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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE ARQUITETURAPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUITETURA E URBANISMO
MARIANA RIBAS CORDEIRO
ESPAO-MOVIMENTO
DESESTABILIZAES ARQUITETNICAS NA PRODUO DA CIDADE CONTEMPORNEA
Salvador
2011
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MARIANA RIBAS CORDEIRO
ESPAO-MOVIMENTO
DESESTABILIZAES ARQUITETNICAS NA PRODUO DA CIDADE CONTEMPORNEA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade deArquitetura, Universidade Federal da Bahia, comorequisito parcial para obteno do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Pasqualino Romano Magnavita
Salvador
2011
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Faculdade de Arquitetura da UFBA - Biblioteca
C794 Cordeiro, Mariana Ribas.
Espao-movimento : desestabilizaes arquitetnicas na produo dacidade contempornea / Mariana Ribas Cordeiro. 2011
110f. : il.
Orientador: Prof. Dr. Pasqualino Romano Magnavita
Dissertao (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade deArquitetura, 2011.
1. Arquitetura moderna Sc. XXI. 2. Espao (Arquitetura) -subjetividade. 3. Urbanismo. I. Universidade Federal da Bahia. Faculdadede Arquitetura. II. Magnavita, Pasqualino Romano. III. Ttulo.
CDU: 72.036
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TERMO DE APROVAO
MARIANA RIBAS CORDEIRO
ESPAO-MOVIMENTO
Desestabilizaes arquitetnicas na produo da cidade contempornea
Dissertao apresentada ao Programa de Ps Graduao em Arquitetura e Urbanismoda Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia como requisito parcialpara obteno do grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo e avaliada pela seguintecomisso examinadora:
Professor Dr. Pasqualino Romano Magnavita
(Orientador Universidade Federal da Bahia)
Professor Dr. Fernando Gigante Ferraz
(Universidade Federal da Bahia)
Professor Dr. Luis Antonio Dos Santos Baptista(Universidade Federal Fluminense)
Professora Dr. Paola Berenstein Jacques
(Universidade Federal da Bahia)
Salvador, 31 de maio de 2011.
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Agradecimentos
Ao meu querido e generoso orientador Pasqualino Magnavita, por todas as orientaes,
desorientaes, reorientaes. Por todas as vezes que foram necessrias criar
condies de desaprumo e desvio sem as quais no seria capaz de construir as
situaes que do substncia a esta pesquisa. Obrigada Pasqua, por me ensinar que a
gente s ensina o que tem sede de saber.
A Fernando Ferraz, Luis Antonio Baptista e Paola Jacques, pelas orientaes, crticas e
contribuies ao longo de todo o processo de produo e finalizao. Obrigada por me
emprestarem um pouco de suas lentes de viso alm do alcance. Confesso que por
vezes operei certas distores ticas, tentei inclusive visualizar por outras faces, ou
simplesmente fechei os olhos para que aquilo se fizesse mais ameno em mim.
Distores perceptivas fazem parte de qualquer processo de adaptao e
amadurecimento, e todas me foram muito vlidas.
Ao CNPQ pelo apoio financeiro, ao Programa de Ps Graduao e Faculdade de
Arquitetura pelo acolhimento acadmico, ao Laboratrio Urbano e Cooperativa de
Orientao pela contribuio no desenvolvimento do repertrio conceitual da pesquisae por ter me proporcionado um derrame de acontecimentos em Salvador.
Aos estudantes, arquitetos e urbanistas que fizeram parte desta pesquisa e
colaboraram diretamente na construo do ser arquiteto que se expe ao longo da
dissertao: Akemi Tahara, Adriano Leite, Aline Porto, Amanda Reis, Amine Portugal,
Ana Fernandes, Ana Maria Binazzi, Andr Teobaldo, Aruane Garzedin, Camila
Benezath, Carolina Tavares, Clara Passaro, Clara Pignaton, Danielle Guimares, Diego
Mauro, Diego Solano, Eduardo Rocha, Fenando Minho, Fernando F. Ribeiro, Fernando
Mesquita, Flvio de Souza, Gabriel Schvarsberg, Glria Ceclia, Iazana Guizzo, caro
Vilaa, Igor Souza, Layra, Lel, Lucas Mucarzel, Luciana Raposo, Luis Vieira, Lutero
Proscholdt, Marcio Targa, Marcos Nunes, Marcos Queiroz, Mrio Vtor, Paulo Myada,
Pedro Freire, Regina Coeli Barros, Renata Alencar, Thais Portela, Thais Rebouas e
Xico Costa.
Aos produtores de desestabilizaes urbanas que tambm contriburam no
deslocamento deste arquiteto: Ghustavo Tvora, Mariana Terra, Priscila Lolata, Tiago
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Costa, Carol rica, Iara Sales, Pricles Mendes, Carolina Fonseca, Regina Helena,
Fabiana Britto e o GIA.
Aos amores da comunidade que me deram apoio durante toda a estada em Salvador,por suportarem minhas digresses filosficas no caf da manh ou em qualquer outra
hora imprpria e por vibrarem junto em cada nova resoluo. Por serem pacientemente
minhas cobaias voluntrias e aprovarem com cara de satisfao cada nova inveno
por mais estranha que lhes parecessem. Aos que deixei, minha deusa da
concentrao Glorita, minha haribol iluminada Mari Terra e meu queridssimo amigo
Bruno Westermann. Aos que nos deixaram saudades: Marcola, Kaju, Risa e Renan.
Aos agregados, de passagem ou no: Thai, Passarinha, Claridade, Priscila, Tlio,
Fernando, Fran e Cintoca. E a Thais Portela, porto seguro para elucidaesacadmicas ou no.
A minha famlia linda e amada por seu apoio e equilbrio sem os quais eu no poderia
seguir, Paulo, Lcia, Camila e Filipe. E tambm a Juliana, Adelma e Marina pelas
iluminaes e ajustes finais da ltima etapa.
As palavras tomam rumos que ns mesmos no somos capazes de significar, tantas
vezes quantas forem suas leituras, recepes e interpretaes, tantas vezes quantas
forem as incurses criativas que poremos sobre cada uma delas, a qualquer tempo, em
qualquer corpo. As palavras aqui contidas so frutos da construo coletiva de todos os
seres acima citados e por isso mesmo, a depender do arranjo, tendem a tomar outras
configuraes. Deixemos que as palavras reverberem. A todos vocs meu muito
obrigada.
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"Sempre que se comea a ter amor a algum, no ramerro, o
amor pega e cresce porque, de certo jeito, a gente quer que
isso seja, e vai, na idia, querendo e ajudando, mas quando
destino dado, maior que o mido, a gente ama inteirio fatal,
carecendo de querer, e um s facear com as surpresas. Amor
desse, cresce primeiro; brota depois."
Guimares Rosa em Grande Serto: Veredas
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Resumo
No intento de provocar desestabilizaes na produo da arquiteturacontempornea, esta dissertao explora desvios conceituais atravs do uso de
lentes provenientes da literatura, psicologia e filosofia e busca traar meios para
embasar uma construo reflexiva do que seja uma arquitetura-que-vaza e se
utiliza da figura conceitual e virtual denominada espao-movimento. O espao
que no pra de conectar-se, relacional e circunstancial, o espao dos
deslocamentos. Tomamos a vida do ser humano como objeto e condio de
nossa abordagem arquitetnica e consideramos a arquitetura enquanto campoampliado do prprio corpo. A arquitetura e a cidade enquanto o duplo do
homem. Nosso objetivo trazer arquitetura uma possibilidade de abertura
capaz de engendrar um pensamento para um tipo de poltica da contingncia
dos espaos construdos que seja capaz de dar conta da produo da cidade
subjetiva.
Palavras chave: arquitetura, urbanismo, produo de subjetividade, cidadecontempornea.
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Abstract
Within the intent to cause destabilization in the production of contemporary
architecture, this dissertation explores conceptual detours through the light of
literature, psychology and philosophy and seeks to outline ways to support a
reflexive conception of what can be an architecture-that-pours and uses the
conceptual and virtual figure of what can be known as space-movement. The
space that never ceases to connect itself, that is relational and circumstantial;
the space of displacements. We take human life as object and condition of ourarchitectural approach and consider the expanded field of architecture as the
body itself. The architecture and the city as the dual of man. Our goal is to bring
the possibility of opening to an architecture capable of critical thought and to
engender a kind of political contingency of the built environments that is able to
account for the production of the subjective city.
Keywords: architecture, urbanism, production of subjectivity, contemporary city.
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Lista de Ilustraes
Figura 1 - isto arquitetura? Interveno sobre imagem. Detalhe de instalao, Miniusina(BA) -
Igor Souza e Marcos Nunez, 2011. Foto: Igor Souza. .................................................................... 11
Figura 2 - Interveno sobre gravura. Composio das obras de Frank Ghery. Edgar Gonzalez,
2010............................................................................................................................................... 28
Figura 3 - Detalhe de instalao, Lugares Moles. Jose Menna Barreto, 2007. Foto: Menna
Barreto .......................................................................................................................................... 52
Figura 4 - Detalhe de interveno Urbana - Amarelinha, Rio de Janeiro, 2009. Foto: Mariana
Ribas .............................................................................................................................................. 77
Figura 5 - Detalhe de instalao, Miniusina(BA). Igor Souza e Marcos Nunez, 2011. Foto: Igor
Souza ............................................................................................................................................. 96
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Sumrio
Desestabilizaes Arquitetnicas .............................................................................................. 13Captulo 1 ........................................................................................................................... 30
Movimentos de limitao ................................................................................................... 30
Do espao e do homem contemporneo ................................................................................. 31
Arquitetura, capital e insnia ................................................................................................ 31
1.1 Do sistema de modelizao contemporneo .................................................................. 35
1.2 Do terrorismo subjetivo .................................................................................................. 39
1.3 Do sujeito cotidiano ........................................................................................................ 44
1.4 Da produo do espao arquitetnico ............................................................................ 47
Captulo 2 ........................................................................................................................... 53
Movimentos de abertura .................................................................................................... 53
Da criao, um desvio ........................................................................................................... 54
2.1 Da construo do espao e da arquitetura ..................................................................... 57
2.1 Subjetividade e singularidade ......................................................................................... 63
2.3 Arquitetura e produo de subjetividade ....................................................................... 66
2.4 Do espao-movimento .................................................................................................... 73
Captulo 3 ........................................................................................................................... 78
Reorientaes..................................................................................................................... 78
Nota sobre defenestrar arquiteturas .................................................................................... 79
3.1 Dos desafios .................................................................................................................... 80
Sobre reinventar o espao arquitetnico ............................................................................. 80
3.2 Das possibilidades ........................................................................................................... 87
Arquitetura, autopoise e autonomia .................................................................................. 88
Consideraes Finais ........................................................................................................... 97
Sobre o espao-movimento e o arquiteto intensivo ............................................................ 99
Referncias bibliogrficas ................................................................................................. 105
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Introduo
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Desestabilizaes Arquitetnicas
Enquanto arquiteta e urbanista, fui formatada para responder com destreza asquestes de demanda projetual com resolues prticas e efetivas que propem
arquiteturas de qualidade, reas urbanizadas, regulamentadas e plenamente
integradas estrutura formal da cidade, tal como a grande parte dos
profissionais, hoje em atividade. Solues, que em sua maioria, sugerem o
encobrimento das potncias e das diferenas pelo concreto ou pelo asfalto e
tm provocado inquietaes que nos levam a pensar como o questionamento
provocada pela cano do GIA, Grupo de Interferncia Ambiental, sediado emSalvador uma cidade interferida uma cidade melhor?. Por que insistimos
tanto em moldar o espao ao nosso desejo? Por que insistimos em moldar o
espao ao desejo de outros que pensamos ser nosso?
A ao da sociedade atual nos impe inmeras normas de modelizao, para
conter a ao deliberada e inusitada, substituindo-as por tipos padres de
comportamento. Governada para produzir objetos, imagens e modos de vida
que podem ser comprados, a cidade brasileira, onde reina a democracianeoliberal, impulsiona a transformao do pas num grande mercado e seus
habitantes em seres subjugados pelos interesses de produo e acumulao de
capital reboque do mercado mundial. Que cidade esta que se constri sob o
julgo de comportamentos normativos? como se os impulsos do humano no
pudessem fazer parte da artificialidade da cidade recriada para os negcios.
Nesta cidade-mercadoria, cidade-empresa, cidade-espetculo, no cabem
conflitos urbanos, diferenas, muito menos a profunda desigualdade scio
espacial; o que no exceo, mas tem sido regra do nosso processo de
urbanizao.
Em nome de uma prosperidade nacional, ordem, produtividade, emancipao e
progresso o Aparelho de Estado 1 age atravs de programas, tecnologias e
1 Em Dilogos, Deleuze nos explica o que consiste o Aparelho de Estado: [...] umagenciamento concreto que efetua a mquina de sobrecodificao de uma sociedade. Essamquina, por sua vez, no , portanto, o prprio Estado, a mquina abstrata que organiza osenunciados dominantes e a ordem estabelecida de uma sociedade, as lnguas e os saberesdominantes, as aes e sentimentos conformes, os segmentos que prevalecem sobre os outros.
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estratgias que operam para moldar e orientar a conduta dos seres humanos.
preciso lembrar que estes mesmo seres humanos no so os sujeitos
agregados por um regime lgico de governo que produz pessoas como queira.Diferente disto, eles vivem suas vidas em um constante movimento entre
diferentes prticas, que, por sua vez, subjetivam de diferentes maneiras.
Esta ao resulta na transformao do planeta num gigantesco mercado e,
seus habitantes, em zumbis hiperativos includos ou trapos humanos excludos
(ROLNIK, 2007, p. 18), subjugados pelos interesses de produo e acumulao
de capital. Aqui, nesta cidade que vendida para que o mais feroz dos
liberalismos tenha condies de depred-la e faa dela um negcio, se estimulaa propriedade, mas de todos os modos se restringe a apropriao (DELGADO,
2007).
A interferncia da globalizao e da sociedade do consumo na formao da
cidade pe a questo da imagem da arquitetura em carter central. E, por
negao, expe a importncia da dimenso do corpo no espao que, envolto
num mundo de vertigem e fluidez, est cada vez mais deslocado. O ser humano
permanece como uma certeza materialmente sensvel, diante de um universodifcil de apreender (SANTOS, 2008, p. 314).
A experincia da arquitetura, atravs de sua dimenso corprea, poderia ser
vista como uma crtica ao pensamento hegemnico contemporneo da
arquitetura e do urbanismo e, a partir do momento em que a cidade vivida,
deixa de ser simples cenrio montado para a promoo e o entretenimento
turstico. As aes dos arquitetos no espao so legitimadas ou no por sua
apropriao cotidiana, deste modo, o espao se qualifica em funo do corpo dohabitante que o habita, onde o movimento do corpo no espao movimenta e
transforma o espao.
[...] Ela no depende do Estado, mas sua eficcia depende do Estado como do agenciamentoque a efetua em um campo social. [...] No h cincias de Estado, mas h mquinas abstratasque tm relaes de interdependncia com o Estado. Por isso, sobre a linha de segmentaridadedura, deve-se distinguir os dispositivos de poder que codificam os segmentos diversos, a
mquina abstrata que os sobre codifica e regula suas relaes, o aparelho de Estado que efetuaessa mquina. (DELEUZE, PARNET, 1998, p. 151, 152)
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Como comenta Maia, no mais a arquitetura que gera o espao no qual o
homem deve se adaptar. O corpo gera a arquitetura onde a mesma est
completamente subjugada aos atos do indivduo (MAIA, 2001). O arquitetosensvel a este modo de construir cidades seria o catalisador dos desejos dos
habitantes. Nestas condies, a nossa posio enquanto arquitetos e
urbanistas, produtores da cidade, se coloca em sua complexidade, e solicita-nos
a restabelecer nossas responsabilidades estticas, ticas e polticas. De
dentro da prpria cidade democrtica, em seu consenso, reencontrar nosso
devir profissional e guiar, por nossos projetos e por nossas intenes decisivas
bifurcaes do destino da cidade subjetiva (GUATTARI, 2008a, p. 178)
Sendo ento a cidade obra das relaes sociais, considerando o carter
sensvel e singular da produo dos desejos de seus habitantes, as diferenas,
os conflitos e as tenses sobre a ao deliberada e as micro-resistncias;
considerando que a cidade resultante das foras de uma configurao
histrica, de sua produo de cultura e de suas polticas de subjetivao; e
ainda, considerando a fluidez e a vertigem desta cidade onde as mutaes
concretas e abstratas so constantes, de que modo seramos capazes de lidar
com a complexidade da cidade em sua alteridade em nossa prtica
arquitetnica?
Estas questes comearam a tomar consistncia aps experimentaes que
permitiram observar o espao urbano para alm de suas formas construdas. E
que, posteriormente, se desdobraram em mais dois estgios de pesquisa. Tais
experimentaes s foram possveis por conta do envolvimento provocado, emprincpio, por exerccios prticos para a concluso de algumas disciplinas,
eventos e cursos independentes que aconteceram em paralelo, entre os anos
de 2008 e 2009.
Experimentaes estas que se puseram como um convite a se dispor no espao
pblico procura de elementos capazes de pr em evidncia traos da
produo arquitetnica que no estavam encerrados em seus projetos e em
seus contornos formais. Pudemos observar elementos imprevisveis que nos
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fizeram mover junto com o prprio espao, e notamos que as limitaes
encerradas em suas geometrias eram capazes de se abrir para muitas outras
relaes. Neste momento tudo pareceu estar muito mais alm da at entosabida arquitetura, ou pelo menos da arquitetura que nos era ensinada e
promovida enquanto tal. E se isto que observamos era arquitetura, como
deveramos nos portar diante dela?
O primeiro caso foi promovido por conta de uma disciplina optativa chamada
Esttica Urbana, oferecido na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da
Bahia (UFBA) pelas professoras Paola Berenstein Jacques e Fabiana Dultra
Britto, executado em novembro de 2008, na estao central de nibus urbanosda Lapa, em Salvador. Partimos de uma discusso que girava em torno das
adies provocadas pelo ser humano aos seus corpos enquanto facilitadores
da vida e que abrigava desde objetos construdos para seu uso pessoal at a
prpria construo da cidade. Pudemos notar a uma cidade enquanto campo
ampliado do prprio corpo.
Na interveno, se que se assim podemos chamar a nossa experimentao
que no tinha inteno artstica ou performtica, optamos por interceptar estasfacilitaes. A ao consistia em atrapalhar a fluidez da principal escada rolante
da estao simplesmente descendo 2 no sentido inverso ao de suas
engrenagens que levavam para cima seus usurios, cruzamos, interceptamos e
intrigamos as pessoas que nela iam com o objetivo de tir-las de tempo. At que
chegou o momento em que escada parou de funcionar e todos, sem o apoio de
seu aparato tecnolgico de deslocamento, ficaram perplexos e inertes espera
de um funcionrio capaz de faz-la funcionar novamente. Esta constataopoderia ter sido tomada em qualquer outro espao, com qualquer outro
equipamento em escala pblica ou at mesmo pessoal. Mas foi na Lapa, onde
traamos um questionamento sobre a afirmao do hbito como construo
coletiva e sua naturalizao subjetiva subseqente. Nos perguntamos como a
potncia criativa do homem estava sendo aplicada na criao de aparatos
2 Errando na Rolante, experincia executada com Aline Porto, Clara Pignaton, Iara Sales e PriclesMendes, resultou um vdeo disponvel em: infravocabulo.blogspot.com
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tecnolgicos modelizadores e de que modo estes se tornavam indispensveis
manuteno da vida humana dentro da cidade.
A mobilidade programada e tecnicamente dimensionada foi ento posta emevidncia. Pesou-nos a idia de que a mecanizao da cidade, enquanto o
campo ampliado do prprio ser humano, estava sendo capaz de lhe assaltar a
vida e a habilidade de lidar com o inesperado. De como a arquitetura estava
colaborando com esta produo de autmatos cotidianos e ainda, de que modo
seramos capazes de enfrentar o oco existencial gerado pela apatia
generalizada pr-programada.
Outra questo foi levantada sob a temtica do poder do uso da imagem comointermediador e guia da ao contempornea na cidade. Discutimos a
explorao do poder imagtico da arquitetura e a produo de objetos enquanto
imagem, num curso promovido pelo DIMAS - Diretoria do Audiovisual da
Fundao Cultural do Estado da Bahia, o Imaginauta Salvador, sob orientao
de Ghustavo Tvora. Ainda sob a temtica do uso da imagem, trabalhamos com
o Filmar pra Ver, sob orientao do professor Xico Costa, na Faculdade de
Arquitetura da UFBA. A primeira ao por seu olho-cmera imagem, e asegunda, olho-cmera imagem em movimento, saamos s ruas para capturar a
vida urbana atravs de nossos aparatos tecnolgicos: olhos-mquinas.
As duas experimentaes se deram no Barris, bairro central de Salvador. A
primeira com um apelo muito mais miditico e tinha como final programado uma
mostra de fotografia, happeninghours e horablogs, que incentivava uma
publicizao de nossa produo em rede nacional. A idia era juntar
imaginautas, formados pelo curso em vrias cidades brasileiras, em redessociais virtuais, para promover e difundir o uso da imagem como deliberadora
de afetos e promover happenings em mostras presenciais de intercmbio.
A segunda, bem menos apologtico-imagtico, mas no menos desconfortvel.
A idia central do vdeo como pusemos3 no release, era captar a construo
cotidiana, coletiva e individual, no espao pblico e parte das apropriaes, pelo
comrcio informal, observando as teias e ns produzidos na dinmica das
3 O vdeo DeRua teve roteiro e direo de Camila Ferraz, Eduardo Rocha e Mariana Ribas, com edio deFelipe Costa.
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relaes sociais engendradas no espao comum. Nele, a figura do camel
surgiria como personagem norteador que, resistindo violncia simblica e
subjetividade manipulada e imposta pelo capitalismo produz criativa eativamente novos ritmos, intensidades, ambincias, comportamentos e
percepes urbanas imperativas sua sobrevivncia.
Saamos s ruas portando equipamentos profissionais e adereos pesados para
intermediar nossas abordagens com as pessoas que ali viviam. Aps alguns
dias de filmagens e entrevistas acabamos por notar que as constituies das
redes iam bem mais alm do que presumamos. Com suas intensidades e
velocidades prprias, suas apropriaes efmeras e frgeis, elas bailavam entreo formal e informal com as possibilidades combinatrias que atravessam estas
polaridades.
Apesar dessas constataes ainda pesava o fato do experimento haver sido
intermediado por grandes equipamentos por vezes intimidadores e
desconfortveis, mas, na grande maioria das vezes, disparadores de um grande
desejo de visibilidade: Em que canal vai passar? A ns pesou o fato do olho-
cmera interferir em nossa aproximao, na vivncia do espao, e mais ainda, ofato disto tomar forma de imagem e capturar a vida real.
Deparamo-nos com outras possibilidades, nem sempre aparentes e por vezes
imperceptveis ao olhar desatento do arquiteto, uma urbanidade complexa
repleta de mincias e personalizaes assimtricas. Nelas, a pr-determinao
programada da arquitetura e a legalidade dos cdigos de postura eruditos nada
podiam fazer e davam lugar a cdigos de conduta especificamente produzidos
para as situaes paralelas criadas fora da cidade legal. Viu-se uma re-produo da forma utilizada pelo poder hegemnico se desdobrava no ilegal e
direcionava a vida na calada. Quanto a nossos supostos heris camels,
resistentes e leais vida ordinria, estavam eles mesmos sobrecodificados,
submetidos tambm a quase inescapvel modelizao contempornea.
A quarta experimentao se deu por via de um colquio realizado no Rio de
Janeiro: Ambincias Compartilhadas. Amarelinha era o nome da proposio
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encabeada por Iazana Guizzo4. A ao propunha a montagem de dois jogos de
amarelinha na Cinelndia, um no meio da praa e outro em meio a uma de suas
vias transversais. Um convite ldico aos encontros estava feito.A questo da escala se descortinava com o surgimento da sensao de
vulnerabilidade por estar no meio de uma praa pblica ou encerrado em um
beco cheios de donos. O possvel encontro com estranhos era operado com
certa desconfiana e, no caso do beco, bem mais aparente. A mesma
desconfiana o que preserva as distncias seguras entre um ser humano e o
outro, at que ele se permite prosseguir para alm de sua individualidade. Por
mais que se incentivassem as trocas, elas s se davam no momento oportuno,onde o risco do encontro no fosse tomado como ameaa.
A individualidade, ou melhor dizendo, o individualismo incentivado pela
subjetividade capitalstica em suas modelizaes nos afasta dos encontros, das
aberturas para produzir um outro tipo de arquitetura. Normas e posturas pr-
determinadas, cdigos de todo tipo operam no corpo recusas, que impedem que
apostemos em ns mesmos e nos outros, apenas porque no pega bem.
Envolvidos em meio ao jogo produzido entre arquitetura, visibilidade, imagem,forma, representao, modelizao e cidade, pudemos perceber que a
produo da arquitetura trabalha intimamente com a manuteno da ordem
incentivando algo no limiar do apaziguamento das pulses humanas,
encobrindo as possibilidades de produo da diferena. Ao menos no que diz
respeito ao campo do visvel. Porm, medida em que tomamos confiana,
atravessamos o visvel e vivenciamos o espao, iniciamos um processo
irreversvel de trocas e cristalizaes mltiplas. S no ntimo dos espaos quetemos a capacidade de operar para alm das percepes, de investir na
produo singular de subjetividades que sejam capazes de transpor os limites
dados enquanto fronteiras do possvel.
Em boa parte das apresentaes que foram expostas no prprio colquio,
notamos que os pesquisadores se posicionavam do lado de fora dos
4
Clara Passaro, Eduardo Rocha e Mariana Ribas, a convite de Iazana Guizzo, atravs do LaboratrioUrbano, coordenado por Paola Berenstein, e do grupo propositor Alice De Marchi, Cristiane Kinijnik,Cristiano Rodrigues, Luisa Bogossian e Frederico Parede, fomos colaboradores desta experincia.
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acontecimentos urbanos, utilizando a arquitetura como um suporte de registro
das afetaes humanas. E que, por muitas vezes, ainda se apresentavam como
o pesquisador explorador da diversidade alheia, do que se compartilhava, masno exatamente do mim mesmo.
A partir dessas aes foi operada uma modificao no modo de compreender o
que deveria ser a pesquisa em arquitetura, como se o pesquisador pudesse ao
final dizer, que, mais do que uma interveno ou explorao na arquitetura, tudo
isto resultou numa experimentao e uma interveno em sua pessoa. Em si
enquanto pesquisador arquiteto, enquanto grupo de pesquisa, enquanto ter
descoberto a partir dos desdobramentos em seu prprio corpo a possibilidadepara uma abordagem em arquitetura, como uma explorao de si, a arquitetura
como seu duplo. Talvez isso nos faa operar um desarme frente s
pressuposies, e nos faa estar mais atentos aos murmrios emitidos pela
arquitetura.
Adicionado a estas experimentaes, o segundo estgio da pesquisa se deu
dentro de sala de aula, ainda no ano de 2009, onde foi possvel acompanhar o
andamento de duas turmas de projetos de arquitetura e urbanismo. Por doissemestres integramos a equipe de professores tirocinantes do ltimo atelier do
curso e por um semestre no atelier da turma do segundo ano. As duas
experincias foram bastante ricas e distintas, a iniciar por seus contedos
programticos, mas, atravs delas, foi possvel observar o comportamento de
professores e estudantes. E tambm foi possvel uma maior aproximao com
outras turmas.
A inteno inicial de optar por duas turmas to diferentes era poder ter a chancede perceber como estava sendo incentivado, por parte dos professores, o
imaginrio sobre a produo do espao arquitetnico, sua relao com a cidade,
os seres humanos nela viventes e seu prprio corpo agente. E tambm at onde
a busca pela competncia tcnica poderia incentivar o recobrimento do poder da
vida em sua mobilidade.
Ao longo do trabalho ser apresentado um pouco mais dos detalhes, mas de
antemo vale salientar que, por muitas vezes, a prpria escola de arquitetura
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acaba optando por investir na criao de resolues prticas para responder as
solicitaes do mercado. E tambm na prpria escola que temos a
oportunidade de vislumbrar uma potencializao do poder da vida que escapes modelizaes.
Por ltimo, no primeiro semestre de 2010 fomos convidados a integrar como
arquitetos colaboradores, a equipe de um escritrio de arquitetura de referncia
em Salvador, cujo maior propsito era desenvolver grandes obras de carter
pblico. Esta pareceu ser uma boa oportunidade para fechar o ciclo da pesquisa
de campo e, neste ltimo estgio, buscar mais informaes de como estavam
sendo travados os embates sobre a construo da arquitetura desde suaoperacionalizao enquanto projeto, dentro do mercado. E ainda como as aes
provenientes dos escritrios, produtos da demanda do prprio mercado estavam
retroalimentando a produo da arquitetura nas escolas e estimulando as
posturas profissionais.
Atravessar os trs estgios da produo da arquitetura nesta pesquisa de
campo nos deu a possibilidade de chegar a algumas constataes que se
desdobraro ao longo de todo este trabalho. A primeira delas que aarquitetura vai muito mais alm das formas construdas e que de modo algum
poderamos nos limitar a encerr-la, sob o risco de sua runa ou de que ela
mesma se imploda. Assim, caminhamos para algo da ordem dos
amolecimentos, de uma arquitetura-que-vaza que daremos o nome de espao-
movimento.
Para a compreenso do espao-movimento notamos que era necessrio
abordar a arquitetura como uma experincia de pensamento, uma arquiteturaque desestabiliza, ou que promove o que Virilio (1999) chama de desnorteio da
representao. Nesta arquitetura encontramos o pensamento da diferena, e
cada soluo dada por uma resoluo local, especfica impossibilitando que
sejam promovidas generalizaes. a virtualidade criadora no espao-tempo.
Parece-nos bastante claro que temos que incentivar a experimentao da
cidade para poder compreender alguns fragmentos das informaes que ela nos
fornece, aparentes e principalmente as no aparentes. E trilhar esta cidade
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requer esforo corporal e sensvel e muita disponibilidade para pr-se em
perigo, para se colocar em contato com o desconhecido, com o diferente e
principalmente com os muitos outros. Onde os outros no so apenas outroscorpos, mas tambm outros mundos capazes de rachar a carapaa segura que
nos envolve.
Temos sido co-responsveis pela ao reguladora sobre o espao, pela ao
planejada e projetada a curto, mdio e longo prazo, capaz de re-produzir
mundos ou realidades, criar ou recriar necessidades. E como percebemos nas
experimentaes, muitas aes arquitetnicas no tm sido capazes de
valorizar a produo de singularidades e, muito pelo contrrio, tm trabalhadoem funo de um poder hegemnico que incentiva o fosqueamento das
potncias de vida urbana, sob argumentos repressivos ou apaziguadores. Se
no atentarmos para uma disponibilidade para com as grandezas do nfimo5
(BARROS, 2001), no poderemos tratar das questes que suscitam nossa
presena encarnada.
A arquitetura aqui compreendida no mais que um cruzamento de mobilidades
e se dispe a funcionar pelos deslocamentos que nela se produzem, que acircunstanciam e temporalizam. (DELGADO, 2007). A cidade que a abriga seria
o espao que gera e de onde se gera a vida urbana como experincia do
deslocamento e do estranhamento, do desconhecimento mtuo. A cidade
pura mobilidade dos corpos que a ocupa em extenso e tempo.
Os processos de transformao da cidade no cessam de inscrever nele as
marcas e traos do tempo. As vrias solicitaes e intervenes habituais,
reconfiguradoras ou desconfiguradoras dos contextos existentes, constroemnovos espaos urbanos, tornando-os instveis e transitrios. As arquiteturas,
paradoxais e difusas, integram e desintegram os suportes da memria e ativam
e desativam os mecanismos de reconhecimento, produzindo novas relaes
com os habitantes. Alm do lugar em que emergem movimentos, a cidade
constitui uma resultante do prprio espao em movimento.
Segundo Flix Guattari (2008a, p.158),
5 Manoel de Barros nos ensina que para apalpar as intimidades do mundo e as grandezas do nfimo preciso, alm de outras coisas, desaprender oito horas por dia.
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O alcance dos espaos construdos vai ento bem alm de suas estruturas
visveis e funcionais. So essencialmente mquinas, mquinas de sentido, de
sensao, mquinas abstratas [...], mquinas portadoras de universos
incorporais que no so, todavia, Universais, mas que podem trabalhar tanto nosentido de um esmagamento uniformizador quanto no de uma re-singularizao
liberadora da subjetividade individual e coletiva.
Guattari nos provoca a questionar como o arquiteto poderia apreender e
cartografar estas produes de subjetividade inerentes cidade e sua
atividade coletiva. E coloca, que talvez pelo reconhecimento dos territrios
existenciais e pela necessidade de uma autoconsistncia subjetiva atravs de
uma responsabilidade tico-poltica, poderamos assumir o posicionamento comrelao subjetividade parcial que ajudamos a engendrar.
A compreenso sobre subjetividade que adotamos para este trabalho tecida
por Guattari, que, juntamente com Giles Deleuze, antecipa: a subjetividade no
algo dado, ela processual. A subjetividade resultante de uma irreversvel
produo que transborda o indivduo por todos os lados. Eles sugerem que o
que h so processos de subjetivao que se fazem nas conexes entre fluxos
heterogneos, dos quais o indivduo e o seu entorno seriam apenasresultantes. Deste modo os resultados, sempre em processo, seriam conexes
efmeras e sua produo, uma pressuposio de agenciamentos coletivos e
impessoais. (ROLNIK, in: ALLIEZ, 2001, p. 453)
H neste processo de produo instncias inter-subjetivas manifestadas pela
linguagem e instncias sugestivas ou identificatrias concernentes etologia,
h tambm interaes institucionais de diferentes naturezas, dispositivos
maqunicos e universos de referncias incorporais. Segundo Guattari (2008a,p.21), esta parte no humana da subjetividade essencial, j que a partir
dela que pode se desenvolver sua heterognese. Justamente por isso devemos
considerar que a subjetividade no trabalhada apenas na instncia do
indivduo, mas tambm nas grandes redes sociais, na comunicao e mdia de
massa, nas operaes da linguagem, na arquitetura e no urbanismo.
Rolnik (2002) aponta que a potncia de vida enquanto fora de inveno um
tipo de batalha entre os dois planos de produo da subjetividade, o plano do
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visvel e no plano do invisvel. Onde o plano do visvel abarca o mapa das
formas estabelecidas, como um repertrio de cdigos. J o plano do invisvel
aquele que consiste no diagrama flexvel das sensaes que atravessamnosso corpo quando imergimos na infinidade de fluxos compositores de todo o
fora, do meio no qual vivemos.
medida que a tenso entre estes dois planos da subjetividade vai
pressionando o corpo a produzir novos contornos, estas pequenas batalhas no
param de desestabilizar e desfazer outros: entre o movimento de tomada de
consistncia de uma nova pele e a permanncia da pele existente. (ROLNIK,
2002). Esse movimento produz novos outramentos, no sentido de FernandoPessoa, que era um perito na arte de outrar-se. A subjetividade no algo que
possamos considerar abstrato, mas a nossa prpria vida, das formas de vida,
e abrange nossas maneiras de sentir, de perceber, de amar, de morrar, de
imaginar, de agir, de sonhar, de desejar, etc.
Esta produo coloca o ser humano na condio de experimentador de si
mesmo e lhe d a capacidade de pr em xeque sua condio de indivduo,
forma-homem modelada, contrapondo-a a todo tipo de foras que lhe tocam.Como diria Orlandi (2007): um mim mesmo como espao-tempo de guerra.
Onde esta guerra est presente em todos os verbos frequentados por ns
mesmos, qualquer que seja ele. Cada qual com seus prprios problemas e
desdobramentos, entre a liberao e o controle numa cadncia perturbada a
cada emergncia das circunstncias. Onde alguns atravessamentos passam
por nossos verbos, e so capazes de faz-los enrijecer ou vibrar e esta ao
capaz de impor determinados modos de se estar nos verbos da vida.Quanto participao das disciplinas que nos competem neste processo, a
arquitetura e o urbanismo, poderamos dizer que, dentro dos processos de
subjetivao funcionam como mquinasprodutoras de subjetividades parciais.
Objetidades ou subjetidades como aponta Guattari. Onde, carregadas de
significados anteriormente determinados, cdigos pr-estabelecidos e cargas
subjetivas provenientes de outros processos, inclusive relacionais responsveis
pela elaborao enquanto objeto construdo, engendram novos processossubjetivos. como se a arquitetura, e por extenso a prpria cidade, no se
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contendo em ser exterior, atravessassem a todos ns. Estas relaes humano-
no-humanos de produo de existncia nos capacitam enquanto
experimentadores de vida, e nesse caso de vida urbana, e faz da arquitetura eda cidade o nosso duplo.
Consideramos ainda, que a arquitetura s a porque foi capaz de dar abrigo ao
ser humano, a ele, a suas funes e tudo o que vem depois, funcionando
enquanto extenso de seu prprio corpo. Neste processo, a arquitetura j se
inscreve no espao carregada de cdigos e pr-determinaes e, ao longo de
sua existncia recebe e relaciona outros mais, engendrando constantemente
diversos processos de subjetivao parciais.O engendramento de processos subjetivos atravessa todos os procedimentos
de produo da arquitetura desde sua idealizao, projetao, detalhamento,
construo, at a sua exposio, utilizao, divulgao, e tambm, a sua runa e
obsolescncia, ainda haja uma permanncia enquanto objeto histrico ou pelo
registro que carregamos na memria em qualquer um desses estgios.
Independentemente de qual seja o procedimento, qualquer um deles, cada um
em sua especificidade congrega relaes de foras que colaboram para aproduo de novas combinaes.
importante lembrar aqui que estas configuraes no so equaes lgicas
de adio nem somatria de relaes. Tais processos so resultantes de aes
espaos-temporais que promovem incises irreversveis no estado das coisas,
no sentido de Arendit (2007). A forma arquitetnica , pois, circunstancial, tecida
pelos arranjos de foras no intercruzamento de todos os processos que a
envolvem. As formas que construmos, seja no pensamento ou no concreto, soresultantes do fluxo das atividades nas quais estamos envolvidos, nos contextos
relacionais particulares e de seus envolvimentos prticos com aquilo que as
cerca. Desde que consideremos que a cada nova configurao histrica estas
foras se rearranjam formando novas agncias.
O que realmente importa nas cidades de hoje menos seu carter de infra-
estrutura, de comunicao ou de servios do que o fato de engendrarem, por
meio de equipamentos materiais e imateriais, a existncia humana sob todos os
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aspectos em que se queira consider-la (GUATTARI, 2008a, p. 172). A cidade
produz o destino da humanidade, e o devir urbano , tambm, o devir humano.
na sensibilizao da vida, na prpria diferena, que as intensidades ganhamou perdem sentido, produzido-se mundos e desmanchando-se outros, tudo ao
mesmo tempo. Esta produo de intensidades e de sentidos s dada a partir
da produo dos desejos. A potncia de afetar e ser afetado pelos fluxos da
produo do desejo nasce justamente no entre das relaes entre os corpos.
Ela invisvel, inconsciente e ilimitada. que enquanto se est vivo no se
para de fazer encontros com outros corpos [...] e com corpos que se tornam
outros. (ROLNIK, 2007, p. 49)Nesta cidade, medida em que a arquitetura, enquanto operador concreto da
organizao dos territrios, produto e produtor de subjetividades, produtora
de outros desejos e afetos. Aqui, a cidade sempre outra de si mesma. E
justo essa situao extrema de alteridade urbana que pode nos ajudar a
repensar nossas prprias definies [de arquitetura,] de cidade, de urbanidade,
de formas contemporneas de vida em sociedade. (JACQUES, 2007, p. 153)
A partir destas breves colocaes nos movemos para que fosse possvel este
trabalho se desenvolver dentro do campo da arquitetura e urbanismo, porm
intimamente atravessado por teorias provenientes de outros campos como a
filosofia e a psicologia, e abordar o espao construdo como resultante das
relaes de foras. Para abrir os captulos optou-se pela incluso de textos com
base literria desenvolvidos a partir das experimentaes empricas ou
desdobrados atravs das questes levantadas por elas, onde fosse possvel
uma aproximao mais amena com a temtica que os seguem, porm no com
menos contedo ou fora. A literatura abordada enquanto possibilidade de
aproximao com a prpria arquitetura e para isso pressupe-se que ambas so
modos de registro e territorializao dos fluxos que as afetam. Nesta zona de
transversalidades, localizamos a produo da arquitetura enquanto um duplo da
prpria produo do ser humano, onde a cidade ao mesmo tempo, condio e
objeto do pensamento.
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Nesta pesquisa, o espao-movimento tomado como figura conceitual de
anlise virtual para que seja possvel uma abordagem mais ampliada da prpria
arquitetura, de maneira a esbarrar menos nas limitaes abstratas da forma-imagem. E foi considerada a produo de subjetividades parciais nos processo
de formao atual do arquiteto e do espao arquitetnico que lhe cabe.
Para tanto, traaremos no Captulo 1 o embasamento para a discusso sobre
que tipo de espaos arquitetnicos tem sido produzidos em nossos dias sob a
fora impositiva das modelizaes contemporneas. E nos toca o fato de que
este modo de produo engendra diversos procedimentos e dispositivos de
apaziguamento das pulses humanas e introduz pacotes de significaes paraque se produzam seres e espaos na medida em que se deseja. Investe-se
numa espcie de terrorismo subjetivo onde as pessoas devem responder por
identidades pr-fabricadas.
Questiona-se que tipo arquitetura est sendo produzida e incentivada.
Produzida em funo deste indivduo pacificado por blocos de preferncias, por
este sujeito cotidiano mdio. Incentivada como resposta afirmativa s frentes
abertas pelo mercado imobilirio e para a criao de identidades locais, para oespetculo, para a exibio, para a marca. Arquitetura imagem carente de
potncia produtiva. Arquitetura que auxilia na manuteno do status quo.
Arquitetura produtora de subjetividades parciais dominantes. Arquitetura deleite,
mas que j ningum a percebe e rapidamente entra em decadncia porque na
vertigem do mundo contemporneo tudo delrio de consumo e o ineditismo
marca da competncia.
Estas constataes da produo de indivduos e de seus espaos de consumonos levaram a crer na possibilidade escape do quadro da arquitetura
contempornea, dos discursos produzidos e replicados, e das diretrizes de
ensinamento e manuteno do estado atual da arquitetura. A proposta
embasada na desconstruo da idia de uma arquitetura estigma que fixa e o
investimento na construo de uma arquitetura do espao-movimento.
Em espao e poltica, cuja primeira edio foi publicada na euforia dos anos de
1968, Lefebvre j nos ensinava que a arquitetura no pode existir seno
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enquanto prtica social. Sem esta encarnao ela no passa de pura retrica
grfica, desenho oco, estril. O Captulo 2 uma busca para o entendimento do
alcance da prpria arquitetura e, assim como Rolnik, propomos uma escutaatenta aos estados inditos que se produzem no corpo quando se tem a
audcia de abandonar a pele do senso comum. Ou como aposta o querido
Manuel de Barros (2001), desaprender oito horas por dia ensina os princpios.
Trataremos da construo desses estados singulares capazes de produzir
diferena e fazer mover. No espao-movimento, a produo da diferena e suas
experimentaes de desestabilizao que nos ajuda a vislumbrar os
diagramas de possibilidades futuras. Atravs de investimentos, assaltos e aesagudas capazes de dar conta da instabilidade da arquitetura, por seus
desdobramentos em nossas vidas e na cidade.
No Captulo 3, discutiremos sobre os desafios implicados na idia de espao-
movimento e sua abordagem dentro da arquitetura e urbanismo, por seus
desdobramentos dentro das escolas de arquitetura e urbanismo, e pelas idias
genricas que se publicizam sobre a arquitetura que vista e a que se faz ver.
Conversaremos sobre as possibilidades de abertura que vislumbramos,entrelaados por mobilizaes capazes de incentivar nos estudantes de
arquitetura um processo de autoconsistncia subjetiva, no sentido de Guattari, e
tambm, evocar sensibilidades como grande referencial do agir humano para a
construo do conhecimento arquitetnico e urbano com base na autopoise e
na autonomia.
Por fim, este trabalho se apresenta enquanto uma reflexo acerca das
naturalizaes, neutralizaes e pacificaes das aes contemporneas quetm impregnado a arquitetura e o urbanismo atravs dos modos de vida
incrustados em nossos corpos-cidades. E tem suas foras apontadas para uma
arquitetura que seja capaz de investir, desde suas bases, em mais autonomia e
tica, na produo de singularidades, onde sejam possveis escapes dos
fatalismos que decretam a morte da cidade e da vida em sua alteridade.
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Captulo 1
Movimentos de limitao
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Do espao e do homem contemporneo
Arquitetura, capital e insnia
Nesta ltima semana foram todos demitidos. Mas no demitidos propriamente
porque ningum tinha direito trabalhista algum. Encontrei uma ex-colega de
trabalho na rua, com muito pesar e vrias caixas cheias de pertences
espalhadas por seu carro. Acabara de sair do escritrio, sem rumo, ia pra casatentar pensar. Fecharam as portas do escritrio, mas assim que possvel eles
reabrem e tornam a nos chamar. Dos 18 arquitetos que trabalhavam l, nenhum
era funcionrio. S entravam para a equipe no momento que tivessem em mos
uma carteira de autnomo, com os devidos impostos de autnomos pagos em
separado, arquitetos autnomos. No desejavam configurar nenhum vnculo
empregatcio, apesar dos meses ou anos a fio. O escritrio recolhia nossos
impostos. Tudo a depender do projeto em questo. Quando entramos ali
prometemos mundos e fundos. Vocs tero que se comprometer conosco.
Comprometer seus dias, suas famlias, seus romances, seus filhos, suas noites,
sua alimentao, seus sonhos, sua sade, seus desejos. Assentimos. Claro.
Quem no queria trabalhar com aquele cara? Ele era o arquiteto comunista
mais ativo que povoava nossa memria. Uma oportunidade nica. Uma vida
nica.
Quando algum de ns pensava em no ir trabalhar num domingo tarde logopesava a conscincia. Passada a hora do almoo, o cafezinho com chocolate
belga tinha um sabor de pressa, pouco digestivo, afinal deveria fechar aquela
tabela dentro de algumas horas. Desculpa, tenho que ir e bater logo meu ponto,
a que horas eu sa mesmo? Atravessei algumas noites em claro l dentro, tive
que compensar as horas do fim de semana: eu iria passar o feriado na praia.
Dois dias na praia eram o cu. Uma pena eu s conseguir falar daquele
trabalho, do quanto me consumia, do quanto precisava dormir, do quanto estavacansada, do quanto precisava voltar ao trabalho, do quanto eu no conseguia
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boiar porque pesava o corpo inteiro, desejava voltar quela cadeira marcada
com meu nome, eu s falava daquelas pessoas. Alis, eu s me encontrava
com aquelas pessoas.Trabalhava-se cerca de doze horas por dia no escritrio do arquiteto comunista
de renome. O produto em questo era resultante de nossa prpria potncia de
vida, mas era um tipo de potncia cafetinada. Nossa capacidade criativa de
resolver problemas, mas nada que excedesse os direcionamentos dados pelo
chefe. E a? J terminou? Meus amigos no conseguiam me encontrar, minha
me no conseguia me falar, sempre flor da pele. Havia uma vida alm
daquelas janelas de pelcula lils que eu no estava participando. Aquelasjanelas eram minha fuga, nos dias que conseguia me dar conta que eram cinco
e meia da tarde, parava e olhava o skyline atravs da pelcula lils, sem tirar as
mos do teclado e de frente ao monitor, um lindo pr-do-sol. Ah... Pronto, de
volta ao trabalho. Nem eu nem meus colegas tnhamos tempo de apostar
naquela vida alm da pelcula, em pouco tempo viraramos irmos de lamrias,
s tnhamos uns aos outros. Ningum fora dali alcanava o porqu de estarmos
vivendo daquele modo. Nem ns.
A arquiteta dos pertences espalhados pelo carro estava desolada. H alguns
meses chegara ao desatino de comprar uma ducha quente e instal-la no
banheiro feminino do escritrio. Isso lhe daria mais tempo entre o dormir dentro
do carro na garagem do edifcio e o bater o ponto para dar incio a sua
contagem de horas. Ela havia personalizado seu posto de trabalho. Apropriara-
se daquele canto como se fora seu. Perto dos ps da cadeira que levava seu
nome, roupas e sandlias em sacolas nada discretas, discos, objetos pessoais edois aparelhos de celular de ltima gerao sobre a mesa. Tomava caf da
manh numa padaria ali perto, almoava e jantava ali perto tambm. Era
comum trazer tudo e comer na pequena copa sem constrangimentos. No havia
porta, tudo se sabia, os cheiros percorriam e alertavam a todos ns, tambm
sem constrangimentos. Dela tudo se sabia tambm, mesmo que no
quisssemos. Seus aparelhos tecnolgicos lhe asseguravam o aval para
exibio diria, sua voz aguda nos atingia indiscretamente. A moa havia
convencido a me a se mudar para um apartamento prximo ao escritrio, isso
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lhe evitava maiores transtornos com o trnsito, perdia menos tempo. Parou de
dormir no carro. Por pouco tempo.
Este tem sido o regime de trabalho dos escritrios de arquitetura de Salvador,se voc no aceitar, outro aceitar. Pensar uma vez s, afinal voc tem contas a
pagar e cada vez mais. No se sabe se o arquiteto, dito comunista, sabia disso,
mas estava trabalhando para o mais voraz de todos os liberalismos. Em outros
tempos construra um restaurante bem frequentado, sarcfago para enterrar
toda a burguesia da cidade dentro. Hoje, est ele mesmo sendo consumido e
enterrado pela mquina voraz da qual faz parte, subjetivamente.
A moa dos pertences espalhados no carro e dona da ducha quente me haviaconfessado sua vontade de ser professora de arquitetura, e por contar
especificamente com a possibilidade de uma renda mais certa, comeara a dar
aulas numa escola particular. Ali dentro, pelo menos trs eram professores
universitrios, pelo menos cinco davam aulas em cursos de especializao e
pelo menos um era seguido por uma multido de admiradores. Recm-
formados, especialistas, mestres, doutores, filhos de doutores, pais.
Profissionais vindos de vrios lugares, todos eram muito bons em suasatribuies, talvez os melhores em suas limitaes. Mas, o mais sempre era de
menos.
A crise dos desejos investida pelo capitalismo atual nos incita diariamente a
fazer escolhas no to acertadas, em nada ponderadas, simplesmente vamos
ou entramos na onda normalizante. O vampiro de nossos dias insone e
fashion, no repousa nunca. Sua insnia a sua fora. [...] Parece enfim,
plugado a todo ser vivo, como uma larva banal, explorando no apenas asrealidades e fatos, mas, tambm, virtualidades e processos. (SANTANNA,
2007). A moa era apenas mais uma entre as tantas pessoas que fazem do
delrio do reconhecimento social seu objetivo de vida, em maior ou menor
escala. Naquele momento ela apenas desejava ardentemente um carro novo,
grande, robusto e prateado, com trao nas quatro rodas. Sempre mais
tecnologia, sempre mais alto, sempre mais brilhante. Era o coroamento de seu
sucesso individual, seu poder.
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Onde ser que nos perdemos?
No provvel que saibamos responder a esta indagao, nem ao menos
saber se de fato nos perdemos de algo. Desde sempre a arquitetura ocidental,
que tomamos como referncia, esteve relacionada aos detentores do poder, e o
seu desdobramento dentro do capitalismo contemporneo no poderia ser
diferente.
A experincia do texto acima acaba por explicitar o modo de vida e trabalho de
centenas de arquitetos e urbanistas, seus desdobramentos dentro das escolas
de arquitetura e os projetos de cidade nos quais esto envolvidos. Submersos
por movimentos de limitao, que so fora produtiva do regime de acumulao
capitalista no qual esto imbricados, na grande maioria das vezes, acabam por
reproduzir arquiteturas igualmente limitadas. Onde, envolvidos pelas foras
hegemnicas, o grande trunfo a criao de imagem e a representao de
ideais pastorais e consensuais que corroboram para a criao ou para a
afirmao de identidades estveis e confortveis, ou seja, uma arquitetura-que-
fixa.
Para desenvolver melhor a idia desta arquitetura-que-fixa, nos valeremos de
um breve apanhado de elucidaes e observaes que tratam do modo de
subjetivao modelizadora, apoiada no sistema de produo capitalstico6. Onde
se engendram diversos procedimentos e dispositivos de apaziguamento das
pulses humanas e se introduz pacotes de significaes para que se produzam
seres e espaos na medida em que se deseje, capazes de viver neste mundo
de identidades pr-fabricadas.
Questiona-se que tipo de arquiteturas esto sendo produzidas e incentivadas.
Produzidas em funo de um indivduo pacificado por blocos de preferncias,
por um sujeito cotidiano mdio. Incentivadas como resposta s frentes abertas
pelo mercado e para a criao de identidades locais, para o espetculo, para a
6
O termo capitalstico, segundo Guattari, designa no apenas as sociedades qualificadas enquantocapitalistas, mas abrange outros setores do capitalismo que vivem numa certa dependncia com ele.(GUATTARI; ROLNIK, 1986, p.15)
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exibio, para a marca. Arquiteturas carentes de potncia produtiva.
Arquiteturas que auxiliam na manuteno da fora hegemnica. Arquiteturas
deleite, mas que pouco tempo depois ningum as percebe e rapidamenteentram em decadncia porque na vertigem do mundo contemporneo tudo
delrio de consumo.
1.1 Do sistema de modelizao contemporneo
Como vimos na introduo, a subjetividade no algo dado, j determinado por
natureza, entranhado no sujeito desde o seu nascimento. O processo de
produo da subjetividade envolve o conjunto das condies que permitem
que instncias individuais e coletivas possam consistir enquanto territrio
existencial auto-referencial. Porm, esta produo pode caminhar para uma
liberao do sujeito ou para uma subjetividade do equivaler generalizado,
recobrindo as potncias do ser humano atravs da instaurao de pr-
programaes e lhe tirando a possibilidade de existncia autpoitica. Convem
para este captulo situar especificamente esta produo da subjetividade
capitalstica do equivaler generalizado, que recobre com sua cinzenta
monotonia os mnimos gestos e os ltimos recantos de mistrio do planeta.
(GUATTARI, 2008a, p. 34-35)
Para tanto, devemos considerar que o que configura os modos de produo
capitalsticos o fato que eles no operam apenas no registro dos valores detroca, da ordem do capital e financeiro. Mas operam principalmente atravs do
modo de controle dos processos de subjetivao.
Tudo o que produzido pela subjetivao capitalstica tudo que nos chega
pela linguagem, pela famlia e pelos equipamentos que nos rodeiam no
apenas uma questo de idia, no apenas transmisso de significaes por
meio de enunciados significantes. [...] Trata-se de sistemas de conexo direta
entre as grandes mquinas produtivas, as grandes mquinas de controle social
e as instancias psquicas que definem a maneira de perceber o mundo. [...] E
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no consiste unicamente numa produo de poder para controlar as relaes
sociais e as relaes de produo. A produo da subjetividade constitui a
matria prima de toda e qualquer produo. [...] Esta produo no apenas a
da representao, mas a de uma modelizao que diz respeito aoscomportamentos, sensibilidade, percepo, memria, s relaes sociais,
s relaes sexuais, aos fantasmas imaginrios, etc. (GUATTARI; ROLNIK,
1986, p. 27-28)
A ordem capitalstica fabrica e modela a relao do ser humano com o mundo e
consigo mesmo, cria indivduos normalizados, articulados uns aos outros
atravs de sistemas hierrquicos, sistemas de valores e de submisso. A sua
produo tem a tendncia de bloquear os processos de singularizao einstaura processos de individuao. Nesta produo, os homens acabam sendo
reduzidos condio de suporte de valor, apenas conseguindo assistir,
desnorteados, a dissoluo de seus modos de vida. E acabam por estabelecer,
segundo Guattari, a partir de valores universais que os serializam e os
individualizam, esvazia-se o carter processual (para no dizer vital) de suas
existncias: pouco a pouco, eles vo se insensibilizando. O autor ainda
complementa dizendo que neste mesmo momento que nascem os indivduos
e morrem as possibilidades singulares de produo da diferena.
Todos os sistemas de medida de equivalncia de tempo [e do espao],
interiorizados, no so apenas um fato subjetivo, mas tambm um dado de
base da formao da fora coletiva de controle social. [...] Todas as relaes
com o espao, com o tempo e com o cosmos tendem a ser completamente
medidas pelos planos e ritmos impostos, pelo sistema de enquadramento dos
meios de transporte, pela modelizao do espao urbano, do espao domstico.
(GUATTARI; ROLNIK, op. cit., 1986, p. 44)
Aliados a estes sistemas, cada regime de acumulao implica uma organizao
social e trabalhista especfica e isto acaba associando, fundamentalmente a
produo social de subjetividade produo do trabalho propriamente dita.
(ROZENTHAL, 2005, p. 120). O modo de capitalismo atual implica novas
reflexes sobre estas produes subjetivas, sobre a circulao do
conhecimento, de criatividade e sobre as condies e as modalidades de
apropriao capitalista de uma riqueza que produzida diretamente dentro das
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redes sociais (COCCO, 2009, p. 184), onde se investe mais na vida do
trabalhador em seu conjunto.
O alastramento do mercado mundial para uma organizao planetria desociedades multinacionais e a expanso do capitalismo sobre todas as
coletividades, ou como chama Guattari (1986) - para um capitalismo mundial
integrado, incentivou a formao de uma grande mquina abstrata que
sobrecodifica os fluxos monetrios, industriais, tecnolgicos. E tambm fez com
que os meios de explorao, de controle e de vigilncia se tornassem mais
difusos e sutis.
Deste modo, o Estado passou a no dispor apenas de meios polticos,institucionais e financeiros que sejam capazes de se contrapor aos avanos e
contra-golpes sociais da grande mquina. As aes agora se estabelecem muito
mais alm do Estado, e no mais se apiam nas velhas formas de fazer poltica,
nem em suas ferramentas disciplinares, na polcia ou no exrcito, nem em
burocracias, tecnocracias, nos espaos coletivos, nas escolas, nas famlias.
(DELEUZE; PARNET, 1998).
A nica forma universal dentro do capitalismo tornou-se o mercado. O Estado
passou a no ser universal, visto que agora bolsa para o prprio mercado, e
acaba trabalhando como uma fbrica de misria e de riqueza. Com comenta
Deleuze (1996, p. 270), no h um s Estado democrtico que no esteja
comprometido at a saciedade nesta fabricao de misria humana. E
complementa dizendo que nem as organizaes de direitos humanos so
capazes de santificar as delcias do capitalismo liberal visto que elas tambm
participam de suas estratgias de ao. Isso quer dizer que o que caracteriza anossa situao atual est muito alm dos estados nacionais.
Este capitalismo globalizado, ps-industrial, corresponde a uma nova estrutura
de comando, em tudo ps-moderna, descentralizada e desterritorializada. E est
sujeito circulao de fluxos de toda ordem a alta velocidade, fluxos de capital,
de informao, de imagens, de bens, mesmo esobretudo de pessoas.
(PELBART, 2009, p. 81). Enaltecendo conexes, a mobilidade e a fluidez,
incentiva a produo de novas formas de explorao e excluso, novas elites e
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novas misrias e provoca um novo tipo de angstia, a angstia do
desligamento, da desconexo. (PELBART, 2009, p. 21).
Em sua estratgia de produo, o capitalismo se apropria da potncia deilimitao destas conexes cuja expresso est na capacidade de levar um
conjunto finito de elementos a um nmero ilimitado de combinaes entre foras
presentes ou atuantes no homem e as mais variadas composies de seu
ambiente vital, potncia que a vida, a cincia e as tecnologias evidenciam.
Porm, ele o faz a favor de mais acumulao e domnio do capital financeiro,
contrariando a prpria potncia de ilimitao que ajuda a promover e continua
se apropriando atravs de controles auto-modulantes e fluidos que visam, aomesmo tempo, extrair mais potncia e gerir as foras produtivas e a vida em
todas as suas expresses. (NEVES, 2004, p. 138).
Por outro lado, esta potncia de ilimitao estimula os processos de
intensificao da vida, mas acaba compatibilizando as foras produtivas e suas
reprodues. Isso faz com que o modo de produo capitalista esteja no
governo de toda sociedade e das relaes sociais, e, principalmente, de toda
natureza humana e da vida em sua virtualidade. Os afetos, o conhecimento,o desejo, so fortemente incorporados ao atual regime de acumulao
capitalista (NEVES, op.cit., p. 139-140). Percebemos ento que o capitalismo
capaz de se manter por ser, como apontam Deleuze e Guattari (1996), uma
mais valia de fluxo, que ao mesmo tempo, humana, financeira e maqunica,
assegurando ao trabalhador uma relao de assujeitamento, disciplinando sua
vida, seu trabalho e seus modos de fazer, e pela dependncia que isso gera,
convertendo em mais dinheiro.Nesta situao, poderemos nos dar conta que toda nossa existncia tomada e
guiada pelo modo de produo capitalista, de tal modo que nos reconhecemos
como criaturas levadas pelas suas modulaes descodificantes,
desterritorializados e reterritorializados a seu favor. Como se na falta dele no
fssemos mais capazes de pensar ou agir, como se ele mesmo fosse o nosso
dentro e o nosso fora. O capitalismo, constituindo-se como o guia do corpo
social, nos assalta a existncia em nossas formas de vida e em suasconfiguraes intensivas, para s assim poder extrair, a sua convenincia,
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foras que sejam capazes de trabalhar em prol de seus deslocamentos e
acumulaes.
O capitalismo ps-industrial investe em especial nos processos de produo davida, em suas variaes, apresentando-se como aponta Neves (2004), em seu
empreendedor ontolgico. Ele incita e sustenta at mesmo os modos de
subjetivao, mas para serem reproduzidos e reificados como mercadorias de
consumo de massa e identidades pr-determinadas. A perverso do capitalismo
est em desconectar a singularizao do processo, em dissociar a fora de
criao do substrato intensivo. Assim, ele faz desaparecer as distncias entre
produo e consumo, onde o prprio consumidor torna-se matria prima e oproduto de sua maquinao (DELEUZE, 1996). Ou ainda, como diria Lefebvre
(1991): o consumidor, consumido .
O capitalismo contemporneo no se contenta mais em ser apenas um modo de
produo, ele agora responsvel pela produo de vrios mundos e de vrios
modos. O que devemos ter em conta que o que est em jogo nossa prpria
vida, entre sua dissoluo ou sua expanso, a nossa vida enquanto potncia de
inveno intensiva. E mesmo com as correntes tentativas de neutralizaodestas potncias, so exatamente elas que podem abrir rachaduras em sua
carapaa. A potncia de vida enquanto fora de inveno portadora de
coeficientes inassimilveis de liberdade (NEVES, 2004, p. 156).
1.2 Do terrorismo subjetivo
Terrorismo subjetivo o que alimenta a iluso, o grau zero do pensamento
crtico, alimenta as mscaras da sociedade em sua transparncia ficcional, nos
impedindo de crer em nossas prprias experincias. Nada lhes probe, mas
elas se probem (LEFEBVRE, 1991), e isto um grave aspecto da sociedade
terrorista. Uma prtica que incentiva uma vida individual que, uma hora ou outra
encalhar em resignao, angstia ou medo.
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Dentro do capitalismo contemporneo, nossas capacidades pessoais e
subjetivas so incorporadas aos anseios e metas dos poderes hegemnicos e
do mercado. Segundo Rose (1998), este fato no constitui apenas um nexoabstrato de especulao, mas uma lgica de prticas sociais e polticas. Para
ele, a subjetividade compe a base dos clculos estatsticos, e guiam
direcionamentos polticos que promovem iniciativas reguladoras da conduta dos
cidados atravs de aes que incidem em suas capacidades e propenses
mentais. Essas tecnologias humanas tecnologias que tomam modos de ser
humano como seu objeto, rastros de Foucault acabam por funcionar atravs
de uma minuciosa estruturao do espao, do tempo e das relaes entre os
indivduos, que, incluindo as arquiteturas, investem na organizao calculada
de foras e de capacidades humanas, ou seja, programas e estratgias mais
ou menos racionalizados para a conduta da conduta (ROSE, 2001a).
O mapeamento deste universo individual e a valorizao exacerbada do corpo e
da auto-imagem denunciam a busca por padres patticos, ou de uma
dimenso mimtica que incentiva certas formas de ser sobre ns, modelos e
simulacros de eus desejveis, espelhos para reativar e refletir a fabricao de
uma subjetividade que se pode aspirar.
As solicitaes que sejamos um certo tipo de eu so efetivamente guiadas por
operaes que nos diferenciam ao mesmo passo que nos identificam. E como
denuncia Rose, para ser o que a gente, a genteno deve ser o eu que a
gente no no aquela alma desprezada, rejeitada ou abjetada. (ROSE,
2001b)
As prticas contemporneas de subjetivao modelizadora acabam pondo emfoco o ser que deve ser vinculado a um projeto claro de identidade, a um estilo
de vida, a partir do qual a prpria vida toma sentido, ao passo em que so
constitudas como produto de escolha pessoal, onde no devem restar dvidas.
Neste ponto somos capazes de observar que o novo sujeito contemporneo,
ainda que diante da herana referencial das instituies disciplinares de
hierarquia vertical, em prol das redes horizontais de controle, exerce, de
maneira ainda mais abrangente, o autocontrole disciplinar. Ou seja, cidados deuma democracia liberal como a nossa, devem regular a si mesmos atravs de
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mecanismos de auto-orientao - formas pelas quais os indivduos vivenciam,
compreendem, julgam e conduzem a si mesmos (ROSE, 2001b). Como
comenta Rozental (2005), a subjetividade no mais guiada por mecanismosidentitrios, porm, a imanncia do controle, independente das identidades
sociais que agora so mveis e flexveis, se tornou ainda mais persuasiva.
Na sociedade do controle a vida se expe cada vez mais como territrio
econmico. E, consequentemente, dispe-se, em sua vulnerabilidade, como
terreno frtil a ser explorado pelas estratgias do mercado. a apropriao da
dimenso subjetiva do profissional, ou, mais amplamente, o comando da vida do
trabalhador em todos os seus aspectos (ROZENTHAL, 2005, p. 128).Poderamos dizer que este paradigma de acmulo econmico que configura
modo de produo capitalista ps-industrial, em meio aos diversos
acontecimentos que instauram o presente e inscrevem nossa atualidade, em
torno de ns, e que acontece em ns, nos constitui do ponto de vista da
produo social da existncia.
O enfraquecimento do Estado, em favor do mercado e da comunicao
favoreceu o esvaziamento da poltica, ou ao menos da poltica que se publiciza,em detrimento do alcance da publicidade. Atravs da mdia, a poltica se
transforma no lugar da corrupo e da sujeira, enquanto a publicidade, o lugar
da cidadania e da limpeza. O lugar da mentira e o lugar da verdade. Centenas
de empresa fornecem a democracia ao vivo e em quites, como se os valores da
democracia, cidadania e ecologia se tornassem forosamente consequncias do
ato de consumir, consumir individualmente, e no mais um fruto da politizao
coletiva. (SANTANNA, 2007) inegvel o papel fundamental da comunicao dentro de todo esse sistema
persuasivo, ela aparece como instrumento fundamental do controle. E devemos
considerar que a comunicao completamente desterritorializada e se alastra
rapidamente pelo mundo a favor da subsuno real da sociedade aos interesses
do capital.
Sob a gide do capital financeiro, presenciamos tipos de controle tais quais
modelagens auto-deformantes, em constante mutao e modulaes. Neles, o
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poder simblico da imagem incorporado construo de subjetividades
inserindo nas relaes sociais elevados nveis de alienao. Esta produo
acaba estimulando a transformao dos interesses particulares em estilos devida e distino social enquanto seletividade competitiva, prestgio e futuro
desejvel (MAGNAVITA, 2010, p. 50). Aumentando assim, o fosso da
desigualdade social e contribuindo para acentuar a violncia simblica e real
nas cidades.
Tais mobilidades, juntamente com seus enredos psicolgicos fascinantes e a
privatizao da vida, nos impedem de detectar a lgica da feitura das verdades
daquilo que somos, e a possibilidade de recus-la. Atravs da perspicaz ediode imagens e palavras, reencontramos a blindagem do sujeito asfixiado em si
mesmo, assim como a inrcia de uma realidade exigindo-nos apenas
reconhecimento ou identificao. (BAPTISTA, 2010, p. 61). Em tempos de
totalitarismo fotognico tudo est previsto para ser transformado em imagem.
Para a salvao dos que no se sentem capazes de tomar sua verdade
existencial, territrios-padro encontram-se venda. Mapas de formas de
existncia que se produzem como verdadeiros packs identitrios facilmenteassimilveis, em relao s quais somos simultaneamente produtores-
espectadores-consumidores. Tais identidades so uma espcie de droga mais
nociva que os narcticos e desconecta a subjetivao de seu processo intensivo
vital e anestesia as tenses criando dependncias brutais.
A ideologia do consumo, como chama Lefebvre, apagou a imagem do homem
ativo, colocando em seu lugar a imagem do consumidor como razo de
felicidade, como racionalidade suprema, como identidade do real como o ideal.(LEFEBVRE, 1991, p. 64). O objetivo ou o que acaba por legitimar esta
sociedade a satisfao. Nossas necessidades satisfeitas. Lefebvre diz que
esta necessidade se compara a um vazio, mas a um vazio bem definido, a um
oco bem delimitado. E s o consumo pode fazer com que esse consumidor
preencha esse vazio. O tempo todo, estimulado, reestimulado, provocado pelas
mesmas manipulaes. E quando no saciado ele acometido pelo mal-estar
da insatisfao.
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As empresas de marketing alcanaram uma visibilidade nunca imaginada, e
agora so o instrumento do controle social por excelncia. Diferente da
disciplina, o controle exercido a curto prazo, em alta velocidade, de formacontnua e ilimitada. O homem no est mais trancafiado, mas endividado e
envolvido. Mas, apesar de todas as mutaes sofridas pelo capitalismo que
temos observados nos ltimos tempos, h ainda uma constante: a produo de
misria da maior parte da humanidade, pobres demais para se endividarem e
numerosos demais para encerr-las (DELEUZE, 1996, p. 284).
Uma barreira imaginria separa os habitantes dos mundos s margens do
universo teoricamente assegurado pelo capitalismo mundial integrado. Aconsistncia prpria dos seres humanos tem sido ignorada e encoberta por
identidades-estigma, imagens fantasmagricas pelas quais so representados.
Onde a misria material se confunde com misria subjetiva e existencial, e, mais
ainda, com esta suposta identidade que fixa. Mapas geopolticos, cartografias
de cores de pele, estilos de vida, cdigos de comportamento, classes de
consumo, lnguas, sotaques, faixas de frequncia cultural, etc. (ROLNIK, 2003,
p. 1-2). Fronteiras abstratas que so capazes de dirigir os desejos e os
processos de subjetivao que fazem com que produzamos ns mesmos e
nossas relaes com os outros atravs destas imagens.
Atravs da lente embaada desta nova ordem, as redes que nos conectam com
as potncias do mundo se tornam opacas e at invisveis. E, do que se
consegue enxergar, s vemos em parte o que nos permitido, midiatizado, e de
uma forma ou de outra, pertinente s redes que o poder constitui. Como
poderia o Imprio atual manter-se caso no capturasse o desejo de milhes depessoas? Como se expandiria se no vendesse a todos a promessa de uma
vida invejvel, segura e feliz? (PELBART, 2009, p. 20)
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1.3 Do sujeito cotidiano
Em 68, Lefebvre lanava seu livro chamado A vida cotidiana no mundo modernoe nos orientava sobre uma possvel cibernetizao da sociedade, onde a vida se
organizaria como resultado de uma ao combinada em que as foras polticas
e formas sociais convergem na orientao de consolidar, estruturar e tornar o
cotidiano funcional. E para tanto, era necessrio atingir o ambiente urbano que
era ento adaptado para esta programao.
Segundo Lefebvre, enquanto a urbanizao se estendia, a cidade tradicional
explodia e se buscava uma reconstituio prtica de uma espcie de unidade. Eos homens responsveis por esta sntese - socilogos, arquitetos, urbanistas,
economistas, e demais tecnocratas - acabavam por apostar numa programao,
e mesmo sem que fosse reconhecvel, uma robotizao da vida. Podendo
prever-se as necessidades e deline-las, investindo na organizao do espao e
do tempo e na vida dos homens, onde o desejo fosse encurralado (LEFEBVRE,
1991).
Segundo o autor, em sua banalidade, o cotidiano se constitui de repeties,gestos dentro e fora do trabalho, movimentos mecnicos (das mos, do corpo,
de peas, dispositivos), horas, dias, semanas, meses, anos. Se constitui
tambm das produes e das reprodues, dos recomeos, das retomadas, ou
das transformaes. O homem cotidiano corre o risco de se fechar em suas
trivialidades, seus afazeres, suas propriedades, seus bens e suas satisfaes, e
algumas vezes se arrepende.
A supresso do homem cotidiano pelas limitaes da rotina, da acomodao e
da satisfao pe em risco a potncia de vida enquanto fora de inveno. A
nossa potncia, enquanto fora de inveno, aquilo que convocado em
nossos corpos quando se produz um certo tipo de paradoxo quando os planos
que compem nossa subjetividade reagem entre si, entre o visvel e o invisvel,
entre o plano das referncias decodificveis e o diagrama flexvel das
sensaes.
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Esta tenso entre os planos acaba estimulando o rompimento dos contornos
das formas estabelecidas e impulsiona a subjetividade a reconfigur-los. Este
o movimento de readequao temporria s novas formas que permanecem emnossa pele at que o processo de criao finalize. At que haja um novo
paradoxo. Tudo isto o modo pelo qual constitumos nosso processo vital de
subjetivao que, a cada vez, vai organizando e estabilizando novos contornos,
enquanto desestabiliza e desfaz outros tantos.
Apesar desta nossa capacidade de inveno, temos sido constantemente
solicitados pelo mercado para a criao de territrios onde a formao esteja
dissociada do processo pelo qual foi produzido, do substrato vital que haviaconvocado aquela fora, e passa a ter como princpio organizador a produo
de mais-valia, que sobrecodifica o processo (ROLNIK, 2002). Esta a base do
aparelho homogeinizador que produz o consenso, imprescindvel ao mercado.
O capitalismo contemporneo se nutre e se intensifica por nossa fora de
inveno, mas tambm pelo constante estado de tenso que dele decorre,
estimulando cada vez mais novas reconfigurao em altssima velocidade.
Nesse regime, no entanto, o estmulo a esta tenso no favorece a criao deterritrios singulares que se compatibilizem com os processos vitais. E nossa
fora de inveno capturada pelo sistema que a utiliza a servio de seus
interesses. Nossas vidas sobrecodificadas, tornam-se o combustvel de luxo do
capitalismo mundial contemporneo, seu protoplasma (ROLNIK, 2002).
Nunca se presenciou uma sistemtica to acentuada capaz de articular tantas
conjunes praticamente ilimitadas entre as foras do homem e os diversos
mini conjuntos do seu universo ambiente, e ao mesmo passo, nunca se viveuto encerrado no cotidiano, no limitado e no precrio que envolve um
sucateamento to hostil da humanidade (ORLANDI, 2007).
A liberao do homem tornou-se tambm a liberao do prprio sistema
econmico. De repente os aspectos mais humanos do homem, seu potencial,
sua criatividade, sua interioridade, seus afetos, tudo isso que ficava fora do ciclo
econmico produtivo, e dizia respeito ao ciclo reprodutivo, torna-se matria-
prima do prprio capital, ou torna-se o prprio capital (PELBART, 2009).
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Inclusive a potncia que diferencia o artista do operrio passa a ser solicitada
pelo capital.
A nova ordem requer cada vez mais espaos dedicados ao cuidado de si eincentiva novas sensibilidades, novos prazeres, e cada vez mais as exigncias
sobre si mesmo so multiplicadas: a valorizao do corpo, a proteo do copo,
o cuidado do corpo, a segurana do corpo, o controle do corpo, o auto-controle
do corpo. A cada dia surgem novas terapias, novos remdios, novas incises,
tudo para reabilitar este corpo e torn-lo adequado ao trabalho e ao prazer.
Torn-lo adequado a compartilhar os territrios do mercado. a valorizao
extrema do corpo e tambm a sua decadncia. Observamos um sucateamentoda humanidade e de suas formas de existncia e coexistncia.
Alm do mais, o trabalho do ser humano, dentro do capitalismo, tambm
sempre envolveu algum grau de precariedade, a depender das conjunturas
polticas e das relaes de poder dominantes. Segundo o economista italiano
Andrea Fumagalli, quando o crebro e a vida do ser humano se integram em
favor do trabalho, a noo entre o tempo de vida e o tempo de trabalho se
perde. O autor ainda complementa: da que o individualismo contratual,transborda na subjetividade dos prprios indivduos, condiciona seus
comportamentos e se transforma em precariedade existencial (FUMAGALLI,
2008, p. 272).
Dentro do corpo social, a condio precria de trabalho se converte numa
postura individualista que tem como base de suas aes o fazer s suas custas
e contra os outros e no descrdito de qualquer modo de proteo social no-
individual. Ademais, quando a produo se socializa, qualquer servio social cobrado de ns mesmos e o individualismo como filosofia social torna-se
hegemnico (FUMAGALLI, 2008: 278).
A precariedade atinge tambm as relaes salariais. Quando no regime fordista,
o salrio era o que caracterizava a remunerao, no capitalismo
contemporneo, o que se manifesta uma remunerao de vida, uma renda de
existncia. O que importa no a briga por altos salrios, mas a garantia da
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continuidade da renda. Mesmo que no haja garantias nem acertos contratuais
para uma relao de trabalho.
Devemos ter em conta que ao mesmo passo que o corpo, juntamente com suapotncia de inveno, posto em evidncia e supervalorizado pelo mercado -
desde que seja posto a trabalhar em favor de mais submisso - a apropriao
de sua fora criativa pelo trabalho, e sua precariedade enquanto objeto de
consumo impulsiona a colocao de territrios pr-programados para dentro de
nossas vidas como um objeto qualquer. Ou seja, esta perda de si e a
precarizao de si incentiva a busca por referncias exteriores para suprir as
necessidades de reconhecimento pessoal enquanto ser integrado ao sistema devalores que se cr. E cobre-se de cinza e brilho a fora de inveno que
capaz de nos fazer mover.
Como sugere Lefebvre (1991), preciso que questionemos toda a
cotidianidade. O homo sapiens, o homo faber, o homo ludens se transformaram
em homo quotidianus, e nisso perdem at sua qualidade de homo. Ser o
quotidianus ainda um homem? Ele virtualmente um autmato. Para que
possamos repensar as nossas prticas como acontecimentos capazes de fazercom que ele reencontre a qualidade e as propriedades do ser humano, e
reinaugure os processos subjetivos singulares e sensveis preciso que supere
o cotidiano, d