MARCONDES, Danilo - A Teoria Dos Atos de Fala

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    A Teoria dos Atos de Falacomo concepo pragmtica

    de linguagem1Speech Act Theory as a pragmatic view on language

    Danilo Marcondes de Souza Filho2

    [email protected]

    Filosofia Unisinos77777(3):217-230, set/dez 2006 2006 by Unisinos

    RESUMO: O papel da pragmtica na filosofia da linguagem tem sido discutidodesde a formulao da distino tradicional entre sintaxe, semntica e pragmtica.Defendemos aqui a relevncia filosfica de uma concepo pragmtica delinguagem, examinando algumas das principais propostas nesta direo,sobretudo a noo de jogo de linguagem de Wittgenstein e a Teoria dos Atos deFala de Austin e Searle. Discutimos, em seguida, algumas crticas aosdesenvolvimentos recentes de concepes pragmticas de mtodo de anliseda linguagem, procurando mostrar como esses mtodos podem ser reformuladosde modo a responder a essas crticas, propondo, assim, a Teoria dos Atos de Falacomo o melhor caminho para a formulao de uma filosofia pragmtica da

    linguagem.

    Palavras-chave: pragmtica, Wittgenstein, Teoria dos Atos de Fala.

    ABSTRACT: The role of pragmatics in the philosophy of language has been acentral subject of discussion since the initial distinction between syntax,semantics and pragmatics. I shall emphasize here the philosophical relevanceof a pragmatic conception of language, examining some of the maincontributions to pragmatics such as found in Wittgensteins language gamesand in Austin and Searles Speech Act Theory. I shall also discuss some criticismof recent developments of these pragmatic conceptions of the analysis oflanguage, showing, however, that there are ways of overcoming the difficultieswhich have been pointed out. Finally I propose Speech Act Theory as the bestcandidate for a pragmatic philosophy of language.

    Key words: pragmatics, Wittgenstein, Speech Act Theory.

    1 Retomo aqui questes discutidas em Marcondes (2003, 2005a, 2005b). Verso inicial deste texto foi apresentadano III Congresso Nacional de Filosofia da Linguagem na UNISINOS, em So Leopoldo, RS. Agradeo pelasquestes dos participantes do congresso, em especial aos professores Andr Leclerc e Adriano Brito.2 Professor titular, Departamento de Filosofia, PUC-Rio.

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    The term performative [] indicates that the issuingof the utterance is the performing of an action

    it is not normally thought of as just saying something.J. L. Austin, How to do things with words (Lecture I)

    Introduo: Sintaxe, semntica, pragmtica

    Como se pode caracterizar a pragmtica? A diviso tradicional do estudo dalinguagem emsintaxe,semntica epragmtica tem sua origem, contemporanea-mente, no texto Foundations of a Theory of Signs do filsofo Charles William Morris(1901-1979), da Universidade de Chicago, publicado na International Encyclopediaof Unified Science (1938), da qual Morris foi um dos organizadores, juntamentecom os membros do Crculo de Viena Otto Neurath e Rudolf Carnap. Morris esteveem Viena no incio dos anos 30, quando se interessou pelas teorias da cincia e dalinguagem desses autores, as quais aproximou das do filsofo norte-americano Charles

    Sanders Peirce (1839-1914). Carnap, por sua vez, foi para os Estados Unidos aps aascenso do nazismo, vindo a lecionar na Universidade de Chicago entre 1936 e1952, onde trabalhou com Morris e, posteriormente, retomou e desenvolveu a dis-tino entre sintaxe, semntica e pragmtica como reas de estudo da linguagem.

    Morris foi fortemente influenciado, ainda quando estudante na Universida-de de Chicago, por George Herbert Mead (1863-1931), um dos pioneiros nos Esta-dos Unidos do estudo da linguagem em uma perspectiva sociolgica 3. Foi tambminfluenciado por Peirce, que pode ser considerado um dos precursores da pragm-tica uma vez que, em sua discusso sobre a natureza e a funo dos signos, destacaa importncia do uso, enfatizando o papel do interpretante na relao entre osigno e aquilo que este designa.

    De acordo com a definio tradicional encontrada em Morris e em Carnap, asintaxe examina as relaes entre os signos, a semntica estuda a relao dos signos

    com os objetos a que se referem e a pragmtica diz respeito relao dos signoscom seus usurios e a como estes os interpretam e os empregam. Essa distino e adefinio de cada uma dessas reas tiveram uma grande influncia nos estudossobre a linguagem no pensamento contemporneo, no s na filosofia, mas tam-bm na lingstica e na teoria da comunicao.

    A sintaxe e a semntica tiveram um maior desenvolvimento terico, comoveremos em seguida, por uma maior facilidade de sistematizao e por terem umgrau maior de abstrao. A sintaxe diz respeito s relaes entre os signos comounidades bsicas no processo de formao de complexos como proposies, abstra-o feita do significado desses signos. Trata-se, assim, de uma cincia formal, umavez que estabelece as regras de formao das proposies a partir das possibilida-des de combinao entre os signos.

    A semntica o estudo do significado dos signos lingsticos, de seu modode relao com os objetos a que se referem e do valor de verdade das sentenas emque se articulam e que se referem a fatos na realidade; diz respeito, portanto, aocontedo significativo dos signos.

    Pode-se dizer que, no caso das sentenas de uma determinada lngua, a sin-taxe um pressuposto da semntica, uma vez que se os signos no estiverem corre-tamente articulados, a sentena ela prpria no ter significado nem valor de ver-

    3 Mead, que trabalhou com sociologia e psicologia social, enfatiza principalmente a influncia da cultura e davida social na estruturao da subjetividade. Ver a este respeito seu clssico: The Problem of Society: How WeBecome Selves, in Blount (1974).

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    dade, no poder descrever adequadamente fatos ocorridos, no sendo, portan-to, nem verdadeira nem falsa, mas sem sentido. No famoso exemplo de Chomsky 4,Idias verdes sem cor dormem furiosamente, temos um caso de falha semntica,de sentena sem significado, embora os signos individualmente tenham significadoe a combinao esteja sintaticamente correta. Contudo, a combinao no produz

    uma sentena dotada de significado porque os termos no esto corretamentecombinados do ponto de vista de seus significados.

    A pragmtica, por sua vez, diz respeito linguagem em uso, em diferentescontextos, tal como utilizada por seus usurios para a comunicao. , portanto, odomnio da variao e da heterogeneidade, devido diversidade do uso e multipli-cidade de contextos. por este motivo que Carnap, por exemplo, considera a prag-mtica um domnio da linguagem de difcil anlise, uma vez que qualquer tentativadeste tipo envolveria uma abstrao dessa diversidade e dessa multiplicidade de uso,em busca de elementos comuns que permitissem um tratamento mais terico e siste-mtico. Na verdade, a pragmtica consiste na nossa experincia concreta da lingua-gem, nos fenmenos lingsticos com que efetivamente lidamos; contudo, o estudoda linguagem parece pressupor a passagem deste nvel concreto da experincia dalinguagem para a semntica e a sintaxe, que envolvem nveis gradativamente maiores

    de generalizao. Assim, a semntica faz abstrao de variaes de uso especficas econsidera o significado dos termos independentemente dos usos. A sintaxe faz abs-trao do significado e considera apenas as classes ou categorias de signos paraexaminar as regras formais segundo as quais se relacionam.

    O problema da anlise pragmtica da linguagem

    De acordo com Carnap, a linguagem tal como utilizada concretamente,enquanto comunicao, no poderia ser objeto de uma anlise terica5. Emboraseja usada sempre em contextos particulares e para fins especficos, a linguagem spoderia ser analisada em um sentido filosfico ou cientfico atravs de sucessivosnveis de abstrao, da pragmtica para a semntica e da semntica para a sintaxe,

    ou seja, do nvel do uso concreto pelos falantes da lngua para o nvel da relaodos signos com o que significam e deste, por sua vez, para o da relao dos signosentre si. De acordo com Carnap, o uso da linguagem em situaes concretas pordemais diversificado, complexo e sujeito a variaes, o que o impediria de ser objetode uma anlise cientfica ou filosfica. Nada de cientificamente relevante poderiaser concludo com base na anlise de casos particulares. Desde a discusso sobre oconhecimento na Metafsica e nosSegundos Analticos de Aristteles, a cincia temsido definida como conhecimento de universais, donde a busca da abstrao e dageneralidade. nisso que consiste o que denominamos aqui deproblema de Carnap:ou seja, possvel analisar a linguagem de um ponto de vista pragmtico? Podemosdizer que, para Carnap, a resposta seria negativa. Em seu clssico The Logical Syntaxof Language (1937), Carnap restringe sua anlise a linguagens em que no h de-pendncia contextual, ou melhor, na terminologia que utiliza, intertextual. Issosignifica que elementos no-lingsticos, ou seja, fatores como tempo, lugar e atitu-des dos falantes, no precisam ser considerados nesse tipo de anlise.

    Como vimos anteriormente, de acordo com essa concepo uma anlise dalinguagem em um sentido mais sistemtico e terico se d apenas na passagempara os planos da semntica e da sintaxe. Examinaremos em seguida, contudo,

    4 EmSyntactic Structures (1957); no original: Colorless green ideas sleep furiously.5 Posteriormente, Carnap admite a possibilidade de uma pragmtica pura, mas no chega a formularnenhuma proposta nesta direo. A propsito da discusso sobre a pragmtica em Carnap e de sua relaocom a semntica e a sintaxe, ver Levinson (1983, 1.2) Defining pragmatics. Ver tambm Szabo (2004).

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    algumas tentativas dentro da filosofia da linguagem contempornea de dar umaresposta positiva ao problema de Carnap, levando em conta os desenvolvimentosmais recentes dessas propostas. Pretendo defender, portanto, no s uma concep-o pragmtica de linguagem, mas tambm propor que se pode realizar uma an-lise filosfica da linguagem em um sentido pragmtico. Isto , as duas concepes

    devem ser complementares. porque a linguagem um fenmeno pragmtico quesua anlise filosfica deve ser realizada atravs de um mtodo pragmtico. Porm,no que precisamente consiste este mtodo de anlise pragmtica o que devemosainda explicitar.

    possvel distinguir duas linhas principais de desenvolvimento da pragmticana filosofia da linguagem. A primeira, que podemos denominar de contextualista,considera o contexto como noo central na anlise pragmtica, examinando ascaractersticas das situaes de uso que incidem diretamente na determinao dosignificado das expresses lingsticas. Trata-se, assim, basicamente de uma semn-tica acrescida da considerao do contexto quando isso necessrio para a deter-minao do significado de expresses lingsticas de certo tipo.

    A segunda assume como caracterstica central da pragmtica a concepo dalinguagem como ao ou realizao de atos. De acordo com essa concepo, dizer

    fazer; portanto, a determinao do significado s pode ser feita a partir daconsiderao do ato que est sendo realizado quando essas expresses so proferi-das e das regras que tornam possvel a realizao desses atos.

    Esta concepo pode ser, por sua vez, dividida em duas tendncias. A primei-ra, representada pelo assim chamado segundo Wittgenstein, ou seja, o Wittgensteindas Investigaes filosficas (1999)6, adota uma concepo assistemticade trata-mento da linguagem e da questo do significado. No possvel sistematizar essaanlise porque isso levaria perda do que mais caracterstico da linguagem: suadiversidade, sua multiplicidade. De certa forma, Wittgenstein concorda com Carnapneste sentido: no possvel tratar o que totalmente heterogneo de modoterico e sistemtico; porm, no v isso como um problema, mas exatamente comoo que deve ser levado em conta quando se analisa a linguagem de um ponto devista filosfico. Ou seja, se no possvel sistematizar a anlise da linguagem, isso

    no vem a ser necessariamente uma dificuldade ou limitao, j que tambm noseria preciso para fins da elucidao filosfica.

    Contudo, foi Austin que introduziu o que podemos denominar concepoperformativa de linguagem. Sua proposta de sistematizao consiste em manterque a linguagem em uso pode ser tratada de modo sistemtico desde que sejamadotadas as categorias adequadas para isso; ou seja, desde que a linguagem sejatratada como uma forma de ao e no apenas de representao do real ou dedescrio de fatos no mundo. Veremos, assim, como para Austin a sistematizaono s possvel, como necessria para o tratamento dos elementos implcitos eindiretos na realizao dos atos de fala, ou seja, para a reconstruo da fora comque o ato est sendo realizado.

    O contextualismo

    Chamo aqui de contextualismo a concepo de pragmtica como extensoda semntica, isto , como dizendo respeito especificamente ao que Yehoshua Bar-Hillel (1982) chamou de dixis ou de expresses indiciais. Essas expresses dependemdo contexto para ter significado, sem o que no podem ter a sua referncia determi-

    6 Isto corresponde ao pensamento de Wittgenstein a partir da dcada de 1930. As Investigaes comearama ser redigidas nos anos 1940, permanecendo inacabadas e sendo publicadas postumamente em 1952.

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    nada. Por exemplo: Ele no veio aqui ontem. A compreenso dessa sentena impossvel sem a determinao da referncia das palavras ele, aqui, ontem, oque s pode ser feito levando-se em conta o contexto especfico em que a sentenafoi utilizada. Pronomes pessoais, demonstrativos, advrbios de tempo e de lugar seri-am tipicamente diticos ou expresses indiciais. Nessa acepo, a pragmtica conside-

    raria a contribuio dessas expresses lingsticas e a necessidade de interpret-las deacordo com o contexto para estabelecer o significado das sentenas em que soempregadas. Posteriormente, o papel do contexto na constituio do significadoser ampliado, estendendo-se a outras expresses da linguagem.

    Segundo essa concepo, a pragmtica diz respeito determinao do signi-ficado de sentenas quando isso depende basicamente do contexto, ou seja, comodissemos acima, de elementos extralingsticos. Da se origina a viso segundo aqual contexto a categoria dominante em uma anlise pragmtica.

    A concepo performativa

    Proponho aqui o termo performativo para denominar em geral as concep-es de pragmtica que consideram o significado como determinado pelo uso eacrescentam considerao do contexto a idia de que a linguagem basicamenteuma forma de realizao de atos e no apenas de descrio do real, sendo que adescrio do real pode ser ela prpria um ato de um determinado tipo, por exem-plo, o ato de dar uma informao. Vamos nos concentrar nesta concepo comoalternativa ao contextualismo por considerarmos que ela apresenta efetivamente odesenvolvimento de uma filosofia pragmtica da linguagem, no s por consistirnuma concepo de linguagem em um sentido mais amplo, enquanto a visocontextualista restrita a determinados tipos de expresses lingsticas apenas,como por considerar que a linguagem deve ser entendida como um modo peloqual agimos, atribuindo, assim, ao conceito de ao um papel central.

    Wittgenstein e os jogos de linguagem

    Tomamos as Investigaes filosficas (1999)[1952] de Ludwig Wittgenstein(1889-1951) como a primeira concepo na filosofia analtica da linguagem particu-larmente representativa de uma viso pragmtica no sentido mais bsico que estamospropondo.

    Isso se deve sua famosa tese de que o significado de uma palavra o seuuso em um determinado contexto (Investigaes filosficas, 43, 432), assim como noo dejogo de linguagem (Investigaes filosficas, 7), atravs da qual definea natureza e a funo da linguagem. Segundo Wittgenstein, o significado no deveser entendido como algo de fixo e determinado, como uma propriedade inerente palavra, mas sim como a funo que as expresses lingsticas exercem em um con-texto especfico e com objetivos especficos. O significado pode, por conseguinte,variar dependendo do contexto em que a palavra utilizada e do propsito deste

    uso. As palavras no so utilizadas primordialmente para descrever a realidade,como a semntica tradicional parecia supor, mas para realizar algum objetivo, comofazer um pedido, dar uma ordem, fazer uma saudao, agradecer, contar anedo-tas, etc. (Investigaes filosficas, 23). So inmeros esses usos, e no h por queprivilegiar um sobre o outro j que tudo depende dos objetivos especficos de quemusa a linguagem. A mesma palavra pode, assim, participar de diferentes contextoscom diferentes significados. So esses diferentes contextos de uso, com seus objeti-vos especficos, que Wittgenstein caracteriza comojogos de linguagem. Essa noovisa dar conta de que as expresses lingsticas so sempre utilizadas em um contex-

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    to de interao entre falante e ouvinte, que as empregam com um objetivo deter-minado. A linguagem sempre comunicao, e a determinao do significado deuma palavra ou expresso depende da interpretao do objetivo de seu uso nessescontextos, no sendo, portanto, determinada de modo definitivo. No podemos,assim, nunca generalizar, definindo como que uma entidade abstrata que seria o

    significado da palavra. Essa impossibilidade de generalizao e a nfase na conside-rao do contexto so alguns dos traos fundamentais que levam a considerar aconcepo wittgensteiniana como pragmtica.

    A anlise do termo jogo nas Investigaes filosficas ( 66-70) ilustrativadessa concepo de linguagem e de seu mtodo. O que haveria em comum entre ouso desse termo para designar coisas to diferentes como o jogo de xadrez e o jogode futebol, o pquer e o tnis? Empregamos esse termo em relao a jogos compe-titivos e recreativos, a jogos solitrios, como a pacincia, ou em equipe, como obasquete. E talvez no devamos buscar algo comum entre todos esses usos, comouma essncia ou caracterstica bsica definidora que todos devem compartilhar,mas possvel que haja apenas alguns traos caractersticos que nos permitem apro-ximar esses usos, sendo que alguns esto mais prximos, outros mais distantes.Wittgenstein usa, para explicar isso, a imagem dasemelhana de famlia (Investiga-

    es filosficas, 67), segundo a qual os membros de uma mesma famlia se pare-cem, sem que haja necessariamente algo comum a todos. Podemos perceber essasemelhana em um retrato de grupo, mas talvez no quando olhamos para cadaindivduo separadamente. O carter genrico do significado seria como uma seme-lhana de famlia. A metfora do tecido tambm utilizada nesse sentido na mesmapassagem das Investigaes. A variedade de usos forma como que um tecido emque os diferentes fios se entrelaam para formar o todo, mas no h um nico fioque percorre o tecido.

    Com isso Wittgenstein pretende superar uma das dificuldades apontadasanteriormente. Se considerarmos cada jogo de linguagem isoladamente ou tratar-mos cada jogo como absolutamente autnomo, camos na armadilha de tomarcada caso como completamente diferente dos demais, e a impossibilidade de gene-ralizao nos levaria a uma atomizao da linguagem em que no teramos como

    estabelecer relaes entre os jogos. Por outro lado, devemos tambm, segundo aconcepo wittgensteiniana, evitar a suposio da existncia de entidades abstra-tas de natureza genrica como o significado, o jogo, a natureza da lingua-gem. Mais do que uma analogia, a noo de semelhana de famlia nos d ummodo de lidar com a necessidade de generalizar, sem nos levar a supor a existnciade entidades de natureza genrica.

    Wittgenstein considera, assim, que a anlise filosfica deve trazer as palavrasdo plano metafsico para o uso comum ( Investigaes filosficas, 161).

    Quando os filsofos usam uma palavra saber, ser, objeto, eu, pro-posio, nome e procuram apreender a essncia da coisa, deve-se perguntar:essa palavra usada de fato desse modo na lngua em que ela existe? (Investigaesfilosficas, 116).

    Os problemas filosficos devem ser elucidados levando-se em conta os usos

    das palavras e expresses em seus respectivos contextos. Dessa forma a maioria dosproblemas tradicionais no seriam resolvidos, mas dissolvidos. Quando se examina ouso concreto das expresses, percebe-se que, em grande parte dos casos, os equ-vocos resultam de confuses, falsas analogias, semelhanas superficiais, incapacida-de de perceber distines. porque uso as expresses Tenho uma nota de 10 reaisno meu bolso e Tenho uma idia em minha mente que sou levado a crer que amente um espao interior que tem como contedo idias, tal como o bolso podeconter uma nota. Uma anlise do emprego do verbo ter nesses casos revela,contudo, que se trata de usos inteiramente distintos do mesmo verbo. Um exame

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    dos diferentes contextos, dos jogos de linguagem, e do uso das palavras que se fazneles revela essas distines e permite o esclarecimento dos problemas.

    Os jogos so jogados de acordo com regras que podem ser mais ou menosexplcitas, mais ou menos formais. Do mesmo modo, os jogos de linguagem possu-em regras que definem o que ou no vlido, segundo as quais os objetivos podem

    ser alcanados. So regras de uso, regras pragmticas ( Investigaes filosficas, 54, 82-88, 567), constitutivas dos jogos, tornando possveis os atos que aqueles que

    jogam realizam. Analisar o significado das palavras consiste em situ-las nos jogosem que so empregadas, consiste em perguntarmos o que os participantes nos

    jogos fazem com essas palavras, isto , consiste em mapearmos as regras segundoas quais jogam, segundo as quais realizam lances vlidos nesses jogos.

    As regras tm, portanto, dois aspectos relevantes do ponto de vista destetipo de anlise pragmtica. So convencionais no sentido de que representam umaregularidade e se originam de hbitos e costumes. E possuem tambm um papellegitimador, ou seja, validam determinadas prticas, enquanto prticas que estode acordo com as regras. Este o sentido de regra de reconhecimento, ou regrasecundria, empregado por H. L. A. Hart (1998)7.

    Austin e os atos de fala8

    Pretendo mostrar que a Teoria dos Atos de fala , dentre as principais corren-tes contemporneas da filosofia da linguagem, a que melhor representa a concep-o pragmtica de linguagem. Mas ser mesmo?9

    Pode-se dizer que a Teoria dos Atos de Fala foi apenas esboada em How toDo Things with Words e em alguns outros artigos (tais como PerformativeUtterances e Performatif/Constatif) em que Austin formulou sua proposta origi-nal. O filsofo faleceu em 1960, e seu livro contendo essencialmente as notas paraas conferncias William James feitas em Harvard em 1955, baseadas, por sua vez, emnotas de conferncias feitas anteriormente em Oxford, foi publicado postumamen-te em 1962, sem ter jamais passado por uma reviso definitiva pelo autor.

    Contudo, fica claro desde o incio que seu objetivo primordial nesta obra noconsistia na apresentao de uma concepo terica sobre a natureza e a funoda linguagem. No pretendia descrever a natureza da linguagem, mas, ao contr-rio, propor um mtodo de anlise de problemas filosficos atravs do exame do usoda linguagem entendido como forma de ao, isto , como modo de se realizaratos por meio de palavras. Na ltima conferncia (12.), Austin afirma que o ato defala total na situao de fala total o nico fenmeno real que, em ltima anlise,pretendemos elucidar (1962, p. 147). Isso deixa claro que, para Austin, a tarefa dafilosofia da linguagem consistia na elucidao das diferentes formas de uso da lin-guagem, sendo que esta uma das caractersticas da teoria, como veremos, que seperde, em grande parte, em seus desenvolvimentos posteriores. Nas observaesfinais desta conferncia, Austin enfatiza a necessidade de aplicar a teoria a proble-mas filosficos.

    Apesar de inicialmente formulada por Austin como um mtodo de anlise deproblemas filosficos atravs da linguagem, a Teoria dos Atos de Fala desenvolveu-se em duas direes que se afastaram em grande parte do objetivo primordial deseu criador: por um lado, dando origem a uma anlise formal da linguagem10 e, por

    7 Esta concepo de regras de Hart levada adiante por Schauer (1998).8 Esta apresentao da teoria dos atos de fala retoma e desenvolve discusses que se encontram em Marcondes(2000; 2003; 2005a;2005b).9 Obras recentes, como Soames (2003) e Brandon (1994), do muito pouco destaque a esta teoria.10 Por exemplo, a lgica ilocucionria de Searle e Vanderveken (1985).

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    outro, tendo grande influncia na lingstica, sobretudo aplicada, sendo tambmamplamente adotada pelas cincias humanas e sociais. Conceitos comoperformativoe fora ilocucionria tornaram-se correntes em reas como lingstica, psicologia,cincias sociais e teoria da comunicao.

    Mesmo assim, a Teoria dos Atos de Fala pode ser considerada como uma das

    principais correntes da filosofia da linguagem contempornea no que diz respeito anlise pragmtica da linguagem, como pretendo mostrar. A concepo bsica deAustin consiste em manter que os constituintes elementares do uso e da compreen-so da linguagem natural so atos de fala tendo condies de sucesso e de felicida-de para sua realizao e no proposies possuindo condies de verdade, tal como mantido pelas teorias do significado da vertente lgica da filosofia da linguagemdo incio do sculo XX, representada, por exemplo, por Frege, Russell e peloWittgenstein do Tractatus.

    Austin (1962, 1a. Conferncia) parte da hoje famosa distino entreconstatativos eperformativos, isto , entre o uso de sentenas para descrever fatose eventos e sentenas que so usadas para realizar (to perform) algo, e no paradescrever ou relatar. Um exemplo de constatativo tpico Maria est brincando napraa e, de performativo, Prometo que lhe pagarei amanh. Enquanto

    constatativos podem ser verdadeiros ou falsos em relao aos fatos que descrevem,um performativo no realmente nem verdadeiro nem falso, uma vez que nodescreve um fato, mas deve ser considerado como bem ou mal sucedido, depen-dendo das circunstncias e conseqncias da realizao do ato. Austin logo perce-beu que esta dicotomia era inadequada, uma vez que o constatativo tem tambmuma dimenso performativa, isto , descrever tambm um ato que realizamos epode ser bem ou mal sucedido; assim como os performativos tm uma dimensoconstatativa, j que mantm uma relao com um fato; tomando-se o exemploacima, o fato de eu lhe ter ou no pago no dia seguinte. Prope, portanto, que suaconcepo do uso da linguagem como uma forma de agir seja estendida para todaa linguagem, considerando o ato de fala como a unidade bsica de significao etomando-o, por sua vez, como constitudo por trs dimenses integradas ou articu-ladas: respectivamente os atos locucionrio, ilocucionrio eperlocucionrio. O ato

    locucionrio consiste na dimenso lingstica propriamente dita, isto , nas palavrase sentenas empregadas de acordo com as regras gramaticais aplicveis, bem comodotadas de sentido e referncia. O ato ilocucionrio, que pode ser considerado oncleo do ato de fala, tem como aspecto fundamental a fora ilocucionria. Afora consiste no performativo propriamente dito, constituindo o tipo de ato reali-zado. Quando digo Prometo que lhe pagarei amanh, meu proferimento (nooriginal, utterance) do verbo prometer constitui o prprio ato de prometer; nose trata de uma descrio de minhas intenes ou de meu estado mental. Ao profe-rir a sentena eu realizo a promessa. A fora do meu ato a da promessa. Portanto,prometer um verbo performativo, e os verbos performativos geralmente des-crevem as foras ilocucionrias dos atos realizados. claro que eu posso fazer umapromessa sem usar explicitamente o verbo prometer, dizendo, por exemplo, Eulhe pagarei amanh, e isso contaria como uma promessa dadas as circunstncias

    adequadas. Por outro lado, poderia contar tambm como uma ameaa em circuns-tncias diferentes. Isso revela que atos ilocucionrios podem ser realizados comverbos performativos implcitos e, ainda assim, ter a fora que pretendem ter. Porisso, pode-se dizer que a realizao de um ato de fala com uma determinada foravai alm de seus elementos lingsticos propriamente ditos. E na linguagem ordin-ria este um fenmeno bastante comum. Um dos objetivos principais da anlisedos atos de fala consiste precisamente em tornar explcita a fora do ato realizado.

    O ato perlocucionrio, que tem recebido menos ateno dos especialistas,foi definido por Austin (1962, p. 101) como caracterizando-se pelas conseqncias

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    do ato em relao aos sentimentos, pensamentos e aes da dos ouvintes, ou dofalante, ou de outras pessoas, e pode ter sido realizado com o objetivo, intenoou propsito de gerar essas conseqncias.

    Austin caracteriza, em seguida, as condies pressupostas para a realizaodesses atos, que consistem em uma combinao de intenes do falante e conven-

    es sociais com diferentes graus de formalidade. A satisfao dessas condies ocritrio do sucesso ou fracasso da tentativa de realizao do ato. As intenes soconsideradas como psicolgicas e, portanto, subjetivas; embora, em ltima anlise,se originem de prticas sociais. Wittgenstein dizia que no se poderia ter a intenode jogar xadrez se o xadrez no existisse (Investigaes filosficas, 205, 337).

    As convenes so de natureza social e podem ser mais formais, por exem-plo, no caso de um tribunal, ou informais, no caso de um grupo de amigos discutin-do o resultado da final do campeonato de futebol. Mas, em ambos os casos, asconvenes esto presentes, e os falantes esto seguindo regras, normas, procedi-mentos habituais, com variados graus de formalidade, porm constitutivos de suasformas de conduta, enquanto elementos bsicos do contexto de realizao dosatos. Com freqncia, especialmente em circunstncias informais, essas regras soimplcitas, mas esto sendo aplicadas, e isso se torna evidente quando so violadas.

    Adoutrina das infelicidades proposta por Austin (1962,2.Conferncia) precisa-mente uma maneira de lidar com esse aspecto dos atos de fala. Uma vez que omapeamento ou a explicitao completa das regras pode ser uma tarefa inexeqvel,a anlise dos motivos pelos quais alguns atos falham, ou so infelizes, reveladoradas regras que foram rompidas nesses casos e pode, portanto, ser uma boa formade torn-las evidentes.

    Na ltima conferncia de How to Do Things with Words (Austin, 1962), temosa seguinte classificao das foras ilocucionrias dos proferimentos em cinco tiposgerais: 1) veredictivos; 2) exercitivos; 3) compromissivos ou comissivos, 4) comporta-mentais, 5) expositivos. Esta classificao proposta como provisria, e Austin procu-ra tornar a definio de cada classe mais clara por meio de exemplos. Seu objetivocom isso parece ser a identificao do tipo de ato realizado, uma vez que, como vimosacima, nem sempre um performativo explcito empregado, e a anlise dependeria,

    assim, da identificao do ato para a reconstruo das regras que tornam possvel asua realizao. Isso revela que j na formulao inicial de Austin a preocupao comum mtodo de explicitao de elementos implcitos um dos objetivos centrais dateoria e uma das principais caractersticas de sua viso pragmtica.

    Desdobramentos da Teoria dos Atos de Fala

    Austin deixou a teoria apenas esboada, ou formulada como um programa,segundo suas prprias palavras; contudo, a necessidade de desenvolv-la foi logosentida, sobretudo quando se percebeu sua importncia como possibilidade de tra-tar de forma sistemtica os aspectos pragmticos da linguagem, conforme foi ditoacima. Vamos examinar aqui, ainda que brevemente, alguns aspectos do conflitoentre uma certa tendncia atual em desenvolver a teoria na direo de seus funda-mentos semnticos e o que deveria ser uma perspectiva genuinamente pragmtica.

    Temos, em primeiro lugar, a crtica de que falta teoria uma viso dialgica,uma vez que a noo de ato de fala excessivamente centrada no falante individu-al, o que pode levar no-considerao do contexto de uso, do jogo de lingua-gem, para usarmos a terminologia de Wittgenstein. Contudo, j em suas versesiniciais as definies do ato de fala indicam a necessidade de considerao dosaspectos interacionais de sua realizao, como, por exemplo, a natureza contratualdesses atos, enfatizada (Austin, 1962, p. 10) quando se mostra que proferir um ato

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    de fala nas circunstncias adequadas equivale a assumir um compromisso com oouvinte: Minha palavra meu compromisso. , assim, perfeitamente possvel de-senvolver a Teoria dos Atos de Fala precisamente desta forma, e isso tem sido feitorecentemente por autores como Vanderveken (1999) e Jacques (1979; 1985). Mes-mo anteriormente, a adoo da teoria de Grice (1989) sobre o significado do falan-

    te para complementar a Teoria dos Atos de Fala indica claramente este tipo depreocupao, uma vez que a teoria de Grice leva em conta centralmente o ouvintee o dilogo realizado, na medida em que prope recursos para a interpretao peloouvinte dos objetivos do falante ao fazer seu proferimento.

    Uma questo fundamental para o desenvolvimento da teoria emergiu doreconhecimento da importncia da classificao dos atos ilocucionrios propostapor Austin na ltima conferncia de How to Do Things with Words. O primeiro atentar reelaborar esta classificao foi Searle emSpeech Acts (1969), desenvolvendosua prpria classificao alternativa em A Taxonomy of Illocutionary Acts (1979).Searle prope cinco tipos: assertivo, compromissivo, diretivo, declarativo e expressi-vo, em substituio aos cinco propostos inicialmente por Austin, argumentandoque falta na proposta deste filsofo um princpio, ou conjunto de princpios, combase nos quais a classificao construda (1979, p. 10). Alm disso, Searle define

    tambm sete componentes da fora ilocucionria em termos dos quais os tipospropostos so definidos11.

    A formulao desses componentes resulta do desenvolvimento de uma idiainicial de Searle (1969) de que o ato de fala o resultado da combinao de umaproposiop dotada de um contedo semntico determinado que estabelece suarelao com os fatos no mundo, podendo ser, portanto, verdadeira ou falsa, e dafora ilocucionria fque se acrescenta proposio, levando realizao do ato defala. Esta relao representada formalmente pela frmula f(p). Temos, assim, oexemplo da assero: A porta est aberta, que possui o mesmo contedoproposicional que o imperativo, Abra a porta!, a interrogao, A porta est aber-ta?, o condicional Se a porta estivesse aberta ..., sendo que esses proferimentospossuem diferentes foras ilocucionrias acrescentadas ao mesmo contedo.

    Searle desenvolve, assim, a anlise dos atos de fala em uma nova direo,

    apresentando uma verso mais elaborada da classificao das foras ilocucionriase de seus componentes. Em 1985, chegou mesmo a publicar com Daniel Vandervekenuma proposta de uma lgica ilocucionria como um sistema formal, levando essasidias adiante12.

    A questo crucial, contudo, parece ser: Qual o papel da classificao outaxonomia das foras ilocucionrias para o desenvolvimento da Teoria dos Atos deFala e para a metodologia da anlise pragmtica da linguagem?

    Quando Austin fez sua proposta provisria de classificao de forasilocucionrias (1962, p. 149) parece claro que esta tipologia deveria servir para aidentificao da fora ilocucionria do proferimento nos casos em que o performativono explcito, bem como nos casos em que o verbo performativo e a forailocucionria no coincidem exatamente, isto , quando o performativo no des-creve adequadamente a fora ilocucionria do ato. Por exemplo, Declaro aberta a

    sesso o proferimento de um performativo explcito, declarar no sentido insti-tucional, em que o ato realizado tem a fora ilocucionria da declarao e a sessoencontra-se aberta a partir deste proferimento. Contudo, quando o presidente da

    11 So os seguintes: 1) objetivo ilocucionrio (illocutionary point), 2) grau de fora do objetivo ilocucionrio, 3)modo de realizao, 4) condio do contedo proposicional, 5) condio preparatria, 6) condio de sinceridade,7) grau de fora da condio de sinceridade. Esses elementos funcionam como princpios ou critrios para aclassificao de um ato como de um determinado tipo, exatamente o que Searle alega faltar em Austin.Posteriormente, Searle procura simplificar esses critrios, p. ex. em Searle e Vanderveken (1985).12 Essa proposta foi desenvolvida posteriormente por Vanderveken (1990).

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    sesso profere Est aberta a sesso, mesmo sem utilizar o verbo declarar, operformativo foi realizado. E isso diferente do proferimento de algum dentre osouvintes que comenta com o vizinho: Est aberta a sesso, chamando a atenodele para o ocorrido. No primeiro caso, do presidente da sesso, trata-se de umexercitivo, no outro caso, temos um expositivo. A anlise dessas diferenas depende

    no s de uma considerao da sentena proferida e do significado dos termos eexpresses utilizados, mas tambm da identificao de elementos contextuais, comoo papel do falante no contexto, a existncia de normas e procedimentos e de insti-tuies que estabelecem essas normas e procedimentos, de elementos contextuaisportanto, assim como das intenes ou objetivos dos falantes e ouvintes. Intenese elementos subjetivos s podem ser identificados, por sua vez, com base no que proferido explicitamente e no que indicado por meio do contexto. Intenes so,assim, sempre na verdade apenas atribudas a um falante. Contudo, esses elemen-tos contextuais muitas vezes permanecem implcitos ou so apenas pressupostos.

    Como vimos acima, um dos principais objetivos desta linha de anlise dos atosde fala consiste em determinar as condies ou, melhor dizendo, as pressuposiesda realizao do ato de fala. A anlise dessas pressuposies desenvolve-se em dire-o a uma tentativa de se estabelecer as condies formais (esta expresso de

    Vanderveken, 1990), que devem ser satisfeitas para a realizao bem-sucedida doato de fala. O prprio Searle, no artigo citado acima, refere-se aos elementos sint-ticos destes atos. So aspectos como estes que parecem apontar para a direooposta de uma anlise pragmtica do uso da linguagem. caracterstico destatendncia, por exemplo, que Vanderveken (1990) se refira aos fundamentos semn-ticos dos atos de fala. preciso, contudo, considerar a necessidade de um desenvol-vimento pragmtico da teoria, complementando essas anlises tanto no aspectoformal quanto semntico, levando em conta, adicionalmente, os elementos queexplicam os efeitos e conseqncias dos atos de fala, assim como os critrios desucesso desses atos, o que, ento, caracterizaria essa anlise como genuinamentepragmtica. Se uma anlise de pressuposies aponta para aspectos formais e se-mnticos, uma anlise de efeitos, conseqncias e resultados aponta para aspectospragmticos. Portanto, depende muito mais da considerao de elementos

    contextuais, de aspectos perlocucionrios, da comparao entre objetivo declaradoe realizao efetiva, do que da considerao de aspectos estritamente lingsticos,o que parece ser o caso em anlises formais e semnticas. Proponho, assim, queeste caminho evite uma possvel semantizao da anlise dos atos de fala.

    necessrio, portanto, ter como objeto de anlise a linguagem tal como efetivamente utilizada. Tem sido freqentemente apontado por crticos que a Teo-ria dos Atos de Fala, em conflito com sua prpria concepo da linguagem em usoe da anlise da linguagem como forma de ao, tem se concentrado em casos queesto muito distantes do uso concreto e dos fenmenos lingsticos reais. O usoefetivo da linguagem na vida cotidiana muito menos estruturado, muito maisfragmentado do que se observa nos casos e exemplos considerados pela teoria.Este uso muito mais indireto, oblquo e incompleto do que a teoria parece terreconhecido. Isso equivale a dizer que, em larga escala, a Teoria dos Atos de Fala

    estaria formulando uma concepo idealizada de linguagem. No uso concreto, ele-mentos implcitos tm um papel muito maior do que se admite. Alm disso, estateoria, ao propor um mtodo de anlise da linguagem, parece restringir-se a carac-tersticas manifestas dos atos de fala, parece ater-se descrio dessas caractersti-cas. Seria, ento, necessrio ter disposio ferramentas para uma anlise maisprofunda que leve em conta elementos implcitos, incluindo o carter indireto decertos atos e de certos modos de influenciar a ao do interlocutor, tais como amanipulao, o preconceito, assim como outras caractersticas oblquas e no de-claradas que, apesar disso, so determinantes da fora ilocucionria desses atos,

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    assim como de seus efeitos e conseqncias. Trata-se do que chamei de action-guiding language (Marcondes, 1981), ou linguagem diretiva.

    Mas como possvel, nesses casos, que aquilo que no se encontra explicita-mente formulado, ou que no diretamente proferido, possa ser constitutivo dafora dos atos de fala realizados? Como pode nossa anlise dos atos de fala dar

    conta desses elementos implcitos que, no obstante, reconhecemos no s comopresentes, mas tambm como determinantes da ao realizada e de seus efeitos econseqncias?

    Essa questo aponta para a necessidade de formulao de um mtodo deanlise que possa tornar explcitos esses elementos implcitos da ao lingstica.Teramos, com isso, a proposta de uma concepo pragmtica de um mtodo crticoou reconstrutivo.

    O conceito de ato de fala indireto (Searle, 1979) pode nos oferecer elemen-tos para isso, ao mostrar que os atos de fala so, em sua maior parte, indiretos ouimplcitos, e isso ocorre simplesmente porque no necessrio que sejam explcitos.O exemplo dado o de um colega que diz para o outro: H um bom filme nocinema da esquina, ao que o outro responde: Tenho prova de matemtica ama-nh. bvio que no caso do primeiro proferimento (explicitamente um declarati-

    vo, segundo a classificao de Searle), temos implicitamente um convite, que como o colega efetivamente interpreta este ato, respondendo, por sua vez, tam-bm por meio de um constatativo, ou declarativo explcito, de modo a recusar oconvite. Contudo, os performativos explcitos, Eu o convido... e Eu recuso o seuconvite..., em nenhum momento foram proferidos, e na verdade isso sequer pre-cisaria ocorrer. Como, ento, podem ser entendidos como possuindo a forailocucionria respectivamente do convite e da recusa? Funcionam basicamente atravsde elementos contextuais e de pressupostos compartilhados por falante e ouvinteenquanto participantes do mesmo jogo de linguagem e, desse modo, familiariza-dos com as crenas, hbitos e prticas um do outro. Uma anlise de casos deste tipodeve, portanto, levar necessariamente em conta o carter dialgico da troca lin-gstica realizada assim como os elementos contextuais compartilhados, o que vaialm daquilo que proferido explicitamente, isto , alm dos elementos estrita-

    mente lingsticos. Um dos principais desafios da Teoria dos Atos de Fala ao analisaro ato de fala total, numa perspectiva pragmtica como prope Austin consisteprecisamente em como delimitar as fronteiras deste ato de fala total, demarcar oque deve ser includo no contexto e explicitar quais os pressupostos compartilha-dos. O ato totalpode se projetar no futuro, se considerarmos seus efeitos e conse-qncias, assim como pode depender de fatores do passado remoto, se levarmosem conta seus pressupostos. A soluo para se evitar esse carter indeterminado doato de fala total consiste em reconhecer que toda anlise provisria e que, nofundo, a delimitao do(s) ato(s) depende muito das questes que servem de pontode partida para a anlise e do escopo desta anlise do que da possibilidade dedelimitao precisa do ato. Nenhuma anlise pode jamais pretender esgotar o atoem toda a sua complexidade, e o alcance da anlise depende do enfoque adotado.

    H, contudo, uma dificuldade adicional a ser considerada. O exemplo dado

    por Searle consiste em um caso em que os atos foram realizados de forma indireta,mas que podem, se necessrio, ser explicitados, ou seja, podem se realizar de formadireta. Caso no haja entendimento, um colega pode sempre pedir ao outro queseja mais explcito, e o outro provavelmente no ter maiores dificuldades em faz-lo. Porm, h muitos atos de fala indiretos que so realizados de modo indiretoporque, por diversas razes, devem permanecer indiretos, porque no podem tersua fora ilocucionria explicitada, caso contrrio fracassariam ou seriammalsucedidos. A ironia e a insinuao so exemplos disso, assim como a barganha13.Como tornar explcitos estes atos que resistem explicitao um dos principais

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    desafios que o mtodo deve enfrentar. Podemos dar algumas indicaes de comoisso pode ser feito, recorrendo mais uma vez teoria das implicaturas conversacionaisde Grice (1989), que fornece elementos sobre como analisar os pressupostos com-partilhados por falante e ouvinte. Mais do que uma forma de tratamento da ques-to sobre a relao entre intenes e convenes, como inicialmente se considerou,

    a teoria de Grice permite que se desenvolva um mtodo de anlise que reconstruaos elementos implcitos na realizao dos atos de fala, sobretudo dos atos indiretos.As mximas conversacionais de Grice (1989) permitem uma anlise das expectativasdo falante e do ouvinte em sua interao, mostrando como o entendimento mtuopode resultar deste tipo de troca lingstica.

    Retomando o programa formulado originalmente por Austin, proponho, assim,que a Teoria dos Atos de Fala, levando em conta as questes examinadas acima, sejatomada como paradigma de uma anlise genuinamente pragmtica da linguagemque deveria ter as seguintes caractersticas gerais:

    1) A noo de ao deve prevalecer sobre a de contexto, o que Wittgensteinj mostrara com seus jogos de linguagem, sendo que a principal razo disto queo ato de fala pode modificar os contextos, como ocorre, por exemplo, com diretivose exercitivos, tais como proibies e permisses.

    2) A metodologia de anlise deve levar em conta o carter fragmentrio,indireto, implcito e varivel da linguagem, desenvolvendo, contudo, uma viso maissistemtica do que a wittgensteiniana, que permita explicitar os elementos implci-tos quando a anlise o requer e identificar as foras ilocucionrias dos atos indire-tos e dos performativos implcitos. Para isso, a classificao de foras ilocucionriase seus critrios devem ser considerados em um sentido pragmtico na medida emque possam ser entendidos no como descrevendo a natureza ou a essncia dalinguagem, mas apenas como um instrumento para analisar seu funcionamento.

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    13 Em relao ao uso ideolgico da linguagem, que tambm pode ser considerado um uso indireto, mas queenvolve dificuldades adicionais, ver Marcondes (2000, cap. 7, Linguagem e ideologia).

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