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PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS
TESE DE DOUTORADO
MAR DE POETA
A metfora do oceano nas lricas de Ceclia Meireles e Sophia Andresen
Karin Lilian Hagemann Backes
Prof. Dr. Ana Maria Lisboa de Mello Orientadora
Porto Alegre, dezembro de 2008
2
KARIN LILIAN HAGEMANN BACKES
MAR DE POETA:
a metfora do oceano nas lricas de Ceclia Meireles e Sophia Andresen
Tese apresentada como requisito para obteno do grau de Doutor pelo Programa de Ps-graduao da Faculdade de Letras da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
Orientadora: Prof. Dr. Ana Maria Lisboa de Mello
Porto Alegre, dezembro de 2008
3
4
Para Andr, sempre. Para Jlia e Andr, maior orgulho.
5
Agradeo ao meu av, Luiz Ernesto Hagemann, in memoriam, por estantes com Selees de cinco dcadas.
Agradeo aos meus pais, pelo Mundo da criana, O minotauro, Tesouro da juventude, Clssicos Jackson e muito mais.
A Ana Maria Lisboa de Mello, minha orientadora, devo interlocues privilegiadas com essa
profunda e apaixonada conhecedora de poesia. No poderia faltar aqui a simptica e preclara figura do Irmo Elvo Clemente, uma lembrana saudosa.
E agradeo, sobretudo, s duas Marias, Maria Luza Remdios e Maria da Glria Bordini, minha aeterna poeticae magistra,
cuja mo segura me guiou nos meus anos de PUC pelas veredas de todos os poetas, a ela sou muito grata.
6
O mundo grande, mas em ns ele profundo como o mar.
Rilke
Ao mar que me nutriu (...) meu corao est ligado mais solidamente que a tudo no mundo.
Swinburne
7
TEORIA DA LITERATURA
RESUMO
Nosso objetivo analisar o oceano como metfora nas lricas de Ceclia Meireles
(1901-1964) e Sophia Breyner Andresen (1919-2004), a partir do texto do filsofo
Paul Ricoeur, A metfora viva. A proposta de Ricoeur demonstrar que a
competncia metafrica est incompleta sem o apoio psicolgico da imaginao e
do sentimento, em que a imagem tomada como o ltimo momento de uma teoria
semntica. Sua teoria da competncia metafrica ser utilizada para comprovar
como cada poeta emprega essa figura de linguagem para atingir determinados
propsitos em suas lricas, com base em influncias comuns. Ceclia est orientada
na direo do mstico e busca a transcendncia, enquanto Sophia, por conta da
cultura grega de raiz clssica, mtica e imanente. As metforas do mar, nas duas
obras, se prestam como um meio potico privilegiado desses posicionamentos.
8
THEORY OF LITERATURE
ABSTRACT
Our object is to analyze the ocean as a metaphor in Ceclia Meireles (1901-1964)
and Sophia Breyner Andresens (1919-2004) lyrics, starting with philosopher Paul
Ricoeurs text, The Rule of Metaphor: The Creation of Meaning in Language.
Ricoeurs proposal is to demonstrate that the metaphoric competence is incomplete
without the psychological backing of imagination and feeling, where the image is
taken as the last moment in a semantic theory. His metaphoric competence theory
will be utilized to prove that every poet employs that languages figure to arrive at
their purposes in the lyrics, bases in common influences. Cecilia is oriented in the
direction of the mystical and searches for transcendence, whereas Sophia, due to the
Greek culture of classical origin, is mythical and immanent. In both works, the seas
metaphors are the poetic privileged way to reach these points.
9
SUMRIO
1 Introduo..................................................................................................... 10
2 Poesia, metfora e imagem
2.1 Aristteles e o percurso da metfora............................................................. 15
2.2 Metfora e semntica.................................................................................... 26
2.3 Potica da imagem........................................................................................ 38
2.4 Assimilao predicativa, dimenso pictrica e referncia dividida................ 51
2.4.1 A assimilao predicativa e suas operaes semntico-perceptuais............ 51
2.4.2 A metfora enquanto quadro imagtico......................................................... 53
2.4.3 A referncia dividida e a suspenso de juzo................................................ 54
2.5 O sentimento potico..................................................................................... 56
3 Entre mar negro e espumas breves: navegando com Ceclia
3.1 Um retrato natural de Ceclia Meireles.......................................................... 59
3.2 Entre areias e nuvens, a msica de seda...................................................... 69
3.2.1 A epopia de Viagem..................................................................................... 73
3.2.2 O sopro de uma Vaga msica....................................................................... 82
3.2.3 Em direo ao Mar absoluto.......................................................................... 90
3.2.4 luz de um retrato natural............................................................................. 99
3.2.5 A fina pedra do silncio.................................................................................. 106
4 De areia, ilha e corais: o mar de Sophia
4.1 O nome das coisas segundo Sophia Andresen............................................. 117
4.2 Uma geografia marinha: das musas s nereidas.......................................... 125
4.2.1 Meus gestos so gaivotas que se perdem: Poesia, Dia do Mar, Coral......... 125
4.2.2 O florir das ondas ordenadas: No tempo dividido, Mar Novo, Livro Sexto.... 141
4.2.3 Tudo divino como convm ao real: Geografia, Dual, O Nome das Coisas. 151
4.3.4 Mediterrnica noite azul e preta: Navegaes, Ilhas, Musa, O Bzio de...... Cs
160
5 Concluso: Intersees, metforas e imaginrio martimo em Ceclia e Sophia
5.1 Uma potica do oceano: de viagens e mares absolutos a dias de mar........ 173
5.2 Numa lrica da gua, a pastora e a sibila....................................................... 179
6 Referncias................................................................................................... 188
7 Anexos
Ceclia Meireles............................................................................................. 196
Sophia Andresen........................................................................................... 216
1 INTRODUO
O Brasil est separado de Portugal por um oceano, o Atlntico, onde h
quinhentos anos, por longo tempo navegaram as caravelas que trariam, entre tantas
coisas, a lngua portuguesa utilizada por Ceclia Meireles e Sophia Andresen para
compor seus versos, constituindo o primeiros trao de afinidade entre ambas.
A excelncia da lrica das duas poetas 1 o primeiro entre os motivos que
justificam esta tese. O segundo, a construo de uma poesia num estilo que alguns
denominariam de clssico, radicada de uma ancestralidade comum, podemos
mesmo dizer genealogia potica, trazendo consigo alguns dos nomes mais notveis
entre aqueles que escreveram versos no idioma de Cames, incluindo os do prprio
e o de Fernando Pessoa, e tambm de autores estrangeiros, como o caso de
Rilke.
Alm disso, h ainda a partilha da lngua portuguesa num gnero, o lrico,
no qual a traduo arrasta consigo, por melhor que seja, o germe da variao e um
vu difano que transtorna a vista perfeita da palavra, do som e da mtrica, quando
um poema transposto para outro idioma. A correspondncia entre as duas poticas
com certeza teria a perder numa anlise caso houvesse diferena de lxico, e at
mesmo a identificao de um pequeno grupo de poemas na obra de cada uma,
ligados de modo particular, se tornaria uma tarefa mais difcil em idiomas distintos2.
Porm, sem esquecer as outras, uma razo relevante para justificar essa
aproximao a afinidade estreita das duas lricas com o mar, de tal maneira que se
torna difcil pensar nas obras de Ceclia, que abre Mar absoluto declarando Foi
desde sempre o mar, e de Sophia tambm, sem a presena do oceano. Para tal
1 Doravante, vamos nos referir as duas autoras como poetas, e no poetisas como quer uma parte da
crtica. Nosso entender de que os poetas, como os anjos, prescindem de gnero. Alm disso, diz a prpria Ceclia Meireles (...) no sou alegre nem sou triste, sou poeta, em termo genrico, no para negar sua condio feminina, mas sim para, dentro de seu projeto universalizante, integrar-se ao mundo afastando as diferenas (nota da A.). 2 Sophia Andresen dizia () quando algum me traduz, as diverses e derivaes dos tradutores,
por mais brilhantes que sejam, arrepiam-me sempre. In: ANDRESEN, Sophia. SENA, Jorge de. Correspondncia. Lisboa: Paz e Terra, 2006. p. 127.
11
afirmao ser comprovada, nem preciso abrir um livro de poesia, basta uma visita
ao oceanrio de Lisboa, em cuja entrada h um verso de Livro Sexto que diz,
Quando morrer voltarei para buscar os instantes que no vivi junto do mar, e onde
esses poemas so onipresentes.
A escolha desse elemento comum, o mar, no significa que Ceclia e
Sophia se utilizem dele do mesmo modo. Na verdade, vamos propor que elas
utilizam essa figura de linguagem que a metfora para alcanar propsitos
distintos, a partir desse locus comum.
A enorme carga simblica do elemento aqutico reserva para ele oito
pginas do Dicionrio de Smbolos 3. Numa tradio que remete aos antigos textos
dos Vedas na sia, e continua na tradio judaico-crist, ele significa a origem da
criao: (...) e o esprito de Deus era levado por cima das guas (Gnesis, 1:2), As
guas que esto debaixo do cu, ajuntem-se num mesmo lugar (Gnesis, 1:9),
trajetria seguida mais tarde pelos versos de Hesodo na Teogonia, E pariu a
infecunda plancie impetuosa de ondas/ o Mar, sem o desejoso amor./ Depois pariu
do coito com Cu: Oceano de fundos remoinhos 4.
por conta dessa poderosa carga simblica que poemas lhe foram
dedicados desde as civilizaes mais remotas. Para Gaston Bachelard, Mais do que
nenhum outro [elemento], a gua uma realidade potica completa 5. Borges nos
d o exemplo de um kenning em que o mar chamado de caminho da baleia6, e
pergunta se acaso o saxo que h um longo tempo cunhou essa metfora
engenhosa, tinha idia de como o tamanho da baleia servia para dar uma idia da
imensido do mar.
Em todas as latitudes, palco de grandes epopias, serviu a lnguas
vivas e mortas, a do vate grego que cantou as viagens de Odisseu e a do luminar
portugus que narrou as travessias do Gama. Pompeu, general romano (106-48
a.C.), inspirava Pessoa quando dizia que Navegar preciso, viver no preciso 7.
Atravs dos sculos, a violncia das guas e os mistrios que a cercavam foram
sempre um material irresistvel para os poetas. Gaston Bachelard, em a gua e os
3 CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionrio de smbolos. 14. ed. Rio de Janeiro: Jos
Olympio, 1999. 4 HESODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. So Paulo: Iluminuras, 2006. p. 109.
5 BACHELARD, Gaston. A gua e os sonhos. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 17.
6 BORGES, Jorge Luis. Esse ofcio do verso. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 45.
7 Navigare necesse; vivere non est necesse, cf. Plutarco, Vidas de Sertorio y Pompeyo. Madrid:
Akal, 2004.
12
sonhos, diz que O apelo da gua exige de certa forma uma doao total, uma
doao ntima, e que ali a vitria mais rara, mais perigosa, mais meritria 8.
Nesse imaginrio martimo, terreno to rico para a verve potica, a
metfora figura de linguagem privilegiada. Em A metfora viva (1975), o filsofo
francs Paul Ricoeur faz um estudo do tropo que parte de Aristteles e de seus
textos fundadores na Retrica e na Potica, recuperando seu caminho durante mais
de dois mil anos. So revistas e analisadas obras de filsofos, lingistas e tericos,
posicionamentos contra e a favor da figura e tambm as conseqncias dessas
idias para a poesia.
Por trs da reconstituio da extensa trajetria percorrida pela metfora,
transparece como dividendo, no intencional, uma histria da teoria literria e dos
valores que ela privilegiou em cada poca. Ao longo de tal estudo, Ricoeur constri
sua teoria da metfora, unindo peas soltas e formulando hipteses atravs de uma
criteriosa escolha entre todo o vasto material do qual disps, e acaba por organizar
uma estrutura que coloca em ordem lgica os processos sofridos pelo tropo nesse
perodo. O resultado a sua formulao de uma teoria semntica da metfora e uma
teoria da imaginao e do sentimento tomada em bases psicolgicas9, aplicadas
linguagem potica.
O trabalho de Paul Ricoeur vai nos servir como base terica para a
anlise das formaes metafricas nas lricas das duas poetas, a brasileira Ceclia
B. de Carvalho Meireles, e a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen.
Nosso marco terico inicial ser uma releitura de alguns dos tericos
eleitos pelo filsofo para construir suas proposies, partindo de Aristteles e
seguindo com uma abordagem das questes do imaginrio. Todos os textos, entre
aqueles escolhidos pelo autor francs para construir seu estudo da metfora,
comparecem nas referncias e so consultados aqui a partir das obras originais, em
lngua portuguesa, ou em tradues prprias a partir desses originais, caso de
Richards e Max Black, que esto em ingls e espanhol, ou do cannico Les figures
du discours, de Pierre Fontanier, aqui com a edio de 1977 do texto publicado em
1821; o mesmo se d com autores externos Metfora viva, como o britnico Cecil
Day Lewis e seus estudos da imagem em The poetic image. Aps o marco terico,
8 BACHELARD, Gaston. Op. cit., p. 169.
9 RICOEUR, Paul. A metfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p.
319.
13
apresentamos a proposta do filsofo francs para o estudo da metfora potica, que
ser utilizada para focalizar nas duas lricas a presena das metforas do mar.
Os termos mar, oceano, guas sero referidos aqui indistintamente,
tanto em Ceclia como em Sophia. A eleio dos poemas nas obras das duas
autoras obedece a um critrio voltado para aqueles em que os temas marinhos so,
preferencialmente, centrais, ou ao menos privilegiados, em detrimento de outros em
que constituem matria aleatria, no deixando despercebidos tambm os aspectos
estticos.
De Ceclia, vo constituir o corpus apenas as obras mais significativas
relacionadas ao tema escolhido, dentre os volumes includos pela autora na nica
edio de sua obra potica supervisionada por ela prpria, a que foi publicada pela
Aguilar em 1958. So eles: Viagem (1939), Vaga msica (1942), Mar absoluto e
outros poemas (1945), Retrato natural (1949), Doze Noturnos de Holanda (1952) e
Metal rosicler (1960), alm da sua derradeira herana potica, Solombra (1963).
De Sophia, contamos com a ltima edio da Editorial Caminho, com
texto fixado por Luis Manuel Gaspar e superviso de Maria Andresen de Souza
Tavares, em que a obra potica est dividida nas edies autnomas originais,
depois de muitas translaes onde os poemas circularam por diversos ttulos. Tais
volumes englobam Poesia (1944), Dia do Mar (1947), Coral (1950), No tempo
dividido (1954), Mar novo (1958), Livro Sexto (1962), Geografia (1967), Dual (1972),
O nome das coisas (1977), Navegaes (1983), Ilhas (1989), Musa (1994) e O bzio
de Cs e outros poemas (1997). Em novembro de 2000, Maria Andresen de Souza
Tavares, a pedido da me, organizou uma antologia, Mar, onde esse topos
privilegiado. No entanto, ao invs de partir dessa seleo, optamos por fazer uma
escolha pessoal dos poemas a partir de seu contexto original.
Todos os poemas analisados constam dos anexos ao final do texto,
separados por autora, em ordem cronolgica.
Em Ceclia Meireles, as siglas utilizadas para as obras sero VI
(Viagem), VM (Vaga msica), MA (Mar absoluto e outros poemas), RN (Retrato
natural), DN (Doze Noturnos de Holanda), MR (Metal rosicler) e SO (Solombra),
sempre referenciadas pela Poesia completa, supervisionada por Antnio Carlos
Secchin, que a Editora Nova Fronteira imprimiu no centenrio da autora, em 2001.
Nos volumes de Sophia Andresen, so elas PO (Poesia), DM (Dia do
Mar), CO (Coral), TD (No tempo dividido), MN (Mar novo), LS (Livro Sexto), GE
14
(Geografia), DU (Dual) NC (O nome das coisas), NA (Navegaes), IL (Ilhas) e BC
(O bzio de Cs e outros poemas), de acordo com a edio da Editorial Caminho.
Nosso propsito aqui caracterizar e comparar a metfora marinha nas
duas poetas, a partir dos pressupostos da anlise que aliam a semntica da
metfora a uma potica da imaginao, para verificar se coincidem ou divergem
quanto aos sentidos que lhe atribuem.
15
2 POESIA, METFORA E IMAGEM
2.1 ARISTTELES E O PERCURSO DA METFORA
Sobre a transmisso da obra de Aristteles, Poucas coisas mais belas e
patticas registrar a histria, diz Jorge Luis Borges, alm [da] consagrao de um
mdico rabe aos pensamentos de um homem de quem o separavam catorze
sculos; s dificuldades intrnsecas, devemos acrescentar que Averris, ignorando o
grego e o siraco, trabalhava sobre a traduo de uma traduo 10.
Como habitual no autor argentino, as informaes de seus textos
misturam realidade e fico, sendo merecidamente tomadas por seus leitores com
algum receio, no entanto, A busca de Averris, conto de O aleph, relato fidedigno
do modo pelo qual o corpus aristotelicum chega at ns 11.
Num certo perodo da Idade Mdia, Aristteles se torna conhecido como
O Filsofo, numa referncia larga reputao desfrutada nas universidades
medievais. Estabelecida em bases slidas, mas divergente dos estatutos teolgicos
da poca, a conciliao entre f e razo, desenvolvida por meio da doutrina
aristotlica pela figura central da universidade de Paris, Santo Toms de Aquino,
custou ao filsofo alguma vigilncia pelo temor da heresia 12, mas depois de quase
dois mil e quinhentos anos, continua a ser referncia inescapvel nos campos da
Retrica e da Potica. No primeiro captulo de sua Retrica, Aristteles a define
como a contrapartida da Dialtica, pois ambas se referem a assuntos de interesse
da compreenso humana e no pertencem a uma cincia definida 13.
Precursor no estudo da metfora, primeiramente na Potica e depois
tambm na Retrica, onde retoma o assunto com mais vagar, Aristteles percebe na
10
BORGES, Jorge Luis. A busca de Averris. In: ___. O aleph. So Paulo: Globo, 1996. p. 72. 11
ECO, Umberto. Quase a mesma coisa. Rio de Janeiro: Record, 2007. p. 195. 12
O aristotelismo adquiriu legitimidade no Ocidente atravs de Santo Toms. Antes disso, sua leitura em aula fora proibida pelo Snodo de Sens (1210), e o Conclio de Paris impedira o ensino de Fsica. In: Histria do pensamento. Escolstica: o nome da rosa. So Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 172. 13
ARISTTELES. Retrica. Op. cit., p. 19.
16
complexidade dessa figura de linguagem uma habilidade impossvel de ser
transmitida, no o tipo de coisa que pode ser ensinado de um homem a outro 14.
Do juzo feito h to longo tempo pelo mestre do Liceu aos dias de hoje o
debate permanece, pois as dificuldades impostas pela metfora continuam a ser
objeto de estudo, e tambm de controvrsia, dos retricos aos lingistas, dos
filsofos aos poetas. Nos idos de 1909, o poeta argentino Leopoldo Lugones, no
prefcio de seu livro Lunario sentimental 15, escreve que cada palavra uma
metfora morta. Sculo antes, Quintiliano observava como esse um assunto que
tem dado origem a discusses interminveis entre os docentes de literatura, que
discutem no menos violentamente com os filsofos que entre eles mesmos, sobre o
problema do gnero e das espcies nos quais os tropos podem ser divididos, seu
nmero e sua correta classificao 16. Na quase totalidade dessas obras, h a
referncia inescapvel a Aristteles e sua contribuio ao assunto, da qual radica o
posicionamento mantido durante sculos pela Retrica de perceber na metfora uma
estreita afinidade com a semelhana.
No captulo XXI, a Potica nos diz que A metfora a transferncia de
uma palavra que pertence a outra coisa, ou do gnero para a espcie, ou da espcie
para o gnero, ou de uma espcie para outra ou por analogia 17, definio clssica
sempre retomada quando se fala do tema. No captulo II da Retrica, ao comentar a
metfora, Aristteles estabelece regras para sua utilizao na poesia e na prosa,
mas na contramo de seu mestre Plato, que a condena, defende o seu valor, pois o
tropo d clareza ao estilo, charme e distino como nenhuma outra [espcie de
palavra] pode dar 18. Acrescenta tambm que tal figura, como outros ornatos, eleva
a linguagem acima do vulgar e do uso comum, e revela o engenho natural do
poeta 19.
14
ARISTTELES. Retrica. So Paulo: Rideel, 2007. Op. cit., p. 151. 15
De acordo com Borges, Lugones estava convencido de que os poetas usavam sempre as mesmas metforas, e com a lua como pretexto, inventou vrias centenas delas. In: BORGES, Jorge Luis. A metfora. Esse ofcio do verso. Op. cit., p. 30. 16
PREMINGER, Alex; BROGAN, T. V. F. The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. New York: MFJ Books, 1993. p. 760. (Trad. da A.) 17
ARISTTELES. Potica. Prefcio de Maria Helena da Rocha Pereira. Traduo e notas de Ana Maria Valente. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007. p. 83. As notas fazem um reparo ao sentido mais amplo que o atual, conforme Haliwell, 1999:105, abrangendo as figuras hoje chamadas de sindoque e metonmia. 18
ARISTTELES. Retrica. Op. cit., p. 151. 19
ARISTTELES. Potica. Op. cit., p. 222-223.
17
Em sua obra A metfora viva, Paul Ricoeur observa que, num simples
exame do ndice da Retrica de Aristteles, possvel constatar que a teoria das
figuras chega at ns atravs de uma disciplina que j feneceu, mas tambm que foi
amputada em dois dos trs campos que a compunham, a teoria da argumentao e
a teoria da elocuo, restando apenas a teoria da composio do discurso,
perdendo assim o nexo que a ligava filosofia atravs da dialtica. O resultado do
afastamento dessa disciplina seria a nfase excessiva dada classificao das
figuras, tornada depois um fim em si mesma, que a transforma numa disciplina
errtica e ftil 20, mas que no auge da Retrica fora temida como perigoso objeto de
persuaso.
Alguns dos ataques mais conhecidos feitos por Plato sobre os efeitos
malficos da mmese e da persuaso constam do Sofista, do Grgias, e do livro X da
Repblica, onde ele discorre sobre a m influncia da poesia que, para o filsofo da
Academia, decorre de que
(...) o poeta aplica a cada arte cores adequadas, com suas palavras e frases, de tal modo que, sem ser competente seno para imitar, junto daqueles que, como ele, s vem as coisas segundo as palavras, passa por falar muito bem, quando fala, observando o ritmo, a mtrica e a harmonia, quer da sapataria, quer da arte militar, quer de outra coisa qualquer, tal o encanto que esses ornamentos tm naturalmente e em si mesmos! Despojadas de seu colorido artstico e citadas pelo sentido que encerram, sabes bem, creio eu, que figura fazem as obras dos poetas (...). 21
Neste excerto dos dilogos entre Scrates e Glauco na Repblica,
perceptvel o peso do conceito de imitao como cpia depreciada da realidade,
porm tambm fica claro que na arte de fazer versos observada a necessidade de
algum engenho como ritmo, metro e harmonia. Mas o ponto que nos interessa est
na ltima linha, na meno ao encanto que esses ornamentos tm naturalmente e
em si mesmos. A afirmao tanto atesta a importncia do papel das figuras de
linguagem como estabelece que h uma distino entre seu uso corriqueiro e sua
utilizao de modo potico. Mais adiante, Plato declara seu temor quanto aos
efeitos que elas provocam em relao ao amor, clera e as paixes da alma,
porque (...) o certo seria sec-las (...), para nos tornarmos melhores e mais felizes,
em vez de sermos viciosos e miserveis 22.
20
RICOEUR, Paul. A metfora viva. Trad. Dion Davi Macedo. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 18. 21
PLATO. A Repblica. So Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 328. 22
PLATO. Op. cit., p. 336.
18
A condenao da poesia por Plato como prejudicial a polis s pde ser
afastada por Aristteles, segundo Lubomir Dolezel, porque este desatou os laos
que atrelavam a mmese com a metafsica. Assim, ela se tornou uma funo da
produtividade artstica, um procedimento de poiesis 23, deslocada do termo
imitao para representao e para criao (inveno), tomando assim um
sentido diferente daquele que lhe foi dado por Plato na Repblica.
A separao platnica entre paixo e razo e a influncia nociva dos
ornamentos sobre a linguagem tem um adepto em John Locke, que tratou do
assunto em seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690). Para o filsofo ingls,
o entendimento o principal fim da comunicao na linguagem, devendo haver o
mesmo significado nas palavras tanto para aquele que pronuncia como para aquele
que ouve. Para Locke os sons no tm nenhuma ligao natural como nossas
idias, mas (...) tiram toda a sua significao da imposio arbitrria dos homens 24.
O empirista britnico segue os passos de Aristteles na Retrica quando
toma como principal finalidade da linguagem a perfeita compreenso entre quem
pronuncia e quem ouve, entretanto, recrimina como um abuso de linguagem uma
certa obscuridade afetada, quer por dar s antigas palavras significaes novas e
no habituais, quer por introduzir termos novos e ambguos sem definir nem uns,
nem outros, quer por junt-los de tal maneira que se possa confundir o sentido que
tm vulgarmente 25.
De procedncia nitidamente platnica e basilar nos estudos da metfora
a parte do ensaio em que Locke advoga contra os nomes errados que enchem a
cabea de quimeras ao juntar idias incompatveis;
Uma vez que o esprito e a imaginao encontram um acolhimento mais fcil no mundo do que a verdade nua e crua e o conhecimento real, os discursos figurados e as aluses sero dificilmente admitidos como uma imperfeio ou abuso da linguagem. Confesso que nos discursos onde procuramos mais prazer e deleite do que informao e aperfeioamento, quase no se pode passar por erros estas espcies de ornamentos que pedimos emprestados s figuras. Contudo, se queremos falar das coisas como elas so, devemos reconhecer que toda a arte retrica, excetuando a ordem e a clareza, toda a aplicao artificial e figurada das palavras, que a eloqncia inventou, no servem para outra coisa seno para insinuar idias erradas, mover as paixes e, por esse meio, enganar o bom senso; e, assim, so de fato perfeitas fraudes. Por conseguinte, por mais louvvel ou admirvel que a oratria as torne, nos discursos populares, est fora de dvida que devem ser absolutamente evitadas em todos os discursos que pretendem informar ou instruir; e todas as vezes que se trate da verdade e
23
DOLEZEL, Lubomir. A potica ocidental. Fundao Calouste Gulbenkian. p. 58. 24
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: FCG. 1999. p. 650. vol. II. 25
Op. cit., p. 672.
19
do conhecimento, no podem deixar de ser consideradas como um grande erro, quer da linguagem, quer da pessoa que delas se serve.
26
Enquanto para Paul de Man, essas observaes de Locke sobre a
metfora representam uma autodisciplina tpica da retrica iluminista 27, sobre as
mesmas linhas Ted Cohen 28 acrescenta que, no perodo que compreende do
empirismo britnico ao positivismo vienense, havia essa tendncia na filosofia
ocidental de negao do valor da metfora. Isto era patente tambm no Leviat de
Hobbes, que listava como quarto e ltimo uso geral da linguagem o brincar com as
palavras, por diverso ou por adorno, todavia, sob um ponto de vista menos virulento
daquele exposto no Ensaio sobre o entendimento humano.
Trinta anos depois de Locke publicada a primeira verso da Cincia
nova (1725), de Giambattista Vico, que proclama ser a metfora, entre todos os
tropos, a mais luminosa e, por mais luminosa, a mais necessria e a mais espessa,
que tanto mais louvada se faz quanto s coisas insensatas ela d sentido e paixo
29.
Para Vico, cada metfora uma pequena fbula, e o desenvolvimento
da linguagem, algo inseparvel do desenvolvimento humano, havendo uma
diferena ntida entre linguajar mtico pois os primeiros poetas deram aos corpos o
grau entitativo de substncias animadas, capacitadas, no entanto, apenas de quanto
lhos pudessem conferir, isto , de sentido e paixo, e assim deles se fizeram as
fbulas e o silogstico, que todas as metforas assumidas (...) de forma a
significarem trabalhos de mentes abstratas devem ser dos tempos nos quais
comearam a desbastarem-se as filosofias 30.
O mesmo tipo de relao seria feito muito mais tarde por Mikel
Dufrenne, para quem existe uma fora dando origem conscincia que liga a
natureza ao homem: O homem , indissoluvelmente, conscincia e Natureza,
correlato e elemento da Natureza: sua encarnao nada mais significa. E a
26
Op. cit., p. 692. 27
MAN, Paul de. A epistemologia da metfora.In: SACKS, Seldon (org.). Da metfora. So Paulo: Pontes, 1992. p. 19. 28
COHEN, Ted. Metfora e o cultivo de intimidade. In: SACKS, Seldon (org.). Da metfora. So Paulo: Pontes, 1992. p. 9. 29
VICO, Giambattista. Princpios de uma Cincia Nova Sobre a Natureza Comum das Naes. So Paulo: Nova Cultural, 1988. Col. Os Pensadores. p. 195. 30
Op. cit., p. 195.
20
fenomenologia deve buscar no corpo as razes do transcendental 31.
Porm preciso notar que mesmo que Vico tenha valorizado um
conceito de fala e de fantasia articuladas a partir de semelhanas e
comparaes que colocam em relevo a linguagem potica, isso no quer
dizer que elas estejam relacionadas a um carter ilgico, enquanto o
silogismo continuaria como propriedade dos preceitos cartesianos, seu alvo
crtico de eleio.
De acordo com Vico, a evoluo da humanidade estava dividida em trs
etapas distintas, a idade divina, a idade herica e a idade humana, correspondendo
a trs espcies de lnguas. Na primeira delas, em que os homens haviam ascendido
h pouco ao que ele chama de condio humana, imperava
(...) uma lngua muda, mediante sinais e caracteres que mantinham nexos naturais com as idias que os mesmos desejavam significar. A segunda falou-se com intentos hericos, ou seja, com o uso de similitudes, comparaes, metforas e descries naturais, que constituem o maior contingente da linguagem herica, ao que sabemos, falada no tempo em que reinavam os heris. A terceira foi a lngua humana, mediante vocbulos convencionados pelos povos
32.
Essas interaes entre linguagem e processos mentais, para Vico se
alteraram atravs do tempo, enquanto os sentidos tomados pelas metforas em
outras pocas eram muito diferentes daqueles que conhecemos no discurso atual,
pois serviam para manifestar o entendimento de uma realidade na qual os termos
necessrios para a denominao do mundo ao redor ainda estavam em sua fase
incipiente. O filsofo italiano via a percepo humana que relacionava natureza e
mundo resultando na construo de novos termos na linguagem, com palavras
gerais ou abstratas em que a metfora era instrumento privilegiado, considerado por
ele como uma faculdade humana das mais sofisticadas:
Por todas essas razes se demonstrou que os tropos (que ao todo se reduzem a quatro), at hoje tidos em conta de engenhosssimos inventos dos escritores, corresponderam a necessarssimos modos de expressarem-se todas as primeiras noes poticas, guardando, em sua origem, toda a sua nativa propriedade. Depois, no entanto, com o progressivo desenvolver-se da mente humana, inventaram as palavras que significam formas abstratas, ou gneros que compreendiam as suas espcies, ou que compunham com suas partes as integralidades, passando tais falares das noes primitivas a transportes.
33
31
DUFRENNE, Mikel. O potico. Porto Alegre: Globo, 1969. p. 209. 32
VICO, Giambattista. Op. cit., p. 129. 33
VICO, Giambattista. Op. cit., p. 197.
21
Segundo Umberto Eco, de Emanuele Tesauro o mrito de, no perodo
barroco italiano, reapresentar ao mundo que j conhecia a fsica de Galileu uma
nova maneira de encarar os problemas das cincias humanas atravs das teorias
poticas de Aristteles, no seu Cannochiale aristotelico. Tambm segundo Eco, no
incio de sculo seguinte,
(...) esta mesma cultura italiana foi fecundada por aquela Cincia Nova de Vico, que colocava em causa cada preceito aristotlico, para falar de uma linguagem e de uma poesia que se desenvolviam fora de qualquer regra. Ao faz-lo enquanto na Frana, de Boileau a Batteux, de Le Bossu a Dubos, e at a Encyclopdie, buscavam-se ainda, com as regras do gosto, as regras da tragdia Vico abria, sem querer, a porta para uma filosofia e uma lingstica e uma esttica da imprevisvel liberdade de esprito.
34
Entre as datas dos ensaios de Locke e Vico, h uma ntida transformao
nos modos de perceber a metfora, como bem notou Umberto Eco, por conta das
idias do filsofo napolitano.
Por todo o tempo em que vigoraram os preceitos da antiga retrica a
tnica foi dada pelos textos de matriz aristotlica que regulavam as regras tanto da
composio da tragdia como da persuaso e da potica. Podemos ressaltar como
a posio de Locke notvel entre os estudos da metfora no s por se constituir
numa negao radical de seu valor, mas por se posicionar ao lado de um conceito
que comearia a ruir a partir da viso proposta por Vico. O autor da Cincia nova
liberta a potica de suas amarras aristotlicas e d metfora um lugar de
importncia que fora atestado pelo prprio Aristteles, mas negado por Plato e
filsofos empiristas como Hobbes e Locke.
Eco nota, assim como Paul Ricoeur, que o estagirita se utiliza de uma
metfora para definir o prprio tropo, e comenta que, com efeito, a teoria aristotlica
nos coloca diante do problema fundamental de qualquer teoria da linguagem, ou
seja, se a metfora um desvio em relao a uma literalidade subjacente ou o lugar
de nascimento de qualquer grau zero da escritura 35.
Tomando como base o trabalho realizado em A metfora viva, Paul
Ricoeur procura fazer uma delimitao entre as teorias semnticas da metfora e
uma teoria da imaginao e do sentimento tomada em bases psicolgicas; o
conceito de teoria semntica a entendido como a capacidade da metfora de
produzir sentidos novos, modificando a realidade proposta no texto atravs do que
34
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 219. 35
Op. cit., p. 231.
22
ele denomina por insight. A proposta de Ricoeur indaga se tais competncias
metafricas se mostram completas sem o auxlio da imaginao e do sentimento em
suas bases psicolgicas, em que a teoria semntica se completa no ltimo momento
com o auxlio da imagem 36.
Herana da antiga Retrica, as teorias clssicas dos estudos tropolgicos
encaram a metfora de acordo com suas acepes de raiz aristotlica, definida pelo
papel da semelhana que possui entre o sentido original e o novo sentido, sendo
esta semelhana a razo desse emprstimo, pois com efeito, bem saber descobrir
as metforas significa bem se aperceber das semelhanas 37. O complicado quadro
dos tropos, j resumidos por Vico a quatro (metfora, metonmia, sindoque e
ironia), foi simplificado pela lingstica estrutural e dividido em apenas dois, a
metfora, o tropo por semelhana, e a metonmia, o tropo por contigidade, numa
oposio que ao tempo dos antigos retricos, como Fontanier, no existia, e se
instituiu apenas com os neo-retricos contemporneos.
Segundo Ricoeur, o estatuto essencialmente retrico dado metfora
pela Retrica clssica resultava numa posio de privilgio dado palavra, ao nome
e a denominao na teoria da significao, em detrimento do processo semntico
que toma a frase como sua primeira unidade. Enquanto no primeiro caso a metfora
um tropo, uma figura de linguagem que desvia a significao da palavra de seu
sentido original, no segundo ela um fato de predicao, uma atribuio inslita
dentro do plano do discurso e da frase.
O afastamento da Retrica das teorias da composio e da
argumentao, restando aos tropos, inclusive a metfora, o papel de mero
ornamento, tambm atesta o juzo que Plato faz no Grgias, ao englobar Retrica e
Sofstica como artes ligadas a simulacros, visando a lisonja e a cosmtica
(Plato, Grgias, 461 e ss.).
O tratado de Pierre Fontanier, Les Figures du discours (1830), faz uma
recuperao escrupulosa desse campo e opta, entre o propsito geral do discurso e
o campo restrito dos tropos, pelo caminho intermedirio da anlise das figuras,
somente as figuras, mas todas as figuras, reafirmando o primado da palavra e
definindo os tropos a partir da relao entre palavra e idia. Os tropos so certos
36
RICOEUR, Paul. O processo metafrico como cognio, imaginao e sentimento. In: SACKS, Seldon. Da metfora. So Paulo: EDUC/Pontes, 1992. p.145. 37
ARISTTELES. Potica. Op. cit., p. 223.
23
sentidos mais ou menos diferentes do sentido primitivo que oferecem na expresso
do pensamento as palavras aplicadas s novas idias 38, diz Fontanier.
Para Gerard Genette, que faz uma introduo ao tratado do antigo mestre
francs, o principal mrito da obra dispor tropos e no-tropos sob a mesma noo
de figura, que no constitui nem palavra, nem enunciado. Assim, para Fontanier a
unidade tpica no ser nem o discurso, nem a palavra; tal posio, que Genette v
mais como gramatical e menos como retrica, estabelece uma terceira alternativa
que faz do trabalho, diz ele, uma obra-prima de inteligncia taxionmica 39, por
conta da meticulosa enumerao e tambm da classificao sistemtica pela qual se
guia.
Figuras, na acepo de Fontanier, so as formas, os traos ou os
contornos mais ou menos assinalveis e com um efeito mais ou menos feliz pelos
quais o discurso, na expresso de idias, distancia-se mais ou menos do que foi a
expresso simples e comum, 40, independente de referir-se palavra, frase ou ao
discurso. Quando pergunta a si sobre o que dizer das figuras enquanto tal, ele
responde utilizando uma metfora: O discurso, embora no sendo um corpo, mas
um ato de esprito, tem em suas diferentes maneiras de significar e de expressar,
alguma coisa de anlogo s diferentes formas e traos que se encontram nos corpos
verdadeiros. 41
Vico no mencionado, mas o filsofo italiano tem na Cincia Nova um
conceito bastante semelhante ao que est exposto de maneira resumida por
Fontanier:
Isto digno de nota: que em todas as lnguas a maior parte das expresses a respeito de coisas inanimadas efetuam-se mediante translaes do corpo humano e de suas partes, assim como dos sentidos humanos e das humanas paixes. Assim, cabea, por cimo ou princpio; fronte, espduas, adiante e atrs; olhos das videiras ou os que se chamam os primeiros lumes penetrados na casas; boca, toda e qualquer abertura; lbios, bordas de um vaso ou de outro; dente do arado, do rastelo, da serra, do pente; barbas, as razes; lngua do mar; fauce ou foz dos rios ou montes; garganta de terra; brao do rio; mo, por pequeno nmero; seio do mar, isto , golfo; (...) planta por base ou fundamento; carne e ossos dos frutos; veio de gua, pedra ou mina; sangue da videira, o vinho; vsceras da terra; ri o mar, o cu; sopra o vento; murmura a onda.
42
38
FONTANIER, Pierre. Les Figures du discours. Introduction par Gerard Genette. Paris: Flammarion, 1977. p. 39. 39
GENETTE, Gerard. La Rthorique des Figures. In: FONTANIER, Pierre. Les Figures du discours. Paris: Flammarion, 1977. p. 13. 40
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 64. 41
Op. cit., p. 63. 42
VICO, Giambattista. Op. cit., p. 195.
24
Enquanto Fontanier generaliza ao englobar em sua definio todos os
tropos, Vico credita o que ele chama de capacidade do homem de erigir um mundo a
partir de si diretamente metfora, a fabulazinha minscula que toma o ser
humano como medida para a formao de suas estruturas de linguagem.
O prprio Genette, seguindo os rastros de Vico, define a metfora e as
figuras de modo geral, ou pelo menos as chamadas figuras de substituio como a
metfora e a metonmia, antfrase, litotes ou hiprbole, como fices verbais ou
fices em miniatura, fazendo um corte em algumas das listadas nos tratados
tradicionais, como a simples comparao. Para ele, trata-se a de um enunciado
literal ou de analogia parcial.
Outros casos so as anforas, antteses, elipses ou pleonasmos, e
oxmoros, que considera simples esquemas verbais ou deslocamentos de sentido
que se diferenciam de uma figura como a metfora, semanticamente forte, em suas
palavras, e que realiza um prodgio 43 por efeito de um traslado de sentido.
Outra contribuio importante do tratado de Fontanier, bem notada por
Genette, a diferena estabelecida entre sindoque e metonmia. O primeiro
explicado como tropo por conexo, numa relao de dependncia interna, como
parte/todo, gnero/espcie, e o segundo, por correspondncia, numa dependncia
externa, por exemplo, causa/efeito, contingente/contedo, numa caracterizao que
nem sempre se faz clara no intricado quadro das figuras.
De acordo com o autor de Les figures du discours, a metfora consiste
em apresentar uma idia sob o signo de outra idia mais evidente ou mais
conhecida 44, e para Ricoeur essa caracterizao ao modo retrico implica dois
postulados, sendo o primeiro o de que o emprego figurado de palavras no
comporta nenhuma informao nova, ou seja, uma parfrase da metfora nada
ensina, o postulado da informao nula, e o segundo, decorrente do primeiro, o de
que o tropo, nada ensinando, tem funo apenas decorativa, destinando-se a
agradar ornamentando a linguagem, ao dar a cor ao discurso, uma vestimenta
expresso nua do pensamento 45. Sua concluso de que tais asseres procedem
43
GENETTE. Gerard. Metalepsis: de la figura a la ficcin. El Salvador; Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 2004. p. 22. 44
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 99. 45
RICOEUR, Paul. A metfora viva. So Paulo: Edies Loyola, 2000. p. 81.
25
da deciso inicial de tratar a metfora como uma maneira inslita de designar as
coisas.
As trs espcies de tropos acima - metonmias, sindoques, metforas -
so distinguidas em Fontanier respectivamente por meio da correlao ou
correspondncia, da conexo, e da semelhana, pois segundo ele, acontecem por
meio desses trs tipos de relao. Para Ricoeur, sob essas relaes, numa s
palavra que o tropo consiste, mas caso se possa dizer, entre duas idias que ele
acontece, por transporte de uma a outra, pois como na epfora de Aristteles, o
tropo sempre acontece a partir de dois 46.
Porm ele nota que correspondncia para Fontanier significa coisa bem
diferente da contigidade qual o funcionamento da metonmia foi reduzido por
seus sucessores, entendendo-a como a relao que aproxima dois objetos, dos
quais cada um forma um todo absolutamente parte. Eis porque, diz Ricoeur, a
metonmia se diversifica, por sua vez, segundo a variedade de relaes que
satisfazem a condio geral da correspondncia: relao da causa ao efeito, do
instrumento ao fim, do continente ao contedo, da coisa ao seu lugar, do signo
significao, do fsico ao moral, do modelo coisa 47.
Na relao de conexo, para Fontanier, dois objetos formam um
conjunto, um todo, ou fsico ou metafsico, a existncia ou a idia de um
encontrando-se compreendida na existncia ou na idia do outro 48. Isso inclui, diz
Ricoeur, numerosas espcies, da parte ao todo, da matria coisa, da
singularidade pluralidade, da espcie ao gnero, do abstrato ao concreto, da
espcie ao indivduo 49. Nos dois casos, tanto da metonmia quanto da sindoque,
um objeto designado pelo nome de outro objeto, numa relao de excluso ou de
incluso.
Porm, por conta do jogo da semelhana, o caso da metfora diferente.
Apesar de ela admitir espcies como os anteriores, tem um alcance mais longo,
pois no somente o nome, mas ainda o adjetivo, o particpio, o verbo e todas as
espcies de palavras so de seu domnio 50. A extenso da metfora para todos os
tipos de palavras e a restrio da metonmia e da sindoque aos nomes
46
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 94. 47
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 95. 48
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 87. 49
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 95. 50
FONTANIER, Pierre. Op. cit., p. 99.
26
interpretada por Ricoeur como uma alterao importante, apenas reconhecida dentro
de uma teoria propriamente predicativa da metfora.
Ricoeur ressalta que Fontanier no parece incomodado com a
circularidade do processo de denominao da metfora como figura, e de a palavra
figura ser de origem metafrica. Mais relevante a parte nomeada pela neo-
retrica de Fontanier como desvio, afirmando que a mesma distancia-se mais ou
menos do que foi a expresso simples e comum, sendo colocada sem ligao direta
com a palavra, frase ou discurso. Para Ricoeur, este um dos postulados essenciais
de seu estudo, o postulado do desvio, que, diz Genette em seu prefcio, o trao
pertinente figura.
2.2 METFORA E SEMNTICA
Ricoeur vai adiante, depois de passar de Aristteles a Fontanier e da
preeminncia da palavra em sua terceira verso da retrica como verso estilstica,
no sentido moderno, segundo as palavras de Genette. At a, sua anlise da
metfora em Fontanier toma a palavra como suporte da mudana de sentido no
tropo denominado, na retrica antiga e na clssica, como metfora. O passo
seguinte adotar uma definio de metfora que a identifica transposio de um
nome estranho a outra coisa, a qual, por isso, no recebe denominao prpria 51.
Porm, a investigao do trabalho de sentido gerado pela transposio do nome,
rompe tanto o quadro da palavra quanto o prprio. Impe-se ento o privilgio do
enunciado como meio contextual para essa transposio, chamado agora de
enunciado metafrico 52.
Ressalta-se na seqncia a importncia do papel das teorias propostas
por I. A. Richards em the Philosophy of Rethoric53, em dois captulos denominados
Metaphor e The command of Metaphor, em que o autor elabora e discute dois
termos por ele denominados de teor 54 (tenor) e veculo (vehicle), introduzidos por
conta da necessidade de, segundo ele, distinguir as metades da metfora.
51
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 107. 52
Op. cit., p. 107. 53
RICHARDS, I. A. The Philosophy of Rhetoric. London; Oxford: Oxford University Press, 1965. 54
Em A metfora viva tenor est traduzida como contedo, porm aqui adotamos a denominao mais conhecida do termo como teor.
27
Ao nos perguntarmos como a linguagem trabalha, estamos nos
perguntando tanto sobre a maneira como os pensamentos e sentimentos so
processados, quanto a respeito da atividade da mente que nos permite apreender o
comando da metfora, que, contrariamente s proposies de Aristteles, para
Richards pode ser compartilhado com outros. Segundo o autor, o vocabulrio
utilizado, em geral, separa tais termos apenas por frases descritivas toscas, como a
idia original e a emprestada, o que est realmente sendo dito de e o que
comparado com, a idia subjacente e a natureza imaginada, o objeto principal e
o que ele assemelha; ou, numa confuso ainda maior, diz ele, simplesmente o
significado e a metfora, ou a idia e sua imagem 55.
Segundo Stephen Ullmann, a estrutura bsica da metfora muito
simples, havendo sempre dois termos presentes, a coisa de que falamos e a coisa
que queremos comparar; ou, na terminologia de Richards, o primeiro o teor, o
segundo o veculo, enquanto que o trao ou traos que tm em comum constituem o
fundamento da metfora 56.
Para Ullmann, h quatro diferentes tipos de metforas. A primeira delas,
j vista em Giambattista Vico, so as metforas antropomrficas, expresses em
que os objetos inanimados so referidos por transferncia do corpo humano e de
suas partes, das paixes e dos sentidos humanos, havendo, claro, transferncias
na direo oposta, como mas do rosto. O segundo tipo so as metforas
animais, como gato para ladro, por exemplo, cujas razes so comuns s obras
de Esopo, La Fontaine, George Orwell, e Batraquiomiomaquia, j a partir de um
tempo em que para se aludir s deusas, eram referidos seus olhos bovinos. O
terceiro tipo consiste em traduzir experincias abstratas em termos concretos, como
iluminar, por fazer compreender. E o quarto e ltimo tipo so as metforas
sinestsicas, baseadas nas transposies de um sentido para o outro, onde Ullmann
d o exemplo de voz quente 57, sendo elevadas ao nvel de doutrina esttica por
Charles Baudelaire em Correspondncias (...) Os sons, as cores e os perfumes se
harmonizam.//H aromas frescos como a carne dos infantes,/Doces como o obo,
55
Op. cit., p. 96. (Trad. da A.) 56
ULLMANN, Stephen. Semntica: uma introduo cincia do significado. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1964. p. 442. 57
Op cit., p. 451.
28
verdes como a campina (...) 58. A partir da, entre as diversas tentativas feitas para
sistematizar as correspondncias entre os sentidos, a mais conhecida o soneto
das vogais, as Voyelles de Rimbaud.
Segundo Richards, a utilizao da palavra metfora para a unidade dupla
inteira to insensata como o outro artifcio pelo qual ns
(...) usamos o significado aqui s vezes para o trabalho que a unidade dupla inteira faz e s vezes para o outro componente o teor, como eu estou chamando aqui a idia subjacente ou o objeto principal que o veculo ou figura representa
59.
Duas palavras so consideradas por ele especialmente enganosas,
figura e imagem. Por vezes, ambas representam a unidade dupla inteira, e em
outras somente uma parte, o veculo, como oposta a outra, o teor. Adicionalmente,
elas causam confuso quanto ao juzo que percebe uma imagem como uma cpia
ou reapresentao de um sentido-percepo de alguma espcie.
Para o autor, tal fato foi responsvel pelo julgamento equivocado dos
retricos de pensarem que uma figura de discurso, uma imagem, ou uma
comparao imaginativa, deve ter algo a ver com a presena de imagens em seu
outro sentido, o da percepo mental ou auditiva. Para Ricoeur, necessrio afastar
o juzo de Hume no qual a imaginao vista como uma percepo tnue e tambm
o ardil que confunde imagem e figura de estilo, ressaltando que no possvel,
contudo, falar em teor (...) fora da figura, ou tratar o veculo como um ornamento
sobreposto: a presena simultnea do [teor] e do veculo e sua interao que do
origem metfora 60.
Na retrica reflexiva de Richards, o par teor-veculo passa ao largo da
distino entre sentido literal e sentido metafrico, permanecendo como nico
critrio o compartilhado com o Dr. Johnson, de que a expresso metafrica matria
de excelncia dentro do estilo quando usada com propriedade, porque d a voc
duas idias por uma, fazendo interagir teor e veculo.
Numa formulao simples, afirma Richards,
(...) quando ns usamos uma metfora ns temos dois pensamentos de coisas diferentes operando juntos e sustentados por uma nica palavra, ou frase, cujo significado resultante dessa interao
61.
58
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do mal. Trad., introduo e notas de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 115. 59
Op. cit., p. 97. 60
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 130. 61
RICHARDS, I. A. Op. cit., p. 93. (Trad. da A.)
29
Sendo assim, esse critrio tambm permite definir o sentido literal, pois se
impossvel distinguir teor e veculo, a palavra pode ser provisoriamente tomada
desse modo. No entanto, esse estado no irrecupervel, pois resulta da maneira
como funciona a interao, ou, nos termos de Ricoeur, a base do teorema do
sentido contextual. Para Richards, os processos metafricos na linguagem,
(...) e as mudanas entre os significados das palavras que ns estudamos nas metforas verbais explcitas, esto superpostas sobre um mundo percebido que em si mesmo um produto de metforas primitivas ou inconscientes, e ns no iremos lidar com elas corretamente se ns esquecermos que isto assim
62.
De novo retornamos a Giambattista Vico e suas teorias da linguagem
herica, bero das comparaes e da linguagem metafrica, e como nota o autor
ingls, as relaes que envolvem ambas so comentadas em toda parte, sendo
possvel considerar se entre teor e veculo h a mesma relao de envolvimento
existente entre metfora e comparao.
Comparar seria, talvez, manter duas coisas juntas e operando em
conjunto, ou apreciar suas semelhanas, ou ainda, apreender determinados
aspectos de uma delas pela presena da outra, mas ns no devemos, como no
sculo XVIII, supor que as interaes entre teor e veculo esto confinadas s suas
semelhanas, pois h tambm aes dspares. Na viso de Richards, h poucas
metforas nas quais as disparidades entre teor e veculo no so to operativas
quanto as similaridades. Porm o mais importante o esforo da mente ao ligar
duas coisas pertencentes a ordens de experincia muito diferentes, pois a mente s
opera por conexo e pode conectar duas coisas quaisquer num nmero
indefinidamente vasto [e] de maneiras diferentes 63, em assertivas percebidas por
Ricoeur como uma teoria da tenso dando espao tanto semelhana como
dessemelhana.
O projeto retrico em The Philosophy of Rhetoric, diz o filsofo francs,
dedicado a restabelecer os direitos do discurso a expensas dos da palavra (...) em
nome de uma teoria francamente contextual de sentido 64, revertendo a relao de
prioridade entre a palavra e a frase. A fixao das palavras em seus valores de uso
62
Op. cit., p. 109. (Trad. da A.) 63
Op. cit., p. 125. 64
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 124.
30
deu origem a uma crena falsa de que as palavras tm um sentido, consolidando o
preconceito da significao prpria das palavras.
Na opinio de Richards, os elizabetanos eram muito mais hbeis que ns
no uso da metfora, tanto na questo do significado quanto na da interpretao, um
fato que tornou Shakespeare possvel 65. No entanto, o emprego literrio das
palavras que faz com que cheguemos a um resultado construdo somente atravs
das possibilidades interpretativas do todo da enunciao, que nos termos do autor,
no um mosaico, mas sim um organismo.
Para Ricoeur, com I. A. Richards entramos em uma semntica da
metfora que ignora a dualidade de uma teoria dos signos e de uma teoria da
instncia do discurso, e que se edifica sobre a tese da interanimao de palavras na
enunciao viva 66.
Contudo, preciso notar que no possvel eliminar a definio de
Aristteles em termos de palavra e de nome, porque ainda a palavra a portadora
do sentido metafrico. Ricoeur adota ento a linguagem de Max Black, e a palavra
mantm o foco (focus), ela permanece como suporte do efeito metafrico porque
sua funo no discurso encarnar a identidade semntica, enquanto a frase
denominada como quadro (frame), o que nomeado por este autor de teoria da
interao, oposta teoria substitutiva. O processo dessa anlise semntica da
metfora agora estabelecido em meio ao enunciado como um todo, mas centrado
na mudana de sentido que continua sob o domnio da palavra.
Tal processo no se reduz apenas substituio de uma palavra ou nome
por outro, mas constitui uma interao entre sujeito e predicado lgicos. Renovando
a maneira de explicar a metfora como um desvio, ela descrita agora como uma
predicao alterada, e no como denominao alterada.
Na opinio de Ricoeur, as teorias de Max Black no suplantam I. A.
Richards em The Philosophy of Rhetoric, mas h trs pontos decisivos no trabalho.
O primeiro deles, diretamente implicado aqui, est na proposio de que a
metfora se constitui no enunciado inteiro, porm este considerado metafrico e se
justifica em razo da presena de uma palavra particular. Assim, a metfora seria
uma frase em que algumas palavras so tomadas metaforicamente, enquanto outras
no, constituindo o trao diferencial entre metfora, provrbio, alegoria e enigma, diz
65
RICHARDS, I. A. Op. cit., p. 94. 66
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 127.
31
Black, pois nos trs ltimos todas as palavras so empregadas metaforicamente.
Tal detalhe circunscreve o fenmeno e permite isolar a palavra metafrica do resto
da frase, corrigindo tambm os reparos que o autor faz aos conceitos de teor e
veculo e suas significaes demasiado flutuantes 67.
A teoria de Max Black afastaria o perigo de retornar a um juzo que desse
palavra um significado em si, usando o termo foco para designar essa palavra e
quadro para o resto da frase, contudo, ainda que tambm para Richards a metfora
proceda da interao entre ambas, Ricoeur considera o vocabulrio de Black mais
preciso.
A segunda contribuio de Black o afastamento decisivo entre uma
teoria da interao, proveniente da anlise anterior, e as teorias clssicas da
substituio, acrescentando uma teoria da comparao; essa vista como um
enfoque mais geral da linguagem figurada, de que toda figura de dico que tenha
uma mudana semntica (no meramente uma mudana sinttica, como a inverso
da ordem normal das palavras) consiste em certa transformao do significado
literal 68.
Quando pergunta a si mesmo qual seria a funo transformadora
caracterstica da metfora, Black responde que ou a analogia ou a semelhana, a
primeira valendo para as relaes e a segunda, para as coisas ou as idias. Porm o
benefcio de opor a teoria da interao s outras torna esse tipo de metfora, de
interao, no s insubstituvel, pois exige, diz o autor, que o leitor utilize um
sistema de implicaes (...) como meio de selecionar, acentuar e organizar as
relaes em um campo distinto 69, mas tambm intraduzvel sem perda de
contedo cognitivo. E sendo intraduzvel, portadora de informaes, logo, ela
ensina, diz Ricoeur.
A terceira e ltima contribuio de Max Black se refere ao funcionamento
da interao, e versa sobre a questo que indaga de que modo o termo focal age
sobre o contexto dando origem a uma nova significao, que seja irredutvel tanto
parfrase como ao uso literal. Ele usa como exemplo a frase O homem um lobo,
no entanto, lobo no est na sentena em sua significao normal, mas num
67
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 55 68
BLACK, Max. Modelos y metforas: Madrid: Editorial Tecnos, 1966. p. 45. (Trad. da A.) 69
Op. cit., p. 55. (Trad. da A.)
32
sistema de lugares comuns 70 relativos aos lobos, e um ouvinte idneo ser
conduzido a construir correspondncias referentes ao assunto principal em outro
sistema, levando Black a dizer que a metfora pode ser vista como um filtro (p. 49),
ou como uma tela (p. 51): assim, a metfora do lobo suprime certos detalhes e
acentua outros; dito brevemente, organiza nossa viso do homem 71.
Mas diz Ricoeur que chegaremos mais perto da chamada funo de
semelhana se indagarmos como se obtm essa predicao alterada a Jean
Cohen, que em Estrutura da linguagem potica fala de tal desvio do ponto de vista
da no-pertinncia semntica, significando a violao desse cdigo e dos seus
predicados de uso normal.A poesia s destri a linguagem corrente para reconstru-
la num plano superior, diz ele 72.
Ele escolhe como ponto de vista inicial para seu estudo uma linguagem
menos marcada pela retrica e pelas figuras, de um grau zero relativo, a linguagem
cientfica, comparando-a no somente com a linguagem potica, mas estabelecendo
diferenas na evoluo do desvio umas frente s outras, da poesia clssica
romntica e, finalmente, poesia dos simbolistas. Assim, o estilo potico ser o
desvio mdio do conjunto dos poemas, a partir do qual seria teoricamente possvel
medir a taxa de poesia de um poema determinado 73. Essa anlise das figuras
feita em dois nveis, o fnico e o semntico, em que rima e metro, no primeiro, se
referem s funes de dico e de contraste, e no segundo, as trs funes de
predicao, determinao e coordenao distinguem na metfora o operador
predicativo, no epteto o determinativo e a incoerncia como operadora da
coordenao.
A contribuio mais importante dessa teoria, para Ricoeur, est na
relao entre desvio e a idia de uma reduo de desvio, uma vez que a
mensagem potica constitui uma violao ao cdigo de pertinncia, o regulador dos
significados do discurso no nvel semntico; mesmo que a sintaxe esteja correta,
eles podem se tornar absurdos, deixando de fazer sentido, pela impertinncia do
predicado.
Em toda frase predicativa, necessrio que o predicado seja pertinente
ao sujeito, funo evocada por Plato no Sofista ao falar sobre O problema da
70
Op. cit., p. 50. 71
Op. cit., p. 51. 72
COHEN, Jean. Estrutura da linguagem potica. So Paulo: Cultrix, 1974. p. 45. 73
Op. cit., p. 17.
33
predicao e a comunidade dos gneros, de que h alguns gneros que so
mutuamente concordes e (...) outros que no podem suportar-se 74. O que Jean
Cohen denomina de lei de pertinncia semntica so os arranjos combinatrios das
frases recebidas como inteligveis, que manifestam significados satisfatrios, nesse
caso, um cdigo da fala.
Portanto, se a sentena O homem o lobo do homem tem outro
significado, que viola o cdigo da lngua e lhe d uma decodificao nova, porque
a frase no primeiro sentido, o literal, impertinente, enquanto o segundo sentido lhe
d pertinncia, a metfora intervm para reduzir o desvio criado pela impertinncia
75. Tais desvios so complementares e no esto colocados no mesmo nvel
lingstico, pois enquanto a impertinncia infringe o cdigo da fala - um desvio
sintagmtico, a metfora uma violao ao cdigo da lngua - est no plano
paradigmtico. Assim, para o autor, a fala superior lngua, pois esta aceita
transformar-se para dar sentido quela 76.
A expresso metafrica faz a reduo desse desvio sintagmtico
agregando um novo significado a ele. Esse novo significado mantido pela
produo de um desvio lexical, ou seja, um desvio paradigmtico, o mesmo tipo de
desvio j descrito na retrica clssica, que na verdade no estava equivocada, mas
descrevia o efeito do sentido no nvel da palavra, ignorando a alterao semntica
no nvel do sentido. E se o efeito do sentido est contido na palavra, ento a
produo do sentido opera dentro do enunciado como um todo, fazendo com que a
teoria da metfora dependa de uma semntica da sentena.
A impertinncia, introduzida no meio da frase, imediatamente percebida como tal e aciona o mecanismo de reduo lingstica. (...) esse mecanismo que introduz aqueles valores semnticos de outra ordem que constituem o sentido potico.
77
Segundo Jean Cohen, enquanto o discurso habitual se coloca em
conformidade com o sistema e suas leis, no discurso potico ele invertido, aceita
transformar-se, mas (...) no preconcebido. o caminho inelutvel pelo qual o
poeta deve passar, se quiser fazer a linguagem dizer aquilo que a linguagem nunca
diz naturalmente 78, e nesse desvio lingstico que se pode chamar de figura est o
74
PLATO. O sofista. In: ___. Dilogos. So Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 176. 75
COHEN, Jean. Op. cit., p. 94. 76
Op. cit., p. 94. 77
Op. cit., p. 97. 78
Op. cit., p. 110.
34
verdadeiro objeto da potica. A metfora, diz ele, uma passagem da lngua
denotativa para a conotativa, obtida por meio do desvio da fala, perdendo o sentido
ao nvel da primeira para reencontr-lo ao nvel da segunda 79. Logo, ela no o
desvio em si, mas a reduo de desvio, e, como figura, restabelece a ameaa feita
ao discurso por parte da incoerncia semntica, s existindo desvio quando as
palavras so tomadas em seu sentido literal. Para Jean Cohen, o objetivo de toda
poesia [] obter uma mutao da lngua que (...) ao mesmo tempo uma
metamorfose mental 80.
O criador de metforas, possuidor dessa habilidade que Aristteles
considerava impossvel de ser ensinada, visto por Paul Ricoeur como um arteso
verbal que confere ao enunciado literal incoerente um significado predicativo original,
o qual surge a partir do colapso do anterior, percebendo-se agora a metfora no
como um enigma, mas como a sua soluo.
A partir dos neo-retricos contemporneos a tropologia foi restringida a
uma oposio entre metfora e metonmia, e com Roman Jakobson o papel da
semelhana foi enfatizado pela condio que a ope ao seu nico correspondente, a
contigidade. Para Ricoeur, tal papel fundamental, por ligar uma dualidade retrica
e tropolgica a uma polaridade de maior importncia que no se restringe ao seu
uso figurativo somente, mas tambm ao seu funcionamento. Assim, metfora e
metonmia, mais do que caracterizarem figuras e tropos, dessa maneira ficam
ligadas aos processos gerais da linguagem, reforando a idia de substituio e
semelhana como dois conceitos inseparveis.
Esse monismo do signo, que Ricoeur v como caracterstico de uma
lingstica puramente semitica, para ele confirma a hiptese de que a teoria da
metfora-substituio ignora a diferena entre semitico e semntico, caracterizando
assim a metfora como um processo semitico geral e de modo algum uma forma
de atribuio que demande previamente a distino do discurso e do signo 81.
Desse modo seria possvel a aproximao do par sintaxe-semntica ao par
combinao-seleo, (...) contigidade-similaridade, (...) ao par dos plos
metonmico e metafrico 82.
79
Op. cit., p. 173. 80
Op. cit., p. 94. 81
RICOUER, Paul. Op. cit., p. 271. 82
Op. cit., p. 271.
35
Jakobson percebe tambm na polaridade dos processos metonmicos e
metafricos uma correspondncia em relao aos estilos pessoais e ao
comportamento verbal que exprimem a preferncia das formas poticas por uma ou
outra forma de coordenao, com predominncia da metonmia no realismo e da
metfora no romantismo e no simbolismo.
O monismo semiolgico de Jakobson, que para Ricoeur minimiza ao
extremo a diferena entre signo e discurso por no permitir opor os fenmenos do
discurso aos da lngua, reformulado nas teses de Michel Le Guern, que lhe faz
dois acrscimos, mas preserva a polaridade metonmico-metafrica. Seu aporte se
refere aos procedimentos emprestados de Jakobson de seleo-substituio e
combinao-contextura agregados distino que Frege faz entre sentido e
referncia, reportando a metfora substncia da linguagem, ou seja, s relaes
de sentido, enquanto a metonmia vista como modificadora da prpria funo
referencial. No haveria metfora se no houvesse um desvio da homogeneidade
semntica do enunciado, ou seja, entre a isotopia do contexto e o sentido figurado
de uma palavra, estabelecendo uma diferena importante com a metonmia, cujos
lexemas no so considerados estranhos isotopia. Assim, necessrio incorporar
a ruptura da isotopia definio de metfora, processo extrado da relao entre
denotao e conotao e que constitui a primeira contribuio de Le Guern s teses
de Jakobson.
Na metfora, combinam-se um fenmeno denotativo, referido pela
reduo smica, e um conotativo, exterior funo lgica do enunciado. A essa
informao dada pelo sentido lgico da expresso acrescentado o que o autor
denomina de imagem associada, que intervm num nvel de conscincia diverso
daquele no qual se forma a significao lgica, onde a censura que separa o
significado da metfora no interfere mais. Como essa interpretao depende do
leitor, para Le Guern a produo da imagem associada um fenmeno ligado
personalidade, pois Dada uma palavra, a eleio entre uma imagem associada e
outra parece livre, at o ponto em que pode haver aqui uma fonte de erro na
interpretao do enunciado 83. Entretanto, a liberdade desse carter arbitrrio
retirada pela metfora ao mesmo tempo em que opera o mecanismo da imagem
associada, impondo ao esprito do leitor, em superposio informao lgica
83
LE GUERN, Michel. La metfora y la metonimia. Madrid: Ediciones Ctedra, 1976. p. 48.
36
contida no enunciado, uma imagem associada que corresponde quela que se
formou no esprito do autor no momento em que formulava o dito enunciado 84.
O segundo contributo de Le Guern reside na questo da semelhana, na
qual a analogia deve ser introduzida ao mesmo tempo em que a imagem associada,
estabelecendo uma relao entre um termo da isotopia e um termo estranho, a
imagem, que, operando no ncleo lgico do significado permite estabelecer a
similaridade que resulta na ordenao do conjunto dos fatos da linguagem.
Nessa viso da analogia, que para o autor, imposta na metfora e
surge como nico meio de suprir a incompatibilidade semntica 85, Ricoeur v a
afirmao mais importante das teses de Le Guern, mas que somente pode ser
valorizada dentro de uma teoria da metfora-enunciado. O estatuto semntico da
imagem apenas incorporado metfora quando aquela se vincula no s
percepo de desvio, mas tambm sua reduo, que seria a instaurao da nova
pertinncia cuja reduo de desvio no nvel da palavra somente um efeito 86. O
ponto em comum entre metfora e analogia , portanto, a interveno de uma
representao mental alheia ao objeto da informao que motiva o enunciado 87,
ou seja, uma imagem.
Questionando o papel da analogia em curso na metfora, se ela poderia
ou no ser chamada de semntica, Ricoeur opina que, para seja convincente,
necessrio completar a anlise de Le Guern com outra que incorpore com mais
clareza o papel da imagem na reduo de desvio; sendo somente uma imagem
associada, diz, arrisca-se a permanecer como fator extralingstico enquanto
imagem.
dentro das mutaes caractersticas da inovao semntica que tanto a
similaridade quanto a imaginao desempenham sua funo, diz Ricoeur. Porm, ao
contrrio do que proclamam tericos como Jakobson, ela no deveria ser entendida
como uma escolha que se divide entre contigidade ou similaridade, opondo o
processo metafrico ao metonmico. Na proposta do filsofo em A metfora viva as
formas de funcionamento da similaridade e da imaginao operam ao mesmo tempo
e so imanentes ao processo predicativo, elas no so extrnsecas a ele, e o
84
Op. cit., p. 48. 85
LE GUERN, Michel. Op. cit., p. 67. 86
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 287. 87
LE GUERN, Michel. Op. cit., p. 62.
37
trabalho da semelhana deve ser adequado e homogneo tanto ao desvio como
singularidade do novo significado semntico.
No dossi de acusao da semelhana, a pea principal o papel
desempenhado entre esta e a substituio, j demonstrados na teoria de Jakobson,
de que no interior de uma esfera de semelhana que se faz a passagem de um
termo para outro. J a interao compatvel com quaisquer tipos de relao 88,
diz Ricoeur.
Num segundo argumento, mesmo quando um enunciado metafrico
coloca a analogia em jogo, ela no explica nada, pois a semelhana muitas vezes
aparece entre coisas em que no haveramos sonhado fazer uma relao, logo, ela
antes o resultado do enunciado que a sua causa ou razo. Segundo Ricoeur, eis
porque a teoria da interao esfora-se para dar conta da teoria da semelhana sem
inclu-la em sua explicao, (...) a aplicao do tema principal ao predicado
metafrico similar a uma tela ou filtro que seleciona, elimina, organiza as
significaes o tema principal; a analogia no est em causa nesta aplicao 89.
O uso por Aristteles de ao menos trs empregos diferentes do termo
confirmaria a fraqueza lgica da semelhana e da analogia, introduzindo apenas
confuso na anlise, como terceiro argumento contra a semelhana. No h aluso
aparente lgica da proporo e da comparao quando o mestre do Liceu nos diz
que apreender uma metfora implica bem perceber suas semelhanas e que isso
algo que no pode ser compartilhado.
O ltimo e mais grave argumento contrrio recai sobre a associao
freqente entre a semelhana e a imagem, como num retrato ou numa fotografia,
refletida at mesmo em alguma crtica literria j de certo tempo, na qual indagar
sobre as metforas de um determinado autor implicava descobrir quais imagens -
visuais, auditivas, sensoriais lhe seriam familiares.
O equvoco, para Ricoeur, embasa-se no dizer de Aristteles de que
perceber bem a metfora pr sob os olhos. O mestre francs pondera se acaso
apresentar um pensamento apoiado em outro no seria mostrar o primeiro por meio
dos traos mais vivos do segundo, ou at mesmo, se no caberia figura o papel de
fazer surgir o discurso.
88
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 293. 89
RICOEUR, Paul. Op. cit., p. 294.
38
Apontados os pontos fracos que recaem sobre as teorias da semelhana
no estudo da metfora, em sua defesa Ricoeur prope que ela ainda mais
necessria numa teoria da tenso que numa teoria da substituio; que ela no
apenas constri, mas guia e produz o enunciado metafrico, e ainda, que o seu
carter icnico deve ser reconstrudo de modo que a imaginao se torne, dentro do
enunciado metafrico, um momento semntico.
2.3 POTICA DA IMAGEM
Num ciclo de conferncias das Clark Lectures proferidas em 1946 no
Trinity College, em Cambridge, o poeta ingls Cecil Day Lewis escolhe como seu
tema as imagens na poesia, no que mais tarde deu origem ao volume The poetic
image. Frteis, inovadoras, audazes, ele apresenta as imagens como o ponto forte
da poesia moderna, apontando-as como seu fator constante e sustentando que
cada poema em si mesmo uma imagem 90, que as tendncias vm e vo, a
dico se altera, os modismos da mtrica mudam, at os temas e assuntos variam a
ponto de no serem reconhecidos, mas a metfora fica, pois ela o teste principal
para a glria de um poeta.
Reforando seu ponto de vista, aps referir Aristteles, ele menciona a
frase em que Herbert Read afirma que ns deveramos julgar um poeta pela fora e
originalidade de suas metforas, fazendo ainda referncia a Dryden, que sustenta
ser a imaginao, em si mesma, a fora vital da poesia. Day Lewis retorna aos
sculos XVI, XVII e XVIII para uma crtica aos literatos e filsofos que tomavam o
imaginrio como mero ornamento, igual a cerejas ornamentando um bolo, at que as
coisas comearam a mudar, a partir do movimento romntico.
Indagando o que se entende por imagem potica, o poeta ingls comenta
que um epteto, uma metfora, um smile, podem criar uma imagem, mas que toda
imagem potica , de algum modo, metafrica, e mesmo as emocionais e
intelectuais trazem algum trao do sensvel que as move do tipo mais comum, as
visuais, conclamando tambm os outros sentidos.
O assunto desenvolvido at serem reunidos os termos que definem a
imagem potica, em seus termos, como uma cena sensvel em palavras, em certo
90
DAY LEWIS, Cecil. The poetic image. New York: Oxford University Press, 1947. p. 17.
39
grau metafrica, com uma nota de emoo humana em seu contexto; ressalta,
porm, que essa no uma definio perfeita, pois faltam os ingredientes da
emoo e da paixo, j vistos por Coleridge como indispensveis na associao
entre pensamentos e imagem.
De fato, h um ponto central na questo das imagens poticas que no
permite interpret-las como produto de uma mente genial e veculo para emoes
como medo, desejo, dio, tristeza, mas fatores importantes para saber fazer a
distino entre emoo humana e paixo potica.
Lewis tambm aborda outra questo, o porqu de nos excitarmos com as
metforas, e qual seria o processo secreto pelo qual as imagens nos transmitem
prazer. Se mesmo um poeta deve ver as coisas como elas so, e essa noo de
realidade envolve relacionamentos, o que conduz s emoes humanas,
justamente essa necessidade de expressar as relaes entre coisas e sentimentos
que impele o poeta metfora. Ainda que o mundo potico seja artificial, ele faz
sentido para ns atravs das correspondncias entre os padres de suas imagens e
as do mundo real, ou nas palavras de William Blake, citado pelo autor, Se as portas
da percepo forem abertas, todas as coisas aparecero ao homem como elas so,
infinitas.
Para Lewis, se uma imagem tem o frescor e o poder evocativo percebidos
por ele como a expresso principal da poesia moderna, de mostrar alguma coisa
nunca realizada antes, porque ela concentra em si, em sua dico e em seu
material potico, o que ns mais prezamos, a grandeza de significado num espao
pequeno que evoca uma resposta a essa paixo potica.
E uma imagem intensa, diz ele, o oposto de um smbolo, que
denotativo e se coloca em razo de uma coisa somente, sendo que as imagens em
poesia raramente so puramente simblicas, porque so afetadas pelas vibraes
emocionais de seus contextos, de modo que a resposta de cada leitor a elas est
apta a ser modificada por sua experincia pessoal 91.
A esse respeito, Paul Ricoeur manifesta pontos de vista diferentes de
Cecil Day Lewis, percebendo no smbolo uma estrutura de duplo sentido em que h
algo de semntico e de no-semntico tambm, para ele, o mesmo caso da
metfora. Trs dos campos de investigao englobando smbolos foram explorados
91
DAY LEWIS, Cecil. Op. cit., p. 41. (Trad. da A.)
40
por Ricoeur: a psicanlise, que se ocupa dos sonhos e de outros objetos
relacionados como simblicos nos conflitos psquicos; a potica num sentido amplo,
em que os smbolos so entendidos como as imagens que dominam as obras de
um autor ou de uma escola de literatura, ou as figuras persistentes dentro das quais
toda cultura se reconhece a si mesma 92. E por fim, as grandes imagens
arquetpicas que, ignorando as diferenas culturais, so celebradas pela
humanidade como um todo. Mircea Eliade j explorou com profundidade aspectos
que reconhecem em entidades concretas como rvores, labirintos, escadas e
montanhas93, smbolos de espao, tempo e transcendncia, sinalizando ainda algo
alm, manifestado neles prprios numa tal proliferao de forma que torna ainda
mais complexa a sua investigao.
Mas alm dos mltiplos campos, outra dificuldade o carter duplo que
divide os smbolos em dois universos, de ordem lingstica e no-lingstica. A
comprovao do carter do primeiro est em que possvel a construo de uma
semntica dos smbolos em termos de sentido ou significado. A outra natureza, no-
lingstica, vista por Ricoeur como to bvia quanto a primeira, est sempre se
referindo a alguma coisa alm, no caso da psicanlise, associando-a a conflitos
psquicos ocultos, no do crtico literrio, ao desejo de relacionar literatura e
linguagem, e no do historiador das religies, de ver no smbolo uma manifestao do
sagrado,como as hierofanias de Eliade.
Ricoeur faz uma tentativa de esclarecer os smbolos utilizando a teoria da
metfora, primeiro, identificando seu cerne, ainda que eles sejam de natureza as
mais diversas, a partir da mesma estrutura de sentido que opera nas expresses
metafricas; em segundo, por meio de um mtodo de contraste, com o
funcionamento metafrico da linguagem, ao isolar o estrato no-lingstico dos
smbolos, ou seja, o princpio de sua disseminao. Essa nova compreenso dos
smbolos concorre no s para auxiliar no desenvolvimento da teoria da metfora,
desvendando dados que permaneceriam ocultos, mas completando-a e
preenchendo algumas lacunas existentes.
a expresso metafrica que permite identificar os traos semnticos de
um smbolo por meio de uma diretriz que distingue entre sentido literal e sentido
metafrico, relacionando toda forma de um smbolo linguagem e assegurando a
92
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretao. Lisboa: Edies 70, p. 65. 93
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. So Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 188.
41
sua unidade. Para Ricoeur, o smbolo s suscita pensamento se, primeiro, suscitar
a fala, e a metfora o reagente apropriado para trazer luz o aspecto dos
smbolos que tem uma afinidade com a linguagem 94. A opo do filsofo pela
teoria da toro metafrica sofrida pelas palavras quando expostas impertinncia
semntica, tomada como modelo para a extenso de sentido operante em cada
smbolo. Nas trs reas, smbolo tomado nos termos de Ricoeur como um
excesso de significao, tanto na psicanlise como na potica ou nos mitos
babilnicos.
Como na metfora, o significado em excesso pode opor-se ao significado
literal, mas sempre que oportunizadas as duas interpretaes. Na significao
simblica, porm, no h sentido literal e metafrico, mas um nico significado que
passa de um a outro por meio ou atravs do primeiro, o significado literal, modo
privilegiado de se trasladar de um nvel a outro, o do significado excedente,
fornecendo o sentido de um sentido, trao que diferencia um smbolo de uma
alegoria. A alegoria, diz Ricoeur, um procedimento didtico, facilita a
aprendizagem, mas no necessria ao se tratar com um conceito.
A distino entre smbolo e alegoria estabelecida a partir do
Romantismo, em especial nos escritos de Goethe, Schlegel e Coleridge. Enquanto
Schlegel defendia que havia uma alegoria em todas as obras de arte, Goethe
negava, e fazia a distino entre ambos:
A simblica transforma o fenmeno em idia, a idia em imagem, e de tal modo que na imagem a idia permanece sempre infinitamente eficaz e inatingvel e, ainda que pronunciada em todas as lnguas, continuaria a ser indizvel. A alegoria transforma o fenmeno num conceito, o conceito em imagem, mas de tal modo que na imagem o conceito permanece limitado e suscetvel de ser completamente apreendido e usado, e pronto para ser expresso por essa mesma imagem
95.
Segundo Wellek e Warren, Coleridge tambm apontava o valor da
alegoria como secundrio, pois enquanto
(...) a alegoria meramente uma transposio de noes abstratas para uma linguagem pictrica, que em si prpria mais no do que uma abstrao de objetos dos sentidos..., um smbolo caracterizado por uma transferncia do especial [a espcie] no indivduo, ou do geral [o gnero] no especial...; acima de tudo, pela transferncia do eterno atravs do temporal e no temporal
96.
94
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretao. Op. cit., p. 66. 95
GOETHE, J. W. Mximas e reflexes. Lisboa: Crculo dos Leitores, 1992. p. 189. 96
WELLEK, Ren; WARREN, Austin. Teoria da literatura. 5. Ed. Lisboa: Europa-Amrica, 1987. p. 233.
42
Walter Benjamin recupera o valor da alegoria trazendo-a para o campo da
Esttica, percebida como a revelao de uma verdade oculta, havendo dois tipos de
alegoria: a crist, visando a finitude do homem num mundo absurdo, e a moderna,
exemplar em Baudelaire, mostrada como a repre