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Manual de Direito Penal

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Direito penal

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  • Chiado Editorachiadoeditora.com

    COLECO

    C O M P E N D I U M

  • Um livro vai para alm de um objecto. um encontro entre duas pessoas

    atravs da palavra escrita. esse encontro entre autores e leitores que a

    Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicao

    de uma obra nica e derradeira, seguindo a mxima pessoana pe tudo

    quanto s no mnimo que fazes. Queremos que este livro seja um desafio

    para si. O nosso desafio merecer que este livro faa parte da sua vida.

    chiadoeditora.com

    Portugal | Brasil | Angola | Cabo VerdeAvenida da Liberdade

    N 166, 1 Andar1250-166 Lisboa

    Portugal

    Espanha Frana | Blgica | LuxemburgoCalle Gran Va Porte de Paris71 - 2. planta 50 Avenue du President Wilson28013 Madrid Btiment 112Espaa La Plaine St Denis 93214

    France

    Alemanha U.K | U.S.A | IrlandaKurfrstendamm 21 Kemp House10719 Berlin 152 City RoadDeutschland London

    EC1CV 2NX

    2013, Andr Ventura e Chiado EditoraE-mail: [email protected]

    Ttulo: Lies de Direito Penal Volume IEditor: XXXXXXX

    Coordenao editorial: Afonso RodriguesComposio grfica: Vitor Duarte Departamento Grfico

    Capa: XXXXXXXXX Departamento GrficoReviso: XXXXXXXXXX

    Impresso e acabamento: Chiado Print1. edio: XXXXXXXXXXX, 2013

    ISBN: XXXXXXXXXXXDepsito Legal n. XXXXXXXXXX

  • andr VenturaProfessor Universitrio

    Com a colaborao de:

    isabeL sousa Laranjeira

    marta sofia Padro

    Pedro batista rben

    Lies dedireito PenaL

    VoLume i

    Chiado EditoraPortugal | Brasil | Angola | Cabo Verde

  • Aos meus pais, Joo e Ana, pelo apoio, pelo carinhoe por terem sido os verdadeiros sustentculos

    de todo o meu percurso acadmico.

  • NDICE

    NOTA INTRODUTRIA S LIES DE DIREITO PENAL ..................................................................... 11PREFCIO ...................................................................................... 13PARA UMA NOVA ABORDAGEM DO DIREITO PENAL ....... 17I. O QUE O DIREITO PENAL? ................................................ 21

    a) Perspectiva Formal e Material ............................................. 21b) Elementos Nucleares: o Crime e a Pena ............................. 22

    II. DIREITO PENAL E MODELOS DE JUSTIA CRIMINAL .............................................................. 27

    a) Direito Penal e Modelos de Justia Criminal na Era da Globalizao e do Terrorismo Global. Os Modelos de Justia Penal na Sociedade do Risco .............. 30

    1. A lei fundamental ou a tradio constitucional de um Estado; ................................................................ 392. Contexto ideolgico e a narrativa subjacente ao discurso poltico e institucional, bem como a percepo social associada; ........................................ 413. A tradio jurisprudencial e a estrutura institucional dos rgos de investigao criminal; ........ 46

    III. GNESE DO DIREITO PENAL ............................................ 55IV. IDEIAS FUNDAMENTAIS DE DIREITO PENAL ............... 57

    a) SISTEMA ............................................................................ 57b) FUNDAMENTO ................................................................. 57c) FUNO ............................................................................ 57d) FINALIDADE .................................................................... 57

    7

  • V. O DIREITO PENAL E OS RESTANTES RAMOS DO DIREITO ......................................................... 59

    a) Direito Penal vs. Direito Contra- ordenacional .................... 60

    b) Direito Penal Clssico vs. Direito Penal Secundrio .......... 60

    c) Direito Penal vs. Direito Disciplinar ................................... 60

    d) Direito Penal vs. Criminologia vs. Poltica Criminal .......... 61

    e) Direito Penal vs Direito Constitucional .............................. 62

    1. Relaes entre o Direito Penal e a Constituio A Comunitarizao do Direito Penal .......................... 66

    VI. DIREITO PENAL E POLTICA CRIMINAL. UMA APROXIMAO AO CONCEITO DE PERIGO EM DIREITO PENAL .................................................................... 69

    a) A noo de Bem Jurdico ..................................................... 70

    b) O Direito Penal como Sistema Gradativo ........................... 75

    c) A importncia do perigo em Direito Penal: o Perigo Abstrato e o Perigo Concreto .................................... 76

    VII. PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL .................................................................... 81

    a) Princpio da Legalidade ....................................................... 82

    b) Princpio da Culpa ............................................................... 82

    c) Princpio da necessidade ..................................................... 83

    d) Princpio da Subsidiariedade ............................................... 83

    e) Princpio da Fragmentariedade ............................................ 83

    f) Princpio da eficincia ......................................................... 83

    g) Princpio da Humanidade das Penas ................................... 84

    VIII. OS PRINCPIOS FUNDAMENTAIS DO DIREITO PENAL E A NOVA SOCIEDADE DO RISCO ............................. 85

    IX. APLICAO DA LEI PENAL NO TEMPO ......................... 89

    X. O PRINCIPIO DA CULPA E A IMPUTAO SUBJECTIVA .................................................................................. 97

    XI. IMPUTAO SUBJECTIVA: O DOLO E A NEGLIGNCIA ...................................................... 99

    8

  • XII. A INTERPRETAO EM DIREITO PENAL ................... 101

    a) Metodologia de Interpretao em Direito Penal ................ 104

    b) Texto- Norma e Norma- Texto ............................................ 111

    XIII. A QUESTO DA ANALOGIA EM DIREITO PENAL PARA UMA COMPREENSO JUS- ANALTICA DO PROBLEMA ........................................................................... 117

    XIV. O MBITO DE APLICAO DO DIREITO PENAL .... 125

    a) Aplicao da Lei Penal no Tempo ..................................... 125

    b) Prescrio .......................................................................... 137

    c) Aplicao da Lei Penal no Espao .................................... 143

    1. A designao direito penal internacional ............. 143

    2. Princpios sobre o mbito de aplicabilidade no espao da lei penal portuguesa ............................... 144

    i. O princpio fundamental da territorialidade art. 4., al. a) .................................................... 144

    ii. Os princpios complementares ou subsidirios ................................................... 145

    iii. Restries aplicao da lei penal portuguesa a crimes cometidos no estrangeiro art. 6. ........................................... 150

    3. Aplicao da lei no espao concretizaes e exemplos prticos ..................................................... 152

    4. A Extradio ............................................................ 163

    5. Mandato de Entrega ou Deteno Europeu ............. 169

    6. A igualdade dos cidados perante a lei na aplicao da lei no espao ....................................... 172

    7. Tribunal Penal Internacional .................................... 175

    d) Leis Temporrias e Leis de Emergncia ........................... 181

    XV. FINALIDADES DAS PENAS OU FINS DAS PENAS ....... 191

    a) Narrativa da histria das penas em Direito Penal .............. 192

    XVI. RESPONSABILIDADE PENAL DAS PESSOAS COLECTIVAS ............................................................................... 199

    9

  • XVII. A PROBLEMTICA DO RECONHECIMENTO DAS SENTENAS ESTRANGEIRAS NO ORDENAMENTO JURDICO PORTUGUS .......................... 211XVIII. O NOVO DIREITO PENAL DO INIMIGO E A SOCIEDADE DO RISCO ..................................................... 215XIX. TENTATIVA ......................................................................... 217

    a) Introduo .......................................................................... 217

    b) Tentativa como forma de extenso da tipicidade do facto .................................................................................. 217

    c) Com que critrios e quando que a tentativa punvel? .............................................................................. 218

    d) Actos preparatrios ........................................................... 219

    1. Critrio formal objectivo ......................................... 220

    2. Critrio material objectivo ....................................... 220

    3. Critrios subjectivos ................................................ 221

    e) Tipo da tentativa ................................................................ 222

    f) Desistncia voluntria ........................................................ 222

    g) Fundamento da iseno da pena ........................................ 223

    h) Punibilidade da tentativa ................................................... 224

    i) Tentativa impossvel .......................................................... 224

    XX. SUBSIDARIEDADE, ESPECIALIDADE E CONSUNO ........................................................................... 227XXI. FACTOS POSTERIORES NO PUNVEIS .................... 233XXII. CONSENTIMENTO EM DIREITO PENAL .................. 239

    a) Generalidades .................................................................... 239

    b) Tipicidade e ilicitude ......................................................... 240

    c) Objecto do consentimento ................................................. 240

    d) Vcios da vontade .............................................................. 240

    e) Bons costumes ................................................................... 241

    f) O consentimento e o bem jurdico tutelado perspectiva analtica ........................................................... 243

    BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA .......................................... 245

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  • NOTA INTRODUTRIA S LIESDE DIREITO PENAL

    Prof. Doutor Pablo CortsProfessor de Direito na Universidade de Leicester (Reino Unido).

    Fazer a introduo a um Manual de Direito Penal sempre umatarefa complexa e de grande responsabilidade: por um lado pressupeuma avaliao cientfica rigorosa, com a estabilidade e a solidez queuma obra deste cariz deve ter; por outro, exige sempre uma anlise pe-daggica relevante, visto ter como principais destinatrios a Universi-dade e os seus alunos.

    O Professor Andr Ventura foi meu colega de Doutoramento e fi-caram clssicas, nesse tempo, as discusses e o empolgamento que osnovos desafios do direito penal contemporneo impunham. A paixo quelhe provocavam. O rigor cientifico e metodolgico com que, no obs-tante o calor dos acontecimentos, cada anlise lhe merecia, plena de re-ferncias aos cultores do direito criminal clssico e, igualmente, aosacadmicos emergentes em Inglaterra, Irlanda, Portugal, Estados Uni-dos, Espanha e Alemanha.

    por isso uma honra que o Professor Andr Ventura me confereao pedir- me uma breve nota introdutria s suas Lies, cujo contedocientfico e didctico iro, estou seguro, marcar os prximos tempos dacincia criminal em Portugal. No comum, de facto, esta renovadaperspectiva sobre o direito penal: a capacidade de conciliao entre asmetodologias e os conceitos contemporneos com as mais importantescorrentes do pensamento jurdico ocidental.

    H um dado que merece destaque nestas Lies de Direito Penal:a sua indiscutvel actualizao face ao novo contexto internacional, mar-

    LIES DE DIREITO PENAL VOLUME I

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  • cada pela emergncia do terrorismo como ameaa global, as redes decriminalidade organizada em grandes espaos regionais sem fronteirasfsicas e a desmaterializao dos riscos. A sociedade do risco, assim ape-lidada apaixonadamente por Ulrich Beck, o grande pano de fundo destaobra que, assim, se torna numa grande referncia do direito penal con-temporneo.

    Parece evidente que o direito penal se depara com problemticasque desafiam a sua prpria identidade, enquanto sistema normativo eenquanto cincia. O mundo e especialmente a ideia de justia criminal mudou a uma velocidade extraordinria na ltima dcada, de tal formaque o impacto dessas mudanas no ser ainda plenamente alcanvelou compreensvel. No entanto, estas Lies representam talvez um dosprimeiros impulsos, um dos primeiros ensaios de relevo para a com-preenso desse novo paradigma emergente de justia criminal. Uma em-presa que h muito se impunha realizar.

    Finalmente, no posso deixar de concordar com o que j foi ditosobre o autor. A capacidade de investigao e aprendizagem, aliada aopermanente esforo de pedagogia e criatividade, traro ao ProfessorAndr Ventura um lugar entre os melhores cultores europeus do direitopenal. As Universidades europeias em que investigou e leccionou sabem,sem sombra de dvida, daquilo que estou a falar.

    Londres, 28 de julho de 2013

    ANDR VENTURA

    12

  • PREFCIO

    Mestre Raul Soares da VeigaAdvogado. Especialista em Direito Penal.

    O Senhor Professor Doutor Andr Ventura honrou- me pedindo- meque lhe prefaciasse o primeiro volume das suas primeiras lies de Di-reito Penal.

    As questes criminais esto na ordem do dia (ainda que mais porrazes de sensacionalismo meditico e de demagogia poltica, do quepor boas razes de uma crescente aquisio de uma correta hierarquiade valores) e no h portanto comentador ou jornalista, por mais impre-parado que seja, que no se sinta habilitado a tecer consideraes sobreo que ou no crime e sobre o merecimento penal de qualquer ato.

    O nvel mdio da prtica forense ius- criminal, que tem apesar detudo vindo a melhorar de nvel nas ltimas trs dcadas, est ainda muitolonge do alto nvel mdio da cincia jurdico- penal.

    Resulta destas circunstncias um terreno frtil para as mais fala-ciosas consideraes sobre a ineficcia da justia penal, as quais porsua vez geram voluntarismos persecutrios de quem teme mais ser con-siderado injusto, mesa do caf que frequenta , do que, nos meioscientficos, que no frequenta, ser considerado um jurista de qualidade(e portanto verdadeiramente justo, porque a aproximao s soluesjustas no se faz, com inspiraes sbitas, fechando os livros, masabrindo- os e estudando o que h milnios vem evoluindo na cinciacriminal).

    LIES DE DIREITO PENAL VOLUME I

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  • A literatura de qualidade , porm, na rea do Direito Penal, mui-tas vezes de difcil compreenso (tambm aqui, por vezes, por boas ra-zes de fundamentao e demonstrao, mas outras vezes por uma certaforma de snobismo intelectual que raras vezes adianta seja o que for que se autocompraz em targiversaes, que fazem os textos sofrveisparecer razoveis).

    So assim da maior utilidade umas lies claras, sucintas e facil-mente acessveis tambm a no especialistas, como estas do ProfessorDoutor Andr Ventura, que, com base nelas, podero dizer menos coisasabsurdas nos cafs ou diminuir um pouco os dislates de alguns comen-trios mediticos. Lies estas no submergidas em citaes e discursosparalelos e que do ao estudante mdio a rpida possibilidade de pensarcom acerto sobre os problemas jurdico- criminais, sem ter que passarpor atos de f jus- filosficos ou por anlises omni- compreensivas do Di-reito para perceber, por exemplo (e o exemplo no inocente, poistm- se presentes as mesas de caf, os mediatismos e os voluntarismosacima referidos), que s h crime com base em lei prvia e com totalpreenchimento de todos os elementos objetivos e subjetivos do tipopenal em causa.

    As lies de Direito Penal do Professor Doutor Andr Ventura que, com grande simplicidade e brilhantismo se formou nos rigores ro-mano- germnicos da cincia penal e se doutorou nos rigoresanglo- saxnicos da mesma cincia so pois um blsamo, uma boanotcia e um importante contributo.

    Um blsamo para quem est habituado a ter que optar, a maiorparte das vezes, entre a sobrecarga de erudio e textos incompletos einexatos de divulgao.

    Uma boa notcia para quem de boa f quer perceber os rudimentosdo Direito Penal.

    E um importante contributo, quer para os estudantes de DireitoPenal quer para todos aqueles que tenham gosto em discutir com serie-

    ANDR VENTURA

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  • dade cientfica sobretudo os passos menos consensuais destas lies,como os relativos objetivao do Direito Penal na sociedade de riscopost- 11 de setembro, ou os relativos a um Direito Penal in action que semescla com o Direito Processual Penal e que tambm produto do am-biente social em que cada momento se vive. Aqui pem- se questes re-levantssimas como a da interao entre os meios de comunicao sociale os rgos de aplicao do Direito Penal sobre as quais (como diziaWittgenstein referindo- se metafsica, no final do seu Tractatus lo-gico- philosophicus, no para a negar mas para significar que estava emcausa outro tipo de linguagem), h que ficar calado.

    De facto, o Professor Doutor Andr Ventura no se resguarda noolimpo da tecnocracia jurdico- penal, antes enfrentando a realidade sema separao protetora de que tudo o que social ou politicamente me-lindroso fica para a poltica criminal, para a criminologia ou para o di-reito processual penal.

    F- lo numas primeiras lies, a vrios ttulos ousadas, mas auda-cia fortuna juvat.

    Lisboa, 31 de agosto de 2013

    LIES DE DIREITO PENAL VOLUME I

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  • PARA UMA NOVA ABORDAGEMDO DIREITO PENAL

    Muitas pessoas, muitos momentos e muitas instituies marcaminevitavelmente o surgimento do primeiro volume destas Lies de Di-reito Penal. Desde logo a experincia de ensino, na Universidade Novade Lisboa, na Universidade Autnoma e na Universidade de Cork, ondecada ano um novo rastilho de dilogo cientifico aberto, slido e sincero.Por outro lado, a experincia de investigao em instituies diversas naEuropa e nos Estados Unidos, mas em que tenho obrigatoriamente dedestacar a Universidade de Salamanca, onde durante dois anos lectivostive a oportunidade de investigar com alguns dos mais reconhecidos mes-tres em direito criminal na denominada velha Europa e onde aprendium dos elementos que mais influenciaria o meu pensamento penal: a con-ciliao do pensamento clssico com o pensamento moderno, a aplicaoconjunta das metodologias cientficas mais avanadas com a solidez e aconsistncia das principais correntes da histria do direito.

    Este um livro para os alunos das universidades portuguesas, umcontributo que pretende sobretudo conseguir uma nova sistematizaodo ensino do direito penal, na linha daquilo que tem sido feito nos lti-mos anos nas principais universidades do mundo, sobretudo nos pasesde tradio anglo- saxnica. E, ao sistematizar, pretende compilar as ten-dncias e as principais mudanas que o direito penal sofreu nos ltimosanos, especialmente desde 2001, procurando integrar as reformas legis-lativas da ltima dcada no quadro teortico do direito penal tradicio-nal.

    inevitvel a concluso de que a emergncia do terrorismo comoameaa global prioritria, a criminalidade organizada e o seu crescentepeso no volume econmico global dos Estados, bem como a crescente

    LIES DE DIREITO PENAL VOLUME I

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  • sofisticao tecnolgica, geraram uma verdadeira mutao paradigm-tica no direito penal. De uma base de territorialidade e da culpa, a cinciacriminal transitou, como referiu Gunter Jakobs, para um paradigma deimaterialidade no seio de uma sociedade do risco. este conceito de so-ciedade do risco, famosamente empregue por Ulrich Beck, que o direitopenal contemporneo no poder deixar de tratar, de analisar e de inte-grar no seu escopo conceptual.

    Neste sentido, alguns dos princpios fundamentais da tradiopenal e constitucional Ocidental tm de ser, eles prprios, revistos luzdesta nova dogmtica criminal: as noes de culpa e legalidade, pilaresessenciais da doutrina penal liberal, tm de ser cuidadosamente revistos luz da nova estrutura e sobretudo das novas e prementes finalidadesdo direito penal. Este um desafio a que os cultores do direito penal nopodem, neste momento, virar costas.

    A prpria dimenso e percepo do risco alteraram- se significati-vamente. A sociedade industrial deu lugar a uma sociedade ps- industrial,marcada pela altssima sofisticao tecnolgica e informtica, peladesmaterializao dos objectos e pelos riscos associados a uma sriede dimenses tradicionalmente ignoradas pela cincia penal, como oambiente, a disseminao nuclear, os fluxos migratrios ou mesmo apolitica fiscal. Um direito penal contemporneo tem de incluir estes t-picos como parte integrante da sua concepo gentica, do entendimentodo seu real- verdadeiro como diria Faria Costa.

    Foi a este conjunto de desafios que quis propositadamente respon-der. E, ao mesmo tempo, fornecer aos meus alunos aos que o so e aosque o sero um instrumento didctico e pedaggico que condense estesnovos elementos de forma simples e directa, recorrendo sempre que pos-svel a exemplos e exerccios prticos que permitam uma compreensoadequada por parte daqueles que tm aqui o seu primeiro contacto como Direito Penal.

    Tenho de agradecer, expressamente, Universidade Nova de Lis-boa e Universidade Autnoma, espaos de cincia e ensino que sintocomo a minha prpria casa e que muito contriburam, financeira e aca-demicamente, para o desenvolvimento e concluso desta obra.

    Dra. Isabel Laranjeira, Dra. Marta Padro e ao Dr. PedroRben quero expressar aqui, tambm, um carinhoso agradecimento, pois

    ANDR VENTURA

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  • esta obra nunca teria conhecido a luz sem o seu precioso e esforadoapoio e dedicao, com transcrio de aulas, enquadramento bibliogr-fico e revises literrias.

    Um agradecimento especial e que nunca ser em demasia aos meusMestres, amigos e companheiros de viagem de toda uma vida acad-mica: ao Prof. Jorge Bacelar Gouveia, ao Prof. Raul Soares da Veiga e Prof Teresa Beleza devo o melhor da minha formao acadmica ecientfica, o valor mais alto da minha prpria educao. Destes verda-deiros Mestres levo aquilo que Wittgenstein dizia ser o maior tesouroda humanidade: a capacidade, o desejo e a ambio de querer ir sempreum pouco mais longe do que aqueles antes de ns foram. Um poucomais alm do que aquilo que nos foi ensinado.

    Finalmente, the last but not the least, a minha famlia merece aquiuma palavra de referncia e um agradecimento que ser sempre insufi-ciente face ao incontornvel esforo humano, emocional e financeiroque consubstanciou a minha educao e a minha formao, em Portugale no estrangeiro. Sem eles, sem aquele carinhoso e preocupado acom-panhamento na distncia e na ausncia, esta imensa viagem acadmica e certamente estas Lies no teriam sequer comeado.

    Universidade Nova de Lisboa, 11 de Junho de 2013

    LIES DE DIREITO PENAL VOLUME I

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  • I. O QUE O DIREITO PENAL?

    Muito se tem discutido e afirmado sobre a natureza e as finalida-des do direito penal. Ao iniciar o estudo deste ramo do direito neces-srio, desde logo, apreender algo da sua essncia enquanto sistemanormativo, enquanto sistema regulador das condutas e dos comporta-mentos humanos. Para alm de disciplina jurdica, para alm de ramodo direito, deve ser questionada qual a alma do direito penal, de queforma se caracteriza a sua essncia.

    a) Perspectiva Formal e Material

    O direito penal pode ser analisado numa dupla perspectiva: formale material.

    Do ponto de vista formal institucional podemos dizer que oDireito Penal o sistema de normas que trata os pressupostos, a de-terminao, a aplicao e as consequncias dos crimes e das condutassusceptveis de accionarem a aplicao de medidas de segurana.1 Istosignifica que o direito penal , sobretudo, uma estrutura institu-cional e normativa que define globalmente em termos de defi-nio e consequncias as categorias analticas dos crimes e dasrespectivas sanes penais. Note- se que, efectivamente, esta umanoo puramente formal, que corresponde a uma descrio cienti-fico- categorial das estruturas fundamentais do direito penal.

    LIES DE DIREITO PENAL VOLUME I

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    1 Neste sentido, Faria Costa, Jos de, Noes Fundamentais de Direito Penal, 3 edio,Coimbra Editora (2012), p. 3

  • Por outro lado, o direito penal tem uma forte componente subs-tancial, isto , uma slida dimenso material que a definio formal no capaz de englobar e compreender. De facto, o sistema jurdico- penalno apenas um quadro de dispositivos analticos fechados e sem qual-quer relao com o contexto humano. Pelo contrrio, desde logo en-quanto cincia humana, o direito penal e o direito em geral sustentama sua estrutura num conjunto de elementos substanciais: a finalidade, afuno, os pressupostos fundamentadores.

    Do ponto de vista material, poderemos dizer que o direito penal o ramo do direito cuja finalidade proteger os bens jurdico--comunitrios essenciais, numa lgica de preveno e de reintegra-o orientadas para a preservao e subsistncia dos valores essen-ciais de uma determinada comunidade humana.

    b) Elementos Nucleares: o Crime e a Pena

    Mantendo esta dupla abordagem do Direito Penal, importantedistinguir, desde logo, dois dos seus elementos essenciais: o crime e apena. O que um crime? Em que consiste, juridicamente, a noo depena?

    A noo de crime , indiscutivelmente, muitssimo varivel doponto de vista histrico. A evoluo moral, tica e social das comunida-des provocou, na mesma proporo, a mutao do conceito de crime.Quanto a este aspecto, existem variados exemplos histricos de condutasque eram criminalizadas e que deixaram de o ser, ou vice- versa. Porexemplo, a sodomia era crime nas Ordenaes do Reino e deixou de oser no Cdigo Penal de 1982. Por outro lado, determinados crimes am-bientais ou fiscais no constavam nas Ordenaes e so hoje tipos penaisconsolidados no Cdigo Penal. A noo material de crime tem, assim,uma ntima conexo com o devir histrico da moralidade dominante.

    A ideia sublinhada por Jean Maillard de desvio a um padrosociolgico e moralmente dominante outra das ideias que tem moldadoa noo material de crime. Simplificando, poderemos dizer que o legis-lador tende a criminalizar, em cada poca histrica, os comportamentosque considera particularmente graves do ponto de vista do desvio a esse

    ANDR VENTURA

    22

  • mesmo padro e da eventual ameaa aos bens jurdicos considerados es-senciais.

    Do ponto de vista formal, poderemos ainda dizer que a noo decrime se prende sobretudo com a ofensa grave a esses mesmos bens ju-rdicos essenciais ou pelo menos assim considerados por uma comu-nidade historicamente localizada. O crime corresponder assim descrio formal de uma determinada conduta considerada lesiva debens jurdicos fundamentais.

    Ora, nesta lgica, a pena adquire uma dimenso e uma funoinsubstituveis. Como refere o Faria Costa, a pena representa a reac-o de uma comunidade de homens queles comportamentos penal-mente proibidos por essa mesma comunidade. O que bem demonstra,em nosso ver, que a pena o reflexo dos valores dessa comunidadeem um certo tempo e em um certo espao. A pena , por sobre tudo,a refraco do entendimento do homem sobre si prprio. Precisa-mente por isso, a pena repe o sentido em primevo da relao de cui-dado- de- perigo.2

    Neste sentido, preciso compreender a pena como um instru-mento de eficcia do sistema de justia criminal (a ameaa de pena en-quanto elemento preventivo, como enunciava Roxin) mas tambmcomo um reflexo dos valores fundamentais da comunidade. O tipo depena, a sua extenso e a sua delimitao concreta fornecem- nos, assim,importantes elementos de compreenso de uma determinada comuni-dade.

    Deve ser notado que as noes de crime e de pena representam,de certa forma, a estrutura nuclear do direito penal, sendo volta destesconceitos que o prprio sistema de justia criminal funciona. A nooou a definio material de crime exigem uma reflexo mais aprofundada.Vimos j como a prpria noo formal de crime implica, como conse-quncia lgica, a sua variao histrica e geogrfica. O crime torna- seassim, numa noo mutvel consoante os contextos de inter- relao co-munitria.

    Esta evidncia aponta para uma outra dimenso importante, paraa compreenso da noo material de crime: o espao de influncia da

    LIES DE DIREITO PENAL VOLUME I

    23

    2 Faria Costa, Jos de, Noes..., cit., p. 10

  • poltica criminal ou at, como refere a Teresa Beleza, o crime como ob-jecto da poltica criminal ou da poltica stricto sensu.3

    evidente que a qualificao de um facto como crime ser, naptica acima mencionada, um problema de poltica criminal, isto ,um problema de deciso comunitria quanto qualificao de deter-minadas condutas. O que deve ou no ser considerado crime num de-terminado perodo histrico? Esta uma deciso que, numa lgica dedemocracia substantiva, deve estar reservada ao poder de conformaoda comunidade, da a sua categorizao como problema poltico emsentido lato. Deve ser a comunidade a estabelecer e a definir as con-dutas que considera gravemente lesivas dos seus bens jurdicos fun-damentais.

    Esta considerao obriga, no entanto, a alguns esclarecimentos. Porum lado, a reconhecer que os movimentos constitucionais ps- SegundaGuerra Mundial impuseram algumas limitaes ao direito penal enquantoexpresso directa da vontade comunitria. E, num certo sentido, prpriadimenso poltico- criminal das normas penais. Por outro, impuseram tam-bm algumas obrigaes em termos de definio e aplicao s legis-laes penais, que assim deixam de ficar entregues s oscilaes constantesdas correntes de poltica criminal.

    De certa forma, a noo material de crime, continuando a ser umproblema de poltica criminal, ficou balizada por certos princpios e pos-tulados de natureza constitucional. Alguns destes princpios que estu-daremos mais adiante como o princpio da proporcionalidade, danecessidade, da adequao ou da culpa tornaram- se importantes critriosdelimitadores do poder penal do Estado e, consequentemente, tornam- sebarreiras formais e substantivas discricionariedade da poltica crimi-nal.

    A questo que se deve colocar a seguinte: a noo material decrime deve ficar confinada ao campo estrito da poltica criminal e dassuas oscilaes histricas? Do nosso ponto de vista parece- nos que no.

    A noo material de crime deve, em nosso entender, concretizar- sesegundo trs linhas poltico- dogmticas essenciais:

    ANDR VENTURA

    24

    3 Beleza, Teresa, Direito Penal I volume, Associao Acadmica da Faculdade de Direitode Lisboa, Lisboa (1984), p. 26

  • 1) Enquanto objecto de poltica criminal: a noo de crime deverestar suportada na vontade comunitria, que elege os bens jurdicos es-senciais e o grau de lesividade e perigosidade das condutas e portantohistrica e geograficamente varivel4;

    2) Fortemente limitada por postulados constitucionais incontor-nveis: os princpios da proporcionalidade, da necessidade, da adequa-o e da culpa restringem a discricionariedade do legislador paracriminalizar comportamentos;

    3) Delimitada pelo catlogo de bens jurdicos fundamentais de na-tureza constitucional e internacional, isto , a noo material de crime,no poder ignorar a hierarquia de bens jurdicos aposta na Constituioda Republica (assim como, na Conveno Europeia dos Direitos doHomem) e o respectivo relevo dogmtico e substantivo (analisaremoscom maior profundidade esta questo nas relaes entre o direito penale o constitucionalismo).

    Apesar desta sistematizao, no deve ser negado que, para algunsautores, a noo material de crime no pode ser analisada sem remeterpara a prpria natureza das coisas e, nessa linha de pensamento, para ojusnaturalismo (o direito natural). Nesta linha de pensamento, o crimeseria no apenas uma questo de poltica criminal, conforme acima enun-ciado, mas tambm a manifestao de uma ordem pr- jurdica existente,de uma ordem normativa natural prvia constituio dos ordenamentosjurdicos. Poderamos mesmo dizer que, para alguns autores conhecidos,existiria uma ordem substantiva e relacional prvia que conformaria aordem jurdica positiva e que seria comum a toda a humanidade.

    No querendo entrar directamente nesta contenda doutrinal secu-lar que certamente o constitucionalismo moderno j esvaziou em

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    4 Esta variabilidade histrica apontada por Teresa Beleza de forma evidente: basta lem-brar, por exemplo, que durante os tempos medievais e at na histria moderna, a sodomiaera punida com a pena de morte. A sodomia e a bestialidade, por exemplo, eram punidascom a pena de morte. A homossexualidade era punida com a mesma pena de morte e ascinzas lanadas ao vento, porque era realmente considerado um crime honroso contra aprpria natureza. dado o exemplo do Livro das Ordenaes, 5, titulo 13 5 : Aquele ouaquela que cometer o crime de sodomia, onde o sexo perde o lugar e o coito no segue aordem da natureza ser punido com pena de fogo, perdimento dos bens, ainda havendofilhos e ainda com pena de infmia, que passa aos filhos e netos. Cfr. Beleza, Teresa, DireitoPenal..., cit., p. 42

  • grande parte ser importante tecer duas consideraes: por um lado,mesmo que a noo material de crime se reporte a essa ordem normativaprvia, ela ter sempre de se materializar ou expressar institucional-mente atravs dos mecanismos formais da poltica criminal; por outrolado, essa ordem supra- jurdica est hoje amplamente identificada comos principais axiomas constitucionais, perdendo, assim, grande parte dasua importncia em termos de reflexo pragmtica dos modelos de jus-tia criminal.

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  • II. DIREITO PENAL E MODELOSDE JUSTIA CRIMINAL

    Pretendemos, neste captulo, introduzir uma reflexo atpica nosmanuais tradicionais de direito penal: a relao teortica e dogmticaentre o direito penal e os denominados modelos de justia criminal.Assim, o que um modelo de justia criminal?

    Podemos avanar com vrias noes, que tm sido aportadas pordiferentes escolas de pensamento. Em qualquer caso, pensamos que po-deremos avanar com uma definio com amplo consenso quer em ter-mos de direito penal, quer em termos de criminologia contempornea:o modelo de justia criminal ser a base teortica, dogmtica, pro-cessual e institucional em que se sustenta e atravs da qual funcionao prprio sistema criminal, estabelecendo as suas finalidades pri-mevas, as suas funes essenciais e a sua base axiolgica.

    Nesta medida, o modelo de justia criminal representa, de certaforma, as orientaes essenciais do prprio sistema penal, ora incidindona ptica de preveno, ora de represso/punio, ora em modelos mis-tos integradores de diferentes modalidades. O estudo do direito penalno pode ser feito, neste sentido, sem uma compreenso inicial de queo seu funcionamento se processa atravs de modelos globais de integra-o, que so eles prprios desenhados e configurados pela poltica cri-minal.

    Esta reflexo importante porque sero os modelos de justia cri-minal vigentes a determinar as finalidades do prprio direito penal e,consequentemente, as suas principais caractersticas. A tnica, eminen-temente, sancionatria, repressiva, preventiva ou ressocializadora do di-reito penal ser aportada, precisamente, pelo modelo de justia criminalvigente em cada momento histrico.

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  • De certa forma, o modelo de justia criminal bastante maisabrangente que o quadro jurdico- penal em vigor, na medida em que in-clui a reflexo criminologica dominante, um quadro de referenciajus- filosfico e mesmo alguns tpicos extra- jurdicos, isto , o quadrosociolgico e poltico- econmico envolvente. Reflectir sobre modelosde justia criminal procurar compreender o quadro terico em que asdinmicas penais ocorrem e a razo pelas quais ocorrem. a partirdeles que podemos compreender as orientaes to divergentes que odireito penal teve e continua a ter atravs da histria. Neste sentido, asquestes actuais relacionadas com as finalidades do direito penal, como papel da vtima no quadro da justia, com as crescentes restries dedireitos fundamentais e liberdades dos cidados, com o direito penal doinimigo (a que se refere Jakobs), com um direito penal voltado para ocastigo ou para a reintegrao do agente criminoso, tero obrigatoria-mente de ser compreendidas luz do modelo de justia criminal emvigor. O direito penal no pode ser compreendido sem o modelo de jus-tia criminal que o sustenta e que, em grande medida, o define.

    Esta reflexo hoje mais actual do que nunca. A sociedade con-tempornea a que Ulrich Beck apelidou de sociedade do risco rom-peu com a modernidade clssica e com a sociedade industrial,assentando num conjunto de estruturas, projectos e sistematizaes tc-nicas que multiplicaram exponencialmente os riscos de vivncia e con-vivncia do ser humano. A transferncia dos centros de poder e a suamultipolarizao, a emergncia de preocupaes poltico- sociais fun-damentais consideravelmente diferentes daquelas que ocupavam oliberalismo poltico dos sculos XIX e, mesmo, XX e as prprias ca-ractersticas da sociedade ps- industrial fizeram incrementar significa-tivamente os perigos a que se encontra exposto o individuo/cidado. Odireito penal como cedo notou Claus Roxin no poderia ficar alheadodesta nova sociedade do risco e teve de se munir de um vasto conjuntode novos instrumentos conceptuais e hermenuticos capazes de acautelaros seus princpios fundamentais e, ao mesmo tempo, os perigos gravs-simos a que se encontra exposto o ser humano (por exemplo, a nvel am-biental, alimentar, rodovirio ou urbanstico).

    Por outro lado, como tm notado autores como Gnther Jakobs eLaura Donohue, tambm a emergncia, especialmente na ltima dcada,

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  • de ameaas globais como o terrorismo e o crime organizado transnacio-nal, tm provocado verdadeiras revolues conceptuais e paradigmti-cas dentro do direito penal, obrigando a reformulaes constantes e aimportantes cedncias dos princpios fundamentais estruturantes. O di-reito penal do inimigo assim apadrinhado por Jakobs a expressoltima deste movimento de mudana que o direito penal tem vindo a co-nhecer, reformulando as suas finalidades intrnsecas e as prprias con-cepes de humanidade e culpa a que o direito penal da segunda metadedo sculo XX estava habituado.

    Finalmente, o papel e as aspiraes das vtimas no quadro jur-dico- penal tem tido, tambm, importantes consequncias. Ainda quemais notrias no direito processual penal, estas consequncias tm pro-duzido algumas alteraes importantes em termos de restries de di-reitos fundamentais e na prpria orientao da poltica criminal global.A crescente relevncia adquirida pela vtima no mbito do direito penaltem afectado, curiosamente, as finalidades ressocializadoras do direitopenal, de uma forma ainda no plenamente compreendida pela cinciapenal.

    Estas trs linhas de fora a que nos referimos a multiplicaodos riscos da sociedade ps- industrial, o terrorismo e o crime organizadoe, ainda, o crescente papel da vtima no quadro criminal tm provo-cado, e vo continuar a provocar nos prximos anos, importantes alte-raes no quadro teortico em que se baseia o nosso direito penal. Assim, luz destas mudanas tero de se ir compreendendo numa lgica dehermenutica dinmica e evolutiva os prprios princpios fundamen-tais, como o princpio da legalidade, da tipicidade, da proporcionalidade,da adequao e da culpa. A prpria lgica da fragmentariedade e subsi-diariedade do direito penal tem vindo a ser posta fortemente em causacom o impressionante alargamento das fronteiras penais a reas tradi-cionalmente reservadas a outros ramos do direito, como o direito admi-nistrativo, o direito fiscal ou mesmo o direito urbanstico.

    Neste sentido, para a compreenso plena da materialidade do di-reito penal, da sua natureza e das suas recentes transformaes, analisara dinmica evolutiva dos modelos de justia criminal , em nosso en-tender, uma tarefa incontornvel e imperiosa nestas Lies de DireitoPenal. a esse esforo que nos entregaremos de seguida.

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  • a) Direito Penal e Modelos de Justia Criminal na Era daGlobalizao e do Terrorismo Global. Os Modelos de JustiaPenal na Sociedade do Risco

    Qualquer reflexo acerca de modelos de justia implica, necessa-riamente, um olhar sobre as dinmicas contemporneas do processo, dopalpitar concreto e realista do sistema de justia. Ainda que de carctereminentemente explicativo e no performativo (isto , no como pro-gramas de aco e transformao), os modelos no podem ser vistoscomo absolutamente transcendentes realidade ainda que comportemsempre um certo grau de transcendncia e abstraco mas antes comoum conjunto analtico capaz de absorver, explicar e integrar num sistemaglobal as dinmicas da realidade sobre a qual incide, no caso presenteos sistemas de justia criminal.

    Neste sentido, este trabalho no se pode ficar por uma descriodos principais modelos tericos existentes, nem por um breve apa-nhado dos princpios tericos desta rea, devendo antes complementaresta anlise com uma outra de carcter emprico e social, o conheci-mento das dinmicas prprias dos sistemas criminais contempor-neos. Mais, este trabalho tem de ser capaz de combinar essa mesmaanlise com os princpios e os valores que sustentam o paradigma do-minante de justia penal, em ordem a identificar com clareza e siste-maticidade:

    os objectivos do sistema de justia criminal contemporneo; as dinmicas e as aspiraes dos vrios agentes que nele interfe-

    rem; a influncia da realidade social e politica envolvente; as falhas estruturais do sistema; a necessidade de um novo modelo de compreenso da realidade

    dos sistemas de justia penal contemporneos.

    Antes de mais, algumas questes emergem como preliminares aqualquer anlise: estaro a mudar os objectivos do sistema de justiacriminal? Ser que a criminalidade contempornea, com as suas novascaractersticas e modalidades, est a afectar a direco e os propsitosdo sistema de justia? Ou, noutro sentido, os objectivos do sistema

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  • mantm- se inalterados, sendo que a percepo de mudana conferidapelas novas estratgias e procedimentos para atingir os mesmos objec-tivos? Ser uma questo de sentido, uma questo estrutural ou uma meraquesto de procedimentos?

    O problema toca vrias questes em simultneo, algumas delasdebatidas pelos acadmicos e pela doutrina ao longo dos sculos.

    Comeamos por expr precisamente a proposio teortica naqual assenta a nossa anlise: todo o sistema de justia reflecte, ten-dencialmente, um determinado programa poltico- social, imanenteao texto constitucional (nos pases que possuam constituio escrita)ou tradio jurdica e de justia popular de um pas.

    Com esta proposio, pretendemos elucidar, desde logo, a nossaconvico quanto natureza mutante ou cambiante do sistema de justia.Efectivamente, uma anlise histrica e comparativa, como a levada acabo, por exemplo, por Richard Vogler,5 demonstra precisamente comoa estrutura do regime (econmico ou poltico) influencia e influen-ciado pelo sistema de justia. Trata- se de influncias mtuas que acabampor gerar- se e fortalecer- se mutuamente: de facto, a natureza do sistemade justia acaba tambm por condicionar todo o funcionamento do sis-tema poltico, seja ele de natureza democrtico- parlamentar ou centra-lista- autoritrio.

    Com isto, chegamos concluso de que o sistema de justia no uma realidade abstracta e imutvel, antes mutante e receptora de mltiplasinfluncias e dinmicas exteriores. Porm, a questo central mantm- seinalterada: poderemos identificar objectivos comuns e transcendentes atodos os sistemas de justia? Finalidades ontolgicas, parte da prprianoo de sistema de justia?

    Numa primeira abordagem, poderamos concluir ser imanentea todo e qualquer sistema de justia criminal a preveno e a puniodo crime, bem como a proteco da colectividade. Porm, uma defi-nio nestes moldes no contribui substancialmente para o debatecientfico em torno desta questo, visto que no avana suficiente-mente para concluir que todos os sistemas de justia tm como ob-jectivo a preveno e a represso da criminalidade. Efectivamente,

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    5 Vogler, Richard, A World View of Criminal Justice, Aldershot: Ashgate (2005)

  • pudemos j verificar, atravs dos estudos de John Stickels e DouglasE. Beloof, que alguns modelos colocam a tnica na dimenso restaura-tiva ou reparadora da justia (restorative justice) atravs do envolvi-mento de vrios agentes sociais e no na represso da criminalidade,pelo que a concluso atrs mencionada no seria totalmente verda-deira.

    Poderamos ainda referir, como em algumas abordagens teri-cas mais contemporneas, que o objectivo de qualquer sistema de jus-tia repor o tecido social quebrado com a prtica do crime6, mastal definio incompatvel com a realidade incontornvel, expostapor Andrew Ashworth, de que uma quantidade significativa (senomaioritria) dos crimes cometidos nunca so reportados s autorida-des7 e o papel da vtima no mbito do processo criminal, fundamentalpara a reposio de qualquer consenso, demasiadamente negli-genciado.

    Ou, por outro lado, poderamos recuperar algumas noes da li-teratura jurdica clssica e associar o sistema de justia a uma qualquerreferncia moral e axiolgica (normativa) que desenha o padro de com-portamento pelo qual se devem pautar os indivduos de uma determinadasociedade. Mas mesmo esta noo, extremamente lata e pouco eficaz doponto de vista cientfico, choca com a incontornvel realidade de quemuitas normas e regras jurdicas so, hoje em dia, vazias ou pouco con-sistentes moralmente, revelando antes aspectos tcnicos ou, por outrolado, transitrios (por exemplo, regras no mbito do direito do urba-nismo ou mesmo opes do legislador no mbito das formas de processopenal admissveis).

    Neste sentido, parece- nos bem mais prudente no impor partidanenhuma noo ou objectivo irrenuncivel ao conceito de sistema dejustia, nem derivar a partir desse pressuposto qualquer concluso nombito do Direito Penal.

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    6 Fish, Morris J., An Eye for an Eye: Proportionality as a Moral Principle of Punishment,Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 28, N 1 (2008), p. 68; Sobre o conceito de restorativejustice ver Johnstone, G., Restorative Justice: Ideas, Values, Debates, Cullompton, Devon:Willian Publishing, (2002)7 Ashworth, Andrew, Sentencing and Criminal Justice, 4th Ed., Cambridge University Press,Cambridge (2005), p. 8- 31

  • Como refere com preciso Andrew Ashworth it would hardlybe possible to formulate a single meaningful aim of the criminaljustice system which applied to every stage. It is true that one mightgather together a cluster of aims: for example, the prevention ofcrime, the fair treatment of suspects and defendants, due respect forthe victims of crime, the fair labelling of offences according to theirrelative gravity and so on. But to combine these into some over-reaching aim such as the maintenance of a peaceful society throughfair and just laws and procedures is surely to descend into vacuity(...).8

    O sistema de justia e a sua caracterizao depender sempre dosmodelos que, numa determinada poca histrica e fruto das mais diver-sas condies, prevalecem. Dos modelos que so impostos pelo governo,pelos corpos sociais ou simplesmente pela tradio cultural e jurdicade um povo. A chave de interpretao de um determinado sistema dejustia est, precisamente, no modelo que o caracteriza e nas suas prin-cipais linhas axiolgicas.

    Chegamos portanto concluso de que o sistema de justia estdependente do modelo ou dos modelos que, numa determinada pocahistrica, prevalecem ou se apresentam como dominantes. Neste sentido,revela- se fundamental uma anlise dos trabalhos de Richard Vogler edas grandes linhas do seu World View of Criminal Procedure.

    Desde logo, a sua importante concluso de que os dois modelosapresentados por Packer no so, afinal, opostos ou modelos antinmi-cos, como frequentemente se apresentam. No possvel, portanto, en-tender o sistema de justia com base na tenso ou nas dinmicas deinteraco entre esses dois alegados modelos porque:

    Put simply, crime control is patently an objective whereas dueprocess is a method. In no sense can they be considered as polar oppo-sites or antinomies and to do so is to give unwarranted priority to themodel which promises results over the model which merely describes aprocedure. So far from being value- neutral, the terms of the argumentare loaded from the outset.9

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    8 Ashworth, Andrew, Sentencing..., id., p. 679 Vogler, Richard, World View of Criminal Procedure, id., p. 7

  • Efectivamente, ao debruarmo- nos sobre os modelos apresentadospor Packer, parece notrio que incidem sobre objectos de anlise dife-rentes. Enquanto o modelo de controlo do crime parece focar- se nos ob-jectivos do sistema de justia, o modelo do processo legal tende adeslocar esse foco para os procedimentos inerentes ao funcionamentodo sistema, o que impede uma perspectiva comparativa cientificamentesustentvel.

    Mas mais importante ser a concluso a que chegar Voglerquanto definio das dinmicas e tendncias que conformam o sistemade justia (e muito especificamente o processo criminal). Segundo esteautor, coexistem trs grandes linhas metodolgicas que actuam sobre osistema de justia e moldam a sua caracterizao em termos de elemen-tos fundamentais. So eles:

    o modelo inquisitorial o modelo acusatrio/adversarial tradies de justia popular (mediated popular justice)Segundo Richard Vogler, estas trs linhas metodolgicas interfe-

    rem simultaneamente com o sistema de justia e, dependendo do dom-nio ou da prevalncia de cada uma, assim se caracterizar o sistema dejustia. No fundo, a prevalncia de uma destas linhas metodolgicas(como lhe chama Vogler) determina o modelo de justia criminal vi-gente. Como sublinha Paul Roberts:

    More serious criticisms of A World View of Criminal Justicebegin with its title. On closer examination, it is apparent that the bookis not directly concerned with criminal justice, but rather with criminalprocedure, criminal process or criminal justice systems. This is notmerely a pedantic terminological quibble. Most of the text is given overto historical or comparative description, but in a short conclusion andsomewhat longer introductionVogler advances explicitly normative legaland moral claims. His principal contention is that every legitimate sys-tem of criminal procedure must reconcile aspects of the inquisitorial,

    adversarial and popular justice traditions (the three great trial

    methodologies) with its own distinctive legal, cultural and political

    heritage.Vogler grounds his argument in historical experience, whilst si-

    multaneously insisting that his analysis substantiates an idealized con-

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  • ception of criminal procedurea blend of the descriptive and the nor-mative in some ways reminiscent of Ronald Dworkins influential theoryof adjudication.10

    Partilhando da perspectiva de Vogler, uma anlise detalhada eaturada de alguns sistemas de justia histricos conduzem- nos preci-samente evidncia desta aco de dinmica permanente que deter-mina e caracteriza o modelo de justia vigente. E no se diga quetambm aqui vlida a crtica feita por alguns autores a Packer, umavez que estas linhas metodolgicas referidas por Vogler no so ape-nas processuais ou procedimentais. Quando se refere ao sistema inqui-sitorial ou acusatrio, ou ainda s tradies de justia popular, Voglertem em mente no apenas as regras fundamentais de procedimento quecaracterizam cada um destes sistemas, mas tambm os seus objectivosque, como se sabe, apresentam diferenas considerveis. Desde logoao nvel da verdade que se procura obter: enquanto o sistema criminalinquisitorial busca a todo o custo uma verdade material, pura, e umareconstruo real dos factos independentemente dos custos ou dosmeios para a alcanar, j o sistema acusatrio empenha- se em alcan-ar uma verdade sobretudo processual, consciente dos limites e da na-tureza do sistema de justia. Por sua vez, alguns sistemas de justiatradicional tm como finalidade, essencialmente, a aplicao da justiacomunitria aos intervenientes na prtica de determinados factos, porser esse um imperativo tico ou religioso, em nome da comunidadehistrica.

    Ora, assente nesta concluso que devemos compreender o sis-tema de justia, a sua natureza e as suas funes. com base nesta pers-pectiva que devemos construir o modelo terico que sustentar toda anossa investigao e o quadro teortico da nossa anlise no mbito es-pecfico do processo penal e das medidas de coaco. Isto porque, comorefere o prprio Vogler, s atravs desta perspectiva de tripla dimensopodemos compreender com realismo as dinmicas e os equilbrios quese jogam no prprio direito criminal:

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    10 Roberts, Paul, Comparative Criminal Justice Goes Global, Oxford Journal of LegalStudies, 28(2), pp. 369- 391 (2008), acessvel on- line em http://ojls.oxfordjournals.org/cgi/reprint/28/2/369?maxtoshow=&HITS=10&hits=10&RESULTFORMAT=&fulltext=mod-els+criminal+justice&searchid=1&FIRSTINDEX=0&resourcetype=HWCIT, p. 374

  • Every system, at different historical epochs, has experiencedthe gravitational pull of each of the three trial modes and has re-sponded accordingly. Every system, in its current structure and prac-tice, crystallises their relative influence to a greater or lesser extent.The central argument of this book is that whatever mode of procedureis operated, it should not seek to exclude, significantly limit or disablethe participation of any of these three legitimate interests in criminaljustice.11

    Compreender estas trs grandes linhas metodolgicas, estes trsmodelos de justia e a sua permanente interaco uma chave funda-mental para compreender o sistema de justia e as suas transformaes.

    A ideia fundamental a reter e que ser fundamental para o de-senvolvimento terico deste projecto a seguinte: o desenvolvimentodo sistema de justia, e em particular do direito penal e processual penal,processa- se tendo em conta no apenas os direitos fundamentais do acu-sado e as garantias de defesa e imparcialidade, mas tambm em conso-nncia com o interesse do Estado em reprimir e controlar a criminalidade(e a presso social derivada dos vrios agentes sociais) e ainda com osinteresses emergentes da colectividade, que vai imaginando novas for-mas de aplicao da justia em funo das suas aspiraes globais. Todosestes vectores e interesses so, como refere Vogler, legtimos, isto ,todos tm de encontrar o seu prprio espao de influncia e exerc- la.Nenhum destes factores pode ser eliminado ou questionado na sua legi-timidade de influncia, precisamente porque algures entre o espaoformado por estas trs grandes linhas metodolgicas que o DireitoPenal se desenha e reconfigura.

    Porm, destas consideraes emerge uma outra questo, igual-mente importante: que factores ou que condies influenciam e deter-minam a prevalncia, num determinado momento histrico, de umdestes trs modelos? Que factores impem uma tendncia predominan-temente inquisitorial no direito penal, em detrimento da linha adversarialou acusatorial? Ou que factores produzem uma influencia dominantedos mtodos de justia popular ou de mediao popular, em detrimentoda justia normativo- institucional?

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    11 Vogler, Richard, World View..., id., p. 16

  • No decorrer da sua investigao, Vogler afirma muito claramenteque nenhum sistema de justia pode ousar alguma vez tentar excluirqualquer destes plos de exercer a sua legitima influncia (e assim mol-dar a caracterizao do direito e do processo criminal), mas no produznenhum quadro que consiga responder, claramente, quais os factoresque determinam a predominncia de uma das linhas metodolgicasapresentadas, parecendo deixar esse resultado a uma certa arbitrarie-dade dos fenmenos histricos12.

    Devemos atentar em detalhe neste aspecto, por ter sido um doselementos mais importantes da crtica aos trabalhos de Vogler. Efecti-vamente, ao mesmo tempo que emerge do World View of Criminal Jus-tice uma crtica a qualquer perspectiva matemtica ou geomtrica dosistema de justia criminal (isto , a ideia de que os valores dominantesdo sistema podem ser cientificamente determinados), fica sem uma res-posta cabal quais os factores que determinam a combinao e a interac-o das linhas metodolgicas apresentadas.

    Esta parece ser, efectivamente, uma falha terica estrutural da in-vestigao levada a cabo por Vogler, tal como constata Paul Roberts:

    Finally, the values which each legal tradition is supposed to rep-resent, and in practice to incubate and propagate, are not delineatedwith sufficient care or focused application. It is truistic that legitimatecriminal process for a modern democracy must balance the competinginterests of individual participants, state and society. The real questionis: how?

    The central thesis of A World View of Criminal Justice, that crim-inal system reform must always combine elements of the three greattrial methodologies, in itself provides no tangible answers.13

    A nica orientao que nos deixa o trabalho de Vogler quanto aesta questo extremamente polmica e, a nosso ver, cientificamentepouco sustentvel. Este transmite a ideia de que o modelo inquisitorialest em estreita relao com regimes polticos autoritrios ou com sis-temas centralistas e burocrticos. Neste sentido, segundo Vogler, o mo-delo inquisitorial tenderia a ser predominante na emergncia deste tipo

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    12 Vogler refere- se a uma historical necessity. World View..., id., p. 1313 Roberts, Paul, Comparative Criminal..., id., p. 391

  • de regimes polticos, o que explica a utilizao que do direito penal fi-zeram regimes como o Nazi, o Sovitico ou o regime comunista chins.

    Esta abordagem no parece ser rigorosa, do ponto de vista jurdicoe conceptual, por estar partida viciada na perspectiva que faz sobre osistema inquisitorial e a sua existncia concreta (isto , a tradio jurdicae as prticas organizadas) na Europa continental.

    Tal como refere Sarah Summers, a distino entre sistema inqui-sitorial e sistema acusatorial perdeu nos tempos actuais a sua utili-dade cientfica face ao desenvolvimento verificado no ltimo sculo nosdois modelos, contribuindo at para confundir a discusso cientfica eocultar as semelhanas entre ambos, bem como para obscurecer a exis-tncia indubitvel de uma tradio europeia de partilha de valores fun-damentais na rea do direito e do processo penal.14

    Efectivamente, a viso do sistema inquisitorial , nos trabalhos deVogler (tal como nos trabalhos de muitos acadmicos anglo- saxnicos),uma viso terica, abstracta, desligada da realidade da prtica continen-tal europeia e, por isso mesmo, rejeitada ou fortemente criticada pelosacadmicos franceses, espanhis ou holandeses. Qualquer perspectivacomparativa tenderia a encontrar sistematicamente pontos de conflun-cia entre ambas as tradies jurdicas, produzindo uma compreenso sis-temtica global do direito e do processo penal europeu muito diferenteda descrio terica dos modelos inquisitorial e acusatorial.

    Esta , alis, uma consequncia inevitvel das condies polticas,econmicas e sociais que marcaram a Europa contempornea. Seria im-possvel, como nota o comparativista Patrick Glenn, manter separadas ou puras nos seus termos tericos as tradies jurdicas europeias.Pelo contrrio, seria inevitvel uma aproximao progressiva e a partilhade valores e atitudes nas questes essenciais, o que se torna ainda maisevidente no contexto de uma Europa comunitria.15 16

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    14 Summers, Sarah, Fair Trials: The European Criminal Procedural Tradition and the Eu-ropean Court of Human Rights, Hart Publishing, Oxford (2007), p. 1015 Glenn, Patrick, Comparative Legal Families and Comparative Legal Traditions in MReimann and R Zimmerman (eds) The Oxford Handbook of Comparative Law, OUP, Oxford(2008), p. 43216 Field, S., and West, A., Dialogue and the Inquisitorial Tradition: French Defence Lawyersin the Pre- Trial Criminal Process, Criminal Law Forum 14 (2003), pp. 261316

  • Portanto, afastada esta orientao de Vogler, permanece a questo,essencial para a compreenso do direito penal contemporneo: se a ca-racterizao do sistema se constri no mbito geomtrico das trs gran-des linhas metodolgicas referidas, que factores contribuem para apredominncia de uma delas sobre as outras? Como se desenham os sis-temas de justia criminal na era da globalizao?

    1. A lei fundamental ou a tradio constitucional de um Estado;

    A questo surge como extraordinariamente importante no mbitodesta anlise. A identificao dos factores determinantes do tipo de mo-delo penal existente pode renovar toda a perspectiva cientfica sobre odireito penal e processual penal dos nossos dias.

    Importa recordar aqui a proposio terica que formulmos noincio e que sustenta todo o nosso raciocnio: todo o sistema de justiareflecte, tendencialmente, um determinado programa poltico- social,imanente ao texto constitucional (nos pases que possuam constituioescrita) ou tradio jurdica e de justia popular de um pas.

    Efectivamente, o esprito programtico e o imaginrio social, po-ltico e axiolgico decorrente do texto constitucional marcam indelevel-mente o sistema de justia desse pas, moldando- o nos seus principaisaspectos e caractersticas. Por exemplo, as constituies liberais euro-peias impem inevitavelmente algumas caractersticas decisivas aos res-pectivos modelos penais: o respeito pelo princpio do contraditrio, pelaoralidade, a exigncia de concretas garantias de defesa e a imposio delimites s penas privativas de liberdade. Por sua vez, as leis fundamen-tais de Estados islmicos tendem a reproduzir regras processuais ances-trais, empenhadas numa determinada forma de justia religiosa eritualista e, embora consagrem tambm algumas regras prximas dosmodelos ocidentais, desenham um modelo criminal muito diferente dossistemas liberais.

    Tudo isto se compreende luz do programa poltico- social ima-nente ao conjunto do ordenamento jurdico e que, na generalidade doscasos, patente na constituio (escrita ou no) de um determinadopas. Costuma dizer- se que o direito penal uma espcie de barmetro

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  • da democracia material. Mas mais do que isso: o reflexo de um pro-grama poltico, social e tico consagrado institucional e normativa-mente.

    A conotao tendencialmente inquisitorial ou acusatorial de umdeterminado modelo, ou ainda a sua influncia ou no, por fenmenosde justia popular, depende, portanto, em grande medida, das normasconstitucionais vigentes. Pode parecer uma evidncia, mas esta conclu-so assume a maior importncia do ponto de vista cientfico. Significaque o tal espao geomtrico definido por Vogler se define em funodas regras e dos valores derivados do texto constitucional. Ou, por ou-tras palavras, uma anlise atenta do programa constitucional de umpovo transmitir informao decisiva sobre qual das linhas metodol-gicas definidas por Vogler predomina no direito penal desse mesmopas. Por exemplo, uma anlise, ainda que breve, da constituio socia-lista da antiga URSS, rapidamente nos leva a concluir pela existnciade formas muito especficas de justia popular ou de mediao popu-lar no exerccio da justia, traduzida no funcionamento de tribunaispopulares e na existncia de juzes populares com competncias espe-ciais.17

    Importa, porm, fazer notar que a referncia ao programa ou pro-jecto constitucional no implica, necessariamente (como aconteceu nocaso sovitico), que seja o prprio texto constitucional a prever e a de-limitar especificamente estas formas de justia ou de participao po-

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    17 Efectivamente, com a vitria do Exrcito Vermelho e o triunfo da Revoluo, o sistemajudicial herdado do regime Czarista sofreu mudanas profundas, essencialmente relacionadascom esta participao popular no exerccio da justia. Foram criados tribunais popularese os seus magistrados denominados juzes populares. A Constituio de 1936 estabeleceua regra de eleio directa dos juzes para os tribunais populares e a eleio pelos Sovietespara os tribunais superiores, estrutura que foi mantida praticamente inalterada at ao colapsoda Unio Sovitica, em 1991. Estatsticas muito interessantes recolhidas por Farber demons-tram que, em 1926, 76% destes juzes populares eram operrios ou camponeses, sem qual-quer formao especfica na rea do direito ou da administrao da justia.Outro exemplo muito interessante de exerccio da justia popular so os tribunais popularesem frica, predominantes essencialmente nas antigas colnias portuguesas como Moam-bique ou Cabo- Verde. Efectivamente, em alguns destes pases, a presena e o enraizamentodestas formas de justia era to slidas e bem estruturadas que se mantiveram paralelamenteao sistema institucional e ainda hoje subsistem. Cfr. Fernandes, Lus, O Enigma do Socia-lismo Real um balano critico das principais teorias marxistas e ocidentais, Mauad Editora(2000), pp. 187 e segs.

  • pular no mbito judicial. Ainda que na maior parte dos casos seja assim,por uma questo de eficcia prtica. O ponto que se quer fazer aqui oseguinte: a toda a constituio ou lei fundamental est subjacente umprojecto de sociedade, um conjunto de vectores que, nas mais diferentesreas, indicam um rumo, uma direco. Sendo a justia um dos pilaresfundamentais do Estado, a sua base axiolgica, estrutural, est tambmconsagrada nesta lei fundamental que, desta forma, nos fornece infor-mao preciosa sobre o tipo de sistema de justia e as suas principaiscaractersticas.

    2. Contexto ideolgico e a narrativa subjacente ao discursopoltico e institucional, bem como a percepo social associada;

    To ou mais importante que a lei fundamental ou a tradio cons-titucional de um pas o imaginrio ideolgico e o contexto de valores,ideias e o estado emotivo no qual se encontra uma determinada so-ciedade.

    O discurso poltico e institucional, a transmisso de valores e apercepo social, que emanam dos rgos de comunicao e dos ncleosde poder, desempenham um papel decisivo na produo e no desenvol-vimento legislativo, bem como na orientao pragmtica de todos os n-veis de governo (federal, regional, local).

    Como afirma Dora Kostakopoulou no resumo do seu artigo Howto do Things with Security Post 9/11:

    Discourses and the ideas, perceptions and templates upon whichthey are based exert a powerful influence on law- making, push policy making in a precise direction and determine operational action and out-comes. British counter- terrorist law and policy post 9/11 is heavily me-diated through a conceptual filter that evokes a siege mode ofdemocracy, which deliberately displaces the traditional rights- basedmodel, and a security narrative based on a double asymmetry.

    (...) Both features of the Governments security discourse are crit-ical in explaining not only British counter- terrorist legislation and policyevolution in the 21st Century, but also their official depiction as neces-

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  • sary, and singular, responses to some structured necessity and the asso-ciated logic of no alternative. 18

    O carcter performativo e at pr- activo das palavras assume aqui,mais do que nunca, uma importncia decisiva. O discurso institucional ou seja, o que provm directamente das instituies e dos ncleos depoder marca, efectivamente, o funcionamento do sistema de justia eas dinmicas que actuam sobre ele. Por exemplo, um discurso poltico(quer ao nvel governamental, quer parlamentar, quer regional) compostopor uma carga ideolgica altamente centralista, repressiva e autocrticaacabar por repercutir- se, directa e indirectamente, no funcionamento doprocesso penal. Influncia directa porque os rgos polticos tm a capa-cidade de produzir leis e garantir a sua efectividade, traduzindo o discursopoltico e a carga ideolgica atrs referida em instrumentos legais dotadosde eficcia plena. Influncia indirecta porque este tipo de discurso e decontexto acaba por provocar nas populaes uma espcie de estado emo-tivo muito peculiar, diminuindo a sua capacidade de reivindicao e decontestao. Tomando uma vez mais as palavras de Dora Kostakopoulou:

    Yet, there are times when the rights- based model of democracyis supplanted by what may be termed a siege mode of democracy. Gov-ernments may believe that the nations survival is at stake. Fear and awar mood may take hold of populations, as they contemplate ways ofthwarting certain risks. Under such circumstances, officials invoke theexistence of an emergency in order to protect the life of the nation andare willing to apply the national security exception even to areas whereclearly national security is not at issue.19

    Efectivamente, como refere Jef Huysmans, quando a narrativa ins-titucional se molda nos termos acima referidos, facilmente comea aconstruir- se a percepo social de que segurana e liberdades fundamen-tais no se integram numa interrelao construtiva (como preconiza omodelo liberal de democracia) mas antes como valores opostos em quea garantia de um implica significativos sacrifcios sobre o outro.20

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    18 Kostakopoulou, Dora, How to do Things with Security post 9/11 in Oxford Journal ofLegal Studies, Vol. 28, n. 2 (2008), p. 31719 Kostakopoulou, Dora, How to do..., id., p. 32120 Huysmans, J., The Politics of Insecurity: Fear, Migration and Asylum in the EuropeanUnion, Routledge, London (2006), p. 74

  • O ponto que se quer fazer valer aqui o seguinte: o discursoinstitucional e a narrativa ideolgica dominante num determinadocontexto tm uma influncia decisiva ao nvel do sistema de justia,afectando e moldando o seu funcionamento. indubitvel que umdiscurso predominantemente securitrio ao nvel poltico e institucio-nal acabar por se introduzir, ainda que no sentido contrrio ao dasleis vigentes, no sistema de justia, com consequncias evidentes, porexemplo, ao nvel de novos tipos penais criados quase casuistica-mente, ao nvel da aplicao da priso preventiva ou da admisso demeios de prova intrusivos (escutas telefnicas ou buscas domicili-rias).

    Para alm desta influncia directa, como atrs foi referido,este discurso institucional resulta inevitavelmente na criao de umestado emotivo e de um contexto psicossocial que, por sua vez,se traduziro numa forte presso no sentido de alteraes legislati-vas que vo de encontro s novas preocupaes, necessidadese aspiraes da sociedade. neste sentido que podemos com-preender, por exemplo, as medidas legislativas anti- terrorismo adop-tadas pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido aps o 11 deSetembro, como o Patriot Act (USA) e o Anti- Terrorism, Crime andSecurity Act 2001 (UK), que foram aprovados e publicados sem otempo necessrio de reflexo parlamentar ou qualquer discusso p-blica prvia.

    Focando o tema na nossa rea de investigao, ser interessanteverificar como o Anti- Terrorism, Crime and Security Act 2001 introdu-ziu a figura da deteno indefinida (isto , sem limite) no ordenamentojurdico ingls, permitindo que no nacionais britnicos sejam detidossem qualquer limite temporal e sem qualquer acusao formulada,quando sejam suspeitos de terrorismo internacional e representem umaameaa segurana nacional.21

    Por sua vez, o estado emotivo em que se encontram as popu-laes num determinado momento histrico tambm extraordinaria-

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    21 Neste caso, a Home Secretary of State emite um documento a certificar a condio desuspeito de terrorismo internacional de um determinado individuo, nos termos doAnti- terrorism, Crime and Security Act 2001, Part IV s 21 (1)

  • mente relevante para a produo legislativa nesta rea. Um ataque ter-rorista, como o ocorrido em Londres a 7 de Julho de 2005, ou distr-bios de ordem pblica em grande escala, como as manifestaes nossubrbios das principais cidades francesas durante 2007, tm um in-contestvel impacto quer ao nvel do discurso institucional, quer aonvel das normas jurdicas que se produzem como reaco aos referi-dos eventos.

    Dora Kostakopoulou faz esta anlise histrica, referindo- se aosatentados na capital britnica, em 7 de Julho de 2005:

    Following the London bombings on 7 July 2005, the LabourGovernment announced 12 new measures designed to increase securityon August 2005. Although this was consistent with the double asymmetryunderpinning the governments security discourse, one notices that theofficial identification of the location of threat changes once again; it isno longer confined to 20 or so dangerous outsiders but it widens andspills over to include young British Muslims (...).

    Accordingly, the Government proposed an unprecedented exten-sion in the polices powers of detention; any person suspected of beinginvolved in terrorist activities could be detained for up to 90 days with-out charge. On the grounds that the police must be given sufficient timeto gather the relevant information necessary for the prosecution of sus-pected terrorists and that the rules of the game have changed owingto the unprecedented nature of the organized islamist threat, it was ar-gued that it is the states overriding duty to safeguard the safety of itscitizens and to prosecute actively terrorists. 22

    Repare- se que o Reino Unido passou, em funo de um aconteci-mento concreto (os atentados de Julho/2005 em Londres), de um dos Es-tados da Unio Europeia que mais garantias e meios de defesa concedeaos suspeitos de um crime, ao Estado com o mais largo perodo de de-teno pr- acusao. O prazo de 90 dias proposto pelo Governo foichumbado no Parlamento britnico, tendo- se chegado a um acordo queestipulou esse prazo em 28 dias, acompanhado do necessrio escrutnio

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    22 Kostakopoulou, Dora, How to do..., id., p. 332

  • judicial23. Ainda assim, nenhum outro pas da Unio Europeia (ou mesmoa Rssia) tem um to vasto perodo de deteno anterior a formulao dequalquer acusao. Na Irlanda esse perodo de 7 dias, sendo de 7,5 diasna Turquia, 5 dias na Rssia e 2 dias nos Estados Unidos da Amrica.24

    A existncia de um perodo de quase um ms de deteno semqualquer acusao formulada seria facilmente identificado por qualqueracadmico anglo- saxnico como uma regra associada ao processo penalinquisitorial ou de tradio continental. Efectivamente, mesmo nas dis-cusses e nos debates, ocorridos no Parlamento britnico, que antece-deram a aprovao das novas regras de combate ao terrorismo, foramfeitas vrias referncias aos sistemas continentais e s respectivas regrasprocessuais de deteno e acusao. Porm, exactamente no ReinoUnido que se verifica esta possibilidade (ainda que acompanhada de umcerto escrutnio judicial), inexistente em qualquer dos sistemas ditos in-quisitoriais da Europa Continental.25

    Chegamos com este exemplo concluso pretendida: o contextoemocional e psicossocial so factores determinantes ao funciona-mento do sistema de justia, nomeadamente na determinao daorientao predominante, nos termos das trs grandes linhas meto-dolgicas definidas por Richard Vogler.

    Um estado de ameaa blica permanente, de elevada conflituali-dade social, o trauma de um ataque terrorista em grande escala ou sim-plesmente doses insuportveis de criminalidade urbana organizadaestimulam, como qualquer anlise histrica e comparativa demonstra,reaces institucionais com repercusses quase imediatas no funciona-mento do sistema de justia.

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    23 Aps 48 horas, necessrio um mandado judicial para manter um suspeito detido semacusao. O juiz s poder emitir este mandado se estiver convencido de que existem ind-cios suficientes 1) de que necessrio para obter ou preservar provas importantes e 2) quea investigao ser conduzida de forma diligente e clere. Os mandados para deteno por14 dias s podem ser emitidos por um juiz de tribunal superior.24 Recentemente, o Governo Britnico anunciou a inteno de aumentar esse prazo para 56dias, sustentando- se em pareceres e relatrios policiais, tendo despoletado uma onda internae internacional de crticas, onde assumiu posio de grande destaque a Amnistia Internacio-nal, com sede em Londres.25 Em Frana, o perodo mximo de priso preventiva nos casos de terrorismo de seis dias;em Itlia de quatro dias e na Espanha de 5 dias.

  • 3. A tradio jurisprudencial e a estrutura institucional dosrgos de investigao criminal;

    Outro factor que assume uma importncia vital na caracterizaodo sistema de justia, particularmente na rea do direito criminal, atradio jurisprudencial desse mesmo sistema. Efectivamente, mesmonos sistemas de civil law, sem a regra do precedente obrigatrio, for-mam- se grandes linhas de tendncia jurisprudencial, consolidadas pelasdecises dos tribunais superiores, que acabam por determinar o funcio-namento do sistema. Mesmo no sendo obrigatrias no sentido nor-mativo, formam um slido e preponderante conjunto de refernciajurdica, a que os operadores jurdicos normalmente obedecem e que ostribunais inferiores normalmente seguem.

    Isto implica, desde logo, que a tendncia mais ou menos acusato-rial ou inquisitorial de um determinado sistema processual, deriva emmuitos casos da tradio jurisprudencial que se gerou no seio dessemesmo sistema. Por exemplo, o substrato e o alcance real do princpioda legalidade deve- se em grande parte a uma tradio jurisprudencialde cada pas, relacionada quer com a cultura judiciria, quer com os mo-delos de interpretao e integrao vigentes nessa mesma cultura.

    Tal como noutros casos, a tendncia para aplicao de regras con-suetudinrias extra- legais deve- se, em primeiro, lugar tradio juris-prudencial de um determinado sistema. Estas regras so predominantes,como sabemos, em sistemas mais arcaicos ou rudimentares do ponto devista tcnico como o sistema Cabo- verdiano, por exemplo mas temtambm aplicao, pontualmente, nos sistemas jurdicos europeus enorte americanos. Esta aplicao tem que ver, em grande parte, com umacerta linha de deciso dos rgos judiciais a que se pode chamar de tra-dio jurisprudencial.

    Repare- se que necessrio distinguir entre a tradio em si mesma(a que poderamos chamar de tradio normativa) e a tradio jurispru-dencial. Enquanto a primeira se prende com o conjunto de regras (nor-mas ou princpios) que se formam e se vo solidificando no tecido social,gerando nos agentes sociais a conscincia da sua obrigatoriedade, a tra-dio judicial prende- se com as regras definidas pela interpretao eaplicao que os tribunais fizeram das normas jurdicas e que com o

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  • tempo formaram uma determinada tendncia ou corrente jurispruden-cial.26

    S em termos tericos possvel desenhar e conceber um sistemacriminal alheio e impermevel a quaisquer correntes ou foras tradicio-nais. Estas dinmicas fazem parte do tecido social e, como reconheceBenjamin N. Cardozo, foram desde sempre elementos actuantes no sis-tema penal:

    All their [judges] lives, forces which they do not recognize andcannot name, have been tugging at them inherited instincts, traditionalbeliefs, acquired convictions; and the result is an outlook on life, a con-ception of social needs, a sense in James phrase of the total push andpressure of the cosmos, which, when reasons are nicely balanced, mustdetermine where choice shall fall. In this mental background every pro-blem finds its setting.27

    esta influncia dos elementos tradicionais ou pr- normativosque pode explicar, por exemplo, como em certos pases africanos (oscasos da Guin, de Cabo Verde e de Moambique 28 so paradigmticos)os princpios fundamentais de direito penal e as decises judiciais emmatria penal so radicalmente diferentes nas zonas do interior rural(onde predomina a influncia das tradies judiciais de ndole religiosae moral) e nas grandes zonas urbanas (onde os tribunais tendem a aplicara lei formal, emanada das instituies competentes para o efeito). Efec-tivamente, mesmo no sendo considerados, formal ou legalmente, tri-bunais populares, muitos destes rgos judiciais optam sistematicamentepela aplicao de regras tradicionais ou consuetudinrias que, com otempo, acabam por formar autnticas correntes jurisprudenciais de con-tedo normativo obrigatrio.

    Nestes casos, estas regras no so legalmente impostas, nem de-rivam necessariamente do costume de uma determinada regio, masantes da prtica reiterada e constante dos tribunais que, desta forma, aca-bam por moldar o funcionamento do sistema de justia. Alguns sectores

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    26 Ashworth, Andrew, Sentencing..., pp. 35 e segs.27 Cardozo, Benjamin N., The Nature of the Judicial Process, Yale University Press (1921),p. 1228 Osorio, Conceio, Women and Law in Southern Africa em Outras Vozes, 5 Nov (2003),disponvel em http://www.wlsa.org.mz/?__target__=Tex_AdminisJustica

  • da sociologia jurdica denominam esta situao de pluralismo jur-dico 29, no sentido da co- existncia de uma pluralidade de fontes dedireito e de rgos aplicadores do direito. No caso da sociedade Mo-ambicana, esta pluralidade at reconhecida pela Constituio da Re-pblica, como constata Sara Arajo, que precisamente se empenhou aestudar a forma como a aplicao do direito (no sentido lato, isto , noapenas o direito formal) pelos tribunais locais ou populares criou umsistema jurdico diversificado e pluralista.30 Ou, noutras palavras, comoa tradio jurisprudencial local determinou a caracterizao do sistemade justia criminal, concluso fundamental para o nosso estudo.

    Porm, importante ter em conta que a forma como a tradio ju-risprudencial molda a caracterizao do sistema de justia no apenasuma evidncia de sistemas jurdicos altamente tradicionalistas. Pelo con-trrio, a tradio jurisprudencial um patrimnio comum a todo e qual-quer sistema jurdico em que existam rgos prprios de deciso judicial os tribunais. Analisemos este exemplo concreto, que poder ajudar auma maior compreenso das concluses que pretendemos explorar:

    Num famoso caso levado deciso do Supremo Tribunal de Jus-tia da Irlanda People (Attorney General) v Callaghan (1966)31 es-tava em discusso a deciso dos tribunais inferiores (respectivamente oHigh Cout e o District Court) de manter o suspeito em priso preventivaenquanto aguardava julgamento.

    A legislao irlandesa no dispunha especificamente sobre estamatria (ao contrrio do que acontecia, por exemplo, nos Estados Uni-dos) e, portanto, era um assunto deixado normalmente descrio dostribunais inferiores (especialmente o District Court).

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    29 No deve confundir- se pluralismo jurdico com pluralismo metodolgico, uma nooextremamente importante da filosofia do direito, mas que no tem que ver directamente coma pluralidade de fontes de direito. Como refere Paul Roberts methodological pluralismbegan to emerge as a plausible sucessor to the polar extremes, of rigid scientific function-alism at one end, and unremittingly relativistic cultural anthropology at the other. Cfr.Roberts, Paul, On Method: The Ascent of Comparative Criminal Justice in Oxford Journalof Legal Studies, Vol. 22, N 3 (2002), p. 54130 Arajo, Sara, Pluralismo jurdico e emancipao social. Instncias comunitrias de resoluode conflitos em Moambique, disponvel em http://www.codesria.org/Links/conferences/general_assembly11/papers/sara_araujo.pdf (p. 13)31 People (Attorney General) v. OCallaghan [1966] IR 501

  • Numa deciso paradigmtica, o Supremo Tribunal recusou os ar-gumentos de ambos os tribunais e deu inicio a uma jurisprudncia queconstituiu o verdadeiro quadro de referncia do sistema jurdico irlandsnesta matria. Recusando os argumentos do District Court e do High Courtpara recusar a libertao do suspeito enquanto aguarda o inicio do julga-mento, consideraram os juzes que the reasoning underlying this submis-sion is, in my opinion, a denial basis of our system of law. It transcendsrespect for the requirement that a man shall be considered innocent untilhe is found guilty and seeks to punish him in respect of offences neithercompleted nor attempted. (...) The Courts owe more than a verbal respectto the principle that punishment begins after conviction, and that everyman is deemed to be innocent until duly tried and duly found guilty.32

    Sem legislao especfica sobre esta matria, e com decises judiciaiscontraditrias e com alguma tendncia dos tribunais inferiores em manteros acusados em priso preventiva esta jurisprudncia do Supremo Tribunalda Irlanda (que mais tarde se consolidou em decises como Ryan v DPP 198933) marcou decisivamente o sistema jurdico irlands numa matria todecisiva e controversa como esta. De tal forma que a opinio geral entre osjuristas irlandeses era no sentido de que a alterao desta situao (e a cria-o de regras mais restritivas) s poderia ser feita atravs de um referendo,o que alis viria a ocorrer em 1997, com a aprovao do [The Bail Act].

    Com estes exemplos (alguns mais especificamente do foro do di-reito processual penal), pretende- se demonstrar a importncia da deno-minada tradio jurisprudencial para a definio e caracterizao dosistema de justia, quer nos sistemas de common law, quer nos sistemasde civil law, quer ainda nos sistemas jurdicos mais tradicionais.

    As correntes jurisprudenciais definem tendncias de deciso queacabam por se tornar autnticas fontes de direito e assim configurar osistema de justia em matrias to importantes e cruciais como a queanalismos no caso supramencionado irlands.

    Ao mesmo tempo, tambm a estrutura institucional dos rgos deinvestigao criminal parece desempenhar um papel decisivo na confi-gurao real ou prtica do sistema de justia criminal. Efectivamente, os

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    32 Id., ibid., pp. 508- 933 Ryan v. DPP [1989] IR 399 ILRM 333

  • estudos incidentes nesta matria demonstram exactamente que, em vriospases europeus, os rgos de investigao criminal so geralmente pe-sadas mquinas burocrticas, pouco receptivas a mudanas estruturais ecom prticas reiteradas que se vo assumindo, ao longo dos anos, comoautnticos cdigos informais de conduta dos investigadores (ou magis-trados), mesmo em sistemas de common law, como alerta Steve Uglow.34

    Finalmente, pretende- se transmitir a ideia de que necessrio com-preender e aplicar, numa ptica global, o direito penal e processual penal.Por outras palavras: o direito penal contemporneo no pode ser com-preendido sem as importantssimas reformas levadas a cabo na ltimadcada em sede de processo penal. A ideia de um modelo de justia cri-minal tem necessariamente que abranger estas duas realidades e a inves-tigao cientfica em sede de direito criminal no poder ignorar e termesmo de incluir a anlise da realidade emergente do processo penal.

    Independentemente das reformas legislativas e da jurisprudnciadominante nos tribunais, aos rgos de investigao criminal, sob di-reo do Ministrio Pblico, que cumpre levar a cabo toda a fase quemedeia desde a denncia/queixa/participao do crime cometido at aojulgamento, quando cabe ento ao juiz (ou ao colectivo de juzes) assu-mir a liderana dos procedimentos criminais35.

    Porm, analisando o sistema como um todo, impossvel separara fase de investigao, acusao e julgamento. Todas so igualmente im-portantes para a caracterizao do sistema de justia criminal. Alis, precisamente na fase anterior ao julgamento (tambm denominada fasede inqurito ou fase de investigao) que mais diferenas subsistem entreos sistemas de civil law e de common law.

    Levantando- se assim novas questes: como e atravs de que meios levada a cabo a investigao criminal? Que restries sobre a liberdade

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    34 Ver a sua reflexo global sobre o sistema em Uglow, Steve, A System Going Wrong inCriminal Justice, 2nd Edition, Sweet &Maxwell Ed., pp. 9- 1435 Com esta afirmao no se exclui a participao do juiz ou de rgos judiciais nas fasesanteriores ao julgamento. Efectivamente, na maior parte dos sistemas processuais estudados(quer de common law quer de civil law) o juiz funciona exactamente como o garante dasliberdades e a ele cumpre tomar as medidas que de forma mais gravosa e restritiva afectamos direitos fundamentais do visado. Por exemplo, na maior parte dos ordenamentos jurdicoseuropeus ao juiz que cabe decidir se h ou no lugar a escutas telefnicas ou ainda se osuspeito aguarda julgamento em liberdade ou em priso preventiva ou domiciliria.

  • e outros direitos fundamentais do suspeito so necessrias para conduziruma investigao eficaz e produtiva do ponto de vista processual? Comoso tomadas as medidas de coaco, isoladamente pelos rgos compe-tentes ou aps audio e discusso com os suspeitos? Como procedemos interrogatrios e em que condio o suspeito interrogado? Que di-reitos de defesa e representao so, por regra, conferidos ao suspeitopelo rgo responsvel pela investigao criminal?

    Da possvel resposta a estas questes resultar uma configuraomuito diferente do sistema de justia criminal global, nomeadamentequanto sua predominncia inquisitorial ou acusatorial. De facto, nestafase pr