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Maria Jose Dupre_O Cachorrinho Samba

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    Maria Jos Dupr

    paulista. Nasceu na Fazenda Bela Vista, municpio

    de Botucatu, prxima da divisa entre So Paulo e

    Paran.

    Aprendeu as primeiras letras com sua me e seu ir-

    mo, e em Botucatu estudou Msica e Pintura.

    Transferiu-se para So Paulo onde se formou pro-

    fessora pela Escola Normal Caetano de Campos. I-

    niciou-se na Literatura depois de se casar com o en-

    genheiro Leandro Dupr.

    Seu primeiro romance O Romance de Teresa

    Bernard foi publicado em 1941. Mas o que a

    tornou famosa foi ramos Seis, editado em 1943,

    traduzido para o espanhol, francs e sueco e trans-

    formado em filme pelo cinema argentino.

    Entre os diversos prmios que conquistou, desta-

    cam-se: Prmio Raul Pompia, da Academia Bra-

    sileira de Letras e o Jabuti, da Cmara Brasileira do

    Livro, com uma obra infantil.

    Maria Jos Dupr to importante escritora de a-

    dultos quanto de crianas. E, dois outros livros in-

    fantis de sua autoria:

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    O Cachorrinho Samba e A Mina de Ouro, figu-

    ram na 2 edio da publicao Best of the Best da

    Biblioteca Internacional da Juventude, Muni-

    que-Alemanha. Na principal biblioteca infantil de

    So Paulo, Maria Jos Dupr o segundo autor mais

    lido e procurado pelas crianas.

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    O CACHORRINHO SAMBA

    Ele chegou casa dos novos donos no ms de fevereiro,

    vspera de carnaval. Tinha dois meses de idade. O dono da casa

    colocou-o sobre a mesa para v-lo melhor e ele comeou a pu-

    lar. Algum disse:

    Parece que est danando, vejam um pouco.

    Ento ficou com o nome de Samba; todos os rdios toca-

    vam sambas esse ano.

    Samba aprendeu logo a distinguir o nome da dona: D.

    Maria. Como ele adorou D. Maria! Quando ouvia algum dizer

    esse nome ou ento a patroa, ou quando ouvia dizerem

    doutor, ou o patro, seu coraozinho pulava de contente

    e suas orelhas ficavam em p, espetadas; sabia que eram os

    donos, os que ele mais amava naquela casa.

    Na primeira noite, dormiu dentro de um caixote de ma-

    deira todo forrado de jornal. Bateu os pezinhos dentro do cai-

    xote, tentou sair uma poro de vezes, ficou de p e espichou o

    corpinho para ver se conseguia saltar para fora. Nada conseguiu,

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    ento resolveu chorar; gemeu e lastimou-se, achando falta do

    calor da me, do leite da me, de tudo.

    Algum correu e espiou para dentro do caixote, dizendo:

    Por que ser que ele est chorando?

    Deram-lhe novamente leite num pires com um pouco de

    acar; outra pessoa falou:

    Pode dar um pouquinho de miolo de po no leite, no

    faz mal.

    Ele comeu tudo com avidez e sentiu a barriga estufar; re-

    solveu ficar quieto num canto do caixote com medo de que a

    barriga arrebentasse. Ficou imvel, mal respirava de tanto me-

    do. Viu uma pessoa debruar-se e dizer:

    Est dormindo.

    Cobriram-no com um pedao de flanela; e logo mais co-

    meou a roncar. Dormiu durante algumas horas; quando acor-

    dou, tudo estava silencioso e escuro naquela casa. Pensou: Es-

    tarei morto? Ser que me abandonaram? Que ser de mim?

    Ps a boca no mundo; chorou, lamentou-se, ganiu: uau!

    uau! uau!

    Ouviu o barulhinho de uma porta que se abria, depois

    uma voz:

    O que isso? Por que est chorando desse jeito?

    Acenderam a luz e duas mos macias tiraram-no do cai-

    xote; parou imediatamente de gritar, percebeu que no estava

    morto nem abandonado.

    Coaram-lhe a cabea, alisaram-lhe o plo; de to contente,

    fechou os olhos. Sentiu uma grande felicidade; gostaria de ser

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    assim sempre acariciado, sempre amado. Mas qual! Puseram-no

    no caixote de novo, deram-lhe mais leite que ele no quis, dei-

    taram-no num cantinho, cobriram-no e a voz disse:

    Fique quieto! Duas horas da manh e voc gritando

    feito um danado!

    Apagaram a luz e fecharam a porta; estava outra vez so-

    zinho na escurido. Por que aquelas mos macias tinham ido

    embora? Queria dormir dentro daquelas mos, eram quentes e

    boas. Procurou ficar quieto e dormir, sabia que no devia cho-

    rar, mas foi impossvel.

    Minutos depois recomeou o choro, um choro sentido,

    aflito. Pensou: Daqui a pouco, aquelas mos vm me tirar ou-

    tra vez deste caixote, vou chorar bem alto.

    E chorou o mais alto que pde, mas no veio ningum.

    Ningum! Adormeceu outra vez de to cansado e, quando a-

    cordou, ouviu passos, vozes, viu a claridade por toda a parte.

    Era um novo dia.

    Espreguiou-se todo satisfeito; tinha dormido bem. Ouviu

    uns passos leves como se fossem de veludo, depois a porta se

    abriu e ele olhou; era a mesma pessoa que fora durante a noite

    ver o que ele tinha.

    Ouviu risos e vrios tons de vozes; duas ou trs pessoas

    estavam volta do caixote olhando para ele. Levaram-no para o

    jardim; comeou a andar de um lado para outro, espantado

    com tudo o que via. Viu grama, hera forrando o cho, flores de

    vrias cores; foi andando e cheirando tudo com ateno. Parou

    para ver as formiguinhas trabalharem; elas trabalhavam depres-

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    sa e sumiam dentro de um buraco entre a hera. Ele ficou o-

    lhando uma poro de tempo querendo descobrir para onde

    elas iam.

    Depois viu uma aranha pequenina tecendo um bordado

    cinzento entre uma roseira e um amor-perfeito; ficou olhando

    extasiado. Quando aproximou o focinho para cheirar a aranha,

    ela se moveu e ele levou um susto; quis correr, escorregou e

    caiu de pernas para cima.

    Algumas pessoas da casa que o estavam acompanhando,

    riram muito do tombo; comentavam tudo o que ele fazia. Ele

    levantou-se depressa e correu para outro ponto do jardim pro-

    curando outras novidades.

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    UM NOVO COMPANHEIRO

    Foi quando viu Whisky, o outro cachorro da casa. Era

    bem maior que ele, branco e peludo. Tinha um rabo grande

    feito pluma, sempre revirado para cima. Mais tarde ouviu dizer

    que Whisky era um vira-lata; mas achou-o simptico e quis pu-

    xar prosa com ele. O outro virou-lhe as costas sem dar a menor

    importncia. Samba lembrou-se que na noite da vspera, tinha

    visto Whisky deitado num colcho muito macio e no primeiro

    momento pensou que ele era sua me. Quando percebeu o en-

    gano, ficou muito desapontado. Quem sabe era por causa desse

    engano que Whisky no queria saber dele?

    Todas as vezes que se aproximava, o outro virava-lhe as

    costas e ia embora sem nem sequer olhar.

    Passou toda a manh brincando sozinho no jardim; quis

    pegar um par de borboletas que estava apostando corrida no ar;

    correu feito louco atrs delas, mas elas voaram mais alto e des-

    cansaram no jasmim-do-cabo, rindo por causa dele. Levantou o

    focinho e cheirou o jasmim-do-cabo. Ah! Que cheiro bom!

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    Viu um besouro em cima de uma folha; foi chegando bem

    devagarinho para examin-lo, queria saber o que era aquilo.

    Quando chegou bem perto, o besouro abriu as asas fazendo

    zum... E Samba saiu correndo de medo, tropeou e caiu em

    cima de um canteiro de violetas. Ficou ali um tempo sentindo

    o perfume gostoso.

    De repente, levantou o focinho e aspirou o ar vrias vezes;

    vinha um outro cheiro bom de um lugar da casa, era um cheiro

    diferente, de coisas fritas. Seu apetite despertou. Que seria? Foi

    correndo para o lugar de onde vinha o cheiro, tropeou, bateu

    com o focinho no cho, levantou outra vez e chegou, todo a-

    fobado, a uma porta onde havia dois degraus.

    A primeira coisa que viu foi Whisky, sentado nas pernas

    traseiras, dentro da cozinha, olhando com ateno uma pessoa

    que ia e vinha preparando o tal cheiro gostoso. Mais tarde a-

    prendeu o nome dessa pessoa; chamava-se Dermina; preparava

    quitutes deliciosos e quando o via chamava-o com voz cari-

    nhosa:

    Samba! Vem c, Samba!

    Desde o primeiro dia que viu Dermina gostou dela. Era

    boa e tambm gostava dele; punha-o no colo e acariciava-lhe a

    cabecinha.

    Tentou subir os degraus para entrar na cozinha. Mas qual!

    No conseguiu. Suas pernas eram curtas e no o ajudavam.

    Whisky olhou-o com ar de pouco caso e nem pensou em auxi-

    li-lo. Dermina comeou a rir dizendo:

    Suba, Sambinha! Suba!

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    Ele j estava ficando desapontado e querendo chorar

    quando apareceu outra pessoa da casa, uma menina chamada

    Vera. Logo que o viu, exclamou:

    Coitadinho! Ele no pode subir sozinho.

    Levantou-o no mesmo instante e colocou-o no cho da

    cozinha; ele tornou a aspirar o ar delicioso; pensou que fosse

    ganhar aquele cheiro bom de bife, mas deram-lhe apenas leite

    com miolo de po e um pouco de acar.

    Como estava com fome, devorou tudo sem pensar mais

    no bife que Dermina estava fritando.

    Vera levou-o novamente para o jardim; passeou entre os

    canteiros para fazer exerccio, sentia a barriga como se fosse

    estourar. Deitou-se depois sob um arbusto e achou a sombra

    to gostosa que dormiu; acordou vendo Whisky ali por perto;

    correu para brincar com ele, mas o outro virou-lhe as costas e

    foi embora com o rabo em penacho.

    Procurou distrair-se e viu uma borboletinha branca que-

    rendo pousar sobre sua cabea; ficou indignado com a ousadia

    da borboleta e sacudiu a cabea com fora; no teve sorte por-

    que no viu uma pedra que cercava o canteiro e pan!, deu uma

    cabeada. Gemeu de dor e esperou que algum viesse trat-lo,

    mas no apareceu ningum. S viu Whisky que passeava tam-

    bm no jardim sem olhar para ele. Pensou: Tenho um com-

    panheiro, mas o mesmo que no ter.

    Mais tarde viu D. Maria. Estava distrado, sentado perto

    dos degraus que davam para a cozinha, quando viu uma pessoa

    debruar-se sobre ele e dizer:

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    Samba, como vai?

    Sentiu a mo dela alisar-lhe o plo; comeou a chorar sem

    saber por que; decerto era porque queria que aquelas mos o

    carregassem. E de fato levantaram-no do cho; viu de perto o

    rosto de D. Maria, era sua dona. Parou de chorar no mesmo

    instante, contente por estar pertinho dela. Ela levou-o para

    dentro e mostrou-o ao dono, aquele a quem chamavam de

    doutor:

    Olhe o Samba.

    Passou de colo em colo. O dono agradou-o durante algum

    tempo, olhando muito para seu focinho, para as manchas mar-

    rons que ele tinha na cabea. Disse:

    Olhe que mancha engraada!

    Foi quando reparou na outra pessoa da casa, chamava-se

    Pedro. Ouviu o patro dizer:

    Pedro, leve Samba l para dentro.

    Pedro segurou-o com muito cuidado, como se ele fosse de

    vidro e se quebrasse; levou-o l para dentro e colocou-o no

    caixote de madeira. Pensou: Ser possvel que seja hora de

    dormir?

    * * *

    Ficou quieto uns instantes, esperando. Quando viu que

    estava abandonado outra vez, comeou a chorar alto: au! au! au!

    Viu o rosto de Dermina debruar-se sobre o caixote e fa-

    lar:

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    Coitado do caolinho! O que o caolinho tem?

    Parou de chorar para olhar o rosto de Dermina bem de

    perto, pois ela encostava o corpinho dele em sua face e falava

    como se ele pudesse entender. Como ela era boa e amvel com

    um pobre cachorrinho!

    Fechou os olhos, satisfeitssimo com a vida. Tinha certeza

    de que seria feliz naquela casa; todos eram bons para ele. Do

    colo de Dermina, l em cima, olhou para baixo e viu Whisky

    passeando pela cozinha, o rabo branco feito um leque aberto.

    Pensou: Esta gente boa mesmo, s olhar para esse outro

    cachorro. Como est gordo e bem tratado!

    Dermina deu-lhe papinha de po com leite e acar, tudo

    bem amassadinho, bem gostoso. Aquilo escorregava pela gar-

    ganta dele que era uma gostosura. Dermina riu e disse:

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    Nossa Senhora! J acabou? Quer mais um pouco, cao-

    linho?

    Ela era engraada, gostava de dizer caolinho para ele. Co-

    meu mais um pouco de papinha e sentiu a barriga cheia. Desta

    vez arrebenta mesmo, pensou.

    Deu umas voltinhas pela cozinha, mas puseram-no logo

    no jardim. Quando entrou novamente, era noite; o jardim esta-

    va escuro, s na cozinha havia luz. Aproximou-se de Whisky e

    puxou uma prosinha; Whisky olhou-o com aquele mesmo ar de

    pouco caso e comeou a andar para c e para l, fugindo dele.

    Nesse instante, a porta que dava para dentro abriu-se; a-

    pareceu um vulto escuro e uma voz simptica perguntou:

    este o cachorrinho?

    , sim senhora respondeu Dermina. o ca-

    chorrinho Samba.

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    VOV TAMBM

    Ele olhou para aquela senhora que tinha voz simptica e

    logo decorou o nome dela, chamava-se Vov. Todas as crian-

    as que visitavam a casa e Verinha que morava l, diziam Vov

    para ela. Samba guardou o nome na memria logo que a viu.

    Aproximou-se dela e pediu um agrado; ela fez uma carcia na

    cabea dele e brincou uns instantes. Disse:

    Ento? voc o Samba? voc o Sambinha?

    Ele sentiu-se novamente feliz; mais uma pessoa que gos-

    tava dele, que o agradava, que lhe alisava o plo com a mo

    macia. Vov tambm era boa. Percebeu que ela andava devagar

    e apoiava-se numa bengala; devia ser um pouco doente.

    Mais tarde ouviu falar em reumatismo nos joelhos e ficou

    com muita pena de Vov, mas por causa desse reumatismo ele

    arranjou o melhor colo da sua vida.

    Vov no saa de casa, ficava sentada horas e horas, lendo

    ou conversando e quando o via passar, chamava-o mostrando o

    colo:

    Venha, Samba! Pule aqui.

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    Ele pulava no colo de Vov e se aninhava; ali dormia so-

    nos deliciosos, sem ser interrompido nunca.

    Nesse primeiro dia, no conheceu o colo de Vov, mas no

    dia seguinte, experimentou e gostou. Era melhor, muito melhor

    que o de D. Maria ou o do doutor. O dono e a dona levanta-

    vam-se a todo instante para atender telefone, para receber visi-

    tas, falar com algum... Vov nunca! Era aquele colo parado,

    imvel, quentinho.

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    Depois de brincar com ele, Vov conversou com Der-

    mina e foi embora fechando a porta. Puseram-no novamente

    no caixote e apagaram a luz. Sentia-se muito cansado, pois ha-

    via tido um dia cheio de movimento; resolveu dormir a noite

    inteira. Espichou-se no fundo do caixote, fechou os olhos com

    fora e dormiu um sono s.

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    WHISKY FOGE TODOS OS DIAS

    Dias depois. Samba conhecia todos da casa pelo cheiro ou

    pela voz; cada um tinha um cheiro e uma voz diferentes e isso

    era muito interessante para ele: D. Maria cheirava flor, ele no

    sabia que perfume era, mas era flor. Ela abria um vidrinho e

    passava a gua do vidrinho no leno, s vezes at no cabelo. O

    doutor cheirava cigarro; de longe ele sabia que o patro vinha

    vindo, por causa do cigarro. Vov cheirava gua-de-colnia; o

    leno, as roupas, o rosto de Vov tinham esse cheiro. Dermina

    tinha o cheiro bom da cozinha, de todas as coisas que ele mais

    gostava. Pedro tambm tinha cheiro de cigarro, mas um cigarro

    diferente que ele distinguia muito bem. Vera tinha cheiro de

    sabonete.

    O narizinho dele distinguia todos os cheiros e o seu ou-

    vido era to fino que muito antes da gente ouvir qualquer ba-

    rulho ele j tinha ouvido e percebido que espcie de barulho

    era.

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    Percebeu tambm que seu companheiro Whisky gostava

    de fugir e passear pelas ruas, o que aborrecia todas as pessoas

    da casa. Ouvia perguntarem:

    Fugiu outra vez? Mas que cachorro insuportvel!

    Um dia, foi espiar para ver de que jeito Whisky conseguia

    fugir; foi disfaradamente atrs dele. Whisky fingiu que estava

    muito interessado em cheirar folhas de hera espalhadas pelo

    cho; foi indo, foi indo at chegar perto do portozinho. Parou

    e olhou para trs; Samba fingiu que no viu e olhou um bichi-

    nho que se arrastava na terra; nesse instante Whisky deu um

    salto, passou por cima do portozinho e saiu pela calada,

    muito lampeiro, o rabo feito pluma, bem espichado.

    Samba ficou olhando atravs das grades do porto e viu

    quando o companheiro virou a esquina; ficou horrorizado. Deu

    uns latidos chamando Whisky, mas ele nem ligou, foi embora.

    Voltou duas horas depois quando todos da casa estavam

    aflitos perguntando uns aos outros:

    Whisky no voltou ainda? Ele precisa de uma boa

    sova. Deu para fugir, aquele danado!

    Samba baixou as orelhas e ficou quieto num canto quando

    ouviu falar em sova, mas Whisky no tomou sova alguma.

    Quando no dia seguinte, cedo, depois do caf, Whisky prepa-

    rava-se para fugir, ficou assustado: Pedro veio com uma corda

    bem grossa, amarrou no pescoo dele e a outra ponta prendeu

    na torneira baixa da cozinha. Samba compreendeu: em vez de

    sova, prenderam Whisky. Pedro disse:

    Quero ver voc fugir agora...

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    Samba ficou olhando de longe; Whisky aguentou uma ho-

    ra, depois foi ficando impaciente, resolveu falar com o compa-

    nheiro. Todos os animais falam entre si, ns que no os en-

    tendemos. Whisky queixou-se:

    Voc acha que esta gente me quer bem? Dizem que me

    querem muito, mas no acredito; prenderam-me com esta cor-

    da to grossa, estou indignado.

    Era a primeira vez que ele puxava prosa com Samba e este

    respondeu:

    Acho que fizeram isso porque voc fugiu...

    Ento no hei de passear? perguntou Whisky.

    Todos da casa vo cidade, fazem seus passeios, s ns fica-

    mos aqui dentro sem sair nunca. Ora esta! No acha isto um

    desaforo?

    Samba perguntou:

    Falta alguma coisa para voc aqui? No tem boa cama?

    Boa comida? gua fresca todos os dias?

    Whisky olhou para o outro de lado, dando um puxo na

    corda:

    E me diga uma coisa: falta alguma coisa para as pesso-

    as da casa? No tm boa cama? Boa comida? gua fresca? E

    entretanto vo aos seus passeios diariamente...

    Mas eles so gente disse Samba. E ns somos

    cachorros.

    Grande diferena, no? No sabe que os cachorros,

    nas cidades grandes, tm todas as regalias que tm as pessoas?

    Encontrei um dia um companheiro que tinha vindo de um lu-

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    gar muito longe chamado Europa; e nesse lugar h muitas ci-

    dades importantes, cada uma tem um nome, como Londres,

    por exemplo; outra chama-se Paris. Pois ele me disse que em

    Paris tem tudo para cachorro, at restaurante especial...

    Samba arregalou os olhinhos muito vivos. Perguntou:

    Ser possvel?

    Sim senhor, tem de tudo. Hospitais para tratamento

    especial, penso para eles ficarem quando os donos viajam...

    Nessas penses o tratamento esplndido; esse amigo ficou

    uma vez numa dessas penses e gostou muito. Ele me disse

    que l era uma gostosura, passeava todos os dias com o dono,

    mas passeava na cidade, pois l toda a gente leva os cachorros

    quando sai, at para fazer compras na cidade.

    Que maravilha! murmurou Samba.

    Pois l a cachorrada leva vida igual s pessoas; tem at

    cemitrio para cachorro...

    No diga! exclamou o companheiro admirado.

    Whisky continuou:

    Em Londres, onde meu amigo tambm esteve, ele me

    disse que fazia um frio de matar, mas nem por isso sentia tanto

    assim, pois todas as vezes que saa, ia com capa...

    O qu? perguntou Samba.

    Capa de l bem quentinha que cobria todo o lombo

    dele; disse que a neve caa e ele passeava sem sentir frio algum.

    Entrava nos restaurantes com o dono e sentava-se bem perti-

    nho dele; o dono pedia um prato de comida bem gostosa e ele

    comia ali mesmo, s vezes, at sentado na cadeira ao lado.

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    E ningum caoava? tornou a perguntar Samba.

    Qual o qu! Pois tinha uma poro de gente que fazia a

    mesma coisa e levava tambm cada um seu cachorro. L a vida

    diferente; cachorro e gente levam quase a mesma vida. Agora

    me prendem com esta corda to grossa...

    Samba baixou a cabea e ficou pensativo; Whisky dei-

    tou-se e fechou os olhos, pensando nos cachorros da Europa.

    De repente, Samba correu ao encontro de D. Maria que

    vinha entrando pela porta da cozinha, ficou radiante ao ver a

    dona. Ela acariciou-lhe a cabecinha, depois dirigiu-se a Whisky:

    Ento, Whisky? Est preso hoje? Por que vive fugin-

    do?

    Ele levantou-se para cumprimentar a dona, sacudiu a

    cauda, depois deitou-se de novo, muito desconsolado.

    Coitado! disse D. Maria. Pedro, ele vai ficar

    preso o dia inteiro com esta corda?

    Pedro respondeu que Whisky estava impossvel, ningum

    podia com a vida dele; s fugia, fugia sem parar. De repente a

    carrocinha o levava, ou um automvel o atropelava, o que seria

    ainda pior. D. Maria coou a cabea de Whisky e disse:

    Mas ele no pode ficar preso sempre. Coitado!

    Vera e Dermina tambm foram olhar o prisioneiro; mais

    tarde veio o patro dizendo:

    melhor soltar, tirem essa corda...

    Mas ele foge, vive na rua disse Pedro.

    O que se h de fazer? Deixem que v para a rua, assim

    que no pode ficar.

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    Tiraram a corda do pescoo de Whisky e deixaram-no

    vontade, conforme a ordem do patro. Nesse dia ele no fugiu,

    mas no dia seguinte, logo depois do almoo, foi dar suas volti-

    nhas. E assim todas a tardes. At que um dia...

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    SAMBA FICA COM PENA DE WHISKY

    Era um domingo frio e chuvoso; Samba foi convidado

    para se aquecer ao lado dos patres, diante da lareira da sala.

    Era muito friorento; foi logo para l e sentou-se no tapete ao

    lado de Vera, ambos olhando a lenha que se queimava e aque-

    cia toda a sala.

    Whisky foi convidado tambm, mas no aceitou o convite;

    como sempre, preferiu a rua e pulou o porto. O patro estava

    lendo o jornal, D. Maria lendo um livro; toda a sala estava a-

    gradavelmente aquecida. Vera folheava uma revista, Samba o-

    lhava o fogo.

    De repente, todos ouviram gritos agudos, mas no per-

    ceberam o que havia acontecido; s Samba levantou as orelhas,

    muito assustado. Que seria?

    Quase no mesmo instante Pedro entrou pela sala adentro

    e pediu a D. Maria e ao doutor que fossem cozinha ver

    Whisky. Foram imediatamente; ento Pedro contou que tinha

    ouvido gritos no jardim e foi ver o que havia; viu ento um e-

    norme cachorro policial morder a barriga de Whisky, no mo-

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    mento em que ele tentava pular o portozinho de volta do pas-

    seio.

    Whisky estava todo ensanguentado, deitado na sua cama e

    se lambendo; todos debruaram-se para ver os ferimentos. Um

    era grande e parecia um buraco que sangrava muito. Foi uma

    consternao; Dermina, Pedro e Vera ficaram muito penaliza-

    dos. D. Maria e o doutor examinaram o ferimento; estava feio.

    Samba aproximou-se para ver de perto, Whisky rosnou dizen-

    do:

    V embora daqui e no me amole.

    Apesar disso Samba ficou muito condodo. Os donos no

    puderam pr remdio nos ferimentos de Whisky; quando ele

    viu os preparativos e o vidrinho de iodo nas mos do dono,

    ficou furioso; ameaou morder todos da casa, esperneou, gritou,

    rosnou, mostrou os dentes para os donos. Samba aconselhava

    de longe:

    Tenha calma, camarada. Eles querem tratar de voc.

    Qual! No foi possvel. Deixaram Whisky na cama lam-

    bendo-se todo e foram embora para a sala. Muitas vezes, du-

    rante esse dia, Samba foi espiar o amigo deitado no colcho

    para ver se o consolava um pouco, mas o companheiro estava

    de um mal humor horrvel. No deixou o outro se aproximar

    uma vez sequer para ver o ferimento; ameaava mord-lo. E

    no provou comida o dia todo.

    Veio a noite; fazia cada vez mais frio. Todos se reuniram

    novamente volta de Whisky para ver se podiam fazer alguma

  • 27 www.tocadacoruja.net/

    coisa por ele, mas Whisky no aceitou nada. Nem carinhos,

    nem remdios, nem agrado.

    Foram todos dormir. Samba ficou no colcho ao lado de

    Whisky e teve pena do amigo. Durante toda a noite Whisky

    gemeu e lamentou-se; queixou-se de toda a gente, disse que isso

    no era vida, pois o haviam abandonado naquele colcho duro

    e tinham ido dormir sem se importarem com as dores que ele

    estava sofrendo. Samba arregalou os olhos:

    Como? Estou vendo que voc muito ingrato. Quise-

    ram tratar e pr remdios nos seus ferimentos, voc po dei-

    xou; quiseram dar comida, voc no aceitou. O que mais quer,

    ingrato?

    O outro no respondeu.

    Isso a mais negra ingratido continuou Samba.

    No se deve tratar mal a quem nos trata bem.

    Ai! gemeu Whisky. Quando no se tem sorte,

    assim mesmo. Agora vem voc, uma criana ainda, a me acon-

    selhar bobagens. Trate de sua vida que melhor.

    Passaram assim a noite, quase sem falar. No dia seguinte,

    s oito da manh, Samba viu Pedro aproximar-se, carregar o

    companheiro ferido com cuidado e lev-lo para o automvel do

    patro que j estava esperando l fora. Samba ouviu Dermina

    dizer que Whisky tinha ido para um hospital.

    * * *

  • 28 www.tocadacoruja.net/

    Passaram-se quinze dias. Afinal, Whisky chegou com-

    pletamente curado. Entrou em casa, comovido; queria chorar

    todas as vezes que falavam com ele. Achou Samba crescido;

    percorreram juntos todos os recantos do jardim, espiaram as

    galinhas dentro do galinheiro, subiram a escadinha da garage

    para ver se no quarto de cima no havia ratos.

    Passaram juntos a tarde toda. Samba contou que havia um

    lugar no jardim, onde descobriu minhocas das grandes, daque-

    las que pareciam cobras. Contou que j comia de tudo e Der-

    mina dava-lhe cada bife... Uma delcia.

    Mostrou uma grande teia de aranha tecida na vspera en-

    tre duas roseiras; Whisky encostou o focinho na teia de aranha

    para cheir-la. Depois Samba contou que um passarinho mar-

    rom tinha feito ninho nos pinheirinhos. Pena que estava no alto

    e no podiam ver, mas j havia filhotes porque ele viu o pai e a

    me voando pra l e pra c, trazendo coisinhas para os filhos

    comerem.

    Whisky quis ver onde estava o ninho e quando Samba

    mostrou, ele deu pulos para alcan-lo.

    Que quer fazer? perguntou Samba.

    Quero matar os passarinhos.

    No pense nisso; nosso dono ficar furioso com voc.

    J tomei uns tapas de Dermina por perseguir um passarinho

    verde que andou por aqui outro dia.

    Ningum precisa saber respondeu Whisky mos-

    trando os dentes. S se voc for contar, linguarudo.

  • 29 www.tocadacoruja.net/

    No conto nada. Mas voc um cachorro levado da

    breca, mal chega do hospital, j est fazendo reinao.

    Whisky sacudiu o rabo branco e foi andando sem res-

    ponder. Sentou-se depois no meio da hera e contou para Sam-

    ba que foi muito bem tratado no hospital; sofreu muitas dores

    no princpio, depois passou melhor. Comeu bem; s que no

    gostou dos vizinhos de quarto: cada cachorro sem educao

    que at ele teve vergonha de ser cachorro; uns danados baru-

    lhentos que se queixavam de tudo: da comida, do trato, diziam

    que a limpeza no era grande coisa, reclamavam contra tudo...

    Whisky terminou:

    Vai ver que na casa deles tinham apenas um canto no

    fundo do quintal e um pano para dormir. Quem sabe nem ti-

    nham pano. Esses so os piores, reclamam contra tudo...

    mesmo confirmou Samba.

  • 30 www.tocadacoruja.net/

    Samba contou a ltima novidade no fim da conversa:

    Sabe que j dou meus passeios na rua todas as tardes

    com Pedro?

    O qu? disse Whisky muito admirado. Ento,

    agora nossos donos esto mais humanos e compreenderam que

    precisamos tambm dar nossos passeios? Por que Pedro precisa

    ir?

    Mas vou preso numa cordinha, um couro que passa

    aqui no meu peito e no pescoo; no vou solto.

    Ah! Ah! logo vi disse Whisky. Eles seriam inca-

    pazes de tanta generosidade. Ir solto ao lado deles? Logo vi que

    era impossvel!

    Fez um gesto de pouco caso.

    A questo continuou Samba que perigoso ir

    solto. Ns atravessamos a rua a todo instante e pode vir um

    automvel e nos matar.

  • 31 www.tocadacoruja.net/

    Bobagens disse Whisky. No podemos deixar de

    atravessar as ruas, pois precisamos cheirar todas as rvores, e

    essa histria de automvel para nos enganar. Sei me defender

    muito bem.

    Voc um camarada que nunca est contente disse

    Samba. Est sempre se queixando de uma coisa ou outra;

    francamente no compreendo seu carter...

    Nem eu, o seu respondeu Whisky mal-humorado.

    E sabe de uma coisa? Vou brigar com aquele policial que me

    pegou outro dia. Ele h de me pagar.

    Whisky foi andando com o rabo que nem leque, um bruto

    ar de desprezo, aproximou-se do portozinho e pucutum!, pu-

    lou para a rua.

    Samba ficou olhando de longe, sem nada dizer; nessa noi-

    te ouviu longos comentrios na cozinha, antes do companheiro

    voltar da rua. Pedro disse:

    Pensamos que tivesse servido de lio... Qual! Est na

    rua outra vez.

    E cada vez demora mais tempo l fora; no tem um

    pingo de juzo confirmou Vera.

    Por isso gosto do Samba disse Dermina. Se ele

    quisesse, pulava tambm que era uma beleza. Ainda mais que

    ele Fox; mas no pula. Fica quietinho aqui dentro, bem ajui-

    zado. Por isso gosto dele...

  • 32 www.tocadacoruja.net/

    ADEUS, COMPANHEIRO

    O cachorrinho Samba sentia-se feliz; tinha tudo, nada lhe

    faltava. Gostava de todos da casa; brincava com Vera, corria

    atrs de Whisky, deitava no colo da Vov. S que Vov desa-

    parecia de quando em quando; entrava num automvel com

    mala e ia embora; custava voltar.

    Nos dois primeiros dias, Samba procurava-a por toda a

    parte, principalmente no quarto dela. No podia estar escondi-

    da nalgum cantinho? Ele espiava debaixo da cama, atrs do

    guarda-roupa, atrs da porta; cheirava tudo para ver se desco-

    bria Vov. Pulava em cima da cama dela e procurava, procura-

    va. No podia estar debaixo do colcho?

    Quando percebia que ela no estava mesmo, esquecia.

    No pensava mais nisso, at que um dia Vov aparecia outra

    vez com colo e tudo.

    Que festa!

    Ele e Whisky passeavam juntos, levados por D. Maria e

    Vera. Cada um ia preso numa cordinha e Whisky reclamava

  • 33 www.tocadacoruja.net/

    sempre, dizendo que no era criana para andar assim amarra-

    do.

    Era um cachorro esquisito; vivia sempre de cara em-

    burrada, com ar contrariado; no admitia brincadeiras com

    ningum, mas tinha muita pacincia com Samba... S vendo.

    Quando estava deitado, cochilando, Samba vinha todo disfar-

    adinho e sentava-se sobre a cabea de Whisky; ficava ali sen-

    tado como se a cabea do companheiro fosse a melhor cadeira

    do mundo... E conversava com Whisky; o mais engraado

    que Whisky, em vez de se zangar, conversava tambm.

    Samba, numa vozinha fina, fazia him... him... him...

    Whisky com a cabea achatada no cho, pois o outro estava

    sentado em cima, fazia hom... hom... hom...

    Vera ria, Dermina ria, Pedro ria; depois chamavam D.

    Maria e o patro para verem tambm a conversa dos dois. Era

    formidvel.

    Mas Whisky continuava a fugir; pelo menos duas vezes

    por dia ele pulava o portozinho e ia andar pelas casas vizinhas

    e pelas ruas; depois de uma hora ou mais, ele voltava. Todos da

    casa se aborreciam com as fugas dele; Pedro dizia:

    Um dia ele fica debaixo de um automvel. A quero

    ver...

    Dermina respondia:

    Tambm a gente tem d de prend-lo o dia todo; s se

    fizessem o porto mais alto...

    Os donos no sabiam o que fazer com Whisky.

  • 34 www.tocadacoruja.net/

    Um dia de manh houve grande alvoroo na rua; passou

    uma carrocinha de prender cachorros e quase levou Whisky.

    Foi assim: como sempre, logo depois do caf, o pestinha lem-

    brou-se de dar umas voltas. Estava na esquina quando viu uma

    carrocinha e uns homens esquisitos com cordas entre as mos.

    Estava distrado observando um passarinho numa rvore;

    de repente, reparou que os homens estavam se aproximando

    cada vez mais e olhando disfaradamente para o lado dele; viu

    ento que dentro da carrocinha havia cachorros presos, e ti-

    nham um olhar to triste... to triste... Um luluzinho branco at

    chorava.

    Whisky no era bobo. Percebeu que se continuasse ali pa-

    rado, alguma coisa ruim aconteceria; resolveu correr para casa.

    Deu uma corridinha disfarada e percebeu que os homens

    tambm corriam atrs dele e iam alcan-lo.

    Calculou a distncia e viu que no teria tempo de pular o

    portozinho da casa, pois os homens maus o laariam; resolveu

    ento dar uma volta pelo quarteiro para distanciar-se dos ca-

    adores que levavam cordas entre as mos. Assim fez. Correu

    feito um louco pela calada, ouvindo sempre o tropel dos ho-

    mens atrs dele; deu volta em todo o quarteiro, cada vez mais

    depressa a fim de ganhar distncia.

    Quando enfrentou o portozinho da casa outra vez, j

    bem cansado, armou o pulo e pucutum! para dentro do jardim.

    Os homens ficaram parados na calada em frente com ca-

    ras de bobos; Whisky, j no jardim, bem garantido, olhou para

    eles como se dissesse: ganhei!

  • 35 www.tocadacoruja.net/

    O vizinho da esquina que havia assistido toda a corrida,

    no se conteve; foi tocar a campainha e contar a D. Maria a

    estupenda proeza de Whisky, pois ningum da casa sabia o que

    estava se passando.

    Riram muito das caras desapontadas dos homens da car-

    rocinha; mas nesse dia mesmo foi resolvido o destino de

    Whisky.

    Dois dias depois levaram-no para uma chcara muito bo-

    nita no alto da serra. L no havia cachorros e ele foi muito

    bem recebido.

    Antes de entrar no automvel para seguir viagem, ele foi

    despedir-se de Samba:

    Adeus, companheiro. No sei agora quando nos vere-

    mos.

    Vou sentir sua falta respondeu Samba. Estava

    to acostumado com voc... No terei mais cabea macia para

    sentar em cima.

    Quem sabe um dia voltarei. Nem sei se vou me acos-

    tumar l; se no me acostumar, fugirei e voltarei para c.

    A culpa sua respondeu Samba. Por que vive

    fugindo? Foi por causa da carrocinha que resolveram mandar

    voc para l.

    Bem adivinhei disse Whisky. Mas fiz bonito,

    no? Voc at me deu os parabns.

    Foi admirvel, mas faz muito mal em fugir sempre.

    Aborrece nossos donos.

  • 36 www.tocadacoruja.net/

    No sei o que fazer falou Whisky. Gosto tanto

    de dar minhas voltas...

    Ouviram nesse instante D. Maria chamar:

    Venha, Whisky! Suba no automvel.

    Adeus, companheiro disse Samba. Seja feliz.

  • 37 www.tocadacoruja.net/

    SAMBA ESTA SEMPRE CONTENTE

    Durante os primeiros dias, Samba sentiu saudades do a-

    migo, depois foi se acostumando. Um dia disseram-lhe hora

    do almoo:

    Vamos visitar Whisky.

    Entraram no automvel e atravessaram um tnel cheio de

    lmpadas acesas, depois a cidade movimentada. Passaram por

    cima de uma ponte; Samba olhou o rio; havia muitos barqui-

    nhos que desciam e subiam navegando sobre as guas. Depois

    um bairro feio e sujo; em seguida uma estrada asfaltada com

    casas simpticas de lado a lado; algumas pequenas, apenas com

    uma janela na frente, outras suntuosas, com jardins volta.

    O automvel corria e Samba olhava atravs da janelinha

    observando tudo o que via; passaram pela rua principal de uma

    pequenina cidade. Comearam a subir a serra; era um caminho

    com subidas e curvas. L em cima ficava a chcara. Whisky sa-

    beria que eles iam visit-lo?

  • 38 www.tocadacoruja.net/

    * * * A chcara era muito bonita; Samba nunca pensou que

    houvesse lugares to lindos assim; gramados a perder de vista,

    uma grande piscina que mais parecia um lago, rvores, arbustos,

    canteiros com flores vermelhas e azuis, escadas para a gente

    subir e descer. E a casa l no alto de um morro.

    No meio dessa grandeza, dessa beleza toda, quem estava

    l feliz como um rei? Whisky!

    Correu para encontrar o companheiro e cumprimenta-

    ram-se entre abraos e correrias; primeiro ficaram de p, com

    os braos de um sobre os ombros de outro, depois Samba disse,

    alegre:

    Vamos apostar uma corrida?

    Saram juntos numa correria desenfreada pelos caminhos

    rodeados de arbustos; contornaram a piscina sempre correndo,

    voltaram e partiram de novo, felizes por estarem novamente

    juntos.

    Na corrida, o rabo branco de Whisky parecia uma pluma

    em linha reta e Samba correu tanto que quando parou, estava

    quase sem flego. D. Maria comentou:

    Esto contentes por se verem juntos outra vez.

    Enquanto isso, Samba puxou Whisky para um lado e per-

    guntou:

    Ento? Est bem aqui?

    Muito respondeu o outro. O povo da chcara

    bom e nada me falta. H quatro crianas, mas no me aborre-

  • 39 www.tocadacoruja.net/

    cem muito; Antnio o meu dono e eu quero bem a ele. No

    tenho queixas...

    No foi voc que me disse uma vez que casa que tem

    criana no boa para cachorro?

    Meu pai dizia isso falou Whisky. E quando che-

    guei aqui tive medo, mas as crianas j so grandes e no me

    aborrecem. S h um pequeno que vive atrs de mim a querer

    pegar no meu rabo, mas eu no ligo muito. E no te conto nada,

    j matei dois gatos.

    Samba assustou-se:

    O qu? Meus patres nunca permitiriam que eu fizesse

    isso. Meu dono costuma dizer que todos tm direito vida e

    no se deve matar nada: nem gatos nem passarinhos.

    E nem as raposas que vm comer as galinhas do Ant-

    nio?

    Ah! Isso diferente respondeu Samba. Mas ga-

    to?

    Pois s eu ver um na minha frente que mato mesmo

    respondeu Whisky. Tenho toda a liberdade, fao o que

    quero e ningum me diz nada, nem meu dono Antnio. Levo

    um vido...

    Eu tambm estou sempre contente disse Samba.

    Tenho tudo e o amor dos meus donos que o que mais prezo.

    Voc tem sorte disse Whisky. Foi cair numa casa

    onde no h nens. Eu me lembro que meu pai dizia sempre:

    Feliz do cachorro que vai para uma casa onde no h crianci-

  • 40 www.tocadacoruja.net/

    nhas; ter todas as regalias... Voc tem sorte; se l houvesse

    um nen, s queria ver. . .

    Voc tambm no pode se queixar; primeiro morou l,

    agora veio para c onde tem toda a liberdade...

    Ento vamos correr outra vez props Whisky.

    Apostaram corrida por algum tempo e Whisky mostrou

    ao companheiro a chcara toda. Despediram-se e Samba pro-

    meteu voltar de vez em quando para uma visitinha.

    Quando iam voltando para a cidade, Samba, no colo de D.

    Maria, foi pensando: Como Whisky est selvagem! Imagine!

    Matando gatos! Nunca pensei que ele ficasse mau assim. Tam-

    bm o gnio dele nunca foi muito bom, s tinha pacincia co-

    migo... Afinal... Eu que estou sempre contente...

    E fechou os olhos, a cabea recostada no brao da dona.

  • 41 www.tocadacoruja.net/

    SAMBA, SAMBICA, SAMBOCA, SAMBUCA

    Os netos e bisnetos da Vov costumavam visit-la todas

    as semanas e, assim, Samba ficou conhecendo todos eles.

    Ceclia era uma das netinhas mais simpticas; era uma me-

    nina de rostinho redondo e olhos grandes; gostava tanto do

    Samba que queria um igual a ele. Quando vinha visitar Vov,

    dizia:

    Como vai, Sambica? Venha brincar comigo.

    Vera, Lcia, Oscar, Quico, Henrique, Eduardo faziam

    parte da turma alegre dos netos. Cada um chegava, beijava a

    mo de Vov e perguntava:

    Como vai, Vov?

    E depois perguntavam:

    Onde est Samba?

    Mas nenhum deles sentava no colo de Vov porque eram

    grandes, s Samba. Ele dava um pulinho, deitava-se no colo

    quente e macio, onde ficava bem enroladinho e escutava as

    histrias que Vov contava aos netos. Eles diziam para o ca-

    chorrinho:

  • 42 www.tocadacoruja.net/

    Que graa, no? Bem

    refestelado no colo da Vov!

    Vov dizia:

    Deixem o Samba sossegado.

    E acariciava-lhe a cabea en-

    quanto contava mais histrias para

    os netos; Samba escutava tambm

    com toda ateno, apesar de no com-

    preender nada.

    Depois, D. Maria chegava da rua

    e convidava as crianas para brincar

    de esconde-esconde com Samba; cha-

    mava Samba de Sambica, Samboca,

    Sambuca. Ele deitava-se no cho e

    virava a barriga para cima de to

    contente.

    Quando cansavam de brincar

    de esconde-esconde, brincavam com

    a bola; jogavam a bola longe para ver

    quem pegava primeiro, quase sempre

    era Samba; corria como louco e abo-

    canhava a bola.

    Depois voltavam

    a brincar de escon-

    de-esconde;

    D. Maria ficava

  • 43 www.tocadacoruja.net/

    sentada na porta da cozinha e tapava os olhos do cachorrinho.

    Dizia para as crianas:

    Vo se esconder. Depressa!

    Um ficava atrs da porta, outro corria para o quintal, ou-

    tro dentro da garage, outro ainda na despensa; assim todos se

    escondiam. Samba ficava pulando de aflio, os olhos cobertos

    com a mo de D. Maria.

    Ela s largava o Sambica quando ouvia uma voz abafada

    dizer: Pronto!

    O cachorrinho saa dando latidos nervosos: au! au! au! e

    procurava a crianada. Quando encontrava um, era um grito

    que se ouvia:

    Ele me achou! Ele me achou!

    Depois outro, outro; assim encontrava um por um. Vera e

    Ceclia corriam pelo quintal aos gritos; Samba adorava essas

    brincadeiras.

    Gostava de correr atrs da meninada e ficava contente

    quando D. Maria dizia: Samba, Sambica, Samboca, Sambuca;

    ele deitava-se de barriga para cima para que ela coasse.

  • 44 www.tocadacoruja.net/

    PRIMEIRA SEPARAO

    Um dia houve grandes preparativos na casa; arrastaram-se

    malas, deixaram-nas abertas durante muitas horas. O telefone

    tocava a todo instante; roupas chegavam das lojas e das costu-

    reiras; todos andavam apressados. D. Maria e o doutor no pa-

    ravam em casa.

    Samba olhou tudo com indiferena; aquilo no era nada

    demais. Que poderia ser?

    Mas uma bela manh, aquelas malas cheias de roupas fo-

    ram colocadas dentro do automvel; de repente, ele viu os do-

    nos prontos para sair; despediram-se de todos da casa e dele

    tambm; o patro levantou-o nos braos e at o abraou.

    O automvel saiu pelo porto grande e ele ouviu muitas

    vezes as mesmas palavras:

    Boa viagem! Adeus! At a volta!

    E tudo ficou silencioso na casa; parecia um deserto. Vov

    ficou, mas tambm ficou triste, quase sem assunto. Samba

    pensou: Eles voltam; hora do jantar estaro aqui.

  • 45 www.tocadacoruja.net/

    Mas no voltaram, nem nesse dia, nem no outro, nem no

    outro... Ele ficava todas as noites sentado na porta da cozinha

    esperando os donos. Vinha a tarde e a noite, todos jantavam,

    mas ele no queria comer. Por que os donos no voltavam?

    Onde estariam? Por que o haviam abandonado? No podia

    compreender o que tinha acontecido.

    s vezes, durante o dia, seu corao batia apressado; pare-

    cia ter ouvido as vozes dos donos l em cima; subia as escadas

    feito um louco e procurava, procurava em todos os recantos;

    atrs das portas, debaixo das camas, dos guarda-roupas...

    Nada. Eram Vov e D. Guiomar que conversavam sere-

    namente no escritrio de D. Maria. Ele descia a escada to de-

    sapontado, to triste...

    Dermina ento tinha d; pegava Samba no colo e explica-

    va:

    Eles voltam, Sambinha. Eles voltam no fim do ms,

    foram para Caxambu.

    Mas isso ele no podia compreender e Caxambu era uma

    palavra desconhecida para ele: s sabia que sentia uma falta

    imensa deles e vivia com o corao apertado. Nunca pensou

    que sofresse tanto assim, at ficou doente. D. Guiomar, que era

    irm de D. Maria e tinha vindo para fazer companhia Vov,

    agradava Samba, punha-o no colo, coava-lhe a cabea. Qual!

    Samba ficou doente.

    Pedro levou-o ao mdico e o mdico deu-lhe uma injeo;

    Samba no gostou nada do tratamento e ficou aborrecidssimo.

  • 46 www.tocadacoruja.net/

    No quis saber de nada, nem dos agrados de D. Guiomar, nem

    do colo da Vov.

    No dia seguinte o lugar da injeo estava inflamado e do-

    lorido. Ainda mais isto para me aborrecer, pensou Samba. E

    ficou cada vez mais triste, sem vontade de brincar, sem vontade

    de correr, de nada.

    Pedro, Dermina e Vera tratavam dele; D. Guiomar tratava

    dele. Vov chamava-o para o colo:

    Venha, Samba, venha no meu colo.

    Mas ele estava inconsolvel; sentia saudades e tinha a in-

    jeo inflamada, tudo para faz-lo sofrer; queria ouvir as vozes

    dos donos, queria brincar com eles, queria pular no colo do

    doutor e lamber-lhe a orelha. Seu corao sofria, sofria...

    Um dia, toda a casa se ps em rebulio; enceraram, puse-

    ram tapetes ao sol, colocaram flores em todas as jarras, todos

    falavam ao mesmo tempo. At D. Guiomar foi para a cozinha

    fazer um sorvete especial.

    E falavam com ele sempre que passavam ao seu lado; fa-

    lavam em D. Maria, no doutor, mas ele no prestava ateno.

    Sofria. Uma hora, Dermina ouviu um automvel buzinar na

    esquina e gritou:

    Samba, o patro chegou!

    Ele nem levantou as orelhas; sabia que no eram eles, pois

    a buzina era diferente; esperou durante tantos dias a buzina

    conhecida que agora nem tinha mais esperana de ouvi-la no-

    vamente.

  • 47 www.tocadacoruja.net/

    Continuou indiferente, mas ao ver

    os preparativos todos e D. Guiomar ba-

    tendo sorvete com tanta animao, no

    pde deixar de sentir-se um pouco alar-

    mado. Ficou sentado na porta da cozinha,

    olhando umas formigas que passavam

    carregadas de coisas na boca; umas leva-

    vam folhas enormes, outras levavam

    torres de barro, outras levavam pedaos

    de bichos, uma at levava asa de borbo-

    leta.

    Elas entravam em um buraco na

    terra; deixavam a carga dentro do buraco

    e saam outra vez para procurar mais

    coisas. Samba olhava e pensava triste-

    mente em sua vida; aquela bruta ferida

    no corpo que no queria sarar, aquela

    saudade no corao... Foi quando ouviu

    uma buzina tocar trs vezes seguidas.

    No havia engano possvel; eram os

    donos queridos. Correu latindo pelo jar-

    dim, foi at o porto grande, viu ento o

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    carro cheio de malas e os donos. Sim, haviam voltado. Que fe-

    licidade! Apesar das dores, pulou de satisfao e foi para o colo

    de D. Maria, depois para o do doutor.

    Nessa noite jantou bem, esqueceu a injeo inflamada,

    correu, deitou no colo do dono, lambeu-lhe a orelha e hora

    de dormir, foi um sono s at o dia seguinte, um sono perfei-

    tamente feliz. Pensou que havia sonhado, mas no dia seguinte

    quando viu que era verdade e eles estavam ali, correu pela casa

    toda dando gritinhos como se dissesse: Sou feliz, feliz, feliz.

    Estou contente, contente, contente.

  • 49 www.tocadacoruja.net/

    A FUGA

    Um ano, dois, trs anos se passaram. Samba cresceu, j

    no era criana. No sofria tanto quando os donos iam viajar,

    porque sabia que eles voltariam; esperava com ansiedade o dia

    da chegada. Sabia que Vov desaparecia de quando em quando,

    mas voltava um dia e trazia alegria e o colo macio para ele.

    Uma vez ou outra fazia uma breve visita ao camarada

    Whisky na chcara. Whisky contava proezas e aventuras, dizia

    estufando o peito:

    At hoje matei quatro gatos, trs gambs, enxotei um

    cachorro policial formidvel que apareceu por aqui e ficou com

    medo de mim. Um dia quis pegar uma cobra, no peguei por-

    que Antnio no deixou, seno eu acabava com a vida dela; e

    era uma cobra grande. E voc o que tem feito?

    Samba falava com indiferena levantando o focinho:

    Voc mora na roa, deve ter muitas aventuras para

    contar. Lembre-se que eu resido na cidade e nada de mais pode

  • 50 www.tocadacoruja.net/

    acontecer. Somente pego ratos; desde que cresci j matei uns

    oito, nem sei bem.

    Impossvel disse Whisky. Ento voc mora num

    lugar onde h tanto rato assim? a cidade dos ratos. No

    naquela casa onde morei?

    Samba respondeu:

    Justamente. No se lembra de um terreno baldio que

    havia ao lado? Pois ali era o foco das ratazanas, mas j acabei

    com quase todas. Quando eu era pequeno, meu dono me proi-

    biu pegar ratos, tinha medo que os ratos me pegassem, pois eles

    eram muito grandes. Depois que cresci, comeou a caada.

    uma folia, voc precisava ver; Dermina sai com uma vassoura

    na mo fazendo uma gritaria medonha, quer ajudar mas at a-

    trapalha. Vera grita: Pega! pega! Pedro corre para cercar o

    rato. Um sururu danado, e no fim quem pega sou eu.

    E come? perguntou Whisky.

    O qu? Onde que se viu comer essa porcaria? Mato e

    ando com ele na boca pelo quintal todo para verem minha ca-

    ada, depois Pedro tira da minha boca e joga no lixo. Quase

    acabei com as ratazanas.

    Depois dessas conversas, Samba despedia-se do compa-

    nheiro e voltava para a cidade com os donos. Passeava todas as

    tardes com Pedro e noite dava umas voltas com os donos,

    logo aps o jantar.

    Um dia, estava distrado no jardim olhando um besouro

    que estava dependurado numa folha de hera; quando o vento

    batia na folha, ela balanava e o besouro quase caa; ia pra l e

  • 51 www.tocadacoruja.net/

    pra c como se aquilo fosse um balano. Samba estava com

    inveja; de repente veio uma borboleta amarela com risquinhos

    brancos e sentou-se sobre uma rosa; depois um beija-flor verde

    espantou a borboleta para sugar o mel que estava dentro da

    rosa. Samba pensou: Ser que tem mel mesmo? Qualquer dia

    vou experimentar.

    O besouro balanava, balanava na folha de hera; a bor-

    boleta voou e sentou-se sobre uma camaradinha; o beija-flor foi

    embora depois de ter se deliciado com o mel; ficou sobre um

    galho do jacarand limpando o biquinho.

    O vento fez zum... e derrubou o besouro no cho; Samba

    teve vontade de rir. Foi nesse instante que olhou por acaso e

    viu o portozinho aberto. Algum tinha se esquecido de tran-

    c-lo; andou mais um pouco e chegou at ele, olhou a rua, es-

    tava deserta. Pensou: No custa nada dar uma voltinha at a

    esquina.

    Foi andando bem devagar, cheirando a grama das caladas

    e as rvores da rua; era bem divertido andar sozinho, sem cou-

    ro algum apertando o peito. Foi andando; de vez em quando

    olhava para trs para ver se algum o estava vendo. Ningum.

    Na esquina encontrou Cricri, um cachorrinho branco que

    pertencia a uma casa vizinha e vivia solto, tinha uma boa vida.

    Sua dona chamava-se Ana Maria, era uma menina bonitinha e

    boa, gostava muito dele.

    Ento? perguntou Cricri. Est solto hoje? Que

    milagre! Que aconteceu para deixarem voc sair sozinho?

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    Samba no gostava de contar que vivia preso; disfarou e

    respondeu:

    s vezes venho sozinho at aqui. No sabia?

    No respondeu Cricri. Vejo voc sempre na

    correia, no sabia que tinha essas liberdades. Tinha pena de

    voc.

    Por que pena? Nada me falta disse Samba.

    Ora, falta a liberdade de viver na rua respondeu

    Cricri.

    Para que quero tanta liberdade? De repente um auto-

    mvel traioeiro me pega.

    Qual pega nada! Vivo passeando o dia todo, tenho li-

    berdade e no tenho medo de automvel. Seus donos falam

    assim para pr medo em voc.

    Samba no gostou, por isso props umas voltas mais lon-

    ge:

    Vamos andar um pouco mais?

    Vamos respondeu Cricri. Onde quiser; conheo

    um passeio bonito por este lado.

    Nesse momento os dois ouviram a vozinha de Ana Maria

    chamando:

    Cricri! Cricri! Venha c!

    comigo, mas eu finjo que no ouo disse Cricri.

    Vamos embora.

    Assim juntos, foram caminhando sem destino.

    Pouco mais adiante encontraram um cachorro preto pelu-

    dinho, um vira-lata que disse aos dois com ar arrogante:

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    Que andam fazendo por aqui, seus gr-finos?

    O mesmo que voc respondeu Cricri que estava

    acostumado com os cachorros da rua. Estamos dando umas

    voltinhas pelo bairro.

    Fizeram conhecimento e os trs continuaram juntos;

    cheiraram muitas rvores, afinal Cricri chamou a ateno de

    Samba:

    J um pouco tarde, vou para casa. No melhor vol-

    tarmos?

    Samba quis mostrar-se valente:

    muito cedo. Se quiser, pode ir; vou dar umas volti-

    nhas com este novo companheiro.

    Cricri despediu-se dos dois e voltou para casa num troti-

    nho ligeiro; Samba continuou o passeio ao lado do vira-lata.

    Depois de terem andado durante uma hora ou mais e vis-

    to muitas coisas bonitas e feito conhecimento com outros

    companheiros, Samba disse:

    Por hoje chega. Qualquer outro dia voltarei aqui para

    passearmos juntos outra vez. At logo, camarada.

    At logo respondeu o vira-lata. Sabe o caminho

    da casa ou quer que ensine?

    Obrigado, sei muito bem respondeu Samba.

    Virou a primeira esquina e foi andando; lembrou-se que

    havia passado por aquela rua e que tinha visto aquelas casas;

    cheirou todas as rvores e reconheceu que eram as mesmas.

    Estava certo. Andou, andou e de repente percebeu que estava

    perdido. No encontrava o caminho da casa; virou ruas, do-

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    brou esquinas, voltou para o mesmo lugar onde havia encon-

    trado o vira-lata. Nada. Arrependeu-se de no ter acompanhado

    Cricri, pois ele era um companheiro sabido e estava acostuma-

    do com todas as ruas.

    Procurou o vira-lata para ensin-lo, mas ele no estava

    mais ali. Que fazer? Continuou a andar e percebeu as luzes da

    rua se acenderem de sbito. Era noite e ele ainda fora de casa.

    Que estariam pensando dele? Precisava voltar de qualquer ma-

    neira, nem que andasse a noite inteira at encontrar sua casa.

    Caminhou pelas ruas e no reconheceu nenhuma; parecia

    que estava em outro bairro, de outra cidade. Que fazer? Co-

    meou a fugir das ruas onde havia muitos automveis e assim

    foi parar num lugar completamente desconhecido. As casas

    eram raras e umas longe das outras; havia grandes quintais com

    muito arvoredo. Sentiu fome. Onde encontrar um pouco de

    comida? Lembrou-se que a essa hora, em casa, Dermina fazia o

    pratinho dele com carne picadinha, arroz, macarro e, s vezes,

    um belo osso com tutano dentro. Dermina dizia: Hoje tem

    osso com tutano, Samba. Olhe que delcia.

    Sentiu gua na boca e pensou consigo que se encontrasse

    novamente sua casa, nunca mais fugiria, mesmo que visse o

    porto escancarado. Aspirou o ar e parou; sentiu um cheiro de

    carne assada. Naquela casa, onde havia uma luz muito fraqui-

    nha, estavam assando um pedao de carne. E se ele entrasse e

    pedisse? Ele sabia pedir quando queria: punha as duas patinhas

    nos joelhos de uma pessoa e essa pessoa sabia que ele estava

    pedindo alguma coisa.

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    Resolveu arriscar; muito lentamente passou atravs de

    uma cerca e entrou num quintal desconhecido; foi andando

    com cuidado; ouviu choro de criana, depois voz de homem.

    Andou mais; encontrou uma bacia cheia de roupa lavada, lem-

    brou-se que estava com sede e tentou beber a gua da bacia,

    mas estava misturada com sabo e ele no conseguiu engolir.

    Chegou at porta da cozinha, de onde vinha o cheiro;

    ficou escutando longo tempo. Ouviu vozes desconhecidas e

    passos de quem andava de um lado para outro. A criana cho-

    rou outra vez, depois tudo ficou quieto. J jantaram, pensou.

    Vou esperar mais um pouco, depois bato na porta.

    Nesse instante algum abriu a porta e uma luz brilhou na

    direo do Samba! Ele no se moveu; ficou esperando; a mu-

    lher disse para algum l para dentro:

    Vou recolher a roupa. Olhe um cachorro aqui. Sai, ca-

    chorro!

    Levava um pau na mo; atirou-o na direo dele. Samba

    saiu correndo, assustadssimo enquanto uma voz de homem

    perguntava:

    Onde est o cachorro?

    J foi embora; atirei um pedao de pau nele.

    Adeus, carne assada; adeus, gua para beber. Sentindo

    fome e sede, tratou de fugir.

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  • 57 www.tocadacoruja.net/

    PERDIDO

    Alcanou a rua correndo e foi para mais longe; foi an-

    dando sem saber o que fazer. Por toda a parte havia escurido,

    uma tremenda escurido. De longe em longe, uma luz no fundo

    de um quintal; devia ser chcara. Havia muitas chcaras naquele

    lado da cidade.

    Depois de ter caminhado durante algum tempo sentiu-se

    to cansado que resolveu deitar-se ali mesmo e descansar.

    Pensou at em morrer. Encostou-se a um muro e ficou ali,

    pensativo, por uma meia hora, depois entrou por um quintal

    adentro procurando um lugar para se abrigar. O pior de tudo

    que estava ameaando chuva.

    Andou atravs do quintal at chegar porta de uma es-

    trebaria; havia movimento l dentro. Parou para escutar, ouviu

    um barulhinho, depois seus olhos se acostumaram com a escu-

    rido e viu ento uma vaca deitada num monte de capim, mas-

    tigando.

  • 58 www.tocadacoruja.net/

    Aproximou-se p ante p e cheirou-a de longe; ela viu

    Samba, mas no deu a menor importncia. Resolveu falar com

    ela, pois todos os animais se entendem muito bem.

    Mora aqui nesta estrebaria?

    Durmo aqui respondeu a vaca. E voc?

    Perdi o caminho de casa. No sei mais voltar; amanh

    vou tentar de novo; hoje est muito escuro e no acerto mais.

    No sei onde dormir.

    Pode dormir aqui se quiser; h bastante lugar disse a

    vaca.

    Samba aproximou-se mais e sentou-se num canto obser-

    vando a vaca. Perguntou:

    H alguma coisa para comer? Estou com muita fome.

    H capim respondeu ela.

    Ele suspirou e coou uma orelha, desanimado:

    Ah! Eu no como capim. Que pena!

    Ela no respondeu e continuou a mastigar; ele deu um

    cochilo, de p mesmo. Acordou com o rudo de uma carroci-

    nha que ia chegando; depois viu uma luz que se aproximava e

    ouviu vozes.

    Esconda-se disse a vaca. Vem gente a.

    Samba correu para o canto mais escuro da estrebaria e fi-

    cou atrs de um monte de espigas de milho. Abaixou-se e ficou

    quieto, esperando; viu um homem chegar puxando um cavalo

    pela rdea.

    Chegando porta da estrebaria, o homem tirou o freio do

    animal, deu-lhe uma palmada nas ancas e empurrou-o para

  • 59 www.tocadacoruja.net/

    dentro. Saiu fechando a porteirinha. O cavalo entrou com pas-

    sos cansados, dirigiu-se para o lugar onde costumava dormir e

    inclinou-se para beber gua num balde que o homem havia tra-

    zido.

    Parecia muito cansado. O homem foi levando a lanterna e

    a escurido envolveu novamente a estrebaria. A vaca parou de

    mastigar para falar com o cavalo:

    Est muito cansado, companheiro?

    Muito respondeu ele. Ento brincadeira atra-

    vessar quase toda a cidade levando verduras e ovos para ven-

    der?

    Mas voc descansa quando pra nas casas disse a

    vaca.

    Mesmo assim respondeu o cavalo comeando a

    comer capim.

  • 60 www.tocadacoruja.net/

    De trs do monte de espigas, Samba ouvia a conversa;

    quando viu o cavalo beber gua, sentiu a sede aumentar; tinha a

    boca seca. Resolveu sair daquele canto e tomar um pouco

    dgua do balde. O cavalo olhou-o de lado quando o viu apro-

    ximar-se; depois perguntou vaca:

    Temos novidade hoje? De onde ele vem?

  • 61 www.tocadacoruja.net/

    SAMBA TEM MAIS DOIS AMIGOS

    D licena que eu tome um gole dgua? Estou com

    uma sede terrvel; desde cedo ando perdido pelas ruas disse

    Samba.

    Beba vontade respondeu o cavalo. No faa

    cerimnia.

    Samba mergulhou a cabea no balde e sua lngua vermelha

    ia e vinha bem depressa recolhendo a gua para dentro da boca;

    depois olhou o cavalo que mastigava capim.

    Quer um pouco?

    Obrigado. pena no ter um pouco de comida, estou

    tambm com fome.

    Por que no aprende a comer capim? respondeu o

    cavalo. Esse o mal dos carnvoros: voc s come carne...

    Est muito enganado disse Samba. Como muitas

    coisas sem ser carne: arroz com caldo de feijo, macarro, ba-

    tata, po... S no como capim.

  • 62 www.tocadacoruja.net/

    Pois ns s temos capim para oferecer falou o ca-

    valo com a boca cheia.

    Samba deitou-se e resolveu dormir na estrebaria; ao me-

    nos dali no o enxotavam. O cavalo parou de comer e comeou

    a cochilar de p; a vaca parou de ruminar. Todo o bairro estava

    em completa escurido e silncio, no havia luz nas ruas. O ca-

    valo falou baixinho:

    A noite est fria, pode chegar mais perto, assim um

    aquece o outro.

    Samba aproximou-se mais e sentiu o bafo quente da vaca

    ao seu lado; o cavalo estava do outro lado. Apesar da fome que

    sentia, tinha sono, um sono pesado de quem est cansado.

    Dormiu a noite inteira entre os dois novos amigos: a vaca

    e o cavalo; quando o dia comeou a clarear, viu o cavalo co-

    mendo. Espichou-se todo, bebeu mais um pouco dgua; de

    repente, o cavalo avisou:

    Esconda-se, vem gente a.

    Samba mal teve tempo de pular para fora da estrebaria e

    esconder-se atrs de umas tbuas; viu um homem aproximar-se

    com uma corda na mo; amarrou a corda no pescoo da vaca

    que no se incomodou; depois puxou-a para fora; l foi ela

    mansamente acompanhando o homem. Samba voltou, assus-

    tado e perguntou ao cavalo:

    Vo mat-la?

    Nada disso respondeu o novo amigo. Vo tirar o

    leite para vender na cidade; fazem isso todas as manhs.

  • 63 www.tocadacoruja.net/

    Samba deu umas voltas ao redor da estrebaria para ver se

    encontrava alguma coisa para comer; no havia nada seno

    cascas de laranja.

    Viu a vaca voltar e entrar de novo; ouviu vozes de mulhe-

    res e homens conversando na porta da casa; depois um dos

    homens dirigiu-se para o lado dele. Correu e escondeu-se atrs

    de uma carroa; o homem passou sem olhar para ele, foi para a

    estrebaria e tirou o cavalo.

    Atrelou-o a uma carroa cheia de verduras, disse adeus s

    pessoas da casa e tocou o cavalo para fora da chcara; l foi ele

    rua acima puxando a carroa.

    Samba voltou e viu a vaca deitada num canto. Perguntou:

    sempre assim? No deixam o pobre cavalo descan-

    sar? Chegou ontem to tarde e j foi embora!

    Sempre assim respondeu a vaca. Nossa vida

    essa; enquanto eu produzir leite, estarei viva. Um dia me mata-

    ro para comerem minha carne. O cavalo mais feliz, morrer

    de velho, mas trabalhar at morrer. Creio que o mais feliz dos

    animais voc...

    Ns? Samba pensou um pouquinho e continuou:

    ns no podemos nos queixar, mas temos tambm nossos

    sofrimentos. H cachorros bem infelizes... Sem dono, sem

    ningum que trate, que d um prato de comida, um banho... Eu

    no posso me queixar, mas muitos sofrem bastante.

    E quem no sofre neste mundo? perguntou a vaca

    abanando a cabea. Quem?

  • 64 www.tocadacoruja.net/

    * * *

    Mais tarde, uma mulher veio buscar a vaca e levou-a para

    um pastinho que havia no fundo da chcara; antes de sair, a

    vaca recomendou:

    Se quiser, pode ficar a at ns voltarmos.

    Samba ficou sozinho; resolveu sair rua para se orientar e

    tambm procurar comida. Estaria muito longe da casa? No

    tinha a menor idia; assim mesmo resolveu tentar a sorte.

    Tinha muita fome; desde a vspera no comia nada e a

    fome aumentava a cada momento. Chegando rua, passou pe-

    las portas de vrias casas olhando sempre o cho para ver se

    encontrava qualquer coisa. Na esquina estava um grupo de me-

    ninos descalos; olharam para ele e um disse:

    Olhem que cachorro bonitinho.

    Outro disse:

    E da raa Fox, legtimo.

    Samba resolveu correr para livrar-se dos meninos; estava

    num bairro pobre onde nunca tinha estado antes; as ruas esta-

    vam cheias de crianas. Havia cachorros tambm, mas Samba

    no quis fazer conhecimento com nenhum deles; estava to

    desesperado que s pensava em achar o caminho de casa.

    Havia ruas transversais sem calamento algum e ele enve-

    redou por elas; depois de muito procurar encontrou um osso,

    mas to rodo que no valia mais nada; estava seco e sujo, de-

    certo tinha sido rodo por todos os cachorros da rua.

  • 65 www.tocadacoruja.net/

    Mais adiante encontrou uns bagaos de laranja; comeu

    com repugnncia, mas a fome era demais. Viu um velho senta-

    do porta de uma casa fumando um cachimbo; simpatizou-se

    com ele. Parecia um bom homem, aquele velho. Ficou a certa

    distncia olhando para ele, que cachimbava calmamente; fuma-

    va e cuspia, jogava o cuspo longe.

    Quando viu Samba, chamou-o fazendo sinal com os de-

    dos e dizendo:

    Venha aqui, venha.

    Samba ficou desconfiado, sem coragem de chegar mais

    perto; como viu que o velho estava s, foi se chegando mais,

    com esperana de que o homem lhe desse alguma coisa para

    comer. Assim ficou algum tempo; o velho cachimbava olhando

    para o outro lado da rua; quando via Samba ali parado no

    mesmo lugar, lembrava de cham-lo.

    Venha, cachorrinho.

  • 66 www.tocadacoruja.net/

    E cuspia. Samba imaginou que o velho era bom e poderia

    dar-lhe um pedao de po; aproximou-se cada vez mais.

    Quando estava bem perto, cheirando o homem com ateno

    para ter certeza se ele gostava mesmo de cachorros, uma mu-

    lher veio l dos fundos da casa com uma criana no colo. Ape-

    nas disse quando o viu:

    Sai, cachorro! Passa!

    E abanou o avental na direo do Samba; ele saiu corren-

    do muito assustado e foi parar no outro lado da rua.

    Viu ento uma menina de uns seis anos comendo um pe-

    dao de po; sentiu gua na boca. Falando a verdade, em casa

    ele no gostava muito de po, s quando Dermina torrava e ele

    comia: roc, roc, roc, com muito gosto. S po torrado. Mas

    agora, ali, ansiava por um pedao de qualquer po. Tinha fome.

    Ficou olhando a menina com ateno, como havia feito

    com o velho de cachimbo. Ser que a menina gostava de ca-

    chorros? Ele conhecia quem gostava dele ou no, s pelo chei-

    ro. D. Maria dizia que ele tinha um sexto sentido que o ensina-

    va a conhecer as pessoas de longe.

    Todo mundo tem cinco sentidos: a vista, a audio, o ol-

    fato, o paladar e o tato. D. Maria dizia que os cachorros tm

    seis sentidos; o sexto no se sabe onde est, mas ensina-os a

    saber quem gosta deles ou no gosta. Samba era assim; conhe-

    cia de longe quem era bom para os cachorros e quem no se

    importava com eles.

    Ficou vigiando a menina para ver se sobrava um peda-

    cinho de po para ele, nem que fosse um pedacinho s. Foi

  • 67 www.tocadacoruja.net/

    chegando, chegando, at que a menina ficou com medo e gri-

    tou com toda a fora:

    Sai! Sai!

    Ele saiu correndo e no mesmo instante apareceu um ho-

    mem e atirou-lhe uma pedra que felizmente no acertou; de-

    certo era o pai da menina. Samba pensou: No gostam de ca-

    chorros. Se no fosse a fome, nem eu chegava perto dela.

    Foi andando para diante, muito desconsolado. Haveria de

    encontrar o caminho da casa, nem que fosse para andar noite e

    dia sem parar, sem comer e sem beber.

  • 68 www.tocadacoruja.net/

    QUE FAZER?

    Passou o dia todo andando pelo bairro sem encontrar

    uma rua conhecida que o levasse para o caminho certo; depois

    de muito andar j era quase noite foi dar outra vez na

    mesma estrebaria, onde estivera na noite anterior. De longe, viu

    a vaca olhando-o, como que dizendo: Se no tem onde ir, ve-

    nha para c. Ns tratamos bem voc.

    Passou pelo vo da cerca e aproximou-se perguntando:

    O cavalo ainda no chegou?

    No disse a vaca. Aquele coitado trabalha o dia

    inteiro.

    Samba respondeu:

    Nunca vi vender verdura noite.

    O dono no vende verdura noite; vende durante o

    dia. Depois, em vez de vir para casa bem direitinho, no; pra

    nos botequins, vai comprar ovos nos stios para vender na ci-

    dade, d uma prosa e joga um pouquinho com os amigos, o

    pobre cavalo fica cochilando na carroa.

  • 69 www.tocadacoruja.net/

    Como que voc sabe tudo isso? perguntou Samba.

    O cavalo me conta tudo respondeu a vaca.

    Coitado!

    Samba ficou por ali, cansado e faminto. Bebeu um pouco

    dgua do balde e deitou-se; j era noite. O que adiantava sair

    pelas ruas quela hora? Se ele no havia encontrado o caminho

    durante o dia, mais difcil seria agora noite.

    Viu quando o cavalo entrou queixando-se de cansao;

    deitaram-se os trs um ao lado do outro e dormiram a noite

    inteira sobre a palha da estrebaria.

    No dia seguinte, cedo, quando foram buscar a vaca para

    tirar o leite, o dono viu Samba e disse para o filho, um menino

    de dez anos:

    ngelo, pegue aquele cachorrinho pra ns.

    Samba desconfiou que era com ele porque estavam o-

    lhando muito; pulou para fora e saiu correndo. O dono disse:

    Ele deve estar com fome, v buscar um pedao de po.

    ngelo correu para casa, cortou um pedao de po, es-

    fregou-o num prato onde havia torresmos e saiu correndo para

    o quintal. De longe, Samba sentiu o cheiro dos torresmos e

    sentiu a fome aumentar; era uma fome que fazia doer o est-

    mago.

    ngelo mostrou-lhe o po:

    Toma, cachorrinho.

    Ele parou e aspirou o ar; o cheiro era tentador. Devia a-

    ceitar ou no? O que fazer? E se o prendessem? Ficou espe-

  • 70 www.tocadacoruja.net/

    rando o menino jogar o po no cho; a ele o tomaria e sairia

    correndo, antes que o prendessem.

    O menino mostrava o po e chamava:

    Isto para voc, cachorrinho. Toma!

    Samba ficou firme, sentado nas patas tra-

    seiras, olhando de longe, sem coragem de se

    aproximar. Afinal o menino atirou o po na di-

    reo dele; ele avanou para alcan-lo, louco de

    fome, mas no mesmo instante sentiu um saco

    de estopa envolv-lo todo. Percebeu que era o

    homem que tinha vindo por trs e jogado o sa-

    co.

    Debateu-se para fugir, mas no conseguiu.

    Tiraram-no do saco, amarraram-lhe uma cordi-

    nha no pescoo e levaram-no para a cozinha da

    casa. L prenderam a corda no p da mesa, uma

    mesa baixa e pesada. A vaca viu tudo de longe e

    ficou indignada por prenderem o pobre Samba.

    O coitadinho procurou fugir, mas a corda aper-

    tou-lhe o pescoo; chorou ento de desespero e

    aflio. Estava preso.

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    PRISIONEIRO

    Samba esqueceu a fome, esqueceu tudo; esforou-se para

    fugir, mas no era possvel; todas as vezes que tentava escapar,

    a corda feria-lhe o pescoo.

    Passou o dia ali preso; conheceu toda a famlia da chcara;

    alm dos donos, havia um rapaz e uma moa, e vrias crianas.

    Olharam para ele e passaram as mos sobre sua cabea;

    Samba sentiu mos grossas e calosas, diferentes das mos de D.

    Maria e do doutor. Mais tarde, todos saram para trabalhar na

    cidade; a mulher e os filhos menores ficaram para trabalhar na

    horta. Vendiam leite da vaca e verduras na cidade.

    Assim passou-se o primeiro dia. Samba ficou sozinho com

    Emlia, uma criancinha de dois anos. Era uma menina que

    chorava muito e por qualquer coisa; ficou sentada no cho ao

    lado de Samba e de vez em quando, puxava-lhe as orelhas; se

    Samba rosnava, ela dava-lhe tapas na cabea.

    Ele era bem-educado; foi criado de uma maneira severa e

    sabia que no devia morder crianas. Revoltou-se com o que

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    Emlia fez, mas no mordeu, apenas roncava para assustar a

    criana.

    tarde, ngelo tirou Samba dos ps da mesa da cozinha

    e levou-o para fora a fim de dar um passeio, mas sempre com a

    corda no pescoo.

    Samba sentiu desespero no corao e uma saudade imensa

    dos donos, de Dermina, de Pedro, de Vera. Mas tinha uma se-

    creta esperana; fingia-se humilde com a gente da chcara para

    no despertar suspeitas, mas estava certo de que fugiria. Havia

    de fugir um dia, de qualquer maneira.

    Certa vez, ao passar perto da estrebaria, pela mo de n-

    gelo, contou tudo vaca e esta consolou-o como pde. O ca-

    valo tambm deu-lhe conselhos e disse-lhe que tivesse pacin-

    cia, um dia as coisas haviam de melhorar.

    * * *

    Assim passou-se mais uma semana. s vezes, vinha um

    cachorro da chcara vizinha conversar com Samba; era um vi-

    ra-lata pulguento e triste. Queixava-se dos donos e contava a

    Samba que passava o ano todo comendo angu com feijo; ape-

    nas no Natal davam-lhe ossos de cabrito. Nunca lhe haviam

    dado um banho, por isso vivia assim cheio de pulgas. Chama-

    va-se Veludo; de quando em quando tomava banho sozinho

    debaixo da chuva.

    Convidou Samba para dar um passeio pelas redondezas,

    mas ele disse que no podia sair dali, era um prisioneiro. Samba

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    ento contou o vido que tinha em casa dos seus verdadeiros

    donos; como passava bem e comia coisas gostosas; Veludo sa-

    cudiu a cabea dizendo que no acreditava muito.

    Ento havia cachorros felizes assim?

    Samba contou mais coisas; disse que na casa dele havia

    um colo macio e quente chamado colo da Vov, onde ele

    dormia sonos deliciosos; Veludo duvidou; enquanto mordia

    uma pulga na barriga, respondeu:

    Olhe, companheiro, voc est contando muita vanta-

    gem. Ento punham voc no colo?

    E no era s isso continuou Samba. Todos os

    dias eu dormia um bom sono na cama da patroa, em cima de

    um acolchoado de seda, formidvel. Comia carne at enjoar,

    osso com tutano, macarro, po torrado, frutas. No tomava

    leite porque no gosto de leite...

    Ser possvel tudo isso? perguntou Veludo. Eu

    nunca provei uma gota de leite depois que fui desmamado,

    carne nunca, ossos s no Natal, po torrado no conheo, a-

    colchoado no sei o que ... Frutas? S as cascas de bananas

    que encontro pelo cho. E voc deixou tudo isso para vir para

    c?

    Eu no deixei explicou Samba. Um dia vi o por-

    to aberto, sa um pouco para ver a rua, encontrei um amigo

    chamado Cricri e fui andando com ele. Quando percebi, estava

    muito longe de casa e no pude mais voltar. Agora me prende-

    ram nesta casa. Quase morri de desespero nos primeiros dias,

    agora vou indo assim... assim...

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    Veludo comeou a morder miudinho procurando pulgas

    no rabo; pegou umas duas, matou e olhou para Samba:

    Se eu fosse voc, camarada, tratava de fugir, voltar para

    casa dos seus donos e nunca mais pensar em sair, nem chegar

    perto do tal porto.

    isso mesmo que pretendo fazer respondeu Samba.

    O dia em que eu puder, fugirei.

    Estou aqui para ajudar disse Veludo. O que de-

    pender de mim, pode estar certo que fao para auxiliar voc.

    Devemos proteger todos os companheiros que esto em apu-

    ros.

    Muito obrigado respondeu Samba.

    Nesse instante ouviram uma voz chamando:

    Veludo! Onde est, Veludo! Venha tocar as galinhas do

    canteiro de alface. Anda!

    Esto me chamando disse ele. Meu servio vi-

    giar os canteiros de alface e tocar as galinhas. At logo.

    Foi andando depressa; parou umas duas vezes para se co-

    ar antes de sumir no quintal vizinho.

    Ao fim de oito dias, uma das crianas soltou Samba e fi-

    cou vigiando de longe para ver se ele fugia. Ele fingiu que no

    queria ir embora e foi conversar com a vaca no estbulo. Ela

    perguntou:

    Ento? Est mais acostumado?

    Qual o qu! disse ele. No vejo a hora de ir em-

    bora daqui. Isto no vida! Na minha casa tinha colcho para

    dormir, colcho e travesseiro, tinha vrios colos para cochilar

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    durante o dia... Era tanto colo que era s escolher... Comia

    carne, tomava banho seco contra pulgas, passeava duas vezes

    por dia... E aqui? Tenho feijo com arroz para comer. Imagine

    que l em casa nunca comi feijo; detestava feijo.

    E agora? perguntou a vaca.

    Agora como para no morrer de fome. Depois, no

    tenho passeios nem colos. Durmo no cho duro; e aquela me-

    nina Emlia me atormenta e me deixa quase louco. Isso vida?

    A vaca mastigava sem parar. Perguntou:

    E seu vizinho Veludo? Console-se com ele.

    Ah! disse Samba. Aquele bem infeliz; no co-

    nhece a felicidade.

    Depois de uns momentos Samba perguntou:

    Acha que eu posso fugir algum dia?

    Pode disse a vaca. Eu e o cavalo ajudaremos no

    que for preciso.

    No mesmo instante vieram prender Samba de novo; a-

    marraram-lhe uma cordinha no pescoo e levaram-no para o p

    da mesa da cozinha.

  • 76 www.tocadacoruja.net/

    A MUDANA

    No dia seguinte comeou um grande rebulio na chcara;

    amarraram colches, encaixotaram pratos e panelas, enfiaram

    roupas em cestas. Samba olhava tudo sem compreender. O que

    estaria acontecendo? Viu o cavalo amarrado na carroa olhando

    tristemente o cho. Quando desamarraram a cordinha do p da

    mesa, Samba foi conversar com o cavalo.

    Voc pode me ajudar a fugir? A vaca e Veludo j me

    prometeram.

    O que eu puder fazer, fao respondeu o cavalo.

    E sabe por que esse movimento na casa?

    Vamos nos mudar. Creio que vamos morar numa ch-

    cara muito longe.

    Pobre de mim! gemeu Samba. Como poderei fugir?

    Eu ajudo respondeu o cavalo. No desanime.

    Na mesma tarde fizeram a mudana. Apressadamente

    Samba despediu-se do seu companheiro e vizinho Veludo; a

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    carroa foi levando os mveis e colches; ia to cheia e to pe-

    sada que o pobre cavalo mal conseguia puxar. A vaca ia amar-

    rada atrs da carroa e Samba ia em cima de tudo, sobre uns

    colches, ao lado da menina Emlia. De longe viu Veludo sen-

    tado na porta da casa vizinha, as orelhas cadas quase at o cho,

    uma cara muito desanimada. De vez em quando, coava-se.

    A carroa foi indo e Samba olhou as ruas que atravessa-

    vam; queria guardar na memria o caminho da volta; eram ruas

    feias, quase sem calamento e, como choveu na vspera, havia

    grandes poas dgua por onde passavam.

    O cavalo tropeava e quase caa com o peso que arrastava;

    a vaca ia acompanhando a carroa e abanando a cauda, dizia ela

    ao companheiro:

    Desculpe, mas no posso ajudar voc; estou amarrada

    aqui atrs.

    O cavalo suava e no respondia, puxava com fora a car-

    roa; Samba, l em cima, encarapitado sobre os colches, ao

    lado da Emlia, olhava para todos os lados a fim de ver se co-

    nhecia o bairro. Tudo era desconhecido para ele ali naquele la-

    do da cidade.

    J estava escurecendo quando chegaram nova residncia;

    era tambm uma chcara, porm maior que a outra. Instala-

    ram-se rapidamente; todos auxiliavam, at as crianas.

    Nessa noite, com a afobao da chegada, esqueceram de

    dar comida ao cachorrinho Samba; apenas um dos meninos

    deu-lhe migalhas de po. Choveu a noite toda. No dia seguinte,

    cedo, soltaram Samba, pois essa chcara era to distante da casa

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    dele que acharam que ele podia ficar solto. Por mais que pro-

    curasse, no saberia o caminho de volta.

    Ele correu para a nova estrebaria, onde estavam instalados

    seus amigos, o cavalo e a vaca. Os dois queixaram-se; estavam

    aborrecidos porque a estrebaria era velha e chovia dentro, o

    capim estava molhado e eles tambm haviam tomado chuva.

    Samba consolou-os dizendo:

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    Eu tambm estou muito triste; ontem nem jantei. Es-

    queceram de me dar alguma coisa para comer e dormi com o

    estmago vazio. E vocs sabem onde estamos? Este bairro fica

    muito longe de onde eu morava?

    A vaca sacudiu a cabea dizendo que nada sabia, porque

    nunca andava pelas ruas, o cavalo disse que ia procurar saber

    desse dia em diante, pois ainda nem percebia onde estavam.

  • 80 www.tocadacoruja.net/

    SAMBA TEM NOVO NOME

    Os novos donos de Samba puseram-lhe o nome de Feiti-

    o; Samba no gostou; todas as vezes que chamavam: Feiti-

    o!, ele fingia no ouvir.

    A vida no mudou muito na nova chcara; o dono saa de

    madrugada com a carroa puxada pelo velho cavalo; ia vender

    verduras nas feiras. Sempre levava um dos filhos para auxili-lo.

    A mulher ficava lidando na casa enquanto os outros filhos

    iam trabalhar na cidade. ngelo vendia jornais no bairro; todas

    as noites, depois de percorrer as ruas gritando: A Folha! O

    Dirio! A Gazeta!, vinha com os bolsos cheios de moedas e

    dava me; ela ento contava as moedinhas e guardava-as nu-

    ma caixa de madeira ao lado da cama.

    ngelo jantava o prato de comida que a me guardava em

    cima do fogo, depois chamava Samba para brincar. Dizia:

    Venha, Feitio! Venha jogar bola!

    Tinha uma bola de pano feita com meias velhas das irms;

    ngelo atirava-a para o ar e Samba pegava; isso entusiasmava as

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    outras crianas da casa e as crianas vizinhas. Todas vinham ver

    o Feitio jogar com ngelo.

    Mas Samba vivia triste; s vezes, ficava olhando a bola de

    pano sem vontade de brincar; a bola vinha caindo e ele nem se

    importava com ela. Por mais que ngelo gritasse, ele no aten-

    dia. De vez em quando aparava a bola no ar, ento a crianada

    batia palmas de entusiasmo.

    De todos da casa, ele gostava mais de ngelo, o menino

    que vendia jornais; tinha pena quando ele voltava tarde para

    casa, s vezes, todo molhado da chuva. Jantava sentado na beira

    do fogo e dava as migalhas do prato para o cachorrinho que

    fazia companhia ali ao lado.

    Depois ngelo ia se deitar e assobiava para Samba, que

    vinha sem fazer barulho e deitava-se aos ps da cama do me-

    nino.

    Uma noite, na nova casa, a mulher do chacareiro e as cri-

    anas estavam dormindo enquanto o homem e os filhos mais

    velhos haviam ficado na cidade. Nessa noite, a mulher tinha se

    zangado com ngelo por deixar o cachorrinho dormir na cama

    dele; por isso Samba ficou preso dentro da cozinha, mais triste

    ainda.

    Dormiu sonhando com o doutor e D. Maria, seus queri-

    dos donos. Era uma noite muito fria de inverno; felizmente

    Samba no sentia frio porque a cozinha era quente e, como no

    havia um pano onde deitar, dormia encostado no fogo para

    sentir o calor.

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    Devia ser bem tarde quando ele ouviu um barulhinho,

    como de algum andando no quintal; a princpio, escutou silen-

    ciosamente para verificar quem era, depois, percebendo que era

    gente estranha, resolveu rosnar como quem diz: Estou aqui e

    no estou dormindo.

    Tudo ficou silencioso outra vez; de repente ouviu o rudo

    de passos novamente, desta vez perto do tanque de lavar roupa.

    Ele ficou com o plo todo em p, no de medo, mas zangado;

    percebeu que era gente que andava pelo quintal, gente que no

    tinha nada com a chcara; devia ser algum ladro.

    Em vez de continuar a rosnar, ficou quieto e esperou.

    Percebeu que o ladro estava encostado na porta da cozinha;

    com certeza estava escutando para ver se havia algum acorda-

    do. Samba nem parecia respirar. De repente, o ladro comeou

    a experimentar uma chave na fechadura, depois outra, outra

    chave, at acertar.

    Ele encolheu-se todo num canto do fogo, esperando.

    Esse ladro era bem ousado. Como ousava entrar assim numa

    casa? E, ainda mais, numa pobre casa de simples chacareiros?

    Uma chave havia acertado na fechadura, a porta estava se

    abrindo. Samba sentiu necessidade de agir, no podia ficar sem