracteriacutesticas principais de tola pretensatildeo necessitariam

de um desenvolvimento substancial mas ser pretensiosa e ser ao mesmo tempo uma porca eacute

uma tolice auto-evidente A transferecircncia enriquece a caracterizaccedilatildeo ao oferecer um contexto

facilmente reconheciacutevel Pelo fato de Kermit ser um sapo dotado de uma consciecircncia

agudamente humana ele tem a chance de refletir acerca da significado de ser um sapo ele

pode mesmo se comportar como um sapo sem com isso perder a simpatia da plateacuteia

Supreendentemente devido a grande difusatildeo de contos e faacutebulas envolvendo animais

a praacutetica de transferecircncia parece ser relativamente rara nas tradiccedilotildees de bonecos eurasianas

Deve-se notar que em tradiccedilotildees como a javanesa diversos deuses satildeo representados como

animais mas tal representaccedilatildeo surge da descriccedilatildeo de convencional de certos deuses em forma

animal e assim a transferecircncia decorrente natildeo se daacute como funccedilatildeo de uma escolha teatral O

desenvolvimento da transferecircncia no teatro de bonecos eacute uma questatildeo fascinante seria

inspirado pelos desenhos animados de Walt Disney com personagens tais como Mickey

Mouse e Donald Duck O que teria entatildeo inspirado Disney a literatura infantil vitoriana

Essa questatildeo se estende para aleacutem dos domiacutenios da esteacutetica dos bonecos teatrais e talvez seja

merecedora de uma pesquisa mais ampla

De qualquer maneira Jim Henson natildeo criou Kermit originalmente como um sapo mas

como ldquoalgo com um ar de lagartordquo que natildeo representaria claramente nenhum animal (Henson

Associates 1980 25) Trabalhando com o desenhista Don Sahlin ele comeccedilou a criar bonecos

que eram animais reconheciacuteveis e assim Kermit evoluiu para ser um sapo que permaneceu

ainda assim peculiarmente humano (Henson Associates 1980 8) Esse exemplo de

transferecircncia apresentado mais obviamente por Disney e pelos Muppets tem sido seguido com

regularidade tediosa por artistas menos originais e tem se tornado um prego para as

produccedilotildees americanas em teatro de animaccedilatildeo

John Glore numa resenha para o Festival Internacional de Teatro de Bonecos de

Washington D C em 1980 aponta

340

O teatro de bonecos gratifica nosso desejo antropocecircntrico de nos

encontrarmos em tudo Natildeo eacute coincidecircncia que bonecos habitualmente

tomem a forma de animais humanizados isso satisfaz dois dos impulsos

centrais da animaccedilatildeo de bonecos a personificaccedilatildeo de um animal mas

tambeacutem a animalizaccedilatildeo da humanidade onde o ser humano adquire a

inocecircncia animal e sua falta de auto-consciecircncia (1980 61)

Essa explicaccedilatildeo ainda que um tanto exasperada parece dar conta do apelo psicoloacutegico

da consciecircncia humana transferida a uma forma animal Deve ser indicado entretanto que a

mesma explicaccedilatildeo se aplica em iguais condiccedilotildees agrave maioria dos personagens animais em

desenhos animados e de fato agrave maioria dos animais em teatro mostrados com atores em

figurinos ou maacutescaras Assim isso se refere agrave praacutetica geral da transferecircncia mais do que

como essa praacutetica ocorre em teatro de bonecos

A transferecircncia pode tambeacutem ser usada para instilar caracteriacutesticas humanas a o que

satildeo no mundo real obviamente objetos Por exemplo em nosso exemplo norte-americano

um sofaacute e uma cadeira acolchoada encontram-se entre os personagens da oacutepera em certas

muacutesicas comportando-se da mesma maneira que os outros personagens fazendo o mesmo

com alguns movimentos tal como usando seus encostos para braccedilos como braccedilos de fato

executando um pas de deux exageradamente desajeitados A transferecircncia com objetos do

mundo real eacute menos comum do que com animais mas as possibilidades de simplificaccedilatildeo e

enriquecimento de personagens eacute similar

Chegamos enfim agrave uacuteltima e potencialmente mais significativa das variaacuteveis no

sistema de signos de forma para o boneco a presenccedila ou ausecircncia sobre a cena do(s)

perador(es) do boneco Esta eacute uma variaacutevel de forma pois pode produzir um impacto

profundo sobre a maneira como o boneco eacute visto Natildeo eacute uma variaacutevel de movimento porque

esteja o operador visualmente ausente ou presente o movimento dado ao boneco permanece

em geral inalterado

Batchelder nos informa

Praacuteticas relacionadas agrave ocultaccedilatildeo dos meios pelos quais os bonecos satildeo

controlados variam consideravelmente Alguns marionetistas satildeo cuidadosos

ao permitir ao miacutenimo possiacutevel a revelaccedilatildeo dos mecanismos mas outros

admitem francamente que os bonecos satildeo mecanicamente operados e satildeo

constantemente bem sucedidos em criar uma ilusatildeo dramaacutetica igualmente

poderosa (1947 185)

O meio mais oacutebvio de controle de bonecos que pode ser ocultado ou mostrado eacute a proacutepria

operaccedilatildeo do boneco E natildeo resta duacutevida de que praacuteticas de ausecircncia ou presenccedila do operador

variam enormemente

341

O signo da ausecircncia ou presenccedila do operador possui um impacto fundamental na

qualidade e quantidade dos signos de forma do boneco como um todo Quando o operador

estaacute ausente como em nos exemplos nigeriano e inglecircs a qualidade dos signos de forma dos

bonecos feito das variaacuteveis de feiccedilotildees dimensatildeo e materiais eacute apresentado agrave plateacuteia sem uma

mediaccedilatildeo visual a quantidade dos signos de forma limita-se agravequelas do proacuteprio boneco O

modo direto de tal apresentaccedilatildeo pode ser de extrema importacircncia em nosso exemplo

nigeriano se algum dos operadores permitisse mesmo que a mecacircnica da operaccedilatildeo fosse

revelada ldquotoda a companhia corria o risco de ser assassinada pelos espectadores No miacutenimo

o marionetista ofensor poderia ser mortordquo (Malkin 1977 66)

Quando o operador estaacute presente entretanto como em nossos exemplos dos Estados

Unidos da Iacutendia e do Japatildeo a qualidade dos signos de forma dos bonecos satildeo imediatamente

transformados assim como a quantidade dos signos de forma se expandem de modo a incluir

a presenccedila do operador Tal presenccedila altera a totalidade dos signos de forma apresentados em

cena e independentemente dos signos do boneco mostra uma forma total que eacute artificial em

qualidade e quantidade sendo conceitual pois que o conceito visual do boneco como boneco

encontra-se tensionado

Talvez o melhor exemplo da presenccedila transformadora do operador seja o bunraku

japonecircs Os bonecos em si mesmos apresentam signos de forma quase realiacutesticos em

qualidade e quantidade mas com a presenccedila de ateacute trecircs operadores para cada boneco a forma

geral eacute desviada do registro imitativo uma vez que nada que seja realmente realiacutestico pode ser

tatildeo obviamente controlado por outros Pode ser verdade que a justaposiccedilatildeo radical dos

bonecos quase realiacutesticos com a presenccedila totalmente artificial de seus operadores seja

responsaacutevel por parte do poder da apresentaccedilatildeo do bunraku os bonecos independentemente

de seus signos de forma de natureza imitativa tornam-se conceituais de uma forma que

compele a plateacuteia a considerar seus status ontoloacutegicos Como jaacute vimos Knott escreve sobre as

simultacircneas ldquoilusatildeo absolutardquo e ldquodestruiccedilatildeo absolutardquo dessa ilusatildeo no bunraku nas quais

ldquoteatro e metateatrordquo satildeo dispostos um contra o outro (1976 100)

Assim na operaccedilatildeo dos bonecos do bunraku os signos de forma satildeo levados aos

limites das representaccedilotildees tanto imitativa como conceitual provocando um processo de visatildeo

dupla talvez da maneira mais radical

O bunraku natildeo eacute o uacutenico teatro de bonecos que utiliza a presenccedila do operador sobre a

cena As apresentaccedilotildees solo de Bruce Schwartz um dos melhores artistas de teatro de

bonecos dos Estados Unidos dos uacuteltimos tempos e de Peter Arnott acontecem com os

operadoresvocalizadores sendo completamente vistos pela plateacuteia Shwartz entretanto diz

342

que ldquoeu mantenho os mecanismos agrave mostra porque eu natildeo quero que as pessoas prestem

atenccedilatildeo neles Minha teoria eacute que me ver movimentar os bonecos com as minhas matildeos iraacute

se tornar aborrecido ao cabo de certo tempo Nesse momento os bonecos ficaratildeo mais

interessantes que eurdquo (1983 106) Arnott comenta da mesma maneira que ldquoapoacutes os primeiros

segundos a plateacuteia se esquece da minha presenccedila e se concentra completamente na accedilatildeo [dos

bonecos]rdquo (1964 81) Se tais explicaccedilotildees forem consideradas livres de certa dissimulaccedilatildeo

entatildeo devem ser certamente consideradas ingecircnuas ao passo que a presenccedila do inteacuterprete

sobre o palco torna conceitual a totalidade da forma do boneco sua oacutebvia concentraccedilatildeo em

seus bonecos encoraja a plateacuteia a compactuar com as suas vidas imaginaacuterias De fato no caso

de Arnott com sua ecircnfase em produzir trageacutedias gregas sua presenccedila em cena pode ser

entendida como algo que empresta uma mensagem metatextual agrave apresentaccedilatildeo os bonecos

satildeo um tanto literalmente sob o controle de um ser maior se natildeo divino

Contrariamente a Arnott e Schwartz entatildeo natildeo parece que eles como operadores e

vocalizadores ldquotornam-se aborrecidosrdquo ou que a plateacuteia se esqueccedila deles melhor sua

presenccedila em cena deve ser reconhecida como um aspecto vital de suas apresentaccedilotildees em

geral

O SISTEMA DE SIGNOS DE MOVIMENTO

A maioria dos artistas de teatro de bonecos tecircm poucas duacutevidas sobre o fato de o

sistema de signos de movimento ser o mais importante dos trecircs sistemas de signos do boneco

Como pudemos ver tanto Baird quanto McPharlin definem o boneco primariamente em

termos de movimento Obraztsov declara sem deixar espaccedilo para incertezas

O boneco foi criado para ser moacutevel Apenas quando se move torna-se vivo e

apenas nas caracteriacutesticas dos seus movimentos ele adquire aquilo que

chamamos comportamento Eacute claro que o texto assumindo que haja um

possui enorme importacircncia mas se as palavras que um boneco diz natildeo

correspondem ao seu gestual elas divorciam-se do boneco e ficam

penduradas no ar (1950 125)

Veltruskyacute tece um comentaacuterio acerca do movimento do boneco que parece ser notaacutevel apenas

pelo fato de vir de um semioacutelogo

Os movimentos transmitidos pelos bonecos satildeo similares agravequeles dos seres

que representam Natildeo eacute uma questatildeo de ser uma formulaccedilatildeo mais ou menos

precisa um momento crucial da apresentaccedilatildeo do boneco estaacute em questatildeo

Os movimentos do boneco transmitem um significado de impulso interno

correspondente ao impulso que produz os movimentos dos seres vivos e

por contiguidade esse significado impliacutecito se reflete na proacutepria mente do

espectador tendendo assim atribuiacute-los uma vida proacutepria (1983 89)

343

Veltruskyacute estaacute correto em dizer que o movimento de representaccedilatildeo eacute um ldquomomento crucialrdquo

na apresentaccedilatildeo do boneco a maioria dos artista de teatro de bonecos entretanto diriam que

esse eacute o momento crucial

O argumento sobre a dominacircncia do movimento sobre tanto forma quanto fala

funciona da seguinte maneira A forma de um boneco pode ser radicalmente irrealiacutestica de

modo a apresentar-se ao puacuteblico com signos tatildeo pouco representativos de um dado

personagem a ponto de serem ininteligiacuteveis por si soacutes A jaacute mencionada Aventuras do Teatro

de Bonecos Estatal de Budapeste com suas roupas perucas e estolas eacute um exemplo de forma

irrealiacutestica Da mesma maneira a fala de um boneco pode ser radicalmente modificada ou o

boneco pode natildeo apresentar fala apresentando-se diante da plateia com signos tanto

ininteligiacuteveis como inexistentes exemplos de modificaccedilatildeo radical seratildeo oferecidos na

proacutexima sessatildeo exemplos de bonecos sem fala incluiriam toda a miacutemica com bonecos e

ballets para bonecos Mas o movimento geral do boneco deve ser inteligiacutevel como sendo o

movimento da personagem ou entatildeo a forma e a fala qualquer que seja a sua qualidade

representacional passaratildeo a ser nada aleacutem de plaacutestica e oratoacuteria

Haacute uma extensatildeo desse argumento que trata diretamente da importacircncia relativa de

movimento e fala Eacute atribuiacutedo ao objeto especiacutefico boneco um movimento direto por meio de

seu operador ou seja ele se move Pode tambeacutem ser atribuiacuteda uma fala ao objeto especiacutefico

boneco mas este pode nunca falar Assim o movimento eacute intrinsecamente mais importante

para o boneco do que a fala Este argumento parece ser justificado agrave luz do amplo estudo em

termos de apresentaccedilotildees praacuteticas feito por McPharlin ldquoQuando dois bonecos estatildeo em cena e

um deles fala este deve mover-se e o outro permanecer parado se natildeo o puacuteblico natildeo

conseguiraacute distinguir qual dos dois eacute o que falardquo (1938 81) Embora o movimento seja

usualmente significativo em si tambeacutem eacute significativo em termos de permitir a identificaccedilatildeo

do boneco que fala movimento demais atropela e oblitera o sistema de signos de fala mais

fraco

Nossa preocupaccedilatildeo nesta seccedilatildeo eacute a de explicar as maiores variaacuteveis do movimento do

boneco e descrever como satildeo empregados para gerar signos abstratos de vida ao longo do

continuum da representaccedilatildeo Esses variaacuteveis incluem a mecacircnica do controle os pontos de

controle e os pontos de articulaccedilatildeo do boneco aleacutem da luz e cenografia que podem permitir a

implicaccedilatildeo do movimento do boneco

As variaacuteveis do movimento operam de uma maneira diferente do que foi discutido na

seccedilatildeo anterior Laacute cada variaacutevel continha o que poderiacuteamos chamar de subsistema de signos

no interior do sistema mais amplo assim pudemos identificar subsistemas de signos tais

344

como feiccedilotildees tamanho e assim por diante As variaacuteveis neste sistema de signos [de

movimento] natildeo apresentam tais subsistemas Essa diferenccedila vem da natureza estaacutetica da

forma em oposiccedilatildeo agrave natureza dinacircmica do movimento Ao poasso que as variaacuteveis me forma

apresentam-se diretamente como signos de aparecircncia signos de dimensatildeo e aiacute por diante as

variaacuteveis do movimento natildeo apresentam signos proacuteprios Operam num niacutevel anterior agravequele

do signo pois produzem signos de movimento

As primeira trecircs variaacuteveis no sistema de signos de movimento a mecacircnica de controle

os pontos de controle e os pontos de articulaccedilatildeo do boneco satildeo todas intriacutensecas ao boneco e

geralmente se encontram subsumidas sob a ideacuteia de tipo do boneco como ocorre na

taxonomia objeto-controle McPharlin declara que ldquoo movimento do boneco pode ser

classificado como movimento de tipo e movimento de intensidade Cada tipo de boneco de

acordo com a sua articulaccedilatildeo e controle possui seu movimento caracteriacutestico E esse

movimento pode ser sereno ou violento realiacutestico ou abstratordquo (1938 81) Embora essa

definiccedilatildeo reconheccedila as variaacuteveis da mecacircnica de movimento e das articulaccedilotildees ela continua

limitada numa dependecircncia da caracteriacutesticas gerais de movimento dos tipos de bonecos

Como jaacute pudemos ver a verdadeira quantidade de tipos eacute um tanto incerta e mesmo em meio

a tipos estabelecidos signos de movimento podem diferir drasticamente Eacute impossiacutevel por

exemplo caracterizar o movimento do boneco de luva como simples e constantemente

violento Bonecos de luva satildeo de fato muito bons com movimento hiperativos mas podem

tambeacutem ser movimentados de uma forma cuidadosa e calculada Da mesma maneira eacute

impossiacutevel caracterizar o movimento da marionete como simples e constantemente sereno

Marionetes ao menos as de fio satildeo de fato muito boas para excecutar movimentos lentos e

graciosos mas tambeacutem podem ser balanccediladas e giradas com grande forccedila

Nosso propoacutesito em dividir a discussatildeo acerca de tipo de bonecos em trecircs variaacuteveis

intriacutensecas separadas eacute a de permitir uma descriccedilatildeo mais acurada e detalhada da maneira

como bonecos produzem signos de movimento Primeiramente mecacircnicas de controle satildeo os

meios pelos quais o operador exerce controle segundo pontos de controle satildeo aqueles lugares

no boneco a partir dos quais esse controle eacute exercido e terceiro pontos de articulaccedilatildeo satildeo os

pontos pelos quais os bonecos satildeo unidos de modo a permitir movimentos diferenciados de

suas partes Para se compreender como tais variaacuteveis operam seraacute melhor examinar alguns

dos principais tipos de bonecos

As mecacircnicas de controle para a marionete de fios tradicional do ocidente satildeo os fios

seguros pelo operador que suporta o boneco O movimento do boneco deriva das forccedilas em

oposiccedilatildeo da traccedilatildeo do operador sobre os fios contraposta agrave gravidade o movimento de um fio

345

produz cria para o boneco tanto um movimento de subida quanto um de descida ou um

movimento de pendulaccedilatildeo do boneco Movimento de subida e descida tal como o da matildeo de

um boneco serrando o ar ou uma cabeccedila movendo-se em assentimento geralemente eacute

produzida independente da extensatildeo do fio O operador puxa um fio com uma certa

velocidade e o movimento de ascensatildeo correspondente ocorre na velocidade aplicada

quando o operador relaxa a tensatildeo do fio o movimento de queda ocorre numavelocidade que

natildeo excede a aceleraccedilatildeo da gravidade

Para o movimento pendular tal qual o da matildeo de um boneco buscando um objeto em

algum lugar ou o balanccedilo executado pelas pernas para o movimento de caminhar a extensatildeo

do fio eacute algo importante de ser considerado McPharlin aponta que ldquoquanto maior o fio menor

o arco de movimento pendular em seu final e mais aparentemente humana seraacute a accedilatildeo de uma

figura com peso apropriadordquo (1938 85) Ou para se verificar a questatildeo de uma perspectiva

diferente quanto maior o fio mais lento e gracioso seraacute o movimento pendular resultante

Qualquer que seja o comprimento do fio o operador o puxa numa certa direccedilatildeo e parte o todo

o boneco inicia um movimento de balanccedilo Esse balanccedilo termina quando o seu potencial de

pendulaccedilatildeo se exaure ou quando o operador puxa o fio de volta ou quando a parte movida do

boneco eacute retida por atrito como nos passos realizados por uma marionete no ato de caminhar

As mecacircnicas de controle de fios operados por cima apresentam uma quantidade de

consequecircncias Por exemplo marionetes de fio possuem uma capacidade natural de voar uma

vez que a forccedila para cima exercida pelo operador sobre os fios consegue facilmente superar a

forccedila para baixo da gravidade Eles natildeo podem entretanto agarrar objetos pois embora suas

matildeos possam ser movidas juntamente elas natildeo podem ser movidas de modo a aplicar

pressatildeo essa limitaccedilatildeo pode entretanto ser solucionada ateacute certo ponto por meio do uso de

dispositivos tais como ganchos ou velcro Tambeacutem marionetes natildeo conseguem ldquocorrerrdquo

muito bem pois embora suas pernas consigam ser levantadas velozmente natildeo conseguem ser

descidas de volta ao solo numa velocidade que exceda aquela imposta pela aceleraccedilatildeo da

gravidade A uacutenica maneira de se fazer uma marionete ldquocorrerrdquo eacute esconder as pernas com uma

saia longa ou camisola ou abandonar toda a tentativa de produzir um movimento imitativo e

simplesmente transportaacute-la com o uso de tanto movimento de pernas quanto for possiacutevel

As mecacircnicas de movimento para o boneco de luva ocidental tradicional como o

Punch da apresentaccedilatildeo inglesa de nosso exemplo satildeo bem mais simples do que aquelas da

marionete de fios ele natildeo eacute mais que a matildeo e os dedos do operador sobre os quais se assenta

o boneco Em geral os movimentos do boneco de luva derivam diretamente do movimento da

matildeo e dos dedos do operador Natildeo haacute caacutelculos elaborados a serem feitos como ocorre com a

346

marionete de fios acerca de forccedilas de ascensatildeo e queda ou accedilatildeo pendular ou a distacircncia entre

o operador e o boneco O boneco de luva eacute como jaacute vimos anteriormente nada mais ou

menos que um figurino mais ou menos elaborado para a matildeo humana posicionada numa

postura ereta Essa intimidade da mecacircnica de controle oferece ao boneco de luva uma

resposta imediata ao controle que natildeo estaacute presente na marionete de fios permitindo-lhe o

movimento raacutepido e impetuoso geralmente percebido como sendo sua caracteriacutestica

primordial Natildeo se deve imaginar entretanto que o movimento do boneco de luva esteja

limitado a um humor oacutebvio na tradiccedilatildeo da proviacutencia de Fujian por exemplo o movimento do

boneco de luva pode alcanccedilar um niacutevel impressionante de estilizaccedilatildeo e precisatildeo com bonecos

apresentando combates em artes marciais com impressionante drama e detalhes (Stalberg

1984 33-34)

As consequecircncias da mecacircnica de controle do boneco de luva satildeo um tanto diferentes

daquelas da marionete de fios Por exemplo o boneco de luva eacute geralmente incapaz de voar

jaacute que a matildeo apenas consegue ser erguida ateacute o ponto em que a extremidade inferior comeccedila a

ser vista e abaixo dela o braccedilo do operador Mesmo que o operador esteja presente sobra a

cena com o boneco natildeo se consegue transmitir um sentido de vocirco devido agrave oacutebvia conexatildeo

mantida entre o boneco e o chatildeo por meio do braccedilo e do corpo do operador Uma rara

exceccedilatildeo estaacute na tradiccedilatildeo da proviacutencia de Fujian na qual os bonecos satildeo arremessados no ar e

pegos novamente ldquosem que haja quebra no ritmo dramaacuteticordquo (Stalberg 1984 34) mas esse

movimento espetacular difere grandemente da sustentaccedilatildeo em vocirco da qual a marionete eacute

capaz O boneco de luva pode facilmente agarrar objetos entretanto jaacute que o operador

consegue aplicar uma forccedila de pinccedila entre os braccedilos do boneco E o boneco de luva eacute o

boneco ldquocorredorrdquo por excelecircncia na maior parte dos casos suas pernas e peacutes simplesmentes

assumidas como estando abaixo da borda inferior da niacutevel da janela e ao boneco necessita-se

apenas aplicar uma um movimento de flexatildeo para cima e para baixo enquanto ele ldquocorrerdquo de

um lado ao outro do palco em outros casos ele ateacute pode ter pernas cujo movimento eacute dado

diretamente pela outra matildeo do operador

Os pontos de controle para a marionete de fios satildeo aqueles pontos onde os fios satildeo

presos ao boneco Em diversas marionetes ocidentais contemporacircneas os pontos de controle

incluiriam um cada lado da cabeccedila um em cada ombro um no final das costas assim como

um em cada matildeo e um em cada joelho ou peacute (Baird 1965 161) Os pontos de controle satildeo

importantes para determinar as possibilidades de movimento do boneco Por exemplo pontos

de controle dos lados da cabeccedila ao inveacutes de um ponto uacutenico no topo da cabeccedila permite que

347

essa gire para um lado e para outro bem como para cima e para baixo embora as mecacircnicas

de controle e articulaccedilatildeo do boneco permaneccedilam inalteradas

Eacute claro pode haver uma quantidade bem maior de pontos de controle para que haja

movimentos mais especializados Cada dedo pode por exemplo ser um ponto de controle em

uma marionete pianista Pode tambeacutem haver menos pontos de controle como pudemos ver

em nosso exemplo da Iacutendia no qual cada boneco possui apenas quatro ndash a cabeccedila o fim das

costas e as duas matildeos (Baird 1965 47)

Os pontos de controle para o boneco de luva satildeo aqueles nos quais se aplica a pressatildeo

dos dedos e da matildeo do operador sobre o boneco O boneco de luva convencional possui trecircs

desses pontos as extremidades dos braccedilos do boneco e sua cabeccedila Pelo exerciacutecio da pressatildeo

sobre esses trecircs pontos eacute que quase todo o movimento do boneco de luva eacute produzido

A quantidade de pontos de controle para o boneco de luva varia apenas ligeiramente

Um ponto adicional pode ser criado dobrando um ou dois dos dedos do operador sobre o peito

ou barriga do boneco isso eacute uacutetil para produzir o movimento especializado de um coraccedilatildeo

batendo ou de um feto chutando Qualquer um dos trecircs pontos de controle tradicionais pode

ser abandonado mas tudo o que isso faz eacute produzir um movimento de modo deformado

Marionetes ocidentais contemporacircneas geralmente possuem pontos de articulaccedilatildeo

referentes aos principais pontos de articulaccedilatildeo do corpo humano James Juvenal Hayes um

artista de animaccedilatildeo norte americano da primeira parte do seacuteculo [XX] acreditava que ldquoquinze

juntas satildeo o ideal elas estariam cada uma na extremidade do pescoccedilo nos ombros

cotovelos pulsos quadris joelhos e tornozelosrdquo (citado em McPaharlin 193879) Esses

pontos de articulaccedilatildeo satildeo tambeacutem importantes para determinar as possibilidades de

movimento do boneco Por exemplo pontos de articulaccedilatildeo nos quadris e joelhos em vez de

nos quadris apenas permitem um movimento especiacutefico das partes superior e inferior das

pernas assim como movimentos especiacuteficos das pernas como um todo embora a mecacircnica de

controle e os pontos de controle do boneco permaneccedilam inalterados

E eacute claro a quantidade de pontos de articulaccedilatildeo da marionete eacute variaacutevel A marinete

pianista sugerida acima solicitaria um ponto de articulaccedilatildeo na base de cada um dos dedos

Ao mesmo tempo haveraacute umas poucas como no caso do exemplo indiano para os

quais natildeo haveraacute pontos de articulaccedilatildeo nos cotovelos sendo que todo o braccedilo eacute ldquofeito de um

tecido estufado por uma substacircncia elaacutestica e fibrosardquo que permita um movimento de

curvatura mais generalizado (Malkin 1977 75)

Os pontos de articulaccedilatildeo dos bonecos de luva satildeo bem menos numerosos do que os do

boneco de fio ateacute o ponto em que a matildeo humana conteacutem suas articulaccedilotildees principais Assim

348

pontos de articulaccedilatildeo existem no pescoccedilo e nos ombros do boneco de luva onde os dedos do

operador satildeo articulados na junta que os conecta agrave palma e agrave cintura do boneco onde a matildeo

do operador eacute articulada ao pulso Essa uacuteltima articulaccedilatildeo eacute surpreendentemente expressiva

McPharlin aponta que o punho ldquopossui uma curvatura rotatoacuteria ampla para a frente e natildeo tatildeo

ampla para traacutes assim como a bacia humana Isso faz com que reverecircncia lavar roupa

balanccedilar um machado e outros movimentos de dobra a partir da cintura pareccedilam

particularmente vraisemblable quando feitos por um boneco de luvardquo (1938 89) Um ponto

de articulaccedilatildeo adicional pode ser criado em seu peito ou barriga como mencionado

anteriormente porque o corpo do boneco de luva eacute geralmente construiacutedo de um material

maleaacutevel E eacute claro qualquer desses pontos de articulaccedilatildeo pode natildeo ser usado

Esse exame das trecircs variaacuteveis intriacutensecas no boneco de fio e no boneco de luva sugere

o quanto essas trabalham em separado e conjuntamente em funccedilatildeo de gerar movimento

Quase todo o movimento do boneco eacute derivado dessas variaacuteveis e descritiacuteveis em termos

delas Deve-se recordar que em sua abordagem sobre os bonecos de sombra tradicionais Bill

Baird encontra diferenccedilas nas maneiras pelas quais as varas de controle satildeo conectadas aos

bonecos Vamos entatildeo concluir nossa anaacutelise sobre essas trecircs variaacuteveis intriacutensecas com um

exame dessas diferenccedilas com certo detalhamento

Tanto nos bonecos de sombra gregos e javaneses a mecacircnica de controle satildeo as varas

no primeiro usa-se em geral apenas uma vara com alguns bonecos podendo ser operados por

duas (Baird 1965 79) no segundo emprega-se em geral trecircs varas (Brandon 1970 51)

Portanto se formos pensar na taxonomia objeto-controle diriacuteamos que ainda que ambos

sejam bonecos de sombra satildeo tambeacutem bonecos de vara rdquoPor definiccedilatildeo a figura de sombra eacute

um boneco de varardquo (Batchelder 1947 xix) Seus movimentos entretanto satildeo distintamente

diferentes como nos diz Baird Essa diferenccedila surge da variaccedilatildeo na quantidade de varas

empregadas e dos diferentes pontos de controle e pontos de articulaccedilatildeo

O ponto de controle uacutenico do boneco de sombra grego eacute um orifiacutecio situado na parte

superior do corpo no qual a vara de suporte eacute inserida num acircngulo reto Afigura era

tradicionalmente pregada ao bastatildeo mas segundo Sotiris Spatharis o mais aclamado entre os

artistas gregos de Karaghioz em 1924 a arte foi ldquorevolucionadardquo pelo emprego de uma

dobradiccedila no lugar do prego ldquotornando possiacutevel agraves figuras mudar de direccedilatildeo e de focordquo (1976

[1960] 128) Essas dobradiccedilas uma em cada boneco satildeo geralmente localizadas ao topo da

parte traseira dos seus ombros sendo os bonecos apresentados em perfil com um golpe na

vara de controle o boneco eacute movido para uma certa distacircncia da tela girando sobre a

dobradiccedila de modo a virar-se para a outra direccedilatildeo Ainda que se use o prego ou a dobradiccedila

349

O operador precisa manter sempre firme a vara de controle durante a apresentaccedilatildeo Haacute um

segundo ponto de controle em alguns bonecos para um braccedilo ou um falo moacuteveis (Myrsiades

1988 28-29) Quando dois bonecos estatildeo em cena nenhum dos dois consegue ter uma

segunda vara sendo usada Ainda Spatharis nos informa que apesar de certos relatos

exagerados nenhum operador ldquopode segurar e manipular mais de dois bonecos por vezrdquo

(1976 [1960] 141)

Os pontos de controle dos bonecos de sombra javaneses diferem em muito Um ponto

extenso existe em toda a espinha do boneco a partir do qual a vara se fixa estendida ateacute aleacutem

da parte inferior do boneco onde eacute segura pelo operador o boneco pode ser facilmente virado

e pode tambeacutem ser mantido em cena por tempo indefinido com seu bastatildeo de suporte sendo

fixado num tronco de bananeira posicionado abaixo do niacutevel da cena liberando assim as matildeos

do operador Dois bastotildees adicionais conectam-se a pontos de controle situados nas matildeos dos

bonecos e podem ser deixados pendendo livremente Dessa forma uma seacuterie de bonecos

podem estar junto em cena em determinados momentos gesticulando uns para os outros

(Brandon 1970 51-63)

Os pontos de articulaccedilatildeo usados nas duas tradiccedilotildees de bonecos de sombra tambeacutem

diferem Para os bonecos gregos Malkin conta ldquotrecircs ou quatro juntasrdquo sendo ldquouma na cintura

uma segunda e terceira em cada joelho e uma quarta [para boneco com uma segunda vara]

em um dos cotovelosrdquo (1977 62) Como natildeo haacute pontos de controle abaixo da cintura os

pontos de articulaccedilatildeo na cintura e nos joelhos satildeo usados para dar uma qualidade de

ldquobalanccedilado livrerdquo ao ato de caminhar do boneco O ponto de articulaccedilatildeo no cotovelo se

existente permite uma flexatildeo simples da parte mais extrema do braccedilo

Na tradiccedilatildeo javanesa mesmo que ainda haja em geral apenas quatro pontos de

articulaccedilatildeo satildeo dedicados exclusivamente para permitir o movimento dos braccedilos do boneco

estando os pontos em cada ombro e cada cotovelo (Baird 1965 57) Como natildeo haacute pontos de

articulaccedilatildeo nas pernas os bonecos satildeo postos para ldquoandarrdquo com seus corpos inteiros por meio

de um movimento curto e aacutegil para cima e para baixa de diversas formas estilizadas Um vez

que um boneco eacute fixado em cena o operador pode fazecirc-lo ldquoamarrar [sua] faixa ajustar seu

arnecircs ou alisar [o seu] bigoderdquo e assim por diante de modo a demonstrar sua personalidade

(Brandon 1970 65) No decorrer da cena os pontos de articulaccedilatildeo permitem aos braccedilos uma

gesticulaccedilatildeo detalhada ldquotrazendo o braccedilo acentuadamente adiante do rostordquo para uma

saudaccedilatildeo ldquoerguendo o antebraccedilo acima dos ombrosrdquo em sinal de tristeza e assim por diante

350

(Brandon 1970 66) O movimento articulado pode ser limitado aos braccedilos mas com dois

pontos de articulaccedilatildeo em cada um deles a variedade de movimentos a eles concedidos eacute

superior agrave da sombra grega tanto em qualidade quanto em quantidade

Podemos concluir por meio desse exame que os teatros de sombras grego e javanecircs

apresentam possibilidades de movimentaccedilatildeo notavelmente diferentes vindas precisamente de

suas diferenccedilas em termos de pontos de controle e pontos de articulaccedilatildeo Nenhuma

categorizaccedilatildeo baseada em suas tradiccedilotildees histoacuterico-geograacuteficas ou classificaccedilatildeo de objeto e

controle de bonecos de sombra ou bonecos de vara poderiam apresentar seus distintos

atributos de movimentaccedilatildeo

Haacute ainda mais uma variaacutevel no movimento do boneco embora esta opere de uma

maneira completamente diferente das trecircs primeiras variaacuteveis natildeo sendo intriacutenseca ao boneco

mas extriacutenseca a ele iluminaccedilatildeo e cenografia podem ser usadas para produzir um movimento

ldquoimpliacutecitordquo ao boneco quando da ausecircncia de movimento de fato

McPharlin sugere que ldquoem seu movimento verdadeiro ou ilusoacuterio que confere ao

boneco animaccedilatildeo De fato quando a face do boneco se move em meio a zonas de luz e

sombra sua expressatildeo adquire certa mobilidaderdquo (1938 76 81) O movimento ilusoacuterio ou

impliacutecito das expressotildees faciais do boneco produzida pelo deslocamento do boneco por

zonas de luz e sombra podem tambeacutem ser produzidas com o boneco permanecendo estaacutetico

por meio do movimento da luz e da sombra

No teatro de sombras um dos movimentos baacutesico da silhueta ao menos em

apresentaccedilotildees que natildeo satildeo iluminadas por luz eleacutetrica deriva do movimento natildeo do boneco

mas da fonte luminosa Como em nosso exemplo javanecircs ldquoa projeccedilatildeo da sombra eacute niacutetida

apenas a uma distacircncia relativamente curta mas devido ao movimento e agrave oscilaccedilatildeo da chama

[da fonte luminosa] esta parece infundida com vidardquo (Brandon 1970 35) De fato a proacutepria

fonte de luz pode ser movida de um lugar a outro fazendo com que a sombra do boneco se

mova enquanto que este permanece estaacutetico novamente o movimento pode natildeo ser do

proacuteprio boneco mas implicado sobre ele Pode-se argumentar que tal movimento impliacutecito

estaacute visiacutevel apenas agravequeles posicionados do lado oposto da tela de projeccedilatildeo e assim

disponiacutevel apenas em teatro de sombras Mas assim como na sugestatildeo de McPharlin um

boneco sujeitado diretamente a uma luz moacutevel e oscilante em meio a campos alternados de

luz e sombra tambeacutem gera a implicaccedilatildeo de um movimento

351

Para dar um exemplo de movimento impliacutecito direcionemo-nos ateacute o centro de

visitantes da Temple Square em Salt Lake City Onde os Latter-Day Saints114

tem usado um

cenaacuterio com figuras imoacuteveis diante de um diorama para relatar as histoacuterias de sua religiatildeo

com um sistema de som em off com narraccedilotildees e vozes de personagens As diversas figuras satildeo

destacadas por luzes quando estatildeo ldquofalandordquo por meio do emprego de efeitos de iluminaccedilatildeo

sutis as expressotildees de suas faces parecem alterar-se e mesmo suas matildeo parecem gesticular

Ainda os proacuteprios dioramas satildeo em alguns casos moacuteveis e a mudanccedila em suas cenas de

fundo sugerem implicitamente o movimento das figuras no espaccedilo

Como pudemos ver quando tratamos da visatildeo dupla o teatro de bonecos eacute uma funccedilatildeo

da percepccedilatildeo e da imaginaccedilatildeo da audiecircncia o boneco natildeo necessita literalmente ser um

objeto e natildeo consegue literalmente estar vivo Da mesma maneira signos de movimento do

boneco natildeo precisam literalmente ser produzidos pelo movimento do proacuteprio boneco podem

ser produzidos externamente conferindo a sugestatildeo do movimento Qualquer que seja a

geraccedilatildeo literal do movimento este eacute percebido pela plateia como sendo como movimento do

boneco e tal como os signos abstratos do boneco em geral ajuda a provocar a imaginaccedilatildeo de

vida

Ainda permanece por ser demonstrado de que maneira os signos de movimento

gerados pela maioria das variaacuteveis trecircs intriacutensecas e uma extriacutenseca ao boneco localizam-se

no decorrer da apresentaccedilatildeo Na tabela apresentada anteriormente os trecircs estaacutegios de signos

representacionais foram caracterizados como sendo com a despeito de e contra o boneco

Signos de movimento feitos com o boneco satildeo signos para os quais a disposiccedilatildeo das trecircs

variaacuteveis intriacutensecas foram expressamente criadas esses signos fornecem uma qualidade de

representaccedilatildeo imitativa Signos de movimento feitos apesar do boneco satildeo signos para cuja

apresentaccedilatildeo as variaacuteveis intriacutensecas natildeo foram expressamente criadas mas para as quais satildeo

de alguma forma capazes tais signos fornecem uma qualidade de representaccedilatildeo convencional

e estilizada Signos de movimento feitos contra o boneco satildeo signos para cuja apresentaccedilatildeo as

variaacuteveis intriacutensecas possuem pouca ou nenhuma relevacircncia e para os quais a variaacutevel

extriacutenseca pode ser empregada para produzir movimento impliacutecito esses signos fornecem

uma qualidade de representaccedilatildeo conceitual Em todos esses casos a quantidade de signos de

movimento eacute simplesmente a soma do movimento produzido

Um exemplo de signos de movimento produzidos com o boneco eacute o nosso exemplo

japonecircs os bonecos apresentam signos detalhados de caminhada e gesticulaccedilatildeo e mesmo de

114

NT Santos dos Uacuteltimos Dias fieacuteis da igreja cristatilde restauracionista de mesmo nome tambeacutem conhecidos

como moacutermons ou moacutermones

352

ldquochorar respirar pesadamente costurar fumar e danccedilarrdquo (Adachi 1985 51) A qualidade e

quantidade desses signos satildeo produzidas pela mecacircnica de controle que satildeo varas curtas

geralmente com gatilhos para movimentos especializados e tambeacutem contato direto matildeo-para-

boneco pelos pontos de controle na base da cabeccedila as terminaccedilotildees dos braccedilos e os peacutes e

tambeacutem aqueles lugares operados pelos controles de gatilho tais como as sobrancelhas e os

dedos e pelos pontos de articulaccedilatildeo que espelham com muita precisatildeo as articulaccedilotildees do

corpo humano

Tal complexidade entretanto natildeo eacute necessaacuteria para se movimentar um boneco Stefan

Lenkish produtor de um teatro de bonecos na Romecircnia relata a sua descoberta que ldquose [o]

boneco apresenta um movimento particular com perfeiccedilatildeo o espectador adquire a impressatildeo

de que ele pode realizar qualquer movimento concebiacutevelrdquo (1967 [1965] 28) Simplicidade

pode ser tatildeo eficiente agrave sua maneira quanto a complexidade Um movimento feito no grau de

perfeiccedilatildeo que lhe permitiram as variaacuteveis intriacutensecas de movimento ndash tal como o aceno suave

de uma matildeo com o pulso flexionado e os dedos se abrindo ndash eacute suficiente para fazer a plateia

imaginar uma completa capacidade de movimentaccedilatildeo para o boneco

Simplicidade e complexidade podem tambeacutem estar engenhosamente entrelaccediladas

como neste exemplo dado por Obraztsov

Fazer um boneco que possa realizar todos os movimentos fiacutesicos do ser

humano eacute impossiacutevel Natildeo se pode por exemplo fazer um boneco que se

barbear-se tomar banho saltar a certa altura velejar danccedilar uma valsa e

fazer uma parada de matildeo O heroacutei de nossa peccedila Dois amores para noacutes

precisa fazer tudo isso ao longo da trama Foi por isso que precisamos fazer

uma seacuterie de bonecos que pareciam ser o mesmo mas com diferentes

estruturas anatocircmicas A impressatildeo do espectador eacute a de ter visto apenas um

boneco ao longo de toda a peccedila De fato haacute trinta deles (1954 13)

Um exemplo de signo de movimento feito a despeito do boneco pode ser encontrado

em nossa apresentaccedilatildeo de sombra javanesa Como vimos esses bonecos natildeo possuem pontos

de articulaccedilatildeo abaixo da cintura ainda assim eles ldquoandamrdquo para dentro e para fora da cena

Essa caminhada como pernas fixas e imoacuteveis eacute aceita por convenccedilatildeo uma vez que a forma de

construccedilatildeo do boneco natildeo permita nenhum tipo de caminhada que natildeo seja estilizada Apesar

disso os modos de andar de diversos personagens satildeo bastante caracteriacutesticos conferidos pelo

controle do operador sobre o suporte e as varas dos braccedilos Por exemplo ldquoArdjuna caminha

suavemente ao longo da tela sem movimentos verticais Ambos os braccedilos pendem para baixo

ou um dos dois balanccedila gentilmente Bima salta pela tela em duas ou trecircs voltas com o

antebraccedilo inclinado para traacutes e o braccedilo estendido para frente num gesto forterdquo (Brandon 1970

65)

353

Outro caso de signo de movimento feito apesar do boneco pode ser encontrado no

exemplo inglecircs do Punch Como vimos enquanto que o punho do operador permite uma

ampla articulaccedilatildeo na regiatildeo da cintura do boneco o mesmo natildeo pode ser dito dos dedos nos

braccedilos do boneco Os movimentos dos braccedilos do boneco derivam unicamente dos pontos de

articulaccedilatildeo em seus ombros e os braccedilos incapazes de dobrarem-se nos cotovelos estatildeo

sempre riacutegidos (McPharlin 1938 89) Esse movimento eacute estilizado e eacute aceito

convencionalmente como o movimento apropriado para o boneco de luva

Deve ser notado que signos de movimento feitos apesar do boneco devem manter em

sua estilizaccedilatildeo e convencionalismo uma certa consistecircncia de representaccedilatildeo Rose Soroky

num olhar geralmente superficial sobre a esteacutetica do boneco escreve ldquoA plateia natildeo consegue

criar empatia com um boneco cujos peacutes natildeo tocam o chatildeo ou cujos joelhos permanecem

dobrados durante a caminhadardquo (1982 6) De fato a plateia pode sim criar empatia mas

unicamente se a convenccedilatildeo for estabelecida e mantida de que nenhum peacute de boneco toque o

chatildeo ou se como ocorre na sombra javanesa os joelhos de todos os boneco estiverem

dobrados

Um exemplo de signos de movimento feitos apesar do boneco foi dado em nossa

discussatildeo sobre a produccedilatildeo de Salt Lake City na qual a iluminaccedilatildeo e o cenaacuterio produziam

movimentaccedilatildeo impliacutecita Mas o movimento feito apesar do boneco natildeo se limita a movimento

impliacutecito Este ocorre sempre que o boneco eacute tratado como sendo aquilo que a plateia entende

que ele seja

No teatro de sombras javanecircs

Personagens sobrenaturais podem ser aumentados em tamanho pelo

movimento de aproximar o boneco da fonte de luz Um efeito extremamente

belo eacute criado ao mover o boneco lentamente ateacute o limite da aacuterea de

apresentaccedilatildeo ao mesmo tempo em que o descola da tela entatildeo o encostando

novamente A sombra se dissolve e desaparece no ar e entatildeo rematerializa-

se Um efeito especial eacute produzido quando uma figura eacute virada de modo a

encarar direccedilatildeo oposta parece que o personagem se comprime numa linha

fina e entatildeo se expande novamente (Brandon 1970 36)

Esses signos de movimento satildeo gerados em completa desconsideraccedilatildeo com a

articulaccedilatildeo do boneco A mecacircnica de controle e os pontos de controle estatildeo envolvidos

apenas no sentido em que permitem ao operador tratar o boneco como um objeto suscetiacutevel a

movimentaccedilatildeo geral Ainda que esses movimentos sejam especialmente agradaacuteveis e

provocativos

Em cenas de batalha na tradiccedilatildeo de Liegravege ldquosempre que uma figura grande

representando um general e seis ou sete figuras menores colidem geralmente no ar com

354

outro grupo similar a esse os participantes da plateia compreendiam estar testemunhando uma

batalha titacircnicardquo (Malkin 1977 25) O puacuteblico estava de fato presenciando bonecos sendo

movimentados como se fossem pouco mais que objetos para serem arremessados novamente

natildeo eacute necessaacuteria nenhuma articulaccedilatildeo para efetuar tal movimento e nenhum ponto de controle

em particular O que importa aqui eacute que o operadores tenham meios para jogar os bonecos

para dentro da luta

Movimento contra o boneco eacute relativamente raro mas demonstra o quanto os signos

de movimento assim como os signos de forma podem abranger todo o conjunto da

representaccedilatildeo provocando a visatildeo dupla de diversas maneiras

O SISTEMA DE SIGNOS DA FALA

A fala todos parecem concordar eacute diferente Noacutes jaacute pudemos ver como Veltruskyacute

sugere que o sistema de signos da fala difere dos outros porque nele ldquoos signans

[significantes] e os signatum [significados] satildeo existencialmente a mesma coisardquo (1983 71)

tambeacutem jaacute vimos como Green e Pepicello o localizam em seu proacuteprio canal ldquoauditivordquo

separado do canal ldquovisualrdquo ocupados por forma e movimento (1983 147) A significacircncia da

diferenccedila entre fala e movimento eacute entretanto mateacuteria de profunda discordacircncia Noacutes jaacute

vimos como Baird e McPharlin desconsideram inteiramente a fala em suas definiccedilotildees de

boneco e como Obraztsov espontaneamente desfaz-se do ldquotexto imaginando que haja algumrdquo

(1950 120) Agora devemos discutir de que forma alguns estudiosos vieram a considerar a

fala como sendo o mais importante entre os sistemas de signos do boneco

Samuel Foote um produtor e artista de teatro inglecircs do seacuteculo XIX conta uma histoacuteria

sobre o orador romano Livius Andronicus

Transmitindo um sentimento popular em uma de suas peccedilas [ele] foi tantas

vezes solicitado ao bis que um tanto exausto declarou-se incapaz de

qualquer outra repeticcedilatildeo a menos que um de seus aprendizes subisse ao

palco e experimentasse declamar a passagem sobre a qual ele [Livius]

tentaria gesticular Aqui senhores pela separaccedilatildeo da personagem tem-se

o boneco completamente (1812 150)

A peccedila contendo esta histoacuteria eacute atravessada por declaraccedilotildees acerca do teatro antigo muitas

delas natildeo menos memoraacuteveis Jurkowski comenta com um ar quase apologeacutetico ldquoDeixando-

se de lado o aspecto histoacuterico da declaraccedilatildeo de Foote devemos admitir que ele apontou para a

caracteriacutestica essencial do teatro de bonecosrdquo (1988 [1983] 74) Ele prossegue afirmando que

ldquoa separabilidade do objeto falando e a fonte fiacutesica da palavra eacute a qualidade distintiva do

teatro de bonecosrdquo (1988 [1983] 79)

355

Apesar da afirmaccedilatildeo de Jurkowski a declaraccedilatildeo de Foote parece exagerada a ponto de

soar tola Devemos de fato considerar Livius Andronicus com suas gesticulaccedilotildees de carne e

osso como sendo um boneco Obviamente ele natildeo eacute ele natildeo eacute um objeto no sentido

inanimado empregado por muitos autores inclusive Jurkowski tampouco eacute um ldquoobjetordquo no

sentido mais amplo usado neste estudo Ele eacute e isso eacute claro um homem vivo fazendo miacutemica

sobre a apresentaccedilatildeo de uma fala dita por outro

Jurkowski natildeo parece ter articulado uma argumentaccedilatildeo para a importacircncia singular da

separaccedilatildeo entre o ldquoobjeto falanterdquo e a ldquofonte fiacutesica da palavrardquo e eacute possiacutevel que ele de fato

natildeo quisesse ter dito o que disse Em outro artigo escreve ldquoEm qualquer teoria do teatro de

bonecos o fator mais importante eacute a relaccedilatildeo entre o bonequeiro e o bonecordquo (1988 [1979] 4)

Como jaacute pudemos ver sua proacutepria definiccedilatildeo de teatro de bonecos se esforccedila em destacar a

variabilidade desse relacionamento natildeo apenas para a fala mas tambeacutem para o movimento

Talvez inspirado por Foote ele tenha ido longe demais ao focalizar esse relacionamento

apenas em termos da fala

Veltruskyacute natildeo pretende ir tatildeo longe quanto Jurkowski faz ao proclamar a

predominacircncia da fala ldquoO signo [geral] produzido no teatro de bonecos nem contradiz

automaticamente a predominacircncia do componente verbal literaacuterio nem favorece tal

predominacircnciardquo (1983 97) Isto sua suficientemente imparcial mas no mesmo artigo

Veltruskyacute faz a sua proacutepria afirmativa singular sobre o poder da fala para o boneco No

ventriloquismo ele sugere

Eacute por meio de suas proacuteprias qualidades sonoras que a maneira de falar do

ventriacuteloquo ndash uma maneira velada ndash invoca a imagem do falante como

semelhante ao humano mas natildeo exatamente humano com a ajuda dessa

convenccedilatildeo esse falante assemelhado ao ser humano eacute percebido como sendo

um boneco Isso eacute verdadeiro mesmo quando o vocalizador estaacute soacute como no

caso da famosa apresentaccedilatildeo radiofocircnica de Peter Brough e seu boneco

Archie Andrews para a BBC nos anos 1950 Natildeo seria talvez muito forccedilada

a conclusatildeo de que a apresentaccedilatildeo estranhada de um ventriacuteloquo ou

marionetista com um modificador de voz transmita a imagem

correspondente do boneco de ventriacuteloquo ou do boneco em qualquer ocasiatildeo

(1983 103)

Se natildeo eacute de fato ldquomuito forccediladordquo entatildeo os signos do sistema da fala sozinhos seriam

necessaacuterios para constituir o boneco E se satildeo entatildeo certamente a fala seraacute o sistema de

signos mais importante do boneco Mas seria muito forccedilado Eacute provaacutevel que os ouvintes de

raacutedio de Peter Brough ou similarmente de Edgard Bergen nos Estados Unidos sabe por

meio de conhecimento anterior da existecircncia do boneco Archie Andrews ou Charlie

McCarthy e que a fala a eles atribuiacuteda por serem bonecos eacute decorrecircncia desse conhecimento

356

preacutevio e natildeo da simples apresentaccedilatildeo das falas Isto quer dizer a apresentaccedilatildeo da fala reforccedila

o conhecimento de que haacute um boneco que natildeo estaacute sendo visto mas natildeo constroacutei o boneco em

si Se os ouvintes de raacutedio natildeo soubesse que era o boneco quem estava ldquofalandordquo me parece

que simplesmente tomariam a fala como pertencente a uma determinada personagem E

assim apesar da sugestatildeo de Veltruskyacute signos de fala por si soacute natildeo podem ser considerados

com capazes de constituir um boneco

Mas ainda deve-se argumentar a natureza peculiar do sistema de signos de fala o

confere uma importacircncia arrebatadora para o teatro de bonecos Erik Kolaacuter sugere que ldquoo

material inanimado do boneco e a voz humana do manipuladorrdquo embora pareccedilam estar em

desacordo de fato ldquoconstitui-se numa unidade especiacutefica e dialeacutetica no teatro de bonecos a

siacutentese da voz viva e do boneco animadordquo (1964 68) Bogatyrev concorda com essa sugestatildeo

e prossegue afirmando que ldquoo boneco parece mais vivo quando seus movimentos estatildeo

combinados agrave voz humana Numa apresentaccedilatildeo em que o boneco faz apenas pantomima a

animaccedilatildeo da mateacuteria inerte do boneco sem a voz humana para acompanhaacute-lo natildeo eacute tatildeo

convincente para o espectadorrdquo (1983 [1973] 60) Kolaacuter e Bogatyrev parecem aceitar que a

fala do boneco soa mais ou menos humana em sua apresentaccedilatildeo e isto eacute diretamente atribuiacutedo

ao boneco Mesmo quando este eacute o caso como em nosso exemplo africano e em muito do

teatro de bonecos norte americano contemporacircneo essa ldquounidade dialeacuteticardquo conferida pela

fala eacute problemaacutetica Pode-se argumentar ao contraacuterio que a fala com sonoridade humana

atribuiacuteda ao boneco enfraquece a presunccedilatildeo de ldquovidardquo do boneco ao dispor um contraste

infeliz entre a artificialidade de sua forma e seu movimento

Aleacutem disso as pressuposiccedilotildees de Kolaacuter e Bogatyrev satildeo problemaacuteticas em sim

mesmas Em nossos exemplos indiano e inglecircs a fala do boneco eacute modificada de tal maneira

que apresenta poucas caracteriacutesticas da voz humana Em nosso exemplo japonecircs a fala de

todas as personagens eacute apresentada por um narrador visiacutevel ao passo que no exemplo norte

americano eacute apresentada por cantores postos agrave vista em ambos os casos esta eacute claramente

separada do boneco O relacionamento entre voz e boneco eacute bem mais complexo do que Kolaacuter

e Bogatyrev parecem compreender A queixa de Jurkowski contra o reducionismo sincrocircnico

certamente se aplica aqui

Mas permanece por ser dito que a fala eacute de fato diferente e de trecircs maneiras

Primeiro a uacutenica entre os trecircs sistemas de signos ela eacute de fato dispensaacutevel e usualmente

dispensada

Por exemplo em 1983 a Pandemonium Puppet Company apresentou um sketch

intitulado ldquoSapo e Blocosrdquo dirigido por Bart Roccoberton Jr Um sapo antropomoacuterfico em

357

nada semelhante a Kermit vem ao palco incauto acerca da plateia Ele varre o espaccedilo da cena

que foi generosamente sujo com talco de bebecirc ao ponto em que tudo se transforma numa

tempestade de areia a plateia ri e o sapo se conta de que natildeo estaacute soacute Embora a plateia espere

que o sapo fale algo ele prossegue em silecircncio Ele se curva em agradecimento demonstra

frustraccedilatildeo diante da resposta pouco calorosa que recebe e curva-se novamente para uma

recepccedilatildeo melhor Enquanto prossegue brincando com a plateia um bloco de montar desliza

para dentro da cena fazendo o sapo tropeccedilar nele e continuar a varrer Move o bloco de lado e

continua o seu trabalho o bloco desliza para traacutes dele e o faz mais uma vez tropeccedilar

O sketch continua em silecircncio com dois blocos adicionais surgindo eventualmente

por uma duraccedilatildeo de cinco minutos Eacute bastante provaacutevel que que a tensatildeo criada pelo silencio

do sapo seja um fator importante no sucesso da peccedila pois a ausecircncia de fala deixa a plateia

atentamente presa a cada movimento uma contraccedilatildeo de sua cabeccedila ou encolhimento de

ombros comunica sua personalidade mais claramente que qualquer texto falado

Um sketch dessa natureza natildeo se daacute sem as suas limitaccedilotildees mais especialmente a

falta de fala eacute difiacutecil de ser mantida sem a tensatildeo criada podendo dissipar-se em frustraccedilatildeo da

plateia Jiřiacute Trnka um cineasta Tcheco que empregava bonecos para obter belos efeitos sem

que haja nenhuma fala dos bonecos em seus primeiros filmes mas eventualmente encontrava

algum valor no recurso

Apoacutes as experiecircncias [de Trnka] enquanto filmava Antigas Lendas Tchecas

para as quais [poucas falas de bonecos] conferiram um efeito poderoso ele

natildeo pode resistir agrave tentaccedilatildeo de desenvolver isso aleacutem Ele agora se dava

conta de que precisava fazer seus bonecos falar de modo a provocar uma

vida nova a eles Anteriormente a esse filme ele usava palavras com muita

precauccedilatildeo Em Antigas Lendas Tchecas ele as usou de uma maneira

muito mais complicada e exigente Um monoacutelogo respeitaacutevel introduzido

sob a forma de um comentaacuterio exterior produziu um impacto consideraacutevel e

adicionado a isso os bonecos falavam diversas vezes Isso levou Trnka a

apenas um pequeno [passo] da expansatildeo ateacute mais diaacutelogos com toda a

atraccedilatildeo adicionada de uma caracterizaccedilatildeo mais completa e reacuteplicas

divertidas (Boceck 1963 191)

A fala do boneco pode certamente oferecer ldquouma caracterizaccedilatildeo mais completa e reacuteplicas

divertidasrdquo assim como a expressatildeo de diaacutelogos literaacuterios e profundos Mas claramente o que

quer que isso venha a adicionar agrave apresentaccedilatildeo do boneco ela natildeo eacute de forma alguma

necessaacuteria Dessa forma eacute impossiacutevel concordar com quem afirma que a fala eacute de qualquer

forma ldquoo traccedilo distintivo do teatro de bonecosrdquo

A segunda mameira pela qual a fala se diferencia dos outros sistemas de signos eacute que

esta pode ser apresentada automaticamente sem afetar a sensaccedilatildeo da plateia com objeto

percebido e vida imaginada Isso eacute feito mais comumente com frequecircncia crescente nos

358

Estados Unidos por meio da fita gravada com a trilha sonora em correspondecircncia com a

apresentaccedilatildeo fiacutesica dos bonecos Natildeo precisamos discutir em profundidade o efeito esteacutetico

do emprego de ldquodiaacutelogos enlatadosrdquo basta dizer que por um lado a produccedilatildeo ganha uma

certa regularidade de uma performance vocal competente na qual efeitos sonoros e trilha

musical podem estar perfeitamente integrados ao passo que por outro lado toda a

espontaneidade da apresentaccedilatildeo eacute perdida para o ritmo constante da gravaccedilatildeo

Essa questatildeo do diaacutelogo preacute-gravado torna-se especialmente interessante na medida

em que poderia fazer parecer a fala algo semelhante ao controle mecacircnico ou eletrocircnico de

movimentos Como jaacute vimos para o primeiro caso preferimos chamar a figura teatral

movimentada mecanicamente de autocircmato em vez de boneco Ainda assim o diaacutelogo

gravado previamente natildeo parece levantar questotildees de importacircncia semelhante na medida em

que ningueacutem que haja escrito sobre teatro de bonecos jamais sugeriu que seu emprego renda agrave

figura teatral tiacutetulo diferente do de boneco ainda que muitos deplorem essa praacutetica devido agrave

falta de espontaneidade que provoca Pode-se atribuir isso a apenas ais uma das maneiras

pelas quais a fala do boneco eacute ao menos tacitamente considerada de menor importacircncia que

seu movimento

A terceira forma pela qual a fala difere dos demais sistemas de signos eacute aquela notada

por Veltruskyacute Bogatyrev Green Pepicello e outros que a determina como mais apoiada na

vida real do que as demais fazendo com que a produccedilatildeo de uma voz humana geralmente

signifique uma voz humana Como foi sugerido anteriormente essa diferenccedila pode trabalhar a

favor ou em detrimento da apresentaccedilatildeo do boneco mas o artista de teatro de bonecos que

ignora essa questatildeo corre o risco de lidar com uma grande inconsistecircncia na maneira como os

signos satildeo apresentados Tratando de suas falhas anteriores na maneira de apresentar a fala

dos seus bonecos Obraztsov aponta ldquoEu [deveria ter] compreendido que esta natildeo eacute uma

questatildeo apenas da voz mas das necessidades das emoccedilotildees [e da voz] do ator em coincidir

com as do boneco e ateacute mesmo com as suas dimensotildeesrdquo (1950 119)

Esta terceira diferenccedila se encontra no verdadeiro centro do sistema de signos da fala e

as variaacuteveis do sistema de signos todas se referem a encontrar meios pelos quais a fala do

boneco possa coincidir com a forma e a movimentaccedilatildeo do boneco de modo apropriado A

maior parte das variaacuteveis desse sistema de signos satildeo caracteriacutesticas paralinguiacutesticas

dialetolinguagem modificaccedilatildeo vocal e a presenccedila ou ausecircncia sobre a cena do vocalizador

Essas variaacuteveis podem atuar como signos proacuteprios como no caso das variaacuteveis do sistema de

signos da forma ou como produtores de signos como as variaacuteveis do sistema de signos de

movimento

359

A primeira variaacutevel envolve caracteriacutesticas paralinguiacutesticas ou alternadamente

caracteriacutesticas de suprassegmental Elam define essas como sendo ldquocaracteriacutesticas vocais com

[as quais] o falante dota [a fala] para aleacutem e acima da sua estrutura fonecircmica e sintaacuteticardquo

(1980 79) Apoiando sua discussatildeo no trabalho de muitos linguistas Elam isola os elementos

de ldquovolume amplitude timbre raio inflexatildeo ritmo e enunciaccedilatildeordquo (1980 81) Como satildeo

empregadas em teatro de bonecos as combinaccedilotildees mais comuns das caracteriacutesticas

paralinguiacutesticas oferece um caminho de estereotipia vocal capaz de sugerir particularidades de

personalidade para personagens diversos ao mesmo tempo em que permite uma faacutecil

compreensatildeo da diferenccedilas entre esses personagens Essas combinaccedilotildees de caracteriacutesticas

paralinguiacutesticas podem ser dispostas de uma maneira que se aproxima da fala normal das

personagens apresentando signos de fala que satildeo imitativos tanto em qualidade quanto em

quantidade ou podem ser dispostos de uma maneira que resulte numa caricatura da fala

normal apresentando signos de fala estilizados em qualidade e quantidade

O uso de caracteriacutesticas paralinguiacutesticas para a caracterizaccedilatildeo de falas normais em

personagens solicita pouca discussatildeo Cada pessoa possui seus atributos vocais especiacuteficos

no teatro de bonecos elementos paralinguiacutesticos satildeo combinados de modo a criar personagens

com seus atributos vocais proacuteprios Basta caminha pela rua em qualquer grande cidade para

perceber a vastidatildeo da variedade da voz humana e com que facilidade e regularidade

elementos paralinguiacutesticos satildeo combinados

Caracteriacutestica paralinguiacutesticas encontram-se pesadamente apoiadas suportando nosso

exemplo javanecircs O operador de bonecos deve apresentar natildeo apenas as falas de numerosas

personagens mas tambeacutem descriccedilotildees de rituais e narraccedilotildees baacutesicas A diferenciaccedilatildeo da fala eacute

conseguida por meio de variaccedilotildees de timbres vocais e qualidades atribuiacutedas a cada

personagem uma apresentaccedilatildeo especialmente estilizada pontuada por um ocasional

ldquoencadeamento seco de palavras ritmadas aqui e alirdquo eacute empregado para descriccedilotildees de rituais

e narraccedilotildees baacutesicas satildeo ditas limpamente com pouco uso de ldquoteacutecnicas especiaisrdquo a ela

associadas (Brandon 1970 62-63)

Na tradiccedilatildeo siciliana haacute mais de um narrador mas elementos paralinguiacutesticos satildeo

empregados assim mesmo para criar a representaccedilatildeo estilizada dos signos de fala para

diversos personagens-tipos

O timbre da voz eacute mudada de acordo com o tipo da personagem As

personagens cocircmicas e positivas falam com vozes nasais cacarejantes e

estridentes diferentemente dos personagens cocircmicos negativos que falam

em dialeto com uma voz rouca poreacutem estridente Os heroacuteis positivos

possuem um timbre claro e ressonante os negativos possuem um timbre

rouco obscuro e gutural (Pasqualino 1987 11)

360

Deve ser apontado com Pasqualino que em associaccedilatildeo agraves caracteriacutesticas paralinguiacutesticas A

tradiccedilatildeo siciliana tambeacutem faz uso de dialetoidioma variaacutevel para a caracterizaccedilatildeo e distinccedilatildeo

entre personagens Como ocorre nos trecircs sistemas de signos as variaacuteveis podem ser

combinadas de diversas maneiras

A variaacutevel do dialetoidioma eacute empregada comumente em tradiccedilotildees nas quais classe

social e nacionalidade de acordo com o uso de variados dialetos e idiomas satildeo atributos

significantes para a caracterizaccedilatildeo das personagens Ainda o uso de idiomas por um

determinado personagem pode se dar de maneira tatildeo particular que pode ateacute mesmo criar um

dialeto pessoal

Apoacutes seu estudo brilhante acerca de teacutecnicas de modificaccedilatildeo vocal para o qual

brevemente iremos voltar nossa atenccedilatildeo Proschan discute trecircs outras teacutecnicas disponiacuteveis ao

bonequeiro tradicional para dar distinccedilatildeo entre as falas de diversos personagens e para

distinguir a fala do boneco da fala do ator Primeiramente ldquoa soluccedilatildeo [no teatro de bonecos

siciliano] pode ser tatildeo simples quanto a alteraccedilatildeo de registros do italiano ao siciliano e vice-e-

versa para mostrar vilotildees e heroacuteisrdquo (1981 552) Como jaacute pudemos ver caracteriacutesticas

paralinguiacutesticas tambeacutem satildeo uma parte da soluccedilatildeo siciliana Em segundo lugar os elementos

paralinguiacutesticos podem envolver ldquosintaxe desorganizadardquo Como assinala Bogatyrev ldquoantigos

marionetistas [tchecos] transmitindo a linguagem de heroacuteis de classe mais elevada

distorcem a fala coloquial comum [e] intencionalmente cometem erros de gramaacutetica ao passo

que mostram camponeses falando corretamente o tchecordquo (citado em Proschan 1981 552)

Parece provaacutevel que em outras tradiccedilotildees nas quais as apresentaccedilotildees sejam destinadas agraves

classes mais altas os signos da fala equivocada versus fala correta estariam invertidos A

terceira soluccedilatildeo envolve ldquoparoacutedias exageradas de estilos estereotipados de fala elaboradas

para muito aleacutem do que eacute necessaacuterio para caracterizar a personagemrdquo (1981 552) Esta

soluccedilatildeo faz uso de elementos paralinguiacutesticos como jaacute foi discutido

A variaacutevel mais constantemente notada do sistema de signos da fala do boneco eacute a da

modificaccedilatildeo de voz na qual a voz do vocalizador eacute sujeitada a uma modificaccedilatildeo ou

distorccedilatildeo por meio do emprego de um dispositivo mecacircnico postado diante ou no interior da

boca Proschan oferece uma relaccedilatildeo de aparelhos tipicamente usados no teatro de bonecos

tradicional

Modificadores de voz existem em trecircs grupos aqueles apoiados na parte de

traacutes da boca (geralmente duas placas riacutegidas unidas com uma fita de vibraccedilatildeo

entre elas) as usadas na frente da boca (que tambeacutem usam uma fita de

vibraccedilatildeo) e os usados no exterior da boca (esses satildeo cornetas tubulares

[kazoo]) (1981 533)

361

Um modificador de voz usado no fundo da boca entre a parte de cima da liacutengua e do palato

do vocalizador chamado de ldquoswazzlerdquo eacute usado em nosso exemplo inglecircs um usado na frente

da boca seguro entre os dentes do vocalizador eacute empregado em nosso exemplo indiano

(Proschan 1981 534) Modificadores de voz seguros no exterior da boca apoiados por uma

espeacutecie de arreio incluindo natildeo apenas o kazoo mas o chamado de pato e os apitos que

imitam sons de aves natildeo satildeo incomuns em produccedilotildees contemporacircneas

Assim como essa variedade de dispositivos sugere o uso de modificaccedilatildeo vocal eacute

sempre igual Quanto mais para o interior da boca o instrumento eacute posicionado maior a

dificuldade do vocalizador para a articulaccedilatildeo da fala E mais qualquer que seja o aparelho em

particular ainda assim o vocalizador manteacutem o controle sobre a entrega dos signos de fala

Proschan aponta que ldquoao usar o modificador de voz o marionetista pode almejar por clara

inteligibilidade inescrutabilidade absoluta ou qualquer ponto intermediaacuterio O objetivo varia

de uma tradiccedilatildeo a outra ateacute mesmo de um momento a outro dentro da apresentaccedilatildeordquo (1981

533) Seria seguro sugerir entretanto que a modificaccedilatildeo vocal geralmente produz signos de

fala que tendem na direccedilatildeo do extremo conceitual do continuum da representaccedilatildeo uma vez

que eacute o aspecto formal da fala ao inveacutes de seu conteuacutedo o que com isso se atribui ao boneco

A essa lista de dispositivos tradicionais de modificaccedilatildeo vocal devem ser adicionados

aqueles propiciados pela tecnologia contemporacircnea Ainda que a apresentaccedilatildeo seja ldquoao vivordquo

com uso de microfones ou com fitas preacute gravadas a eletrocircnica oferece uma seacuterie de

possibilidade de signos de fala incluindo efeitos de eco distorccedilotildees foneacuteticas e a simples

manipulaccedilatildeo do volume entre muitos outros Em geral essas possibilidades natildeo satildeo usadas

para produzir um alto grau de ininteligibilidade mas parece apresentar maior variedade de

usos do que a modificaccedilatildeo de voz tradicional

Signos de fala ininteligiacuteveis ainda que sejam muito usados satildeo claramente bastante

limitados em termos de fornecimento de sentido Como pode um discurso feito com voz

modificada ser tornado inteligiacutevel diante de uma plateia De acordo com Proschan isso pode

ser conseguido de trecircs maneiras primeiro por meio de ldquodiaacutelogo e repeticcedilatildeordquo em que as

palavras distorcidas do boneco satildeo repetidas claramente de forma assertiva ou interrogativa

por um interlocutor outro boneco ou pelo marionetista segundo por meio do ldquoevento

comunicativordquo no qual o movimento do boneco seja gestual ou accedilatildeo clareia a intenccedilatildeo da

fala e terceiro pela proacutepria fala modificada em que ldquoa correspondecircncia proacutexima entre os

contornos da fala natural e da fala [modificada] do bonecordquo devem ser percebidas e na qual

362

ldquoa redundacircncia e a resistecircncia da distorccedilatildeordquo da fala natural deixa a fala do boneco repleta de

significaccedilatildeo comunicativa (1981 535-39)

Fala com voz modificada apresenta dificuldades oacutebvias ao artista de animaccedilatildeo e agrave

plateia ainda assim eacute empregada comumente em muitas e variadas tradiccedilotildees Mas tais

dificuldades satildeo superadas por seus benefiacutecios ldquoum marionetista que precisa falar por muitos

bonecos possui apenas uma voz natural portanto deve lanccedilar matildeo de uma [grande]

quantidade de estereoacutetipos vocais ou deve encontrar alguma outra maneira de alterar

radicalmente sua voz natural (ou empregar as duas soluccedilotildees conjuntamente)rdquo (1981 528)

Proschan menciona ainda outros benefiacutecios ldquoo som peculiar dos modificadores vocais

alerta a plateia sobre a chegada dos marionetistas e o iniacutecio da apresentaccedilatildeordquo ldquoa voz

estridente eacute inapelavelmente engraccediladardquo o modificador de voz ldquopode ser usado para

comunicaccedilatildeo lsquosecretarsquo (a transmissatildeo de deixas)rdquo e o modificador vocal ldquopode indicar

quando personagens em particular estatildeo falandordquo como quando em suas peccedilas apenas Punch

ou Petrushka possuem vozes modificadas (1981 540-41) Ele prossegue dizendo

Vozes de bonecos agraves vezes satildeo explicadas pelo mesmo analista em termos

opostos satildeo vozes pequenas para corresponderem ao tamanho diminuto dos

bonecos mas tambeacutem satildeo capazes de produzir efeitos bem humorados por

forccedila de sua incongruecircncia A verdade eacute que ambos estatildeo corretos Agraves

vezes noacutes percebemos um sistema semioacutetico em obra internamente

consistente e mutuamente suportado Agraves vezes noacutes vemos a interaccedilatildeo de

dois [sistemas] distintos ainda que relacionados (Proschan 1981 548-49)

Mas haacute uma diferenccedila entre vozes pequenas e vozes modificadas Uma voz pequena pode

corresponder ao boneco enquanto esse natildeo estaacute sendo engraccedilado por si como na voz gentil e

estilizada do sapo Kermit dos Muppets uma voz modificada pode ser engraccedilada se natildeo

corresponde ao boneco como no caso hipoteacutetico do uso de um swazzle para fazer a voz do

gigante feito em tamanho maior que o humano para a histoacuteria de Joatildeo e o peacute de feijatildeo

Proschan estaacute tentando chegar a um acordo com o que talvez seja o benefiacutecio mais

importante da modificaccedilatildeo vocal um benefiacutecio tatildeo oacutebvio que ele natildeo chega a consideraacute-lo

explicitamente Como Speaight nos lembra

Haacute uma disparidade inerente entre a figura do boneco e a voz humana

podemos nos acostumar agrave convenccedilatildeo por meio da qual uma voz humana em

todo o seu volume supostamente estaria saindo dos laacutebios (usualmente)

imoacuteveis de uma marionete mas haacute amplas evidecircncias de que no passado era

considerado necessaacuterio disfarccedilar a voz humana quando esta falava num show

de bonecos Devemos aprender corretamente que o emprego de algum

tipo de megafone ou caixa de ressonacircncia nos forneceria exatamente aquele

timbre inumano agrave voz que eacute necessaacuterio para fazer com que o ato de

marionetes seja uma forma completamente distinta de entretenimento (1947

37-9)

363

O uso de modificaccedilatildeo leva embora a disparidade entre a figura do boneco e a voz humana

confere o timbre inumano agrave voz do boneco que a torna unicamente sua

Veltruskyacute apresenta a mesma questatildeo Para se combinar a fala humana ao objeto

inanimado e a noccedilatildeo contida em seus meios a apresentaccedilatildeo da voz se faz de modo estranho a

ponto de ser percebido como sendo a proacutepria voz do boneco mais antropomoacuterfica do que

huamanardquo (1983 103) Ou como nos termos deste estudo eacute dado ao ontologicamente

paradoxal boneco com a modificaccedilatildeo vocal uma fala apropriadamente paradoxal

Como os signos de fala natildeo satildeo apresentados diretamente pelo proacuteprio boneco como

ocorre com signos de forma e movimento o problema fundamental apresentado ao artista de

animaccedilatildeo eacute o de fazer os signos de fala parecerem apropriados Signos de fala caracteriacutesticos

- signos de fala apontados para o extremo imitativo do continuum da representaccedilatildeo ndash natildeo satildeo

em muitos teatros de bonecos tradicionais e na maioria dos contemporacircneos geralmente

apresentados devido agrave sua falta de adequaccedilatildeo Mesmo que sejam usados apenas elementos

paralinguiacutesticos de fala para a criaccedilatildeo da fala caricatural eles ajudam a estabelecer uma

relaccedilatildeo entre a fala e os outros sistemas de signos do boneco A recorrecircncia no uso da

modificaccedilatildeo vocal sugere o grau de necessidade de existecircncia para essa correlaccedilatildeo

A uacuteltima das variaacuteveis do sistema de signos da fala do boneco eacute a presenccedila ou

ausecircncia sobre o palco do vocalizador do boneco Essa variaacutevel produz um impacto similar ao

da ausecircncia ou presenccedila sobre o palco do operador do boneco Quando o vocalizadoir estaacute

presente os signos de fala do boneco satildeo radicalmente deslocados do ponto onde de outra

forma poderia se encontrar no continuum da representaccedilatildeo para um ponto mais adiante no

sentido do extremo conceitual A presenccedila em cena do vocalizador difere daquela do operador

do boneco no entanto no sentido em que eacute comumente empregada natildeo apenas com o uso de

signos de fala imitativos como se daacute com a presenccedila do operador de bonecos com signos de

forma imitativos mas com o emprego de signos de fala vindos de ambos os extremos do

continuum operando de modo diferente para cada um

Noacutes vimos como Jurkowski protesta contra aproximaccedilotildees sincrocircnicas que natildeo

conseguem reconhecer o elemento de serviccedilo O que estaacute de fato em questatildeo entretanto natildeo eacute

o serviccedilo mas a interaccedilatildeo ou a sua ausecircncia entre o vocalizador sobre a cena e o boneco No

exemplo de Jurkowski do Retaacutebulo de Mestre Pedro o contador de histoacuteria natildeo interage

verbalmente com os bonecos e apresenta todas as falas da apresentaccedilatildeo seja narrativa ou fala

de personagem Uma falta de interaccedilatildeo similar ocorre em nosso exemplo japonecircs Embora

Jurkowski argumente que bonecos de bunraku venham a diferir dos de Mestre Pedro porque

364

ldquonatildeo satildeo simplesmente ilustraccedilotildees para o acompanhamento da cantiga do narrador [mas]

satildeo componente visuais das personagensrdquo (1988 [1983] 65) o mesmo pode ser dito como jaacute

vimos dos bonecos de Mestre Pedro pois eles tambeacutem ldquonatildeo satildeo simplesmente ilustraccedilotildeesrdquo

A apresentaccedilatildeo de Petruchka agrave qual Jurkowski se referiu entretanto assim como o nosso

exemplo indiano apresentam vocalizadores em cena que interagem verbalmente com os

bonecos traduzindo suas falas com voz modificada e entabulando diaacutelogos Proschan escreve

ldquoSignificativamente em muitos casos mencionados os modificadores de voz satildeo vistos em

uso juntamente com um inteacuterprete ou interlocutor O interlocutor pode empregar uma forma

peculiar de diaacutelogo que envolve a sua repeticcedilatildeo geralmente sob a forma de perguntas das

falas distorcidas do bonecordquo (1981 533) Segundo a insistecircncia de Jurkowski essa eacute

certamente uma outra questatildeo

Vocalizadores em cena em postura natildeo interativa como no caso do Retaacutebulo de

Mestre Pedro e em nosso exemplo japonecircs apresentam falas de personagens que tendem na

direccedilatildeo do extremo imitativo do continuum Se eles se dispusessem a interagir com os

bonecos falando por si proacuteprios em vozes normais borrariam a linha que distingue a fala dos

bonecos da fala humana Os signos de fala que apresentam satildeo conceituais na medida em que

que a plateia pode claramente distinguir que o boneco natildeo pode falar por si Reciprocamente

vocalizadores interativos sobre a cena ou interlocutores como no caso da peccedila de

ldquoPetruschkardquo e em nosso exemplo indiano apresentam uma fala humana proacutepria contraposta

agrave fala de voz modificada dos bonecos A linha que separa as duas maneiras de falar

permanece suficientemente clara A fala do boneco ainda eacute conceitual em si uma vez que eacute

quase ininteligiacutevel e presenccedila sobre a cena do vocalizador reforccedila o caraacuteter conceitual na

demonstraccedilatildeo da sua necessidade de uma traduccedilatildeo

365

CODA ndash METAacuteFORA E O BONECO

O boneco estaacute relacionado com a metaacutefora de duas maneiras distintas ainda que

relacionadas o boneco em si mesmo pode ser tido como uma metaacutefora de humanidade o

termo ldquobonecordquopode ser aplicado a algumas pessoas em particular O processo central para o

boneco da visatildeo-dupla e o paradoxo ontoloacutegico do boneco que decorre desse processo satildeo as

chaves para o entendimento desses dois envolvimentos entre o boneco e a metaacutefora

O poder do boneco como metaacutefora eacute uma confirmaccedilatildeo impliacutecita de que a ideacuteia de

visatildeo-dupla eacute um processo central para ele Na maioria das manifestaccedilotildees de teatro de

bonecos como pudemos ver o operador eou vocalizador natildeo se encontra presente em cena e

ainda assim o boneco eacute entendido como uma criaccedilatildeo intencional submetida a um controle

intencional Mesmo quando o boneco eacute apresentado na maneira mais imitativa possiacutevel ele eacute

visto por sua plateia como sendo um objeto Como tambeacutem pudemos ver mesmo quando o

operador eou vocalizador se encontre presente em cena e o boneco eacute obviamente uma

criaccedilatildeo intencional submetida a um controle intencional ele ainda eacute entendido pela plateia

como possuidor de uma vida simulada O boneco conduz sua conotaccedilatildeo metafoacuterica pelo fato

de provocar por inerecircncia proacutepria o processo de visatildeo-dupla produzindo duacutevida quanto ao seu

status ontoloacutegico qual seria a natureza desse ser

Deve ser recordado que o encanto do boneco foi rastreado alternadamente da cara

reminiscecircncia das bonecas de infacircncia ao arrebatamento arquetiacutepico do totem religioso Como

foi demonstrado anteriormente essas teorias satildeo individualmente inadequadas e mutuamente

incompatiacuteveis De qualquer forma ambas as teorias adquirem novos significados quando o

conceito de visatildeo-dupla se aplica a elas Pois que tanto na brincadeira infantil com bonecos

quanto na cerimocircnia ritual haacute uma notaacutevel e de certa forma intencional tendecircncia a tornar a

margem entre ldquoobjetordquo e ldquovidardquo pouco clara em ambas as associaccedilotildees metafoacutericas de criaccedilatildeo

e controle podem facilmente virar-se de questotildees acerca da ontologia do boneco para questotildees

da ontologia humana

Natildeo deveria ser surpreendente o fato que a relaccedilatildeo metafoacuterica entre deusindiviacuteduo

para indiviacuteduoboneco encontra bem mais expressotildees literaacuterias do que aquela que vai de

crianccedilabrinquedo para pessoaboneco pois que as ramificaccedilotildees filosoacuteficas da primeira

parecem bem mais profundas do que as da segunda Mas ao discutirmos alusotildees literaacuterias a

essa relaccedilatildeo metafoacuterica o leitor deve estar atento de como eacute faacutecil ela se traduz em relaccedilotildees

366

mais domeacutesticas tambeacutem O processo de visatildeo-dupla do boneco o dota com um poder

metafoacuterico que se expande em ambas as direccedilotildees a partir da humanidade

Batchelder vai direto ao assunto quando declara ldquoa ideacuteia do boneco eacute irocircnica por si

mesma Eis uma personagem mais ou menos aproximada da vida movimentada por um ser

humano que eacute seu mestre Ningueacutem deixa escapar a analogia entre o boneco dominado pelo

homem e o homem dominado por forccedilas maiores que ele mesmordquo (1947 299)

Este estudo tem sugerido reiteradamente que o boneco eacute visto como sendo um objeto

ao mesmo tempo em que se imagina que possui vida O boneco como sendo uma metaacutefora de

humanidade entretanto apoia-se numa inversatildeo dessa formulaccedilatildeo No sentido metafoacuterico as

pessoas satildeo vistas por outras pessoas como possuindo vida enquanto que ao mesmo tempo

imagina-se que natildeo satildeo nada aleacutem de objetos O poder do boneco como metaacutefora de

humanidade depende dessa inversatildeo e no paradoxo ontoloacutegico que ela nos lega Em uacuteltima

anaacutelise esta eacute uma questatildeo de quem ou o que cria e controla

Aristoacuteteles ou o autor antigo de um texto a ele atribuiacutedo invoca a metaacutefora do boneco

para explicar o controle exercido pelos deuses sobre natildeo apenas sobre a humanidade mas

sobre todo o universo Ele escreve sobre o Operador Primordial ldquoTudo o que eacute necessaacuterio eacute

um ato de sua vontade ndash do mesmo tipo que controla as marionetes puxando os fios para

mover as cabeccedilas ou as matildeos dessas pequenas criaturas entatildeo seus ombros seus olhos e agraves

vezes todas as partes de seus corpos que respondem com graccedilardquo (citado em Baird 1965 38)

O proacuteprio universo que eacute percebido como real eacute imaginado nessa metaacutefora cosmoloacutegica a ser

natildeo mais que o boneco dessa forccedila superior a forccedila original

Uma visatildeo natildeo menos cosmoloacutegica mas mais focada na metaacutefora deusindiviacuteduo

indiviacuteduoboneco eacute comum em Java onde segundo Brandon nos informa ldquonum niacutevel

miacutestico a tela [de sombras] pode ser tida como simbolizando o ceacuteu o palco de casco de

bananeira a terra os bonecos o homem e o [operador de bonecos] deus quem por meio de

seu conhecimento e poder espiritual traz o homem agrave vidardquo (1970 18)

Jurkowski descobriu um poeta Anatoacutelio do seacuteculo XIII de nome Birri que expressa de

modo similar de humanidade como boneco criada e controlada pela forccedila superior de Deus

Homens saacutebios buscando a verdade

Erguem seus olhos para a tenda dos ceacuteus

Onde o Grande Apresentador do mundo

Haacute muito montou seu teatro de sombras

Detraacutes de sua tela ele estaacute apresentando um espetaacuteculo

Desempenhado pelas sombras dos homens e mulheres da sua criaccedilatildeo

(1988 [1979] 2)

367

Talvez a meditaccedilatildeo mais extensa da poesia ocidental sobre o boneco como metaacutefora da

humanidade possa ser encontrada no longo poema de Conrad Aiken ldquoPunch o mentiroso

imortalrdquo Proacuteximo ao final da obra o artista de bonecos chamado ldquocharlatatildeordquo tem um

momento de reflexatildeo

Repentinamente aqui ao parar diante da janela escurecida []

Ele viu a si mesmo ndash embora um deus ndash o boneco dos deuses

Girando em cabriolas o sonho de um sonhador maior []

Ele se dirige a um dos seus bonecos ldquoEu tambeacutem sou um boneco E como eacutes um siacutembolo para mim []

Eu tambeacutem sou um siacutembolo um boneco preso a fios

Indefeso colorido com uma expressatildeo fixa e imutaacutevel

(Embora algueacutem tenha dito lsquomaacutegoarsquo ou lsquorisosrsquo) de algueacutem que se inclina

Sobre mim assim como me inclino sobre vocecirc E mesmo esse Algueacutem ndash

Quem sabe que compulsatildeo o acomete que matildeos vindas da escuridatildeo

Tocam as suas cordas com ele Quem sabe se essas matildeos natildeo satildeo as

nossasrdquo

(Aiken 1953 360-62)

A corrente de duacutevida ontoloacutegica sugerida nesse poema se estende para cima do boneco

ao artista ateacute ldquoAlgueacutemrdquo mais acima que tambeacutem sofre da ldquocompulsatildeordquo de ldquomatildeos vindas da

escuridatildeordquo Surpreendentemente o poema tambeacutem sugere que a cadeia se estende para baixo

e que o artista pode de alguma forma controlar o deus e o boneco de alguma maneira

controla o artista

Essa uacuteltima sugestatildeo pode parecer ultrajante mas o boneco de certa forma controla a

maneira pela qual eacute controlado Craig afirma como sendo um princiacutepio da operaccedilatildeo de

bonecos ldquoVocecirc natildeo o move vocecirc permite que ele se mova essa eacute a arterdquo (citado em

Jurkowski 1988 [1979] 14) No sentido praacutetico isto quer dizer que o papel do operador de

bonecos eacute aprender o potencial de movimentaccedilatildeo do boneco e permitir que esse potencial se

realize Num sentido mais miacutestico ainda que se admita que certo limite de tal misticismo

possa ser transgredido isso quer dizer que o papel do operador de bonecos eacute mostrar

humildade diante da presenccedila de sua criaccedilatildeo

De modo similar Philpott ressalta a objeccedilatildeo de Walter Wilkinson um autor e artista

de teatro de bonecos inglecircs do seacuteculo XIX de que ldquoa ideacuteia de que bonecos satildeo criaturas

inanimadas controladas por seres humanos eacute incorreta e a posiccedilatildeo eacute exatamente o oposto o

artista estaacute agrave mercecirc de seus bonecosrdquo (1969 209) A sugestatildeo na ressalva irocircnica de

Wilkinson assim como no poema um tanto seacuterio de Aiken eacute que natildeo apenas o boneco a

pessoa e o deus todos apresentam um estatuto ontoloacutegico duvidoso em termos de ser

controlado pela forccedila superior mais proacutexima mas de que estatuto ontoloacutegico natildeo eacute menos

368

duvidoso no fato de ser controlado pela forccedila inferior mais proacutexima O paradoxo metafoacuterico

do boneco pode apontar para as duas direccedilotildees

A criaccedilatildeo e o controle exercidos pelo deus sobre a humanidade natildeo eacute o uacutenico assunto

acerca de criaccedilatildeo e controle oferecido pela metaacutefora do boneco as pessoas de diversas

maneiras podem tambeacutem ser criadas e controladas por outras pessoas mais poderosas

Horaacutecio nas suas Saacutetiras escreve uma pessoa para outra

que sou eu para vocecirc

Veja como vocecirc que se impotildee sobre mim

Se inclina e se esfrega para outros tal qual um boneco de fios

(citado em Jurkowski 1988 [1979] 2)

A cadeia de duacutevida ontoloacutegica eacute aqui identificada metaforicamente dentro do contexto das

relaccedilotildees humanas que podem mesmo ser vistas como natildeo mais que uma seacuterie de trivialidades

marionetizantes Speaight nota que Marcus Aurelius apresenta ldquouma imagem concentrada e

escarnecedora da exposiccedilatildeo vatilde na qual as vidas da maioria dos homens eacute conduzida [quando

escreve sobre] lsquoa pompa vatilde de uma procissatildeo uma atuaccedilatildeo fuga de ratos assustados

marionetes danccedilando em fiosrsquordquo (1990 [1955] 26)

Stalberg cita Xuan-zong um imperador Chinecircs do seacuteculo XVIII que apresentou uma

imagem da fatuidade da vida humana identificando a si mesmo como um boneco de fios

pateacutetico

De madeira esculpida e fios de seda esticados este velho homem eacute feito

De pele envelhecida qual uma galinha e cabelos como os de uma garccedila ele

eacute como se fosse um homem verdadeiro

Em um momento a manipulaccedilatildeo termina ele se queda imoacutevel em repouso

Qual vida humana em meio ao mundo dos sonhos

(1984 21)

A metaacutefora do boneco pode tambeacutem ser empregada num sentido mais internalizado Em

qualquer pessoa o status ontoloacutegico do ldquorostordquo apresentado por outras pessoas pode ser

sujeitado metaforicamente a duacutevida Jukowski menciona Adam Mickiewicz um romantista

polonecircs que escreveu ldquoEssas marionetes artificiais que chamamos pessoas podem nos

acolher em amizade sorrir para noacutes chorar agraves vezes mas no fundo vocecirc encontra egoiacutesmo

ganacircncia e orgulho manipulando suas cordas dominando essas figurasrdquo (1988 [1979] 6)

As ligaccedilotildees metafoacutericas entre a humanidade e o boneco tecircm sido expressas natildeo apenas

na literatura mas no proacuteprio teatro Como menciona Batchelder

Alguns tipos de drama poeacutetico e traacutegico satildeo adequados para bonecos A

morte de Tintagilles de Maeterlink se provou um meio excelente para

bonecos em parte devido a sua intensidade concentrada e em parte pelo fato

de as personagens se encontrarem tatildeo obviamente sob os poderes de forccedilas

aleacutem de seus controles de modo a fazecirc-los parecerem-se com bonecos

humanos (1947 300-301)

369

Em sua anaacutelise do trabalho de Maeterlink Knapp comenta que ldquoo que impressionou a

Maeterlink foi a natureza passiva remota impessoal e de autocircmato da marionete no modo

como esta confrontava inutilmente as forccedilas do destino Ele viu uma analogia entre homem e

marionete ambos satildeo manipulados por forccedilas exteriores ambos ignoram esse controle sobre

suas vidasrdquo (1975 77)

Haacute certamente grande poder nesse uso metafoacuterico do boneco mas deve ser

mencionado que tal uso natildeo trabalho funciona igualmente bem com todos os tipos de

bonecos Quando um par de bonecos de luva engaja-se num abraccedilo desajeitado e improvaacutevel

ou um grupo de marionetes de vara siciliano colide divertidamente um sobre o outro ateacute que

as cabeccedilas rolem literalmente a metaacutefora de humanidade um tanto melancoacutelica como sendo

escrava do destino parece difiacutecil de ser aplicada

Deve-se notar tambeacutem que a segunda parte da analogia de Maeterlink que nem a

pessoa nem o boneco se datildeo conta de serem controlados eacute imprecisa Bonecos podem

facilmente apresentar signos que sugerem que satildeo ldquoconscientesrdquo de serem controlados

Jurkowski aponta que em uma cena apresentada pelo artista alematildeo contemporacircneo Albrecht

Roser e seu palhaccedilo marionete Gustav as cordas de controle de Gustav acabam embraccedilando-

se intencionalmente e o boneco recorre ao operador para que este as desembaralhe ldquoele eacute um

boneco jogando com a sua consciecircncia de ser um bonecordquo (1988 [1983] 78) E mal deve ser

mencionado que muitas pessoas apresentam um desejo intenso por serem manipuladas por

alguma forccedila maior que elas seja uma divindade uma circunstacircncia histoacuterica ou outras

pessoas Deve-se argumentar que a proacutepria vida humana eacute regularmente se natildeo

invariavelmente sujeita a controle empresta agrave metaacutefora do boneco o seu poder peculiar noacutes

vemos a noacutes mesmos no boneco porque sabemos perfeitamente que nossa liberdade de accedilatildeo eacute

circunscrita por forccedilas externas

Como se sugere no poema de Aiken a metaacutefora do boneco eacute mais rica e mais

complexa do que pode parecer a princiacutepio A riqueza e complexidade eacute manifestada numa

produccedilatildeo da ldquoSinfonia claacutessicardquo de Prokofiev pelo Teatro de Bonecos Estatal de Budapeste

na qual a plateia assiste a ldquoespectadores vivosrdquo assistirem enquanto uma orquestra de verdade

toca a muacutesica para uma espetaacuteculo de bonecos

Num palco de corte em estilo rococoacute (o palco dentro do palco) os bonecos

apresentam uma comeacutedia italiana tradicional com riacutegido convencionalismo

O teacutedio artificial e cortecircs eacute entretanto quebrado repetidas vezes pelas

apariccedilotildees [do boneco] de um gato no palco dentro do palco Ante essa visatildeo

um cachorrinho de madame mimado [pertencente a um ldquoespectadorrdquo e

presumivelmente vivo agrave sua proacutepria maneira] se enfurece e comeccedila uma luta

370

Os dois animais perseguindo-se vatildeo gradualmente destruindo esse mundo de

arte forjado Varas de luz satildeo quebradas as pernas do palco caem

instrumentos satildeo destruiacutedos de modo a revelar seus componentes mecacircnicos

no fosso da orquestra ateacute um espectador com uma peruca branca [que

imaginaacutevamos ser vivo] eacute abatido de modo a revelar que natildeo eacute senatildeo uma

casca oca devorada por cupins um boneco vazio (Gaacutel 1978 41)

Pelo final apocaliacuteptico da apresentaccedilatildeo a compreensatildeo da plateia acerca do que eacute real e do

que natildeo eacute acaba completamente confundida A questatildeo sobre quem estaacute no controle abriu-se a

um ponto irrespondiacutevel e a plateia eacute entatildeo convidada agrave metaacutefora do boneco natildeo apenas para a

ldquorealidaderdquo da apresentaccedilatildeo mas para a realidade em si

Essa breve exposiccedilatildeo dos empregos literaacuterios e teatrais do boneco como metaacutefora

sugere que essa dimensatildeo metafoacuterica pode perfeitamente ser mais difundida do que o proacuteprio

fenocircmeno do boneco e pode ser operativa tal como o processo de visatildeo-dupla em uma

maneira sincrocircnica Ou seja pode ser perfeitamente possiacutevel que a metaacutefora do boneco esteja

mais presente no humano de que o fenocircmeno do boneco no teatro humano Uma questatildeo

fascinante surge dessa sugestatildeo seraacute que a metaacutefora emerge da observaccedilatildeo do boneco ou seraacute

que o boneco eacute uma consequecircncia do reconhecimento dessa metaacutefora Ou para apresentar a

questatildeo de outa maneira a sensaccedilatildeo de que as pessoas e os bonecos se parecem por terem

sido criados e controlados por forccedilas superiores surge da observaccedilatildeo de que o boneco eacute de

fato criado e controlado dessa forma ou a praacutetica de criar e controlar bonecos surge da

observaccedilatildeo de que as pessoas satildeo criadas e controladas dessa forma Eacute duvidoso que essa

questatildeo possa ser respondida com alguma seguranccedila e nenhuma tentativa nesse sentido seraacute

feita aqui Mas a questatildeo em si eacute significante no sentido em que apresenta ao menos a

possibilidade de que a humanidade acreditando-se criada e controlada por uma forccedila mais

poderosa precise dar expressatildeo a essa crenccedila por meio da criaccedilatildeo e do controle de pessoas

substitutas de um modo anaacutelogo agravequele pelo qual a crianccedila sujeito agrave disciplina dos pais

exercita uma disciplina infantil sobre seus bonecos

Natildeo importando se foi a metaacutefora do boneco ou o proacuteprio boneco o que veio primeiro

a apresentaccedilatildeo do boneco natildeo consegue evitar a provocaccedilatildeo de implicaccedilotildees metafoacutericas

Como pudemos ver essas implicaccedilotildees estendem-se para aleacutem da questatildeo imediatamente

oacutebvia de criaccedilatildeo e controle Como Szilaacutegyi argumenta ldquoOs verdadeiros meios de expressatildeo

do teatro de bonecos eacute a metaacutefora da cenardquo

Com seu estilo simboacutelico de apresentaccedilatildeo a cena do teatro de bonecos

conduz o espectador a acreditar que ao passo que o mundo teatral pode se

realizar num plano em separado um no qual os bonecos satildeo seres

independentes obedecendo agraves suas proacuteprias leis tudo afinal se encontra

enraizado no mundo humano e nele refletido [O espectador] eacute lembrado

371

que o mundo irreal da arte e a realidade da vida quotidiana existem

simultaneamente e lado a lado uma agrave outra (1967 [1965] 37)

Natildeo eacute apenas de uma questatildeo de criaccedilatildeo e controle que a metaacutefora do boneco levanta por

meio do processo de visatildeo-dupla mas uma questatildeo de compreensatildeo a realidade em si mesma

o que eacute um ldquoobjetordquo e o que eacute ldquovidardquo

A distinccedilatildeo traccedilada anteriormente entre o boneco e o ator vivo pode ser claramente

vista nessas referecircncias metafoacutericas feitas ao boneco a figura do ator vivo natildeo consegue

sustentar metaacuteforas como essas por que natildeo levanta questotildees dessa profundidade acerca de

criaccedilatildeo e controle e natildeo desafia a plateia com o desnorteante paradoxo ontoloacutegico da visatildeo-

dupla ldquoobjetosrdquo versus ldquovidardquo

O boneco tambeacutem estaacute relacionado com a metaacutefora no sentido em que o termo

ldquomarioneterdquo pode ser empregado metaforicamente para pessoas em particular Quando

ocorre natildeo eacute aplicado como um termo de aprovaccedilatildeo

O termo em si mesmo independente de sua aplicaccedilatildeo metafoacuterica tornou-se um termo

infeliz ao menos no Ocidente Suas conotaccedilotildees podem natildeo ser inerentemente pejorativas em

culturas com tradiccedilotildees de boneco que sejam altamente valorizadas mas no Ocidente onde as

tradiccedilotildees do boneco satildeo geralmente entendidas como sendo derivaccedilotildees marginais do teatro

vivo tais conotaccedilotildees satildeo quase que invariavelmente negativas

Encarando a realidade Craig escreve ldquorsquoBonecorsquo eacute um termo de desprezo mesmo que

ainda exista quem encontre beleza nessas pequenas figuras ainda assim tornaram-se

degeneradasrdquo (1911 90) Eacute claro mesmo Craig deixa escapar algum desprezo com ldquoessas

pequenas figurasrdquo argumentando que por serem degeneradas devem ser substituiacutedas pela

figura mais exaltada da Uumlbermarionette

Se pode parecer que Craig exagera na questatildeo quando ele aponta que ldquoacutebonecorsquo eacute um

termo de desprezordquo ou se nos parece que deacutecadas adiante se dedicou ao termo um pouco

mais de respeito deve-se apenas levar em consideraccedilatildeo a comedida resposta de Malkin agrave

ediccedilatildeo de setembro de 1972 dedicada aos ldquoBonecosrdquo do Drama Review

Os editores chegam ao ponto de por a palavra boneco entre aspas porque o

termo em suas visotildees natildeo ldquodescrevem satisfatoriamenterdquo os conceitos do

ator inanimado despersonalizaccedilatildeo encarnaccedilatildeo e assim por dianterdquo [Michael

Kirby ldquoIntroduccedilatildeordquo Drama Review 16 91972) 3] Eacute como se os editores

estivessem convencidos de que a palavra boneco sem as aspas

representasse um conceito por demais elementar ou uma forma de arte

ingecircnua demais para os seus propoacutesitos Eles parecem ignorar ou estarem

incautos da possibilidade de que o boneco tal como o ator e a maacutescara eacute um

elemento essencial do teatro Os artigos tratam bonecos como se fossem

maacutescaras o boneco como se fosse um siacutembolo o ator como boneco e assim

372

por diante mas natildeo haacute qualquer tentativa de articular nenhum conceito

contemporacircneo do boneco como boneco (1975 3)

E se no entanto imaginarmos que essa condescendecircncia se enfraqueceu ao longo das quase

duas deacutecadas o leitor eacute convidado entatildeo a refletir sobre a quantidade e a natureza das

discussotildees sobre teatro de bonecos das quais ele ou ela possa ter participado com qualquer

adulto que natildeo possua interesse acadecircmico ou praacutetico no assunto

Eacute bastante provaacutevel que a difamaccedilatildeo do teatro de bonecos derive em parte das

associaccedilotildees metafoacutericas que o boneco evoca No Ocidente contemporacircneo rituais religiosos

satildeo vistos geralmente com condescendecircncia apenas pouco menos que brincadeiras de crianccedila

E como o teatro de bonecos no Ocidente foi reduzido no mais das vezes a estudos

acadecircmicos do uso de bonecos em religiotildees de outras culturas e para apresentaccedilotildees para

crianccedilas em nossa cultura essa condescendecircncia tem sido amplamente reforccedilada Deve

parecer se especularmos por um momento que ocidentais sofisticados possuem um medo

quase moacuterbido de levar poder de suas imaginaccedilotildees a seacuterio da mesma maneira como fazem

com o poder de suas percepccedilotildees Eles acreditam que a justaposiccedilatildeo de imaginaccedilatildeo e

percepccedilatildeo com o subsequente paradoxo ontoloacutegico que ameaccedila as suas compreensotildees acerca

de ldquoobjetordquo e ldquovidardquo como algo enervante e assim evitam o problema inteiramente por meio

do desmerecimento da praacutetica do teatro de bonecos que provoca isso Talvez a disposiccedilatildeo de

uma cultura para apreciar o teatro de bonecos dependa da disposiccedilatildeo dessa cultura em aceitar

o paradoxo ontoloacutegico desafiante da visatildeo-dupla

Tratar de uma pessoa metaforicamente como se essa fosse um boneco eacute falar dessa

pessoa com certo grau de desprezo Tal desprezo encontra-se enraizado no desprezo da

consideraccedilatildeo do termo em si mas a questatildeo eacute ainda mais complexa Ser chamado de

marionete eacute natildeo apenas ser rotulado com um termo desagradaacutevel mas eacute tambeacutem conferir ao

status ontoloacutegico de algueacutem uma espeacutecie de duacutevida desdenhosa Um exame completo das

maneiras pelas quais o termo marionete tem sido empregado em referecircncia a pessoas

encontra-se aleacutem do alcance deste estudo mas duas aplicaccedilotildees mais comuns podem ser

discutidas

Alguns poliacuteticos e de fato alguns governantes Satildeo regularmente chamados de

marionetes Por exemplo Vidkun Quisling um homem cujo nome tornou-se parte da proacutepria

liacutengua inglesa foi chamado de marionete dos nazistas quando lhe foi conferido o poder sobre

a Noruega receacutem-conquistada ainda o governo estabelecido pelos vietnamitas apoacutes a

conquista do Camboja foi chamado de ldquoregime marioneterdquo O desprezo na denominaccedilatildeo de

algueacutem como marionete eacute oacutebvio mas sob esse desprezo haacute um ataque ao estatuto ontoloacutegico

373

do sujeito Teriam Quisling e o governo vietnamita governado nos seus direitos ou forma eles

criados e controlados por forccedilas nesse caso forccedilas de natureza poliacutetica mais poderosas que

eles mesmos Foram eles ldquoobjetosrdquo sobre os quais se agiu ou ldquovidasrdquo que agiam Tanto

Quisling quanto o regime vietnamita no Camboja de fato governaram naccedilotildees ostensivamente

independentes mas ao mesmo tempo ambos eram obviamente sensiacuteveis agraves vontades daqueles

que os investiram do poder Seus estatutos ontoloacutegicos eram certamente duvidosos

metaforicamente eram marionetes em todos os sentidos

Igualmente homens e mulheres apaixonados satildeo regularmente chamados de

marionetes Tomemos como exemplo Cleoacutepatra uma figura da histoacuteria e da literatura a quem

se atribuiu frequentemente ter estado sob o jugo de natildeo apenas alguns homens em particular

mas do proacuteprio amor Ainda que tanto na histoacuteria quanto na literatura se aceite que Cleoacutepatra

foi algueacutem tatildeo provida de vida quanto qualquer outro ela eacute ao mesmo tempo vista como um

objeto subjugado pelo poder avassalador do romance Dessa forma Cleoacutepatra eacute uma

ldquomarionete do amorrdquo criada e controlada por uma forccedila nesse caso de natureza emocional

mais poderosa que ela Mais uma vez seu estatuto ontoloacutegico se encontra em duacutevida e

metaforicamente ela tambeacutem eacute uma marionete em todos os sentidos

Eacute importante que se reconheccedila que enquanto termos tais como ldquogovernante

marioneterdquo e ldquoboneco do amorrdquo envolvem questotildees de criaccedilatildeo e controle eles sugerem a

existecircncia do que pode ser chamado de ldquomundo-plateiardquo que precisa lidar com o estatuto

ontoloacutegico da pessoa em questatildeo Assim como com o boneco entendido como sendo uma

metaacutefora geral da humanidade o que se apresenta natildeo eacute nada aleacutem da questatildeo do estatuto de

algueacutem como sendo ldquoobjetordquo eou ldquovidardquo

O poder do boneco como sendo uma metaacutefora da humanidade e como sendo um

termo empregado acerca de pessoas surge do processo paradoxal de visatildeo-dupla que eacute

central para o boneco A plateia do teatro e o mundo-plateia devem lidar em uacuteltima

apreciaccedilatildeo com questotildees de ontologia com questotildees de ser A cena do teatro de bonecos e o

palco do mundo apresentam figuras que satildeo desafios agrave compreensatildeo eacute a missatildeo dessas

plateias que natildeo satildeo mais que a humanidade em parte ou em seu todo arbitrar acerca da

natureza do ser

374

Sobre o autor

STEVE TILLIS autor teatral ator e diretor tem trabalhado em teatro profissional desde

1974 Seu artigo ldquoO encanto do boneco deus ou brinquedordquo foi publicado em A linguagem

do boneco editado por Laurence R Kominz e Mark Levinson

375

ANEXO B

Entrevista com Beto Andreeta fundador da Cia Pia Fraus

Teatro Rondon Pacheco Uberlacircndia 06 de novembro de 2010

Mario - Beto faz o seguinte fala um pouquinho do iniacutecio da Pia Fraus Como ela comeccedilou

Beto - Falo

Mario - Junto com esse iniacutecio eu gostaria de deixar a seguinte pergunta ndash se eacute que essa

pergunta tem alguma alguma funccedilatildeo Qual eacute o desejo artiacutestico que cria a Pia Fraus

Beto - A Pia Fraus comeccedilou em 1984 A gente considera Eu considero junto com o Beto

Lima que fomos a dupla que iniciou a Pia Fraus a gente se conheceu em Abril de [19]84 A

gente considera esse momento como o comeccedilo da Pia Fraus a gente passa a contar mesmo

que natildeo chamou-se Pia Fraus logo no comeccedilo a gente daacute como iniacutecio da histoacuteria da Pia Fraus

a minha histoacuteria com o Beto Lima que eacute o Pimencaiacute A gente fazia parte de um projeto de arte

educaccedilatildeo chamava-se Crianccedila Faz Arte de uma mineira ndash em Belo Horizonte comeccedilou a Pia

Fraus ndash e quem capitaneava isso era uma moccedila que chama Doroty Marques [Ela] ainda faz

Eacute cantora ainda mexe com coisas de educaccedilatildeo cada vez em lugares mais remotos assim

como Rondocircnia Acre Ela que nos junto No comeccedilo de [19]84 em janeiro eu estava

chegando de uma viagem uma turnecirc que eu tinha feito com meu primo que foi meu primeiro

grupo de teatro que se chamava Paco Beto e Bonecos Uma turnecirc latinoamericana ndash sul

smericana na verdade Trabalhamos muito no Equador no Peru na Boliacutevia Eu tinha tido

aulas de violatildeo antes de ir para isso entatildeo eu voltei e fui encontrar meu professor de violatildeo

que estava trabalhando com essa Doroty Marques Ela me conheceu achou engraccedilado ela jaacute

fazia um trabalho pra crianccedila com educaccedilatildeo Me convidou e a gente comeccedilou a fazer a base

do primeiro espetaacuteculo Ela vendeu um projeto de educaccedilatildeo em Minas Gerais e laacute ela agregou

mais uma pessoa a esse projeto que foi o Beto Lima Entatildeo foi aiacute que eu conheci o Beto

Lima Conheci o Beto Lima dentro de uma sala de aula numa escola puacuteblica numa favela

chamada Favela do Cafezal no morro do Cafezal em Belo Horizonte E a gente nem precisou

falar Ele chegou atrasado para a atividade e eu jaacute estava no meio da molecada tentando fazer

alguma coisa Ele foi laacute entrou e vacircmo laacute E foi Ficamos dois anos praticamente os dois

primeiros anos da nossa vida artiacutestica em comum junto com essa mulher Doroty Marques E

a gente fez esse projeto em Belo Horizonte em Penaacutepolis que eacute interior de Satildeo Paulo e em

Presidente Prudente E noacutes trecircs juntos fizemos a primeira peccedila que se chamava O vaqueiro

bicho Froxo em [19]84 Depois no final de [19]86 eu me desliguei dessa mulher voltei pra

Satildeo Paulo ndash eu sou de Satildeo Paulo o Beto eacute de Minas Eu voltei pra Satildeo Paulo [e] num

momento muito curto eu criei um grupo fiz uma vamos dizer uma variante [do primeiro

espetaacuteculo] que eu fazia com o Beto mas fazia o espetaacuteculo sem o Beto em Satildeo Paulo O

Beto [Lima] ficou trabalhando em Presidente Prudente uma das cidades que a gente jaacute tinha

passado Durante esse ano [19]86 a gente refez o Vaqueiro e o Bicho-Froxo fizemos uma

versatildeo soacute minha e dele No comeccedilo de [19]87 ndash [19]88 talvez Em [19]87 ele ficou em

Presidente Prudente A gente foi pra Satildeo Paulo com esse primeiro espetaacuteculo O Vaqueiro

Bicho-Froxo E logo na primeira temporada do a gente ganhou o precircmio tinha um precircmio da

FUNDACEN115

na eacutepoca que eacute a Funarte de hoje em dia

Que eram os cinco melhores espetaacuteculos infantis do ano na cidade de Satildeo Paulo A gente jaacute

ganhou esse precircmio logo de cara Entatildeo nosso primeiro espetaacuteculo nossa primeira temporada

115

FUNDACEN Fundaccedilatildeo Nacional de Artes Cecircnicas Oacutergatildeo ligado ao Ministeacuterio da Cultura fundada em 1975

e extinto durante governo Fernando Collor de Mello no ano de 1990

376

na cidade de Satildeo Paulo e a gente jaacute foi conhecido imediatamente como uma coisa legal jaacute

ganhamos esse precircmio

O comeccedilo foi essa a histoacuteria Tanto eu quanto o Beto [Lima] nos eacuteramos muito apaixonados

e somos ateacute hoje ndash o Beto natildeo mais [por]que ele faleceu em 2005 Mas sempre o que

permeava nosso discurso era uma paixatildeo pela cultura popular brasileira mas assim com

violecircncia A gente soacute enxergava isso na vida a gente soacute queria ser isso A gente falava que

nossa finalidade nosso escopo era [fazer] uma releitura da arte popular brasileira Uma

releitura de maneira contemporacircnea da arte popular brasileira Era isso que a gente queria

fazer A gente tinha esse conceito Estava muito claro o que a gente queria artisticamente Era

reler a arte popular brasileira de uma maneira mais contemporacircnea Era isso com teatro de

bonecos e misturando sempre atores com teatro de bonecos

Mario - Sempre misturando atores

Beto - Sempre desde o comeccedilo Eu antes de fazer essa turnecirc com o com o Paco meu

primo eu estudei no Ventoforte116

com o Ilo [Krugli] em [19]81 e [19]82 E pro Brasil o Ilo

foi o grande introdutor desse tema neacute Do bonequeiro vamos dizer assim o ator-manipulador

agrave vista do puacuteblico O Ilo que traz essa informaccedilatildeo pro Brasil neacute

Mario - O Barquinho Histoacuteria de Lenccedilos e Ventos

Beto - Exatamente

Mario - Tem uma relaccedilatildeo tambeacutem da Pia Fraus com o XPTO

Beto - Entatildeo tem porque nesse periacuteodo tambeacutem eu cursei o Ventoforte meu uacutenico estudo

Eu fiz o 2ordm grau depois fui morar na Itaacutelia um ano voltei tentei fazer duas vezes a USP e natildeo

passei nunca Prestei pra cinema e aiacute desencanei porque eu entrei pra coisa do Ventoforte do

teatro e achei que natildeo precisava ndash e realmente natildeo precisou no meu caso neacute Entatildeo eu natildeo

cursei faculdade e o Beto [Lima] tambeacutem natildeo tinha feito E em [19]81 [19]82 o Ventoforte

era uma escola sempre foi Natildeo sei se ainda eacute uma escola natildeo Natildeo sei mas nesse momento

era um escola muito em voga assim pra quem queria fazer um teatro infantil de mais

qualidade Natildeo tinha tanta oferta em Satildeo Paulo de escolas nos anos [19]80 [Havia] muito

menos grupos ele tinha realmente uma coisa novidosa assim naquele momento Ele [Ilo

Krugli] era realmente o top do que se fazia em teatro de bonecos e teatro pra crianccedilas Tanto

que ele coordenava uma coleccedilatildeo na Abril Cultural de teatro pra crianccedila que vinha em

fasciacuteculos vinha com livro Ele tinha um papel predominante assim mesmo na discussatildeo da

linguagem teatral para a crianccedila Ele trouxe um monte de conceitos um monte de coisas

Porque ele tinha trabalhado com a Nise da Silveira117

no Rio e estava migrando pra Satildeo

Paulo Ele era ldquoo carardquo tido o grupo E o Osvaldo Gabrieli que eacute o fundador da XPTO dava

aula tambeacutem no Ventoforte em [19]81 e [19]82 Entatildeo eu fiz o curso do Ilo de teatro infantil

e o curso do Osvaldo de teatro de bonecos [Foram] os dois uacutenicos cursos assim formais

[que eu fiz]

Cada um tinha laacute a sua duraccedilatildeo eu passava o dia inteiro no Ventoforte foi um mergulho E

essa coisa tambeacutem eu fiz essa viagem pela Ameacuterica do Sul muito incentivado pelos dois que

satildeo argentinos e carregam essa tradiccedilatildeo que [tem] o teatro de bonecos da Argentina [de

116

Teatro Ventoforte Companhia teatral fundada em 1974 pelo artista plaacutestico educador e artista de animaccedilatildeo

argentino Ilo Krugli Na deacutecada de 1980 Ilo juntamente com a companhia muda sua sede do Rio de Janeiro para

Satildeo Paulo onde institui um teatro onde satildeo apresentados espetaacuteculos e ministrados cursos O Ventoforte eacute

responsaacutevel pela formaccedilatildeo de diversos artistas de animaccedilatildeo em Satildeo Paulo desde esse momento participando de

alguma maneira na formaccedilatildeo de companhias como a XPTO a Truks a Pia Fraus dentre outras 117

Nise da Silveira (195-1999) Psiquiatra brasileira conhecida pela introduccedilatildeo da psicologia junguiana no

Brasil revolucionaacuteria no que se refere ao tratamento dispensado a pacientes psiquiaacutetricos fazendo uso entre

outras coisas da arte para tratamento e pedagogia dos pacientes

377

circulaccedilatildeo] Muito influenciado pelo [Federico] Garcia Lorca que morou em Buenos Aires

trazendo essa bagagem da circulaccedilatildeo do La Barraca118

Entatildeo vem desse eco do Garcia Lorca

que vai acabar batendo em mim entendeu Ele influencia uma geraccedilatildeo argentina influencia a

proacutexima e acaba passando pela geraccedilatildeo do Ilo ndash uma terceira depois do Lorca passar Aiacute o

Ariel Bufano119

que fez o [Grupo de Titiriteros del] Teatro San Martin tambeacutem estaacute nesse

barco O Osvaldo estuda com o Ariel parte do teatro San Martin vecirc o Ventoforte no Festival

Internacional do Sul120

se apaixona joga tudo pra cima aquela caretice argentina vem morar

em Satildeo Paulo e comeccedila um curso de teatro de bonecos

Aiacute eu sou vamos dizer descendente desse movimento neacute Dessa passagem do Garcia Lorca

pela argentina que vai resultar tambeacutem na histoacuteria da Pia Fraus Porque eu faccedilo esse grupo

com meu primo faccedilo essa viagem e encontro o Beto O Beto estaacute voltando de uma

experiecircncia com o Vital Santos121

em Pernambuco em Caruaru Ele viveu laacute por um ano e

meio dois anos Entatildeo eu de um lado apaixonado pela cultura popular mas mais

influenciado por essa passagem pela Boliacutevia Equador e jaacute um pouco de Brasil jaacute tinha

viajado bastante e ele voltando do nordeste Entatildeo aiacute estaacute essa eacute a matriz resultante da Pia

Fraus

Mario - Uma coisa muito interessante na linguagem da Pia Fraus e eu acho que eacute na minha

opiniatildeo mas aiacute eacute uma outra histoacuteria eacute o que vai identificar muito a Pia Fraus como como

uma companhia bastante proacutexima do que a gente vai chamara de uma companhia de teatro de

animaccedilatildeo eacute essa vontade de cruzamento de linguagens e competecircncias

Beto - Eacute Faz sentido

Mario - A Pia Fraus vai estar sempre trabalhando na convivecircncia do corpo do ator com o

boneco em cena os objetos e os bonecos satildeo usados de diversas maneiras Tem claramente

uma influecircncia uma leitura que tambeacutem em alguns espetaacuteculos encosta na danccedila encosta nas

artes circenses natildeo eacute

Beto - Entatildeo o percurso eacute muito claro Assim de [19]84 que foi quando eu conheci o Beto

ateacute 1990 a obsessatildeo eacute a leitura popular Na danccedila popular na esteacutetica popular Sempre

introduzindo boneco e ator junto que vem da experiecircncia do Beto no nordeste e a minha aqui

do sudeste e na Ameacuterica Latina Em [19]89 vem um indiano pra Satildeo Paulo que eacute o Dadi

Pudumjee122

que eacute muito legal foi depois ateacute presidente da UNIMA ou eacute uma coisa assim

Ele vem a Satildeo Paulo com um amigo tinha uma relaccedilatildeo laacute vem e faz uma reuniatildeo No final

dos anos [19]80 o movimento de teatro de bonecos ligado agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Teatro

de Bonecos

Mario ABTB

Beto ABTB em todos os niacuteveis nacionais e regionais que uma organizaccedilatildeo que tem uma

ceacutelula nacional e depois vai dividindo em pequenas ceacutelulas regionais neacute Entatildeo Satildeo Paulo era

uma unidade vamos dizer assim mas era uma coisa nacional A ABTB era muito ativa

118

La Barraca Companhia de teatro de bonecos da qual fez parte o poeta Federico Garcia Lorca 119

Ariel Bufano (1931-1992) Um dos nomes mais importantes do teatro de bonecos argentino Diretor e

manipulador participou de diversas iniciativas artiacutesticas entre as quais o Teatro Rodante e o Grupo de Titiriteros

del Teatro San Martin 120

Andreeta muito provavelmente se refere ao festival de teatro em Curitiba acontecido em 1974 onde Histoacuteria

de Lenccedilos e Ventos fez sua estreacuteia A pesquisa ainda natildeo conseguiu apurar se Gabrieli esteve de fato presente

nesse festival 121

Autor e diretor teatral pernambucano fundador do grupo Evoluccedilatildeo e autor de peccedilas como O auto das sete luas

de barro e A noite dos tambores silenciosos 122

Dadi Pudumjee Artista de teatro de animaccedilatildeo indiano atual presidente da UNIMA (Union Internationale de

la Marionnette)

378

entatildeo esse cara procura a ABTB e marca uma reuniatildeo com todos os bonequeiros Ele trazia na

bagagem um convite quase aberto falando ldquoolha vai ter um festival na Iacutendia em setembro de

1990 e quem quiser eu queria saber quem quer ir Mas o estado indiano natildeo daacute nada natildeo daacute

passagem natildeo daacute cachecirc soacute posso dar hospedagem pra vocecircs laacute alimentaccedilatildeo e hospedagem

chegando na Iacutendia vocecircs natildeo tem necessidade Mas o traslado e o cachecirc talrdquo Aiacute eu falei

ldquopocirc Beto eu queria ir pra Iacutendia neacute carardquo O Beto nunca tinha saiacutedo do paiacutes e eu jaacute tinha

viajado bastante vaacuterios paiacuteses da Europa vaacuterios Para Nova York tinha morado na Europa

Mas o Beto nunca tinha saiacutedo ele tinha uma fissura de sair desgraccedilada E ateacute entatildeo a gente soacute

fazia um espetaacuteculo que era O Vaqueiro e o Bicho Froxo dos anos com a Doroty E essa

coisa fazendo interior de Satildeo Paulo interior do Brasil participando de festivais jaacute Coritiba

ndash de bonecos neacute O de Canela E aiacute natildeo era o nome Pia Fraus tambeacutem A gente comeccedilou

com a Doroty e chamava-se Crianccedila faz arte O nosso primeiro momento quando a gente saiu

da Doroty em [19]86 que eu me desliguei e o Beto veio em [19]87 a gente chamou-se

Brinque Com Arte que era um nome muito brega mas a gente se chamou assim porque o

nosso foco ainda era muito a educaccedilatildeo A gente dava muito treinamento para professor fazia

brinquedos e fazia teatro Aiacute depois a gente comeccedilou a se chamar Beto Beto amp Cia porque

sempre ouvia falar ldquoos Betos os Betosrdquo Eram dois Betos Ah entatildeo vamos nos chamar

Beto Beto amp Cia jaacute que somos dois Betos [19]89 eacute um ano muito importante para a gente A

gente conheceu esse indiano a gente estava dando um curso laacute na Oficina Cultural Trecircs Rios

em Satildeo Paulo que agora chama-se Oswald de Andrade Era uma oficina cultural muito em

voga na eacutepoca Joatildeozinho Trinta Gerald Thomas foi um momento em que muita gente legal

frequumlentou Eles nos chamaram pra dar um curso de teatro de bonecos Nesse curso ndash quem

estava organizando era a ABTB ndash se inscreveram vaacuterias pessoas Uma das pessoas que se

inscreveram foi o Domingos Montagner que foi nosso aluno durante dois meses Mas

imediatamente ele jaacute se transformou em nosso companheiro de trabalho Assim entendeu

Ele entre aluno e companheiro foi muito raacutepido o estaacutegio do Domingos Ele pertenceu agrave Pia

Fraus por 11 anos Entatildeo em [19]89 aconteceu isso a gente foi convidado a ir para a Iacutendia e

a gente articulou junto com as Secretarias Estadual e Municipal [de Cultura] de Satildeo Paulo

Eles compraram o espetaacuteculo a gente adquiriu as passagens e foi foi para a Iacutendia O

Domingos estava comeccedilando a entrar ele natildeo foi Estava comeccedilando a ser um aluno mais

querido E quando a gente foi pra Iacutendia a gente conseguiu passar po Bilbao A gente

conseguiu uma passagem via Londres e aiacute tinha uma perna que vocecirc podia escolher na

Europa e eu escolhi Bilbao porque eu sabia que tinha um puta festival de bonecos [laacute]

naqueles anos Era muito forte era muito forte Em [19]90 era em [19]89 [19]87 [19]88

Era ldquoordquo festival de teatro de bonecos que tinha ndash depois [passou a ser o] de Charleville

[Meacuteziegraveres]123

ndash era o mais paulada que tinha era o de Bilbao Era alto niacutevel A gente passou

laacute e eu consegui o contato da mulher que organizava o festival aiacute chavecou chavecou

chavecou Acho que foi na volta jaacute da Iacutendia Falou ldquoacabamos de voltar da Iacutendia fizemos

um espetaacuteculordquo Era setembro o festival dela era novembro era perto do natal E natildeo tinha

fax natildeo tinha e-mail natildeo tinha nada A gente chavecou chavecou chavecou falou falou

falou e encontrou com ela no aeroporto Voltamos para o Brasil e depois de um mecircs que a

gente estava aqui comecinho de outubro assim chegou a carta-convite dela Falando ldquoentatildeo

eu convido vocecircs pra voltarem para Bilbao em novembrordquo A gente voltou pra Bilbao em

novembro ainda sem o Domingos ele tambeacutem natildeo foi nessa primeira Mas foi quando a

gente teve contato Laacute na Iacutendia era um festival grande tambeacutem tinham muitos grupos

dezenas de grupos Laacute a gente viu teatro de bonecos do Vietnatilde da Coreacuteia da Tailacircndia

pegamos mais dessa levada assim Foi interessante influenciou Mas quando a gente caiu em

123

A cidade de Charleville-Meacuteziegraveres na Franccedila aleacutem de abrigar a sede da UNIMA Internationale e o Institut

International de la Marionnette eacute onde ocorre a cada trecircs anos aquele que eacute considerado o mais importante

festival dedicado ao teatro de animaccedilatildeo

379

Bilbao aiacute foi um corte na nossa vida Assim eacute claro eacute preciso setembro de 90 assim que a

gente chega e vai pro festival de Bilbao apresentando O Vaqueiro e o Bicho Froxo fizemos

vaacuterias cidades a Concha de la Casa que era a organizadora distribuiacutea muito O circuito de

espetaacuteculo dela era muito generoso Ela distribuiu a gente mas a gente assistiu muito da

programaccedilatildeo de Bilbao E a gente entendeu assim ali mudou Mudou totalmente mudou o

foco do grupo mudou o olhar sobre teatro de bonecos mudou o interesse Entatildeo a gente viu

espetaacuteculos super contemporacircneos de teatro de bonecos com vaacuterias temaacuteticas Nesse

momento deixa de ser tatildeo focado na arte popular brasileira o leque de interesses se expande

imediatamente A gente chega e vecirc espetaacuteculos com vaacuterias preocupaccedilotildees Muito variado A

gente entende tambeacutem a logiacutestica que movia as companhias europeacuteias A gente vecirc o cara

chegar com a sua van tudo dentro de caixas que satildeo praacuteticas e quando entram no teatro elas

abrem se montam Desde a loacutegica da montagem da praticidade do espetaacuteculo O Brasil

ainda natildeo tinha um circuito de espetaacuteculos em [19]90 tatildeo dinacircmico quanto agora de SESC

de SESI de festivais Vocecirc fazia o espetaacuteculo sem a preocupaccedilatildeo com a locomoccedilatildeo natildeo tava

intriacutenseca nele A gente viu esses dois fatos os temas e a teacutecnica Como se lida com o

espetaacuteculo porque vocecirc chegava no dia apresentava no [proacuteprio] dia e aiacute ia embora no dia

Desmontava colocava dentro da van para no outro dia estar fazendo em outro lugar Isso

impactou profundamente nosso modo de pensar teatro de bonecos e quando a gente volta pro

Brasil a gente faz o primeiro espetaacuteculo diferente do que a gente tinha pensado que se chama

O Olho da Rua que eacute bem urbano Satildeo pessoas meio perdidas na cidade agrave noite satildeo casos

meio bizarros satildeo bonecos jaacute com outras teacutecnicas bunraku e tal Essa passagem pela Europa

faz assim ldquoPucrdquo muda a chave E o Domingos ainda chega Quando o Domingos chegou ele

se incomodou muito com o nome ldquopocirc Beto Beto e Cia natildeo representa mais o que a gente eacuterdquo

E ele que sugere a mudanccedila de nome ele encabeccedila o movimento de mudar de nome e eacute ele

quem sugere o nome Pia Fraus

Mario - Pia Fraus eacute

Beto - Que eacute latim uma mentira contada com boas intenccedilotildees

Mario - Ah taacute

Beto - Ele vai num dicionaacuterio de latim e elenca vaacuterias possibilidades mas fala oacute minha

preferida eacute essa aqui Pia Fraus Que tem conteuacutedo e tem sonoridade Parece uma coisa

germacircnica mas ela eacute latina E o Domingos eacute que traz a coisa do circo pra Pia Fraus ele era

um atleta tinha interesse em circo tambeacutem Estava comeccedilando a ter interesse no circo e ele

traz Aiacute eu faccedilo um porquinho de curso com ele durante um ano de circo eu pratico um pouco

circo tambeacutem Mas o Domingos eacute quem introduz o nome Pia Fraus na nossa vida e o

interesse pelo circo Aiacute a gente fez O Olho da Rua fizemos uma turnecirc tambeacutem a gente

comeccedilou a ir muito pra Europa daiacute A gente foi pra Sueacutecia pessoas que a gente conheceu laacute

em Bilbao nos levaram pra Sueacutecia levamos o espetaacuteculo Olho da Rua Estivemos na Sueacutecia e

estivemos em Portugal Em Portugal foi muito fraca a nossa apresentaccedilatildeo E a gente sentiu

que a gente precisava remodelar ele [o espetaacuteculo] A gente voltou para o Brasil e convidou o

Osvaldo Gabrieli124

que eacute do XPTO pra remodelar o Olho da Rua Ele redirigiu [o

espetaacuteculo Olho da Rua] a gente fez uma temporada no Centro Cultural [Satildeo Paulo] isso era

[19]92 Fizemos outra viagem foi bem foi bem melhor voltamos Entatildeo procuramos ele e

dissemos ldquodirige o proacuteximo espetaacuteculo nosso da Pia Frausrdquo Ia chamar Triz Aiacute ele

comentou ldquoEacute o seguinte cara o XPTO taacute num momento bem difiacutecil jaacute passou-se muito

tempo noacutes fizemos Coquetel Clown mas a gente natildeo consegue avanccedilar Vocecirc [Beto

Andreeta] jaacute foi meu aluno e estatildeo me chamando pra dirigir Em vez de eu fazer um

124

Osvaldo Gabrieli artista argentino radicado em Satildeo Paulo fundador e diretor artiacutestico do grupo XPTO

380

espetaacuteculo novo com vocecircs eu proponho a gente fazer uma co produccedilatildeo XPTO e Pia Fraus

vocecircs se incorporamrdquo Claro que nesse momento a gente era uma marca muito insipiente a

gente estava comeccedilando e o XPTO estava no auge O XPTO chegou bombando Chegou em

Satildeo Paulo e foi muito novidoso assim em [19]84 ele foi a puta novidade Enquanto eu estava

laacute na Boliacutevia com meu primo ele estava bombando em Satildeo Paulo Entatildeo 10 anos depois 9

anos depois o XPTO estava muito forte e a gente estava se firmando ainda procurando uma

linguagem Tinha lidado com uma linguagem muito clara que eacute era a arte popular e agora

comeccedilava a se interessar por outras coisas e o Osvaldo convida Aiacute quando o Osvaldo

convidou a gente quase praticamente abandonou a marca Pia Fraus durante dois anos A

imprensa natildeo leu como uma co produccedilatildeo muitos poucos jornais Jornal da Tarde leu mas

saiu muito o XPTO encabeccedilando o projeto Entatildeo parecia ser um projeto do XPTO mas era

claramente um projeto de co produccedilatildeo

Entatildeo a gente ficou dois anos com o Osvaldo fazendo o Babel Bum a gente fez um

remontagem do Coquetel Clown e a gente fez uma montagem de um espetaacuteculo que se

chamava Aquelarre 2000 La Luna era um evento E fizemos tambeacutem um evento grande com

o [La] Fura Dels Baus125

com o Oacutepera Volant chama-se Oacutepera Mundi

Mario - Oacutepera Mundi lembro

Beto - Tambeacutem foi um ponto de mudanccedila na nossa carreira porque a gente aprendeu a fazer

inflaacuteveis coisa que depois veio caracterizar o projeto

Mario - Que foi um momento importante

Beto - A gente aprendeu ali a gente observou olha que legal Porque coincidiu A gente

tinha feito dois anos com o Osvaldo no XPTO A perspectiva deles e a nossa eram um pouco

divergentes Eram linhas que tinham um diaacutelogo mas eram divergentes Principalmente a

gestatildeo era divergente O XPTO eacute um grupo fantaacutestico mas eacute personalista Ele eacute personalizado

na figura do Osvaldo O Osvaldo ele tem um mando esteacutetico eacutetico atuante no XPTO muito

forte Entatildeo naquele momento a gente praticamente ameaccedilou essa hegemonia dele Porque eu

era eu sou muito o cara que representa a ideacuteia Passou a ser eu neacute E realmente criou-se um

congestionamento na relaccedilatildeo e a uacutenica soluccedilatildeo foi a dissoluccedilatildeo de novo que foi muito legal

Para noacutes foi Deus que mandou Porque a gente separa do XPTO no final de [19]95 Entatildeo a

gente fica [19]93 [19]94 [19]95 no XPTO Em [19]90 [19]91 e [19]92 a gente faz o Olho

da Rua E o Vaqueiro Bicho-Froxo tambeacutem com o Domingos No final de [19]95 o Osvaldo

abre uma oportunidade muita grande para ele [Osvaldo] no SESI de Satildeo Paulo onde ele vai

montar grandes espetaacuteculos Esse eacute um momento mais conveniente pra ele romper com a

gente porque a gente que gerenciava eles e eles tinham um momento de natildeo necessidade de

gestatildeo porque ele fechou um grande projeto e ia dar um ano de trabalho pra eles Entatildeo ele

aproveito tambeacutem isso e forccedilou um conflito mais forte porque ele estava meio tranquilo daiacute a

gente saiu Quando a gente saiu final de [19]95 a gente comeccedilou o processo de montagem

de um espetaacuteculo que foi marcante determinante na nossa carreira completamente que eacute o

segundo ponto de virada muito forte Porque os inflaacuteveis ficam um pouco adormecido ainda

mas o ponto mesmo de virada total da Pia Fraus eacute o espetaacuteculo que chama-se Flor de

Obsessatildeo

1996 A gente estreou em 1996 A gente desfez com o Osvaldo comeccedilou a montar o

Domingos foi morar na Espanha natildeo conseguiu e voltou Porque a gente fez vaacuterias turnecircs

com o XPTO pela Europa E a gente nesse meio tempo tambeacutem ia com a Pia Fraus Ia

voltava A gente tinha mais experiecircncia internacional do que o XPTO nesse momento jaacute A

gente fez o Flor de Obsessatildeo que era sobre o Nelson Rodrigues a gente foi por incriacutevel que

125

La Fura Dels Baus Companhia teatral catalatilde fundada em 1979 que explora elementos do teatro de rua com o

aproveitamento de espaccedilos inusitados e variaccedilotildees de modos de relaccedilatildeo do espetaacuteculo com a plateia

381

pareccedila em 1996 o primeiro grupo brasileiro a lidar com uma temaacutetica polecircmica vamos dizer

assim como Nelson Rodrigues A gente eacute primeiro grupo brasileiro [de teatro de animaccedilatildeo]

que aborda o Nelson Rodrigues com bonecos E eacute incriacutevel que depois da gente quase tambeacutem

natildeo tem Eacute impressionante E a gente trabalhou o universo do Nelson Rodrigues tanto que se

chama Flor de Obsessatildeo A gente lanccedilou nosso espetaacuteculo antes que o Rui Castro lanccedilasse o

dele126

que vem a se chamar Flor de Obsessatildeo tambeacutem Ele lanccedilou O Anjo Pornograacutefico que

nos ajudou muito na concepccedilatildeo do espetaacuteculo Ele eacute que o ressuscita Ele natildeo neacute Eacute o

Antunes na verdade o Antunes que ressuscita o

Mario - Paraiacuteso Zona Norte127

Beto - O Eterno Retorno ele que ressuscita o Nelson pro Brasil

Mario - Que habilita o Nelson

Beto - Habilita total E aiacute eacute isso a gente faz o Flor de Obsessatildeo e a gente chega novamente no

que no que vem a caracteriza a linguagem de teatro adulto da Pia Fraus Essa coisa mais

visual [usando] pouca[s] palavra[s] meio tenso E faz uma lista de espetaacuteculos nesse sentido

O uacuteltimo que eacute esse que vocecirc vai ver hoje o Primeiras Rosas tem o 100 Shakespeare tem o

Rosas Vermelhas Aiacute vem o Farsa Quixotesca e tem o Nelson Rodrigues que eacute o Flor de

Obsessatildeo O Flor de Obsessatildeo ajuda muito a gente a conseguir [projeccedilatildeo] A gente ganha um

precircmio da Cultura Inglesa o Festival da Cultura Inglesa em Satildeo Paulo E o precircmio era ira

para Edimburgo o festival de Edimburgo e apresentar em Londres e em Edimburgo E em

Edimburgo a gente ganhou o precircmio de melhor espetaacuteculo estrangeiro com o Flor de

Obsessatildeo Aiacute a miacutedia brasileira falou ldquopocirc os caras satildeo legaisrdquo entendeu Entatildeo a gente teve

que ser aceito fora pra que a Folha de Satildeo Paulo que eacute o nosso jornal que nesse momento

ditava opiniatildeo cultural de Satildeo Paulo

Mario - Comeccedilar a prestar atenccedilatildeo

Beto - Presta atenccedilatildeo faz uma criacutetica beliacutessima abre um espaccedilo e a gente eacute aceito A gente

vai pro festival de Curitiba eacute eleito entre os 5 melhores espetaacuteculos do festival de Coritiba ali

em [19]97 eu acho O Flor de Obsessatildeo eacute o espetaacuteculo que nos coloca num outro patamar de

como as pessoas nos olham de como o metier cultural desde o estado que gerencia ateacute do

proacuteprio quem faz e enxerga a Pia Fraus a partir de [19]96 Eu tenho uma revista que tem todo

esse histoacuterico laacute

Mario - Duas questotildees que satildeo centrais A Pia Fraus como uma companhia que comeccedila que

tem o seu iniacutecio na deacutecada de [19]80 eacute Eu acho que ela vivencia ou pelo presencia porque

eu acho que a Pia Fraus mesmo antes de ser Pia Fraus jaacute surge com o tipo de olho mais pra

frente A companhia comeccedila com vocecirc e o Beto [Lima] que satildeo pessoas que tecircm formaccedilatildeo

em teatro e jaacute desde o iniacutecio tecircm o interesse por teatro de bonecos Mas pelo o que eu

consigo perceber tecircm o interesse por educaccedilatildeo

Beto - No comecinho

Mario - Outras pessoas chegaram agrave Pia Fraus A Pia Fraus hoje em dia eacute uma companhia

com uma quantidade de componentes completamente diferentes Uma outra configuraccedilatildeo

126

Beto aqui se refere ao livro editado pela Companhia das Letras (1ordf ediccedilatildeo de 1997) com frases do dramaturgo

compiladas pelo jornalista e escritor Ruy Castro tambeacutem autor da biografia de Neacutelson intitulada O anjo

pornograacutefico 127

Espetaacuteculo idealizado e encenado por Antunes Filho estreado em 1989 A peccedila usa os textos das peccedilas de

Nelson Rodrigues A Falecida e Os sete gatinhos Antes disso em 1981 outra montagem feita por Antunes frente

ao CPT ndash Centro de Pesquisa Teatral eacute considerada como um marco de resgate do dramaturgo para o teatro

brasileiro Trata-se de Nelson Rodrigues ndash O eterno retorno que menciona os seguintes textos da obra

rodrigueana Os Sete Gatinhos Beijo no Asfalto Toda Nudez Seraacute Castigada e Aacutelbum de Famiacutelia

382

Vocecirc consegue fazer um paralelo em termos do perfil de formaccedilatildeo o perfil teacutecnico que vocecirc

via dos integrantes da companhia no iniacutecio e agora As pessoas as pessoas que hoje em dia

fazem parte da companhia tecircm outro background de formaccedilatildeo

Beto - Eacute totalmente

Mario - E o que eacute isso Como era no iniacutecio e como eacute agora

Beto - A Pia Fraus eacute bem eacute bem o Brasil nas artes assim neacute Nessas duas deacutecadas trecircs

deacutecadas neacute Entatildeo jaacute faz trecircs deacutecadas neacute [Estamos] chegando perto dos 30 Entatildeo a gente

veio de um momento em que natildeo existia ainda a grande popularizaccedilatildeo das faculdades

privadas Para vocecirc estudar teatro em 1986 em niacutevel universitaacuterio deviam existir o curso da

ECA128

Talvez mais algum mas natildeo era uma coisa popular Vocecirc natildeo tinha opccedilotildees ao

acabar o coleacutegio naquela eacutepoca natildeo tinha esse leque de de possibilidades de formaccedilatildeo

acadecircmica de teatro No interesse de teatro Vocecirc tinha a EAD a Escola de Arte Dramaacutetica

que jaacute era dificiacutelimo pra entrar e era equivalente ao 2ordm grau e vocecirc tinha a ECA que era

Cinema e Artes Talvez alguma outra [escola] duas ou trecircs mas eram rariacutessimas no Brasil Se

eram rariacutessimas em Satildeo Paulo eram rariacutessimas no Brasil Entatildeo a possibilidade de vocecirc se

formar nesse ambiente teatral era miacutenimo Se vocecirc pegar provavelmente atores da minha

idade pra traacutes neacute de [19]50 pra traacutes vai ser rariacutessimo algueacutem que tenha o niacutevel de formaccedilatildeo

universitaacuteria em artes em teatro ou em danccedila em miacutemica ou em qualquer coisa Quase natildeo

existia Existia assim por exemplo pessoas que se formavam desde em engenharia

publicidade jornalismo migravam pras artes neacute Paulo Autran advogado Entatildeo

Mario - Joseacute Celso

Beto - Exatamente Entatildeo toda essa galera se forma geralmente em advocacia nas humanas

em alguma coisa e migra pro teatro Natildeo existia o processo de formaccedilatildeo ordenado

universitaacuterio ligado ao teatro Entatildeo na minha eacutepoca era muito usual pessoas que natildeo tinham

feito universidade estarem se dedicando ao teatro profissional E tambeacutem tinha uma demanda

e uma falta de estrutura do paiacutes vocecirc ministrava aulas oficinas Eu dei muito curso pra

professor pra municiar de material didaacutetico Eu dava muito curso de aplicaccedilatildeo de boneco

como vocecirc descobre um boneco como vocecirc faz um boneco o que vocecirc pode usar pra fazer

um boneco um monte de coisas assim Fazia esse tipo de formaccedilatildeo Ningueacutem me cobrava

formaccedilatildeo pra passar formaccedilatildeo neacute Eu sou completamente autodidata e o Beto tambeacutem O

Beto nem coleacutegio terminou o Beto parou no ginaacutesio olha que doido E eacute algo o

conhecimento vocecirc ia lendo ia absorvendo conversando ia vendo tal tal tal De uma

maneira autodidata mesmo Noacutes somos autodidatas Eu fiz esse pequeno curso dois anos

imagina E aulas eram esporaacutedicas sem meacutetodos Nunca estudei histoacuteria do teatro Eu estudei

por conta mas a gente nunca teve [um estudo formal] Natildeo frequumlentamos uma escola para

isso O que eu vejo hoje Entatildeo nosso perfil no comeccedilo ndash as pessoas que se interessavam

pela gente era soacute a gente mesmo A gente natildeo agregava ningueacutem Era eu o Beto e o

Domingos O Domingos jaacute tinha uma coisa da universidade

E quem mais se aproximava da companhia eu percebo que [eram] quem frequumlentava os

ambientes teatrais neacute O Ventoforte tinha muita gente que natildeo tinha formaccedilatildeo universitaacuteria

de teatro entatildeo natildeo existia Eram cursos paliativos era uma possibilidade de vocecirc estudar

Tinham algumas escolas um pouco mais E hoje eu sinto que a gente trabalha com muitos

jovens Realmente mudou muito o perfil da companhia jaacute natildeo eacute mais de uma pessoa soacute O

Beto foi embora Eu acho que todo o movimento de grupo brasileiro tem uma outra filosofia

128

A referecircncia aqui eacute agrave EAD ndash Escola de Artes Dramaacuteticas curso teacutecnico de formaccedilatildeo de atores relacionado

com a ECA ndash Escola de Comunicaccedilatildeo e Artes da USP que tambeacutem abriga um curso de graduaccedilatildeo universitaacuteria

em Teatro

383

hoje Um outro momento mais diverso do que era os anos [19]80 Perdeu esse caraacuteter

messiacircnico a ditadura militar natildeo tem mais Um monte de coisas neacute Os interesses satildeo

[outros] a sociedade mudou completamente nesses 30 anos Evoluiu Entatildeo hoje o que eu

percebo Quando eu abro uma audiccedilatildeo eu abro audiccedilotildees natildeo sistemaacuteticas mas a cada dois

anos eu estou abrindo Porque eu tenho um repertoacuterio e agraves vezes eu preciso renovar as

pessoas as pessoas vatildeo passando Quando eu abro se inscrevem 200 pessoas Impressionante

Agraves vezes 300 pessoas Aiacute eu seleciono 100 para entrevista Dessas 100 cara 95 satildeo formadas

em alguma coisa Das aacutereas Entatildeo tem por exemplo Artes do Corpo que tem a faculdade da

PUC laacute em Satildeo Paulo tem muita [gente] Tem muita gente formada em teatro pelo SENAC

tem muita gente de teatro do [Curso] Ceacutelia Helena que eacute outra escola tem muita gente de

faculdade vaacuterios Anhembi Morumbi Entatildeo o niacutevel de pessoas de formaccedilatildeo de pessoas

que se aproximam pra fazer teatro hoje eacute bem mais elevado as pessoas recebem mais

informaccedilatildeo elas cursam escolas mais sistematizadas neacute

Mario - Eu natildeo sei se vocecirc concorda comigo se natildeo concordar Beto

Beto - Eacute uma Eacute uma anaacutelise

Mario - Fica a vontade Parece que houve um momento em que pra vocecirc fazer teatro de

animaccedilatildeo no Brasil vocecirc [es]tava ou muito proacuteximo da experiecircncia com a escola ou vocecirc

partia de uma experiecircncia com artes visuais com escultura E parece que aleacutem do advento

da multiplicaccedilatildeo da formaccedilatildeo universitaacuteria dessa formaccedilatildeo parece que o perfil meacutedio migrou

um pouquinho da pessoa interessada em construccedilatildeo em escultura e passou um pouco mais

pra pessoa interessada na performance mesmo

Beto - Eacute com certeza

Mario - Vocecircs eu acho que natildeo vivenciaram tanto isso

Beto - A gente gosta de tudo isso A gente gosta de fazer a gente gosta de performar poreacutem

eacute uma geraccedilatildeo nossa que por exemplo o Sobrevento gosta de performar e gosta de construir

Ou gostou num momento no comeccedilo original

Mario - Por que vocecirc tem uma experiecircncia anterior dessa companhia que vocecirc diz que teve

com seu primo em que vocecircs jaacute faziam bonecos

Beto Faziacuteamos

Mario - Era o quecirc que tipo

Beto - Cara na verdade o Osvaldo quando eu fiz o curso com ele em [19]81 [19]82 ele era

um curso que jaacute trazia essa coisa ldquonatildeo o ator tem que estar presenterdquo A primeira peccedila que eu

montei foi O Retaacutebulo de Don Cristoacutebal129

era o poeta Entatildeo o que era ao curso do Osvaldo

Era um montagem e cada um escolhia um personagem e vamos fazer esse personagem

vamos construir Como vocecirc quer construir Ah eu quero com essa teacutecnica essa teacutecnica Ele

jaacute dava o panorama das teacutecnicas ele dava umas oficinas baacutesicas e vocecirc jaacute construiacutea um

boneco e depois ele te dava os toques de como mexer do que eacute como animar Como se

relacionar

Entatildeo quando eu saiacute com o Paco esse grupo a gente jaacute saiu com um ndash repertoacuterio natildeo ndash mas

uma companhia de 20 30 bonecos jaacute feitos A gente jaacute carregava nossos bauacutes jaacute era

Mario - O quecirc Luva

129

El Retablillo de Don Cristoacutebal escrita supostamente para bonecos por Federico Garcia Lorca

384

Beto - Luva basicamente luva e vara Luva e vara E alguma coisa de muppets130

assim

Mas essa coisa que a gente pratica muito hoje em dia que essa tal de manipulaccedilatildeo direta o

bunraku que vocecirc vai ver [no espetaacuteculo Primeiras Rosas] isso ningueacutem fazia Nessa eacutepoca

ningueacutem fazia soacute que realmente quem estava no Japatildeo ainda

Mario - De [19]90 pra caacute a coisa deu uma estourada

Beto - Eacute Aiacute os grupos do Japatildeo comeccedilaram a vir e mostrar todo mundo ldquoOpa que legalrdquo e

na verdade eacute uma teacutecnica razoavelmente simples muito simples Acho que tem algumas

complexas Aquelas que o Luis Andreacute brinca de chinecircs ali vocecirc tem que ter acho que uma

performance ateacute um pouco mais elaborada131

Uma que eu acho mais complexa mesmo eacute essa

das varinhas assim oacute que vocecirc mexe essa eacute foda132

Mario - Essa eu nunca cheguei perto

Beto - O cara tem que ser fera Ter realmente o domiacutenio do tic-tic-tic [onomatopeacuteia] essa eu

respeito quem faz Agora o fantoche o bunraku a manipulaccedilatildeo direta elas satildeo mais simples

mesmo como teacutecnica Elas satildeo mais possiacuteveis Eacute uma teacutecnica que vocecirc vai laacute e se vocecirc se

esmerar nela vocecirc desempenha

Mario - Se vocecirc se coloca como ator na relaccedilatildeo com o boneco parece que a coisa anda um

pouquinho neacute

Beto - Eacute exatamente Entatildeo a coisa realmente migrou Eu acho que essa anaacutelise que vocecirc faz

eacute correta Num momento esteve super vinculado agrave coisa da educaccedilatildeo quase 100 das pessoas

eram quase que obrigadas a passar pela educaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o boneco Todo o mundo

tinha um pezinho na educaccedilatildeo uns mais outros menos mas tinha sim muito Num momento

a educaccedilatildeo se apropriou do boneco tambeacutem O boneco em Satildeo Paulo onde tinha era nas

bibliotecas puacuteblicas eram as bibliotecaacuterias que faziam um pouco de boneco Eacute o comeccedilo do

profissionalismo neacute Eu tenho o primeiro DRT neacute registro profissional do estado de Satildeo

Paulo primeiro de [19]84 de ator-titireteiro

Mario - Ah eacute

Beto - Eu sou o primeiro ator-titiriteiro

Mario - Descrito em carteira

Beto - Descrito em carteira de trabalho A minha classificaccedilatildeo diante do Ministeacuterio do

Trabalho eacute de ator-titiriteiro estaacute na minha carteira de trabalho E esse tiacutetulo e o de nuacutemero

001 Entatildeo eacute engraccedilado

Mario - Eacute fabuloso

Beto - Fantaacutestico neacute Em [19]84

Mario - Beto uacuteltima questatildeo Alguns trabalhos da Pia Fraus foram montados em espaccedilos

natildeo convencionais

Beto - Foram Vaacuterios

130

Andreeta se refere com esse termo a bonecos calccedilados agrave semelhanccedila de luvas mas com bocas articulada e

usualmente varas para movimentaccedilatildeo de braccedilos 131

Andreeta se refere a Luiz Andreacute Cherubini membro e fundador do Grupo Sobrevento e do espetaacuteculo Cadecirc

meu heroacutei no qual se trabalha um tipo de luva de origem chinesa da proviacutencia de Fujian e que tem em Yang

Feng um expoente conhecido no ocidente 132

Natildeo reconheci a teacutecnica mencionada por Andreeta

385

Mario - Natildeo sei se eu estou enganado me corrija se estiver Muitos desses espetaacuteculos

acabaram sofrendo uma migraccedilatildeo do espaccedilo aberto pro palco agrave italiana ou sofreram

adaptaccedilotildees para serem apresentados com essa frontalidade do palco agrave italiana Se perde

alguma coisa se ganha alguma coisa

Beto - Na verdade a Pia Fraus chega a um momento em que diversifica o tipo de montagem

[agrave qual se dedica] A gente vem traccedilando um caminho e percebe num determinado momento

que a gente fala assim meu a gente natildeo quer mais dar aula natildeo aguumlento mais ver crianccedila na

minha frente dando aula enchi o saco de professor enchi o saco de crianccedila completamente

Gosto de fazer espetaacuteculos pra eles natildeo o processo educacional Isso passa a desinteressar

totalmente Entatildeo nesse momento a gente fala que soacute quer fazer espetaacuteculo Meu pra fazer

soacute espetaacuteculo a base compradora de espetaacuteculo na metade dos anos [19]90 [19]93 [19]94

que eacute quando a gente rompe total com a educaccedilatildeo ndash rompe no sentido de desinteresse

nenhum problema A base de compra ali naquele momento eacute a mesma Entatildeo eacute SESI SESC

algumas Secretarias [de Educaccedilatildeo e de Cultura de estados e municiacutepios] A gente fala o que a

gente pode fazer Tem que ter um supermercado porque satildeo os mesmos caras que vatildeo

comprar Entatildeo a gente tem que ter um monte de formas de espetaacuteculos a gente tem que ter

um para crianccedila um para adulto um para rua um para num sei o quecirc E o que nos leva a

diversificaccedilatildeo da linguagem na verdade como uma matriz como suporte eacute a necessidade da

sobrevivecircncia em cima do espetaacuteculo Eacute engraccedilado isso neacute A gente eacute muito praacutetico na

verdade Tem o mercado que compra sim Mas ele compra um pouco rua um pouco [para]

crianccedila um pouco [para] adulto entatildeo vamos fazer um pouco de cada um E na verdade os

espetaacuteculos que depois migram pra rua a gente na nossa carreira o primeiro que foi criado

pra outro suporte a natildeo ser o teatro tradicional italiano na verdade eacute o Navegadores que eacute o

que a gente fez em uma piscina Que eacute uma encomenda do SESC e a gente fez o espetaacuteculo na

aacutegua dentro da aacutegua Uma piscina grande um monte de gente circo em cima eacute lindo o

espetaacuteculo A gente fez soacute no SESC Consolaccedilatildeo foi para noacutes foi um momento muito bom de

miacutedia Isso jaacute eacute [19]99 Em [19]96 tambeacutem a gente teve uma encomenda que foi quando a

gente aprendeu a fazer os inflaacuteveis Nossa primeira experiecircncia de inflaacuteveis A gente fez o

Flor de Obsessatildeo em [19]96 e a gente fez os inflaacuteveis em [19]96 tambeacutem E a gente [havia

visto] essa teacutecnica no final de [19]95 Entatildeo demorou um ano pra resultar num espetaacuteculo

Porque a Orquestra Sinfocircnica133

convidou a gente pra fazer um espetaacuteculo junto no

Ibirapuera [de] circo e de bonecos Bonecos grandes no parque vamos fazer um elefante do

circo vamos fazer uma girafa com muacutesica claacutessica e foi daiacute que nasceu o Gigantes de Ar

que a gente faz ateacute hoje tem 14 anos Daiacute comeccedilou o inflaacutevel Mas depois desse momento do

parque a gente migrou com isso pra dentro do teatro A gente jaacute foi imediatamente para dentro

do teatro E a gente fez todos os espetaacuteculos fora os de outro suporte que vocecirc estava

falando O primeiro que a gente faz pensado realmente pra fora [do teatro convencional] eacute o

Navegadores que eacute [sobre a] aacutegua Esse a gente nunca conseguiu levar pra outro ambiente a

natildeo ser a aacutegua entatildeo ele nasceu e ficou laacute O que aconteceu eacute que a gente fez o Gigantes de

Ar e o Bichos do Brasil na verdade os dois para teatro e a gente percebeu que dava pra

migrar pra rua Porque por incriacutevel que pareccedila eacute uma outra lacuna graccedilas a Deus Deus a

conserve [risos] os bonequeiros satildeo muito lentos Eles satildeo uma classe eacute impressionante isso

dentro das artes eles satildeo os mais lentos possiacuteveis Como temaacutetica Eles tatildeo ficando em dia

como teacutecnica Mas as temaacuteticas satildeo muito tiacutemidas ainda no meu entendimento Eacute muito

pouco amplo neacute Natildeo tem um espetaacuteculo bizarro mesmo pra valer pra fuder Natildeo tem umas

coisas que quebrem paradigmas comportamentais natildeo tem Esteacuteticos tambeacutem natildeo eacute tudo

muito comportado E de formato Por exemplo a gente jaacute abriu o festival de Canela de rua

Abriu natildeo mas participou de Canela na rua juro pra vocecirc acho que umas 4 vezes com o

133

Beto refere-se ao espetaacuteculo chamado Sinfinia Circense (1996) feita em parceria com a Orquestra

Experimental de Repertoacuterio com regecircncia de Jamil Maluf

386

Gigantes de Ar e umas 4 vezes com o Bicho do Brasil A gente jaacute abriu o Festival do Lelo

[Silva] em Belo Horizonte134

duas vezes Uma vez com o Gigantes de Ar e uma vez com o

Bichos do Brasil A gente jaacute abriu o Festival Espetacular de Bonecos laacute de Curitiba duas ou

trecircs vezes com esses mesmos espetaacuteculos Entatildeo a gente volta reiteradamente nos lugares

porque o Brasil adora espetaacuteculos festivos feitos na rua e o teatro de bonecos natildeo provecirc esse

tipo de espetaacuteculo Entatildeo a gente trabalha muito tipo muitas vezes nos mesmos lugares

Festival internacional tambeacutem porque vocecirc consegue fazer na rua o Bichos do Brasil a gente

fez jaacute fez pra meu 5 6 8 mil pessoas E ele nasceu pra uma sala como essa isso que eacute muito

doido Aiacute ele foi pra rua e a gente soacute fez crescer um pouco a galinha cresceu a onccedila e foi um

abraccedilo oacute funciona daacute certo O Brasil tem uma carecircncia na onda do teatro de bonecos nesse

formato que pode fazer na rua que eacute a abertura dos eventos entendeu Os eventos precisam

se natildeo da abertura de um eacute um passar pela rua trabalhar com a comunidade na rua A gente

agora estaacute fazendo o terceiro [espetaacuteculo de rua com inflaacuteveis] pensando no terceiro

Uilson - Eu queria [fazer] soacute pergunta Uma coisa A relaccedilatildeo do movimento no ano passado

com o pessoal da Brava Cia que a Pia Fraus tambeacutem participou em Satildeo Paulo no dia 22 de

marccedilo

Beto - A gente natildeo participou desse natildeo

Uilson - Vocecircs natildeo participaram natildeo

Beto - Natildeo A Pia Fraus o uacuteltimo movimento digno de nota que a gente participou

politicamente falando eacute o Arte contra a Barbaacuterie Que eacute o projeto que que chega a dar na Lei

de Fomento na cidade Entatildeo o Arte contra a Barbaacuterie se estabeleceu com 10 grupos no

comeccedilo No primeiro ano satildeo dez ou doze grupos conversando entre si e a gente eacute um desses

dez ou doze grupos A gente eacute da matriz total do Arte contra a Barbaacuterie Depois desse

momento pra falar a verdade [eu] me desinteressei bastante da articulaccedilatildeo social em torno do

teatro que eacute uma falha da companhia na verdade A gente ficou muito competente como

gestatildeo A gente passa a ter um monte de espetaacuteculos A gente passa a ser um grupo de

repertoacuterio de fato a partir de 2002 que a gente estaacute fazendo um puta de um espetaacuteculo de

sucesso que eacute o Bichos do Brasil no teatro e aiacute convidam a gente pra ir pros Estados Unidos

com o mesmo espetaacuteculo Falei ldquomeu natildeo tem jeito a natildeo ser duplicarrdquo Quando a gente

duplicou a gente chamou uma audiccedilatildeo apareceu um monte de gente [A gente] fez os

bonecos de novo do Bichos do Brasil e falamos ldquooacute vocecircs ficam aqui fazendo no nosso

lugar a gente vai ali nos Estados Unidos e voltardquo Ficou laacute 15 dias fazendo isso eacute o outro

espetaacuteculo voltamos e quando a gente voltou o puacuteblico natildeo tinha caiacutedo o espetaacuteculo

continuava lotando e a gente falou ldquopocirc olha soacuterdquo Entatildeo a gente pode comeccedila a vender

porque a gente soacute vendia o presencial Era eu e o Beto [Lima] a Pia Fraus era onde estava eu

o Beto e o Domingos Depois o Domingos saiu e aiacute o Beto Era onde estava eu e o Beto A

gente percebeu que podia transcender esse fato entendeu Entatildeo pra mim eacute uma quarta ou

quinta quebra no nosso caminho eacute 2002 quando a gente percebe que pode ter vaacuterios

espetaacuteculos Tem dias em que a gente estaacute em cinco lugares diferentes Que a gente hoje estaacute

fazendo oito espetaacuteculos diferentes de repertoacuterio Mas ativo pra valer satildeo cinco E tem dia

que estatildeo os cinco fazendo um em cada canto Tem cinco Pia Fraus continua com a mesma

histoacuteria assim mas a gente perdeu a relaccedilatildeo com o inteacuterprete vamos dizer assim O grupo jaacute

natildeo depende do inteacuterprete ele depende da linguagem mesmo O que a gente leva pra frente eacute

uma concepccedilatildeo um jeito de fazer teatro com uma visatildeo e natildeo mais o inteacuterprete O inteacuterprete

natildeo eacute que ele eacute indiferente porque o padratildeo de qualidade quem daacute eacute o cara Mas o trabalho

134

Beto se refere aqui ao FITB Festival Internacional de Teatro de Bonecos de Belo Horizonte mostra anual

idealizada e produzida por Lelo Silva e Adriana Focas membros fundadores da Companhia Catibrum de teatro

de bonecos

387

natildeo se baseia tipo onde taacute o Oficina [Uzyna Ozona] estaacute o Joseacute Celso onde estaacute o

Parlapatotildees135

estatildeo o Hugo [Possolo] e o Raul [Barretto] A gente natildeo Onde eu natildeo estou a

Pia Fraus estaacute igual Eacute rariacutessimo eu vir na verdade Fazia meses que eu natildeo vinha a esse

espetaacuteculo e o grupo estaacute fazendo Acabou de fazer vinte espetaacuteculos desse no CEU136

Eu

natildeo fui a nenhum e fizeram tudo bem Entatildeo despersonalisou eacute um modelo de grupo que

natildeo eacute muito usual no Brasil Geralmente eacute mais personalizado A gente virou quase uma

marca quase um modo de fazer teatro

Mario - Vocecirc fala que eacute a linguagem neacute A linguagem eacute a marca a presenccedila da linguagem

Beto - Exatamente

Mario - Essa visualidade essa caracteriacutestica vamos dizer assim visual espetacular que eacute o

que determina

Beto - E tambeacutem tem uma coisa assim enquanto existia o Beto que foi o diretor de arte o

tempo todo dos 21 anos que ele esteve com a Pia Fraus que a Pia Fraus existiu e ele tava

vivo ele dirigiu artisticamente todos os espetaacuteculos no sentido do visual do conceito visual

Eu estabeleccedilo com o Beto o conceito visual e o Beto executa o conceito visual O Beto assina

como artista plaacutestico todos os espetaacuteculos da Pia Fraus que eacute aonde a Pia Fraus estabelece

esse jeito visual de fazer teatro A partir daiacute quando o Beto vai embora esse papel de quem

daacute a cara visual da Pia Fraus muda tambeacutem Por exemplo esse espetaacuteculo137

eacute um livro de um

cara do Michelle Iacoca que o Sidnei [Caria] transpocircs para o boneco os bonecos do cara

Entatildeo no fundo quem daacute as artes plaacutesticas desse espetaacuteculo eacute o Michelle eacute o autor mas

quem faz eacute o Sidnei os bonecos Aiacute [o Sidnei] jaacute fez outros espetaacuteculos e agora natildeo existe

mais um artista que daacute a cara a Pia Fraus jaacute eacute esse conceito do teatro com imagem muito

forte mesmo dentro do teatro de bonecos eacute uma coisa que a gente forccedila na imagem

entendeu

Mario - Entatildeo o Primeiras Rosas natildeo eacute o primeiro esforccedilo da Pia Fraus nesse sentido de

Beto - Natildeo

Mario - De aceitar colaboraccedilotildees muacuteltiplas

Beto - Quando a gente convida o Osvaldo pra refazer o O Olho da Rua comeccedila isso se

inaugura com o Osvaldo

Mario - Com o Osvaldo eacute verdade

Beto - Depois do Osvaldo a gente quase natildeo dirige mais espetaacuteculos sozinhos Sempre eacute co-

produccedilatildeo a gente chama coreoacutegrafo a gente chama iluminador a gente chama sonoplasta a

gente chama criadores de trilha diretores a gente passar a ser eacute o que eu sou hoje com a Pia

Fraus eu o Beto eacuteramos pra Pia Fraus e eu continuo sendo eacute o diretor artiacutestico da

companhia ndash da ideacuteia Pia Fraus Mas a ideacuteia Pia Fraus pra se estabelecer ele passa por mim

soacute como conceito Depois eu agrego esses outros autores artistas atores e diretores que

fazem essa linguagem Ela eacute uma linguagem resultante de colaboraccedilotildees Ela natildeo tem mais

uma Jaacute era resultante de colaboraccedilotildees mais no niacutevel da direccedilatildeo da iluminaccedilatildeo da

sonorizaccedilatildeo Mas quando o Beto parte aiacute ateacute o que ele respondia que eram as artes plaacutesticas

135

Parlapatotildees Patifes e Paspalhotildees eacute uma companhia paulista de comeacutedia e palhaccedilaria fundada por Hugo

Possolo e Raul Barretto 136

CEU ndash Centro Educacional Integrado Projeto de centros de ensino da Prefeitura da Cidade de Satildeo Paulo que

conta com programas de compra e circulaccedilatildeo de espetaacuteculos para os seus alunos 137

A referecircncia eacute ao espetaacuteculo As aventuras de Bambolina A Pia Fraus apresentou no Festival ANIMAUDI de

2001 dois espetaacuteculos As aventuras de Bambolina para crianccedilas e Primeiras Rosas para adultos

388

aiacute tambeacutem passa a ser colaborativo cada vez eacute um artista que responde Por exemplo o

[espetaacuteculo] que vocecirc vai ver hoje [Primeiras Rosas] eacute que ele natildeo foi percebido como tal

natildeo foi falado como tal mas eacute um espetaacuteculo interessante na sua concepccedilatildeo Porque satildeo

quatro histoacuterias do Guimaratildees Rosa com quatro diretores [sendo um] para cada histoacuteria Eu

fiz a concepccedilatildeo eu elegi cada diretor que me pareceu mais conveniente pra cada linguagem

determinei a sequumlecircncia das histoacuterias Mas cada diretor responde pela sua parte e pela esteacutetica

da sua parte Tudo discutido comigo Entatildeo cada trecho dessa peccedila tem um diretor artiacutestico e

um diretor de artes tem um diretor de cena vamos dizer cecircnico e um diretor de arte Um

bonequeiro e um diretor cada parte138

Mario - Que satildeo Miguel Vellinho139

Beto - O Miguel Vellinho com o menino dele laacute como eacute que chama o cara que faz os

bonecos do Miguel

Mario - Com o Michel

Beto - O Michel fez a parte estrutural a esteacutetica eacute outro menino O outro que eacute professor

tambeacutem com ele

Mario - Ah sim O Carlinhos [Carlos Alberto Nunes]140

Beto - Entatildeo pra mim o diretor de cena eacute o Miguel e o diretor de arte eacute o Carlos O do

Vando [Wanderely Piras] o diretor de cena eacute ele e o diretor de arte eacute o Sidnei [Caria] porque

ele fez os bonecos

Mario - Certo

Beto - Do Carlos Lagoeiro141

o diretor cecircnico eacute ele e a Marion [Hoekveld] que eacute uma artista

plaacutestica holandesa Eles moram na Holanda Soacute o Alexandre Faacutevero que junta os dois porque

a esteacutetica eacute dele tambeacutem142

Entatildeo ele junta os dois Entatildeo satildeo vaacuterias cabeccedilas pensando ao

mesmo tempo e eu ainda coordenando todos eles Eacute um espetaacuteculo que foi muito interessante

fazer como processo Foi um dos mais ricos da histoacuteria da Pia Fraus como resultado Natildeo

sei pode gostar pode natildeo gostar Aiacute sei laacute vocecirc me fala depois Mas como processo eacute o

mais interessante

Mario - Beto muito obrigado

Beto - Imagina

Mario - Valeu obrigado mesmo Soacute pra fechar a conversa nos programas da Pia Fraus

como eacute que vocecirc determina o seu elenco Entra elenco Atores Marionetistas

Manipuladores

Beto - Elenco

138

A peccedila eacute dividida em 4 quadros apoiados em contos de Guimaratildees Rosa sendo um deles um conjunto de

cenas de ligaccedilatildeo Estatildeo divididos da seguinte maneira entre os artistas convidados 1) As margens da alegria

Alexandre Faacutevero (Cia Lumbra) 2) A terceira margem do Rio Miguel Vellinho e Carlos Alberto Nunes

(PeQuod Teatro de Animaccedilatildeo) 3) O cavalo que bebia cerveja Carlos Lagoeiro e Marion Hoekveld (Cia

Muganga) 4) Interligaccedilatildeo Wanderley Piras e Sidnei Caria 139

Miguel Vellinho foi fundador do Grupo Sobrevento diretor e fundador da Cia PeQuod ndash Teatro de

Animaccedilatildeo 140

Carlos Alberto Nunes Cenoacutegrafo e professor de cenografia do Curso de Artes Cecircnicas da UNIRIO tambeacutem eacute

membro da PeQuod 141

Carlos Lagoeiro eacute diretor da companhia fundada por brasileiros e radicada na Holanda chamada Muganga 142

O trabalho de Alexandre Fpavero junto agrave Cia Lumbra eacute centrado do trabalho com teatro de sombras

389

ANEXO C

Entrevista com Catin Nardi143

Cia Navegante de Teatro de Bonecos

Bloco de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlacircndia (UFU) Uberlacircndia 07 de

novembro de 2010144

Mario ndash Catin seu nome inteiro

Catin ndash Catin Nardi [soletra]

Mario ndash Eu queria que vocecirc me falasse um pouco a sua trajetoacuteria dentro do teatro de

animaccedilatildeo se vocecirc sempre esteve ligado agrave companhia Navegante se este eacute o seu prijheto

central Quando vocecirc comeccedilou que tipo de experiecircncia vocecirc tem antes

Catin ndash Oacutetimo

Mario ndash O que vocecirc vecirc na Argentina e traz para o Brasil Quais satildeo as diferenccedilas

Catin ndash Joacuteia A minha histoacuteria a minha experiecircncia eu venho do teatro Depois de dez anos

trabalhando enquanto ator iniciando carreira em escola de segundo grau dentro de grupo

amador afortunadamente com bons diretores com pessoas com uma visatildeo bem seacuteria bem

concreta do teatro [foi] depois disso que eu vim para o Brasil que eu fui me dedicar a

trabalhar com marionetes Mas eu jaacute inseria bonecos dentro do teatro na Argentina Entatildeo a

gente estaacute falando aiacute de iniacutecio da deacutecada de [19]80 E nesse periacuteodo eu passei cinco anos na

Universidade Federal do Litoral145

vinculado a um projeto de extensatildeo universitaacuteria que

pretendia instalar ou um curso de artes cecircnicas ou uma comeacutedia universitaacuteria permanente

um grupo estaacutevel dentro da universidade No uacuteltimo desses cinco anos eu me afastei da

universidade e fui para Rosario [ Argentina] que eacute uma cidade que fica a 200 quilocircmetros da

minha cidade natal e trabalhei em teatro de rua comecei a abordar teacutecnicas circenses

pandeiras perna de pau fogo malabares e tal E descobri uma nova linguagem que era o

teatro feito fora do acircmbito do teatro E isso implicou uma seacuterie de novos conceitos porque ateacute

entatildeo eu tinha trabalhado um pouco com teatro experimental tinha trabalhado um pouco com

teatro claacutessico e tal E a partir do momento em que eu saio da estrutura da universidade da

estrutura de escola e vou para um grupo independente aiacute eu comeccedilo a desenhar o que era

viver de teatro Entatildeo eu acho que essa foi a experiecircncia que me deu a base para se vocecirc vai

viver disso entatildeo vocecirc vai ter que concentrar muita energia nisso A minha vida passa por um

momento muito interessante conheci uma pessoa uma moccedila com a qual eu fui casado

durante alguns anos e eu saiacute da Argentina para morar numa praia no Espiacuterito Santo E eu me

encontrei numa praia paradisiacuteaca onde natildeo tinha pessoas para trabalhar comigo em teatro E

aiacute eu decidi a comeccedilar em invetir na construccedilatildeo de bonecos Num primeiro instante como eu

jaacute tinha certo fasciacutenio pelos marionetes de fio pela marionete em si e tinha feito algumas

experiecircncias com tiacuteteres com o fantoche de luva que eacute mais comum de se ver na Argentina

tinha feito algumas experiecircncias com bonecos gigantes e fiz umas pesquisas entre [19]90

143

O artista de animaccedilatildeo argentino Catin Nardi iniciou-se no teatro em 1981 A partir de 1990 radicado no

Brasil dedica-se a pesquisa e construccedilatildeo de marionete de fios A abertura da novela As filhas da matildee e a

minisseacuterie ldquoHoje eacute Dia de Mariardquo da Rede Globo satildeo algumas das suas mais importantes produccedilotildees para a

televisatildeo Em 1994 Catin Nardi criou O navegante A companhia apresenta espetaacuteculos e ministra oficinas em

festivais teatros e espaccedilos informais encantando plateacuteias de todas as idades atraveacutes da sofisticada arte das

marionetes de fios 144

Entrevista concedida durante a oficina de construccedilatildeo de bonecos de manipulaccedilatildeo direta ministrada pelo artista

durante a ediccedilatildeo de 2010 do Festival de Teatro de Formas Animadas de Uberlacircndia AnimaUDI 145

Aqui Catin se refere agrave instituiccedilatildeo argentina Universidad Nacional del Litoral situada na proviacutencia de Santa

Fe

390

[19]93 e montei um primeiro trabalho misturando vaacuterias teacutecnicas de bonecos Entatildeo trabalhei

com bonecos de vara trabalhei com bonecos de meio bastatildeo trabalhei com bonecos de mesa

trabalhei com dois tipos de marionete diferentes trabalhei com bonecos gigantes e misturei

um pouco isso ao universo do teatro em si porque ainda era muito presente Entatildeo tinha

pernas de pau era uma montagem grande com muita gente e tal Realmente se tornou

inviaacutevel dar sequencia a isso Em [19]94 se inicia a companhia Navegante de Teatro de

Bonecos ndash ateacute o fato da navegaccedilatildeo eacute uma coisa que estaacute ligado ao mar O lugar onde eu

morava era uma cidade muito bonita e eu ficava no alto de um mosteiro que tinha e vendo as

embarcaccedilotildees voltarem no fim da tarde e achava extremamente corajoso esses caras viajarem

sete horas dentro de umas ldquocasquinhas de nozrdquo para ir pescar e voltar deposi de quatro cinco

dias dentro do mar para depois voltar Entatildeo a ideacuteia da companhia Navegante eacute inspirada pelo

mar Isso estaacute ligado um outro fato Eu conheci Aacutelvaro Apocalypse146

na eacutepoca Passei um

veratildeo no Rio de Janeiro com ele estudando e aprendi a teacutecnica de construccedilatildeo alematilde a teacutecnica

do BROSS e eacute o que lapidou digamos o meu trabalho E aiacute inicia-se a companhia Navegante

de teatro de marionetes E de todas as experiecircncias que eu tinha feito a que realmente mais

me [parecia] desafiadora era o boneco de fios que eacute aminha especialidade que eu gosto mais

de fazer Entatildeo em [19]94 eu estreei um espetaacuteculo que se O Catavento eacute uma pesquisa

sobre relaccedilotildees de gecircnero humano Eacute uma montagem que rodou muito entre [19]94 e [19]98

Depois parou mas eventualmente a gente apresenta eacute um espetaacuteculo do repertoacuterio E em

[19]96 eu comeccedilo uma pesquisa sobre teacutecnica no marionete Entatildeo pai eu comeccedilo a fazer uma

miscelacircnea de coisas eacute um espetaacuteculo de variedades que eacute o nosso cavalo de batalha o

Musicircus que eacute um espetaacuteculo de experimentaccedilatildeo de marionete Entatildeo tem boneco que eu

vou montando ele em cena tem boneco que cospe fogo tem bonecos que pegam objetos tem

bonecos que tocam instrumentos e uma grande preocupaccedilatildeo na forma no movimento que [eacute

o que] eu mais prezo na hora do trabalho sabe Como iniacutecio e caminha e carreira no universo

do boneco comeccedila por aiacute

Mario ndash A Navegante hoje tem um repertoacuterio de quantos

Catin ndash Seis montagens Tem um espetaacuteculo de rua grande feito com bonecos gigantes

anotildees que eacute uma coisa que eu tambeacutem desenvolvi visando algumas questotildees de praticidade

sobretudo de transporte dos bonecos Eacute uma cabeccedila grandona o boneco todo articulado mas

ele eacute pequenininho E a gente viaja com uma equipe de vinte pessoas para fazer um espetaacuteculo

de rua que eacute super dinacircmico divertido entendeu Tem funcionado muito bem eacute muito

interessante O Catavento como eu te falei eacute a primeira montagem o Musicircus que o meu

espetaacuteculo como solista Que bicho seraacute satildeo os bonecos de um texto de antes do Machado

daqui de Minas Gerais que foi uma pesquisa feita com cabaccedilas e originou os bonecos de Hoje

eacute dia de Maria147

Jaacute tinha feito uma experiecircncia com o Hans Donner148

com a abertura da

novela As filhas da matildee (2001-2002) que ele tinha visto os meus bonecos na Candelaacuteria a

gente falou da Candelaacuteria ontem no Centro Cultural do Banco do Brasil (RJ) e me chamou

para fazer a abertura de uma novela E a gente tem um trabalho grande com filmagem Tem

seriados tem viacutedeos educativos e tal Claro que natildeo eacute veiculado nas miacutedias grandes como eacute

o caso da Globo E entatildeo eacute uma outra aacuterea de trabalho nossa Mas eu estava falando do

repertoacuterio Que bicho sera Musicircus caixas de teatro ndash temos vaacuterios lambe-lambes149

que

146

Aacutelvaro Apocalypse (1937-2003) Artista plaacutestico e de animaccedilatildeo co-fundador e diretor do Giramundo Teatro

de Bonecos 147

Seacuterie televisiva brasileira apresentada pela Rede Globo de Televisatildeo ao longo do ano de 2005 com direccedilatildeo de

Luiz Fernando Carvalho A seacuterie empregou recursos pouco usuais na linguagem da televisatildeo brasileira como

teatro de bonecos Catin participou da equipe de construtores e operadores de alguns desses bonecos 148

Artista de videografia responsaacutevel pelas vinhetas e aberturas da programaccedilatildeo da Rede Globo de Televisatildeo 149

Tambeacutem chamado de caixa de teatro Modo de apresentaccedilatildeo com teatro de bonecos para poucos ou apenas

um espectador por vez feito dentro de uma caixa fechada em escala reduzida O posicionamento do espectador

391

a gente considera como uma montagem tem quatro Eco ndash eu sei eacute uma montagem feita com

material reciclado um pouco resultado dessas oficinas que a gente daacute Esse eacute o nosso

repertoacuterio

Mario ndash Pelo que eu estou entendendo haacute uma variedade muito grande em formas de

manipulaccedilatildeo Cada espetaacuteculo vai trabalhar com ndash

Catin ndash Noacutes temos trecircs montagens que satildeo espetaacuteculos de marionetes Musicircus Que bicho

seraacute e O Catavento Aiacute depois noacutes temos espetaacuteculos de rua que satildeo os grandotildees tem os

bonecos de mesa que satildeo os do espetaacuteculo ecoloacutegico e tem a teacutecnica de manipulaccedilatildeo das

caixas de teatro lambe-lambe Metade do trabalho satildeo marionetes a outra metade satildeo outras

teacutecnicas que foram desenvolvidas ou que satildeo teacutecnicas jaacute conhecidas mas a gente trabalhou

em cima disso

Mario ndash Se vocecirc fosse por na balanccedila vocecirc se considera mais um construtor ou algueacutem da

performance

Catin ndash Na balanccedila Sabe que essa eacute uma pergunta oacutetima Ningueacutem nunca me perguntou se

eu sou mais construtor ou se eu sou mais ator manipulador Eu acho que estaacute meio que pau a

pau acho que tem um certo equiliacutebrio Pelo fato de eu vir do teatro Se eu fosse das [artes]

plaacutesticas certamente eu seria um construtor de bonecos sabe Mas como eu venho do teatro

eu sinto tanto tesatildeo de estar dentro do meu ateliecirc sozinho virando madrugadas ndash ou com

equipe dependendo da situaccedilatildeo ndash quanto me deslocar para um lugar para montar um

espetaacuteculo para apresentar Entatildeo sinceramente acho que estou sendo mais sincero quanto eacute

possiacutevel acho que tem um equiliacutebrio mesmo entre esses dois universos e satildeo dois universos

inteiramente diferentes

Mario ndash Haacute uma interdependecircncia

Catin ndash Sem duacutevidas porque na hora que vocecirc estaacute criando para construir necessariamente

vocecirc estaacute permanentemente pensando em cena Entatildeo vocecirc estaacute ndash justamente o que eacute o

marionetista Eacute um misto de ator diretor e artista plaacutestico Vocecirc estaacute ali nesse universo de

projeto de construccedilatildeo com uma finalidade teatral cecircnica Agora hoje eu tenho muito mais

preocupaccedilatildeo comigo enquanto ator do que enquanto construtor Eu acho que o que eu poderia

determinar enquanto construtor de bonecos O que eu domino hoje eu me sinto agrave vontade para

trabalhar Agora enquanto ator e enquanto diretor eu estou muito longe de me sentir

satisfeito Tanto que neste momento eu passei no vestibular Eu estou estudando teatro e tem

sido uma oportunidade fantaacutestica porque como eu venho da praacutetica todas as informaccedilotildees

que eu trago satildeo muito soltas e de alguma forma eu tambeacutem estou acessando esse

conhecimento Eu estou juntando um monte de informaccedilotildees Entatildeo assim enquanto ator e

enquanto diretor eu me sinto infinitas vezes menos capacitado que enquanto construtor

entende

Mario ndash Eu quero te fazer uma outra pergunta mas antes eu preciso que vocecirc me faccedila um

esclarecimento Faz uma descriccedilatildeo breve dessa teacutecnica de construccedilatildeo que vocecirc trabalhou com

o [Aacutelvaro] Apocalypse

Catin ndash Aacutelvaro ensinava uma teacutecnica que eacute Alebericht Bross um cara que no iniacutecio do

seacuteculo passado150

criou um meacutetodo que eacute baseado num meacutetodo de construccedilatildeo de bonecos

inglecircs Soacute que o cara simplifica ndash simplifica por um lado e complica por outro porque

ao inserir a cabeccedila dentro da caixa para assistir agrave apresentaccedilatildeo muitas vezes cobrindo a cabeccedila com um pano eacute

muito semelhante agrave postura dos antigos fotoacutegrafos de praccedila chamados de lambe-lambe de onde a modalidade de

apresentaccedilatildeo extraiu o seu nome 150

Catin se refere aqui ao seacuteculo XIX como sendo o ldquoseacuteculo passadordquo

392

simplifica na cruz de manipulaccedilatildeo ele junta as peccedilas da cruz de manipulaccedilatildeo para uma matildeo

soacute com uma matildeo soacute vocecirc consegue caminhar e movimentar o boneco todo e por outro lado

ele faceta o boneco Enxerga o boneco por dentro mais detalhadamente e desenvolve um

meacutetodo que eacute o seguinte vocecirc faz primeiro um desenho uma caricatura ou enfim uma

imagem figurativa depende do que vocecirc escolhe E sobre isso vocecirc vira o boneco em vaacuterias

partes e faz planta dele Entatildeo vocecirc visualiza o boneco por dentro Vocecirc faceta ele todo e

depois vocecirc desmonta digamos o boneco em diferentes placas e faz uma construccedilatildeo

progressiva daquilo Ou seja vocecirc natildeo pega uma peccedila e faz uma regressatildeo dela Vocecirc

constroacutei progressivamente vocecirc vai enchendo de placas para chega no volume onde vocecirc

quer e faz soacute o acabamento Esse meacutetodo eacute muito interessante porque vocecirc consegue

visualizar o boneco por dentro detalhadamente e vocecirc constroacutei o boneco em funccedilatildeo da sua

mecacircnica Entatildeo se suponhamos vocecirc tem uma cabeccedila muito volumosa com olhos muito

grandes vocecirc vai primeiro visualizar como vocecirc vai construir essa cabeccedila em funccedilatildeo da

mecacircnica interna E isso facilita muito a restauraccedilatildeo de bonecos Porque agraves vezes quebram

umas peccedilas internas e vocecirc irremediavelmente vai buscar o projeto desse boneco vocecirc vai

olhar por dentro dele e falar assim ldquoah taacute o que quebrou foi issordquo Entatildeo se eu fizer um furo

aqui eu vou atingir a peccedila vou tirar ela vou substituir vou colocar uma trava e fechar ela

Vou dar o acabamento de novo Claro que a gente vai ficando esperto com o tempo e vai jaacute

deixando aberturas provaacuteveis de acesso pra qualquer tipo de problema de manutenccedilatildeo Mas o

que o Aacutelvaro ensinou e me proporcionou foi exatamente essa capacidade de vocecirc olhar para

um boneco como um objeto de construccedilatildeo teacutecnica Agora eu acho que o que o Aacutelvaro me

ensinou foi muito aleacutem disso tanto o Aacutelvaro quanto a Teresa151

que o viacutenculo que eu tive foi

exclusivamente com eles dentro do ateliecirc deles laacute na UFMG na eacutepoca O Aacutelvaro era um cara

que vocecirc chegava para conversar com ele e ele natildeo te dava bola Vocecirc ficava ateacute meio

incomodado assim Entatildeo daqui a pouco vocecirc dizia bom entatildeo estou indo embora ldquoNatildeo

Peraiacute peraiacute natildeo vai natildeordquo E aiacute ele largava o laacutepis e comeccedilava a conversar Foi um cara que

me deu altos toque que me deu altos conselhos e foi um orientador sabe E foi uma pessoa

extremamente interessante e objetiva E eu por alguns momentos tive desejo de trabalhar com

ele e senti uma certa resistecircncia Ele sempre falava assim ldquoO que vocecirc sabe fazer soacute vocecirc

sabe fazer Entatildeo pega o teu barco e vai em frente Vai em frente porque eacute isso O que vocecirc

tem pela frente vocecirc tem que desbravar esse caminho sozinhordquo

Mario ndash Para encerrar nossa conversa outra provocaccedilatildeo a gente teve uma conversa logo no

iniacutecio da semana e eu surpreendi um comentaacuterio seu e eu quero tentar falar um pouco sobre

uma visatildeo a respeito do teatro de animaccedilatildeo agora contemporacircneo Essa questatildeo da presenccedila

ou da ausecircncia da figura do boneco na cena do teatro de bonecos Isso parece ser para vocecirc

um tema de conversa Entatildeo eu queria que vocecirc desenvolvesse essa questatildeo

Catin ndash Sim Eu fico bastante preocupado ao ir para festivais e obviamente que cada vez

mais se estabelece a ideacuteia de forma animada porque estaacute ficando cada vez mais claro o que eacute

teatro de bonecos o que eacute forma animadas e tal Como conceito eacute tudo uma coisa soacute mas

vocecirc comeccedila a frequentar festivais vocecirc vai pro festival de [teatro de] boneco e natildeo vecirc

boneco Um dois trecircs cinco dez espetaacuteculos e fala gente peraiacute onde eacute que estaacute o boneco

cara Onde estaacute aquele construtor de bonecos que se associou a um grupo de teatro e

desenvolveu um trabalho ou que eacute um cara do teatro e desenvolve bonecos para cenas de

teatro E aiacute eu comeccedilo a ficar um pouco preocupado com isso porque eu quero ver boneco

Se eu vou ver um espetaacuteculo de teatro de bonecos eu quero ver o boneco Quero ver um

boneco soacute com dez atores mas eu quero ver o boneco fazendo teatro E a coisa caiu ndash sabe ndash

desandou ndash natildeo gosto dessa palavra ndash desviou para uma outra linguagem que eu natildeo

151

Terezinha Veloso co-fundadora do Teatro Giramundo com Aacutelvaro Apocalypse e Maria do Carmo Martins

393

desconsidero eu acho absolutamente vaacutelida que se engaja provavelmente dentro do teatro

contemporacircneo Mas eu tenho quarenta e quatro anos tenho anos de carreira comecei

exatamente aos quatorze anos eu ver coisas que eu vi no ano [19]81 [19]82 a mesmiacutessima

coisa eacute como se eu natildeo tivesse vendo nada Para o rapaz que trabalha com a gente que tem

dezoito anos talvez possa ser uma novidade Mas para mim ver uma pessoa da minha idade

fazer uma coisa que jaacute se faz haacute trinta anos com o mesmo iacutempeto de quando se fazia haacute trinta

anos que era uma novidade me deixa um pouco desiludido Entatildeo eu fico me questionando

ateacute que ponto natildeo estaacute se usando entre aspas a arte do teatro de bonecos para fazer outra

coisa Eacute um caminho um universo difiacutecil de a gente discutir eu natildeo acho que em cinco

minutos eu consigo definir Mas eu acredito que vocecirc pode entender da minha preocupaccedilatildeo

quando eu vejo uma coisa e quando de repente eu trombo com uma montagem que traz

quatro bonecos em cena um cenaacuterio uma boa iluminaccedilatildeo e fundamentalmente uma boa ideia

de dramaturgia teatral Esse dia eu vou laacute assisto a um espetaacuteculo e digo bom hoje eu vi

teatro de bonecos E eu tento defender um pouco isso eu tento martelar isso na cabeccedila das

pessoas Pra dizer assim aprenda a fazer um boneco crie monte e venda uma cena de teatro

de bonecos Essa oficina que a gente trouxe aqui para Uberlacircndia tem esse objetivo crie seus

bonecos Tanto que no manual [da oficina] em seu final estaacute escrito justo isso crie uma cena

venda um espetaacuteculo Eacute isso eacute buscar essa linguagem de criaccedilatildeo e construccedilatildeo de bonecos

para teatro feito com bonecos Isso eacute uma coisa que para mim cada vez mais eu martelo

incentivo as pessoas e tal E insisto natildeo desconsidero as diversas formas que o teatro de

bonecos o teatro de objetos o teatro de formas animadas como quer que se chame propotildee

Mas tem umas coisas que me satildeo muito mais verdadeiras tem outras que natildeo satildeo tatildeo assim

Aquele espetaacuteculo que eu assisto e preciso de tempo para pensar nele ndash sabe ndash me daacute uma

certa preguiccedila Aquele espetaacuteculo que me chega com facilidade que vocecirc vecirc o trabalho que

vocecirc vecirc um cara que ralou pra construir um boneco que ele faz o que todos os bonecos fazem

e alguma coisinha a mais que eacute desse bonequeiro aiacute isso me daacute satisfaccedilatildeo me daacute prazer E eacute

teatro Que eacute definitivo que me movimenta Eacute o que sempre me levou a buscar mesmo que

seja com bonecos a minha preocupaccedilatildeo eacute teatro

Mario ndash Catin muito obrigado

Catin ndash Eu que agradeccedilo

394

ANEXO D

Entrevista com Alexandre Faacutevero Cia Lumbra Teatro de sombras

Hotel Sanare Uberlacircndia 26 de junho de 2011152

Mario ndash Antes de tudo diga seu nome

Alexandre ndash Alexandre Faacutevero

Mario ndash E qual posto vocecirc ocupa em qual companhia teatral

Alexandre ndash Eu sou o encenador da Companhia Teatro Lumbra de Animaccedilatildeo de Porto

Alegre

Mario ndash Fale um pouco sobre o iniacutecio da companhia mas eu gostaria de orientar a sua

exposiccedilatildeo com a seguinte questatildeo qual foi o desejo artiacutestico que constituiu a Lumbra

Alexandre ndash A companhia Lumbra surge de uma necessidade minha como curiosos e como

artista de desenvolver uma arte que conseguisse juntar os meus interesses as minhas

curiosidades como cenoacutegrafo como fotoacutegrafo amador como artista graacutefico como desenhista

desde a infacircncia e que pudesse de alguma forma juntar todos esses conhecimentos essas

informaccedilotildees que me interessavam Entatildeo o teatro de sombras foi o gecircnero que mais

conseguiu se aproximar desse meu desejo Eacute claro que eu comecei a influenciar o meu proacuteprio

processo e os meus conceitos com a minha bagagem infantil que era o que eu desejava fazer

Entatildeo sempre o meu processo artiacutestico partiu de um interesse ligado agrave minha vivecircncia quando

crianccedila Tanto que a minha primeira obra artiacutestica que foi o Saci Pererecirc153

que foi a primeira

assinatura como diretor que eu fiz surgiu de uma provocaccedilatildeo que a proacutepria vida me fez que

foram as minhas experiecircncias de andar no meio do mato de querer enxergar entidades

sobrenaturais de gostar de pregar peccedilas no outros dar sustos Entatildeo a concepccedilatildeo desse meu

primeiro espetaacuteculo se utilizou desse medo que eu tinha quando era crianccedila e dessa minha

necessidade depois de adulto em provocar [medo] nas crianccedilas que era meu puacuteblico alvo

Mario ndash E historicamente como aconteceu Vocecirc jaacute tinha um percurso como cenoacutegrafo

Qual eacute a histoacuteria da constituiccedilatildeo da companhia

Alexandre ndash Eu comecei como cenoacutegrafo esse foi o meu desafio na troca da profissatildeo que eu

tinha anterior[mente] A arte sempre foi muito presente na minha vida E quando eu decidi

viver de arte eu tive que passar por um processo o que natildeo foi muito demorado Eu natildeo digo

que foi sorte porque natildeo acredito nisso Mas foram desejos que eu tive e que aconteceram

rapidamente Fiz uma pequena oficina de cenografia e comecei a conviver com bonequeiros

outros artistas do teatro de animaccedilatildeo que foram o Mario de Balentti o Paulo Balardim154

e

eles foram os meus primeiros colegas do teatro de sombras A gente encontrou um desafio

juntos que foi conceber um espetaacuteculo para um cliente em Porto Alegre e noacutes cumprimos

152

Essa entrevista foi concedida no uacuteltimo dia do trabalho em teatro de sombra ministrado pela companhia

Lumbra para o grupo Trupe de Truotildees de Uberlacircndia com vistas a incorporar elementos de teatro de sombras

no proacuteximo espetaacuteculo da companhia uberlandense Aladim Eu participei do trabalho como convidado da Trupe

de Truotildees 153

Saci Pererecirc ndash a lenda da meia-noite (2003) foi o primeiro espetaacuteculo da cia Lumbra Teatro de Animaccedilatildeo A

peccedila teve como inspiraccedilatildeo a obra O Saci de Monteiro Lobato O espetaacuteculo foi ganhador de trecircs precircmios

Tibicuera (concedido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre RS) no ano de 2003 (melhor

direccedilatildeo melhor iluminaccedilatildeo e melhor trilha sonora) No mesmo ano o espetaacuteculo teve duas premiaccedilotildees no

Festival de Teatro Isnard Azevedo promovido pela fundaccedilatildeo de cultura da cidade de Florianoacutepolis SC (melhor

direccedilatildeo e melhor iluminaccedilatildeo) 154

Fundadores e diretores da companhia Caixa do Elefante (RS)

395

esse desfio em trecircs meses sem muito conhecimento de causa mas sim com muita

curiosidade Cada um comeccedilou a se apropriar de uma tarefa e intuitivamente a gente foi

somando esses talentos esses conhecimentos que cada um tinha para conceber uma primeira

obra Essa foi uma obra fracassada

Mario ndash Qual foi

Alexandre ndash Foi um trabalho que noacutes fizemos para a Secretaria do Meio Ambiente de Porto

Alegre para fazer uma intervenccedilatildeo num evento chamado Agenda 21 mirim uma campanha

nacional que tenta levar conceitos de educaccedilatildeo ambiental para as escolas Entatildeo a gente

montou um espetaacuteculo que tinha como tema a criaccedilatildeo do mundo a poluiccedilatildeo e a cidade ideal

Entatildeo noacutes encaramos o desafio montamos o espetaacuteculo e na hora de apresentar foi um grande

desafio porque era uma plateia de 1500 adolescentes mais ou menos e eu acho que ela

chegou ateacute a metade Da metade pro fim os organizadores resolveram parar com a

apresentaccedilatildeo e seguir com a programaccedilatildeo do evento que tinha outras coisas mais

interessantes vamos dizer assim para apresentar Eu acho que essa frustraccedilatildeo que eu tive laacute

me ajudou depois a criar um projeto onde eu pudesse aplicar aqueles conceitos que a gente

investigou juntos e que eu natildeo tive a oportunidade de por em praacutetica como eu gostaria Esse

primeiro trabalho teve a orientaccedilatildeo de um diretor que jaacute tinha uma concepccedilatildeo planejada ou

seja natildeo consegui dar vazatildeo agrave minha capacidade criativa Daiacute eu fiz um projeto que foi

contemplado com uma verba de Apoio a Montagens Cecircnicas de Porto Alegre e eu pude

explorar do meu jeito um teatro de sombras que fosse mais adequado agraves coisas que eu

pensava e estava com mais vontade de pesquisar naquela eacutepoca

Maacuterio ndash E jaacute foi o Saci

Alexandre ndash Jaacute foi o Saci que eacute um trabalho altamente experimental o conceito dele eacute

experimentaccedilatildeo Foi o que eu consegui levantar ao longo de dois anos de material de

improvisaccedilatildeo de experimentaccedilatildeo e se transformou numa obra de arte em que isso fica muito

claro

Mario ndash Curioso porque o Saci tem muito de experimentaccedilatildeo mas por causa da quantidade

de materiais usados dos diferentes efeitos aproveitados eacute uma experiecircncia de rigor tambeacutem

Eacute um espetaacuteculo rigoroso em que natildeo haacute interrupccedilotildees contiacutenuo preciso muito limpo nas

transiccedilotildees Ele passou por algum tipo de transformaccedilatildeo

Alexandre ndash Ateacute hoje ele passa Ele estreou em outubro no dia da crianccedila de 2002 Eu iniciei

esse processo no final de [19]99 e a companhia foi fundada em funccedilatildeo desse espetaacuteculo

Entatildeo sempre houve uma necessidade minha de uma identidade de encontrar uma identidade

E durante esse processo eu tinha um planejamento que foi totalmente alterado Era pra ser um

espetaacuteculo hiacutebrido que mexia com objetos bonecos e sombras mas tentando fazer com que

todas essas linguagens se relacionassem dentro da dramaturgia E quando eu comecei a

explorar a sombra que foi o primeiro gecircnero que eu trabalhei nas investigaccedilotildees eu vi que ela

era suficiente para incorporar a identidade do Saci e a minha proacutepria identidade como criador

Entatildeo eu abri matildeo das outras linguagens Cheguei a explorar elas mas rapidamente

abandonei Porque o teatro de sombras exigia esse rigor e eu me interesse muito pelo preacute-

cinema Esse limite entre o teatro de sombras europeu que conseguiu incorporar a tecnologia

da lacircmpada que jaacute havia teatros exclusivos para teatro de sombras na Franccedila

Mario ndash O Chat Noir155

155

Cabareacute parisiense que funcionou no distrito boecircmio de Montmartre na capital francesa entre os anos de 1881 e 1897 Era reconhecido juntamente com suas apresentaccedilotildees de variedades como um lugar para assistir

apresentaccedilotildees de teatro de sombras

396

Alexandre ndash Isso Me chamou muito agrave atenccedilatildeo esse tipo de valorizaccedilatildeo que o teatro de

sombras teve prestes a se iniciar o fenocircmeno do cinema Mas ao mesmo tempo eu natildeo

gostava da intimidade que aquele teatro europeu tinha com o teatro de sombras oriental que

era a grande inspiraccedilatildeo dos artistas daquela eacutepoca Entatildeo eu comecei a buscar uma coisa que

fosse mais afinada com a velocidade que eu vivia naquele ano de 2000 que era a virada do

seacuteculo que era aquela coisa do fim do mundo e ao mesmo tempo a gente iniciando uma

mudanccedila que necessariamente natildeo existia muita coisa mudando mas ao mesmo tempo

chegava o videogame com uma outra forccedila de integraccedilatildeo do jogador com o jogo Tinha

tambeacutem o cinema que comeccedilava a ter os seus efeitos especiais o [cineasta norte americano

Steven] Spielberg jaacute vinha trazendo essa velocidade esse encantamento da cenografia da

ambientaccedilatildeo das maacutescaras do espaccedilo Entatildeo tinha uma coisa ali que eu gostava muito e que

me interessava demais e que esse teatro de sombras antigo europeu jaacute natildeo comportava pra

mim E aiacute foi onde eu comecei a me aproximar dessa dinacircmica do cinema mais primitiva

possiacutevel para poder encontrar uma ligaccedilatildeo com o teatro de sombras que era uma arte muito

rudimentar muito dura muito seca mas que eu de certa forma jaacute explorava nas artes graacuteficas

Eu trabalhei muitos anos com laboratoacuterio em preto e branco Eu revelava fotos fotolitos fazia

serigrafia tinha todo esse processo artesanal aiacute [] Eu jaacute estava impregnado dessa arte de

captar de compor de ter uma memoacuteria fotograacutefica desenvolvida Jaacute desenhava muito jaacute tinha

uma experiecircncia com quadrinhos com textos Entatildeo a junccedilatildeo disso no Saci foi muito

importante

Mario ndash Percebo que vocecirc [exerce] uma centralidade no processo criativo da Lumbra e me

diga uma coisa a companhia tem componentes fixos Quantos componentes satildeo fixos

Houve troca de componentes ao longo desses 11 anos

Alexandre ndash A companhia se formou com o espetaacuteculo do Saci que eram dois sombristas156

A gente viveu trecircs quatro anos somente com esses dois sombristas sendo que eu dava conta

de toda essa parte dramaacutetica plaacutestica e da encenaccedilatildeo como um todo O meu colega Flaacutevio

que foi meu companheiro no iniacutecio desse processo tinha um trabalho muito importante que

aleacutem de atuar comigo fazia toda essa parte de produccedilatildeo do espetaacuteculo Pra construir esse

espetaacuteculo a gente lanccedilou matildeo de outros artistas que fizeram a parte eletroteacutecnica das

ferramentas de trabalho da parte de iluminaccedilatildeo Um muacutesico que foi o Gustavo Finter que

fez a trilha sonora que tambeacutem foi muito experimental e se adequou muito agrave proposta da

cena e alguns outros colaboradores que serviram com uma espeacutecie de assessoria agrave direccedilatildeo E

foi fundamental isso jaacute que eu literalmente tateava no escuro para descobrir essa linguagem

nessa eacutepoca e que me deram indicaccedilotildees muito interessantes que eu uso ateacute hoje Bonequeiros

experientes mais antigos que jaacute tinham passado por vaacuterios festivais assistido vaacuterios

espetaacuteculos de sombra e conseguiram me dar um retorno que foi alternado o meu processo

criativo e de direccedilatildeo

Mario ndash Vocecirc consegue identificar a existecircncia de um perfil meacutedio em termos de formaccedilatildeo

das vaacuterias pessoas que passaram pela Lumbra ou que contribupiram com a Lumbra de

maneira mais constante

Alexandre ndash Antes eu vou responder agrave outra parte da tua pergunta Noacutes hoje somos quatro

pessoas Noacutes natildeo temos atores que trabalham esporadicamente nos nossos trabalhos Noacutes

temos outros artistas convidados que ajudam a formar a dramaturgia dos novos projetos Mas

hoje a companhia jaacute sente necessidade de formar novos sombristas que eacute um trabalho muito

difiacutecil e demorado para que a gente possa desenvolver outros trabalhos Mas isso eacute uma coisa

que ainda eacute um pouco complicado em funccedilatildeo do proacuteprio mercado de trabalho do teatro no

156

Alexandre refere-se aqui a ele mesmo e a Flaacutevio Silveira que compunham o elenco do referido espetaacuteculo

397

Brasil Mas a Fabiana [Bigarella] fica numa assistecircncia de direccedilatildeo de criaccedilatildeo de roteiro e na

parte administrativa da companhia e na parte de pesquisa comigo tambeacutem nessa outra linha

que eacute a sombraterapia que eacute uma outra vertente que natildeo eacute tatildeo mais artiacutestica mas sim de uma

possibilidade de usar a sombra como uma ferramenta de autoconhecimento dentro da

arteterapia Entatildeo jaacute natildeo existe mais essa exigecircncia teacutecnica ou esse cuidado esteacutetico parte

para uma outra coisa E o Roger [Motchcy] que eacute um novo integrante que jaacute estaacute na

companhia haacute uns cinco quase seis anos que eacute um artista plaacutestico que veio somar conosco

natildeo tinha muita experiecircncia com sombra o trabalho dele era mais voltado para o boneco

boneco de luva Mas ele se encontrou muito dentro desse nosso trabalho porque ele jaacute tinha

um trabalho muito forte com a tecnologia com webdesign trabalhando como webdesigner e

com o viacutedeo que foram os trabalhos que ele fez na conclusatildeo do curso de artes plaacutesticas

Entatildeo ele vem da escultura do viacutedeo dessa parte mais tridimensional e eacute um cara que jaacute tem

uma vocaccedilatildeo que se aproxima um pouco mais da tecnologia onde eu guardo uma certa

distacircncia Com relaccedilatildeo agrave formaccedilatildeo do ator sombrista especificamente eacute uma coisa um tanto

misteriosa ainda pra mim Me parece que isso se daacute muito por uma mola propulsora que eacute a

curiosidade Natildeo existe como dentro da companhia trabalharmos com novos sombristas que

tenham um papel meramente de movimentar figuras ou um iluminador que abra e feche os

focos luminosos Isso existe hoje em outras companhias e eacute aplicado de uma maneira muito

interessante assim eacute muito efetivo tecnicamente essa separaccedilatildeo Mas eu natildeo vejo como uma

coisa importante para o trabalho da companhia hoje A nossa formaccedilatildeo o nosso

desenvolvimento como sombrista parte de uma ideacuteia de uma polivalecircncia cecircnica Que eacute o

grande complicador de todo esse processo E o trabalho do Saci Pererecirc foi a descoberta disso

no meu trabalho de pesquisa como encenador como diretor dessas cenas para o espetaacuteculo

Eu natildeo vejo uma separaccedilatildeo de um ator de um teacutecnico de um construtor Esse profissional

precisa vivenciar intimamente profundamente todos esses processos Inclusive uma das

coisas que eu acho hoje que eacute o grande problema do meu gerenciamento como artista na

companhia lidando com o elenco eacute a incapacidade desse sombrista de alcanccedilar um niacutevel de

reflexatildeo mais elevado Se aprofundar numa quantidade grande de conhecimentos que

consigam ser transversais e que dialoguem entre si para fazer com que ele tenha um conforto

uma performance um cuidado um entendimento sobre essa linguagem Entatildeo o meu trabalho

hoje junta a psicologia o sobrenatural a histoacuteria a oacutetica a ciecircncia de uma forma que

colabore para uma criaccedilatildeo original

Mario ndash Entatildeo me parece Alexandre que esse termo esse conceito essa funccedilatildeo que vocecirc

apresenta como sendo o do sombrista eacute algo que ainda estaacute em elaboraccedilatildeo Mas me deixa

muito curiso o emprego que vocecirc faz do termo a maneira como vocecirc se relaciona com a ideacuteia

porque a gente tem discutido muito as aproximaccedilotildees em termos de teacutecnica e de formaccedilatildeo que

o artista de apresentaccedilatildeo em teatro de animaccedilatildeo tem com o ofiacutecio do ator Fala-se muito na

separaccedilatildeo das competecircncias e hoje em dia se fala muito em termos de convergecircncia dessas

competecircncias porque se encontra num niacutevel um pouco mais amplo uma seacuterie de princiacutepios

que satildeo comuns Nesse sentido eu gostaria que vocecirc falasse um pouquinho sobre o que eacute essa

ideacuteia essa funccedilatildeo do sombrista Vocecirc jaacute falou um pouco sobre a questatildeo da polivalecircncia e eu

acho que isso eacute um elemento claro no trabalho do sombrista Mas o termo sombrista evoca

uma certa especializaccedilatildeo a convergecircncia para uma certa linguagem expressiva Em que

termos essa elaboraccedilatildeo se daacute O que eacute o sombrista

Alexandre ndash Os meus uacuteltimos trabalhos de pesquisa satildeo justamente para solidificar dentro da

companhia quem eacute esse artista Isso passa pela necessidade de determinar algumas coisas

Ainda eacute difiacutecil para mim que tenho essa responsabilidade de forjar um conceito encontrar

todos os limites todos os paracircmetros todos os criteacuterios para esse artista Mas eu consegui

fazer uma separaccedilatildeo que me pareceu ser o mais adequado Entatildeo assim eu posso te dizer que

398

existe o sombrista avanccedilado ou sombrista profissional que eacute esse polivalente que eacute capaz de

planejar uma obra de arte e executaacute-la em todos os sentidos que isso possa abranger Depois

tem os outros niacuteveis de sombristas que eu considero que satildeo assim natildeo menores mas que

satildeo correspondentes ao fazer teatral Entatildeo tem o sombrista teoacuterico que eacute o que especula que

eacute o que estuda que eacute o que busca na histoacuteria que coloca isso que traduz livros que assiste

espetaacuteculos que tem um senso criacutetico mas que no fundo no fundo natildeo entende da mecacircnica

da construccedilatildeo de um espetaacuteculo Depois a gente pode passar para um outro tipo de sombrista

que eacute um sombrista curioso que aleacutem de pensar e se interessar ele experimenta coisas Ele

pode natildeo ganhar a vida com isso ele pode natildeo ser visto pelos outros como um profissional

mas ele experimentou ele testou ele brincou com isso Depois tem um outro sombrista que eacute

um sombrista mais teacutecnico Ele entende o processo ele jaacute experimentou isso ele consegue

refletir ele tem referecircncias ele consegue criar de alguma forma imagens complexas dentro

dessa linguagem mas ele natildeo eacute capaz de atuar Ele natildeo tem o trabalho ou talvez o interesse

de se colocar em cena em se expor como um ator da sombra E depois a gente vai ter entatildeo o

sombrista avanccedilado que eacute esse que consegue abarcar todas essas coisas E se a gente tiver um

ator que natildeo tenha algum desses aspectos do teoacuterico do curioso do teacutecnico ele natildeo vai

conseguir se desenvolver com uma habilidade e uma performance adequada pelo menos hoje

para trabalhar dentro da nossa companhia Entatildeo eacute preciso ter essa soma de funccedilotildees

interesses habilidades e competecircncias para chegar num niacutevel onde eacute possiacutevel criar uma obra

de arte e se envolver em todos os aspectos

Mario ndash A proacutexima pergunta eacute uma provocaccedilatildeo porque a gente conversou sobre isso mais

cedo que eacute vocecirc jaacute falou aqui da procura de uma linguagem mais contemporacircnea em teatro

de sombras Vocecirc consegue encontrar algumas caracteriacutesticas algumas funccedilotildees alguns

princiacutepios que estatildeo presentes nesse teatro contemporacircneo de sombras

Alexandre ndash Eu tenho pequenas sensaccedilotildees com relaccedilatildeo a isso Elas natildeo determinam que o

conjunto da obra que eu enceno seja contemporacircnea ou natildeo E eu sempre me valho muito do

paracircmetro do outro desses sombristas teoacutericos desses teacutecnicos desses acadecircmicos Satildeo eles

que me datildeo esse retorno natildeo sou eu quer vou dizer bom agora eu vou fazer uma obra

contemporacircnea Mas onde eu percebo que isso aparece acontece Eacute justamente no

rompimento daquilo que eu considero tradicional Isso eacute subjetivo tambeacutem Mas de alguma

forma possibilita que eu decirc uma arrancada que eu me identifique com aquilo ou que eu goste

mais dessa descontruccedilatildeo dessa reconstruccedilatildeo Eu natildeo tenho interesse de me aproximar do

teatro de sombras tradicional do oriente Mas ao mesmo tempo eu tenho algumas ligaccedilotildees

que agraves vezes eu nem percebo que eacute por exemplo a cenografia que eu uso que eacute muito

funcional dentro da cena natildeo tem um caraacuteter decorativo mas sim um caraacuteter de estruturaccedilatildeo

dos miacutenimos elementos que eu preciso para me expressar E eu uso materiais muito

grosseiros porque natildeo me interessa usar a tecnologia para isso O que me interessa na

tecnologia eacute fazer com que eu me aproxime dessa tecnologia atraveacutes da coisa mais rudimentar

possiacutevel Entatildeo a minha manipulaccedilatildeo de luz ela natildeo se daacute pro programas por bototildees por

aparelhos intrincados mas sim com o miacutenimo [para] que eu possa me articular com isso e

assim dar a sensaccedilatildeo [de] que existe uma lata tecnologia naquilo ali que estaacute sendo visto

Entatildeo a imagem tem que representar o grau de modernidade de contemporaneidade de

tecnologia Muitas vezes o nosso puacuteblico acredita que satildeo projetores de cinema que estatildeo

gerando as imagens Elas vatildeo atraacutes do pano procurar onde estaacute o datashow sabe E esse eacute o

meu interesse comprovar que uma arte tatildeo dura e primitiva seja capaz de criar relaccedilotildees tatildeo

proacuteximas do mundo moderno [em] que a gente vive hoje Por isso esse interesse pela

dinacircmica cinematograacutefica que hoje eacute o que representa o mais moderno com relaccedilatildeo agrave

representaccedilatildeo de uma ficccedilatildeo de uma realidade construiacuteda

399

Mario ndash Ao longo da vivecircncia desse final de semana eu tive a impressatildeo de que um ponto de

partida muito importante para o trabalho com a sombra para a expressatildeo por meio da sombra

eacute relaciona-se como o seu corpo projetado relacionar-se com a sombra do seu corpo Falei

muito durante o primeiro dia sobre como isso me remete questotildees de aspectos de projeccedilatildeo de

representaccedilatildeo de projeccedilatildeo de expressividade que eu encontro em qualquer linguagem de

teatro de animaccedilatildeo Sombra eacute forma animada

Alexandre ndash Eu natildeo me atrevo a determinar isso Acho que essa discussatildeo da semacircntica do

conceito de criar um vocabulaacuterio adequado pode ser uma grande armadilha Eu gosto muito

disso mas eu natildeo me atrevo a ficar determinando coisas para fora do meu trabalho A arte da

animaccedilatildeo sem duacutevida ela passa queira ou natildeo pela referecircncia mais primitiva que a gente

possa ter que eacute o nosso proacuteprio corpo Entatildeo natildeo tem como ser um marionetista ou um

bonequeiro de teatro de luvas sem entender a mecacircnica corporal E o nosso corpo responde agrave

maioria das perguntas iniciais sobre isso Eacute uma questatildeo de aprofundamento e uma intimidade

com esse corpo A gente natildeo precisa necessariamente pra fazer tetro de sombras possuir um

corpo expressivo como o de um bailarino Mas a gente precisa encontrar a linguagem do

nosso corpo dentro da cena que a gente estaacute se propondo a fazer

Mario ndash Bom eu vou pular daiacute para uma outra questatildeo que eacute a nossa uacuteltima questatildeo E me

parece que tem bastante ligaccedilatildeo com o que vocecirc acabou de dizer De vocecirc alcanccedilar a

percepccedilatildeo da tua proacutepria expressividade em sombra Vocecirc tem falado muito sobre um termo

que me interessa demais que eacute dramaturgia da sombra O que eacute a dramaturgia da sombra e

onde ela estaacute Onde ela estaacute pra mim eacute algo valioso

Alexandre ndash Isso eacute o meu trabalho agora Neste momento eu estou me detendo natildeo mais ao

que eu consegui fazer nestes onze anos mas consegui ampliar a minha visatildeo e consegui ter

humildade de natildeo determinar nada mas sim observar observar duvidar das coisas Eu

cheguei a formular algumas teorias sobre ndash natildeo soacute no meu trabalho ndash mas sobre como que

principia esse ponto dramaacutetico da sombra e eu precisei voltar um pouco com relaccedilatildeo agraves

ferramentas mais elementares que fazem parte do teatro de sombras Natildeo da sombra mas do

teatro de sombras quando a gente fala de dramaturgia E eu ando especulando muito sobre o

vazio dramaacutetico Entatildeo me parece que um ponto importante de se refletir hoje eacute o quanto o

escuro e o silencio satildeo dramaacuteticos no teatro de sombras Me parece que essa eacute uma chave

importantiacutessima para o meu trabalho e que me parece que eacute um grande mestre para quem se

arrisca a lidar com esse gecircnero No momento em que a gente macula o escuro o escuro

absoluto o vazio o ponto zero do espaccedilo da sombra a gente antes mesmo de macular isso a

gente jaacute tem o potencial dramaacutetico Ou seja natildeo estaacute acontecendo nada mas se tu tens o

escuro e se tu tens o puacuteblico de alguma forma isso jaacute comeccedila a criar um potencial dramaacutetico

e conflitivo O tempo da escuridatildeo e do silecircncio eacute agraves vezes tenebroso e isso me interessa

muito Entatildeo antes de eu comeccedilar a produzir imagens a ligar um foco luminoso ou a gerar um

som eu jaacute tenho esse potencial dramaacutetico Entatildeo se eu jaacute tenho consciecircncia disso aiacute um

miacutenimo esforccedilo que eu [fizer] jaacute inicia uma narrativa e jaacute muda esse elemento dramaacutetico e

partir disso aiacute entatildeo eu jaacute comelo a ter que trabalhar a direccedilatildeo a dosas a trabalhar as coisas

dentro desse princiacutepio do vazio total Algumas pessoas tem me dito que a dramaturgia ela soacute

acontece com a accedilatildeo com o fazer com algo estar acontecendo Eu ando duvidando um pouco

disso O meu trabalho permite que eu consiga trabalhar essa dramaturgia sem que nada esteja

acontecendo Eu preciso apenas da respiraccedilatildeo e de uma pupila bem dilatada do espectador Eacute

o suficiente

Mario ndash Alexandre Faacutevero muito obrigado