Manual de Pesquisas em Ciências Sociais - R. Quivy

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Raymond Quivy & Luc Van Campenhoudt (1998). Manual de Investigao em Cincias Sociais. 2 Edio. Col. Trajetos: n 17. Lisboa: Gradiva. Traduo Joo Minhoto

Marques, Maria Amlia Mendes e Maria Carvalho

Reviso Cientfica Rui Santos Departamento de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa Ttulo original francs: Manuel de recherche en sciences sociales, Dunod, Paris, 1995 Traduo: Joo Minhoto Marques, Marra Amlia Mencles e Maria Carvalho Reviso cientfica: Rui Santos Capa: Armando Lopes Fotocomposio: Gradiva Impresso e acabamento: Manuel Barbosa & Filhos, L. Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva Publicaes, L. Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. Telafs. 397 40 67/8 1350 Lisboa 2. edio: Janeiro de I998 Depsito legal n " 118 676/97

ndice Prefcio 2. Edio 5 OBJETIVOS E PROCEDIMENTO 1. Os objetivos.........5 1.1 Objetivos gerais..........5 1.2 Concepo didtica.....17 1.3 Investigao social?.......19 2. O procedimento..........20 2.1 Problemas de mtodo (o caos original ou trs maneiras de comear mal)..........20 2.2 As etapas do procedimento.......24 Primeira etapa A PERGUNTA DE PARTIDA Objetivos...................31 1. Uma boa forma de atuar..........32 2. Os critrios de uma boa pergunta de partida..........34 2.1 As qualidades de clareza...........35 2.2 As qualidades de exeqibilidade.......37 2.3 As qualidades de pertinncia.........38 Resumo da primeira etapa.......44 Trabalho de aplicao no.1: Formulao de uma pergunta partida.....45 3. E se ainda tiver reticncias... .45

de

Segunda etapa A EXPLORAO Objetivos.......... 49 1. A leitura........... 49 1.1 A escolha e a organizao das leituras...............51 Trabalho de aplicao no.2: escolha das primeiras leituras....57 1.2 Como ler?...........57 Trabalho de aplicao no.3: leitura de um texto com a ajuda de uma grade de leitura............58 Trabalho de aplicao no.4: resumos de textos.................67 . Trabalho de aplicao no.5: compactao de textos.........67 2. As entrevistas exploratrias............69 2.1 Com quem til ter uma entrevista?.............. 71 2.2 Em que consistem as entrevistas e como realiz-las?........72 2.3 A explorao das entrevistas exploratrias...........79 . Trabalho de aplicao no.6: realizao e anlise de entrevistas exploratrias................82 3. Mtodos exploratrios complementares..........83 Resumo da segunda etapa............85 Trabalho de aplicao no.7: reformulao da pergunta de partida........86 Terceira etapa A PROBLEMTICA Objetivos........... 89 1. Dois exemplos de concepo de uma problemtica..........90 1.1 O suicdio..........90 1.2 O ensino..........92

2. Os dois momentos de uma problemtica...................96 2.1 O primeiro momento: fazer o balano e elucidar as problemticas possveis................96 2.2 0 segundo momento: atribuir-se uma problemtica..........100 Resumo da terceira etapa.............104 Trabalho de aplicao no.8: a escolha e a explicitao de uma problemtica.............105 Quarta etapa A CONSTRUO DO MODELO DE ANLISE Objetivos......... 109 1. Dois exemplos de construo do modelo de anlise..........110 1.1 O suicdio..................110 1.2 Marginalidade e delinqncia.............. 115 2. Por que as hipteses?...........119 3. Como proceder concretamente? ........120 3.1 A construo dos conceitos...........121 3.2 A construo das hipteses?...............135 Resumo da quarta etapa........150 Trabalho de aplicao no.9: definio dos conceitos de base e formulao das principais hipteses da investigao..........151 Trabalho de aplicao no.10: explicitao do modelo de anlise........151 Quinta etapa A OBSERVAO Objetivos..............155 1. Observar o qu? A definio dos dados pertinentes........155 2. Observar em quem? O campo de anlise e a seleo das unidades de observao............157 2.1 O campo de anlise.........157 2.2 A amostra...........159 3. Observar como? Os instrumentos de observao e a recolha dos dados........163 3.1 A elaborao dos instrumentos de observao......163 3.2 As trs operaes da observao....181 4. Panorama dos principais mtodos de recolha das informaes.186 4.1 0 inqurito por questionrio..........188 4.2 A entrevista.......191 4.3 A observao direta......196 4.4 A recolha de dados preexistentes: dados secundrios e dados documentais......201 Resumo da quinta etapa........205 Trabalho de aplicao no.ll: a concepo da observao?........207 Sexta etapa A ANLISE DAS INFORMAES Objetivos.........211 1. Um exemplo: o fenmeno religioso......212 2. As trs operaes da anlise das informaes.........216 2.1 A preparao dos dados: descrever e agregar.....216 2.2 A anlise das relaes entre as variveis.........218 2.3 A comparao dos resultados observados com os resultados esperados e a interpretao das diferenas.............219 3. Panorama dos principais mtodos de anlise das informaes.222

3.1 A anlise estatstica dos dados............222 3.2 A anlise de contedo...............226 3.3 Limites e complementaridade dos mtodos especficos: o exemplo da field research........233 3.4 Um cenrio de investigao no linear.......235 3.5 Exemplos de investigaes que aplicam os mtodos apresentados.............237 Resumo da sexta etapa............238 Trabalho de aplicao no.12: a anlise das informaes.........239 Stima etapa AS CONCLUSES Objetivos...........243 1. Retrospectiva das grandes linhas do procedimento.......243 2. Novas contribuies para os conhecimentos...........244 2.1 Novos conhecimentos relativos ao objeto de anlise.........244 2.2 Novos conhecimentos tericos............ 245 3. Perspectivas prticas................247 Uma aplicao do procedimento 1. Objetivos.......................251 1. A pergunta de partida..............251 2. A explorao .....................252 2.1 As leituras.......................252 2.2 As entrevistas exploratrias......................253 3. A problemtica.............257 3.1 Fazer o balano................257 3.2 Conceber uma problemtica...............258 4. A construo do modelo de anlise............259 4.1 Modelo e hiptese: os critrios de racionalidade...........260 4.2 Os indicadores............ 261 4.3 As relaes entre construo e verificao................262 4.4 A seleo das unidades de observao................263 5. A observao.............264 5.1 O instrumento de observao.........264 5.2 A recolha dos dados............267 6. A anlise das informaes.............267 6.1 A medio................268 6.2 A descrio dos resultados................268 6.3 A anlise das relaes entre a taxa de presena e as razes para ir s aulas.............270 6.4 A comparao dos resultados observados com os resultados esperados a partir da hiptese e o exame das diferenas.......271 7. As concluses.............274 A hiptese esquecida................275 Recapitulao das operaes...............277 Bibliografia geral.......... 281

Prefcio 2. edio Nesta 2. edio esforamo-nos por no alterar a concepo didtica da obra. O Manual de Investigao em Cincias Sociais permanece resolutamente prtico. Foram feitas muitas correes e modificaes locais em todas as partes do livro. Algumas foram transformadas de alto a baixo. As principais alteraes so as seguintes: Primeira etapa: a pergunta de partida supresso de algumas passagens que podiam conduzir a mal-entendidos e nova redao dos comentrios de determinadas questes (relaes entre a investigao em cincias sociais e a tica, entre a descrio e a compreenso dos fenmeno sociais...); . Terceira etapa: a problemtica captulo quase inteiramente recomposto tendo em conta os contributos de obras recentes sobre os modos de explicao dos fenmenos sociais; Quarta etapa: a construo do modelo de anlise reformulao das dimenses do conceito de ator social a partir de investigaes recentes; Sexta etapa: a anlise das informaes acrescentos sobre a tipologia, a feld research, a complementaridade entre mtodos diferentes e um cenrio de investigao no linear; Atualizao das diferentes bibliografias e integrao das bibliografias especializadas nas apresentaes dos mtodos de coleta e de anlise das informaes. Estas alteraes devem muito a vrias pessoas, a quem queramos assegurar o nosso reconhecimento: Monique Tavernier, pela sua ajuda competente e eficaz na preparao desta 2.a edio Michel Hubert, JeanMarie Lacrosse, Christian Maroy e Jean Nizet, pelas suas crticas e sugestes profissionais e amigveis; Casimiro Marques Balsa, seus colegas da Universidade Nova de Lisboa e, em particular, Rui Santos, pelo seu exame pormenorizado da obra e pelo acolhimento que lhe foi dado em Portugal; os muitos professores, estudantes e investigadores da Frana, Sua, Quebeque, Senegal, Blgica e de outros pases que nos deram a conhecer as suas reaes e estmulos.

OBJETIVOS E PROCEDIMENTO 1. Os objetivos 1.1. Objetivos gerais A investigao em Cincias Sociais segue um procedimento anlogo ao do pesquisador de petrleo. No perfurando ao acaso que este encontrar o que procura. Pelo contrrio, o sucesso de um programa de pesquisa petrolfera depende do procedimento seguido. Primeiro o estudo dos terrenos, depois a perfurao. Este procedimento implica a participao de numerosas competncias diferentes. Os gelogos iro determinar as zonas geogrficas onde maior a probabilidade de encontrar petrleo; os engenheiros iro conceber processos de perfurao apropriados, que iro ser aplicados pelos tcnicos. No pode exigir-se ao responsvel do projeto que domine minuciosamente todas as tcnicas necessrias. O seu papel especfico ser o de conceber o conjunto do projeto e coordenar as operaes com o mximo de coerncia e eficcia. sobre ele que recair a responsabilidade de levar a bom termo o dispositivo global de investigao. No que respeita investigao social, o processo comparvel. Importa, acima de tudo, que o investigador seja capaz de conceber e de pr em prtica um dispositivo para a elucidao do Real, isto , no seu sentido mais lato, um mtodo de trabalho. Este nunca se apresentar como uma simples soma de tcnicas que se trataria de aplicar tal e qual se apresentam, mas sim como um percurso global do esprito que exige ser reinventado para cada trabalho. Quando, no decorrer de um trabalho de investigao social, o seu autor se v confrontado com problemas graves que comprometem o prosseguimento do projeto, raramente isso acontece por razes de ordem estritamente tcnica. possvel aprender variadssimas tcnicas de um modo bastante rpido, assim como, de qualquer forma, solicitar a colaborao ou, pelo menos, os conselhos de um especialista. Quando um investigador, profissional ou principiante, sente grandes dificuldades no seu trabalho, as razes so quase sempre de ordem metodolgica, no sentido que damos ao termo. Ouvimos ento expresses invariavelmente idnticas: J no sei em que ponto estou, ou tenho a impresso de j nem saber o que procuro, no fao a mnima idia do que hei-de fazer para continuar,tenho muitos dados... mas no sei o que fazer com eles, ou at mesmo, logo de incio,no sei bem por onde comear. Porm, e paradoxalmente, as numerosas obras que se dizem metodolgicas no se preocupam muito com o mtodo, no seu sentido mais lato. Longe de contriburem para formar os seus leitores num procedimento global de investigao, apresentam-se freqentemente como exposies de tcnicas particulares, isoladas da reflexo terica e da concepo de conjunto, sem as quais impossvel justificar a sua escolha e dar-lhes um sentido. Estas obras tm, bem entendido, a sua utilidade para o investigador, mas s depois da construo metodolgica, aps esta ter sido validamente encetada. Esta obra foi concebida para ajudar todos os que, no mbito dos seus estudos, das suas responsabilidades profissionais ou sociais, desejem formar-se em investigao social ou, mais precisamente, empreender com xito um trabalho de fim de curso ou uma tese, trabalhos, anlises ou investigaes cujo objetivo seja compreender mais profundamente e interpretar mais acertadamente os fenmenos da vida coletiva com que se confrontam ou que, por qualquer razo, os interpelam. Pelos motivos acima expostos, pareceu-nos que esta obra s poderia

desempenhar esta funo se fosse inteiramente concebida como um suporte de formao metodolgica, em sentido lato, isto , como uma formao para conceber e aplicar um dispositivo de elucidao do real. Isto significa que abordaremos numa ordem lgica temas como a formulao de um projeto de investigao, o trabalho exploratrio, a constituio de um plano de pesquisa ou os critrios para a escolha das tcnicas de recolha, tratamento e anlise dos dados. Deste modo, cada um poder, chegado o momento e com pleno conhecimento de causa, fazer sensatamente apelo a um ou a outro dos numerosos mtodos e tcnicas de investigao, em sentido restrito, para elaborar por si mesmo, a partir deles, procedimentos de trabalho corretamente adaptados ao seu projeto. 1.2. CONCEPO DIDTICA No plano didtico, esta obra diretamente utilizvel. Isto significa que o leitor que o deseje poder, logo a partir das primeiras pginas, aplicar ao seu trabalho as recomendaes que lhe sero propostas. Apresenta-se, pois, como um manual cujas diferentes partes podem ser experimentadas, seja por investigadores principiantes isolados, seja em grupo ou na sala de aula, com o enquadramento crtico de um docente formado em cincias sociais. No entanto, recomenda-se uma primeira leitura integral antes de iniciar os trabalhos de aplicao, de modo que a coerncia global do procedimento seja bem apreendida e as sugestes sejam aplicadas de forma flexvel, crtica e inventiva. Uma tal ambio pode parecer uma aposta impossvel: como possvel propor um manual metodolgico num campo de investigao onde, como sabido, os dispositivos de pesquisa variam consideravelmente com as investigaes? No existe aqui um enorme risco de impor uma imagem simplista e muito arbitrria da investigao social? Por vrias razes, pensamos que este risco s poderia resultar de uma leitura extremamente superficial ou parcial deste livro. Embora o contedo desta obra seja diretamente aplicvel, no se apresenta, no entanto, como uma simples coleo de receitas, mas como uma trama geral e muito aberta, no mbito da qual (e fora da qual!) podem pr-se em prtica os mais variados procedimentos concretos. Se verdade que contm numerosas sugestes prticas e exerccios de aplicao, nem aquelas nem estes arrastaro o leitor para uma via metodolgica precisa e irrevogvel. Este livro foi inteiramente redigido para ajudar o leitor a conceber por si prprio um processo de trabalho, e no para lhe impor um determinado processo a ttulo de cnone universal. No se trata,pois, de um modo de emprego que implique qualquer aplicao mecnica das suas diferentes etapas. Prope pontos de referncia to polivalentes quanto possvel para que cada um possa elaborar com lucidez dispositivos metodolgicos prprios em funo dos seus objetivos. Com este propsito e trata-se de uma segunda precauo-, as pginas desta obra convidam constantemente ao recuo crtico, de modo que o leitor seja regularmente levado a refletir com lucidez sobre o sentido do seu trabalho, medida que for progredindo. As reflexes que propomos ao leitor fundam-se na nossa experincia de investigadores em sociologia, de formadores de adultos e de docentes. So, portanto, forosamente subjetivas e inacabadas. Partimos do pressuposto de que o leitor seguiu ou segue paralelamente uma formao terica e goza da possibilidade de discutir e ser avaliado por um investigador ou um docente formado em cincias sociais. Veremos, por outro lado, no decurso desta obra, onde e como os recursos tericos intervm na elaborao do dispositivo metodolgico. Uma investigao social no , pois, uma sucesso de mtodos e

tcnicas estereotipadas que bastaria aplicar tal e qual se apresentam, numa ordem imutvel. A escolha, a elaborao e a organizao dos processos de trabalho variam com cada investigao especfica. Por isso e trata-se de uma terceira precauo -, a obra est elaborada com base em numerosos exemplos reais. Alguns deles sero vrias vezes referidos, de modo a realarem a coerncia global de uma investigao. No constituem ideais a atingir, mas sim balizas, a partir das quais cada um poder distanciar-se e situar-se. Finalmente, ltima precauo-, este livro apresenta-se, explicitamente, como um manual de formao. Est construdo em funo de uma idia de progresso na aprendizagem. Por conseguinte, compreender-se imediatamente que o significado e o interesse destas diferentes etapas no podem ser corretamente avaliados se forem retiradas do seu contexto global. Umas so mais tcnicas, outras mais crticas. Algumas idias, pouco aprofundadas no incio da obra, so retomadas e desenvolvidas posteriormente noutros contextos. Certas passagens contm recomendaes fundamentadas; outras apresentam simples sugestes ou um leque de possibilidades. Nenhuma delas d, por si s, uma imagem do dispositivo global, mas cada uma ocupa nele um lugar necessrio. 1.3. INVESTIGAO EM CINCIAS SOCIAIS No domnio que aqui nos ocupa utilizam-se freqentemente e somos forados a incluir-nos, neste uso, as palavras investigao ou cincia, com uma certa ligeireza e nos sentidos mais elsticos. Falase, por exemplo, de investigao cientfica para qualificar as sondagens de opinio, os estudos de mercado ou os diagnsticos mais banais s porque foram efetuados por um servio ou por um centro de investigao universitrio. D-se a entender aos estudantes do primeiro nvel do ensino superior, e mesmo aos dos ltimos anos do ensino secundrio, que as suas aulas de mtodos e tcnicas de investigao social os tornaro aptos a adotar um procedimento cientfico e, desde logo, a produzir um conhecimento cientfico, quando, na verdade, muito difcil, mesmo para um investigador profissional e com experincia, produzir conhecimento verdadeiramente novo que faa progredir a sua disciplina. O que que, na melhor das hipteses, se aprende de fato no fim daquilo que geralmente qualificado como trabalho de investigao em cincias sociais? A compreender melhor os significados de um acontecimento ou de uma conduta, a fazer inteligentemente o ponto da situao, a captar com maior perspiccia as lgicas de funcionamento de uma organizao, a refletir acertadamente sobre as implicaes de uma deciso poltica, ou ainda a compreender com mais nitidez como determinadas pessoas apreendem um problema e a tornar visveis alguns dos fundamentos das suas representaes. Tudo isto merece que nos detenhamos e que adquiramos essa formao; principalmente a ela que o livro consagrado. Mas raramente se trata de investigaes que contribuam para fazer progredir os quadros conceptuais das cincias sociais, os seus modelos de anlise ou os seus dispositivos metodolgicos. Trata-se de estudos, anlises ou exames, mais ou menos bem realizados, consoantes formao e imaginao doinvestigador" e s precaues de que se rodeia para levar a cabo as suas investigaes. Este trabalho pode ser precioso e contribuir muito para a lucidez dos atores sociais acerca das prticas de que so autores, ou sobre os acontecimentos e os fenmenos que testemunham, mas no se deve atribuir-lhe um estatuto que no lhe apropriado.

Esta obra, embora possa apoiar determinados leitores empenhados em investigaes de uma certa envergadura, visa sobretudo ajudar os que tm ambies mais modestas, mas que, pelo menos, esto decididos a estudar os fenmenos sociais com uma preocupao de autenticidade, de compreenso e de rigor metodolgico. Em cincias sociais temos de nos proteger de dois defeitos opostos: um cientismo ingnuo que consiste em crer na possibilidade de estabelecer verdades definitivas e de adotar um rigor anlogo ao dos fsicos ou dos bilogos, ou, inversamente, um cepticismo que negaria a prpria possibilidade de conhecimento cientfico. Sabemos simultaneamente mais e menos do que por vezes deixamos entender. Os nossos conhecimentos constroem-se com o apoio de quadros tericos e metodolgicos explcitos, lentamente elaborados, que constituem um campo pelo menos parcialmente estruturado, e esses conhecimentos so apoiados por uma observao dos fatos concretos. a estas qualidades de autenticidade, de curiosidade e de rigor que queremos dar relevo nesta obra. Se utilizamos os termos investigao, investigador" e cincias sociais, para falar tanto dos trabalhos mais modestos como dos mais ambiciosos, por uma questo de facilidade, porque no vemos outros mais convenientes, mas tambm com a conscincia de que so freqentemente excessivos. 2. O PROCEDIMENTO 2.1. mal) PROBLEMAS DE MTODO (o caos original... ou trs maneiras de comear

No incio de uma investigao ou de um trabalho, o cenrio quase sempre idntico. Sabemos vagamente que queremos estudar tal ou tal problema, por exemplo, o desenvolvimento da nossa prpria regio, o funcionamento de uma empresa, a introduo das novas tecnologias na escola, a emigrao ou as atividades de uma associao que freqentamos, mas no sabemos muito bem como abordar a questo. Desejamos que este trabalho seja til e resulte em proposies concretas, mas temos a sensao de nos perdermos nele ainda antes de o termos realmente comeado. Eis aproximadamente a forma como comea a maior parte dos trabalhos de estudantes, mas tambm, por vezes, de investigadores, nos domnios que dizem respeito quilo a que costumamos chamar as cincias sociais. Este caos original no deve ser motivo de inquietao; pelo contrrio, a marca de um esprito que no se alimenta de simplismos e de certezas estabelecidas. O problema consiste em sair dele sem demorar demasiado e em faz-lo em nosso proveito. Para o conseguirmos, vejamos primeiro aquilo que no devemos de forma alguma fazer, mas que, infelizmente, fazemos com freqncia: a fuga para a frente. Esta pode tomar vrias formas, das quais s iremos aqui abordar as mais freqentes: a gula livresca ou estatstica, a passagem, s hipteses e a nfase que obscurece. Se nos detemos aqui sobre o que no devemos fazer, por termos visto demasiados estudantes e investigadores principiantes precipitarem-se desde o incio para os piores caminhos. Ao dedicar alguns minutos a ler estas primeiras pginas, o leitor poupar talvez algumas semanas, ou mesmo alguns meses, de trabalho extenuante e, em grande parte, intil.

a) A gula livresca ou estatstica Como o nome indica, a gula livresca ou estatstica consiste em encher a cabea com uma grande quantidade de livros, artigos ou dados numricos, esperando encontrar a, ao virar de um pargrafo ou de uma curva, a luz que permitir enfim precisar, corretamente e de forma satisfatria, o objetivo e o tema do trabalho que se deseja efetuar. Esta atitude conduz invariavelmente ao desalento, dado que a abundncia de informaes mal integradas acaba por confundir as idias. Ser ento necessrio voltar atrs, reaprender a refletir, em vez de devorar, a ler em profundidade poucos textos cuidadosamente escolhidos e a interpretar judiciosamente alguns dados estatsticos particularmente eloqentes. A fuga para a frente no s intil, mas tambm prejudicial. Muitos estudantes abandonam os seus projetos de trabalho de fim de curso ou de tese por os terem iniciado desse modo. muito mais gratificante ver as coisas de outra forma e considerar que, bem compreendida, a lei do menor esforo uma regra essencial do trabalho de investigao. Consiste em procurar sempre tomar o caminho mais curto e mais simples para o melhor resultado, o que implica, nomeadamente, que nunca se inicie um trabalho importante sem antes refletir sobre o que se procura saber e a forma de consegui-lo. Quem se sentir visado por estas observaes no deve desesperar. Bastar-lhe- simplesmente descongestionar o crebro e desemaranhar a meada de nmeros ou de palavras que o asfixia e impede de funcionar de forma ordenada e criativa. Pare de acumular, sem mtodo, informaes mal assimiladas e preocupe-se primeiro com o seu procedimento. b) A passagem s hipteses Aqui est uma outra forma diferente de fuga para a frente. Os jogadores de brdege sabem bem o que uma passagem. Em vez de jogar primeiro o s e assegurar assim a vaza, o terceiro jogador tenta ganhar o ponto com a dama, esperando que o quarto no tenha o rei. Se a jogada resultar, o jogador ganha a vaza e conserva o s. Tal aposta no se justifica em investigao, onde absolutamente necessrio assegurar cada ponto e realizar cuidadosamente as primeiras etapas antes de pensar nas seguintes. A passagem s hipteses consiste precisamente em precipitar-se sobre a coleta dos dados antes de ter formulado hipteses de investigao (voltaremos adiante a esta noo) e em preocupar-se com a escolha e a aplicao prtica das tcnicas de investigao antes mesmo de saber exatamente aquilo que se procura e, portanto, para o que iro servir. No raro ouvir um estudante declarar que tenciona fazer um inqurito por questionrio junto de uma dada populao quando no tem nenhuma hiptese de trabalho e, para dizer a verdade, nem sequer sabe o que procura. S possvel escolher uma tcnica de pesquisa quando se tem uma idia da natureza dos dados a recolher, o que implica que se comece por definir bem o projeto. Esta forma de fuga para a frente corrente, sendo encorajada pela crena segundo a qual a utilizao de tcnicas de investigao consagradas determina o valor intelectual e o carter cientfico de um trabalho. Mas que utilidade tem a aplicao correta de tcnicas experimentadas se estas estiverem ao servio de um projeto vago e mal definido? Outros pensam que basta acumular um mximo de informaes sobre um assunto e submet-las a vrias tcnicas de anlise estatstica para descobrir a resposta s suas perguntas. Afundam-se, assim, numa armadilha cujas conseqncias podem cobri-los de ridculo. Por exemplo, num

trabalho de fim de curso um estudante tentava descobrir quais os argumentos mais freqentemente empregados por um conselho de turma para avaliar a capacidade dos estudantes. Tinha gravado todas as discusses dos docentes durante o conselho de turma de fim de ano e, aps ter introduzido tudo num arquivo de computador, havia-o submetido a um programa de anlise de contedo altamente sofisticado. Os resultados foram inesperados. Segundo o computador, os termos mais empregados para julgar os alunos eram palavras como e... de... heim...capaz"... mas... etc. c) A nfase que obscurece Este terceiro defeito freqente nos investigadores principiantes que esto impressionados e intimidados pela sua recente passagem pela freqncia das universidades e por aquilo que pensam ser a cincia. Para assegurarem a sua credibilidade julgam ser til exprimirem-se de forma pomposa e ininteligvel e, na maior parte das vezes, no conseguem evitar raciocinar da mesma maneira. Duas caractersticas dominam os seus projetos de investigao ou de trabalho: a ambio desmedida e a mais completa confuso. Umas vezes parece estar em causa a reestruturao industrial da sua regio; outras, o futuro do ensino; outras ainda nada menos do que o destino do Terceiro Mundo que parece jogar-se nos seus poderosos crebros. Estas declaraes de inteno exprimem-se numa gria, to oca quanto enftica, que mal esconde a ausncia de um projeto de investigao claro e interessante. A primeira tarefa do orientador deste tipo de trabalho ser ajudar o seu autor a assentar os ps na terra e a mostrar mais simplicidade e clareza. Para vencer as suas eventuais reticncias necessrio pedir-lhe sistematicamente que defina todas as palavras que emprega e que explique todas as frases que formula, de modo que rapidamente se d conta de que ele prprio no percebe nada da sua algaraviada. Se pensa que estas consideraes se lhe aplicam, esta tomada de conscincia, por si s, p-lo- no bom caminho, dado que uma caracterstica essencial e rara de uma boa investigao a autenticidade. Neste domnio que nos ocupa, mais do que em qualquer outro, no h bom trabalho que no seja uma procura sincera da verdade. No a verdade absoluta, estabelecida de uma vez por todas pelos dogmas, mas aquela que se repe sempre em questo e se aprofunda incessantemente devido ao desejo de compreender com mais justeza a realidade em que vivemos e para cuja produo contribumos. Se, pelo contrrio, pensa que nada disto lhe diz respeito, faa-se, mesmo assim, o pequeno favor de explicar claramente as palavras e as frases que j tenha eventualmente redigido sobre um trabalho que inicia. Pode honestamente afirmar que se compreende bem a si mesmo e que os seus textos no contm expresses imitadas e declaraes ocas e presunosas? Se assim , se possui a autenticidade e o sentido das propores, ento, e s ento, possvel que o seu trabalho venha a servir para alguma coisa. Aps termos examinado vrias maneiras de comear muito mal, vejamos agora como possvel proceder de forma vlida a um trabalho de investigao e assegurar-lhe um bom comeo. Com a ajuda de esquemas, referiremos primeiro os princpios mais importantes do procedimento cientfico e apresentaremos as etapas da sua aplicao prtica. 2.2. AS ETAPAS DO PROCEDIMENTO

Fundamentalmente, o problema do conhecimento cientfico pe-se da mesma maneira para os fenmenos sociais e para os fenmenos naturais: em ambos os casos h hipteses tericas que devem ser confrontadas com dados de observao ou de experimentao. Toda a investigao deve, portanto, responder a alguns princpios estveis e idnticos, ainda que vrios percursos diferentes conduzam ao conhecimento cientfico. Um procedimento uma forma de progredir em direo a um objetivo. Expor o procedimento cientfico consiste, portanto, em descrever os princpios fundamentais a pr em prtica em qualquer trabalho de investigao. Os mtodos no so mais do que formalizaes particulares do procedimento, percursos diferentes concebidos para estarem mais adaptados aos fenmenos ou domnios estudados. Mas esta adaptao no dispensa a fidelidade do investigador aos princpios fundamentais do procedimento cientfico. Ao dar mais relevo ao procedimento do que aos mtodos particulares, a nossa formulao tem, assim, um alcance geral e pode aplicar-se a todo o tipo de trabalho cientfico em cincias sociais. Mas quais so esses princpios fundamentais que toda a investigao deve respeitar? Gaston Bachelard resumiu o processo cientfico em algumas palavras: O fato cientfico conquistado, construdo e verificado: Conquistado sobre os preconceitos; Construdo pela razo; Verificado nos fatos. A mesma idia estrutura toda a obra Le mtier de sociologue, de P. Bourdieu, J. C. Chamboredon e J. C. Passeron (Paris, Mouton, Bordas, 1968). Nela os autores descrevem o procedimento como um processo em trs atos cuja ordem deve ser respeitada. aquilo a que chamam hierarquia dos atos epistemolgicos. Estes trs atos so a ruptura, a construo e a verificao (ou experimentao). O objetivo deste manual o de apresentar estes princpios do procedimento cientfico em cincias sociais sob a forma de sete etapas a percorrer. Em cada uma delas so descritas as operaes a empreender para atingir a seguinte e progredir de um ato para o outro. Ou seja, este manual apresenta-se como uma pea de teatro clssica, em trs atos e sete cenas. O esquema da pgina seguinte mostra a correspondncia entre a etapa e os atos do procedimento. Por razes didticas, os atos e as etapas so apresentados como operaes separadas e numa ordem seqencial. Na realidade, uma investigao cientfica no to mecnica, pelo que introduzimos no esquema circuitos de retroao para simbolizar as interaes que realmente existem entre as diferentes fases da investigao. a) Os trs atos do procedimento Para compreender a articulao das etapas de uma investigao com os trs atos do procedimento cientfico necessrio dizer primeiro algumas palavras sobre os princpios que estes trs atos encerram e sobre a lgica que os une. A ruptura Em cincias sociais, a nossa bagagem supostamente terica comporta numerosas armadilhas, dado que uma grande parte das nossas idias se inspiram nas aparncias imediatas ou em posies parciais.

Frequentemente, no mais do que iluses e preconceitos. Construir sobre tais premissas equivale a construir sobre areia. Da a importncia da ruptura, que consiste precisamente em romper com os preconceitos e as falsas evidncias, que somente nos do a iluso de compreendermos as coisas. A ruptura , portanto, o primeiro ato constitutivo do procedimento cientfico. A construo Esta ruptura s pode ser efetuada a partir de um sistema conceptual organizado, susceptvel de exprimir a lgica que o investigador supe estar na base do fenmeno. graas a esta teoria que ele pode erguer as proposies explicativas do fenmeno a estudar e prever qual o plano de pesquisa a definir, as operaes a aplicar e as conseqncias que logicamente devem esperar-se no termo da observao. Sem esta construo terica no haveria experimentao vlida. No pode haver, em cincias sociais, verificao frutuosa sem construo de um quadro terico de referncia. No se submete uma proposio qualquer ao teste dos fatos. As proposies devem ser o produto de um trabalho racional, fundamentado na lgica e numa bagagem conceptual validamente constituda (J.-M. Berthelot, L'Intelligence du social, Paris, PUF, 1990, p. 39). A verificao Uma proposio s tem direito ao estatuto cientfico na medida em que pode ser verificada pelos fatos. Este teste pelos fatos designado por verificao ou experimentao. Corresponde ao terceiro ato do processo. b) As sete etapas do procedimento Os trs atos do procedimento cientfico no so independentes uns dos outros. Pelo contrrio, constituem-se mutuamente. Assim, por exemplo, a ruptura no se realiza apenas no incio da investigao; completa-se na e pela construo. Esta no pode, em contrapartida, passar sem as etapas iniciais, principalmente consagradas ruptura. Por seu turno, a verificao vai buscar o seu valor qualidade da construo. No desenvolvimento concreto de uma investigao, os trs atos do procedimento cientfico so realizados ao longo de uma sucesso de operaes, que aqui so reagrupadas em sete etapas. Por razes didticas, o esquema anterior distingue de forma precisa as etapas umas das outras. No entanto, circuitos de retroao lembram-nos que estas diferentes etapas esto, na realidade, em permanente interao. No deixaremos, alis, de mostr-lo sempre que possvel, uma vez que este manual dar especial relevo ao encadeamento das operaes e lgica que as liga. Primeira etapa A pergunta de partida As etapas do procedimento Objetivos o de O primeiro problema que se pe ao investigador muito simplesmente saber como comear bem o seu trabalho. De fato, no fcil

conseguir traduzir o que vulgarmente se apresenta como um foco de interesse ou uma preocupao relativamente vaga num projeto de investigao operacional. O receio de iniciar mal o trabalho pode levar algumas pessoas a darem voltas durante bastante tempo, a procurarem uma segurana ilusria numa das formas de fuga para a frente que abordamos, ou ainda a renunciarem pura e simplesmente ao projeto. Ao longo desta etapa mostraremos que existe uma outra soluo para este problema do arranque do trabalho. A dificuldade de comear de forma vlida um trabalho tem, freqentemente, origem numa preocupao de faz-lo demasiado bem e de formular desde logo um projeto de investigao de forma totalmente satisfatria. um erro. Uma investigao , por definio, algo que se procura. um caminhar para um melhor conhecimento e deve ser aceita como tal, com todas as hesitaes, desvios e incertezas que isso implica. Muitos vivem esta realidade como uma angstia paralisante; outros, pelo contrrio, reconhecem-na como um fenmeno normal e, numa palavra, estimulante. Por conseguinte, o investigador deve obrigar-se a escolher rapidamente um primeiro fio condutor to claro quanto possvel, de forma que o seu trabalho possa iniciar-se sem demora e estruturar-se com coerncia. Pouco importa que este ponto de partida parea banal e que a reflexo do investigador no lhe parea ainda totalmente madura; pouco importa que, como provvel, ele mude de perspectiva ao longo do caminho. Este ponto de partida apenas provisrio, como um acampamentobase que os alpinistas constrem para prepararem a escalada de um cume e que abandonaro por outros acampamentos mais avanados at iniciarem o assalto Final. Resta saber como deve ser apresentado este primeiro fio condutor e que critrios deve preencher para desempenhar o melhor possvel a funo que dele se espera. este o objeto desta primeira etapa. 1. UMA BOA FORMA DE ATUAR Por vrias razes que progressivamente se tornaro evidentes, sugerimos a adoo de uma frmula que a experincia revelou ser muito eficaz. Consiste em procurar enunciar o projeto de investigao na forma de uma pergunta de partida, atravs da qual o investigador tenta exprimir o mais exatamente possvel o que procura saber, elucidar, compreender melhor. Para desempenhar corretamente a sua funo, este exerccio deve, claro est, ser efetuado segundo algumas regras que adiante sero especificadas e abundantemente ilustradas. Sem dvida, muitos leitores manifestaro desde logo algumas reticncias em relao a uma tal proposta, mas gostaramos que cada um reservasse a sua opinio at ter apreendido bem a natureza e o alcance exato do exerccio. Em primeiro lugar, no intil assinalar que os autores mais conceituados no hesitam em enunciar os seus projetos de investigao sob a forma de perguntas simples e claras, ainda que, na realidade, essas perguntas tenham subjacente uma slida reflexo terica. Eis trs exemplos bem conhecidos dos socilogos: . A desigualdade de oportunidades em relao ao ensino tem tendncia a diminuir nas sociedades industriais? Esta pergunta feita por Raymond Boudon no incio de uma investigao cujos resultados foram publicados com o ttulo L'Ingalit des chances: la mobilit sociale dans les socits industrielles (Paris,

Armand Colin,1973). A esta primeira questo central acrescenta Raymond Boudon uma outra que tem por objetivo a incidncia das desigualdades em relao ao ensino na mobilidade social. Mas a primeira pergunta citada constitui verdadeiramente a interrogao de partida do seu trabalho e aquela que lhe servir de primeiro eixo central. A luta estudantil (na Frana) apenas uma agitao em que se manifesta a crise da universidade, ou contm em si um movimento social capaz de lutar em nome de objetivos gerais contra uma dominao social? Esta a pergunta de investigao em que utiliza pela sociolgica, cujos relatrios e Lutte tudiante (com F. Dubet, 1978). partida posta por Alain Touraine na primeira vez o seu mtodo de interveno anlises foram publicados com o ttulo Z. Hegedus e M. Wieviorka, Paris, Seuil,

. O que predispe algumas pessoas a frequentarem os museus, ao contrrio da grande maioria das que os no frequentam? Reconstituda segundo os termos dos autores, esta a pergunta de partida da investigao efetuada por Pierre Bourdieu e Alain Darbel sobre o pblico dos museus de arte europeus, cujos resultados foram publicados com o ttulo L'Amour de l'art (Paris, ditions de Minuit, 1969). Se os pilares da investigao social impem a si mesmos o esforo de precisarem o seu projeto de uma forma to conscienciosa, h que admitir que o investigador, principiante ou j com alguma prtica, amador ou profissional, ocasional ou regular, no pode dar-se ao luxo de omitir este exerccio, mesmo que as suas pretenses tericas sejam infinitamente mais modestas e o seu campo de pesquisa mais restrito. 2. OS CRITRIOS DE UMA BOA PERGUNTA DE PARTIDA

Traduzir um projeto de investigao sob a forma de uma pergunta de partida s ser til se essa pergunta for corretamente formulada. Isto no necessariamente fcil, pois uma boa pergunta de partida deve preencher vrias condies. Em vez de apresentar imediatamente estas condies de forma abstrata, preferivel partir de exemplos concretos. Procederemos, assim, ao exame crtico de uma srie de perguntas de partida, insatisfatrias, mas com formas correntes. Este exame permitirnos- refletir sobre os critrios de uma boa pergunta e o significado profundo desses critrios. O enunciado de cada pergunta ser seguido de um comentrio crtico, mas seria prefervel que cada um discutisse por si mesmo estas perguntas, se possvel em grupo, antes de ler, mais ou menos passivamente, os nossos comentrios. Ainda que os exemplos de perguntas apresentados lhe paream muito claros, at mesmo demasiado claros, e que as recomendaes propostas lhe paream evidentes e elementares, no deixe de levar a srio esta primeira etapa. Aquilo que pode ser fcil quando um critrio apresentado isoladamente s-lo- muito menos quando se tratar de respeitar o conjunto destes critrios para uma nica pergunta de partida: a sua. Acrescentemos que estes exemplos no so puras invenes da nossa parte. Ouvimo-los todos, por vezes sob formas muito ligeiramente diferentes, da boca de estudantes. Se, das centenas de perguntas insatisfatrias sobre as quais trabalhamos com eles, acabamos por reter aqui apenas sete, porque elas so bastante representativas das falhas mais correntes e porque, juntas, cobrem bem os objetivos pretendidos.

Veremos progressivamente a que ponto este trabalho, longe de ser estritamente tcnico e formal, obriga o investigador a uma clarificao, frequentemente muito til, das suas intenes e perspectivas espontneas. Neste sentido, a pergunta de partida constitui normalmente um primeiro meio para pr em prtica uma das dimenses essenciais do processo cientfico: a ruptura com os preconceitos e as noes prvias. Voltaremos a este ponto no fim do exerccio. O conjunto das qualidades requeridas pode resumir-se em algumas palavras: uma boa pergunta de partida deve poder ser tratada. Isto significa que se deve poder trabalhar eficazmente a partir dela e, em particular, deve ser possvel fornecer elementos para lhe responder. Estas qualidades tm de ser pormenorizadas. Para esse efeito, procedamos ao exame crtico de sete exemplos de perguntas. 2.1. AS QUALIDADES DE CLAREZA As qualidades de clareza dizem essencialmente respeito preciso e conciso do modo de formular a pergunta de partida. Pergunta l Qual o impacto das mudanas na organizao do espao urbano sobre a vida dos habitantes? Comentrio Esta pergunta demasiado vaga. Em que tipos de mudanas se pensa? O que se entende por vida dos habitantes? Trata-se da sua vida profissional, familiar, social, cultural? Alude-se s suas facilidades de deslocao? s suas disposies psicolgicas? Poderamos facilmente alongar a lista das interpretaes possveis desta pergunta demasiado vaga, que informa muito pouco acerca das intenes precisas do seu autor, se que estas o so. Convir, portanto, formular uma pergunta precisa cujo sentido no se preste a confuses. Ser muitas vezes indispensvel definir claramente os termos da pergunta de partida, mas preciso primeiro esforar-se por ser o mais lmpido possvel na formulao da prpria pergunta. Existe um meio muito simples de se assegurar de que uma pergunta bastante precisa. Consiste em formul-la diante de um pequeno grupo de pessoas, evitando coment-la ou expor o seu sentido. Cada pessoa do grupo depois convidada a explicar como compreendeu a pergunta. A pergunta ser precisa se as interpretaes convergirem e corresponderem inteno do seu autor. Ao proceder a este pequeno teste em relao a vrias perguntas diferentes, depressa observar que uma pergunta pode ser precisa e compreendida da mesma forma por todos sem estar por isso limitada a um problema insigniftcante ou muito marginal. Consideremos a seguinte pergunta: Quais so as causas da diminuio dos empregos na indstria val no decurso dos anos 80? Esta pergunta precisa no sentido de que cada um a compreender da mesma forma, mas cobre, no entanto, um campo de anlise muito vasto (o que, como veremos mais frente, colocar outros problemas). Uma pergunta precisa no , assim, o contrrio de uma pergunta ampla ou muito aberta, mas sim de uma pergunta vaga ou imprecisa. No encerra imediatamente o trabalho numa perspectiva restritiva e sem possibilidades de generalizao. Permite-nos simplesmente saber aonde nos dirigimos e comunic-lo aos outros.

Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida ter de ser precisa. Pergunta 2 Em que medida o aumento das perdas de empregos no setor da construo explica a manuteno de grandes projetos de trabalhos pblicos, destinados no s a manter este setor, mas tambm a diminuir os riscos de conflitos sociais inerentes a esta situao? Comentrio Esta pergunta demasiado longa e desordenada. Contm suposies e desdobra-se no fim, de tal forma que difcil perceber bem o que se procura compreender prioritariamente. prefervel formular a pergunta de partida de uma forma unvoca e concisa para que possa ser compreendida sem dificuldade e ajudar o seu autor a perceber claramente o objetivo que persegue. Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida ter de ser unvoca e to concisa quanto possvel. I)a Valnia, regio francfona da Blgica. (N. do T.) 2.2. AS QUALIDADES DE EXEQUIBILIDADE As qualidades de exequibilidade esto essencialmente ligadas ao carcter realista ou irrealista do trabalho que a pergunta deixa entrever. Pergunta 3 Os dirigentes empresariais dos diferentes pases da Comunidade Europia tm uma percepo idntica da concorrncia econmica dos Estados Unidos e do Japo? Comentrio Se puder dedicar pelo menos dois anos inteiros a esta investigao, se dispuser de um oramento de vrios milhes e de colaboradores competentes, eficazes e poliglotas, ter, sem dvida, algumas hipteses de realizar este tipo de projeto e de obter resultados sufcientemente pormenorizados para terem alguma utilidade. Se no, prefervel restringir as suas ambies. Ao formular uma pergunta de partida, um investigador deve assegurar-se de que os seus conhecimentos, mas tambm os seus recursos em tempo, dinheiro e meios logsticos, lhe permitiro obter elementos de resposta vlidos. O que concebvel para um centro de investigao bem equipado e para investigadores com experincia no o forosamente para quem no dispe de recursos comparveis. Os investigadores principiantes, mas por vezes tambm os profissionais, subestimam quase sempre as restries materiais, particularmente as de tempo, que os seus projetos de investigao implicam. Realizar as iniciativas prvias a um inqurito ou a entrevistas, constituir uma amostra, decidir as pessoas-chave que podem dar apoio, organizar reunies, encontrar documentos teis, etc., podem devorar partida uma grande parte do tempo e dos meios consagrados

investigao. Em consequncia, uma boa parte das informaes recolhidas subexplorada e a investigao termina num suspiro angustiante, durante o qual nos expomos a erros e negligncias. Resumindo, para poder ser tratada, uma boa pergunta de partida deve ser realista, isto , adequada aos recursos pessoais, materiais e tcnicos, em cuja necessidade podemos imediatamente pensar e com que podemos razoavelmente contar. 2.3. AS QUALIDADES DE PERTINNCIA As qualidades de pertinncia dizem respeito ao registo (explicativo, normativo, preditivo...) em que se enquadra a pergunta de partida. Procedamos, tambm aqui, ao exame crtico de exemplos de perguntas semelhantes s que encontramos frequentemente no incio de trabalhos de estudantes. Pergunta 4 A forma como o fisco est organizado no nosso pas socialmente justa? Comentrio Esta pergunta no tem, evidentemente, como objetivo analisar o funcionamento do sistema fiscal ou o impacto da maneira como ele concebido ou levado a cabo, mas sim julg-lo no plano moral, o que constitui um procedimento completamente diferente, que no diz respeito s cincias sociais. A confuso entre a anlise e o juzo de valor muito usual e nem sempre fcil de detectar. De uma maneira geral, podemos dizer que uma pergunta moralizadora quando a resposta que lhe damos s tem sentido em relao ao sistema de valores de quem a formula. Assim, a resposta ser radicalmente diferente consoante a pessoa que responde ache que a justia consiste em fazer cada um pagar uma quota-parte igual dos outros, sejam quais forem os seus rendimentos (como o caso dos impostos indiretos), uma quota-parte proporcional aos seus rendimentos ou uma quota-parte proporcionalmente mais importante medida que forem aumentando os seus rendimentos (a taxa progressiva aplicada nos impostos diretos). Esta ltima frmula, que alguns consideraro justa por contribuir para atenuar as desigualdades econmicas, ser julgada absolutamente injusta por quem considere que, assim, o fisco lhe extorque bastante mais do que aos outros do fruto do seu trabalho ou da sua habilidade. Os laos entre a investigao social e o julgamento moral so, evidentemente, mais estreitos e mais complexos do que este simples exemplo deixa supor, mas no este o lugar para os aprofundar. O fato de um projeto responder a uma preocupao de carcter tico e poltico (como contribuir para resolver problemas sociais, para instaurar mais justia e menos desigualdades, para lutar contra a marginalidade ou contra a violncia, para aumentar a motivao do pessoal de uma empresa, para ajudar a conceber um plano de renovao urbana...) no , em si, um problema. Longe de dever ser evitada, esta preocupao de pertinncia prtica com uma inteno tica deve ser encorajada, sob pena de produzir investigaes desprovidas de sentido e que constituiriam to-somente exerccios de estilo mais ou menos brilhantes. Tal no impede a investigao de ser conduzida com rigor, pelo menos desde que o investigador saiba clarificar as opes subjacentes e controlar as implicaes possveis. Esse problema no , alis, prprio das cincias

sociais, que, habitualmente, tm o mrito de o colocarem e de o enfrentarem mais explicitamente do que outras disciplinas. Acresce que uma investigao realizada com rigor e cuja problemtica construda com inventividade (v. quarta etapa) evidencia os desafios ticos e normativos dos fenmenos estudados, de maneira anloga aos trabalhos dos bilogos, que podem reevelar desafios ecolgicos. Deste modo, a investigao social cumpre o seu verdadeiro papel e o conhecimento por ela produzido pode inscrever-se no processo mais englobante de um verdadeiro pensamento. Enfim, tal como foi bem demonstrado por Marx (L'Idologie allemande), Durkheim (Les formes lmentaires de la vie religieuse) ou Weber (L'thique protestante et l'esprit du capitalisme), os sistemas de valores e de normas fazem parte dos objetos privilegiados das cincias sociais, porquanto a vida coletiva incompreensvel fora deles. Resumindo, se o investigador deve esforar-se por pensar nos laos entre o conhecimento, o tico e o poltico, tambm deve evitar as confuses entre os registros e, durante o trabalho de investigao, abordar o real em termos de anlise, e no de julgamento moral. Trata-se, alis, de uma condio da sua credibilidade e, por conseguinte, em ltima anlise, do impacto tico e poltico dos seus trabalhos. Tal no forosamente simples, pois, tanto na vida corrente como em determinadas aulas do ensino secundrio, esses registros so regularmente confundidos. Considera-se, por vezes, de bom tom terminar os trabalhos ou as dissertaes com um pequeno toque moralizador, destinado tanto edificao tica dos leitores como a convenc-los de que se tem bom corao. Tambm aqui a ruptura com os preconceitos e os valores pessoais fundamental. Resumindo, uma boa pergunta de partida no dever ser moralizadora. No procurar julgar, mas sim compreender. Pergunta 5 Ser que os patres exploram os trabalhadores? Comentrio Esta pergunta , na realidade, uma falsa pergunta ou, por outras palavras, uma afirmao disfarada de pergunta. evidente que, na mente de quem a fez, a resposta , a priori,sim ou no". Ser, alis, sempre possvel responder-lhe afirmativamente, como tambm possvel provar, que, inversamente, os trabalhadores exploram os patres. Basta para isso selecionar cuidadosamente os critrios e os dados adequados e apresentlos da forma que convm. As ms perguntas de partida deste tipo so abundantes. A que se segue um exemplo suplementar, ainda que menos ntido:Ser a fraude fiscal uma das causas do dficit oramental do Estado? Tambm aqui fcil imaginar que o autor tem, partida, uma idia; bastante precisa da resposta que, custe o que custar, tenciona dar a esta pergunta. O exame de uma pergunta de partida deve, portanto, incluir uma reflexo sobre a motivao e as intenes do autor, ainda que no possam ser detectadas no enunciado da pergunta, como o caso do nosso exemplo. Convir, nomeadamente, definir se o seu objectivo de conhecimento ou, pelo contrrio, de demonstrao. O esforo a despender para evitar formulaes tendenciosas da pergunta de partida, tal como os debates que poder ter sobre este assunto, podem contribuir de um modo eficaz para um recuo das idias preconcebidas. Uma boa pergunta de partida ser, portanto, uma verdadeira

pergunta, ou seja, uma pergunta aberta", o que significa que devem poder ser encaradas a priori vrias respostas diferentes e que no se tem a certeza de uma resposta preconcebida. Pergunta 6 Que mudanas afetaro a organizao do ensino nos prximos vinte anos? Comentrio O autor de uma pergunta como esta tem, na realidade, como projeto proceder a um conjunto de previses sobre a evoluo de um setor da vida social. Alimenta, assim, as mais ingnuas iluses sobre o alcance de um trabalho de investigao social. Um astrnomo pode prever com muita antecedncia a passagem de um cometa nas proximidades do sistema solar, porque a sua trajetria responde a leis estveis, s quais no pode furtar-se por si prprio. Isto no acontece no que respeita s atividades humanas, cujas orientaes nunca podem ser previstas com certeza. Podemos, sem dvida, afirmar, sem grande risco de nos enganarmos, que as novas tecnologias ocuparo um lugar cada vez maior na organizao das escolas e no contedo dos programas, mas somos incapazes de formular previses seguras que transcendam este tipo de banalidades. Alguns cientistas particularmente clarividentes e informados conseguem antecipar os acontecimentos e pressagiar o sentido provvel de transformaes prximas melhor do que o faria o comum dos mortais. Mas estes pressentimentos raramente se referem a acontecimentos precisos e apenas so concebidos como eventualidades. Baseiam-se no seu profundo conhecimento da sociedade, tal como hoje funciona, e no em prognsticos fantasistas que nunca se verificam, a no ser por acaso. Significar isto que a investigao em cincias sociais nada tem a dizer quanto ao futuro? Certamente que no, mas o que ela tem a dizer depende de outro registro. Com efeito, uma investigao bem conduzida permite captar os constrangimentos e as lgicas que determinam uma situao ou um problema, assim como discernir a margem de manobra dos atores sociais, e evidencia os desafios das suas decises e relaes sociais. nisso que ela interpela diretamente o futuro e adquire uma dimenso prospectiva, embora no se trate de previso no sentido estrito do termo. Essa dimenso prospectiva enraiza-se no exame rigoroso do que existe e funciona aqui e agora e, em particular, das tendncias perceptveis quando se observa o presente luz do passado. Fora desta perspectiva, as previses feitas com ligeireza arriscam-se fortemente a ter pouco interesse e consistncia. Deixam os seus autores desarmados perante interlocutores que, por seu lado, no sonham mas conhecem os seus dossiers. Resumindo, uma boa pergunta de partida abordar o estudo do que existe ou existiu, e no o daquilo que ainda no existe. No estudar a mudana sem se apoiar no exame do funcionamento. No visa prever o futuro, mas captar um campo de constrangimentos e de possibilidades, bem como os desafios que esse campo define. Pergunta 7 Os jovens so mais afetados pelo desemprego do que os adultos? Comentrio

Em primeiro lugar, podemos temer que esta pergunta exija apenas uma resposta puramente descritiva, que teria como nico objetivo conhecer melhor os dados de uma situao. Se a inteno de quem a formula se limita, com efeito, a juntar e a exibir os dados oficiais ou produzidos pelo prprio, pouco importa neste caso -, sem procurar compreender melhor, a partir deles, o fenmeno do desemprego e as lgicas da sua distribuio nas diferentes categorias da populao, teremos de reconhecer que um pouco curta. Em contrapartida, numerosas questes que se apresentam, primeira vista, como descritivas nem por isso deixam de implicar uma finalidade de compreenso dos fenmenos sociais estudados. Descrever as relaes de poder numa organizao, ou situaes socialmente problemticas que mostrem precisamente em que so problemticas ou a evoluo das condies de vida de uma parte da populao, ou os modos de ocupao de um espao pblico e as atividades nele desenvolvidas, implica uma reflexo acerca do que essencial salientar,uma seleo das informaes a recolher, uma classificao dessas informaes com o objetivo de descobrir linhas de fora e ensinamentos pertinentes. A despeito das aparncias, trata-se de algo diferente de uma simples descrio, ou seja, no mnimo, de uma descrio construda, que tem o seu lugar na investigao social e que requer a concepo e a realizao de um verdadeiro dispositivo conceptual e metodolgico. Uma descrio,assim concebida pode constituir uma excelente investigao em cincias sociais e uma boa maneira de a iniciar. Alis, muitas investigaes conhecidas apresentam-se, de certo modo, como descries construdas a partir de critrios que rompem com as categorias de pensamento geralmente admitidas e que, por isso, conduzem a reconsiderar os fenmenos estudados sob um olhar novo La distinction, critique social du Jugement,de Pierre Bourdieu (Paris,ditions de Minuit,1979), um bom exemplo: a descrio de prticas e disposies culturais realizada a partir do ponto de vista do hbito e de um sistema de desvios entre as diferentes classes sociais. Estamos,porm,muito longe de uma simples inteno de agrupamento no crtico de dados e de informaes existentes ou produzidas pelo prprio. desejvel que essa inteno de ultrapassar esse estdio transparea na pergunta de partida. Resumindo,uma boa pergunta de partida visar um melhor conhecimento dos fenmenos estudados e no apenas a sua descrio. No fundo, estas boas perguntas de partida so, portanto, aquelas atravs das quais o investigador tenta destacar os processos sociais, econmicos, polticos ou culturais que permitem compreender melhor os fenmenos e os acontecimentos observveis e interpret-los mais acertadamente. Estas perguntas requerem respostas em termos de estratgias, de modos de funcionamento, de relaes e de conflitos sociais, de relaes de poder, de inveno, de difuso ou de integrao cultural, para citar apenas alguns exemplos clssicos de pontos de vista, entre muitos outros pertinentes para a anlise em cincias sociais, e aos quais teremos ocasio de voltar. Poderamos ainda discutir muitos outros casos exemplares e salientar outros defeitos e qualidades, mas o que foi dito at aqui mais do que suficiente para fazer perceber claramente os trs nveis de exigncia que uma boa pergunta de partida deve respeitar: primeiro, exigncias de clareza; segundo, exigncias de exequibilidade; terceiro, exigncias de pertinncia, de modo a servir de primeiro Fio condutor a um trabalho do domnio da investigao em cincias sociais.

3. E SE AINDA TIVER RETICNCIAS... Talvez ainda tenha reticncias. Conhecemos as mais frequentes. O meu projeto ainda no est suficientemenle afinado para proceder a este exercicio. Neste caso, ele convm-lhe perfeitamente, porque tem precisamente como objetivo ajud-lo e obrig-lo a tornar o seu projeto mais preciso. A problemtica ainda s est no inicio. Apenas poderia formular uma pergunta banal. Isto no tem importncia porque a pergunta no definitiva. Por outro lado, que pretende problematizar", se incapaz de formular claramente o seu objetivo de partida? Pelo contrrio, este exerccio ajud-lo- a organizar melhor as suas reflexes, que de momento se dispersam em demasiadas direes diferentes. Uma formulao to lacnica do meu projeto de trabalho no passaria de uma grosseira reduo das minhas interrogaes e das minhas reflexes tericas. Sem dvida, mas reaparecer mais tarde que necessrio neste o seu trabalho e evite as suas reflexes no se perdero por isso. Iro e sero exploradas mais depressa do que pensa. O momento uma primeira chave que peimita canalizar dispersar as suas preciosas reflexes.

No me interessa apenas uma coisa. Desejo abordar vrias facetas do meu objeto de estudo. Se essa a sua inteno, ela respeitvel, mas j est a pensar em problemtica. Passou por cima da pergunta de partida. O exerccio de tentar precisar o que poderia constituir a pergunta central do seu trabalho vai fazer-lhe muito bem, porque qualquer investigao coerente possui uma pergunta que lhe assegura unidade. Se insistimos na pergunta de partida, porque a evitamos com demasiada frequncia, seja porque parece evidente (implicitamente!) ao investigador; seja porque este pensa que ver mais claro medida que avana. E um eiro. Ao desempenhar as funes de primeiro fio condutor, a pergunta de partida deve ajud-lo a progredir nas suas leituras e nas suas entrevistas exploratrias. Quanto mais preciso for este guia, melhor progredir o investigador. Alm disso, moldando, a sua pergunta de partida que o investigador inicia a ruptura com os preconceitos e com a iluso da transparncia. Finalmente, existe uma ltima razo decisiva para efectuar cuidadosamente este exerccio: as hipteses de trabalho, que constituem os eixos centrais de uma investigao, apresentam-se como proposies que respondem pergunta de partida. Segunda etapa A explorao As etapas do procedimento Objetivos Ao longo do captulo anterior aprendemos a formular um projecto de investigao sob a forma de uma pergunta de partida apropriada. At nova

ordem, esta constitui o fio condutor do trabalho. O problema agora o de saber como proceder para conseguir uma certa qualidade de informao; como explorar o terreno para conceber uma problemtica de investigao. este o objetivo deste captulo. A explorao comporta as operaes de leitura, as entrevistas exploratrias e alguns mtodos de explorao complementares. As operaes de leitura visam essencialmente assegurar a qualidade da problematizao, ao passo que as entrevistas e os mtodos complementares ajudam especialmente o investigador a ter um contato com a realidade vivida pelos atores sociais. Iremos aqui estudar mtodos de trabalho precisos e diretamente aplicveis por todos, qualquer que seja o tipo de trabalho em que se empenhem. Estes mtodos so concebidos para ajudarem o investigador a adotar uma abordagem penetrante do seu objeto de estudo e, assim, encontrar idias e pistas de reflexo esclarecedoras. 1. A LEITURA O que vlido para a sociologia deveria s-lo para qualquer trabalho intelectual: ultrapassar as interpretaes estabelecidas, que contribuem para reproduzir a ordem das coisas,a fim de fazer aparecer novas significaes dos fenmenos estudados, mais esclarecedoras e mais perspicazes do que as precedentes. sobre este ponto que queramos comear por insistir. Esta capacidade de ultrapassagem no cai do cu.Depende,em certa medida,da formao terica do investigador e, de uma maneira mais ampla, daquilo a que poderamos chamar a sua cultura 1ntelectual, seja ela principalmente sociolgica, econmica, poltica, histrica ou outra. Um longo convvio com o pensamento sociolgico antigo e atual, por exemplo; contribui consideravelmente para alargar o campo das idias e ultrapassar as interpretaes j gastas. Predispe a colocar boas questes,a adivinhar o que no evidente e a produzir idias inconcebveis para um investigador que se contente com os magros conhecimentos tericos que adquiriu no passado. Muitos pensadores so investigadores medocres, mas em cincias sociais no existe um nico investigador que no seja tambm um pensador. Desiludam-se,pois,os que crem poderem aprender a fazer investigao social contentando-se com o estudo das tcnicas de investigao: tero tambm de explorar as teorias, de ler e reler as investigaes exemplares (ser proposta uma lista no seguimento deste livro) e de adquirir o hbito de refletir antes de se precipitarem sobre o terreno ou sobre os dados,ainda que seja com as tcnicas de anlise mais sofisticadas. Quando um investigador inicia um trabalho, pouco provvel que o assunto tratado nunca tenha sido abordado por outra pessoa, pelo menos em parte ou de forma indireta. Tem-se freqentemente a impresso de que no h nada sobre o assunto,mas esta opinio resulta, em regra, de uma m informao. Todo o trabalho de investigao se inscreve num continuum e pode ser situado dentro de, ou em relao a, correntes de pensamento que o precedem e influenciam. , portanto, normal que um investigador tome conhecimento dos trabalhos anteriores que se debruavam sobre objetos comparveis e que explicite o que aproxima ou distingue o seu trabalho destas correntes de pensamento. importante insistir desde o incio na exigncia de situar claramente o trabalho em relao a quadros conceituais reconhecidos. Esta exigncia tem um nome que exprime bem aquilo que deve exprimir: a validade externa. Falaremos novamente disto no mbito da etapa intitulada Problemtica. Ainda que a sua preocupao no seja fazer investigao cientfica em sentido estrito, mas sim apresentar um estudo honesto sobre uma questo

particular, continua a ser indispensvel tomar conhecimento de um mnimo de trabalhos de referncia sobre o mesmo tema ou, de modo mais geral, sobre problemticas que lhe esto ligadas. Seria ao mesmo tempo absurdo e presunoso acreditar que podemos pura e simplesmente passar sem esses contributos, como se estivssemos em condies de reinventar tudo por ns prprios. Na maior parte dos casos, porm, o estudante que inicia uma dissertao de fim de curso, o trabalhador que deseja realizar um trabalho de dimenso modesta ou o investigador a quem pedida uma anlise rpida no dispem do tempo necessrio para abordarem a leitura de dezenas de obras diferentes. Alm disso, como j vimos, a bulimia livresca uma forma muito m de iniciar uma investigao. Como proceder nestas situaes? Tratar-se-, concretizando, de selecionar muito cuidadosamente um pequeno nmero de leituras e de se organizar para delas retirar o mximo proveito, o que implica um mtodo de trabalho corretamente elaborado. , portanto, um mtodo de organizao, de realizao e de tratamento das leituras que comearemos por estudar. Este indicado para qualquer tipo de trabalho, seja qual for o seu nvel. J foi experimentado com sucesso em mltiplas ocasies por dezenas de estudantes que nele confiaram. Inscreve-se na nossa poltica geral do menor esforo, que visa obter os melhores resultados com o menor custo em meios de todo o tipo, a comear pelo nosso precioso tempo. l.l. A ESCOLHA E A ORGANIZAO DAS LEITURAS a) Os critrios de escolha A escolha das leituras deve ser realizada com muito cuidado. Qualquer que seja o tipo e a amplitude do trabalho, um investigador dispe sempre de um tempo de leitura limitado. H quem s possa consagrar-lhe algumas dezenas de horas, outros vrias centenas, mas, para uns como para outros, este tempo ser sempre de certa forma demasiado curto em relao s suas ambies. No h ento nada mais desesperante do que verificar, aps vrias semanas de leitura, que no se est muito mais avanado do que no incio. O objetivo , portanto, fazer o ponto da situao acerca dos conhecimentos que interessam para a pergunta de partida, explorando ao mximo cada minuto de leitura. Como proceder? Que critrios reter? S podemos aqui propor, bem entendido, princpios e critrios gerais, que cada um dever adaptar com flexibilidade e pertinncia. Primeiro principio: comear pela pergunta de partida. A melhor forma de no se perder na escolha das leituras , com efeito, ter uma boa pergunta de partida. Todo o trabalho deve ter um fio condutor e, at nova ordem, a pergunta de partida que desempenha esta funo. Ser, sem dvida, levado a modific-la no fim do trabalho exploratrio e tentar formul-la de uma maneira mais judiciosa, mas, por enquanto, dela que deve partir. Segundo principio: evitar sobrecarregar o programa, selecionando as leituras. No necessrio nem, alis, na maior parte das vezes, possvel ler tudo sobre um assunto, pois, em certa medida, as obras e os artigos de referncia repetem-se mutuamente e um leitor assduo depressa se d conta destas repeties. Assim, num primeiro momento, evitar-se- o mais possvel comear logo a ler calhamaos enormes e indigestos antes de se ter a certeza de no poder passar sem eles. Orientar-nos-emos mais para as obras que apresentam uma reflexo de sntese, ou para artigos de algumas dezenas de pginas. prefervel, com efeito, ler de modo

aprofundado e crtico alguns textos bem escolhidos a ler superficialmente milhares de pginas. Terceiro principio: procurar, na medida do possvel, documentos cujos autores no se limitem a apresentar dados, mas incluam tambm elementos de anlise e de intexpretao. So textos que levam a refletir e que no se apresentam simplesmente como inspidas descries pretensamente objetivas do feneno estudado. Abordaremos muito em breve a anlise de um texto de mile Durkheim, extrado de O Suicidio. Veremos que este texto inclui dados que, neste caso, at so dados estatsticos. No entanto, no so apresentados isoladamente. A anlise de Durkheim d-lhes sentido e permite ao leitor apreciar melhor o seu significado. Ainda que estudemos um problema que, a priori, exigir a utilizao de abundantes dados estatsticos, tal como as causas do aumento do desemprego ou a evoluo demogrfica de uma regio, , mesmo assim, prefervel procurar textos de anlise, em vez de listas de nmeros, que nunca querem dizer grande coisa por si mesmos. A maior parte dos textos que incitam reflexo contm dados suficientes, numricos ou no, para nos permitirem tomar conscincia da amplitude, da distribuio ou da evoluo do fenmeno a que se referem. Mas, alm disso, permitem ler inteligentemente estes dados e estimulam a reflexo crtica e a imaginao do investigador. No estado presente do trabalho, isto chega perfeitamente. Se for til uma grande quantidade de dados, haver sempre oportunidade de os recolher mais tarde, quando o investigador tiver delimitado pistas mais precisas. Quarto princpio: ter o cuidado de recolher textos que apresentem abordagens diversificadas do fenmeno estudado. No s no serve de nada ler dez vezes a mesma coisa, como, alm disso, a preocupao de abordar o objeto de estudo de um ponto de vista esclarecedor implica que possam confrontar-se perspectivas diferentes. Esta preocupao deve incluir, pelo menos nas investigaes de um certo nvel, a considerao de textos mais tericos que, no se debruando neeessariamente, de forma direta, sobre o fenmeno estudado, apresentem modelos de anlise susceptveis de inspirarem hipteses paiticularmente interessantes. (Voltaremos frente aos modelos de anlise e s hipteses.) Quinto principio: oferecer-se, a intervalos regulares, perodos de tempo consagrados reflexo pessoal e s trocas de pontos de vista com colegas ou com pessoas experientes. Um esprito atulhado nunca criativo. As sugestes anteriores dizem principalmente respeito s primeiras fases do trabalho de leitura. medida que for avanando, impor-se-o progressivamente por si mesmos critrios mais precisos e especficos, na condio, precisamente, de que a leitura seja entrecortada de perodos de reflexo e, se possvel, de debate e discusses. Uma forma de se organizar consiste em ler levas sucessivas de dois ou trs textos (obras ou artigos) de cada vez. Aps cada leva, pra-se de ler durante algum tempo para refletir, tomar notas e falar com pessoas conhecidas que se julga poderem ajudar-nos a progredir. s aps esta pausa nas leituras que se decidir o contedo exato da leva seguinte, estando as orientaes gerais que se tinham fixado no incio sempre sujeitas a correes. Decidir de uma s vez o contedo preciso de um programa de leitura importante geralmente um erro: a amplitude do trabalho depressa desencoraja; a rigidez do programa presta-se mal sua funo exploratria e os eventuais erros iniciais de orientao seriam mais

difceis de corrigir. Por outro lado, este dispositivo por levas sucessivas adequa-se tanto aos trabalhos modestos como s investigaes de grande envergadura: os primeiros poro fim ao trabalho de leitura preparatria aps duas ou trs levas; as segundas, aps uma dezena ou mais. Em suma, respeite os seguintes critrios de escolha: Ligaes com a pergunta de partida; Dimenso razovel do progcama de leitura; Elementos de anlise e de interpretao; Abordagens diversificadas. Leia por levas, sucessivas, entrecortadas por reflexo pessoal e s trocas de pontos de vista. b) Onde encontrar estes textos? Antes de se precipitar para as bibliotecas necessrio saber o que se procura. As bibliotecas de cincias sociais dignas deste nome possuem milhares de obras. intil esperar descobrir por acaso, ao sabor de um passeio por entre as estantes ou de uma olhadela pelos arquivos, o livro ideal que responde exatamente s nossas expectativas. Tambm aqui preciso um mtodo de trabalho, cuja primeira etapa consiste em precisar claramente o tipo de textos procurado. Neste domnio, como em outros, a precipitao pode custar muito caro. Por ter querido poupar algumas horas de reflexo, h muita gente que perde depois vrios dias, at vrias semanas de trabalho. No abordaremos aqui o trabalho de pesquisa bibliogrfica propriamente dito, visto que isso nos levaria demasiado longe e no fariamos mais do que repetir o que qualquer um pode ler em vrias obras especializadas neste domnio. Eis, no entanto, algumas idias que podem ajudar a encontrar facilmente os textos adequados sem gastar demasiado tempo: . Pea conselhos a especialistas que conheam bem o seu campo de pesquisa: investigadores, docentes, responsveis de organizaes etc. Antes de se lhes dirigir, prepare com preciso o seu pedido de informao, de forma que o compreendam imediatamente e possam recomendarlhe o que, segundo eles, mais lhe convm. Compare as sugestes de uns e de outros e faa, finalmente, a sua escolha em funo dos critrios que tiver definido; No negligencie os artigos de revistas, os dossiers de sntese e as entrevistas de especialistas publicadas na imprensa para um grande pblico instrudo, as publicaes de organismos especializados e muitos outros documentos que, no sendo relatrios cientficos em sentido estrito, no deixam por isso de conter elementos de reflexo e informao que podem ser preciosos para si; . As revistas especializadas no seu campo de investigao so particularmente interessantes, por duas razes. Primeiro, porque o seu contedo traz os conhecimentos mais recentes na matria ou um olhar crtico sobre os conhecimentos anteriormente adquiridos. Num e noutro caso, os artigos fazem freqentemente o balano da questo que tratam e, assim, citam publicaes a ter em considerao. A segunda razo que as revistas publicam comentrios bibliogrficos sobre as obras mais recentes, graas aos quais poder fazer uma escolha acertada de leituras; pausas consagradas

As bibliotecas cientfcas comportam repertrios especializados, como a Bibliographie internationale des sciences sociales (Londres e Nova Iorque, Routledge) e o Bulletin signaltique do Centro de Documentao do CNRS (Paris). Nestes repertrios encontra-se uma grande quantidade de publicaes cientficas (obras e/ou artigos), organizada segundo um ndice temtico e muitas vezes resumida em poucas linhas; . As obras comportam sempre uma bibliografia final que retoma os textos a que os autores se referem. Como nela s se encontram forosamente referncias anteriores prpria obra, essa fonte s ter interesse se a obra for recente. Se consultar estas diferentes fontes, cobrir rapidamente um campo de publicaes bastante vasto e poder consderar que abarcou o problema a partir do momento em que volte sistematicamente a referncias j conhecidas; No se assuste demasiado depressa com a espessura de alguns livros. Nem sempre indispensvel l-los integralmente. Alis, muitos so obras coletivas que retomam as contribuies de vrios autores diferentes sobre um mesmo tema. Outros so apenas meras miscelneas de textos relativamente diferentes que o autor reuniu para fazer uma obra qual se empenha em dar uma aparncia de unidade. Consulte os ndices e os sumrios, quando existam. Na sua ausncia, leia as primeiras e as ltimas linhas de cada captulo para ver de que tratam as obras. E, mais uma vez, se tiver dvidas, nada o impede de pedir conselhos; Tenha ainda em conta que as bibliotecas se modernizam e oferecem aos seus utilizadores tcnicas de pesquisa bibliogrfica cada vez mais eficazes: classificao por palavras-chave (que, no melhor dos casos, podem tomar-se duas a duas e, portanto, civzar-se), mas tambm catalogao sistemtica do contedo das principais revistas,listas informatizadas de bibliografias especializadas, catlogos em CD-Rom etc. Tambm neste caso,antes de procurar as obras, muitas vezes rendvel consagrar algumas horas a informar-se corretamente acerca do modo de utilizao de uma biblioteca e dos servios que oferece. Muitas pessoas que quiseram queimar esta etapa dedicaram horas a fio, sem encontrarem aquilo que procuravam, em bibliotecas peifeitamente equipadas para satisfazerem rapidamente os utilizadores informados. A regra sempre a mesma: antes de se lanar num trabalho, ganha-se muito em questionar-se o que dele se espera exatamente e qual a melhor forma de proceder. 1.2. COMO LER? O principal objetivo da leitura retirar dela idias para o nosso prprio trabalho. Isto implica que o leitor seja capaz de fazer surgir essas idias, de as compreender em profundidade e de as articular entre si de forma coerente. Com a experincia, isto no levanta geralmente muitos problemas. Mas este exerccio pode colocar grandes dificuldades queles cuja formao tcnica seja fraca e que no estejam habituados ao vocabulrio (h quem diga gria) das cincias sociais. a eles que so destinadas as pginas que se seguem. Ler um texto uma coisa, compreend-lo e reter o essencial outra. Saber encurtar um texto no um dom do cu, mas uma capacidade que s se adquire com o exerccio. Para ser totalmente rendvel, esta aprendizagem precisa ser sustentada por um mtodo de leitura. Infelizmente, poucas vezes este o caso. Os nefitos so geralmente abandonados a si mesmos e

lem muitas vezes de qualquer maneira, isto , com prejuzo. O resultado invariavelmente o desnimo, acompanhado de um sentimento de incapacidade. Com a finalidade de progredir na aprendizagem da leitura e dela retirar o mximo proveito, propomos que seja adotado, de incio, um mtodo de leitura muito rigoroso e preciso, mas que cada um poder depois tornar mais flexvel durante a sua formao e em funo das suas exigncias. Este mtodo composto por duas etapas indissociveis: o emprego de uma grade de leitura (para ler em profundidade e com ordem) e a redao de um resumo (para destacar as idias principais que merecem ser retidas). a) A grade de leitura Para tomar conscincia do seu modo de utilizao, propomos-lhe que a aplique desde j a um texto de Durkheim sobre o suicdio e compare o seu trabalho com o que ns prprios realizamos. As indicaes para o uso desta grade de leitura so apresentadas no trabalho de aplicao que se segue. TRABALHO DE APLICAO NO. 3 TEXTO DE DURKHEIM (EXTRATOS*) Se dermos uma vista de olhos pelo mapa dos suicdios europeus, notaremos imediatamente que nos pases puramente catlicos, como a Espanha, Portugal, a Itlia, o suicdio se encontra muito pouco desenvolvido, ao passo que atinge o seu mximo nos pases protestantes, como a Prssia, a Saxnia, a Dinamarca [...) No entanto, esta primeira comparao ainda demasiado sumria. Apesar de incontestveis semelhanas, os meios sociais em que vivem os habitantes destes diferentes pases no so exatamente os mesmos. A civilizao da Espanha e a de Portugal so muito inferiores da Alemanha; ento talvez esta inferioridade seja a razo daquela que acabamos de verificar no desenvolvimento do suicdio. Se quisermos evitar esta causa de erro e determinar com maior preciso a influncia do catolicismo e do protestantismo na tendncia para o suicdio, preciso comparar as duas religies no seio de uma mesma sociedade. De todos os grandes estados da Alemanha, a Baviera que soma, de longe, o menor nmero de suicdios. No h anualmente, desde 1874, mais de 90 por cada milho de habitantes, enquanto a Prssia tem 133 (1871-1875), o Ducado de Bade 156, Vurtemberga 162, a Saxnia 300. Ora, tambm a que os catlicos so mais numerosos: so 713,2 por cada 1000 habitantes. Se, por outro lado, compararmos as diferentes provncias deste reino observamos que os suicdios esto na razo direta do nmero de protestantes e na razo inversa do nmero de catlicos. No so apenas as relaes entre as mdias que confirmam a lei; todos os nmeros da primeira coluna so superiores aos da segunda, e os da segunda aos da terceira, sem que haja qualquer irregularidade. O mesmo acontece na Prssia [...] Provncias com Suicdio Provncias com Suicldio Provncias com Suicdio minora catlica por milho maioria catlica por milho mais de 90% por milho (menos de 50%) de habitantes (50% a 90%) de habitantes de catlicos de habitantes

Palatinado do Reno....... 187 Baixa Francnia.... . ....157 Alto Palatinado............. 64 Francnia central........... 207 Suvia..... ......118 Alta Baviera.................. t 14 Alta Francnia............... 204 Baixa Baviera............... 49 Mdia.... .. .. .. 192 Mdia..... . ....135 Mdia.... ..... 75 Provincias brbaras (1867-1875) * E. Durkheim, Le suicide, PUF, coll. ?,Quadrige?,, 1983 (1930), pp. 149159 [trad. portuguesa: O Suicdio, Lisboa, Presena, col. Biblioteca de Textos Universitrio5", 1992, pp. 135-144 (1 ' ed. francesa, 1897)]. (N. clo R. C.) Contra semelhante unanimidade de fatos concordantes intil invocar, como o faz Mayr,o caso nico da Noruega e da Sucia, que, apesar de protestantes, no ultrapassam um nmero mdio de suicdios. Em primeiro lugar, tal como observamos no incio deste captulo, estas comparaes internacionais no so demonstrativas, a no ser que tenham por objetivo um nmero bastante elevado de pases, e mesmo neste caso no so concludentes. H diferenas suficientemente grandes entre as populaes da pennsula escandinava e as da Europa central para podermos compreender que o protestantismo no produz exatamente os mesmos efeitos numas e noutras. Mas, alm disso, se, tomada isoladamente, a taxa de suicdios no muito considervel nestes dois pases, torna-se relativamente elevada se tivermos em conta o lugar modesto que ocupam entre os povos civilizados da Europa. No h razo para crermos que tenham alcanado um nvel intelectual superior ao da Itlia,longe disso,e,no entanto,as pessoas matam-se l duas a trs vezes mais (de 90 a 100 suicdios por milho de habitantes, em vez de 40). No ser o protestantismo a causa deste agravamento relativo? Assim, no s o fato no infirma a lei que acaba de ser estabelecida sobre um to grande nmero de observaes, como tende antes a confirm-la. No que diz respeito aos judeus,a sua tendncia para o suicdio sempre menor do que a dos protestantes: de uma maneira muito geral, tambm inferior, ainda que em menor proporo, dos catlicos. Contudo, acontece que esta ltima relao se inverte; sobretudo em tempos mais recentes que se encontram estes casos de inverso [...) Se pensarmos que, em todo o lado, os judeus so um nmero nfimo e que na maior parte das sociedades onde foram feitas as anteriores observaes os catlicos esto em minoria, seremos tentados a ver neste fato a causa que explica a relativa raridade das mortes voluntrias nestes dois cultos. Com efeito, perfeitamente concebvel que as confisses menos numerosas, tendo de lutar contra a hostilidade das populaes envolventes, sejam obrigadas, para se manterem, a exercer sobre si mesmas um controle severo e a sujeitar-se a uma disciplina particularmente rigorosa. Para justificarem a tolerncia, sempre precria, que lhes concedida so obrigadas a uma maior moralidade. Para alm destas consideraes, alguns fatos parecem realmente implicar que este fator especfico tem alguma influncia [...] Mas, de qualquer forma, esta explicao no bastaria para dar conta da situao respectiva dos protestantes e dos catlicos. Porque, ainda que na Austria e na Baviera, onde o catolicismo maioritrio, a sua influncia preservadora seja menor, ela ainda bastante considervel. No , portanto, apenas sua situao minoritria que ele a deve. De uma maneira mais geral, seja qual for a proporo destes dois cultos no conjunto da populao, verificou-se em todos os lugares onde foi possvel

compar-los do ponto de vista do suicdio que os protestantes se matam muito mais do que os catlicos. Existem mesmo pases, como o Alto Palatinado e a Alta Baviera, onde quase toda a populao catlica (92% e 96%) e, no entanto, h 300 e 423 suicdios protestantes para cada 100 catlicos. A relao eleva-se mesmo a 528% na Baixa Baviera, onde a religio reformada no chega a contar um fiel em 100 habitantes. Assim, mesmo que a prudncia obrigatria das minorias possa ter algo a ver com a diferena to considervel que apresentam estas duas religies, a maior parte desta certamente devida a outras causas. na natureza destes dois sistemas religiosos que as encontraremos. No entanto, ambos probem o suicdio com a mesma clareza; no s o castigam com penas morais extremamente severas, como ensinam igualmente que almtmulo comea uma vida nova onde os homens sero castigados pelas suas ms aes, e o protestantismo, tal como o catolicismo, inclui nestas o suicdio. Finalmente, num e noutro culto estas proibies tm um carter divino: no so apresentadas como a concluso lgica de um raciocnio bem conduzido, mas a sua autoridade a do prprio Deus. Portanto, se o protestantismo favorece o desenvolvimento do suicdio, no por trat-lo de forma diferente da do catolicismo. Mas ento, se, nesta questo particular, as duas religies tm os mesmos preceitos, a sua ao desigual sobre o suicdio dever ter como causa alguma das caractersticas mais gerais que as distinguem. Ora a nica diferena essencial entre o catolicismo e o protestantismo reside no fato de o segundo admitir o livre exame numa proporo muito mais elevada do que o primeiro. Sem dvida, o catolicismo, pelo simples fato de ser uma religio idealista, d ao pensamento e reflexo um lugar muito maior do que o politesmo greco-latino ou o monotesmo judaico. J no se contenta com atos maquinais, sendo antes sobre as conscincias que aspira a reinar. , portanto, a elas que se dirige; e, mesmo quando pede razo uma submisso cega, f-lo na linguagem da razo. Nem por isso deixa de ser verdade que o catlico recebe a sua f j feita, sem exame. Nem mesmo pode submet-la a um controle histrico, dado que os textos originais sobre que ela se apoia lhe so interditos. H todo um sistema hierrquico de autoridades, organizado com maravilhosa percia, para tornar a tradio invarivel. O pensamento catlico tem horror a tudo o que seja variao. O protestante mais autor da sua crena. A Bblia -lhe posta nas mos e nenhuma interpretao dela lhe imposta. A prpria estrutura do culto reformado revela este estado de individualismo religioso. Em lado nenhum, exceto na Inglaterra, o clero protestante est hierarquizado; tal como o fiel, o padre depende apenas de si prprio e da sua conscincia. um guia mais instrudo do que o comum dos crentes, mas sem autoridade especial para fixar o dogma. Mas o que melhor atesta que esta liberdade de exame, proclamada pelos fundadores da Reforma, no ficou no estado de afirmao platnica essa crescente multiplicidade de seitas de todo o tipo, que contrasta to energicamente com a unidade indivisvel da Igreja catlica [...] Assim, se verdade que o livre exame, uma vez proclamado, multiplica os cismas, preciso acrescentar que os supe e que deles deriva, dado que, se reclamado e institudo como um princpio, para permitir que cismas 1atentes ou semideclarados se desenvolvam mais livremente. Por conseguinte, se o protestantismo atribui um lugar mais importante ao pensamento individual do que o catolicismo, porque contm menos crenas e prticas comuns. Ora uma sociedade religiosa no existe sem um credo coletivo e tanto mais una e tanto mais forte quanto mais amplo for esse credo. Isto porque ela no une os homens pela troca e pela reciprocidade dos servios,lao temporal que contm e supe mesmo diferenas, mas que ela incapaz de criar. S os socializa,ligando-os todos a um mesmo corpo

de doutrina, e socializa-os tanto melhor quanto mais vasto e mais solidamente constitudo for este corpo de doutrinas. Quantas mais maneiras houver de agir e de pensar marcadas por um carcter religioso e, por conseguinte, subtradas ao livre exame, mais a idia de Deus estar presente em todos os pormenores da existncia e far convergir para um s e mesmo objetivo as vontades individuais. Inversamente, quanto mais um grupo confessional se abandonar ao julgamento dos particulares, mais ausente estar das suas vidas, menores sero a sua coeso e a sua vitalidade. Chegamos, portanto, concluso de que a superioridade do protestantismo do ponto de vista do suicdio resulta do fato de ele ser uma igreja menos fortemente integrada do que a Igreja catlica. 6) O resumo Fazer o resumo de um texto consiste em destacar as suas principais idias e articulaes, de modo a fazer surgir a unidade do pensamento do autor. o objetivo principal das leituras exploratrias, sendo, portanto, o resultado normal do trabalho de leitura. Coeso social Hiptese Taxa de suicdio como fato social A Coeso religiosa Coeso familiar Importncia dada ao livre Carcter legal ou exame no de numerosas prescries religiosas Importncia da Taxa de suicdio numrica como dado do clero estatstico Prtica em comum de numerosos ritos InfIuncia da religio na vida quotidiana Massonat e A. Trognon, Les techniques d'enqute en sciences sociales, inclui, alm disso, uma sntese das principais questes levantadas pela prtica da entrevista de investigao, sob o ttulo Interviewer", por A. Blanchet. Ouve-se por vezes dizer que h quem tenha esprito de sntese, como se se tratasse de uma qualidade inata. , evidentemente, absurdo. A capacidade para redigir bons resumos , tambm ela, uma questo de formao e de trabalho e, uma vez mais, esta aprendizagem pode ser muito facilitada e acelerada por um bom enquadramento e por conselhos adequados. A qualidade de um resumo est directamente ligada qualidade da leitura que o precedeu. E, o que mais importante, o mtodo de realizao de um resumo deveria constituir a sequncia lgica do mtodo de leitura. Ser desta forma que iremos aqui proceder. Voltemos ento nossa grade de leitura e voltemos a ler o contedo da coluna da esquerda, que se refere s ideias do texto. Postos em sequncia, estes nove pequenos textos formam um resumo fiel do texto de Durkheim. Mas, neste resumo, as idias centrais do texto no se distingu