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mário de andrade

o herói sem

nenhum caráter

macunaíma

ma cunaí ma

Estabelecimento do textoTelê Ancona LopezTatiana Longo Figueiredo

IlustraçõesLuiz Zerbini

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macunaíma

13 1. Macunaíma

20 2. Maioridade

29 3. Ci, Mãe do Mato

36 4. Boiuna Luna

45 5. Piaimã

58 6. A francesa e o gigante

68 7.  Macumba

79 8. Vei, a Sol

88 9. Carta pras Icamiabas

107 10.  Pauí-Pódole

115 11. A velha Ceiuci

134 12. Teque-teque, chupinzão e a injustiça dos homens

144 13. A piolhenta do Jiguê

152 14. Muiraquitã

165 15. A pacuera de Oibê

181 16. Uraricoera

193 17. Ursa Maior

206 Epílogo

211 Prefácios inéditos Mário de Andrade

219 A irrupção das formas selvagens Eduardo Sterzi

223 Macunaíma e as fontes indígenas Lúcia Sá

241 Glossário Diléa Zanotto Manfio

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 1 Macunaíma

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.

Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

– Ai! que preguiça!…e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no ji-rau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia to-mar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaiamuns diz-que habitando a água doce por lá. No mocambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macu-naíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos ma-chos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacororô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.

Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosqui-

A Paulo Prado

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tos bem. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.

Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto era sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam, muito simpatizadas, fa-lando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pa-jelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente.

Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Ma-cunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que lar-gasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Ma-cunaíma choramingou dia inteiro. De-noite continuou chorando. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe prin-cipiasse o trabalho. Então pediu pra ela que largasse de tecer o pa-neiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê, que levasse o menino. A companheira de Ji-guê era bem moça e chamava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. A água parara pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na entrada do furo. A moça botou Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita for-miga!… e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato. A moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito.

Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado muito com ela… Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já che-gava de pescar de puçá e a companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizilou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. Sofará aguentou a sova sem falar um isto.

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Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rasto fresco de anta e que-ria pegar o bicho na armadilha. Macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano porém Jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança. Macunaíma principiou chorando outra vez e a noite fi-cou bem difícil de passar pra todos.

No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer armadilha e enxer-gando o menino tristinho falou:

– Bom-dia, coraçãozinho dos outros.Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo.

– Não quer falar comigo, é?– Estou de mal.– Por causa?Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com

ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino. A moça fez. Macunaíma agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda pra ele e assoprasse bem nela fumaça de petum.

Quando tudo estava pronto Macunaíma pediu pra mãe que deixas- se o caxiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não po-dia por causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra sogra que “estava às ordens”. E foi no mato com o piá nas costas.

Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pe-queno foi crescendo foi crescendo e virou príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta armar um laço. Nem bem voltaram do pas-seio, tardinha, Jiguê já chegava também de prender a armadilha no rasto da anta. A companheira não trabalhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela muito. Mas Sofará aguen-tou a coça com paciência.

No outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvo-res, Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fos-sem! que fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!… Porém ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia.

Macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse uma chegadinha no bebedouro só pra ver. A moça fez e vol-tou falando pra todos que de-fato estava no laço uma anta muito grande já morta. Toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência do curumim. Quando Jiguê chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da caça. Ajudou. E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne pra Macunaíma, só tripas. O herói jurou vingança.

No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a boca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três fei-tas, correram mato fora fazendo festinhas um pro outro. Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram mui-tas festinhas. Macunaíma pegou num tronco de copaíba e se escon-deu por detrás da piranheira. Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se er-guendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fininho ver-gou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou tam-bém no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu. Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará. Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da sapituca procurou a moça em re-dor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os olhos pra ser comido sem ver. En-tão se escutou um risinho e Macunaíma tomou com uma gusparada

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no peito, era a moça. Macunaíma principiou atirando pedras nela e quando feria, Sofará gritava de excitação tatuando o corpo dele em-baixo com o sangue espirrado. Afinal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou do galho e juque! tom-bou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo todo, uivando de prazer. E brincaram mais outra vez.

Já a estrela Papaceia brilhava no céu quando a moça voltou pare-cendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém Jiguê desconfiando seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto. Jiguê era muito bobo. Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra.

Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu até a ca-poeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê levou Sofará pro pai dela e dormiu folgado na rede.

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APRESENTAÇÃO DE EDUARDO STERZI

A irrupção das formas selvagens

Muitas vezes – por exemplo, nas leituras simplistas dos currículos escola-res – se viu Macunaíma como uma representação do “povo brasileiro” ou, ainda, disso que chamamos, com esperança ou ilusionismo, de “nação”. Nessas leituras, o romance e seu protagonista são colocados em descen-dência mais ou menos direta do indianismo romântico e de suas idealiza-ções da figura do indígena como componente inicial – e, por isso mesmo, logo suprimível: etapa étnica e histórica a ser inevitavelmente superada e enterrada – de uma construção teleológica, “a nação” que quer ser tam-bém, sem resíduos e dissonâncias, “o povo”, sempre no singular.

O próprio Mário de Andrade, porém, já alertava para o equívoco de tais interpretações. Macunaíma, dizia ele, “não é símbolo”, mas sintoma

– “sintoma de cultura nossa”. Quanto a isso, é preciso lembrar que Mário esteve entre os primeiros leitores brasileiros de Freud e que fez constan-temente da psicanálise uma das bases do seu pensamento. Macunaíma pode ser dito sintomático, em linha freudiana, porque, neste romance-

-rapsódia, Mário faz aflorar – sem abandonar, porém, em nenhum mo-mento, o humor – a configuração persistentemente conflituosa, e mesmo trágica, da “nossa gente” e, portanto, da “cultura nossa”. É, aliás, antes de tudo a pertinência e a propriedade de pronomes como nós e nosso, nos discursos sobre o Brasil e sua gente, que o autor coloca em questão com o seu livro, todo ele uma vasta remixagem paródica de vozes e fraseologias alheias, assim como uma contínua interceptação e deposição das formas (europeias) da literatura pelas formas (ameríndias) do mito.

Aliás, esse choque de formas provocado por Mário para a composi-ção de Macunaíma encontra uma singular correspondência criativa no procedimento adotado por Luiz Zerbini ao produzir as monotipias que servem de ilustração a esta edição do romance: nelas, não são as formas

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da mitologia, mas as formas da própria natureza – mais exatamente, da vegetação luxuosa e desconcertante dos trópicos, tão afim à imaginação exuberante dos criadores indígenas de mitos – que vêm se imprimir di-retamente no papel, sem necessidade de desenho ou incisão. Temos aí um belo exemplo daquilo que Georges Didi-Huberman chamou de “seme-lhança por contato”,1 por meio da qual se desestabilizam as ideias conven-cionais acerca da mímesis como depuração idealizante do real e da arte como exercício de soberania artística. Não se trata, em Mário e em Zerbini, de imitar os mitos ou as formas vegetais: trata-se, sim, de criar ocasiões propícias para que as formas “selvagens” abalem e desorientem as for-mas demasiadamente “sábias” (letradas, eruditas, consagradas). Não imi-tação, mas impressão; não idealização, mas irrupção.

Esse abalroamento das formas é condizente com os mundos em per-manente estado de metamorfose que atravessam o romance: “Timbó já foi gente um dia que nem nós…”. Mário explora, de modo brilhante, a dialética do mito e da literatura: se a literatura, por um lado, domestica o mito, por ou-tro, o mito, mesmo apaziguado pela letra, revivifica a literatura. À luz do mito, por exemplo, as estrelas, que passaram a ser apreendidas através da ciência na modernidade, se tornam de novo “estrelas vivas”, conforme a expressão do autor. Trata-se, sempre, de reencontrar o mundo como coisa viva: “Macu-naíma sentou numa lapa que já fora jabuti nos tempos de dantes”.

O caráter heterogêneo – e, mais do que heterogêneo, francamente compósito – do livro coincide com o caráter heterogêneo do personagem: ambos, romance e herói, são montagens, transformações e combinações de outros textos e de outras figuras do humano, e não só do humano: Ma-cunaíma transpassa, com frequência, as fronteiras entre as espécies ani-mais e vegetais, entre o orgânico e o inorgânico, entre a vida e a morte. Ler Macunaíma apenas como alegoria da formação nacional é não com-preender toda a extensão do “nenhum caráter” postulado no subtítulo do livro (nenhum éthos – nem pessoal, nem coletivo – definido de uma vez por todas, mas, sim, um éthos mutante, deslizante e combinatório, menos carapaça metálica contra o mundo do que flutuante gambiarra vital). E é

1 Georges Didi-Huberman, La Ressemblance par contact. Archéologie, anachronisme et mo-dernité de l’empreinte (1997). Paris: Minuit, 2008.

também não compreender que, à época de sua composição e publicação, 1926-28, o modernismo brasileiro vivia já a sua grande crise interna, cul-minando na proposta oswaldiana da antropofagia, cujo mote principal é uma variante radical do nenhum-caráter macunaímico: “Só me interessa o que não é meu”.

Se pensamos as obras dos grandes artistas provenientes do moder-nismo para além da métrica estritamente modernista, perceberemos que crucial, em suas trajetórias, é sempre o momento em que saltam por so-bre os princípios definidores da primeira fase daquele movimento, cuja circunscrição política era não só nacional mas nacionalista, para alcançar uma zona de pensamento e ação que é verdadeiramente cosmopolítica. Com isso, a própria figuração das coisas brasileiras se altera de modo de-cisivo, e a violência constitutiva das sociedades das Américas (e não só do Brasil) vem à tona como não era possível nas idealizações modernistas, não apenas como conteúdo, mas também como forma.

Não por acaso, Oswald de Andrade reconheceu em Macunaíma, ape-sar de Mário jamais ter aderido àquele movimento, a grande realização literária da antropofagia, isto é, da tentativa, por ele teorizada, de repen-sar a história do Ocidente (e do Cosmos) a partir da margem imprevista, extremo-ocidental mas também pós-ocidental, proporcionada pela “des-coberta” (na verdade, invasão) da América pela Europa e pela irrupção desconcertante dos nativos do Novo Mundo na imaginação universal. Com a diferença importante, com relação a suas fontes filosóficas, como Montaigne e Rousseau, de trazer à cena não mais o “bom selvagem”, mas o “mau selvagem”, livre da sombra da catequese católica e capitalista, ca-paz de colocar tudo o que existe sob o signo da devoração, que é sempre entredevoração: esse é, aliás, o pulo do gato do canibalismo ameríndio, em que comer o inimigo é não mera destruição e assimilação de outro corpo, mas, antes de tudo, um modo de experimentar o ponto de vista do inimigo sobre todas as coisas, especialmente sobre si (é o que Eduardo Vi-veiros de Castro chama de “imanência do inimigo”).2 Modo de experimen-

2 Eduardo Viveiros de Castro, “Imanência do inimigo” (1996), in A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia (2002). São Paulo: Ubu, 2017. Vale lembrar que o livro Araweté: os deuses canibais, de Viveiros de Castro (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986), foi

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tar a multiplicidade fundamental do mundo, que não cabe em qualquer forma do Um (nação, identidade, o homem, o ser etc.).

Por isso que, em Macunaíma, a rigor, não há povo (único, maior), mas povos (plurais, menores). Povos: “nossa gente”. O herói é, a um só tempo, índio e negro: tapanhuma é, segundo o narrador, o nome de sua tribo, e essa designação equívoca remete simultaneamente ao nome dado pelos Tupi aos negros escravizados e ao nome de uma etnia indígena – porém, do Mato Grosso, muito longe do rio Uraricoera em cujas margens Macu-naíma teria nascido. O próprio Mário, recordando a condição indígena de seu protagonista e seu nascimento na fronteira entre Roraima e a Vene-zuela, assinala que Macunaíma é tão brasileiro quanto venezuelano. As terras indígenas, como se sabe, cabem mal nos territórios nacionais, e também, assim, os seus filhos. Uma Nação (maiúscula: i.e. corroborada por um Estado) nunca sabe o que fazer com as muitas nações (minúscu-las: i.e. precedentes e, sobretudo, antagônicas à forma-Estado)3 cuja per-sistência intrépida e improvável ela vê como insistentes instâncias de interpelação e questionamento, a produzir perigosas (do ponto de vista da máquina estatal e mercadológica, este inimigo sem troca de pontos de vista) experiências de outras possibilidades de vida e ação.

Se a história de Macunaíma revela-se, ao fim, a história de um massa-cre (os genocídios indígena e africano, ambos ainda em curso, são sinte-tizados no episódio da tribo extinta), é também, antes e depois do fim, a história de um desejo de sobrevivência e libertação, de quem, diante da morte e do “silêncio imenso” que ela deixa, tem força de dizer que não veio ao mundo “para ser pedra” – e que, assim, se faz canto e constelação.

publicado em língua inglesa com o título de From the enemy’s point of view (trad. Catherine V. Howard. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 1992).3 Cf. Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política (1974), trad. Theo Santiago. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

LÚCIA SÁ

Macunaíma e as fontes indígenas

Mário de Andrade admitiu abertamente a intensa relação intertextual do seu romance Macunaíma com as narrativas indígenas publicadas por Theodor Koch-Grünberg em Vom Roroima zum Orinoco (Do Roraima ao Orinoco, 1924). Em 1931, três anos após a publicação do romance, Mário foi indiretamente acusado de plágio pelo folclorista paraense Raimundo Moraes num verbete do seu Dicionário de cousas da Amazônia:

Os maldizentes afirmam que o livro Macunaíma do festejado escritor Má-rio de Andrade é todo inspirado no Vom Roroima zum Orinoco do sábio (Koch-Grünberg). Desconhecendo eu o livro do naturalista germânico, não creio nesse boato, pois o romancista patrício, com quem privei em Ma-naus, possui talento e imaginação que dispensam inspirações estranhas.1

Mário respondeu com uma carta aberta endereçada ao seu interlocutor, publicada no Diário Nacional no mesmo ano:

Copiei, sim, meu querido defensor. O que me espanta e acho sublime de bondade é os maldizentes se esquecerem de tudo quanto sabem, res-tringindo a minha cópia a Koch-Grünberg, quando copiei todos. E até o sr. na cena da Boiuna. Confesso que copiei, copiei às vezes textualmente. Quer saber mesmo? Não só copiei os etnógrafos e os textos ameríndios, mais ainda, na “Carta pras Icamiabas”, pus frases inteiras de Rui Barbosa,

1 Mário de Andrade, Macunaíma [1928], organização de Telê Porto Ancona Lopez. Paris: As-sociation Archives de la Littérature latino-américaine, des Caraibes et africaine du XXe siècle; Brasília: CNPq, 1988, p. 524.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Andrade, Mário de [1893-1945]

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter / Mário de Andrade; estabelecimento do texto Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo, ilustrações Luiz Zerbini – 1ª edição São Paulo: Ubu Editora, 2017272 pp.

ISBN 978 85 92886 51 6 (brochura)ISBN 978 85 92886 52 3 (capa dura)

I. Romance brasileiro II. Sterzi, Eduardo III. Sá, Lúcia IV. Lopez, Telê Ancona V. Figueiredo, Tatiana Longo VI. Título

16–000024 CDD 869.3

Índices para catálogo sistemático: I. Romance: Literatura brasileira 869.3

© Ubu Editora, 2017 Estabelecimento do texto da rapsódia e dos prefácios

© Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo, 2017Ilustração © Luiz Zerbini, 2017Texto © Lúcia Sá, 2017Apresentação © Eduardo Sterzi, 2017Glossário © Diléa Zanotto Manfio, 2017

Texto estabelecido no projeto que visa à edição fidedigna de obras de Mário de Andrade, desenvolvido no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP), pela Equipe Mário de Andrade, sob a coordenação de Telê Ancona Lopez, valendo-se de documentos no acervo do escritor, organizado na instituição.

monotipias pp. 15, 63, 71, 82, 170–71 colaboração da artista performer Juliana Wähner

Coordenação editorial Florencia FerrariAssistentes editoriais Isabela Sanches e Mariana SchillerRevisão Débora Donadel e Maria Fernanda AlvaresDesign Elaine RamosAssistente de design Livia Takemura Tratamento de imagem Carlos MesquitaProdução gráfica Aline Valli

Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Apoio

UBU EDITORALargo do Arouche 161 sobreloja 201219 011 São Paulo SP(11) 3331  2275 ubueditora.com.br