Marcelino Freire

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    Marcelin

    oFreire

    Escritor

    e

    agi

    tador

    cultural

    Depois de escrever,

    vamos para a luta,

    vamos produzir, ver

    quem est escrevendo,

    juntar turmas para

    formar um exrcito.

    Marcelino Freire

    Quando o escritor Marcelino Freire encontrou o poema O Bichona gramti-ca do irmo mais velho, d escobriu que queria ser poeta. O bicho, meu Deus,era um homem, escreveu Manuel Bandeira. Descobri que Bandeira era per-nambucano tambm, falava de ruas que eu conhecia, Rua da Unio, Rua daAurora, falava do Rio Capibaribe. Nascido no ano de 1967, em Sertnia (PE),Marcelino de famlia grande e pobre.

    Estudou e chegou ao curso de letras. Largou o trabalho de bancrio parase dedicar a conhecer escritores pernambucanos. Eu queria interlocutores,queria um dilogo, queria saber como o meu texto batia no ouvido do outro,afirma. Em So Paulo, a carreira literria de Marcelino foi impulsionada pelamesma inquietao. Reuniu novos escritores para trocar ideias, incentivarpequenas editoras, publicar livros e organizar antologias. Por esse caminho,acabou por afirmar a existncia de uma nova gerao literria.

    Entre seus livros publicados esto Angu de Sangue (2000), Contos Negreiros(2005) eRasif: mar que arrebenta (2008). H cinco anos organiza a Balada Liter-ria em So Paulo, evento que rene dezenas de escritores nacionais e interna-cionais. Digo sempre que enquanto outros fazem eventos com um milho, eufao com hum-milhao , brinca. Sobre poltica cultural, defende a adoo

    de intercmbios, residncias artsticas, bolsas de criao e circulao de es-critores nas universidades.

    Como a literatura chegou at voc no interior de Pernambuco?Eu nasci em Sertnia, no serto de Pernambuco. Sou o caula de uma fa-

    mlia de nove filhos. Uma famlia que no tinha biblioteca em casa, no tinhalivro, no tinha gua. Ento, como que eu me interessei por literatura? Comoeu tive vontade de ser escritor em uma casa que no estava cercada disso, queno era movida por isso? Foi quando eu li um poema do Manuel Bandeira emum livro da escola do meu irmo mais velho. Eu estava com nove para 10 anosde idade, li um poema chamadoO Bicho [Vi ontem um bicho / Na imundice do p-

    tio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa; / No examinavanem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho no era um co, / No era um gato, /

    No era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem (1947)]. Pensei que queria fa-zer o que aquele cara fazia, queria ser poeta. Descobri que ele era pernambu-cano tambm, falava de ruas que eu conhecia, Rua da Unio, Rua da Aurora,falava do Rio Capibaribe. Ele no queria ser engenheiro, pedia desculpas aopai por ser um poeta menor. Eu queria ser esse poeta menor. Minha famliaera sertaneja e queria que seus filhos estudassem, mas para ser engenheiro,mdico, advogado. Nunca vi uma me dizer que queria que o filho fosse poeta.

    Entrevista realizada por Aloisio Milani e Sergio Cohn no dia 2

    de maio de 2010, em So Paulo.

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    De certa forma, Manuel Bandeira me ajudou a no ser econmico, no sentidode pensar minha vida economicamente. Comecei escrevendo alguns poemas,imitando o Bandeira, querendo ser doente como o Bandeira, tuberculoso, co-mecei at a ensaiar umas tosses. Juro! Quando tinha mais ou menos 10, 11anos, descobri que tinha sopro no corao. Isso foi minha glria literria! Iapelos hospitais, pelos corredores. Bandeira abriu essa porta, me deu a vonta-de de ser escritor.

    meio ficcional essa tuberculose do Bandeira. Que tuberculoso fumadois maos de cigarro por dia e sobe ladeira em Santa Teresa ( risos)?

    Tem um crtico literrio que encontrou Manuel Bandeira um dia na rua edisse: Voc uma fraude! Desde muito tempo voc disse que ia morrer e nomorre nunca!. Eu gostava muito dessa figura. Meus irmos iam jogar bola,andar de bicicleta, mas eu nunca quis sade no. Gosto do Bandeira porqueele me doutrinou a ser doente. As pessoas vo atrs de sade, eu no. Quantomais um artista me deixa doente, mais eu gosto dele.

    Como foi esse comeo de vida de escritor? A vivncia em Pernambuco

    e a vinda para o Sudeste?Escrevia e participava de grupos de poesia. Fiz curso de letras, mas no

    terminei. E tinha um amigo que sempre me chamava para vir para So Paulo.Eu dizia: Ah, o que eu vou fazer em So Paulo?. Eu trabalhava em um bancocomo revisor de textos, era uma carreira no banco que estava se apresentan-do, eu fui office boy, escriturrio, revisor. Mas eu disse: No quero banco. Cado Manuel Bandeira, cad minha poesia, cad os escritores dessa cidade?. Ea eu deixei o banco e passei dois anos conhecendo os escritores do Recife:Raimundo Carrero, Ronaldo Correia de Britto, Wilson Freire. Eu fui conhecertodos eles e fazer cursos, encontrar esses escritores na cidade, esses artistas,poetas. Quando o dinheiro acabou, aceitei o convite de vir para So Paulo.

    Mas como foi a procura pelos escritores no Recife?Eu queria interlocutores, queria um dilogo, queria saber como o meu

    texto batia no ouvido do outro, que no o do meu irmo, que no o doamigo. Assim que eu sa do banco, tinha uma oficina de criao literria,que era a primeira oficina que o Raimundo Carrero ia fazer no Recife. Foil que eu o conheci. Alm dele, conheci outros escritores que estavamensaiando seus primeiros romances, seus primeiros livros de contos. Erauma necessidade de interlocuo mesmo, para no ficar sozinho, acua-

    do. Nesse sentido, eu j fazia teatro tambm, comecei muito novo, com10 anos de idade. O teatro deu muita fora para o meu trabalho, para omeu texto. Eu escrevia peas e tambm produzia. Com 14, 15, 16 anos, eumontava meu prprio texto e levava em temporada na escola, em teatrosna cidade, sem absolutamente dinheiro nenhum, mas com muita von-tade de fazer alguma coisa. Quando eu fui fazer a oficina do RaimundoCarrero, fui para encontrar esses interlocutores e para saber tambm oreal peso ou o fracasso do que eu fazia.

    Naquele momento, voc considerava que j tinha uma voz prpria ouestava a procurando?

    Encontrei quando vim para So Paulo. Eu cheguei em 1991, zerado detudo. Descobri aqui, por exemplo, que eu tinha sotaque. Isso um cami-nho para voc descobrir que tem uma voz. Descobri que eu tinha muitasaudade, um banzo imenso da minha famlia, do barulho da casa. Voccomea, de alguma forma, a se agarrar nas suas razes para poder enfren-tar essa cidade, que tem tudo para te atropelar. Ento comecei a descobrirque tenho sotaque, que tenho Sertnia dentro de mim, que eu no achava

    que tivesse. A comecei a escrever uns textos. Depois eu verifiquei que ostextos que eu publicava no Recife tinham essa voz, mas l era uma vozcostumeira. Uma forma de falar, de escrever, pontuar, de cantar um texto,muito peculiar do Recife, de quem mora l. O Joca Reiners Terron, que um escritor radicado aqui em So Paulo, foi a Recife no tem muito tempoe voltou dizendo: Encontrei vrios Marcelinos l no Recife! Voc igualao poeta Mir, voc imita o poeta Mir de Muribeca!. E eu disse: Joca,voc estava na minha terra . L voc ia encontrar vrias pessoas falandocomo eu, no mesmo desespero, no mesmo registro de vexame.

    O choque cultural uma experincia fundamental para o artista. Essa

    vinda para So Paulo foi isso?Para mim foi fundamental. S escreviAngu de Sangue primeiro livro que fiz

    por uma editora , porque eu vim morar em So Paulo. Um angu que deixoude ser o angu da tradio de milho para ser um angu de sangue! Sou umapessoa preguiosa, mas muito preguiosa, se me deixassem com um suco demaracuj no Recife, eu ia morrer l. O que eu quero mais? Suco de maracuj,sol, descanso, famlia por perto, no verdade? (risos) Ento, So Paulo foiimportante porque me acordou para foras que eu julgava no ter, foras deluta mesmo, de insero.

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    Na sua chegada, a cena literria de So Paulo estava quase estagnada.Com a sua gerao, houve um ressurgimento. Como foi perceber que

    vocs construiriam algo?As pessoas aperreadas demais com a arte, com aquela vontade visceral de

    fazer, se sentem vazias em determinados momentos e dizem: Algo precisaser feito. A mesma coisa que me impulsionou a sair do banco l no Recifeme fez, j morando aqui, sair em busca dos escritores da cidade, dos meuscontemporneos. Ouvia falar do Marcelo Mirisola, do Luiz Ruffato, do Nelsonde Oliveira, que tinham publicado livros, mas eu no conhecia ningum. Eumoro na Vila Madalena e trabalhava como revisor em uma agncia de propa-ganda. Vivia correndo de l para c, trabalhando muito, aquela chatice, ataltas horas da madrugada. Ento, eu resolvi reservar o sbado e o domingopara passear pelo meu bairro. Andava nas livrarias, tomava um caf, ia at ossebos. Tinha uma necessidade de encontrar uma turma, de, mais uma vez,encontrar interlocutores. Um dia, passando pela Rua Teodoro Sampaio, vi umsebo chamado Sagarana, e se o dono coloca esse nome, no mnimo ele gostade Guimares Rosa. Ento eu entrei e conheci o dono, que o Evandro Affon-so Ferreira. Vi que ele escrevia maravilhosamente bem e ele me convidou para

    uma reunio com escritores, uma coisa que eles estavam tentando retomar.Nos encontramos em um caf da Praa Benedito Calixto, mas era um lugarmuito barulhento, voc no conseguia ouvir as pessoas, ento me propus aconseguir outro lugar. Nas minhas andanas pela Vila Madalena, conheci oIuri Pereira, que um dos donos da editora Hedra, e ento ele falou de um cafque tinha no bairro, prximo da sede da Hedra, e ofereceu tambm o prprioespao da editora. Assim, acabamos nos reunindo em um lugar mais silen-cioso. O Evandro, como conhecia muita gente por causa do sebo, comeoua convidar alguns escritores para que fossem l tomar um caf com a gente.A ideia era que o escritor fosse l, conversasse um pouco e depois lesse algu-mas coisas. Foi l que eu conheci o Maral Aquino, Fernando Bonassi, Glauco

    Matoso, passou por l tambm o Joo Alexandre Barbosa, um grande crticoliterrio, que era rato de sebo e comprava livros com o Evandro. Ele esteve l,conheceu um texto meu, disse que tinha gostado muito e me indicou para oAteli Editorial. Depois, ainda escreveu o prefcio do livroAngu de Sangue.

    Mas foi a partir dessa necessidade de interlocutores que nos reunimos.Todos estavam exatamente com a mesma necessidade. O Ruffato tinha publi-cado o primeiro livro, o Nelson tinha feito o segundo, o Evandro estava pre-parando o primeiro, eu tambm estava preparando o primeiro. Costumamosdizer que foram os livros que se encontraram. Mas tinha um vazio tambm.

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    O Nelson falava da editora do Joca Reiners Terron, a Cincia do Acidente, oMarcelo Mirisola falava do pessoal da Livros do Mal, uma editora do Rio Gran-de do Sul, do Daniel Galera e do Daniel Pellizzari, todos fazendo alguma coisa.Ento, a partir da resolvemos fazer uma antologia. Uma antologia da gerao90, porque saiu a antologia 100 Melhores Contos Brasileiros do Sculo , organizadopelo talo Moriconi, um trabalho extraordinrio, pontual, para trazer o contode volta cena, mas quando chegava na gerao 90 ficava um vazio. Nessesencontros descobrimos que tinha muita gente boa espalhada pelo Brasil. Foia que o Nelson de Oliveira organizou as antologias Manuscritos de Computa-dor(2001) e Os Transgressores (2003). Era essa necessidade de interlocuo. Eera uma fase em que voc tinha grandes editoras dominando os jornais e nsramos de pequenas editoras, era a Ateli Editorial, a Boitempo, a Azougue.Mas ento, de repente, eles comearam a ouvir falar dos novos escritores, a seperguntar que escritores eram esses.

    Voc fala da inquietao dos escritores e das pequenas editoras... Almdessas, quais outras caractersticas da gerao 90?

    Era exatamente essa coisa de produzir um texto e dizer: Olha, estou aqui.

    Falava-se muito pouco da Livros do Mal, da Azougue, da Boitempo, da Ateli.Ns no nos sentamos ouvidos ou vistos. Mas, para que fssemos ouvidose vistos, tnhamos que fazer texto, produzir. Tinha gente produzindo muitobem, fazendo texto bom. Tinha que participar tambm, mas participar fazen-do! Por isso, fomos fazer nossas antologias. Em 2003, eu e Nelson de Oliveiraorganizamos aPS SP, uma revista um pouco tardia para o encontro que haviana Hedra, porque o grupo j no se encontrava tanto, mas foi uma forma deregistrar esses escritores. Fizemos a PS SP, que significava o Post Scriptum SoPaulo, que vinha depois do que estava escrito em So Paulo.

    Vocs c onseguir am se impor na ce na e nos c adern os lit errio s. Tal-

    vez a l tima vez que os cader nos tiveram uma import ncia na for-mao de pblico...

    Concordo plenamente. O Jornal da Tarde tinha um caderno de literaturamuito bom. O caderno Ideias, doJornal do Brasil, era maior. E oProsa & Verso,do jornal O Globo, resistia. Eu lembro que oAngu de S angue foi resenhado emvrios cad ernos literrios. Temos uma fa se tambm da re vista Cult, quandoela pautava, assinava, mostrava o que estava acontecendo na literatura.Depois esses veculos foram perdendo espao. Veio a internet, a Cronpios,tudo mudou.

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    Hoje, qual o caminho para a formao de leitores?Tem uma coisa que pontua a literatura para uma nova frente de batalha: a

    Festa Literria Internacional de Paraty (Flip). Ela inspirou muitas outras festas,encontros. A Jornada Literria de Passo Fundo faz isso h 25 anos, com a TniaRsing [entrevistada no livro 3]. O escritor est cada vez mais saindo do casulo,aprendendo a apresentar sua fala em outras mdias. Adaptaes para o teatro,vdeos no YouTube, trailers. Tm tantas frentes para tornar a literatura mais di-nmica. Ouvi uma vez uma escritora falar: Eu escrevia porque eu no sabia fa-lar. Agora, para continuar escrevendo, tenho que falar. isso mesmo. Tem quecircular bastante. Fao isso muito. Vou na periferia, por exemplo, e no vou spor ir, eu enturmo. Vem da mesma vontade de encontrar meus pares, de encon-trar quem que est fazendo literatura e tirando a literatura do casulo, tirandoa literatura das academias, tirando a literatura da naftalina. Vou para os sarausda periferia e conheo o trabalho vigoroso que os poetas fazem. Esse agrupa-mento tira a palavra um pouquinho da gaveta e joga para o outro. Essa a for-mao de leitor! o que o Srgio Vaz faz no Sarau da Cooperifa h oito anos,toda quarta-feira, faa chuva ou faa sol. E 300, 400 pessoas param para ouvirpoesia na periferia de So Paulo! Aquilo modificou a geografia daquele lugar. Os

    moleques leem poesia e isso muda a maneira como eles encaram a literatura,que, muitas vezes, dada de forma chata na escola, de forma burocrtica. Nes-se sentido, essas festas para a literatura so importantes, porque estamos emuma fase de muita concorrncia com outros apelos. Hoje, as pessoas tm iPod,DVD, internet, muita coisa. Me perguntaram agora h pouco o que eu achodo iPad. Eu tenho que estar, quase mensalmente, respondendo questes sobreessas novas tecnologias. importante que elas apaream, o escritor tem queestar discutindo os diretos autorais do iPad. Mas, ao mesmo tempo que existe oiPad, tem gente aqui que ipede esmola. Ainda estamos formando bibliotecase temos que ficar respondendo sobre tecnologia. Eu no sei onde isto vai parar,mas vamos embora, o que se pode fazer? A literatura tem que estar atuante,

    porque seno desaparece.

    E voc se tornou um agitador da literatura em So Paulo...Quando me interessei pelo teatro, descobri que podia ser ator, escrever o

    texto, produzir e dirigir. Quando estava na escola, eu j pegava almofadas ejarros da casa da minha me para p oder fazer cenrio de pea , produzir al -guma coisa e sair da impossibilidade. No era porque eu no tinha dinheiropara o cenrio que eu no ia fazer teatro. Ia me sentindo capaz de realizar.Aos 18 anos de idade produzi uma p ea chamadaA menina que queria danar,

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    uma pea infantil que escrevi aos 14 anos para que a Patrcia Frana umaatriz que depois veio fazer Globo e hoje est na Record fizesse a persona-gem principal. Ela fez com 14 e eu com 18 anos. Eu queria a pea encenadano principal teatro da cidade, o Teatro de Santa Isabel. As pessoas me per-guntavam como eu ia colocar a pea l, porque era o melhor. As pessoasj colocavam um no antes mesmo de tentar. Na p oca, eu trabalhava n obanco e fazia esse trfego entre meu trabalho formal e o que eu queria fazer,ento produzi os folhetos na grfica do banco, fiz um bom programa, umprojeto bem feito, chamei fotgrafo profissional . De fato, eu pensava sempremais do que eu poderia fazer. E era pensando assim que eu tirava um poucoda minha pequenez. A fui no teatro, consegui a temporada, que foi vitorio-sa, linda, e fez a Patrcia Frana ganhar o prmio de atriz revelao. A partirda, abandonei o teatro, queria mesmo a literatura. Estava insatisfeito, can-sado de Recife, e veio o convite para vir para So Paulo. Mantive a mesmapostura quando vi aqueles prdios imensos na Avenida Paulista. Eles tinhamtudo para me sufocar, eu vinha de longe e pensava que tinha que ver aquelesprdios de igual para igual. Tinha essa fora de transformar. Dizem que aAvenida Paulista o centro da cidade, o centro do Brasil, a principal avenida

    da Amrica Latina e eu pensava que no podia estar longe dela. Ento, euconsegui trabalho ali. Com a literatura foi a mesma coisa. Conversava comNelson sobre a revistaPS SP e ele sempre falava que no tnhamos dinheiro,enquanto eu dizia que dinheiro no era problema e o instigava para fazer.

    Mesmo depois de lanar meu segundo livro e estando dentro de uma edi-tora, a Ateli Editorial, eu no esquecia meu lado amador. Em 2002, na Ateli,fiz uma coleo chamada 5 Minutinhos, para ser distribuda gratuitamente. Aspessoas dizem que no tm tempo para ler, ento eu fui fazer a coleo5 Minu-tinhos,que voc l no cabeleireiro, enquanto espera o nibus, e de graa. O Pl-nio Martins, editor da Ateli, meu amigo at hoje, foi quem me ajudou nessaempreitada. Peguei o Manoel de Barros, Joo Gilberto Noll, Millr Fernandes.

    Mas, antes, j me perguntavam se eles iam aceitar. E eu dizia: Eu ainda nemperguntei para eles!. uma teimosia, uma vontade de fazer, de sair da mes-mice. Hoje, publico pela editora Record, mas fico sempre envolvido em pro-jetos que eu possa comear do zero, que eu possa me sentir confortvel. Temmuita coisa para fazer na literatura, muita coisa para divulgar, fao a BaladaLiterria, que chegou ao quinto ano em 2010. Eu digo sempre que enquantooutros fazem eventos com um milho, eu fao com hum-milhao. No senti-do humano mesmo, de pedir fora e ajuda a essas pessoas. Eu conheo muitosescritores, que so meus amigos e sabem que eu fao coisas para tirar a litera-

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    tura desse casulo, dessa chatice acadmica, e transformar em um movimentovivo, que participe da cidade, da geografia da cidade, que modifique tudo aoseu redor. Eles sempre que podem esto dispostos a participar. Se eu colocardinheiro como primeiro plano, eu no vou fazer nunca! Eu gasto meu dinheiroe graas a Deus eu posso gastar. A cada edio da Balada Literria, eu fico fa-lido, mas, no entanto, eu encontro parceiros: o Sesc Pinheiros, a Biblioteca Al-ceu Amoroso Lima, a Mercearia So Pedro, o do Borogod. Ento, desenhouma programao com o apoio dos parceiros. Tem a parceria dos escritorestambm, quando eu digo: No tenho dinheiro, pelo amor de Deus!. E eles vomesmo assim.

    No ano passado, eu encontrei, em Porto Alegre, o Fabiano dos Santos, quecuida da parte de literatura do Ministrio da Cultura, e ele falou assim: Mar-celino, eu vi no jornal que vai ter a 4 edio da Balada Literria, por que vocainda no nos procurou?. E eu disse: Fabiano dos Santos, por que voc ain-da no nos procurou?. Acho que o Ministrio da Cultura tambm tem queter um olhar. No s dizer: Manda um projeto!. Que inferno da porra! Eusei que tem que mandar projeto, mas ou eu fao projeto ou eu fao a BaladaLiterria. Um projeto uma burocracia danada. Pede documento daqui, pede

    documento dali, parece um credirio das Casas Bahia, uma pergunta atrs daoutra. Tem hora que tanta pergunta, tanta papelada no meio do mundo, queeu no aguento. Estou me profissionalizando, mas o ministrio tem que teressa vontade que mostrou, de ir atrs. Agora eu tenho uma pessoa que j estfazendo o projeto para ter um pouco de descanso, no sentido de infraestrutu-ra mesmo. E de pagar os autores e de pagar todos igualmente.

    No d para ficar submisso ao incentivo pblico, s polticas pblicas.Como fomentar esse agito? Tem que se pensar isso, no ?

    Tem que se pensar. Esse governo, inclusive, abriu muito o dilogo para a lite-ratura. No lembro de nenhuma outra fase em que eu tenha ido vrias vezes

    Braslia para responder ou para saber o que est acontecendo. Mas aquela coi-sa, tem que mandar o projeto. Eles no esto olhando ainda. Em Belm, estoproduzindo a duras batalhas e o governo poderia ajudar, perguntar o que elesesto precisando para poder continuar produzindo, que importante para aliteratura. Eu fao parceiros, amigos. um jogo de futebol. Voc joga a bola parao outro, o outro pega, vaivm. uma parceria, um exrcito contra a mesmice,contra essa concorrncia desleal com as grandes mdias e as grandes tecnolo-gias. Vem um monte de gente falar do Kindle, do iPad e no acaba! Mas no faoparte dessa discusso tecnolgica no seu extremo. Fao parte, claro, da discus-

    Marcelino Freire

    so sobre os direitos autorais. At ento, as editoras esto nos escrevendo paradiscutir como sero os direitos autorais desses livros que esto sendo digitaliza-dos. Acho que o que no pode pagar apenas 10% para os autores. Se pagavam10% no livro impresso, no livro digitalizado no tem sentido pagar s 10% aoautor. No tem distribuidor, papel, no tem tinta, no tem transporte, como que pode o autor s receber 10%? Essas discusses so importantes.

    Voc lanou dois livros por conta prpria e lanou livros por editora.Qual o papel da editora no processo de criao, de qualificao do livro?

    Fiz meus primeiros livros por conta prpria, Acrstico, de 1995, e EraOdi-to, de 1998. Depois veio Angu de S angue, pela Ateli. A editora importanteno sentido do profissional, da capa, de pensar o projeto, de distribuir. Sopessoas que tm armas para trabalhar com isso, conhecimento para traba-lhar. Os dois primeiros livros foram importantes para eu sair da gaveta, parater uma atitude diante daquilo em que eu acreditava. Para no ficar aquelerancor de achar que o mundo est contra mim. A diferena entre eu e aque-las pessoas que dizem: Como que aquele Marcelino Freire, que escreveaquelas merdas, consegue que as pessoas falem dele e eu estou aqui com o

    meu texto?, que eu fao! E isso para mim fundamental. Por outro lado,eu cresci muito trabalhando com o Plnio, que um super editor, discutecapa, distribuio, conversa. Quando voc est em uma editora, os livrosso recebidos nas redaes de forma diferente, no um livro independen-te, j passou por uma filtragem. O Angu de S angue saiu pela Ateli Editorialcom um prefcio de Joo Alexandre Barbosa. J era uma filtragem naquelaspilhas e pilhas que os jornais recebem diariamente. Nesse sentido, de re-cepo do seu trabalho, voc vai para um outro patamar. Quando recebi oconvite da Luciana Villas-Boas para ir para a editora Record, conversei como Plnio e ele falou: Vai embora porque a Luciana vai conseguir fazercoisas com voc que eu, como pequena editora, no consigo. E fui. Mas

    quando cheguei para conversar com a Luciana, j tinha esse histrico dedilogo. Eu dizia para ela que a nica coisa que eu no queria na Recordera ficar diludo, porque eles publicam muito, e no quero ser s maisum livro publicado. Eu quero, por exemplo, acompanhar a capa, queroter esse dilogo, essa conversa. ComRasif : mar que ar reben ta, de 2008, foi amesma coisa. Ela me deu carta branca e eu acompanhei todo o processo,dialogando, sugerindo reviso e outras tantas coisas. Voc dialoga com oprofi ssiona l da rea e iss o aj uda muito na c ontin ua o da sua traje tria ,a continuar amadurecendo naquilo que voc faz.

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    E sobre o momento atual? Como ajudar os movimentos que estosaindo do casulo? Quais as necessidades de fomento e de polticas

    pblicas hoje?Quero conhecer quais so os meus vizinhos latinoamericanos e dos pases

    que falam a lngua portuguesa, eu quero esse intercmbio. Quero ir para l eque eles venham para c, quero antologias, residncia dos escritores. Isso norola ainda. O escritor tem que circular pelas universidades do Brasil quandolana um livro, para discutir com os seus leitores. Mas tem que circular comas universidades preparadas para receb-los, saber quem eles so, o que elesesto fazendo ali. Eu sinto muito a falta d essa integrao maior da lngua por-tuguesa. E quando eu digo lngua portuguesa ou latinoamericana porquetem muita coisa ainda para conhecer dos nossos vizinhos em lngua, vizinhosem territrio. lgico que tambm quero conhecer o ingls, o americano, ofrancs, mas acho que se comeasse em uma articulao com essas pesso-as que falam a nossa mesma agonia, seria um ponto positivo demais. Coisastambm de polticas pblicas, de verbas para o setor criativo, uma brigalonga. Com o movimento Literatura Urgente junto com Ademir Assuno,Ricardo Aleixo, Sergio Fantini , j conseguimos ter bolsas de criao que a

    Petrobras est dando. Quando se fala em polticas pblicas para essa rea, sefala muito no livreiro, no editor, no distribuidor, mas e o autor?

    Estive em Braslia para uma reunio da cmara setorial e conferncia na-cional. uma coisa que vai definir uma poltica do Fundo Nacional de Cultu-ra, do destino das verbas. Os livreiros esto l, mas os escritores, no. Ficavaeu l me esgoelando, mas conseguindo mudar a redao de alguma coisa. uma briga constante. Agora, repito, isso pontual, porque nunca o Ministrioda Cultura deu essa abertura de dilogo. Mas a gente tem que estar o tempotodo cutucando. Tem quem diga que o escritor s precisa de um papel de poe uma caneta na mo. Mas que viso romntica essa? Poeta no come, notem famlia? O poeta Manoel de Barros disse uma coisa maravilhosa: Minha

    poesia no gosta de dinheiro, mas o poeta gosta!. Voc precisa viver.

    O escritor precisa ser um empresrio da prpria obra? Mobilizar, di-vulgar, cuidar?

    Eu publico um livro a cada trs anos. Eu no escrevo tanto, mas sou umapessoa muito inquieta, no sou aquele escritor no casulo. A vou aprendendocom esses irmos de batalha, com o que Ivam Cabral e os Satyros fizeram naPraa Roosevelt, com o Srgio Vaz na Cooperifa. Aprendo com eles o que oGlauco Mattoso uma vez falou: preciso interferir na geografia das coisas.

    Marcelino Freire

    O Manoel de Barros fala outra coisa que eu acho tima: preciso esfregarpedras na paisagem. Nesse sentido, tenho um trabalho, sim. Tenho o criativo,a coisa artstica, que o que me basta como artista. Aquilo que quero resolvercomo sufoco, como agonia, como vingana, eu j resolvo artisticamente. De-pois de escrever o meu continho, vamos para a luta, vamos produzir livro, verquem est escrevendo coisa nova, ver como juntar essas turmas todas paraformar esse exrcito, esse grupo. No d para ser escritor em uma redoma-zinha. No sou desse tipo, eu no me aguento. Essa teimosia da minha me,que saiu do serto semi-analfabeta, o que me guia para qualquer coisa. Oescritor que no se envolve socialmente, no se articula com as pessoas, estde brincadeira. Ele est achando que um Deus, um santo? Vaticano agora?A coisa se resolve na luta, no dia-a-dia.

    Para assistir essa entrevista em vdeo:

    http://www.producaocultural.org.br/2010/08/14/marcelino-freire/

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