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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS MARTINS PENA: A TRAGICOMÉDIA DE UM DRAMATURGO BRASILEIRO Rafael Loureiro de Almeida Rio de Janeiro Fevereiro de 2016 Tese de doutorado a ser apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas como requisito para obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Prof. Dr. Adauri Silva Bastos

MARTINS PENA: A TRAGICOMÉDIA DE UM DRAMATURGO … · 2020-01-30 · 3 Resumo Martins Pena: A tragicomédia de um dramaturgo brasileiro Diante da perspectiva de expor a história

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Page 1: MARTINS PENA: A TRAGICOMÉDIA DE UM DRAMATURGO … · 2020-01-30 · 3 Resumo Martins Pena: A tragicomédia de um dramaturgo brasileiro Diante da perspectiva de expor a história

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

FACULDADE DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS

MARTINS PENA: A TRAGICOMÉDIA DE UM DRAMATURGO BRASILEIRO

Rafael Loureiro de Almeida

2014

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

Tese de doutorado a ser apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Letras Vernáculas como requisito

para obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas

(Literatura Brasileira).

Orientador: Prof. Dr. Adauri Silva Bastos

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BANCA EXAMINADORA

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2016

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Resumo

Martins Pena: A tragicomédia de um dramaturgo brasileiro

Diante da perspectiva de expor a história e a obra de Martins Pena (1815-1848) de

maneira aprofundada, debruçamo-nos sobre diversos documentos, manuscritos e publicações

do século XIX. O objetivo era fortalecer a posição de um dos maiores comediógrafos

brasileiros, mediante a refeitura de partes de sua biografia de maneira crítica, ou seja,

perscrutando os dados úteis ao entendimento de sua obra. Nesse sentido, foram de especial

valia as documentações encontradas na Biblioteca Nacional, nos arquivos nacionais do Brasil

e da Inglaterra, entre outros acervos.

Vimos com especial interesse os registros de leitura de Martins Pena na Biblioteca

Nacional, nos quais são listadas algumas das publicações com que ele teve contato. Também

valorizamos o estudo dos periódicos da época, entre os quais descobrimos dois contos de

nosso autor. Além disso, repensamos sua trajetória desde o nascimento, passando pela

infância, a formação na Aula do Comércio e a carreira de jornalista, dramaturgo,

comediógrafo e colunista. Esperamos, assim, ter criado uma base melhor para compreender o

contexto em que Martins Pena criou a mais bem-sucedida obra teatral entre seus

contemporâneos brasileiros.

Palavras-chave: Romantismo; Martins Pena; História; Crítica.

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Abstract

Martins Pena: A Tragicomedy of a Brazilian Playwright

This project was guided by the wish of exposing in deptht he history and the works of

Martins Pena (1815-1848). In order to achieve this aim, we have analysed a great amount of

documents, manuscripts and publications of the nineteenth century. Thus, we could remake

critically some parts of his biography, that is, emphasizing details that might be useful to

understand his works. In this sense, it was precious all the documentation found in the

Brazilian National Library, in the national archives of Brazil and England, among other

institutions.

In the Brazilian National Library, we saw with special interest the reading records of

Pena, since those documents offer a good list of the books and magazines appreciated by the

author. We have also studied the most important Brazilian nineteenth-century periodicals,

where we discovered two of his short stories. Moreover, we tried to rethink his life from birth,

his education, and, of course, his career as journalist and playwright. We expect, therefore, to

have built a better basis to understand the context in which Martins Pena created the most

successful theater plays among his Brazilian contemporaries.

Keywords: Romanticism; Martins Pena; History; Criticism.

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Ao Artur e à Luísa,

pequenos comediantes da minha história.

O presente estudo contou com o apoio do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa (PNAP) da

Fundação Biblioteca Nacional

Bolsista da CAPES – Processo BEX 8296/14-6

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Agradecimentos

A Darcy Damasceno (in memoriam), pela sólida dedicação à pesquisa literária, abrindo

caminhos entre leitores e grandes autores vernáculos. Que seu trabalho continue a servir de

modelo e inspiração a muitos pesquisadores.

À Iracilda Damasceno, companheira e guardiã da memória de Darcy, por ter

proporcionado o acesso ao acervo de livros e manuscritos do poeta pesquisador, quando nos

foi permitido trazer à lume mais alguns de seus pensamentos.

Ao professor Antonio Carlos Secchin, que acreditou neste projeto nos primeiros

indícios de ser possível novas descobertas sobre Martins Pena e, desde então, presentificou-se

em ações decisivas para a consistência da tese.

Ao professor Godofredo de Oliveira Neto, pela precisão em seus comentários durantes

nossas reflexões sobre os caminhos desse estudo e sobre as formas de um pesquisador

caminhar.

Ao professor Dau Bastos, que colaborou, de forma gentil e eficaz, na produção deste

estudo; por vivenciar com determinação e orientar-me com sabedoria cada um dos meus

percalços acadêmicos.

Ao professor Victor Hugo Adler Pereira, por compartilhar a experiência de estudos

sobre o teatro nas Letras indicando-me referências no exame de qualificação e, sobretudo, por

ter ajudado sob prazos urgentes, tornando possível expandir a pesquisa para a Europa.

À professora Elisa Sampson Vera Tudela, pela receptividade aos meus contatos,

possibilitando-nos criar uma pequena ponte entre o Departamento de Letras Vernáculas da

UFRJ e o SPLAS da King’s College London. Valioso acolhimento profissional.

Ao professor Valdemar Ferreira Valente Junior, que novamente aceitou a tarefa de

oferecer seu olhar crítico sobre meus estudos de dramaturgia romântica brasileira, olhar que

me acompanhou em diversos momentos da formação em Letras.

Ao professor Alcmeno Bastos, pelo refinamento do seu parecer, permitindo-me

vislumbrar pontos a serem arrematados e novos caminhos.

Ao professor Victor Manuel Ramos Lemus, que fez uma análise atenciosa do texto de

tal forma que me fez perceber aspectos da minha técnica de escrever que eram inconscientes.

Ao professor Eduardo Portella, pela constante serenidade em seus comentários,

ajudando-me a definir as estratégias da pesquisa.

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Ao Marcos Thadeus e à Maria Eugênio Di Domenico, por me receberem em São

Paulo, compartilharem muitas de suas experiências e por valorizarem a importância das

descobertas dessa pesquisa. Incluo nesse agradecimento os atores Albino Ventura, Aline

Nêmesis, Paulo Bergsten, Paulo Roberto Campos, Priscila de Fátima Jerônimo (que

intermediou o encontro), Wagner Sturion e a diretora Salete Fracaroli, por me presentearem

com uma das mais graciosas montagens de O Judas em Sábado de Aleluia.

À Companhia Atores de Laura, que me integrou à equipe de O Pena carioca,

permitindo-me acompanhar os ensaios e agir como consultor da literatura de Martins Pena.

Ao diretor Daniel Herz, por me designar essa tarefa e compartilhar suas visões acerca do

dramaturgo e de sua criação cênica. Aos atores Ana Paula Secco, Anderson Mello, Gabriela

Rosas, Leandro Castilho, Leila Savary, Luiz André Alvim, Marcio Fonseca e Paulo Hamilton,

pelas agradabilíssimas conversas sobre os textos e a relação entre dramaturgia e atuação. À

produtora Renata Campos, que iniciou o contato, e ao assistente de direção Tiago Herz, pela

vivacidade com que me receberam e pelo desempenho primoroso de suas atribuições. A todos

que colaboraram de alguma forma para a realização da temporada, por tornarem possível uma

homenagem à altura da efeméride dos 200 anos de Martins Pena.

À Raquel Lourenço do Valle, por toda a contribuição na pesquisa, indicando com

notória precisão a localização de documentos históricos referentes a Martins Pena, além de

todo seu apoio, essencial para o engrandecimento desse estudo.

À Clarissa Chiarelli Penna e a Jun Shimada, por terem oferecido seus conhecimentos

técnicos durante a revisão textual.

A Miguel Gomes, por todas as nossas conversas sobre o panorama cultural brasileiro e

as diversas possibilidades de desdobramento do estudo.

À Joana Medeiros, que sempre colaborou com a minha trajetória acadêmica, cuidando

de nosso filho com admirável zelo mesmo sob as adversidades do percurso.

Aos meus pais, Nefitaly e Cristina, e ao meu irmão, Rodrigo, por segurarem as pontas

enquanto o doido familiar se enchafurdava em papéis seculares simplesmente para fortalecer a

ideia de que a melhor parte da cultura brasileira é sua vertente cômica, coisa que no fundo

todos sabem mesmo sem saber por quê.

A todos que contribuíram de alguma forma para a realização desse trabalho, minha

sincera gratidão.

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Lista de abreviaturas e siglas

CM Correio da Manhã

CO Correio Official

DRJ Diário do Rio de Janeiro

MP Martins Pena

SDR O Simplício da Roça

JC Jornal do Commercio

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Sumário

Introdução....................................................................................................................... 11

1. História de Martins Pena segundo suas leituras..................................................... 16

1.1 As leituras de Martins Pena........................................................................... 17

1.2 Conflitos de irmãos órfãos............................................................................. 36

1.3 O exemplar do pesquisador............................................................................ 45

1.3.1 Os juízes de paz das roças............................................................... 48

1.3.2 Preenchendo a lacuna de 1840 a 1843............................................. 56

2. Educando-se no século XIX....................................................................................... 62

2.1 Infância através de regimes............................................................................. 66

2.2 Aula do Comércio e a ementa experimental................................................... 69

2.3 Da Aula do Comércio para o aprendizado jornalístico................................... 90

2.3.1 Os primeiros anos do Romantismo brasileiro.................................. 95

2.3.2 Juvenília de Martins Pena: entre os jornais e os palcos................... 110

3. Um dramaturgo na Corte........................................................................................... 126

3.1 Primeiras peças, primeiros dramas.................................................................. 128

Considerações finais........................................................................................................ 150

Referências....................................................................................................................... 154

Anexos.............................................................................................................................. 159

1. Fac-símiles de páginas de Comédias, de Martins Pena, anotadas por Darcy

Damasceno...................................................................................................... 160

2. Entrevista com Iracilda Mendes Damasceno dos

Santos............................................................................................................. 165

3. Reprodução de documentos relativos à Aula do Comércio........................... 169

4. Original do conto “Duguay-Trouin”, de Martins Pena.................................... 173

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5. Original do conto “A rebelião dos maranhenses ou A morte de Beckman”,

de Martins Pena.................................................................................................... 180

6. Dois poemas de Gonçalves de Magalhães........................................................ 196

7. Reprodução da edição da comédia Os dous, de Martins Pena.......................... 198

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Introdução

Já faz tempo que a obra de Martins Pena marca o inconsciente coletivo brasileiro: uma

identidade que se reconhece construída em cima de premissas como a educação precária, a

desigualdade de renda, nepotismo, apadrinhamentos, improvisos e malandragens para resolver

conflitos. A princípio, esses temas parecem ter sido irradiados do Rio de Janeiro do século

XIX e permanecem muito vivos após dois séculos de construção identitária. Porém, na

primeira metade do século XIX poucos foram capazes de retratar com tanta acuidade esses

problemas quanto Luiz Carlos Martins Pena, um dramaturgo carioca lembrado pelas comédias

que satirizaram a situação e o comportamento da sociedade brasileira, sátiras que ainda se

encaixam muito bem com a mesma sociedade quase duzentos anos depois de escritas.

A história do criador da comédia de costumes brasileira ainda é permeada por escassez

de informações. Luiz Carlos foi o segundo e último filho de João Martins Pena,

desembargador que faleceu em 1816, quando o caçula tinha apenas um ano. Durante seus 33

anos de vida, o autor veria de perto um dos principais períodos de mudanças administrativas

no Brasil, entre a independência e os primeiros anos de Pedro II. A sensibilidade que

desenvolveu para pinçar os pontos fracos de seu país se deve em parte a uma inteligência

crítica incomum e a uma perseverante busca pela criação artística, que obteve à base de

leituras e estudos diversificados. É possível ter acesso a parte das leituras de Martins Pena

através do livro de registros da Biblioteca Nacional, assim como é possível investigar parte de

sua educação por meio de relatos e pelas ementas da Aula do Comércio, da qual foi aluno em

1832.1

Portanto, a formação de Martins Pena pode ser historiografada e desenvolvida através

de seus estudos e leituras, e esse é o ponto de partida da tese. Cada registro deixado na

Biblioteca Nacional se tornou uma pequena prova do universo de leitura do futuro

dramaturgo. Na primeira parte deste estudo, a “História de Martins Pena segundo suas

leituras”, partimos das evidências e informações contidas nesses registros para reconsiderar o

perfil do artista e desdobrá-las em mais descobertas, que não se limitam às sementes de seu

projeto literário, mas que também dizem respeito a seu perfil de leitor e pessoa. De fato,

1 O Anexo 3 desta tese se faz de documentos da Aula do Comércio relativos ao aluno Luiz

Carlos Martins Pena.

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podemos afirmar que Martins Pena, então com pouco mais que dezessete anos, tinha

interesses que variavam entre literatura, filosofia, música, busca de notícias sobre o Brasil e a

Europa, informações sobre máquinas, entre outros. Essa pluraridade permite supor que existia

uma inquietação no jovem, um desejo de se informar sobre o mundo que o cercava, um “olhar

observador e penetrante” (Veiga: 1887, p. 380) que pôde ser percebido até os últimos anos de

sua existência.

No capítulo “Conflito de irmãos órfãos”, exploramos as descobertas para ilustrar um

dos momentos mais dramáticos de Martins Pena, a partir de seus dez anos, quando perdeu a

mãe, Francisca de Paula Julieta Pena, devido a complicações no parto de Joana Torres, a única

filha que teve com Antônio Maria da Silva Torres. Porém, o trauma foi maior do que ficar

órfão de pai e mãe. Com a morte de Francisca de Paula, iniciou-se uma disputa pela herança

em que avós, tio, padrasto e irmãs iriam trocar argumentos e insultos por muitos anos.

É preciso esclarecer que grande parte destes estudos só puderam ser realizados devido

ao acesso a anotações e pesquisas de Darcy Damasceno, principal estudioso da obra de

Martins Pena. Quase todas as descobertas contidas nesta tese tiveram início em seu acervo,

cujo volume de informações comprova a extensão de seus estudos. Como seus procedimentos

de pesquisa eram intensos e exaustivos, muitas de suas anotações não se desdobraram em

artigos, ou porque não houve tempo hábil para concluí-las, ou porque lhe faltavam detalhes

para comprovar as hipóteses, entre outros motivos. Inclusive, foi possível ter acesso ao

exemplar das Comédias de Martins Pena, publicado em 1956, que pertenceu a Darcy

Damasceno, também contendo anotações, muitas delas na mesma situação de ineditismo e que

merecem ser analisadas.2 Portanto, no capítulo “O exemplar do pesquisador” analisamos essa

desconhecida fonte, a fim de trazer à luz suas informações.3

Visto que a peça de estreia é O juiz de paz da roça, percebe-se que Martins Pena

factualmente se utilizou de situações em que esteve presente para se inspirar e compor sua

comédia, pois o conflito familiar mencionado anteriormente só terminaria alguns anos depois

2 O Anexo 1 desta tese dá uma boa ideia da perspicácia e pertinência das anotações de Darcy

Damasceno.

3 Darcy Damasceno foi tão importante para a elaboração deste trabalho que buscamos

conhecê-lo melhor mediante a realização de uma entrevista com sua esposa, Iracilda Mendes

Damasceno dos Santos, reproduzida como Anexo 2 desta tese.

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da estreia nos palcos, após idas e vindas do caso a diversos tribunais e juízes. Além disso, em

1838 a crítica ao sistema judiciário brasileiro havia se tornado algo corriqueiro de se encontrar

nos jornais. Existia um notável descontentamento dos brasileiros livres frente aos costumeiros

desmandos e excessos da administração do país, principalmente por parte dos juízes. Portanto,

a peça de estreia foi composta em níveis seguros de provocação, apoiando a opinião da

maioria do público. As primeiras reflexões que tratam da relação entre a primeira comédia de

costumes brasileira e as noções que o autor e a imprensa nutriam sobre o poder judiciário se

encontram no capítulo “Os juízes de paz das roças”.

Sabe-se que Martins Pena não se restringiu a ser comediógrafo. Escreveu dramas,

contos, crônicas, críticas, traduções e artigos jornalísticos. Também foi funcionário público, a

princípio como amanuense, sendo promovido até a posição de adido de segunda classe da

legação brasileira em Londres. Além disso, foi segundo secretário do Conservatório

Dramático Brasileiro, sendo que sua atuação como censor estava mais ligada a suavizar o

processo de censura das peças que os teatros desejavam pôr em cartaz do que a censurar ou

modificar trechos, sendo raras suas recomendações nesse sentido. Para finalizar os exemplos

dessa pluraridade, Martins Pena também tinha bons conhecimentos musicais; era tenor e

participava em coros de contraponto e em pequenas casas de espetáculo. É evidente, portanto,

que Martins Pena possuía um gênio e uma inteligência extraordinários. Porém, como essas

qualidades puderam ser desenvolvidas num país de educação notavelmente precária? Na

segunda parte da tese, “Educando-se no século XIX”, procuramos esclarecer um pouco os

problemas que envolvem a questão.

Tendo nascido em 1815, o sistema educacional a que Martins Pena foi submetido

seguia as regras da administração joanina, em que a educação não era uma prioridade. Havia

professores públicos, porém, mesmo na Província do Rio de Janeiro, eram poucos, cerca de

vinte professores, a maioria regendo o ensino de vilas distantes. Nesse sistema, a principal

disciplina era o ensino de Primeiras Letras, mas também existiam professores de latim, grego,

inglês, francês, retórica e filosofia, estes concentrados na capital da Corte. Martins Pena foi

um dos sortudos brasileiros de seu tempo que puderam ter acesso à educação pública um

pouco mais elaborada. Não obstante, parte de seus estudos teve de ser adquirida de outras

maneiras, seja de forma autodidática, seja por meio de professores particulares, ou ainda junto

a grupos de estudo.

A ideologia dominante era a doutrina católica, que no início do século XIX estava

bastante defasada frente às transformações do Iluminismo. A última grande reforma da Igreja

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teria sido no Concílio de Trento, em meados do século XVI, e a próxima reforma somente se

daria no Concílio Vaticano I, na segunda metade do XIX, ou seja, mais de uma década após a

morte do dramaturgo. Logo, Martins Pena fez parte de uma sociedade que mantinha certas

ideias anacrônicas, portanto não poderia escapar por completo do atraso ideológico. O drama

Vitiza ou O Nero de Espanha talvez seja o que mais tenha sofrido com esse problema. O

extensivo trabalho de compor cinco atos em verso ficou bastante ofuscado devido ao

antissemitismo explícito, pensamento que, na verdade, somente será amenizado no Concílio

Vaticano II, realizado após a Segunda Guerra Mundial.

Apesar da ideologia religiosa que dominava o Brasil do início do século XIX, não se

impediu a entrada dos pensamentos iluministas, que aos poucos coabitaram com os anteriores.

A missão artística francesa foi uma espécie de marco dessa transição ideológica. No entanto, a

mudança não se deu apenas no campo das artes, mas também nos horizontes da política, e foi

José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, quem melhor demonstrou como isso ocorreu no

cenário brasileiro, principalmente em seu livro Constituição moral e deveres do cidadão,

publicado em três tomos, no qual tenta inserir as ideias liberais, como os pensamentos de Jonh

Locke, no contexto da Constituição do Brasil. Cairu foi um dos pioneiros na implantação de

um sistema educacional no país, e suas ações nesse sentido alcançam Martins Pena.

No capítulo “Aula do Comércio e a ementa experimental”, abordamos o contexto

desse ensino, um curso técnico que visava preparar os jovens tanto para a mediação comercial

quanto para o funcionalismo público. Pretende-se não somente descrever como era a rotina de

estudos de Martins Pena nesse período, como também esclarecer relações entre ele e seus

colegas de turma, além de traçar paralelos com suas composições literárias. Trata-se de um

período importante, em que ele deixa de ser tutelado pelo tio e toma suas primeiras decisões

na direção de se aventurar no caminho da escrita.

No capítulo seguinte, “Da Aula do Comércio para o aprendizado jornalístico”,

mostramos um pouco do percurso inicial do Romantismo basileiro e possíveis caminhos

acerca de como Martins Pena se atrelou ao mundo artístico, lançando-se escritor: seus

primeiros artigos de jornal e seus primeiros contos, como Duguay-Trouin, inédito à

bibliografia moderna, entre outros passos que antecederam a assiduidade nos palcos.

Na terceira parte, “Um dramaturgo na Corte”, partimos da intenção de mapear todo o

percurso de Martins Pena durante sua atuação nos teatros fluminenses. Tal objetivo se mostra,

a princípio, bastante trabalhoso. Contudo, é preciso considerar que é o período mais estudado

e, portanto, já conta com uma bibliografia consistente, da qual se pode obter muitas

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informações. Com base nesses estudos, procuramos reelaborar a interpretação dos momentos

mais importantes da carreira de Martins Pena, utilizando-nos da premissa de que seus dramas

foram parte de um projeto do que ele gostaria de alcançar na dramaturgia, aquilo que não pôde

conquistar. Além de ser uma forma de compreender o projeto literário, também é a maneira

como o autor interpretava o gosto vigente. Por isso, em vez de simplesmente evitar o contato

com os dramas, resumindo-os a um desastre em sua produção, procuramos nesses textos

meios para melhor entender o autor e o público a que se dirigia.

O capítulo “Primeiras peças, primeiros dramas” trata da introdução do autor no

caminho dramatúrgico. Por meio da cronologia dos manuscritos, deduz-se que Martins Pena

redigiu a maior parte dos dramas antes de sua maior sequência de comédias. Esse tema é

pouco analisado pela bibliografia existente, sendo costumeira a ideia que o autor teria tentado

um caminho diverso de sua vocação. Não é preciso contestar a evidência de as comédias de

Martins Pena serem muito mais importantes do que os dramas. O que é necessário repensar é

o contexto em que os dramas foram produzidos. Se por um lado Martins Pena ainda era um

dramaturgo inexperiente, por outro estava buscando maneiras de se inserir no meio social dos

teatros. Durante esse início, suas atitudes corroboram a hipótese de que estava tentando

produzir textos para serem encenados pela companhia de João Caetano, que valorizava a

encenação de tragédias e dramas, até porque eram os gêneros dramáticos preferidos da

sociedade fluminense. Dessa forma, trabalharemos as primeiras peças de Martins Pena de

modo a melhor compreender seus passos e intentos iniciais na tarefa de se inserir no ambiente

teatral.

Ao juntar peças de um mesmo quebra-cabeça, pretendemos dar um retrato abrangente

do histórico de formação e produção de um grande autor do teatro e dos costumes brasileiros.

Martins Pena conseguiu, graças igualmente a seu gênio, deixar uma obra valiosa como arte,

documento e reflexão. De fato, sua produção e sua expressividade ultrapassam a acurada

representação dos costumes de sua época, não sendo raras as críticas que ainda alcançam

traços constitutivos e persistentes da sociedade atual.

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1

História de Martins Pena segundo suas leituras

O Sr. P... não é tolo, bem sabe o que faz.

(Anônimo: O Mercantil, 3/7/1847)

Em vez de iniciarmos com a descrição histórica da vida de Martins Pena,

trabalharemos com algumas de suas leituras, feitas entre os anos de 1833 e 1838. Este salto

inicial se deve sobretudo a uma questão de prioridade. Após conhecermos um pouco do

universo de leitura do futuro dramaturgo, haverá um rol de preliminares mais propício para

revisarmos sua história. Tais informações não estavam disponíveis ao público, pois se

encontravam em anotações dispersas de Darcy Damasceno.

Os esforços de pesquisa do poeta Darcy Damasceno surpreendem pelo rigor e

obstinação. Professor secundário do estado do Rio de Janeiro e técnico de educação na

Biblioteca Nacional, trabalhou concomitantemente com assuntos educacionais, pesquisa e

produção literária. Como poeta, integrou a chamada Geração de 45, uma plêiade duramente

ofuscada e diminuída pela crítica e recepção posteriores. Se por um lado a poesia de Darcy

Damasceno não recebeu o merecido reconhecimento, por outro não há crítica lúcida que possa

desmerecer sua atuação como pesquisador. De 1951 a 1982, trabalhou na Seção de

Manuscritos da Biblioteca Nacional, espaço que lhe propiciou matéria-prima para profusas

investigações e descobertas. Logo no início de suas atividades, foi incumbido de organizar e

cotejar o arcaz com os manuscritos de Martins Pena, que estavam esquecidos desde a

transferência do acervo da antiga sede (que hoje abriga a Escola de Música da UFRJ) para a

atual.

Um bom exemplo do valor documental das pesquisas de Darcy Damasceno são os

manuscritos 26, 2, 93 (Relação cronológica de publicações sobre Martins Pena, encontradas

na Biblioteca Nacional e no Real Gabinete de Leitura: 1833-1839: notas várias). Damasceno

procurou e encontrou, no livro de consultas da antiga Biblioteca Nacional e Pública os

possíveis registros feitos por Martins Pena, traçando as leituras do jovem aspirante à

dramaturgia na instituição entre os anos de 1833 e 1840. Trata-se de outra pequena amostra da

profundidade que Damasceno alcançou na pesquisa sobre Martins Pena. Não há, na

bibliografia existente sobre o dramaturgo, nada tão factível a respeito do tema; o que existiam

eram algumas suposições.

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Seria relativamente fácil deduzir que Martins Pena teria lido Molière, porém não se

sabia quando, e especulou-se, inclusive, que isso teria ocorrido após as primeiras

apresentações de suas peças (ou seja, depois de 1838). Damasceno revela, em primeira mão,

que Martins Pena consultou as Œuvres complètes de Molière em 8 de agosto de 1835, fato

que, isoladamente, permite algumas asserções sobre o jovem aspirante a dramaturgo. Suas

pretensões de ingressar na vida intelectual e literária já estavam em progresso quando

completou os estudos na Aula do Comércio, o que reforça a crença de Damasceno no relato de

José Francisco Viana, sobrinho de Pena, que diz que O juiz de paz da roça começou a ser

idealizada em 1833 (cf. Damasceno apud MP: 1956, p. 22), embora estudos posteriores

tenham levado Damasceno a perceber elementos na comédia que o fizeram reconsiderar sua

data de elaboração, fixando-a em 1837. A fluência em francês permitia ao jovem estudante

consultar a obra de Molière na língua original, o que reitera a afirmação de que Martins Pena

já esboçava seu projeto literário alguns anos antes de sua estreia nos palcos. Por fim, é uma

prova consistente de que a influência de Molière sobre Martins Pena não se deve apenas ao

sucesso de representação de O doente imaginário nos palcos fluminenses, mas que, de fato,

ocorreu em níveis estéticos mais profundos.

1.1 As leituras de Martins Pena

A lista de obras consultadas é uma interessante prova do universo de leitura de Martins

Pena, sobre o qual pouco se sabia além do que era possível inferir da obra dramática. O que se

conhece de sua posição social é que ele era proveniente da espremida classe média da Corte,

neto de militares e comerciantes e filho de João Martins Penna, um desembargador, do qual

ficou órfão com menos de um ano de idade. Tutelado pela mãe, Francisca de Paula Julieta

Penna, obteve formação pública de primeiras letras por professores como os padres Agostinho

Marques de Gouvêa e Pedro Bandeira de Gouvêa (pelo que se pôde deduzir ao cruzar as

informações da biografia de Luiz Francisco da Veiga [1877] com as do quadro de professores

da província do Rio de Janeiro) e adquiriu conhecimentos diversos, como o francês, segunda

língua obrigatória para os cidadãos fluminenses dessa época. Ingressou nos estudos da 8ª Aula

do Comércio em 1832 e foi aprovado entre os cinco melhores alunos da turma. No ano

seguinte, em 12 de outubro, a Bibliotheca Nacional e Pública iniciou a política de registrar as

consultas num livro que se tornaria uma das referências mais valiosas sobre o universo de

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leitura da época. Martins Pena era frequentador da instituição e seus primeiros registros, já

filtrados do livro pela pesquisa de Damasceno, foram os seguintes:

1833

19/10 – Galerie agréable du monde (2. v.)

21/10 – Galerie agréable du monde (5. e 6. v.)

6/11 – Figures de la Bible (1. v.)

4/12 – Revue Britannique (1. v.)

12/12 – Galerie agréable du monde (5. e 6. v.)

16/12 – Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des Arts et des

Métiers

Nas anotações de Damasceno, existe a indicação de um “Aviso de 9/10/1833”, que

manda instituir Martins Pena. Logo, o acesso regular à biblioteca estava condicionado a um

cadastro, tal como é de praxe nas bibliotecas atuais quando se deseja frequentá-las e tomar

obras emprestadas. Como a frequência registrada coincinde com o término de sua formação na

Aula do Comércio, o livro é um dos poucos registros conhecidos sobre esse momento de

transição na carreira do futuro dramaturgo, o período entre o fim de seus estudos regulares e o

início do trabalho público (de simples amanuense) e da estreia nos palcos.

É interessante perceber, além da predominância de títulos em francês, que quase todas

as primeiras consultas de Martins Pena foram publicações com grande número de figuras. O

interesse poderia corroborar a suposição de que Martins Pena tinha planos de ingressar na

Academia de Belas Artes, conforme sugere a biografia de 1877. Porém, é possível afirmar que

ele não foi aluno regular das aulas da academia, pois seu nome não consta na relação de

matrículas da instituição, o que não impede supor que ele a tenha frequentado como ouvinte e

amante das artes.

Segundo os registros, Martins Pena não retornaria à biblioteca nos dois primeiros

meses de 1834. O rapaz, então recém-formado na Aula do Comércio, teve um pequeno tempo

de concentração em outras atividades, fossem leituras de romance, fossem momentos de lazer

com a família. Teria sido um dos períodos em que esteve na roça?

1834

3/3 – Nova coleção de segredos e curiosidades (2. v.)

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4/3 – (Estampas várias)

10/3 – Revue Britannique (2. v.)

11/3 – Revue Britannique (2. v.)

12/3 – Revue Britannique (2. v.)

14/3 – Description de la machine aérostatique

15/3 – Revue Britannique (1. v.)

22/3 – Revue Britannique (1. v.)

28/3 – Enciclopédia de Conhecimentos Úteis (7. v.)

Quando Martins Pena retorna à biblioteca, na primeira segunda-feira de março,

consulta o livro Nova coleção de segredos e curiosidades, um ajuntamento anedótico de

casos, histórias e “contos maravilhosos que fazem o prazer das avós e das tias, contos de

arrepiar os cabelos, e que de geração em geração, sempre mais corretos e aumentados, se

tornam uma espécie de crônicas familiares e tão respeitadas, que algumas por aí vemos em

letra redonda” (MP: 1965, p. 67). Na terça-feira, consulta novamente um livro de figuras, o

que permite deduzir que um dos principais interesses de leitura do jovem Martins Pena, então

com 18 anos, eram as artes gráficas. A semana seguinte revela outro interesse do rapaz: o de

se informar. O livro Description des expériences de la machine aérostatique (1783), de

Montgolfier, descreve experiências com balões. Já a Revue Britannique era uma revista

francesa que reunia informações gerais da Inglaterra, como notícias comerciais, políticas e

militares, personalidades da Corte inglesa, artigos de medicina, arqueologia, relatos de

viagem, curiosidades anedóticas, entre outras, como pequenas notícias do mundo literário e

análises de trechos de roteiros teatrais.

Duas hipóteses podem ser levantadas quanto aos objetivos dessa leitura: uma diz

respeito à futura carreira de funcionário público, outra sobre pretensões à carreira jornalística.

Na primeira hipótese, Martins Pena, recém-formado na Aula do Comércio, ao ler notícias

relacionadas à realidade da Inglaterra, avançava nos estudos adquiridos a fim de se inserir na

Secretaria dos Negócios Estrangeiros, da qual se tornaria amanuense alguns anos depois. Já a

segunda hipótese está relacionada à ascensão da imprensa no Brasil e, por conseguinte, ao

crescimento da demanda por redatores e tradutores. Uma questão interessante e pouco

estudada sobre a produção de Martins Pena é o fato de ele também ter atuado como tradutor,

sendo até reconhecido e criticado por isso no final de sua carreira.

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Um anônimo apoiador da administração do Teatro de São Pedro escreveu que todos

sabem “que o Sr. Penna vendia ao teatro as suas composições e traduções; e que além da paga

pecuniária, era considerado empregado da casa, e tinha por isso entrada franca nos

espetáculos” (O Mercantil, 8/7/1847; grifo do autor). Embora o artigo tenha sido elaborado

para ofender Martins Pena, então folhetinista do Jornal do Commercio e em vias de se tornar

parte da legação diplomática em Londres, esse é apenas um dos registros que comprovam a

participação de Martins Pena no campo da tradução de obras. Seria importante descobrir quais

obras ele traduziu. Certos críticos supõem que alguns dos dramas sejam traduções, mas apenas

especulam, ora identificando um trecho de Macbeth, ora associando situações dramáticas com

as de outras peças, ora se norteando apenas por uma desconfiança em relação ao léxico.

No entanto, ninguém definiu com amplitude quais seriam as verdadeiras traduções de

Martins Pena. Até meados de 1960, a única conhecida com certeza era a adaptação de Les

Trois dimanches, um vaudeville de Cogniard Frères que se tornou a comédia As casadas

solteiras, uma descoberta de Damasceno, divulgada por Raimundo Magalhães Júnior (1972,

p. 172). Este que também menciona, no mesmo capítulo, “Imitações e pastichos”, outras duas

traduções de Martins Pena: Um segredo de Estado e A barriga de meu tio, faltando-lhes tanto

o texto quanto o conhecimento da obra original. Na verdade, no mesmo capítulo, o biógrafo

menciona de forma não intencional um quarto caso de tradução, a comédia Uma mulher feia

(cf. nota, p. 180). Esta tem a particularidade de não ter sido trabalhada apenas por Martins

Pena, que recebeu o manuscrito da peça já traduzida no processo de censura. Ao dramaturgo

coube não apenas a aprovação censória, mas também a revisão, o que pode ser percebido

pelas emendas no manuscrito existente na Biblioteca Nacional e publicado pelo INL, em

1956, sob a alcunha de Drama sem título. Recentemente, a pesquisadora Bruna Grasiela da

Silva Rondinelli descobriu que Uma mulher feia é uma adaptação do vaudeville Une Femme

laide, de Jules de Prémaray.

Outra prova da atuação de Martins Pena no campo da tradução é o manuscrito

Caderno de frases vernáculas, que, na verdade, são diversas frases e expressões em português

provenientes de traduções do francês, como “o cavalo acudia às esporas”, algumas delas com

uma segunda expressão mais adequada à língua portuguesa. Uma análise mais detalhada desse

manuscrito facilmente chegaria à conclusão de que se trata de uma lista de apontamentos

acerca de traduções revisadas por Martins Pena. A pesquisa inicial de Damasceno informa que

o tipo de papel utilizado nesse manuscrito, “almaço da marca Gior Magnani, tamanho ofício,

em folhas duplas dobradas, foi usado até 1842” (Damasceno: 1956, p. 13), sendo que o

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caderno é, provavelmente, um dos mais antigos. Dessa forma, o manuscrito é uma prova de

que Martins Pena já estava envolvido com o ato de traduzir pelo menos desde sua estreia

como dramaturgo.

A questão principal é que, se no fim da vida Martins Pena era um tradutor

relativamente conhecido e, no início, um leitor fluente de língua francesa, é possível supor que

suas primeiras atividades estejam esquecidas entre as numerosas traduções da época,

disseminadas sobretudo nos periódicos. A lista de obras consultadas mostra que não era

comum que Martins Pena se demorasse muito tempo nos mesmos livros, sendo que a Revue

Britannique é a principal exceção. É muito provável que o jovem não estivesse apenas lendo a

revista, mas copiando alguns capítulos. Na biblioteca, os consulentes tinham papéis à

disposição, nos quais podiam fazer anotações e cópias dos livros consultados (cf. Rocha:

2011, p. 63), embora, segundo o artigo 30 do estatuto da biblioteca, as cópias fossem

supervisionadas pelos funcionários. Esse contato com os ajudantes da biblioteca pode ter

contribuído para que Martins Pena se tornasse conhecido no lugar, o que ficará patente nos

códices alguns anos depois. No entanto, no mês de abril de 1834, Damasceno localizou apenas

três registros do jovem estudante.

14/04 – Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras (2. v.)

24/04 – Revue Encyclopédique (2. v.)

29/04 – Mirabeau

O primeiro, Annaes das Sciencias, das Artes e das Letras, foi um periódico

desenvolvido por “uma sociedade de portugueses residentes em Paris” e, obviamente, reunia

diversos artigos, embora a predominância fosse científica e comercial, como é o caso de o

“Processo para corrigir o engorduramento dos vinhos”, matéria em destaque na edição de

1820. Já a Revue Encyclopédique foi um periódico mais abrangente, que se dividia por

grandes temas. Na edição do primeiro trimestre de 1833, as divisões eram: “Memórias ou

artigos e diversos”; “Boletim bibliográfico”; e “Novidades científicas e literárias”.4 O

“Boletim bibliográfico” é o que mais aproxima a revista do termo enciclopédico. Trata-se de

4 “Mémoires ou articles, et mélanges”; “Bulletin bibliographique”; “Nouvelles scientifiques et

littéraires”.

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uma lista de livros em que constam suas referências bibliográficas, seguidas por um

comentário ou descrição. Seria quase impossível deduzir a orientação de leitura de Martins

Pena na Revue Encyclopédique, diante da abrangência do periódico. O registro de “Mirabeau”,

na última segunda-feira de abril, também não é muito esclarecedor para a problemática acerca

da recepção de Martins Pena. Além de não estar claro qual teria sido o título consultado, a

leitura das obras filosóficas e políticas de Mirabeau se relacionaria com qualquer um dos

prováveis interesses do jovem.

Uma das ideias importantes no caminho de leituras de Martins Pena na Biblioteca

Nacional é a de que ele buscava informações da atualidade, normalmente em língua

estrangeira e ainda sem equivalência nos periódicos brasileiros. Não seria absurdo pensar que

ele estivesse se preparando para o processo de inclusão cultural que já se anunciava

claramente. Dentro de poucos anos, diversos artigos e histórias extraídos de periódicos

estrangeiros apareceriam traduzidos nas tipografias brasileiras. Por exemplo, uma pequena

biografia de Mirabeau se encontra na primeira edição de 1838 do Museo Universal, Jornal

das Famílias Brasileiras:

Antes de chegar ao reinado das leis, a França devia passar por todos os gêneros de

tirania. Quando começou a revolução, tinha ainda muitos jugos a sofrer, o da

eloquência, o do terror e o da glória. Mirabeau impôs-lhe o primeiro com a força

de um gigante. Favorecido por todas as qualidades próprias a realçar a grande

faculdade com que o dotara a natureza, fixou sobre si todas as vistas mal

começaram as primeiras cenas do drama nacional. Morreu muitos anos antes de

acabar o drama; mas a sua sombra ficou presente, para ofuscar todos aqueles que,

após ele, quiserem tentar o papel que o seu gênio tão energicamente criara (p.

386).

A citação acima abrange apenas o primeiro parágrafo do artigo, originalmente

publicado no Éphémérides Universelles, de 1834, e assinado por Édouard Monnais (1798-

1868). No entanto, a tradução brasileira teve como referência a versão do Album d’Éducation

Sociale, de 1836, que omite o autor, reduz o texto e modifica o formato, exatamente como

disposto na tradução brasileira. Não obstante, o Album d’Éducation Sociale tem uma proposta

muito parecida com a do Museo Universal. O jornal brasileiro, editado por Junius Villeneuve,

é normalmente lembrado pelo grande número de ilustrações – segundo o prospecto da

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primeira edição, ao final de um ano seriam “duzentas gravuras ao menos” (1837, p. 8), algo

realmente chamativo para a época – e pouco se sabe sobre a origem ou os tradutores dos

artigos que ali estão. Villeneuve, francês naturalizado brasileiro e também dono do Jornal do

Commercio, certamente não teria dificuldades para encontrar fontes e tradutores. Nesse

contexto, Martins Pena seria apenas um aprendiz, ou seja, suas qualificações talvez não

fossem suficientes para trabalhar na redação de Villeneuve.

Voltando para as leituras de Martins Pena filtradas na pesquisa de Damasceno, existe

uma ausência entre os meses de maio e agosto de 1834. Por sinal, seria a época condizente

com o primeiro semestre de estudos na Academia de Belas Artes, embora ainda não exista

uma comprovação factível sobre essa questão. De qualquer forma, quando retorna à

biblioteca, suas leituras se inclinam cada vez mais para as temáticas artísticas.

25/8 – The Edinburgh Review

9/9 – Voltaire (1. v.)

20/10 – Revue Britannique

24/10 – Galeria do mundo (2. v.)

29/10 – Journal des Connaissances Utiles

24/11 – Cook’s Voyage

Elementos de música

25/11 – Enciclopédia Metódica de Música

28/11 – Método de música

18/12 – Recueil de Planches

Journal des Connaissances Utiles

No fim de agosto, Martins Pena parece retomar o desejo de se informar consultando

The Edinburgh Review, que se intitula como “jornal crítico” e oferece tanto notícias políticas

quanto literárias e dramáticas. Uma das notícias que podem ter alcançado Martins Pena dizia

respeito à publicação das cartas de Horace Walpole, conde de Oxford, que se tornou

conhecido por seus romances góticos. Na crítica, dizia-se que o conde “não pôde negar que

Voltaire e Rousseau eram homens inteligentes; mas aproveitou todas as chances para

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depreciá-los”.5 Talvez não por acaso, em setembro, o único registro de Martins Pena na

Biblioteca Nacional e Pública foi a leitura de Voltaire, mostrando que, aos poucos, o jovem

estudante buscava maneiras de aumentar seus conhecimentos artísticos. É preciso ter em

mente que os registros dão apenas acesso parcial ao universo de leitura de Martins Pena, pois

havia outros acervos – particulares e comunitários – em que também poderia ser bem-vindo.

Quatro dias depois de uma nova leitura da Revue Britannique, ele consulta mapas da

Galerie agréable du monde, do holandês Peter van der Aa, obra que, por sinal, Martins Pena

havia consultado um ano antes e à mesma época. De certa maneira, estava refazendo uma

atividade. Supondo que a indicação do registro esteja correta, foram apenas dois volumes,

provavelmente os dois primeiros, referentes a Portugal e Espanha. Os exemplares em questão

se encontram na Seção de Iconografia da Biblioteca Nacional, provenientes do acervo da Real

Bibliotheca. O registro seguinte, o Journal des Connaissances Utiles, é um periódico do

mesmo estilo da Revue Britannique, porém sem a temática inglesa. Nele há artigos sobre

personalidades francesas, notícias comerciais, informações acerca de máquinas rurais e

industriais, artigos médicos sobre higiene etc.

Depois de uma ausência de quase um mês, em 24 de novembro Martins Pena retorna à

biblioteca para a leitura de Viagem do capitão Cook e Elementos de música. A primeira pode

ser relacionada ao interesse pelos livros de viagem. A segunda informação, o interesse pela

teoria musical, era bem conhecida pela fortuna teórica e foi mencionado desde a biografia de

Veiga, que diz que Martins Pena “cultivou a música e o canto, tendo apreciável voz de tenor,

aprendendo também as regras de contraponto” (1877, p. 378), e repetida em estudos

posteriores, como os de Sílvio Romero, Raimundo Magalhães Júnior e, especialmente, a tese

de Vilma Arêas, que aprofundou o fato de Martins Pena também ter sido crítico de óperas.

Todavia, agora há a comprovação de que Martins Pena estudava música pelo menos desde

novembro de 1834, segundo as consultas dos dias 24, 25 e 28.

Reforçando essa descoberta, o último registro do ano, a 12 de dezembro, referente à

consulta de Recueil de Planches, também pode estar relacionado a seus estudos de teoria

musical. Embora não seja possível ter certeza de qual das Recueil de Planches foi consultada,

pois se trata de uma profícua enciclopédia do século XVIII com diversos tomos e assuntos, a

5 “He could not deny that Voltaire and Rousseau were clever men; but he took every oppor-

tunity of depreciating them” (1834, p. 236).

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mais provável seria a Recueil de Planches sur les Sciences, les Arts Liberaux et Les Arts

Méchaniques, que mostra, nas estampas do suplemento, diversas páginas do assunto.

Os registros encontrados pela pesquisa de Darcy Damasceno demostram que, no ano

de 1835, Martins Pena deu prosseguimento aos interesses já descritos. A frequência teria

diminuído; no entanto, há informações relevantes para a formação dramática e jornalística.

1835

9/1 – Westminter Review

Revue Britannique

12/1 – Dicionário de Música de Rousseau

15/1 – Biblioteca popular

Voyage pitoresque de Naples et de Sicile (2. v.)

27 e 28/3 – Revue Britannique

9/4 – Edinburgh Review

Journal de la Societé des Sciences Physiques et Chimiques (3. v.)

8/8 – Œuvres de Molière (8. v.) [ed. de 1758, provavelmente]

As revistas estrangeiras são as primeiras consultas do ano, o que mostra certa

familiaridade do futuro dramaturgo com esse tipo de leitura. Sabe-se que traduções de artigos

e textos literários de revistas francesas e inglesas são encontradas com frequência em

periódicos editados nesse período. Essa era uma prática comum na Europa e, certamente,

serviu de modelo às publicações brasileiras. Algumas vezes, principalmente em pequenos

jornais, os artigos vêm com citação da fonte ao final. Outras vezes, como no Museo Universal,

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as colagens são sumariamente apropriadas, sem qualquer citação de fonte, o que até hoje

dificulta a averiguação de sua autoria. Um dos estudos que tratam dessa questão é a tese de

Maria Eulália Ramicelli (2004), que analisa comparativamente os periódicos da primeira

metade do século XIX (especialmente a partir de 1830) e os textos da Revue Britannique,

passando pelos periódicos ingleses que serviram de fonte à revista francesa, mapeando o

caminho das fontes originais às traduções brasileiras.

As questões de autoria da longa lista de traduções elencadas na tese são dignas de um

grande estudo à parte, em que maiores esforços seriam necessários para elucidá-las. No

entanto, se não é possível cogitar que Martins Pena tenha traduzido Esboços sicilianos – cuja

fonte é a tradução da Revue Britannique de agosto e outubro de 1834 sob o título Esquisses

siciliennes, enquanto que a tradução em português está publicada no Gabinete de Leitura em

quatro números do início de 1838 (cf. Ramicelli: 2004, pp. 236-7) –, é improvável que ele não

os tenha lido, visto que não apenas consultou a Revue Britannique do período, como também

era um dos leitores e colaboradores do Gabinete de Leitura. Além disso, há curiosas

semelhanças entre algumas situações de Esboços sicilianos e Fernando ou O cinto acusador,

primeiro drama de Martins Pena.

Em Esboços sicilianos são narradas pequenas histórias, “anedotas [...] burlescas,

estranhas, pitorescas, inverossímeis, profundamente trágicas” (1838, p. 246). A primeira delas

é sobre o malogrado casamento entre Constanza, a herdeira do conde de La Bruca, e Albano,

segundo filho do conde Rizzari, que, segundo os costumes da região, deveria ser enviado ao

sacerdócio. Albano obedeceu às tradições e foi a Roma, mas, durante o seminário, seu irmão

mais velho faleceu, permitindo a Albano retornar e se casar com Constanza. Porém, o

casamento não será consumado devido a intervenções misteriosas.

Na manhã do dia das núpcias, tudo era alegria e esplendor na capela de La Bruca;

uma multidão que parecia partilhar a felicidade dos esposos enchia a capela. No

momento em que o padre punha no dedo da noiva o anel simbólico, ouviu-se

retumbar dum dos cantos do edifício uma grande gargalhada de riso – riso de

insulto. [...]

Às onze horas, quando as danças estavam mais animadas, duas personagens

mascaradas penetraram no castelo. O uso das máscaras é popular e geral na Sicília

da mesma forma que o é em Veneza, e não é extraordinário ver-se pessoas assim

disfarçadas misturarem-se com os que dançam com o rosto descoberto. [...]

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Traziam em seus braços um terceiro dançarino ou ao menos um boneco que se

parecia com um homem, o qual mascarado, como eles, estava vestido de preto.

Lia-se no peito deste boneco a seguinte palavra bordada com fio de prata:

Tristizia. O boneco representava a Tristeza ou a Melancolia; os dois dançarinos

puseram-no sobre uma otomana, e tributaram-lhe honras e depois enterraram-no

(pp. 246-7).

A atenção passa a se concentrar nas personagens mascaradas, que não exibem a

identidade a ninguém, nem mesmo ao dono da casa, como era costumeiro. O desenlace é

trágico: os mascarados levam o noivo a uma câmara, enquanto todos supõem que a razão

disso seja tão somente a revelação de suas identidades ao dono da casa, porém retornam sem

ele, ou melhor, retornam com o corpo de Albano com as vestes do boneco que traziam. Os

convidados nada percebem até que os assassinos anunciam o feito à noiva. Esta cai

“desmaiada nos braços das pessoas que a rodeavam e, enquanto a socorriam, os dois

mascarados desapareceram”.

Em O cinto acusador, em contexto diferente do trabalhado em Esboços sicilianos, o

Capitão D’Harville e seu companheiro Valentim invadem o início da cerimônia de casamento

de Fernando e Sofia (esta que supõe que D’Harville, a quem ama, tenha sido morto em

combate, uma história inventada por Fernando para conseguir se casar com ela). Os dois

invasores, embora heróis da história, também vão mascarados. A diferença é D’Harville

revelar a identidade a todos, iniciando a confusão em meio à qual propiciamente conseguirá

fugir.

MARQUÊS – Fernando, dá o braço a Sofia e encaminhemos para a igreja.

FERNANDO – Eu sou o mais feliz dos entes!

SOFIA, à parte – Desgraçada de mim! (Dá o braço a Fernando).

MARQUÊS – Vamos, vamos, não nos demoremos mais.

Enquanto assim falam, D’Harville, sem ser visto, se aproxima de modo que fique

em frente de Sofia e Fernando quando eles voltarem.

D’HARVILLE, deixando cair o capote e apresentando-se em uniforme de oficial

francês – Sofia, eis-me aqui!

SOFIA – Ah! (Cai desmaiada).

FERNANDO, MARQUÊS, JÚLIA e OS OUTROS – D’Harville!

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Quando abaixa o pano, vê-se D’Harville, acompanhado de Valentim, saindo da

cena.

(MP: 1956b, p. 20)

Na verdade, apesar da semelhança entre as situações dramáticas dos textos, seria mais

sensato apenas considerar que eles compartilham signos de um imaginário estético voltado a

ambientes aristocráticos e sombrios, ligado a autores como Horace Walpole (mencionado

anteriormente) e Walter Scott, embora este tenha criticado aquele. Certamente, não seria a

primeira história em que personagens mascarados invadem o início da festa de casamento com

o intuito de interrompê-la, da mesma forma que Constanza não é a primeira a desmaiar frente

à tragédia que se interpõe ao seu casamento. Trata-se, principalmente, de situações dramáticas

comuns entre autores da época.

A problemática que gira em torno da produção de Fernando ou O cinto acusador

ainda não está resolvida. Darcy Damasceno considera, de maneira indireta, que o drama seja

original, principalmente ao ter mencionado que é “a mais fraca das composições de Pena, no

gênero” (1956a, p. 9), embora, na ocasião da primeira montagem da peça, em 1969, tenha

escrito um ensaio ponderando que, “pela exageração de que é dotado, O cinto acusador é

talvez o melhor drama de Martins Pena” (1969a, p. 4). No exemplar da coleção particular de

Damasceno, existem diversas anotações na bibliografia das peças, sendo que a maioria são

correções das datas de publicação e encenação, existindo também outras, como supressão de

trechos, acréscimos e questionamentos. No que diz respeito ao primeiro drama, há duas

anotações interessantes. A primeira é um questionamento quanto ao ano de produção de

Fernando ou O cinto acusador; e a segunda é um acréscimo: “Na folha de rosto do segundo

ato, a palavra acusador está sobreposta a mysterioso” (grifos do autor), informação que nunca

foi oficialmente publicada.

Para Décio de Almeida Prado, a presença de “vários galicismos sugerem tradução do

francês” (1996, p. 59), uma hipótese reafirmada por outros críticos (por exemplo, Barbara

Heliodora), embora as fontes da suposta tradução nunca tenham sido encontradas. A princípio,

diversos problemas no entrecho dos manuscritos e o fato de a peça não ter sido

completamente finalizada sugerem que, ao contrário, a obra seja mesmo original. Por outro

lado, existem marcas realmente curiosas. Na primeira cena do drama, o nome Luigi aparece

no lugar de Gregório, o que Damasceno considera ser “lapso do autor” (1956b, p. 47), mas

que pode ser um lapso referente tanto à decisão dos nomes dos personagens quanto a um

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processo de tradução. Na leitura de Magalhães Júnior (1972), o drama é considerado original,

sobretudo porque Magalhães analisa a história sob a perspectiva de ter sido criada com “o que

há de mais absurdo e inverossímil, só perdoável à arrebatada imaginação de um adolescente,

em meio aos desregramentos do romantismo” (p. 44), resultando em diversas críticas, muitas

delas acertadas. A mais famosa, citada em estudos posteriores, incluindo os de Décio de

Almeida Prado e Barbara Heliodora, é sobre a cena emblemática em que D’Harville encontra

o esqueleto de seu pai com o cinto acusador.

Ao procurar uma saída, ou um ponto vulnerável na masmorra em que fora

encerrado, o Capitão D’Harville encontra numa das muralhas uma espécie de

porta, de onde pendem algumas correntes. Puxando as correntes, ele arranca, com

estas, uma tapagem, ou tabique. E exclama: “Que ar corrompido sai desta

cavidade! Parecem exalações de uma sepultura...”. Aproxima-se e acaba de

arrancar as tábuas. Note-se agora o pitoresco desta rubrica, em que o autor novato

descreve a estranha descoberta feita pelo prisioneiro: “Com a queda da tábua, ver-

se-á uma cavidade e um esqueleto sentado em uma pedra”. O autor acrescenta que

“o Capitão D’Harville recua, horrorizado”. E não seria para menos. Quem não se

espantaria ao encontrar um esqueleto sentado em cima de uma pedra? (1972, p.

47; grifo do autor).

Se a crítica pareceu pertinente aos estudos posteriores e, vista de forma isolada, é

bastante compreensível, por outro lado não leva muito em consideração o que povoava o

imaginário dos leitores fluminenses da época. Embora tenha percebido com exatidão que se

trata de um quadro pitoresco, deixa de lado a reflexão de que o pitoresco também era parte da

representação do real, nos termos mais estritos da expressão; tanto que, de certa forma, esse

entendimento ainda persiste, por exemplo, nas representações de Debret. O mundo está

repleto de imagens pouco prováveis, assim como o olhar estrangeiro é mais hábil para notar as

diferenças. Não obstante, a produção editorial do início do século XIX estava amplamente

abastecida com gravuras e livros de viagens. Por meio dos códices de consulta, deu-se a

conhecer que Martins Pena tinha interesse por esse gênero de leitura, constando três livros

bem específicos: Viagem do capitão Cook (em 24/11/1834), Voyage pitoresque de Naples et

de Sicile (em 15/1/1835) e Voyage autour du monde (em 1837). Dentre eles, Voyage

pitoresque de Naples et de Sicile, embora seja a viagem de menor extensão, é a mais

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representativa para o ambiente de Fernando ou O cinto acusador, que se passa em terras

napolitanas. Na obra de Jean-Claude Richard de Saint-Non, há gravuras de castelos,

catacumbas, obras de arte, paisagens, e o retrato de uma caverna com um esqueleto sentado

numa pedra.

Na gravura, além do esqueleto, há um homem recuando, o que acresce a sugestão de

que Martins Pena tenha se inspirado nessa imagem para compor a cena-chave de seu primeiro

drama. Como é possível averiguar a partir de consultas anteriores, ele se interessava bastante

por gravuras e estampas; portanto, as semelhanças entre a cena e a gravura dificilmente seriam

coincidências. De alguma forma, a viagem de Saint-Non serviu de subsídio para a Nápoles

que Martins Pena imaginou.

Foram poucas as consultas registradas em 1835; no entanto, elas se mostram como as

revelações mais consistentes sobre o que Martins Pena teria feito nesse período. Além de ser

leitor regular da Revue Britannique, buscava a leitura de outros periódicos, como o

Westminter ou o Edinburgh Review, o que indica habilidade de leitura em inglês e interesse

pelas produções que se referissem à Inglaterra. Quanto ao conhecimento da língua inglesa, é

possível afirmar que ele a estudava pelo menos desde 1832, pois era uma das disciplinas

oferecidas na Aula do Comércio.

O que é facilmente observável nas consultas de 1835 é o aprofundamento nas áreas

artísticas às quais Martins Pena viria a se ligar. A futura carreira de comediógrafo está

representada pela consulta às comédias de Molière, discutida anteriormente. A segunda área, a

música, também possui apenas um registro em todo o ano e, na verdade, parece demarcar o

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final da sequência de estudos do ano anterior. Desse ponto de vista, a consulta ao Dicionário

de Música significaria o esclarecimento das dúvidas acerca de conhecimentos musicais. A

Biblioteca Nacional estava instalada no Hospital da Ordem Terceira do Carmo, ao lado da

Capela Imperial, que, embora estivesse passando por um de seus piores momentos em termos

de apoio à atividade musical, ainda não tinha perdido a fama instaurada pelos compositores

Padre José Maurício e Marcos Portugal, que faleceram em 1830. Com efeito, no período

regencial quase todos os músicos da Capela Imperial foram dispensados, sendo que alguns

deles tiveram de sobreviver dando aulas particulares. Coincidentemente, o professor de

música Rafael Coelho Machado teria se instalado no Rio de Janeiro em 1835. Enfim, seja pelo

contato com a Capela Imperial, seja com seus músicos, ou ainda com professores não ligados

a ela, Martins Pena provavelmente estaria fazendo lições de música nesse período; uma

problemática que somente estudos futuros poderiam ajudar a esclarecer.

Embora a frequentação de Martins Pena à Academia de Belas Artes não tenha sido

comprovada, é possível elucidar um pouco as mudanças da instituição no período em questão

e, desse modo, perceber que o acesso não estava limitado aos alunos formalmente

matriculados. A academia passava por um momento de pouca frequência (de alunos formais)

durante os anos em que Martins Pena poderia ter estudado regularmente, como pode ser

comprovado nos cadernos de matrículas e pelo seguinte artigo no jornal O Chronista, de 4 de

novembro de 1837:

A Academia de Belas Artes, que parecia ter desaparecido com a ausência de M.

Debret, renasce agora com a chegada do nosso compatriota, o snr. Araújo Porto-

Alegre. A mocidade, que durante esses dias de intervalo de 1832 a 37, havia

desamparado os cursos, e esquecido a porta de entrada, que conduz ao vestíbulo

da glória, de novo hoje se precipita, cheia de entusiasmo, e de esperanças, nessas

salas, que solitárias jaziam, e onde ecoava somente a voz de um professor

lecionando a dois discípulos.

Se alguma coisa devemos ao passado governo, se alguma coisa devemos ao snr.

Feijó, é a nomeação do snr. Araújo Porto-Alegre para professor da Academia de

Belas Artes.

À roda dele apareceram os estudantes: a sua voz eles trilharam a vereda das artes

com riso nos lábios e júbilo no coração; a observação de seus trabalhos correm os

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estrangeiros, e os nacionais: a Academia é frequentada todos os dias por curiosos,

e amadores.

[...]

Artista completo, o snr. Araújo sabe reunir nas suas composições o belo absoluto e

o relativo, ligar entre si a filosofia, a poesia e a pintura; de tal maneira que os seus

quadros, brilhando com um colorido, que parece média inspiração entre o belo

escuro de Correggio, e o celeste toque de Ticiano, e a maneira larga e magistral de

Raphael, agradam tanto aos conhecedores e artistas como ao homem do povo, que

vêm somente com o intuito de satisfazer seus olhos.

[...]

Resta-nos rogar ao snr. Araújo que continue a elevar troféus de glória à sua pátria,

e ao seu nome, mostrando destarte ao mundo que no Brasil também existem

artistas que possam lutar com os estrangeiros.

O artigo, por demais elogiativo a Araújo Porto-Alegre, faz questão de atribuir ao novo

professor o aumento das matrículas a partir de 1837, o que é uma possibilidade, visto o

agrupamento de estudantes nas aulas de desenho do referido ano. Contudo, a baixa frequência

deve estar mais associada a todo o panorama de baixo incentivo às artes do período regencial

(por exemplo, os salários estariam congelados há mais de dez anos), o que certamente

desestimulava professores, funcionários e, por conseguinte, alunos.

Usando novamente a biografia de Veiga – o texto que originou toda essa história –,

Martins Pena teria frequentado, “durante algum tempo, a Academia de Belas Artes, onde

adquiriu conhecimentos de arquitetura estatuária e pintura, os quais distintamente revelou [...]

nos escritos que publicou a respeito das exposições daquela Academia e sobre a cenografia”

(1877, p. 378). Desse modo, para dar maior validade à biografia, seria necessário encontrar

não somente registros que comprovassem a presença de Martins Pena na instituição de ensino,

mas também os artigos que teria escrito sobre ela. Entre os mais interessantes encontrados

nesta pesquisa, sobressai-se o do jornal O Chronista de 13 de março de 1838, ou seja, no

exato dia em que estreou Antônio José, ou O poeta e a Inquisição.

O discurso de Montalivet, presidindo a sessão pública que tem lugar anualmente

no conservatório, para a distribuição dos prêmios, patenteia o subido interesse que

o governo francês toma pelo adiantamento e progresso das belas artes,

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principalmente da música e da comédia, dessas duas inseparáveis companheiras da

civilização que entretêm a humanidade com as reminescências dos grandes feitos,

que honram, exaltam e imortalizam quanto há de mais nobre no coração, de mais

elevado na inteligência.

Por mais brilhantes e majestosos que sejam os fatos da natureza, sempre nelas se

denota um lado fraco, um vício que imprime-lhes na fronte o cunho da

imperfeição. Atentai nos mais gloriosos feitos da individualidade humana, e

sempre vós achareis, se os encarardes, sob todos os pontos de vista um senão que

os afeia; o caráter o mais heroico tem um defeito; a cabeça mais bem organizada

caduca neste ou naquele ponto. Compete à poesia tomada na expressão a mais

genérica, extremar o bom do mau, adornar com as galas da fantasia aquilo em que

vislumbra alguma centelha do gênio, elevá-lo à categoria do belo. A música por

ex. presta um encanto admirável a tudo quanto lhe serve de assunto. Parece que os

heróis observados através da magia dos sons ganham em vulto e consideração, e

colocam-se em uma esfera superior a que são guiados pelo gênio da harmonia. A

comédia invade as divisas do tempo e do espaço, e faz-nos viver em todas as

épocas e em todos os lugares, ora representando fielmente ao vivo as façanhas dos

heróis, ou corrigindo os costumes que menos se amoldam ao progresso da

civilização.

[...]

Não tendo o governo ingerência alguma nos teatros, entregando-os ao espírito

especulativo de seus proprietários, acontece que de um dia para outro podem ser

despedidos todos os artistas, não contando em consequência com um futuro certo

que os prive da indigência; sem ordenados fixos não se podem entregar

inteiramente à sua profissão em um país em que são tão fáceis os meios de

subsistência. Daí resulta que a nossa cena é um composto disforme de grandes

talentos, que são arrastados por devoção à arte, de mediocridades que a eles se

reúnem e de incapacidades que para nada servem. Assisti a uma representação em

qualquer dos nossos teatros, e ouvireis depois de uma ação bem desempenhada

representar um desenxabido sem talento nem arte, destruindo-se destarte todo o

interesse da cena, tornando-se burlesco e faceto aquilo que devia ser sério e grave.

Assim vão indo nossos teatros.

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Enquanto à música, tem ela sido sempre entregue aos seus destinos; com pesar o

dizemos, na capital do Império não existe uma só cadeira pública desta arte

liberal; ainda há pouco foi rejeitada, cremos que no Senado, uma resolução que

tinha por fim sanar tamanho inconveniente. No tempo do governo colonial aos

mestres de capela incumbia ensinar aqueles que se dispunham ao culto dessa arte

nobre, que, como diz Montalivet, é uma língua universal entendida por todos os

corações e por todas as inteligências. Então o gênio de José Maurício presidia a

esse ensino, dirigia uma escola que produziu todos esses insignes artistas que hoje

merecem tantas simpatias do povo fluminense!

Ninguém mais do que nós reconhece os multiplicados embaraços de mais alta

esfera, com que luta de contínuo o governo atual, por isso não nos animamos a

censurá-lo nesta parte, esperando que em tempos mais bonançosos ele se

convença – que não é somente pelo número das vítimas, pelo poder das armas ou

pela sabedoria das instituições que uma nação tem direito à admiração das outras,

é também por seus pacíficos triunfos no domínio das artes e das ciências.

O artigo representa um momento importante para a arte brasileira e, mesmo que não

tenha sido escrito por Martins Pena, tem todos os ares de ser um artigo escrito para ele. Se é

interessantemente suspeito o fato de o artigo comentar sobre uma exposição da Academia de

Belas Artes e valorizar e destacar a música e a comédia (que não eram oficialmente ensinadas

ali), o fato de ser o dia da representação de O poeta e a Inquisição (considerada a primeira

peça do Romantismo brasileiro) é bastante significativo. Em primeiro lugar, é muito

improvável que os amigos ou admiradores de Gonçalves de Magalhães tenham redigido o

artigo, que não o menciona e ainda valoriza a comédia, indo contra o estilo da peça que

estrearia àquela noite. Além disso, a opinião do artigo diverge das posições da revista

Nitheroy, em que a comédia é mencionada apenas uma vez e de passagem, em “Estudos sobre

a literatura”, de João Manuel Pereira da Silva, durante a abordagem da evolução da arte em

Roma.

A musa trágica nunca foi conhecida em Roma. [...] Nas repúblicas altivas, e nas

monarquias absolutas, não é permitido que se honre, ou se avilte, o que de alguma

sorte constitui sua grandeza pública. Ora o Teatro é um tribunal terrível, onde os

homens, cujos nomes traçam a história com caracteres imortais, devem aparecer

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com suas virtudes, e crimes, reveses, e felicidades, para receber a glória ou o

opróbrio; portanto o poeta não pode representar diante do povo fatos de sua

história, que só com a lembrança de ter sido seus, não quer que se lhe toque, ou

diante de Reis, os grandes crimes políticos, que não podiam ser cometidos senão

pela vontade ou influência dos antepassados monarcas. A comédia, cuja missão é

de zombar, e de criticar para moralizar, não foi mais feliz do que o drama, foi-lhe

mister recorrer a vestes e nomes de nações estrangeiras, para poder pintar o

ridículo dos Romanos (1836, v. 1, pp. 227-8).

Com efeito, as ideias dos redatores da revista Nitheroy estavam relacionadas com as

poéticas da Antiguidade Clássica, enquanto o artigo de 13 de março de 1838 se relaciona com

a proposta de Victor Hugo no prefácio de Cromwell. João Manuel Pereira da Silva redigiria

diversos contos e novelas nos anos seguintes, inclusive em O Chronista, mas seu estilo é de

uma constante seriedade, evitando qualquer margem de riso (uma notável exceção seria o

conto “O banho russo”). De qualquer modo, enquanto o Teatro Constitucional Fluminense se

preparava para uma noite emblemática para a cena brasileira, que repercutiria em numerosos

elogios para Gonçalves de Magalhães e João Caetano, um pequeno artigo sobre a Academia

de Belas Artes incentivava a criação de comédias e é certo que tenha sido lido por Martins

Pena (sendo que, inclusive, talvez tenha sido escrito por ele), que estrearia sua primeira peça

sete meses depois.

Ao final de 1835, todavia, os destinos de Martins Pena, assim como os da condução

política do país, ainda não estavam consolidados, embora já estivessem direcionados à

emancipação. Enquanto se elegia o Padre Diogo Feijó para a regência da nação (que logo

enfrentaria diversas revoltas), os registros de Martins Pena na Biblioteca Nacional se

tornariam ainda mais esporádicos. Seria coincidência que o último dos registros do ano seja de

quatro dias antes do início do mandato do Padre Feijó? Se assim fosse, os registros deveriam

retornar com a mesma regularidade em algum momento, o que não aconteceu. Nos dois anos

anteriores, Martins Pena teria frequentado a biblioteca nos últimos meses para a consulta de

mapas; isso não aconteceria em 1835, mas teria lugar no ano seguinte. Outras questões menos

evidentes também podem ter influenciado a mudança. Por exemplo, a rigidez da política de

registros poderia estar menor para com cidadãos conhecidos, assim como a realidade e o

cotidiano de Martins Pena podem ter sofrido modificações de outra ordem. Ambas as

hipóteses têm respaldo no próprio livro de consultas.

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Segundo as pesquisas de Darcy Damasceno, entre setembro de 1835 e novembro do

ano seguinte existem apenas três registros que poderiam se referir a Martins Pena. Em janeiro

de 1836, a presença na exposição do Dr. Gall; em julho, o Dicionário Chimico; e em

novembro, a Galerie agréable du monde (2. v.). Damasceno, por sinal, estava cético a respeito

da presença do dramaturgo na exposição. Em suas anotações, acrescentou um ponto de

interrogação ao registro, seguido pelo comentário: “Ausente de set. 35 a jan. 36 / e de jan. a

jul. 36”. Independentemente da questão dessa presença específica (que, por sinal, já não

estaria atrelada às leituras de Martins Pena), o fato é que o futuro comediógrafo não utilizava

a Biblioteca Nacional da mesma forma. Os dois registros de consulta ao acervo estão mais

relacionados a assuntos comerciais do que à literatura. Se assim for, Martins Pena teria

alguma atribuição nos negócios da família, capitaneados pelo avô e pelo tio. Contudo, após o

falecimento do avô, uma série de acontecimentos mudariam os rumos dos negócios e das

relações familiares.

1.2 Conflitos de irmãos órfãos

Pelo que se pôde observar no livro de consultas, Martins Pena retornou à Biblioteca

Nacional e Pública em dezembro de 1836 para consultar o Correio Official, repetindo a

consulta constantemente até abril do ano seguinte, um comportamento e um tipo de leitura

que diferem de todas as consultas anteriores e, logicamente, estão relacionados a questões

jurídicas. Para compreender melhor o que Martins Pena procurava é preciso retroceder um

pouco na leitura do Correio Official. Em 1º de dezembro de 1835, anunciava-se o expediente

do Ministério do Império de 21 de novembro do mesmo ano, no qual está a portaria “para que

nas Fortalezas do Registro desse Porto se não ponha embaraço algum aos portugueses José

Antônio da Costa Guimarães, e a Manoel da Rocha Porto, que desta Corte fazem viagem para

Luanda” (p. 1). Trata-se da última viagem do avô de Martins Pena, pois, em 13 de janeiro de

1836, enviava-se ao Conselheiro Procurador da Coroa o requerimento do tio (que tem o

mesmo nome do avô), pedindo que “nomeie Juiz de Órfãos para julgar as causas de inventário

em que contende com o Doutor Joaquim Francisco Viana, por se ter dado de suspeito o actual

juiz” (21/1/1836, p. 2). Viana era deputado geral, cunhado de Martins Pena e, certamente,

defendia os bens de Carolina Pena. Em 5 de março de 1836, o Ministério da Justiça reenviava

o pedido do tio para se nomear outro juiz de órfãos “para a causa do inventário do seu falecido

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pai; visto serem suspeitos os que o deviam ser” (18/3/1836, p. 1). Desse modo, percebe-se que

houve complicações com a partilha dos bens.

Com efeito, seriam apenas os primeiros sinais desse problema, que remete a outro,

ocorrido dez anos antes: o da morte e herança da mãe de Martins Pena, Francisca de Paula

Julieta Pena. Pouco se conhecia a respeito do segundo casamento de Francisca de Paula, um

episódio sem muitas informações nas biografias de Martins Pena. Por meio de fontes

indiretas, soube-se que ela casou em 1º de agosto de 1824 com o tenente-coronel Antônio

Maria da Silva Torres, na casa do Conde da Palma, que também foi padrinho do casamento.

Apesar de parecer um momento pomposo, tal arranjo de casamento se deu numa festa

conjugada às comemorações da eleição do conde ao Senado, cuja apuração ocorrera no

mesmo dia. Motivos para celebrar não faltavam: o conde foi eleito com 123 votos, empatado

em último lugar com Monsenhor Vidigal.

A nova feição da família de Martins Pena, no entanto, durou ainda menos do que a

antiga. Julieta faleceu no ano seguinte, devido a complicações no parto de Joana, única filha

do casal. É nesse ponto que se inicia uma disputa pelo espólio. Francisca de Paula herdara os

bens do primeiro cônjuge e era tutora dos filhos, Carolina e Luiz. Após sua morte, a

administração dos bens passou ao avô, que também se tornou tutor dos primeiros netos, mas,

ao que parece, repudiou a caçula Joana, esta tutorada pelo pai. Seja como for, Antônio Maria

tentou obter parte da herança e, após ter sido mal-sucedido, publicou uma reclamação no

jornal Império do Brasil: Diário Fluminense:

O tenente-coronel Antônio Maria da Silva Torres, Comandante do Corpo da

Polícia de Pernambuco, para onde de próximo está a partir, o qual contende com

seu sogro, José Antônio da Costa Guimarães pelo Juízo dos Órfãos desta Corte,

para que este faça inventário do seu casal, que deveria ter feito por morte de sua

mulher, sogra do anunciante, para dar à mulher deste e pelo competente Juízo sua

partilha, o que tudo tem sido por ele até hoje omitido com manifesta defraudação;

e bem assim pela Correição do Cível, aonde tem igualmente proposto uma ação de

espólio por ter sido ele anunciante esbulhado pelo dito seu sogro de todos os bens

de seu casal, bem como escravos, móveis, alfaias, e até dos próprios vestidos,

trajes, roupas, e joias de uso, e ornato de sua falecida mulher; o que tudo é assaz

constante, notório, e público; anuncia e previne a todas as pessoas a que possa vir

a interessar este aviso, que constando-lhe que o mencionado seu sogro, ou em seu

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nome um indivíduo de sua casa, que se apelida seu filho, pretende vender, e

alienar vários, e diversos bens que são do casal dele anunciante, e de que

escandalosamente foi espoliado, ou outros quaisquer que estão por indiviso na

mão do mesmo seu sogro; que ele protesta no caso que haja alguns compradores a

tais bens, reivindicá-los de qualquer mão, em que se venham encontrar: e para que

não se possa em tempo algum alegar ignorância, e boa fé, assim o faz público por

este Diário Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1825.

Tal declaração obviamente provocaria a revolta do avô de Martins Pena. Além de

expô-lo aos jornais e atacá-lo pessoalmente, escolhe um momento delicadíssimo para fazê-lo.

Abalado com as mortes da mulher e da filha, José Antônio não admitiria a pretensão de

Antônio Maria de fazer parte do inventário. Dois dias depois, José Antônio deu a primeira

resposta: “Snr. Redator. Faça-me o favor de dizer pelo seu Diário, ao Snr. Tenente-coronel

Antônio Maria da Silva Torres, que eu e o público ficamos inteirados do seu anúncio”. Essa

resposta foi feita para ser a definitiva, silenciando a ofensa com decoro. No entanto, Antônio

Maria continuou o ataque, fazendo divulgarem-se mais folhinhas de teor igual ao da primeira.

Foi somente no ano seguinte que José Antônio publicou uma nota mais detalhada sobre o caso

em forma de réplica às ofensas do ex-genro:

José Antônio da Costa Guimarães, tendo lido um libelo famoso, que contra ele

imprimiu em Pernambuco o Tenente-coronel Antônio Maria da Silva Torres,

julgou que o desprezo era a melhor resposta que o anunciante podia dar a tão

imprudentes arguições, bem certo que o público judicioso conhece o caráter do

anunciante, comprovado pelo procedimento regular de 18 anos que habita nesta

cidade; mas vendo que o desvario do dito tenente-coronel continua a precipitá-lo,

espalhando por esta Corte os mesmos folhetos para se ir insinuando com astúcia

farisaica; e captar a compaixão das pessoas, a quem com fingidas lágrimas conta

uma novela histórica de seus fingidos desastres e dolorosas cenas por que tem

passado. Declara que bem a seu prazer vai citar o dito tenente-coronel para um

libelo de injúria e que o mesmo vão fazer as pessoas a quem ele pretendeu

macular com a imputação de crimes, que só ele era capaz de cometer, e com efeito

cometeu. Então esse louco verá desmascarada, e provada a sua devassa, e

criminosa vida nas diferentes terras em que tem vivido, e conhecerá que os meios

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que procura para empolgar o que é do anunciante, longe de ser título de aquisição,

serão os da sua ruína, e de dar a conhecer ao respeitável público o que o

anunciante desejaria esconder no mesmo jazigo em que descansa sua sacrificada

filha (DRJ, 27/7/1826, p. 2).

As nuances dessa contenda são de uma inimizade explícita e é evidente que José

Antônio havia abominado as ações de seu ex-genro e encerrado as relações com ele de forma

definitiva e litigiosa. À época, Martins Pena tinha apenas dez anos e passaria a ver a irmã mais

velha, Carolina Pena, como o principal elo da primeira família. Eles passaram por sistemas de

estudo diferentes (embora seja possível que tenham compartilhado aulas particulares), mas a

ligação afetiva entre eles perdurou até a morte. De fato, inclusive após o falecimento de

Martins Pena, quando Carolina se tornou tutora da suposta filha única do dramaturgo.

Em meados de 1836, contudo, os dois irmãos não estavam de posse das heranças do

pai ou do avô, pois tudo estaria sendo inventariado pelo tio e disputado por ele, por credores

do avô, por outros familiares e, sobretudo, por Antônio Maria, novamente requerendo uma

parte para sua filha Joana, a segunda irmã de Martins Pena. Nessa ocasião, até Martins Pena

age oficialmente, tendo seu nome impresso pela primeira vez no Correio Official em 22 de

julho, referindo-se à leitura de seu requerimento na sessão de 22 de abril da Câmara

Municipal:

Leu-se o requerimento de Antônio Maria da Silva Torres, Joaquim Francisco

Viana, e Luiz Carlos Martins Penna, em que pediam que se nomeasse juiz

municipal para a causa em que contendem com Francisco Gonçalves Pereira

Duarte, na qualidade de terceiros embargantes em autos de arresto que o dito

Gonçalves propusera contra João Teixeira de Magalhães, e em que tem suspeição

o juiz municipal, bem como os juízes da 1ª e 3ª vara cível; foi nomeado o Doutor

Caetano Alberto Soares.

Nesse caso, é evidente que se trata de uma disputa pelos bens de Francisca de Paula

Julieta, visto que os requerentes são o segundo marido, o genro e o filho, que teria sido

deflagrada com o inventário de José Antônio. Com a escolha do juiz e sacerdote Caetano

Alberto Soares para esse e outros requerimentos relacionados ao inventário, tomam-se

decisões de conciliação na partilha, mas em que haveria certa proteção aos bens de Francisca

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de Paula (ou seja, os embargos e dívidas seriam amenizados), de forma que os três filhos

receberiam suas partes, desconsiderando os problemas da disputa anterior. No entanto, tal

postura iria aumentar os ânimos da contenda. A princípio, o tio de Martins Pena enviaria um

termo de protesto contra o juiz na sessão de 30 de junho (CO, 26/7/1836, p. 2), que seria mal

recebido pelo Poder Judiciário, como se lê na resposta da sessão de 8 de julho:

Leu-se o Ofício do Doutor José Batista Lisboa, em que participava não poder

aceitar a nomeação de juiz municipal para tomar protesto contra o Doutor Caetano

Alberto Soares; e o requerimento do tenente-coronel Antônio Maria da Silva

Torres, como administrador de sua filha D. Joana, e Luiz Carlos Martins Penna,

em que pedia que se nomeasse juiz municipal para perante ele propor uma ação de

libelo de nulidades de testamento do falecido José Antônio da Costa Guimarães:

foi nomeado o Doutor Joaquim José Teixeira (CO, 1/8/1836, p. 3).

O caso se prolongou por bastante tempo, com diversos requerimentos para troca de

juízes considerados suspeitos, impedimentos, recusas de nomeação, pedidos de apelação, ação

de libelo de nulidades, enfim, uma série de recursos que fizeram o processo passar por todas

as esferas do Judiciário. Como é a primeira vez que a longa disputa está sendo abordada

historicamente, os pormenores ainda precisarão ser apurados. É provável que a parte de

Martins Pena tenha sido resolvida nas decisões de Caetano Alberto Soares, pois o nome do

herdeiro não mais apareceria nas notícias oficiais. O litígio entre José Antônio e Antônio

Maria, no entanto, continuaria por mais alguns anos. O caso chegaria ao Supremo Tribunal,

que se decidiria, em 6 de julho de 1838, a favor de José Antônio, “por haver injustiça notória

no Acórdão de que se recorre” (CO, 12/10/1838, p. 2). Frente à derrota, Antônio Maria

voltaria aos jornais, em nome de sua filha, com um anúncio no principal periódico da Corte.

A menor D. Joana, filha do tenente-coronel Antônio Maria da Silva Torres, não

tendo outro recurso contra o inaudito procedimento do [...] Francisco Thomaz de

Figueiredo Neves, juiz nomeado para os inventários de seus avós e mãe, e para

outras causas em que ela é parte; pelo órgão de seus tutores e procuradores, lança

mão da imprensa para protestar perante as autoridades e povo desta capital contra

toda e qualquer sentença dada pelo dito Ilmo. Sr. Figueiredo Neves depois do dia

26 do corrente; porquanto tendo-se-lhe requerido com civilidade, no dia 25, que se

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houvesse de declarar suspeito pelas razões que respeitosamente se lhe alegavam,

repostou em seu despacho (sem data) que usasse dos meios que a lei faculta; mas

tendo-se preparado [...] para S. S. ser averbado na audiência do dia seguinte, 26 do

corrente, S.S. se ocultou e não fez audiência, com admiração e pasmo do escrivão

e das mais pessoas que à hora do costume se acharam no corredor de sua casa para

requererem na dita audiência, sendo por isto manifesto o intuito e empenho de

S.S. em julgar as partilhas feitas por ele mesmo nos sobreditos inventários, antes

que tome conta da vara de Órfãos o meritíssimo Sr. Dr. Luiz Fortunato de Brito,

subtraindo-se assim a solenidade da averbação em audiência, e procurando [...]

julgar de surpresa por sentença as ditas partilhas, pois não tem havido razões nem

súplicas que tenham podido mover ao escrivão para que lhe não faça conclusos os

inventários antes de haver uma audiência de S.S. em julgar as mencionadas

partilhas, fácil é pois ajuizar que tais elas serão. O público será informado em

tempo oportuno, com mais alguns pormenores (JC, 28/2/1839, p. 4).

Essa declaração se torna altamente suspeita frente aos acontecimentos da véspera. O

juiz municipal Thomaz Figueiredo Neves estava designado para julgar os processos dos

inventários desde 1837, recebendo audiências em casa, na Rua da Alfândega, 254 (DRJ,

18/10/1837, p. 1). Após a resolução do Supremo Tribunal, a partilha do inventário entrou em

vias de resolução, ficando finalmente pronta em 27 de fevereiro de 1839, quando os autos

foram enviados para receber o selo oficial. Nesse momento, misteriosamente, o encarregado

pelo serviço desaparece junto com os documentos. A primeira denúncia pública sobre o

ocorrido surge no Despertador de 1º de março.

Em resposta ao anúncio e célebre protesto de D. Joana, filha do Sr. Antônio Maria

da Silva Torres, a qual não pôde levar a paciência que lhe escape das unhas a presa

que tão ilegalmente empolgou, isto é, a administração da herança do falecido José

Antônio da Costa Guimarães, temos a ponderar ao público ilustrado que é mister

requinte de perversidade, para atribuir a sinistras intenções o fato de um juiz

deixar de fazer uma audiência, como se isso não sucedesse frequentemente com

todos; e muito mais quando a partilha já está feita e assinada por partidores e juiz,

e é indiferente que seja julgada por Pedro ou por Paulo.

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Saiba agora o público até que excessos a chicana tem chegado: no dia 27 foram os

autos do inventário mandados selar, entregando-os para isso o escrivão Castro ao

seu fiel, pelo meio-dia; e (caso raro!) desapareceu o fiel com os autos. Quem seria

o motor disto? O público ajuíze: ficará um tal fiel sem castigo? Continuará ele a

merecer a confiança do Sr. Castro? Não é de esperar.

O Jornal do Commercio confirmaria a denúncia no dia seguinte com o anúncio do

escrivão Castro, em que declara o desaparecimento de seu fiel de cartório Manoel Antônio da

Fonte e pede, “com muito obséquio, a toda e qualquer pessoa que tiver notícia do mesmo fiel,

queira fazer aviso no seu cartório, na Rua do Rosário” (p. 4). Essa não seria a única

repercussão do caso. José Feliciano da Cunha (um defensor de Antônio Maria) se mostraria

bastante ofendido com a publicação do Despertador, redigindo uma longa réplica especulando

quem teria escrito o comunicado:

Quem será o autor da denominada resposta ao protesto da menor D. Joana, filha

do tenente-coronel Antônio Maria da Silva Torres, inserida na sua folha do 1° do

corrente? Será o Sr. Dr. Francisco Thomaz de Figueiredo Neves...? Mas S. S. é

jurisconsulto, sábil e civil, e aquela resposta, em combinação com o protesto da

menor, mostra em quem a compôs não só falta de dialética, de lógica, e de

conhecimentos jurídicos, mas até de urbanidade e decência nas expressões [...].

Será, pois, produção do Sr. José Antônio da Costa Guimarães? Parece que também

não, porque, além de também ser pessoa mui civil, não cairia certamente na

indiscrição de tomar a si a defesa pública do Sr. Figueiredo Neves, para que se não

dissesse que S. S. lhe é caro e necessário, e nem mesmo é de presumir que o Sr.

Costa Guimarães, sendo parte nos inventários do finado tenente José Antônio da

Costa Guimarães, pudesse saber que o cálculo das partilhas se achava já assinado

pelos partidores e juiz, quando antes de sentença tudo é segredo! E ainda mais

parece não ser o Sr. Guimarães autor daquela resposta, porque, não sendo

jurisconsulto das academias de França, decerto não cometeria a temeridade de

avançar a proposição de que uma partilha, sendo já assinada pelos partidores e

pelo juiz Pedro, não pode ser reformada pelo juiz Paulo, que sucede ao juiz Pedro,

antes que dê a sentença, posto que a dita partilha contenha lesões, absurdos, e

manifestas injustiças! [...] Neste caso, grande serviço fariam os Srs. redatores a

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ambos estes Srs. se revelassem o nome do verdadeiro autor daquela produção,

pois que com isso poriam ao abrigo de todas as suspeitas estes dois beneméritos

cidadãos (8/3/1839, p. 2).

Curiosamente, logo abaixo das acusações de Cunha, foi também publicada uma

declaração de José Antônio, na qual está sua versão do ocorrido:

No dia 27 de fevereiro foram os autos de inventário do falecido José Antônio da

Costa Guimarães entregues pelo escrivão Castro ao seu fiel Manoel Antônio

Fontes para serem selados, por estar a partilha pronta para ser julgada: no dia 28

apareceu no Jornal do Commercio [que com parcialidade se não tem prestado a

inserir os nossos anúncios] o protesto do Sr. Antônio Maria da Silva Torres, em

nome de sua filha D. Joana, contra o juiz o Sr. Dr. Figueiredo Neves, por ser

imparcial, e suspirando aquele pela entrada do novo digno juiz de órfãos, em

quem tem grandes esperanças, como se ele fosse afeito a praticar atos de injustiça.

No dia 1 do corrente ele tomou conta da vara; e nesse mesmo dia foram os autos

mandados ao cartório do escrivão por um preto desconhecido, que não quis

declarar o seu nome: eis o que tem sucedido nesta farsa, e continuaremos a

anunciar o que for ocorrendo; assim como ficamos na expectativa de observar se o

Sr. Castro requer contra esse prevaricador fiel o digno castigo, ou se este castigo

consistirá em lhe tornar a fiar os autos do seu cartório, o que julgamos impossível,

porque poderia haver quem então suspeitasse conivência, o que o anunciante

presentemente nem por sombras suspeita. Rogo-lhes, Srs. redatores, hajam de

inserir estas linhas no seu jornal. Rio de Janeiro, 2 de março de 1839.

É evidente que, se ambos tivessem ciência da carta do outro, a publicação teria

acontecido de outro modo. No entanto, é possível que José Antônio tivesse conhecimento da

correspondência de Cunha, visto que o editor estaria mais propenso a defender José Antônio,

o que pode ser deduzido pela primeira nota, publicada anonimamente. De qualquer modo,

também é válido cogitar que Martins Pena tenha sido autor da nota anônima, porque, além de

o assunto lhe dizer respeito, já havia iniciado a atuação literária através de contos nos jornais

e, nos palcos, com a célebre comédia O juiz de paz da roça, o que será analisado mais à

frente.

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No que diz respeito ao registro das leituras de Martins Pena na Biblioteca Nacional, o

ano de 1837 seria o último de frequência assídua. A pesquisa de Damasceno revela que

“durante maio e junho, seguidamente”, ele consultou as Œuvres de Rousseau, provando o

interesse e o contato de Martins Pena com o autor francês, tese lançada por Vilma Arêas ao

encontrar semelhanças (com aproximações que, inclusive, beiram a tradução) entre alguns

trechos dos folhetins de Martins Pena e La Nouvelle Héloise (cf. 1987, pp. 89-93), num claro

processo intertextual em que o folhetinista dá grandes sinais de familiaridade com o texto de

Rousseau. Outros títulos que Martins Pena teria consultado em 1837 são Astronomie, de M.

de La Lande, Voyage autour du monde, de George Anson, e Walter’s Voyage, o que reforça a

ideia de que Martins Pena tinha interesse por livros de viagem.

Em 1838, não será localizado nenhum registro no livro de consultas que se refira a

Martins Pena. Segundo a pesquisa de Damasceno, o próximo registro data de 2 de setembro

de 1839, ou seja, meses após os incidentes com a partilha de bens de seu avô. Uma questão

interessante a respeito dos registros a partir de 1839 é que trazem apenas o nome “Penna”, e

não mais o nome inteiro, numa clara demonstração de que o autor já era conhecido entre os

funcionários da Biblioteca Nacional. O registro de 14 de julho de 1840 é particularmente

curioso, pois se encontra o nome “Penna”, mas o espaço reservado ao título do livro está em

branco. Durante a pesquisa, não se encontrou nenhum outro registro em que ocorra a omissão

da obra consultada.

Outra questão, tão importante quanto a primeira, seria a presença de outros autores e

pessoas de teatro nesse período. Nos registros do livro de consulta de 1840, encontram-se

frequentes registros de Joaquim Norberto de Souza, assim como de outros intelectuais e

homens de teatro, como Luís Carlos Burgain, Emile Adet e, inclusive, João Caetano dos

Santos. Com efeito, a biblioteca também servia para fins de sociabilização, tanto que só eram

admitidas pessoas que se apresentassem decentemente vestidas (Rocha: 2011, p. 61). Desse

modo, as razões que levavam os cidadãos à biblioteca não se resumiam à leitura; porém, com

certeza, os registros constituem um dos meios mais consistentes para se ter uma visão da

recepção e das leituras daquela sociedade.

Assim, é possível afirmar que Martins Pena tinha pretensões artísticas bem definidas e

que procurou se aprofundar nelas de maneiras diversas. Frequentava a Biblioteca Nacional e,

por meio dela, desenvolveu conhecimentos nas áreas em que tinha interesse, entre elas a

literatura, o teatro, a música, a filosofia e os romances de viagem. Pouco se conhecia a

respeito dessa bibliografia, sobre a qual só era possível especular através da produção que

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Martis Pena deixou. Por meio da pesquisa de Darcy Damasceno, contudo, tornou-se possível

encontrar não somente provas das leituras mas também diversas informações acerca das

experiências que o dramaturgo vivenciou nesse período e, assim, preencher uma importante

lacuna da biografia de Martins Pena.

1.3 O exemplar do pesquisador

Esperemos que Darcy Damasceno guarde os

originais de seu trabalho precioso – pois

algum dia haverá quem compreenda o valor

disso e o publique como merece.

(Antônio Houaiss, Correio da Manhã, 28/11/1964)

O grande número de anotações deixadas por Darcy Damasceno, além de ser grande

prova de seus esforços, é um ótimo ponto de partida para pesquisas futuras. O principal

trabalho de Darcy Damasceno para a obra de Martins Pena foi a organização e a confrontação

dos manuscritos e das publicações do século XIX, na ocasião da coletânea de 1956. Sua

atuação, porém, não se limitou a esse feito. Se o trabalho gerou uma série de anotações e

desdobramentos que o pesquisador procurou desenvolver em artigos ensaísticos, mesmo a

publicação de 1956 foi alvo de alguns acertos críticos. Durante a pesquisa, foi possível ter

acesso ao exemplar pessoal de Darcy Damasceno, no qual se encontram diversas anotações

que merecem divulgação e análise.

As anotações da primeira página, aumentando de 28 para 29 o número de peças de

Martins Pena e de nove para dez o de peças publicadas, referem-se a uma hipótese que seria

refutada posteriormente. Trata-se da especulação de que Martins Pena havia escrito mais uma

comédia, intitulada Quem porfia mata caça. O engano se deve ao fato de o livro da peça ter

sido divulgado como se fosse de Martins Pena em catálogos do fim do século XIX, além de

existir uma publicação de 1852 que erroneamente atribuiu a peça a Martins Pena. Estudos

futuros, no entanto, esclareceram que a referida comédia em dois atos é, na verdade, de

autoria de José da Silva Mendes Leal Junior, um contemporâneo de Martins Pena, e, por

ocasião da encenação, contou com atores – por exemplo, Manoel Soares – que interpretavam

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as comédias do pioneiro. O rigor que Damasceno impunha às descobertas o protegeu do logro

de anunciar Quem porfia mata caça como uma esquecida comédia de Martins Pena.

As anotações no exemplar de Damasceno se concentram na introdução do livro,

especificamente na parte da bibliografia, em que está a relação das 28 peças atribuídas a

Martins Pena. Todos os dramas receberam anotações, sendo que a mais significativa é o título

alternativo O cinto misterioso para O cinto acusador. As outras anotações estão relacionadas a

questionamentos sobre as datas de elaboração, à exceção de uma, referente ao erro tipográfico

no ano de representação de Vitiza, que foi encenada em 1845, mas no livro imprimiu-se 1841.

A forma como Damasceno fez a anotação (um grande número cinco escrito a lápis e reforçado

algumas vezes a caneta) também é uma exceção, revelando certo descontentamento do

pesquisador com o erro, que foi propagado nas edições seguintes (que utilizaram os mesmos

fotolitos do livro de 1956) e ainda causaria confusões em pesquisas futuras, embora

felizmente não tenha prejudicado os principais estudos sobre o autor.

A comédia Os dous ou O inglês maquinista também foi objeto de pesquisas

posteriores, divulgadas em artigo no Correio da Manhã, cujo tema é a data de elaboração da

peça. O pressuposto que fez Damasceno investigar o assunto foi a descoberta de um anúncio

de publicação no Jornal do Commercio:

Em recentes pesquisas, tivemos oportunidade de localizar o anúncio de F. e H.

Laemmert (Jornal do Commercio, 15-1-1844), segundo o qual a “nova e

engraçadíssima comédia” acabava de sair à luz. A peça era anunciada em título

simples: Os dous. Só o aparecimento (pouco provável) de algum exemplar de tal

edição poderia esclarecer quanto à antiguidade do título composto (14/10/1961, p.

8; grifo do autor).

Consequentemente, no exemplar de Damasceno há a indicação do ano de 1844 entre as

edições relacionadas na bibliografia. Além de ser a descoberta de um livro cuja referência

estava esquecida, acrescenta uma peça na lista de publições em vida do autor. Com o auxílio

das tecnologias atuais, foi possível localizar a existência de um raríssimo exemplar dessa

edição na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A obra, intitulada

Os dous: comédia em um ato, tem quinze páginas e foi publicada em 1843 (o que a data do

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anúncio no Jornal do Commercio ajudou a presumir).6 Se a investigação de Damasceno não

conseguiu inferir com precisão a data, pôde ao menos aproximá-la, o que permitiu ao crítico

avançar o estudo sobre a peça com a procura de referentes, da mesma forma que havia

esclarecido a elaboração de O juiz de paz da roça. O objetivo da investigação seria encontrar

o ano de elaboração da comédia, ou os mais presumíveis, no que não obteve resultados muito

precisos.

Atentando aos referentes, Damasceno procurou nos jornais da época pelos brigues

ingleses que aprisionaram barcos negreiros, encontrando o Wizard, muito parecido com o

nome que aparece na comédia, Wizart, na edição de 1956 (e seguintes). No exemplar pessoal,

Damasceno corrigiu as duas alusões ao nome do navio, acrescentando um ponto de

interrogação. No artigo de 1961, cita o texto já corrigido, ou seja, resolvera a dúvida e passava

a considerar Wizard como existente no manuscrito de Martins Pena, uma lição que

infelizmente não passou a publicações futuras, enquanto que, nas antigas edições de Cruz

Coutinho e Garnier (e das que se utilizaram delas como fonte), o nome do navio não é

mencionado, pois consta apenas na versão manuscrita.

Durante a análise do texto, Darcy Damasceno encontrou, na cena VII, outro erro

tipográfico em Os dous ou O inglês maquinista: uma pequena, mas significativa, troca de letra

na fala do inglês Gainer: “Sim, sim, também sai açúcar, balas do Porto e amêndoas” (1956a,

p. 105). Na verdade, são “balas do Parto”, doce famoso do Rio de Janeiro da época, “feitas

pelas educandas do Recolhimento de N. S. do Parto” (1889, p. 279), porém esquecido em

meados do século XX. França Júnior, considerado um dos sucessores de Martins Pena,

também cita as balas no folhetim O Rio de Janeiro e a Rua do Ouvidor: “É um pandemonium

de tílburis, carroças, campainhas, de farfalhar de sedas, balas do parto, ovo, alteia, coco à

baiana e caju, de Gazeta de Notícias, Jornal do Commercio, Globo e República em todos os

tons” (Gazeta de Notícias, 15/8/1877, p. 1). Por fim, as edições anteriores a 1956 trazem a

mesma indicação, ou seja, todas dizem que a máquina de Gainer produziria, entre outros itens,

bife, rosbife, pentes, cabos de faca, açúcar, amêndoas e balas feitas no Recolhimento de Nossa

Senhora do Parto.

6 As páginas da edição acima referida estão integralmente reproduzidas na forma de Anexo 7

desta tese.

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Em O namorador ou A festa de São João, considerada “uma das peças mais bem

urdidas de Martins Pena e uma das mais cuidadosamente trabalhadas” (Arêas: 1987, 199),

também existem anotações que representam pequenos ajustes. Na lista de personagens,

Damasceno riscou o nome de Vicente, corrigindo-o pelo de João, e acrescentou, ao pé da

página, a nota: “Vicente, no original. No corpo da peça, entretanto, figura sempre João”. Além

dessa, há apenas uma pequena alteração na rubrica do final da primeira cena, quando “entra

pela esquerda, por detrás da casinha do ilhéu, Luís, com uma carta de bichos acesa, pendurada

de uma varinha” (1956a, p. 270; grifo nosso). Na verdade, seria “carta de bichas”, um dos

fogos de artifício típicos das festas juninas, tanto que também é mencionado por José de

Alencar em O tronco do ipê e por Machado de Assis no folhetim da revista O Cruzeiro de 16

de junho de 1878.

1.3.1 Os juízes de paz das roças

Quando tivemos acesso ao exemplar do acervo pessoal de Darcy, constatamos diversas

anotações que indicam que ele prosseguiu o trabalho de pesquisa e, principalmente, que ele

gostaria de fazer modificações caso houvesse uma nova edição da coletânea, o que não

aconteceu. Na verdade, houve, sim, algumas republicações, mas o método de cópia de

fotolitos não permitiu que as alterações fossem feitas.

Concentrando-nos apenas nas questões que envolvem a peça de estreia, O juiz de paz

da roça, a primeira mudança está nas notas biográficas (1956, p. 8), alterando o provável ano

de elaboração para 1837, desabonando o relato de José Francisco Viana sobre a peça haver

sido escrita em 1833. A razão de Damasceno ter sido categórico nessa questão foram

pesquisas suplementares, reveladas em dois artigos. O primeiro deles, “A elaboração de O juiz

de paz da roça”, escrito durante a organização da coletânea, questiona as diferenças entre os

manuscritos e a publicação de 1843, mas não contesta a data de elaboração; pelo contrário,

afirma que “a informação recolhida de parente do autor por Luís Francisco da Veiga de que

Martins Pena escrevera O juiz de paz da roça em 1833 merece todo crédito, à falta de provas

em contrário” (Damasceno: 2007, p. 224).

Contudo, esse seria apenas o ponto de partida para o entendimento sobre a elaboração

da famosa comédia de Martins Pena e, de fato, Damasceno encontraria as provas que o

convenceria a contrariar o relato do sobrinho do comediógrafo, como podemos atestar pelo

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artigo “Curro, cosmoramas e museu”. A descoberta foi feita de modo relativamente mais

simples do que o método utilizado anteriormente, ou seja, o árduo trabalho de cotejar os

manuscritos e tentar estabelecer datas por meio do tipo de papel ou da grafia utilizada

(diferenciando os cortes calígrafos). Em vez disso, Damasceno se concentrou nos referentes

da peça, especialmente naqueles que surgem no diálogo entre José e Aninha na segunda cena.

Se a informação dos três teatros da Corte não é muito eficiente para precisar o tempo

dramático, o curro de cavalinhos é bem útil, pois remete ao Circo Olímpico, que desembacara

no Rio de Janeiro em setembro de 1837 com um grupo americano especialista em jogos

acrobáticos com animais, entre eles o elefante Pizarro (primeiro da espécie a estar na cidade) e

o macaco Major. Por conta desse fato, fica evidente que a elaboração da peça não poderia ser

de um período anterior, ainda mais quando percebemos que as comédias de Martins Pena

costumavam se ambientar na mesma época em que eram redigidas.

O objetivo do pesquisador era definir quantas redações foram feitas, quando foram

feitas e, sobretudo, encontrar o tempo da ação dramática. Por isso, Darcy Damasceno

prosseguiu com o novo método pelo restante da peça. O resultado não apenas revelou que a

elaboração de O juiz de paz da roça só pode ter sido concluída a partir de 1837, mas também

localizou precisamente o tempo da ação teatral.

Em socorro de nossa hipótese vem o próprio texto. Numa fala do manuscrito, que

não foi aproveitada na versão impressa (cena XVI), a caipira Aninha monologa:

“Deus permita que meu pai não se esqueça dos meus sapatos! A festa da

Conceição é pra semana, e se for, quero ir de sapatos novos”. Com esse dado,

transforma-se a hipótese em certeza: ocorrendo a festa da Conceição a 8 de

dezembro, a ação atualiza-se em fins de novembro, e tudo nos leva a crer que

coincidissem aqui o tempo dramático (o da ação) e o tempo real (o da elaboração

da peça) (Damasceno: 2007, pp. 248-9).

Com obstinação, Damasceno encontrou as provas de que necessitava para descreditar a

declaração do sobrinho de Martins Pena. Na verdade, a postura respeitosa do pesquisador se

deve mais a uma particularidade metodológica do que à credibilidade do relato, que desde a

publicação demonstrava não ser completamente fiável. A biografia de Luís Francisco da

Veiga foi a primeira fonte bibliográfica a se tornar referência sobre a vida do autor e, com

efeito, contém numerosas informações sobre o dramaturgo e se tornou um semeadouro às

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pesquisas posteriores. Porém, cabe-nos notar que existem falhas na acuidade de certos dados,

e uma delas é a questão que envolve o ano de feitura da comédia.

Quando estudante do segundo ano da Aula do Comércio, escreveu, tendo apenas

18 anos (1833), a sua primeira comédia de costumes nacionais, O juiz de paz da

roça. Receoso, porém, de que o conhecimento dessa vocação literária pudesse

dificultar a realização de seu desejo de obter um emprego público (por serem

insuficientes os rendimentos dos parcos bens que herdara de seus maiores), só

fê-la publicar e representar em 1841 ou 1842 (Veiga: 1877, p. 385).

Logo após o relato, o biógrafo emenda: “Publicar, pode ser; representar, não, segundo

ficou dito irrefutavelmente” (1877, p. 385; grifo do autor), revelando a primeira das incertezas

que rondam a declaração. A inconsistência acerca do ano de elaboração de O juiz de paz da

roça não está explícita, mas é evidentemente questionável como o sobrinho de Martins Pena

saberia o ano de elaboração da peça, visto que era criança quando conversou poucas vezes

com o tio e, além disso, não sabia ao certo quais seriam as datas de representação e de

publicação.

Contudo, conforme demonstrado no capítulo anterior, podemos afirmar que a primeira

comédia de Martins Pena foi influenciada pelo longo caso da partilha dos bens de seus pais,

visto que passou por praticamente todas as esferas do Judiciário até alcançar uma resolução, já

depois da primeira versão da comédia. Apesar de O juiz de paz da roça não lidar com casos de

partilha (caso mais complexo do que a disputa por um leitão), existem muitas similaridades

com as notícias e experiências que o dramaturgo teria lido e vivenciado à época. Um dos

acréscimos entre a versão manuscrita existente – datada de 1837 – e a última publicação em

vida do autor (1843) é o trecho a seguir:

JOSÉ DA SILVA – Eu vou queixar-me ao Presidente.

JUIZ – Pois vá, que eu tomarei a apelação.

JOSÉ DA SILVA – E eu embargo.

JUIZ – Embargue ou não embargue, embargue com trezentos mil diabos, que eu

não concederei a revista no auto do processo!

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JOSÉ DA SILVA – Eu lhe mostrarei, deixe estar.

JUIZ – Sr. Escrivão, não dê anistia a este rebelde, e mande-o agarrar para soldado.

(MP: 1956a, p. 38, cena XI)

Nesse caso, a origem da cena se encontra num manuscrito avulso, escrito em período

posterior aos outros manuscritos da mesma peça, contendo: “carta ao juiz de paz,

requerimento e pleito sobre o leitão e requerimento para citar-se a Assembleia”

(Damasceno: 2007, p. 230). Alterações como essa certamente contaram com as últimas

experiências do processo de inventário. Afinal, a escrita de O juiz de paz da roça coincinde

com a regularidade de leitura do Correio Official e estreia durante o longo litígio mencionado.

Logo, a primeira versão da comédia ainda seria acrescida com alguns trechos, da mesma

forma que o processo da partilha ainda passaria por momentos mais absurdos.

Os esforços de pesquisa demostraram que a peça, ao menos como primeira versão

finalizada, não poderia ser de antes de 1837. De acordo com o caso do julgamento da partilha,

apesar de os últimos pormenores só terem sido concluídos em 1º de março de 1841 (em

consonância com o que foi relatado), os agravantes do litígio só se iniciaram em 1836. Por

outro lado, encontramos dois curiosos registros satirizando juízes de paz da roça, ambos

divulgados antes de 1837. O primeiro é o poema “Ladainha de Todos os Santos”, publicado

em O Noticiador (Vila do Rio Grande do Sul, 12 out. 1834, p. 4), no qual há duas quadrinhas

que merecem destaque.

De repimpado Escrivão,

Que as Partes demoram os Pleitos,

E quer seja pró, quer contra,

Acha em tudo certos jeitos....

Libera nós, Domine.

De Juiz de Paz da roça,

Que, quando quer despachar,

Vai perguntar ao vizinho

Que despacho há-de dar:

Libera nós, Domine!!!!

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O poema satírico tem o pioneirismo de ser uma das primeiras publicações brasileiras

com a expressão “juiz de paz da roça”. Embora as críticas às atitudes dos juízes fossem

constantes à época e a expressão já tivesse sido cunhada em meios não literários, a

intertextualidade entre a quadrinha do juiz de paz da roça e a explicação dada pelo Juiz ao

Escrivão na cena XXI é suficiente para desconfiar de que não se trata de coincidência.

ESCRIVÃO – Pois Vossa Senhoria não sabe despachar?

JUIZ – Eu? Ora, essa é boa! Eu entendo cá disso? Ainda quando é algum caso de

umbigada, passe; mas casos sérios, é outra coisa. Eu lhe conto o que me ia

acontecendo um dia. Um meu amigo me aconselhou que, todas as vezes que eu

não soubesse dar um despacho, que desse o seguinte: “Não tem lugar”.

(MP: 1956a, p. 42)

O segundo registro encontrado acerca dos juízes de paz da roça está na coluna “Obras

publicadas” do Diário do Rio de Janeiro de 6 de fevereiro de 1836. Trata-se do primeiro

anúncio de uma folhinha denominada Correio de Mentiras.

Saiu à luz, e acha-se à venda o 1º n. da interessante folha Correio de Mentiras,

contendo um longo artigo em que fala sobre os Ministros de Estado, Ditadores,

Escrivães, Escreventes, Desembargadores, Advogados, e finaliza com Meirinhos e

Cômicos, aonde os Músicos também não são esquecidos, e os Malsins sem

ordenado: e segue a história do juiz de paz da roça, que recrutava com uma

matilha de cães, e por fim fica logrado; traz a questão entre dois grandes

facultativos sobre o estabelecimento de um cemitério; e o desafio do amante

apunhalado, com o Lucas. Preço 80 rs. nas lojas do costume (p. 2).

A leitura do texto acima deve ser feita com alguma cautela. É preciso ponderar,

principalmente, que se trata de um anúncio e, por isso, poderia estar prometendo mais do que,

de fato, teria a oferecer. Pelo preço da folhinha, a obra seria composta de, no máximo, quatro

páginas, nas quais o “longo artigo” ocuparia o maior espaço, e as outras matérias não teriam

mais que uma página, contendo, cada uma, entre duas e quatro colunas de texto. É muito

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improvável que alguma cópia esteja preservada; logo, as únicas referências encontradas a

respeito dessa pequena publicação são os poucos anúncios no Diário do Rio de Janeiro, que

mencionam apenas o primeiro número, indicando que a folhinha foi um projeto avulso e

descontinuado.

O segundo anúncio, que justifica um pequeno atraso na publicação, é um pouco

diferente do primeiro. Porém, dessa vez cita que a folhinha tinha por intuito mostrar “o grau

elevado a que se acha a classe dos mentirosos; [...] depois segue-se a agradável história de um

juiz de paz da roça, que recrutava com uma matilha de cães, e da logração final que leva” (9

fev. 1836, p. 2). Entretanto, ainda que fosse possível encontrar tão rara publicação, além de

serem remotas as chances de o texto ter sido escrito por Martins Pena, não seria a elaboração

da peça, mas a de um texto precursor, uma narrativa em que o juiz de paz persegue recrutas

para enviar à guerra. O entrecho não deixa de ter algumas semelhanças com o da comédia de

Martins Pena, visto que o conflito se dá exatamente por conta de José ser recrutado para lutar

no Rio Grande do Sul, um procedimento que estava em voga, sendo bastante comentado e,

por conseguinte, estendendo-se à ficção. Outra pequena semelhança seria o uso de cães,

embora os que aparecem na comédia não sejam do juiz de paz, mas de Manuel João, e que

“não mordem” (MP: 1956, p. 33). Portanto, ainda que pudessem existir fortes relações

intertextuais entre a história e a comédia, a elaboração da peça só poderia acontecer em fins de

1837, pelas razões que Damasceno levantou em sua pesquisa.

Uma vez esclarecido que o contexto que envolve a elaboração de O juiz de paz da roça

é complexo, voltemos à tese proposta por Damasceno no que se refere às alterações do texto.

No primeiro artigo, sem desconsiderar a data mencionada pelo sobrinho do dramaturgo,

Damasceno menciona três primeiras etapas de alterações do texto. A primeira seria o

manuscrito de 1837, considerado como cópia por ter o texto “limpo e continuado – ao

contrário do que se dá com os rascunhos de outras comédias” (Damasceno in: MP, 1956a, p.

8), mas é preciso ter em mente que, mesmo sendo uma cópia, trata-se da compilação da peça

que subsiste e que recebe novas alterações, tornando-se, portanto, o principal manuscrito

existente. As outras duas etapas se referem a acréscimos nas cenas IX e XI, todas referentes

aos casos do juiz, sendo que a cena IX, na qual se encena a audiência do juiz aos reclamantes,

ganha dois casos novos e três personagens para representá-los, entre outros ajustes. Em outras

palavras, a cena, muito significativa para a farsa, ainda não estava pronta em 1837, que

contava apenas com duas contendas, sendo preciso mais dois tratamentos para ficar

semelhante ao texto da primeira publicação.

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Contudo, somando-se esses manuscritos, ainda ficariam faltando alguns elementos que

aparecem na primeira publicação, sinal de que os acréscimos citados não foram os últimos. As

diferenças não são muitas, porém atestam mais uma etapa da elaboração do texto, na qual

foram feitos pequenos mas significativos retoques e acréscimos de diálogo. Damasceno trata

dessa questão, embora não seja o assunto principal, no ensaio que identificou o tempo de ação

da peça. Durante a procura pelos referentes que o ajudaram a situar a peça, percebeu que a

maioria dos acréscimos se dá em final de fala, levando-o à conclusão de que alguns deles

foram feitos “no momento de serem feitas as cópias para a gente do teatro” (Damasceno:

2007, p. 250). Isso vale para alguns dos referentes, como o macaco Major, mas também se

aplicaria a outros trechos da peça. Mesmo a cena IX recebe mais acréscimos em fim de fala,

como na desculpa do Juiz para não assistir à demarcação do sítio: “requeira ao suplente, que é

meu compadre Pantaleão” (MP: 1956a, p. 36; grifo nosso), nome que não está no manuscrito

avulso. Nossa opinião é que tais acréscimos são aproveitamentos dos cacos de seus primeiros

atores, que tiveram a liberdade de fazer os últimos ajustes às falas, e os melhores resultados

acabaram incorporados ao texto final.

Uma das falas modificadas é a de Aninha, só ao procênio no fim da segunda cena:

“Como é bonita a Corte! [...] Teatros, mágicas, cavalos que dançam, cabeças com dous

cabritos, macaco major... Quanta cousa!” (MP: 1956, p. 31). Chama-se a atenção para o

chimpanzé, mas pouco se fala da modificação de “cabritos com duas cabeças”, presente no

manuscrito, para “cabeças com dous cabritos”, na versão publicada. Pressupõe-se que não seja

um descuido, porque, pelo contrário, é fácil conceber que essa inversão tenha sido proposital,

visando enfatizar a ideia de Aninha ser ingênua e estar sendo ludibriada. A modificação,

posterior à redação original, copiada e emendada, tem todos os ares de haver sido feita em

coautoria durante os ensaios e primeiras representações, tendo sido experimentada em cena,

aprovada pelo público e incorporada ao texto.

Além dessas alterações já acessíveis aos estudiosos, encontramos mais algumas notas

no exemplar do acervo pessoal de Darcy Damasceno sobre O juiz de paz da roça, pequenos

arranjos que poderão ser úteis a futuras publicações da comédia. Pelo que pôde ser constatado,

elas se referem a pequenas emendas existentes nos manuscritos que não foram incorporadas à

edição de 1956.

Nas notas da cena IX, há uma pequena emenda, o acréscimo da expressão “Deus

louvado” na carta de Manuel André de Sapiruruca, cuja origem é um manuscrito avulso.

Assim, no manuscrito, o início da carta é o seguinte: “Muito me alegro de dizer a V. S. que a

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minha é boa ao fazer desta Deus louvado, e que a mesma fortuna desejo a V. S.” (MP: 1956,

p. 50; grifo nosso). A alteração, embora pequena, esclarece o sentido original de humor que

Martins Pena tentou dar ao início da carta, mesmo que, por razões desconhecidas, o trecho

tenha sido suprimido na edição de 1843.

As outras alterações se referem à pequena cena XVI e são mais significativas que a

anterior. Na publicação de 1956, a pequena cena mereceu cinco notas de Damasceno, como

podem ser conferidas a seguir:

Casa1 de Manuel João. Entram Maria Rosa e Aninha com um samborá

2 na mão.

MARIA ROSA – Estou moída! Já mexi dois alqueires de farinha.3

ANINHA – Minha mãe, aqui está o café.4

MARIA ROSA – Bota aí.5 Aonde estará aquele maldito negro?

(MP: 1956a, p. 40)

A segunda nota se deve à preservação da grafia utilizada para “samburá” (cesto de

cipó) e as outras quatro se devem às diferenças no cotejo com o manuscrito de 1837. A nota

número 5 se refere à exclusão da fala em que Aninha menciona querer ir de sapatos novos à

festa da Conceição. Uma pequena fala, mas que foi crucial para o pesquisador definir o ano de

composição da comédia.

Junto à terceira nota, que menciona a primeira fala de Maria Rosa no manuscrito:

“Estou que não posso comigo! Já mexi meio alqueire de farinha, por hoje basta”

(MP: 1956a, p. 53), há um grifo no exemplar pessoal de Damasceno sobre as palavras “por

hoje basta” seguido pelo acréscimo: “Sobre estas últimas palavras, a expressão, lançada mais

tarde e que seria a válida: e fiz um balaio de bijus” (grifo do autor). Vale ressaltar que esse

trecho não consta em nenhuma edição consultada.

Além disso, Damasceno acrescentou uma sexta nota ao fim da cena, em que diz: “No

manuscrito, entre parênteses, abaixo da última palavra, a indicação, posta posteriormente –

(Mais.) – O intuito seria de aumentar a cena, o que não se deu” (grifo do autor). Apesar de

parecer estranho Damasceno não mencionar nenhuma dessas notas em seus ensaios, a

quantidade de anotações do pesquisador nos permite atestar que não é raro encontrar

informações não divulgadas entre elas. Damasceno tinha o sábio costume de não divulgar suas

hipóteses enquanto elas não estivessem muito bem averiguadas, e algumas delas ficaram

incompletas no meio do processo.

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Contudo, não deixa de ser impressionante encontrar informações inéditas acerca da

mais citada comédia de Martins Pena, mesmo sendo atribuídas a seu principal pesquisador. É

como se um instante da tradição teatral brasileira se revelasse irreverentemente sobre nós: a

elaboração de uma cena incompleta entre mãe e filha cuidando dos afazeres da roça sem a

presença do cabeça da família.

Todas essas pequenas descobertas a respeito da elaboração da mais icônica farsa de

Martins Pena devem ser vistas como uma pequena mas contundente prova de que o

dramaturgo merece destaque no elenco de intelectuais da primeira geração do Romantismo,

assim como seus textos são valiosos para ilustrar o nascedouro da tradição teatral no Brasil.

Não é incomum que Martins Pena seja visto apenas de passagem no contexto da história da

literatura brasileira, muitas vezes sendo mal compreendido, mesmo na posição de

comediógrafo e homem de teatro. No entanto, suas mensagens continuam vivas e seus textos

ainda têm muito o que revelar ao público.

1.3.2 Preenchendo a lacuna de 1840 a 1843

A questão das datas de criação das peças foi uma das principais preocupações durante

as etapas de pesquisa que motivaram as anotações de Darcy Damasceno no exemplar de

Comédias. Encontram-se notas sobre o assunto em 23 das 28 peças atribuídas a Martins Pena,

sugerindo que sejam os primeiros apontamentos de um estudo mais amplo dedicado à questão.

Com efeito, Damasceno era particularmente interessado, talentoso e experiente em tarefas que

envolvessem datações, como pode ser percebido em suas pesquisas de organização dos

poemas de Gregório de Matos, assim como em diversas colaborações aos anais da Biblioteca

Nacional.

A produção manuscrita do pesquisador sobre Martins Pena é tão vasta que mostra não

só os trabalhos conhecidos (isto é, a pesquisa de três anos para a organização de Comédias e

Dramas, a organização dos Folhetins e do estudo anexo sobre óperas e atores, além das

pesquisas que resultaram nos ensaios avulsos, os melhores deles reunidos em 2007), mas

também numerosos estudos complementares, em diversos estágios de acabamento.

Contudo, com o intuito de comprovação final, nos papéis que compõem o manuscrito

26, 2, 95 (Dados biográficos de Martins Pena: notas várias), encontram-se algumas das

muitas anotações de Damasceno que se referem à biografia de Martins Pena, assunto pouco

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revelado nos ensaios do pesquisador. Por exemplo, uma das páginas se refere ao período de

elaboração de Os dous:

Biografia – Lacuna

Período 1840-43

1840 – Ainda amanuense da Mesa do Consulado (desde 1838)

– abril, 7? – Plano e início de elaboração de Vitiza [fim do ano]. Composição de

Os dous [depois de agosto].

– julho, 15: Conclusão do 1° ato de Vitiza

1841 – julho, 7. Conclusão do drama Vitiza

1842 – Publicação de O juiz de paz da roça (1. ed.)

Publicação de A família e a festa da roça (1. ed.)

1843 – abril, 28 – Nominado amanuense da Secretaria dos Negócios Estrangeiros

– 2ª edição de O juiz de paz da roça

1844 – ativo no Conservatório Dramático Brasileiro

Nas anotações, percebe-se a intenção de traçar a cronologia de Martins Pena. Na

página acima transcrita, Damasceno considera o período de 1840 a 1843 pouco elucidado no

que diz respeito ao dramaturgo, logo, um período sobre o qual seria importante buscar mais

informações. A contribuição de Damasceno, a princípio, é introdutória, porém mostra com

bastante clareza o enfoque desejado para a pesquisa. As poucas informações existentes tratam

da elaboração de Vitiza e Os dous, da atuação profissional e das publicações em livro,

desconsiderando, entre outros fatores que poderiam figurar na lista, as noites de representação

(que, apesar de serem poucas, seriam ilustrativas). Isso é explicável pela delimitação do objeto

de estudo, ou seja, os dados biográficos pouco estudados, enquanto se pesquisaria acerca das

representações separadamente e, de fato, as datas de encenação compõem outros manuscritos.7

Apesar de não ter avançado muito, a pesquisa pede atenção ao período, que, de fato,

contém informações interessantes (e ainda não divulgadas) a respeito do comediógrafo. Uma

7 Entre os manuscritos que contêm anotações sobre o assunto, destacam-se Biografia de

Martins Pena, ideologia, repertório e teatro de São Pedro em 1830 (Ref. 26, 2, 111) e

Cronologia das farsas apresentadas entre 1830-1848 (Ref. 26, 1, 193).

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segunda hipótese acerca da página é ela ser uma espécie de introdução às informações da

página seguinte, referentes à atuação de Martins Pena no Conservatório Dramático Brasileiro.

No Conservatório Dramático Brasileiro

1843 – 19-1 – Presente à sessão preparatória de instalação do CDB. Firmou a ata

como 2º Secretário. Em casa de Bivar.

12-3 – Idem à 2ª sessão preparatória (artigos orgânicos).

30-4 – 1ª sessão do CDB, já instalada. Presente.

28-5 – 2ª sessão. Presente. Apresentação de A noite do Castelo (Rufino).

18-8 – 3ª sessão. Presente.

22-11 – 4ª sessão. Idem. [Mas não assinou a ata].

4-12 – 5ª sessão. Idem.

1844 – 21-1 – 6ª sessão. Assembleia Geral. Presente.

19-3 – 7ª sessão. Presente.

17-4 – 8ª sessão. Presente.

E em 1845? Ver.

Última assinada e de que consta seu comparecimento: 19-7-46.

O assunto das relações de Martins Pena com o órgão de censura da época rendeu dois

artigos de Darcy Damasceno, um intitulado “Martins Pena e o Conservatório Dramático” e o

outro, “A censura e Os ciúmes de um pedestre”, ambos selecionados para a coletânea

ensaística de 2007. No entanto, as informações acima praticamente não foram aproveitadas

nos ensaios, à exceção de um parágrafo que diz: “Quando, em janeiro de 1843, Martins Pena é

eleito 2º secretário do Conservatório Dramático Brasileiro, não imagina os dissabores que

disso lhe adviriam” (2007, p. 251). Um dos artigos tematiza passagens de várias peças pelo

órgão censor, inclusive em momentos posteriores à morte de Martins Pena, enquanto o outro

destaca os problemas com a liberação de Os ciúmes de um pedestre, certamente a que gerou

maior conflito e provocou revolta no dramaturgo, como se pode perceber na carta enviada ao

amigo José Rufino Rodrigues Vasconcelos contendo a cópia da peça com as alterações

solicitadas pelos censores (mas que, ainda assim, não seria licenciada).

5 de janeiro de 1846. Muito boas-festas, e a toda a tua família. Aqui te remeto a

comédia O pedestre, com as emendas pedidas pela Censura. Deus me dê paciência

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com a Censura!... muito custa a ganhar a vida honradamente... melhor é roubar os

cofres da Nação, e para isso não há Censura. À vista temos que conversar sobre a

destampatória censura; o Sr. Censor... Coitado! Julgo que está com catarata... na

inteligência, pois viu um ataque a João Caetano, onde não havia senão uma

simples paródia ao Otelo; paródias que se permitem nas partes do mundo mais

civilizado (Pena apud Magalhães Júnior: 1972, p. 167).

Porém, considerando a hipótese de preparação de uma pesquisa mais abrangente sobre

a biografia de Martins Pena, Darcy Damasceno teria começado a preencher os espaços da

lacuna de informações com as presenças do comediógrafo no Conservatório Dramático, três

meses antes de ser nomeado amanuense da Secretaria dos Negócios Estrangeiros.

Curiosamente, não há referência de publicação de Os dous na página da cronologia. Não deixa

de surpreender que, poucos meses após se tornar funcionário da Secretaria dos Negócios

Estrangeiros, Martins Pena haja publicado a comédia que satiriza o inglês e o negociante de

escravos. É improvável que as anotações antecedam o conhecimento da rara publicação, visto

que, no manuscrito, a elaboração de Os dous está indicada em 1840, que é a mesma conclusão

do artigo sobre o assunto.

A nos fixarmos na provável fonte de Martins Pena para os dados postos na

comédia – o noticiário marítimo do Jornal do Commercio – seria o apresamento

de agosto de 1840 o germe daqueles dados, e esse ano, por conseguinte, o da

elaboração de Os dous ou O inglês maquinista (CM: 14/10/1961, p. 8).

Apesar dessa curiosidade acerca do manuscrito e do momento exato em que

Damasceno definiu qual seria o ano da elaboração de Os dous, o mais útil a ser feito é

aprofundar o entendimento sobre o período mencionado, desdobrando as anotações. Segundo

as fontes biográficas, Martins Pena era amanuense da Mesa do Consulado desde 1838. Apesar

de não terem sido encontrados os documentos referentes à posse, foi possível localizar, no

Correio Official, uma portaria expedida em 8 de maio de 1840, “concedendo um mês de

licença para tratar de sua saúde, com vencimento, ao amanuense do Consulado Luiz Carlos

Martins Pena” (12/5/1840, p. 3). A notícia é o mais antigo registro conhecido acerca da saúde

instável do comediógrafo, sobre a qual não há maiores consensos além de ter sido causada

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pela tuberculose, consenso mais voltado à dedução do que aos fatos, desconhecendo-se,

devido às poucas informações, a real origem ou extensão do problema.

Mais fatos esquecidos podem ser encontrados sobre o ano de 1841. Em 12 de março, o

mordomo-mor interino remetia ao Ministério do Império “cópias dos Decretos de 10 de

fevereiro, e de 3 e 4 do corrente”, entre os quais Martins Pena era nomeado Moço da Imperial

Câmara, junto a sete compatriotas (CO, 31/3/1841, p. 1). Uma das atribuições imediatas de

Martins Pena como integrante da Casa Imperial foi participar da sagração e coroação de Dom

Pedro II, figurando entre os “Moços da Câmara nomeados para montar a cavalo no dia 16 [de

julho]” (JC, 10/7/1841, p. 3). As hipóteses sobre como essa atuação escapou à vista dos

pesquisadores não são muitas. Como o biógrafo Veiga e o sobrinho de Martins Pena

desconheciam esse detalhe, sequer o mencionaram. Os outros pesquisadores, especificamente

os que se deram ao trabalho de pesquisar o Jornal do Commercio, ao passarem pela data da

sagração e coroação de Pedro II, não perceberam o nome de Martins Pena entre os muitos

participantes da cerimônia, talvez porque lhes faltavam as informações sobre ele ter sido

nomeado Moço da Imperial Câmara, ou seja, não havia nem referências nem expectativas para

encontrá-lo, diminuindo a atenção sobre o evento.

Segundo um relato da época, uma das funções atribuídas aos Moços da Câmara foi a

de acompanhar as carruagens dos convidados de outras províncias. O observador também

descreve o cavalo, que fora equipado com “selim de veludo verde bordado de retroz amarelo,

manta do mesmo, guarnecida de galés de ouro, cabeçados, rédeas, peitoral, rabichos e loros do

mesmo veludo, tendo pespontado e guarnecido de freios, estribos e mais ferragem lavrada e

dourada” (JC, 5/8/1841, p. 2). Mesmo que a atuação de Martins Pena tenha sido singela em

relação ao grande evento, o fato de ele haver participado oficialmente da sagração e coroação

de Pedro II tem algum valor histórico. De fato, os Moços da Câmara também são citados

realizando outras tarefas, o que mostra ser bastante improvável que o envolvimento de

Martins Pena tenha se resumido à atuação do dia 16.

Desse modo, Darcy Damasceno deixou nos manuscritos um grande número de

informações que podem ser desdobradas em novas pesquisas. O rigor e a obstinação que

impunha a seu trabalho sugerem que ele evitava expor dados que não estivessem

completamente averiguados, como se nutrisse um imenso desejo de transmitir apenas

informações confiáveis. Por conta desse método, produziu argumentos lúcidos e brilhantes,

salvaguardados por sólidos trabalhos de pesquisa. Os manuscritos resultantes de tal rigor

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metodológico, talvez como resíduos do processo, ilustram a excelência das pesquisas de

Darcy Damasceno e são, agora, valioso combustível para novas investigações.

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2

Educando-se no século XIX

Desejando entender as circunstâncias educacionais que poderiam levar Martins Pena a

produzir sua obra, buscamos dados sobre a maneira como as pessoas eram educadas nas

primeiras décadas do século XIX, em particular os cidadãos na mesma posição social do

dramaturgo. Para isso, tivemos de recorrer a fontes primárias, ou seja, leis, documentações

escolares e informações em periódicos.

O processo de independência brasileira como nação produtora de conhecimento foi

lento e sorrateiro, logo, não aconteceu imediatamente após a chegada da Corte portuguesa ou

da independência formal de 1822. Sabia-se que uma palavra mais ofensiva poderia resultar em

graves consequências e o país estava longe de ser considerado um lugar seguro para a livre

expressão, portanto a cultura se desenvolvia sob as amarras de um sistema escravocrata, de

maneira tímida e cautelosa.

Além disso, apesar de estarem em diferentes localizações geográficas, não houve

distinção substancial entre a cultura portuguesa e a brasileira, a primeira pouco desenvolvida e

a segunda praticamente inexistente, ligada a seu colonizador tanto pela língua quanto pelas

leis, pela religião, pela defesa das fronteiras. Quando um indivíduo recebia o pouco de

educação formal que existia na colônia, a missão de criar ou desenvolver cultura literária não

era simples, tanto pela escassez teórica e instrumental quanto pela consciência de se estar num

território colonizado.

Mesmo quando ocorriam produções literárias no período que antecedeu a

independência do país – e certamente elas existiram em maior número do que as obras de

Gregório de Matos, dos literatos do Arcadismo e de outros que conseguiram a façanha de se

marcarem na história – o conteúdo ainda carecia de um meio eficaz que os registrasse e

difundisse, elemento extremamente importante para abranger um território tão vasto. Portanto,

as condições para o desenvolvimento intelectual no Brasil só começariam a ter um cenário

mais adequado a partir da liberação da imprensa, em 1808. Contudo, esse marco seria apenas

o ponto inicial, pois demoraria cerca de vinte anos até que o país produzisse regularmente

jornais contendo suas primeiras e tímidas ficções.

Na verdade, os prelos que chegaram ao Brasil eram novos, recém-fabricados na

Inglaterra e, claro, não foram encomendados para servir à divulgação literária, mas “para uma

imprensa destinada ao serviço do Ministério de Estrangeiros e Guerra” (Oliveira Lima:

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1908, p. 48). Contudo, dado o novo contexto, os prelos formaram a base instrumental da

Imprensa Régia no Brasil e, caso dessem conta de publicar todas as demandas das repartições,

também poderiam imprimir “outra obras, e derramar a instrução pública” (idem). Dentre essas

exceções estão os livros do baiano José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu (obras de cunho

econômico ou relativas ao sistema educacional), e alguns clássicos do Arcadismo, a saber, as

três primeiras partes de Marília de Dirceu, publicadas em 1810, e O Uraguay, de Basílio da

Gama, em 1811, além de obras de autores portugueses, sermões e traduções.

Se tivéssemos de nos ater à demarcação histórica sobre a literatura brasileira do século

XIX, encontraríamos em 1825 um dos primeiros registros estrangeiros acerca de uma

emergente literatura brasileira, embora possamos considerar a situação como formalidade ou

resenha encomendada. Trata-se do livro de estreia do comendador baiano Domingos Borges

de Barros, Poesias oferecidas às senhoras brasileiras, publicado em Paris, que recebeu nota

pelo Courier Français de 5 de janeiro de 1826, na qual se dizia que “os brasileiros em nada

cedem aos portugueses no talento poético e estudos literários”, o que poderia ser a indicação

de um talento promissor. No entanto, ao confrontarmos a crítica com a obra, apesar de não ser

exagero quanto em nada ceder aos portugueses, encontraremos uma obra mediana, sem

quaisquer talentos extraordinários, desenvolvida por um autor bastante indeciso sobre sua

nacionalidade ou sobre o que dizer de sua terra natal, lugar já distante de sua memória.

Dessa maneira, uma pergunta persiste: quando a história da literatura brasileira deixa

de ser considerada um apêndice da portuguesa? Por um lado, a tradição crítica, que por muito

tempo foi obcecada em definir uma data precisa, lançou-nos em um ufanismo inócuo, no qual

aceitamos a ideia de que Gonçalves de Magalhães tenha fundado o Romantismo brasileiro

com Suspiros poéticos, da mesma forma que aceitamos a ideia de que o Brasil seja um país

produtor de literatura desde sua descoberta, ou seja, concebemos toda a história luso-brasileira

de maneira distorcida. Se, por outro lado, ignoramos a questão, a tendência mais comum é

também ignorarmos que tenha existido algum período em que diversos intelectuais brasileiros

promoveram a formação de uma identidade nacional, isto é, a construção de uma sociedade

gradualmente independente da portuguesa, o que diminui a importância desses esforços, que

historicamente se configuram como o marco divisor entre um longo período de morbidez e

um significativo período de ascensão da literatura no país.

Após a elevação da colônia a Reino Unido ou mesmo após a independência, apesar de

o país estar devidamente equipado para divulgar conhecimento, ainda se demorava na questão

de existir conteúdo literário a ser divulgado. Foi às apalpadelas que a arte adquiriu algum

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espaço nos meios de comunicação. As províncias se aparelharam de prensas, mas estas

continuavam a ter como objetivo primário as informações militares e governamentais.

Cumpre-se notar que a censura esteve presente na primeira fase de expansão da imprensa

nacional, oficializada pelo decreto de 2 de março de 1821, ou seja, pouco antes da saída de D.

João VI:

Todo impressor será obrigado a remeter [...] dois exemplares das provas que se

tirarem de cada folha na imprensa sem suspensão dos ulteriores trabalhos, a fim de

que o diretor dos Estudos, distribuindo um deles a algum dos censores régios e

ouvido o seu parecer, deixe prosseguir na impressão, não se encontrando nada

digno de censura, ou a faça suspender, no caso unicamente de se achar que contém

alguma coisa contra a religião, a moral e bons costumes, contra a Constituição e

Pessoa do Soberano, ou contra a pública tranquilidade (apud Sodré: 1999, p. 83).

Como efeitos subsequentes dessa lei, apenas sobreviveriam os periódicos que

compactuassem com o governo, e não foram raras as vezes em que julgamentos foram feitos

de maneira subjetiva, visando eliminar os jornais da oposição. No entanto, por que a literatura

ainda permaneceria tímida por muitos anos, visto que, inclusive, seria uma ótima alternativa

para aqueles que quisessem disfarçar a insatisfação? Em palavras mais contundentes, se

realmente existia literatura brasileira antes do Romantismo, por que ela não apareceu logo

após o amplo acesso às prensas, principalmente nos jornais independentes que surgiram no

final da década de 1820?

Pelo que podemos constatar nos arquivos, a escassez de produção literária que se

estende até meados da década de 1830 é uma evidência de que, antes do Romantismo, a

literatura brasileira ocorria apenas de maneira esporádica, produzida em condições restritas,

sem grande alcance ou interesse popular. Contudo, complicando um pouco mais esse quadro,

alguns estudos demonstram que já existia um razoável número de leitores desde o início do

século XIX, e livros de poesia e romance eram parte desse universo.

Uma explicação possível é a de a censura portuguesa ter sido bastante rígida contra os

romances na segunda metade do século XVIII, devido à reforma pombalina, na tentativa de

conter o avanço de certas ideias iluministas em seus domínios culturais. Além das censuras

previsíveis, como os contos de Voltaire, diversos outros livros foram incluídos no índex

português durante o fervor de banir os jesuítas da formação portuguesa; mesmo alguns

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sermões fizeram parte das proibições. Livreiros que publicassem livros proibidos ou que

viessem a ser censurados tinham a produção confiscada, além de pagarem multa e correrem o

risco de terem suas oficinas fechadas. Em suma, o potencial dos romances de fazer crítica à

política e à religião já era bem conhecido, logo, era grande o risco de se ter uma obra

censurada e, portanto, não valeria o alto custo de produzi-la.

D. João VI não se preocupava demasiadamente com a educação de seus súditos, mas

desde antes de vir ao Brasil precisou lidar com essa deficiência, que obviamente prejudicava o

desenvolvimento do reino. Contudo, o regente percebia o problema de maneira indireta. Suas

principais atitudes se devem à necessidade de educar os exércitos brasileiros, estes que

serviram de primeiras experimentações educacionais, antes restritas aos métodos eclesiásticos,

que não foram de todo abandonados: como o clero era a classe mais erudita, continuou

cabendo a seus membros gerir o ensino. De qualquer maneira, há um nítido viés tecnicista

nessa reforma educacional. Por exemplo, a Academia de Marinha, fundada em 1808, tinha

como plano de estudos:

1º ano: arimética, geometria, trigonometria e aparelho. 2º ano: princípios de

álgebra até equações do segundo grau, inclusive; primeiras aplicações delas à

arimética; geometria (seções únicas); mecânica com aplicação imediata ao

aparelho à manobra; desenho de marinha e rudimentos sobre construção dos

navios. 3º ano: trigonometria esférica; navegação teórica e prática; instrumentos

de tática naval; continuação de desenho; rudimentos de artilheria e exercícios de

fogo; tática militar e artilheria prática (Primitivo: 1936, pp. 55-6).

Foi nesse contexto que o avô de Martins Pena, capitão-mor Francisco Martins Pena,

veio ao Brasil. Era professor, constituiu família no Arraial do Tejuco (atual Diamantina), em

Minas Gerais, e foi lá que nasceu João Martins Pena. Este recebeu educação básica na colônia,

mas o capitão Francisco, desejoso por construir um legado, enviou-o a Portugal para fazer a

Faculdade de Cânones.

Quando retornou ao Brasil, João precisou enviar diversos pedidos a fim de conquistar

um cargo no Judiciário, mas, ao que tudo indica, sua influência não era suficiente para

alcançar suas primeiras ambições. Depois de muitas tentativas, conseguiu tornar-se

desembargador e juiz do crime do bairro de Santa Rita, na Corte do Rio de Janeiro, uma

função parecida com a de um delegado, mas com certas atribuições de cunho fiscalizador. Em

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outras palavras, existia a obrigação de ir a campo sempre que assim o ordenassem, logo, João

Martins Pena teria de se expôr a situações de risco, evidenciando sua condição de cidadão

médio. Esse é o contexto em que o sisudo João Martins Pena encontraria Francisca de Paula,

sua futura esposa.

2.1 Infância através de regimes

Como Martins Pena nasceu em 5 de novembro de 1815, pode-se dizer que veio ao

mundo nos últimos dias de Brasil Colônia, embora a Corte portuguesa tivesse aportado no

país alguns anos antes e seus membros estivessem devidamente acomodados nas melhores

residências, sob o emblemático carimbo PR (Príncipe Regente). Com apenas um mês de vida,

em 16 de dezembro, o recém-nascido já não estaria numa colônia, mas no Reino Unido de

Portugal, Brasil e Algarves. Foi sob essa denominação patronímica que o pequeno brasileiro

passou seus primeiros anos educacionais, a formação conhecida como Primeiras Letras.

A educação no Brasil era administrada, desde sua fundação, pelas pessoas e diretrizes

da Igreja Católica. A cooperação entre Igreja e Estado não consiste nenhuma novidade, mas,

por diversas razões, as particularidades dessa ligação ainda recebem interpretações pouco

consistentes. A religião católica não era apenas a oficial do Brasil, mas também a principal

instituição a formalizar a existência de seus cidadãos, a ditar condutas morais, a preencher

cargos públicos – professores, juízes, deputados –, entre diversas outras funções. Sem

surpresas, o documento que oficializa a existência de Luiz Carlos Martins Pena é o registro

batismal, constante nos códices da Igreja de Nossa Senhora da Candelária.

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(Fonte: Arquivo Nacional).

Como podemos constatar, o assento do batismo é bem detalhado, o que indica certo

grau de importância dos familiares do recém-nascido, especialmente do pai, embora essa

importância não fosse comparável à da nobreza. Por meio desse registro, podemos afirmar que

Martins Pena nasceu na Rua da Quitanda, numa das casas de seu pai, que, ao que tudo indica,

era dono de uma pequena vila, na qual também existia uma capela, onde o menino foi

batizado. Seus padrinhos foram Luís José de Carvalho e Melo e Ana Vital Carneiro da Costa,

futuros visconde e viscondessa da Cachoeira.

A história dos pais de Martins Pena, João e Francisca de Paula, é tragicamente curta.

João chegou à Corte em 1813 e assumiu o cargo de juiz do crime de Santa Rita no mesmo

ano. Embora não tenhamos como saber quando conheceu Francisca de Paula, o namoro foi

breve, levando-os ao casamento no primeiro dia de fevereiro de 1814, no oratório da baronesa

de São Salvador de Campos de Goytacazes. Não demorou muito para Francisca dar à luz a

primogênita Carolina, em treze de outubro. A irmã mais velha de Martins Pena foi batizada

em dezembro, no oratório da casa de seu avô materno, sendo ele e a baronesa os padrinhos.

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Em poucos meses, Francisca se encontraria grávida de seu segundo filho. Enquanto ela

cuidava da maternidade, João prosseguia em sua rotina de trabalho. Entre os registros que

encontramos sobre as atuações do juiz, destacam-se dois ofícios, ambos expedidos pelo

intendente Paulo Fernandes Viana. O primeiro, em 21 de agosto de 1815, autorizava “que os

meninos brancos e pardos de 8 a 12 anos ‘que andam como vadios’ fossem ‘aproveitados’

para as fábricas”. Ao menos também se dizia no ofício que os pequenos presos seriam

encaminhados às escolas públicas. O segundo se trata da última atribuição conhecida. No dia

16 de fevereiro de 1816, o intendente incumbiu João de inspecionar todas as novas obras de

seu bairro, o que o obrigaria a visitar os canteiros e se certificar de que “os alicerces e paredes

são feitos com a segurança, e direitura conveniente, e com os maçames competentes, e

ordenar as emendas que se deverem praticar”.

Após quatro meses de inspeções cotidianas, João Martins Pena contraiu uma

“acelerada febre biliosa” que o matou no dia 13 de julho de 1816. Em termos de medicina

atual, provavelmente significa ter contraído malária. Na época, ninguém estaria a salvo desse

mal no Rio de Janeiro. Contudo, pessoas que frequentavam canteiros de obras sempre

estiveram mais suscetíveis à doença, tanto que ainda hoje são lugares que necessitam de

cuidados específicos.

Com o súbito falecimento de João, a família de Martins Pena teve de encontrar um

novo rumo. No Arquivo Nacional, encontramos o requerimento de Francisca de Paula para se

tornar tutora de seus filhos, o que foi aceito em maio de 1818. É nesse contexto familiar que

Luiz, então com dois anos de idade, passaria sua infância.

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Diz Francisca de Paula Julieta Pena, viúva do desembargador João Martins Pena, que lhe

ficaram dois filhos, cujos nomes Carolina e Luiz; e, por isso, que a suplicante tem capacidade

para administrar suas pessoas e bens, e se conserva no estado de viuvez. (Fonte: Arquivo

Nacional).

2.2 Aula do Comércio e a ementa experimental

A Aula do Comércio da Corte era parte do sistema educacional português desde a

reforma pombalina. Inaugurada em 1759, equivaleria ao ensino secundário e seu objetivo seria

“desenvolver uma poderosa classe nacional de homens de negócios com recursos e

competências empresariais necessários para desafiar os seus concorrentes estrangeiros”

(Maxwell: 1995, p. 160), ou seja, instruir os grandes empreendedores portugueses, de maneira

que não fossem enganados em negociações internacionais. Contudo, sua função foi ampliada

alguns anos após suas turmas iniciais. O Marquês de Pombal, que coordenava com particular

zelo a grade e a bibliografia desse curso, determinou que a formação passaria a ser exigência

para diversos cargos públicos. Dessa forma, a Aula do Comércio se tornou não apenas lugar

para se instruir em atividades comerciais, mas principalmente para receber uma formação

institucional.

Décadas depois e do outro lado do oceano, precisamente em janeiro de 1832, Martins

Pena daria um grande passo em sua trajetória profissional, ao ser inscrito no curso. Até então,

o adolescente já havia cursado diversas disciplinas da educação primária, além de manter

estudos de forma autodidata, mas essa formação seria de pouco peso para qualquer projeção

pública. Tanto o talento e a avidez de estudos do rapaz quanto a perspectiva de ingresso nos

cargos administrativos foram relevantes para que seu tio e tutor, José Antônio da Costa

Guimarães Filho, viesse a requerer e pagar ao menos 3.600 réis (1.200 pelo registro de

provisão e 2.400 por assinaturas oficiais) na inscrição de seu tutelado.

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(Fonte: Arquivo Nacional).

Conforme podemos conferir na carta, que é notavelmente sintética quando comparada

a outras de mesmo teor, a intenção de participar das aulas teria partido do próprio Martins

Pena, então com dezesseis anos. Acreditava-se que o tutor o teria enviado com o intuito de

que ele pudesse seguir a carreira de negociante, o que talvez não seja verdadeiro, pois, à

revelia do título, o principal intuito da Aula do Comércio, em 1832, já não era formar

comerciantes, mas qualificar funcionários públicos para as mais diversas funções. Basta

termos em mente que Portugal foi uma nação centrada na atuação mercantil, para

entenderemos a concomitância entre comércio e funcionalismo público. Ao verificarmos o

destino de alguns dos outros alunos desse curso, como Joaquim Norberto de Souza, podemos

constatar que não era incomum que seus alunos tivessem carreiras mais exitosas que a de

caixeiro, pois muitos deles seguiam dali para a carreira pública ou militar.

O processo de inscrição transcorreu normalmente. A 24 de janeiro de 1832, o

documento recebeu as assinaturas oficiais. Em seguida, o deputado e inspetor efetivo (cargo

equivalente a diretor) da Aula do Comércio, José Antonio Lisboa – matemático e filósofo

formado em Coimbra, que chegou a ser ministro da Fazenda em outubro de 1830, mas se

retirou com apenas um mês de exercício por discordar de Pedro I –, repassou a informação ao

professor Simpliciano José de Souza. Este examinou o candidato “nas preliminares marcadas

pelos estatutos”, considerando-o apto para o curso e reencaminhou a requisição para novas

assinaturas. Em 20 de fevereiro, o processo de provisão de matrícula estaria concluído e o

aluno, autorizado a frequentar as aulas, iniciadas no primeiro de março, às 8 horas.

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Ao sair da casa do avô na Rua do Cano em direção à Rua da Cadeia naquela manhã de

quinta-feira, o jovem Martins Pena poderia, enfim, iniciar sua fase de estudos, que seriam,

contudo, os dois últimos anos de sua educação formal. Quaisquer que fossem as intenções de

seu tutor ao apoiá-lo, já existia a certeza de que ele teria de sair de lá para o trabalho, ou seja,

seria esse o ponto em que sua trajetória educacional tomaria um rumo diferente da que seu pai

obtivera. O que não sabiam é que, embora o rapaz já desse mostras de talento artístico, esse

caminho adverso acabaria conduzindo seu nome para a história do teatro brasileiro. Em meio

aos sessenta jovens que se reuniam na casa do professor Simpliciano, poderíamos dizer que o

futuro autor estava diante de sua primeira plateia.

Considerando-se que o regulamento do curso tenha sido respeitado ao menos no

primeiro dia de aula, ao chegar à casa de seu professor Martins Pena se anunciou ao porteiro e

foi dirigido à sala, tendo seu assento designado pelo professor. Após o grupo ter sido

acomodado, o lente substituto, Francisco José dos Santos Rodrigues Filho, responsável pelas

aulas do primeiro ano, tomou a palavra e pediu a atenção de todos para comunicar as regras de

conduta, cujo discurso assim se iniciava:

Determinações particulares para o governo econômico da Aula do Comércio

ordenada pela Junta para a conservação e boa disciplina da mesma Aula.

1a Observar-se-á o maior decoro e silêncio em todo o tempo da aula, e nenhum

dos discípulos desta poderá mudar-se do banco ou assento que lhe for assinado

sem expressa licença do lente.

2a Durante o tempo da lição, os praticantes porão em muito cuidado não sair fora

da aula enquanto outro estiver fora, ao menos que a necessidade os obrigue.

3a Nenhum dos praticantes se poderá demorar na entrada, ou passagem para a casa

da aula, e muito menos na rua ou lojas da sua vizinhança, pena de que fazendo o

contrário, será pela primeira vez advertido, pela segunda repreendido e pela

terceira expulso da aula.

E assim por diante, elucidando-se as regras de conduta, penalidades no caso de faltas,

expulsão para “os que cometerem culpas de maior escândalo, como dar pancadas, armar-se ou

dispor-se para brigas, usar navalhas, facas, espadins etc., ou que mutuamente se ofenderem

com palavras”, até a 11ª determinação, que dizia que o professor leria essas regras todos os

meses, “para que não se possa pretender em tempo algum a desculpa a título de ignorância

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destas determinações”. Não muito diferente de como se poderia imaginar um sistema de

ensino conservador, bastante comum até meados do século XX, exigia-se comportamento

exemplar dos alunos em questões de traje e de maneiras, assim como, teoricamente, não era

permitido que ficassem conversando durante as aulas ou na entrada do edifício. Francisco José

era o lente detentor de conhecimento e, aos discípulos, cabia uma postura passiva e respeitosa.

Ao observarmos essa questão por outro viés, é preciso levar em conta que se trata de

regras estabelecidas em 1767, ou seja, que remetem à fundação da Aula do Comécio em

Portugal, o que a princípio não impediria que fossem cumpridas, mas que certamente

contavam com pequenos ajustes à realidade daquela aula de 1832. Apesar de tais regras

claramente cercearem as interações entre os estudantes, não se poderia evitar que eles

tivessem certo convívio, fosse em atividades em grupo, fosse em atividades extracurriculares.

A intenção seria evitar que gazeteassem aulas e estabelecer regras de decoro, mas o controle

sobre eles não se estendia para muito além da Rua da Cadeia. Portanto, apesar das exigências

convencionadas, existia um cenário favorável à sociabilização dos alunos.

Pelo que se pôde constatar na relação de objetos de 1847, utilizavam-se grandes mapas

nas lições, dedutivelmente nas de geografia. Também eram usados grandes bancos com

encosto e, em frente a estes, escrivaninhas, que eram compartilhadas por três alunos ou mais.

A disposição convencional desses itens não era como costumamos ver nas escolas; o mais

provável é que as mesas ficassem ao centro e os bancos nas laterais, da mesma forma que as

mesas de jantar. Duas ou três mesas dessas seriam necessárias para acomodar a todos. Numa

das pontas estaria o púlpito do professor e outros aparatos de ensino. Assim normalmente

aconteciam as aulas: o lente presidia a mesa e os alunos, todos ao alcance de seus olhos,

realizavam as tarefas designadas.

A turma de Martins Pena foi marcada por algumas particularidades, o que a torna

especial em diversos aspectos. Foi uma das últimas turmas que contou com a presença de José

Antonio Lisboa como inspetor. Também foi uma das primeiras turmas oficialmente lideradas

por Simpliciano José de Souza, este que havia se formado no mesmo curso dez anos antes.

Finalmente, seria a mesma turma na qual ingressaria o sucessor de Simpliciano, João Caetano

da Silva, que não pode ser confundido com o ator João Caetano dos Santos.

O ensino da Aula do Comércio, que inicialmente era dividido em três anos, foi

reduzido a dois exatamente na oitava turma, ou seja, na vez de Martins Pena e João Caetano

da Silva. No primeiro, reforçava-se os conhecimento de aritmética e álgebra, além de estudos

em língua francesa, regra conjunta e desenho geométrico. O segundo ano concentrava as

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disciplinas ligadas à atividade comercial, como o estudo de leis, câmbio, geografia,

escrituração, redação de letras comerciais, além de estudos básicos em língua inglesa.

Anteriormente, os estudos acerca dos cálculos e línguas eram mais extensos, além de serem

oferecidos alguns conhecimentos avançados sobre leis. No curso de dois anos, essas matérias

foram reduzidas. No caso do ensino das línguas, as aulas seriam compactas, encarregando-se

os alunos de finalizarem as lições em casa. Em diversos aspectos, portanto, a turma de 1832

seria diferenciada, pois teve caráter pioneiro e experimental.

Contudo, nem tudo seria novidade no curso, e a principal permanência se deve à

bibliografia utilizada. Por exemplo, o ensino de aritmética, que ocupava grande parte dos

estudos do primeiro ano, ainda era regida pelo livro de Bézout, sistema utilizado desde que

Pombal mandara traduzi-lo para o português. Todos os alunos deveriam comprar seus livros,

pois a lousa na casa de Simpliciano, feita de pedra de ardósia, era pouco utilizada, servindo

apenas para algumas demonstrações de fórmulas ou resolução de cálculos. O principal método

de ensino era a leitura no púlpito. Todos tinham papéis e penas para tomar notas e praticar

exercícios, a começar pelas quatro operações, como podemos conferir na descrição feita por

Wagner Rodrigues Valente acerca do livro de Bézout:

Os números e as quatro operações fundamentais ocupam cerca de oitenta páginas

onde estão itens como, por exemplo, “da adição dos números inteiros e das partes

decimais”, provas das operações, “da multiplicação por um número de vários

algarismos”, “alguns usos da multiplicação” etc. Bézout alerta no Prefácio que a

seus leitores só deseja que “conheçam o nome dos números e algumas ideias

muito familiares sobre as quais estabelecerá os princípios da numeração”. É neste

tema que será colocada, para abreviar as multiplicações, a chamada Tábua de

Pitágoras, precursora de nossas famosas tabuadas (2007, p. 83).

Na hora da resolução dos exercícios, ficavam evidentes as diferenças existentes no

sistema educacional brasileiro, mesmo que, no caso, todos ali fossem cidadãos livres e

estivessem em classes sociais semelhantes. Alguns teriam se dedicado mais tempo aos

estudos, outros teriam educação mais regular ou de maior qualidade, porém os menos

afortunados também estavam por ali. O professor passava entre eles para verificações

individuais e identificava os pupilos mais dedicados e talentosos. Dessa forma, poderia

melhor organizá-los no sistema de ensino mútuo, colocando os estudantes mais dotados

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próximos aos que tivessem mais dificuldades, de modo que o conhecimento de um pudesse

ser útil às necessidades do outro. Como a indisciplina era severamente punida, tal atitude era

útil a ambos os alunos, pois os que tivessem menos conhecimento tinham a chance de

aprender com seus vizinhos e os mais habilidosos poderiam treinar técnicas de ensino com

eles.

O jovem Martins Pena não era um gênio da matemática, mas sua experiência com

leituras e, principalmente, com a língua francesa, deve ter chamado a atenção do professor

logo nas primeiras aulas, o que o colocaria numa posição de poder auxiliar alguns colegas. De

fato, como as lições de francês eram resumidas e cabiam aos alunos progredirem nos estudos

em casa, o mais provável é que alguns contassem com a ajuda de Martins Pena fora da escola.

Junto a seus novos colegas, encontraria a oportunidade ideal para exercitar seus primeiros

lampejos artísticos, ensinando técnicas de escrita antes de se tornar um escritor assíduo.

A Quarta-Feira de Cinzas de 1832 ocorreu logo na segunda semana de aula, no dia 7

de março. No entanto, esse deve ter sido um dos anos mais tímidos da tradicional festa de

carnaval carioca. A brincadeira do entrudo, na qual as pessoas arremessavam frutas e bolas de

cera recheadas com água perfumada nos transeuntes, estaria proibida por decreto, sob pena

“de dois a doze mil réis e não tendo com que satisfazer, sofrerá de dois a oito dias de cadeia”

(DRJ, 29/02/1832, p. 1) para quem o jogasse no município da Corte. Ao que tudo indica, os

alunos da Aula do Comércio correram poucos riscos de serem vítimas das águas perfumadas

nesses primeiros de carnaval, mas talvez não estivessem tão felizes de serem privados de um

dos poucos divertimentos da capital. Pensando nessa possibilidade, o livreiro Émile

Seignot-Plancher publicou o seguinte anúncio:

Como não há licença para brincar com limões, e o Entrudo este ano é muito triste,

bom é passá-lo mais alegre com o N. 18 do Simplício da Roça, e seu suplemento,

o qual além de um artigo sobre o Simplício Velho, e ano bissexto, traz uma notícia

da festa de S. Simplício celebrada na Roça em 2 do corrente, [...] e um lunduzinho

cantado dessa ocasião por uma roceira de bom gosto: mandem pois todos afinar a

rabeca, ou a viola para cantar e dançar este lunduzinho bem puxadinho: e para isso

vão comprá-lo em casa de E. Seignot-Plancher. Preço 80 reis (DRJ, 04/03/1832,

p. 2).

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Principal meio de comunicação à época, sendo amplamente acessado por toda a

comunidade letrada, os jornais e impressos estavam à disposição dos estudantes da Aula do

Comércio. O Diário do Rio de Janeiro, jornal em que foi publicado este anúncio, era de

grande circulação no início da década de 1830, logo, seja pelo contato direto ou indireto com

o anúncio, os jovens tomaram conhecimento dele.

Não era permitida aos alunos a perambulação pelas ruas e bares da vizinhança, mas a

livraria de Émile Seignot-Plancher, situada na Rua do Ouvidor, não era tão próxima que os

pusesse em risco e nem tão distante que não se pudesse alcançar em menos de quinze minutos

de caminhada. Portanto, configura-se um dos lugares ideais para a reunião de alguns deles, no

caso, daqueles que mais gostavam de ler e interagir, entre os quais estaria o futuro

dramaturgo, que morava bem próximo ao estabelecimento. Afinal, como os jovens estudantes

poderiam ser repreendidos por estarem consultando livros e jornais?

A livraria de Seignot-Plancher era frequentada por pessoas de boa reputação e os

jornais produzidos por ele eram dotados de uma característica especial. Os Plancher, Pierre e

seu filho Émile, obtiveram a proteção de D. Pedro I para produzir no Brasil e eram

particularmente bem relacionados com a família real. Por conseguinte, podemos notar que as

obras publicadas ali passavam ao largo de qualquer crítica ao monarca e, excluindo-se nesse

ponto de vista em que comungavam, havia uma frutífera liberdade de expressão, como se não

existissem receios no que se refere a publicar algumas ideias um pouco mais hostis à moral e

aos bons costumes.

Como define Sodré, a “imprensa definia-se quanto à orientação, nos três campos, o dos

conservadores de direita, embalados no sonho da restauração, o dos liberais de direita, que

faziam papel de centro, e o dos liberais de esquerda” (1999, pp. 122-3). Em termos vulgares

da época, caramurus, ximangos e jurujubas. A tipografia de Émile se direcionava ao público

ximango ou, em termos não vulgares, moderado, aqueles que compactuavam inteiramente

com o poder vigente. Para se ter certeza disso, basta verificar que a maioria das publicações de

Plancher desse período era composta por relatórios oficiais e discursos de senadores e

deputados. Por outro lado, sua livraria não se restringia a nichos políticos, propondo-se a

vender as peças de todas as orientações partidárias legais.

Embora se resguardasse com um grande número de obras sérias, a tipografia de

Seignot-Plancher fez uma aposta no gênero cômico, o que a diferencia no meio dos

costumeiros jornais políticos que dominavam o mercado. Enquanto a maioria dos jornalistas

se concentrava num discurso sisudo, ora limitando-se à linguagem referencial, ora imitando os

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dizeres de assembleia, com poucas licenças ao cômico, O Simplício da Roça era centrado no

entretenimento ficcional, deixando o discurso político para as entrelinhas e os espaços

secundários, ou seja, o inverso do que se praticava comumente. Quando procedemos à sua

leitura, compreendemos que se trata de uma publicação direcionada à mocidade, evitando-se

qualquer confronto ou menção ao poder, este que estaria sob controle dos regentes.

Na verdade, quando Émile lançou O Simplício da Roça, uma de suas intenções era

suprir uma demanda de mercado iniciada pelo seu antecessor, O Simplício, periódico lançado

em janeiro de 1831 na tipografia do Astrea, coordenada por Antônio José do Amaral,

professor de matemática da Academia Real Militar. Logo em seu primeiro número, o redator

lança a seguinte formulação: “A política aparecerá nesta Folha assim como aparecem os

bobos nas bodas; já se sabe, galanteios graçolas, e nada mais” (08/01/1831, p. 1). Em meio a

tantos jornais majoritariamente focados no discurso político, cada um deles exaltando suas

posições partidárias, O Simplício inaugurou outra forma de fazer jornalismo no Brasil.

Contudo, apesar de seu interessante sucesso, suas publicações eram bastante irregulares,

deixando leitores ansiosos. A fim de lucrar com essa demanda, Seignot-Plancher inaugurou

O Simplício da Roça em novembro do mesmo ano, o qual propunha não apenas regularidade

semanal, como também doses mais fortes de humor.

Quando Martins Pena e seus novos amigos entraram na livraria de Plancher e

adquiriram o número 18 de O Simplício da Roça, depararam-se com as dez páginas mais

engraçadas publicadas no Brasil àquela semana. Com efeito, podemos considerar que o

redator estivesse inspirado na ocasião, sobretudo porque sua veia cômica já era

constantemente agradável. A publicação se iniciava com uma suposta preocupação a respeito

da ausência de seu antecessor:

Que estará fazendo o Simplício Velho que há tempo não tem brindado o público

com seus graciosos escritos? Esbarrou com o N. 10, e ali ficou: terá ele medo de

passar pelo N. 11, e de ter ali alguma travessura que faça do 11 um P grego,

parecido com o da Prainha? Ou algum mandado de sobrinha terá imposto silêncio

a esse tio? Depois de certo dia em que reconheci a certo indivíduo mascarado

(ainda que eu não tenha declarado o nome dele) recolheu-se aos bastidores, e

meteu-se em copas, como se na rua do Ouvidor não houvesse mais modas e

Modistas, e como se os Petimetres e as Tafulonas deste hemisfério tivessem

tomado juízo, e não aparecessem mais por aí nem pentes, nem mangas de giganta

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Amiota, e penteados de chouriços encaracolados, que dão às cabeças a forma de

bustos compridos. Muita gente há que sofre de saudades pela aparição de algum

dos escritos deste raro novelista, que é de admirar tenha deixado passar o mês de

fevereiro sem dar ao público a interessante notícia de que o mesmo era de 29 dias

por ser ano bissexto. Como ele não fez isso eis aqui o Simplício da Roça que é

Vigário Geral de Sua Excelência Simplicíssima, a preencher as funções deste

digno Pastor, que talvez anda visitando as igrejinhas e Capelas da Moda da sua

vasta diocese, e por isso não tem tempo de escrever pastorais contra o luxo, que

recomendem a temperância e o jejum, a respeito das tafularias estrangeiras.

Eis aqui pois, meus caros fregueses, o Simplício da Roça com toda a autoridade

qua fungor para fazer tudo quanto Simplício Velho fazia, exceto a faculdade de

fazer Simplícios e de batizá-los, pena de excomunhão maior e de interdito na

afluência do dinheiro para a gaveta (SDR, 04/03/1832, p. 1).

É interessante notar que o redator não faz nenhuma cerimônia de desentendido por

estar deliberadamente se aproveitando da demanda gerada pelo seu antecessor. Pelo contrário,

utiliza a situação como introdução humorística. Devido à regularidade, O Simplício da Roça

já havia ultrapassado O Simplício em número de publicações e, certamente, em arrecadação. O

aproveitamento do nome e da temática não era nenhum problema. Como podemos conferir no

texto, a única atividade ilegal seria publicar uma obra com o título idêntico, o que

caracterizaria invasão de propriedade intelectual. Curiosamente, a ideia de Plancher se

propagou quando, em fevereiro de 1832, lançou-se A Mulher do Simplício ou A Fluminense

Exaltada, um períodico escrito em versos e sem grandes intenções humorísticas, pois sua

fórmula inicial seria passar ideias políticas para o público feminino por meio da forma

poética. Embora os periódicos não compartilhassem da mesma visão partidária, os jornais

interagiam e coexistiam, tanto que ambos poderiam ser adquiridos tanto na livraria de

Plancher como na de Paula Brito: pequenos desacordos não eram vistos como impedimentos

aos negócios dos livreiros, que se cumprimentavam como colegas de profissão.

Conforme publicado no anúncio, a principal matéria do número 18 era sobre a festa

realizada em homenagem ao dia de São Simplício. Esta ocupa sete das dez páginas da edição,

sendo que as duas últimas concentram os versos das músicas. A narração, de tom

predominantemente satírico, se preocupa em escarnecer de todos os participantes da festa, o

que inclui o próprio narrador-personagem.

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O Simplício Velho, enquizilado com os chinós e por causa do calor, não quis

cobrir a cabeça nesse dia, e preferiu aparecer com a sua careca lisa como uma

abóbora, como venerando patriarca da geração de graciosos. Eu também,

lembrado do caso de D. Alvíssima, nada quis saber de cabeleira que não fosse

minha, e fui penteando e puxando os poucos cabelos que tenho detrás para cima e

para os lados, e os amarrei por diante no meio da testa, fingindo ali um caracol

que me assemelhava a um galo com a crista. O Simplício Poeta estava todo

frisado com um tupé de cabelos muito ensebados, que surgiam direitos sobre a sua

testa como os espinhos de um ouriço, e divergiam pelos lados como os raios do

sol, simbolizando o estro poético que lhe saía de todas as partes, da cabeça

original de que é dotado. O Simplício Músico como herói costumado a pisar os

tablados do teatro, trazia uma cabeleira feita de estopa, e arranjada à la narcise

com a qual já representara uma vez o Conde de Almaviva no Barbeiro de Sevilha.

Ele era de nós todos o mais galante (SDR, 04/03/1832, p. 5; grifos do autor).

A ideia de reunir os Simplícios na organização e decorrer da festa, além de ser um

tema agradável que adiciona dinâmica à ação, com vários personagens que dispensam

descrições detalhadas, pois evocam suas referências na intertextualidade, também é de caráter

pioneiro na literatura jornalística brasileira. Embora já existisse um certo costume de se

utilizar os nomes dos outros jornais (por exemplo, na página 4 da Aurora Fluminense de

23/03/1830, há o seguinte ataque a um periódico rival: “O Imparcial chama ao redator do

Jornal do Commercio – pau de cabeleira de todos os partidos; e o Imparcial [...] nunca

pertenceu senão a um partido – o da recolonização”), a personificação dessas metonímias era

tão incomum quanto a presença de ficção em periódicos.

Vale notar que a intertextualidade do trecho não se restringe à menção de seus

periódicos patrícios, abrangendo também a referência ao Barbeiro de Sevilha, obra-prima de

Rossini já bem conhecida à época, e a intertextualidade com o próprio periódico ao citar a

Dona Alvíssima das Negras Saudades, esta que desempenha um papel central nos números 13

e 14, o primeiro completamente dedicado a questões capilares. O Simplício da Roça se

considera um amaldiçoado por ser calvo, tanto que, na introdução do número 13, diz que as

mulheres “judiam com a gente calva dizendo-lhe que é parente do Diabo” (SDR, 29/01/1832,

p. 1), o que remete a um dos conflitos de Os irmãos das almas. Dona Alvíssima seria a moça

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com que o Simplício roceiro, vestido com um chinó (peruca), tentou iniciar um namoro.

Porém, a história termina mal quando ela, propositalmente, quebra-lhe um dente frontal com a

portinhola e ainda lhe passa uma colônia fedorenta, o que seria a punição por ele querer

enganá-la com a cabeleira falsa.

Retornando à festa de São Simplício, podemos observar, durante a descrição da cena,

que o narrador se utiliza de um estilo constante e repetitivo. Primeiro indica um objeto, para

em seguida lançar um termo de comparação inusitado, investindo nos efeitos cômicos do

contraste e da quebra de expectativa.

Meia dúzia de portas velhas, arrancadas dos portais da casa, cobriam os tais

cavaletes, e cobertas com lençóis ornados com abertos feitos por dente de rato, e

bordado de remendões, formavam uma mesa mui linda e mui vasta, que parecia

um campo de neve caída ali no verão por milagre de Nossa Senhora sobre o monte

Carmelo. A brancura da louça ali competia com a da toalha, e para não escondê-la

aos olhos dos convidados, tinham-se suprimido os guardanapos, destinando a

estes para limpar os pratos, a fim do que eles viessem sempre mui asseados, ainda

que cheirando a peixe e água de cozinha. Várias cuias de cabaço, e de coco, e

balaios bem tecidos com folhas de lindas cores, estavam espalhados pela mesa

cheios de fina e branca farinha, como os areeiros nas mesas dos grandes tribunais,

e das aulas de primeiras letras. Meia dúzia de moringues novos de barro mui bem

trabalhado elevavam-se como torres, e castelos espalhados em uma grande

planície, e conservavam água fresca, e saborosíssima, que tinha todas as delícias

do lodo, qualidade muito apreciada pelos paladares mais finos de alguns dos meus

patrícios. [...] Algumas garrafas de vinho batizado com o título do Porto, e da

Figueira estavam ali num canto sobre uma pequena mesa, destinadas para a

grande saúde, enquanto uns garrafões da patrícia competiam com os moringues e

os potes d'água.

A mesa era um açougue, ou uma feira de carnes, tanto era farta. Leitões, porcos

inteiros assados, quartos de bois, perus e presuntos aos pares, frangos e patos às

dúzias em um só prato fartavam a gente somente com a vista (SDR, 04/03/1832,

p. 4).

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A tonalidade branda que o narrador impõe à descrição é um fator a mais para o efeito

cômico. Tanto os objetos quanto os paralelos são expostos como se não se pudesse distinguir

se há ingenuidade ou ironia no personagem que os verbaliza. A leitura desejosa de obter o

melhor proveito desse trecho provavelmente colherá um pouco das duas qualidades.

Ao término da descrição do banquete, segue-se a descrição dos anfitriões e dos

convidados, na qual as doses de chalaça aumentam e a ironia se faz menos sutil. Como num

desfile improvisado da Commedia dell'arte, a senhora Bernarda dos Prazeres e seu marido

Pancrácio Botija, a dona Maria das Dores acompanhada por suas filhas “com cara de semana

santa” (p. 6), a dona Catimplória Segarega, a dona Balofa, entre outros, são apresentados em

breves epítetos satíricos, a fim de fortalecer o efeito que os próprios nomes carregam.

Descrições curtas, mas talvez sem conseguir escapar de uma certa redundância.

Antes de o jantar ser iniciado, há um breve diálogo entre comadres:

– Como está minha sinhá. – Muito obrigado estou boa, e sinhó Mané como está? –

Está bom e muito gordo como sinhá está vendo. – E sinhá dona Maria como

passou? – Muito mal: estou com espinhela caída alojando a cada instante tudo o

que como. – Não seja outro mal. – Não pode ser. – Pois não isso mêmo: mande

chamá aquela muié que curou a sinhá dona Bárbara com mijo de criança e pioio

de gente. – Não gosto de tomar remédios, o Surjão me recetou outro dia um sá de

putassa, que eu eu não quis tomá porque achei esse nome muito feio. – Fez muito

bem: receitar putassa a uma senhora de bem! É desaforo (p. 7).

Existe uma evidente preocupação em transcrever o dialeto roceiro de maneira

estereotipada, um ingrediente de humor muito bem conhecido. Seguem as anedotas do jantar,

que vão desde o fato de comerem com as mãos até o problema de algumas mulheres não

estarem conseguindo digerir devido aos espartilhos apertados. Por fim, após longos brindes a

cada um dos convidados e a “S. Simplício e a toda a sua ascendência”, começa a sessão de

música com o Simplício Poeta e uma senhora que “cantou um lundunzinho que se dançou

puxando todos de sua fieira” (p. 8), canção que se inicia com a seguinte quadra: “Farroupilhas

não me xinguem / Se não gosto de Exaltados: / Tem rompantes que não valem / Os quindins

dos Moderados” (p. 9). Apesar de ser conhecida a inclinação política do periódico, versos tão

explícitos não eram frequentes e, de certa forma, destoam do restante do conteúdo.

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Vale ressaltar que o número 18 de O Simplício da Roça realmente foi especial. O

desempenho do redator teria alcançado uma qualidade excepcional nessa edição, que possui

muitos atrativos para o deleite do público. Martins Pena e seus amigos da Aula do Comércio

devem ter se divertido bastante com esse pasquim, cuja leitura talvez possuísse alguns ares de

entretenimento proibido, visto que o nome do professor era Simpliciano. Uma coincidência

muito atrativa.

Outro indício de que o número 18 tenha sido um sucesso é o fato de, em 29 de março,

O Simplício, dito velho, ter lançado seu décimo primeiro número, no qual o redator se

desculpava pela “dieta” de publicações. Ao analisarmos o restante do conteúdo, podemos

especular que o autor de O Simplício não tivesse mais tempo para a produção jornalística, o

que lhe seria mais um divertimento do que um negócio. Após a breve introdução,

praticamente todo o conteúdo das cinco páginas consiste em anedotas e críticas às modas e

aos costumes dos trabalhadores e do povo da roça. A mais interessante consiste na descrição

de uma festa de batismo:

Um lavrador, que costuma deixar a sua lavoura em desarranjo, os escravos à

matroca e o feitor nas conquistas do amor, para pensar em tafularias e intrigas

políticas, [...] foi servir de padrinho do filho dum desses pobres jornaleiros, que se

creem felizes tendo por compadres um fidalgo, o senhorio das suas casas, o juiz da

sua aldeia, ou os filhos dos ricos proprietários (já se sabe gente limpa, que muitas

vezes suja) e com efeito o bródio esteve de espavento, porque o pobre papae teve

a feliz lembrança de vender uma escrava com sua cria, a quem os justos zelos da

Snra. haviam reduzido desumanamente a um triste esqueleto: (não querem crer

que homem sonso e mulher ciumenta não são coisas que se invejem!) os

convidados foram em tão grande número, que não havia mais a desejar, e

enquanto uns criticavam dos outros (brincadeira), começaram as meninas a

participar umas às outras as modas que tinham mais aceitação e os namoros que

haviam começado na primeira dominga da quaresma, enquanto o pregador

ralhava com os surdos ouvintes: algumas senhoras também, por não se finalizar a

conversa, fizeram ver: uma, as gracinhas do seu Lulu, que ainda bem não tinha

ano e meio, já mandava o pai à fava; outra gabava as bondades do Sr. Manoel,

porque ia todos os dias à Rua do Ouvidor tirar com o lápis o desenho dos trépas e

comprar galanterias; e finalmente aquelas que sabiam dar valor somente àquilo

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que é útil e proveitoso, versavam sobre economias, educação dos filhos, e mesmo

sobre os fáceis que há, para as senhoras se adornarem sem entregarem aos

estrangeiros o custoso suor de seus pais ou maridos (eis aqui as verdadeiras

brasileiras; são estes os encantadores feitiços dos homens de bem: quem possui

tal tesouro deve saber o gosto que tem morar no céu!). Aprontou-se a mesa com

fanfarronadas alheias, sentaram-se todos: daí a pouco, depois de se ouvir muitas

vezes – Senhora comadre lá vai à saúde de quem estima a minha comadre – Vá,

meu compadre, à dita – levantou-se um velho sebastianista, desses que acodem

aos vexames dos desgraçados com dinheiro a dois por cento, já se sabe, em

atenção ao sentimento que lhe causa os infortúnios do seu próximo; e pegando no

copo disse, dirigindo suplicantes vistas ao céu – Senhores, lá vai à saúde de quem

há de dar licença para pôr esta menina num convento, logo que tenha idade! Vá,

vá, responderam alguns, e o pai saltando de contente, gritou para todos ouvirem –

esta é de virar! – resultando afinal, que durante o resto da brincadeira ouviam-se

por toda a casa gritos, e mais gritos – freirinha vai freirinha vem. –

E que tal, Leitores! por uma parte rapazes ainda cheirando aos coeiros afirmam

que se eles governassem haviam fazer e acontecer, redundando tudo em uma

bem-aventurança de felicidades; e por outra um hipócrita recrutando um pobre

anjinho, logo depois de batizado, para o templo da virtude encarcerada! e há

paizinhos tão romanos, que não descansam enquanto não obtêm o consentimento

duma filha ou filho para se despegarem das coisas do mundo, como se os

conventos fossem coisas do céu! e para provar que não estamos em tempo de

acreditar que nas clausuras vegeta melhor a virtude, basta mencionar a resposta

dada por uma preta velha, que estava no tronco perto do oratório, recebendo

chicotadas da senhora, também preta, por não querer entoar o terço – Sinhá, disse

ela, gente prezo não póde rezá direito! (29/03/1832, pp. 4-5; grifos do autor).

O texto, embora apresente alguns problemas estilísticos, como a pontuação confusa ou

o papel que o narrador exerce nos parênteses, é merecedor de apreciação, principalmente na

construção de um significativo conjunto de imagens invariavelmente carregadas de acidez

satírica, em que somente a recém-nascida parece ser poupada, por ser considerada uma vítima.

A produção ficcional que, nos primeiros anos da década de 1830, elegia a roça

brasileira como um atraente palco humorístico, iria causar um profundo efeito em Martins

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Pena. Essas maneiras de escrever, diferentes de tudo o que ele havia lido nos romances e

jornais costumeiros, seriam o estopim para fazê-lo ruminar algumas ideias, dando-lhe as

primeiras soluções de como fugir do caminho burocrático que estava sendo planejado para ele.

A cada novo dia de aula na Rua da Cadeia, sua motivação crescia e seu projeto literário se

desenvolvia melindrosamente.

Concentrado, contudo, em suas lições da Aula do Comércio, a vida prosseguia pacata,

entre exercícios de aritmética, desenho geométrico, equações e regra conjunta. É muito

provável que a aula de francês fosse muito aguardada, pois, apesar de ser compacta e de não ir

muito além do que ele já conhecia da língua, era o momento de Martins Pena dar as melhores

mostras de seus saberes. Ainda se estava longe do momento de frequentar teatros ou passar

dias escrevendo ficção; porém existia a chance de se exercitar a sociabilização entre colegas e

de passar algum tempo nas livrarias, antes de voltar para a casa do avô e se preparar para um

novo dia de estudos.

A quantidade de feriados no Brasil era bastante generosa, e em 27 de março se entrava

num longo recesso de quaresma, que se estendia até o dia 11 de abril. Por isso, com menos de

um mês de aula, já havia um longo período de férias, que deveria ser aproveitado

moderadamente, visto que se tratava de um período religioso em que a abstinência seria a

palavra de ordem.

O dia 3 de abril, por sinal, não teria sido bom para se estar nas ruas da capital, pois

houve um pequeno levante militar a fim de tomar o poder e devolver a coroa a Pedro I.

Durante a madrugada, a família de Martins Pena e sua vizinhança foram acordadas com sons

de alerta, pelo que podemos deduzir do relato de David da Fonseca Pinto, no jornal

Caramuru:

Às duas da noite as matracas romperam o alarme, a guarda nacional esteve em

armas, até que, ao amanhecer, não se tendo verificado nada, se dispersou; mas

então se ratificou meu juízo sobre o estratagema do governo: dentro em pouco,

porém, vi passar pela minha rua (Lapa do Desterro) uma porção da tropa,

comandada por um major fardado e com um chapéu de palha, [...] que se diz ser o

Major Frias (09/04/1832, p. 1).

Interessante perceber que essa declaração vem justamente do líder jornalístico dos

restauradores, a quem não convinha ter sua imagem associada a rebeliões. Contar com a

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vitória de um grupo pequeno seria arriscar a legalidade de seu periódico, pois a censura,

embora bem mais tênue do que nos anos iniciais da imprensa brasileira, seria particularmente

severa com traidores, como os defensores de um golpe. Outrossim, uma cidade aterrorizada

significaria riscos iminentes à segurança pública e, por consguinte, dificuldades para

divulgação e compra de jornais. Logo, não são incoerentes as razões de David ter fugido para

Niterói e declarado o seguinte: “da minha parte, louvaria toda a oposição legal que se fizesse

ao atual governo em consequência de sua marcha tortuosa e arbitrária, todavia eu não

concordaria nunca com o princípio das revoluções” (idem). É bem provável que o caramuru,

que não possuía tropa nem outra arma além de poucas influências e uma pequena tipografia, já

pressentisse que seria um alvo fácil se o governo ordenasse a prisão dos restauradores e, de

fato, ele foi preso no dia 5, mas solto em seguida. Desse modo, temendo novas investidas de

seus opositores, embarcou num dos navios que estavam aportados no Rio de Janeiro e ali

decidiu permanecer até que o conflito se resolvesse.

Embora não nos tenha sido possível descobrir em que navio David buscou seu

temporário asilo político, durante a noite de 4 de abril o Beagle, um navio de guerra inglês,

chegava lentamente à cidade e, a bordo, estava Charles Darwin, então com 23 anos,

trabalhando em sua primeira grande expedição. A chegada nada tinha a ver com a modesta

rebelião que estava ocorrendo no país, tanto que Darwin a registrou como “transtorno

insignificante”; porém, o problema exigiu que o navio ancorasse distante do cais principal. No

dia seguinte, o naturalista desembarcou com seu guia e amigo Augustus Earle em frente ao

Palácio do Paço, e as primeiras impressões que teve foram entusiásticas:

Vagamos pelas ruas, admirando sua aparência alegre e populosa. O plano da

cidade é muito regular. As linhas, como em Edimburgo, seguem paralelas,

atravessadas por outras em ângulos retos. As ruas principais que levam às praças

são retas e largas. As cores alegres das casas enfeitadas pelas varandas, as

numerosas igrejas e conventos e a multidão apressada ao longo das ruas conferem

à cidade uma aparência indicativa de sua posição como capital comercial da

América do Sul (Darwin: 2015).

Pelo visto, naquela quinta-feira a vida urbana prosseguia sem grandes abalos, de modo

que as pessoas andavam nas ruas sem perigos excepcionais. Era um momento de férias para

Martins Pena, que morava exatamente nos arredores por onde Darwin visitou, portanto existe

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uma pequena chance de os dois terem se visto de relance. De qualquer forma, o naturalista

experimentaria do ácido sabor da comicidade fluminense, esta que Martins Pena imortalizaria

em seus escritos. No dia 6 de abril, tendo que lidar com burocratas, Darwin relatou que

“lamberia a sola do sapato de um brasileiro diante da perspectiva de ver florestas selvagens

povoadas por belos pássaros, macacos e preguiças e lagos com capivaras e jacarés”. No

domingo, dia 8, ao descrever as pessoas com quem se reuniu para ir a Macaé, diz que o

“Brasil poucas vezes viu um grupo de aventureiros mais extraordinário e quixotesco”.

Contudo, conforme a realidade cultural dos brasileiros é desvendada pelo inglês, seu humor

vai se deteriorando em uma notável irritabilidade. Na segunda-feira, dia 9, descreveu a

experiência sobre o almoço que fizeram numa venda em Mandetiba, considerada “muito boa”:

Pedimos ao senhor que fizesse o favor de nos servir algo para comer. “O que os

senhores quiserem”, foi a resposta. A princípio, agradeci em vão à providência por

nos guiar até um homem tão bom. Com o correr da conversa, no entanto, o caso se

tornou deplorável: “O senhor poderia fazer o favor de nos servir algum peixe?”.

“Oh, não, senhor.” “Sopa?” “Não, senhor.” “E pão?” “Oh, não, senhor.” “Carne

seca?” “Oh, não, senhor”. Se tivéssemos sorte, conseguiríamos, após esperar umas

duas horas, frango, arroz e farinha. Não é raro que o próprio hóspede se veja

obrigado a matar com pedras o frango para sua refeição (idem).

Enquanto Darwin experimentava alguns dos sabores que comporiam as comédias de

Martins Pena, este prosseguia seu cotidiano de estudante em férias, repassando algumas de

suas lições ou entregue a suas atividades favoritas, como a leitura, o canto e o teatro, sendo

que, entre as três, o teatro ocuparia a última posição, ao menos em termos de tempo investido.

Como era bem jovem e ainda dependia do tutor, frequentar as noites de espetáculos não seria

viável. Além de tudo, não havia representações todas as noites. Ia ao teatro poucas vezes,

acompanhando a irmã e o primo Vianna.

Nesse período, o principal aprendizado artístico de Martins Pena deve ter sido a

música. Segundo a biografia de Veiga, simultaneamente a seus estudos iniciais, Martins Pena

“cultivou a música e o canto, tendo apreciável voz de tenor, aprendendo também as artes de

contraponto” (1877, p. 378). As melhores alternativas a respeito do lugar onde ele poderia ter

estudado as técnicas de canto são a Capela Imperial, ao lado da Biblioteca Pública, e as aulas

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do mestre italiano Luiz Vaccani, que se lançou professor particular no ano anterior, conforme

anúncio no Diário do Rio de Janeiro:

Luiz Vaccani, professor de música, chegado a esta capital há 3 meses, e

ultimamente um dos sócios e mestre da companhia italiana, que trabalhava no

teatro desta Corte, propõe-se a dar lições de piano forte, cantoria e contraponto,

por método fácil e moderno; todos os Srs. pais de família, diretores de colégios,

ou outras quaisquer pessoas que se quiserem utilizar do seu préstimo, o poderão

procurar a qualquer hora do dia na rua do Espírito Santo, canto do Beco da

Barreira n. 52 (DRJ, 27/10/1832, p. 3 [83]).

Consideramos que seja mais provável que Martins Pena tenha tomado lições com o

professor Vaccani do que com os padres da capela imperial. Não podemos desconsiderar a

hipótese de ele ter praticado canto coral desde a infância em qualquer um dos coros de igreja,

mas, em termos de aulas de contraponto, o mestre italiano é um dos que mais se encaixa nos

conhecimentos técnicos demonstrados por Martins Pena durante seus folhetins no Jornal do

Commercio.

Muitas suspeitas devemos ter, portanto, de que o ano de 1832 foi marcante para o

despertar artístico de Martins Pena, que, a partir do momento em que se entregou à

sociabilização, desenvolveu um grande talento para atrair pessoas e fazer amigos,

característica essencial para a carreira que iria seguir. Ao terminar o primeiro ano da Aula do

Comércio, o jovem estava se lançando à sociedade irreversivelmente.

As aulas findaram na primeira quinzena de dezembro. O professor Simpliciano, na

declaração em que anexa a lista dos aprovados do primeiro ano, ressalta que “muito se

distinguiu João Caetano da Silva, não só pelas suas boas lições durante todo o ano, como

também no ato de seu exame, o qual foi o mais brilhante, mostrando ser dotado de um talento

transcendente”. Tal destaque é algo excepcional dentro das declarações de mesmo teor, o que

mostra que o professor Simpliciano tinha olhos especiais para seu pupilo predileto e,

indiretamente, por aquela turma em particular. Acrescenta, na mesma carta, um pedido por

“alguma distinção para este aluno, [...] por suas boas qualidades, para animá-lo a seguir na

brilhante carreira que tem encetado e, ao mesmo tempo, servir de estímulo aos outros”. Na

lista anexa, 25 foram aprovados plenamente, entre os quais o meritoso João Caetano da Silva

e o jovem Martins Pena.

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Uma prova simbólica de que Martins Pena teria se tornado mais independente é a carta

solicitando a continuidade para o segundo ano da Aula do Comércio, datada do último dia de

fevereiro de 1833:

Senhor

Diz Luiz Carlos Mis Penna que tendo frequentado a Aula do Comércio, e tendo

sido aprovado nas matérias do 1o ano do 8

o curso, e desejando continuar as

matérias do 2o ano

Pede a Nossa Majestade Imperial se digne mandar passar a provisão.

Espera receber mercê

Luiz Carlos Mis Penna (cf. Anexo 3).

Esta carta é, até o momento, a mais antiga escrita por Martins Pena e, como podemos

notar, ele se mostrava inseguro acerca de como assinar o próprio nome. O sobrenome Martins

surge de forma abreviada, e um grande círculo representa o pingo, tal como tipicamente

encontramos na grafia de adolescentes. Ademais, se no ano anterior o tutor teve de assinar por

ele, e dessa vez ele pôde requerer com o próprio nome, deve-se considerar também que, no

início de 1833, Martins Pena estaria emancipado, tendo certa liberdade para suas escolhas e

atos.

A data de colhimento das assinaturas, 28 de fevereiro, também levanta suspeitas sobre

a presença de Martins Pena na cidade durante o início do ano. Mesmo que a carta de 1833

tenha um peso burocrático menor quando comparada com a da inscrição, feita no ano anterior,

a diferença de antecipação aos prazos entre elas é notável, ainda mais quando nos damos conta

de que as aulas do segundo ano já haviam sido iniciadas. Assim, levantamos a hipótese de ele

ter passado um tempo numa das fazendas de seus familiares, ou em Jacarepaguá (Rio de

Janeiro) ou em Suruí (no atual município de Magé). A certeza que temos é a de que Martins

Pena era um rapaz da cidade, mas vinculado afetivamente à zona rural. A farsa A família e a

festa da roça talvez seja o melhor exemplo dessa vinculação. Ali, o estudante Juca, chegando

aos arredores da igreja com a família de sua noiva Quitéria, encontra Silva e Pereira a zombar

de seu sogro.

SILVA – Ó Juca?

JUCA – Quem me chama? Oh, o Silva e o Pereira por cá! (Vai para eles e a família

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fica no mesmo lugar, arranjando um o chapéu, outro a calça etc.)

SILVA – Que diabos fazes tu aqui?

JUCA – Vim com esta gente.

SILVA – Aonde achaste estes bichos?

JOANA – Senhor Juca, venha.

JUCA – Lá vou.

SILVA – Manda toda esta súcia para o cosmorama.

JUCA – Já tu principias...

JOANA – O senhor vem, ou não?

JUCA – Adeus, amigos, até logo. (Vai para junto da família, que se encaminha

para a igreja.)

PEREIRA – Aonde se foi meter o Juca!

SILVA – Hu! Ó ximango! Quiquiriqui!

(MP: 1956a, p. 60)

O trecho ilustra a relação entre pessoas ligadas à população do interior com os amigos

de hábitos urbanos. Na peça, assim como em suas antecessoras em temática (O juiz de paz da

roça e a incompleta Um sertanejo na Corte), os habitantes da roça são escarnecidos quanto à

ignorância acerca de objetos, lugares e costumes da capital do Império, mas é possível

perceber certa benevolência afetiva para com eles. Na ação de Juca, ao repreender e abandonar

os colegas de estudo em favor de sua nova família, encontra-se a mensagem de que a

ignorância não é tão censurável quanto a ignomínia, embora ambas sejam fatores de riso.

Como já mencionamos, a Aula do Comércio oferecia mais possibilidades de caminhos

do que a simples aplicação às atividades comerciais. Pesquisando os destinos dos alunos da

oitava turma, encontraremos pessoas que se tornaram oficiais militares, engenheiros,

professores, funcionários e administradores públicos. No caso de Martins Pena, seria uma boa

forma de alcançar a emancipação econômica e, além disso, a oportunidade para se reunir entre

amigos e andar pelas ruas e livrarias da cidade, ainda que de maneira discreta.

O ano de 1833, contudo, estaria longe de ser considerado o mais calmo para a Aula do

Comércio. Se por um lado o professor Simpliciano parecia satisfeito com as turmas, por outro

alguns problemas administrativos lhe causaram transtornos, sendo que o maior deles foi em

relação à locação da casa da Rua da Cadeia. A questão teria se iniciado em fevereiro de 1832,

quando o ex-professor Joaquim José Gomes da Silva pediu para que fossem retirados os

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utensílios da Aula do Comércio da propriedade, visto que ele estava de mudança. Simpliciano

considerou ser melhor alugar a casa para si, mantendo as aulas no mesmo lugar, e assim o fez.

Todavia, em fevereiro de 1833, seria a vez dele de se ver em apuros com o aluguel,

obrigando-o a requerer ao inspetor que procurasse um novo local para as aulas. Este levou o

problema ao tribunal da Junta do Comércio, que sugeriu que a aula se transferisse para “uma

sala e alcova, onde estava a extinta tesouraria do mesmo tribunal, [...] enquanto não se puder

obter uma casa suficiente para a residência do lente e, ao mesmo tempo, residência da Aula,

pagando o tribunal o mesmo que até o presente tem pago”.

Tal decisão, apresentada a Simpliciano no dia 2 de março, complicaria a situação do

professor, que esperava obter um prédio adequado ou uma ordem de pagamento emergencial

para manter a aula na Rua da Cadeia. Porém, a pequena sala oferecida comportaria apenas 30

pessoas, logo, não era suficiente para abrigar os 43 alunos, além dos três ouvintes registrados

no segundo ano do curso. Em conversas internas, Simpliciano e José da Silva Lisboa

decidiram manter as aulas na Rua da Cadeia até que se conseguisse um estabelecimento

adequado para os alunos, o que deve ter rendido prejuízos a ambos. Por conta dessa

problemática, as aulas do primeiro ano, ministradas pelo professor substituto, só tiveram

início no dia 18 de março (cf. DRJ 14/03/1833, p. 1).

O clima de instabilidade exigiu paciência e cooperação dos alunos; fortuitamente,

como indicam os documentos, a oitava turma era benevolente e talentosa. As aulas, compostas

de assuntos mais aprofundados na área de economia, como escrituração, estudo de leis, juros e

câmbio, demandavam um grande tempo dos alunos para que fizessem redações ou

terminassem cálculos e gráficos. Embora a turma continuasse a ser conduzida por

Simpliciano, os alunos passavam horas produzindo sem que houvesse auxílio do mestre. De

fato, alunos como João Caetano da Silva tiveram seus momentos como auxiliares,

colaborando para o bom andamento das lições.

A oitava turma da Aula do Comércio realmente foi especial para o professor

Simpliciano, como se ele percebesse que ali havia alunos que o orgulhariam. No final do ano

letivo, ao entregar a lista dos aprovados, incluiu um pedido, solicitando distinguir cinco

alunos por mérito.

Tenho a honra de levar ao conhecimento de Nossa Majestade Imperial a relação

inclusa de 57 alunos do 1o e 2

o ano desta aula que foram aprovados nas respectivas

matérias: e igualmente levo à consideração de N. M. I. os alunos do 2o ano João

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Pedro de Gusmão e Vasconcellos Mariz, José de Sá Bezerra, João Caetano da

Silva, José Augusto Tompson e Luiz Carlos Martins Pena, os quais muito se

distinguiram não só em suas lições, comportamento e assiduidade, como também

em alguns trabalhos para que convidei a todos os alunos, e só eles se prestaram,

como seja, à carta estatística da província do Rio de Janeiro, que inclusa ponho

debaixo das vistas de N. M. I., apresentada pelos dois primeiros: Mariz e Bezerra.

O terceiro, sendo convidado para examinar aos alunos do 1o ano se prestou a este

trabalho, no qual mostrou ter conhecimentos muito superiores aos de um

estudante que apenas tem encetado uma ciência tão sublime. Os dois últimos,

pelos seus atos, conheci terem-se dado a um rigoroso estudo, pois foram os atos

mais brilhantes que se fizeram este ano, e nos quais desenvolveram

conhecimentos muito além do que se podia esperar. É, pois, por todas estas

razões, senhor, que eu venho na qualidade de seu lente, suplicar a N. M. I. para

que se digne mandar que, nas suas cartas, depois da palavra plenamente, se junte –

com louvor – e me persuado merecerem esta graça, não só porque eles me

parecerem dignos de louvor, pelo tanto que se distinguiram, como também para

servir de estímulo aos demais alunos que frequentarem esta Aula.

O jovem Martins Pena, ainda incerto quanto às suas pretensões, sairia da Aula do

Comércio com a certeza de ter seus esforços reconhecidos. O estímulo certamente lhe

motivaria a prosseguir na dedicação aos estudos, tal como pudemos conferir nos registros da

biblioteca no capítulo anterior. Sobretudo, após receber o certificado de aprovação, Martins

Pena se encontraria num breve estado de liberdade, no qual poderia planejar a realização de

suas ambições artísticas.

2.3 Da Aula do Comércio para o aprendizado jornalístico

Durante os anos entre o término do curso na Aula do Comércio e o início da trajetória

literária, Martins Pena encontrou tempo tanto para a leitura de seus assuntos preferenciais

quanto para se preparar para a carreira pública. Foi uma fase especialmente intensa no tocante

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ao desenvolvimento do intelecto, à sociabilidade e ao entendimento do sistema que o rodeava.

Quais teriam sido as opções tomadas nesse período?

Em março de 1829, a família de Martins Pena foi outra vez modificada, pois sua irmã

mais velha, Carolina, casara-se no dia 28 daquele mês com Joaquim Francisco Vianna, na

casa do conde de Palma (então já elevado a marquês), ou seja, no mesmo lugar em que se

realizou o segundo casamento da mãe deles. Ao que tudo indica, o nobre era, de fato,

estritamente relacionado com os familiares de Martins Pena, posto que os acolheu duas vezes.

(Fonte: Arquivo Nacional).

Vale ressaltar que Carolina, então com catorze anos, estaria na idade mínima para o

matrimônio segundo as tradições da época, sendo, no entanto, comum que as mulheres se

casassem nessa faixa etária e não fosse proibido que se casassem antes disso, o que geraria,

contudo, uma burocracia maior. Seja como for, havia a necessidade de autorização dos tutores

para o casamento, exigência que influencia diretamente a formação de famílias brasileiras. O

noivo, Joaquim Ferreira Vianna, já contava 26 anos e, formado em matemática na

Universidade de Coimbra, aspirava a uma proeminente carreira política no Império.

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Além disso, pelo que se pode verificar no documento, os noivos eram primos em

terceiro grau e, por isso, foi necessária a autorização do bispado para superar esse

impedimento previsto no Concílio de Trento. Não obstante, os problemas acerca do

casamento entre primos fará parte do conflito em algumas comédias de Martins Pena, a saber,

Os dous ou O inglês maquinista e O noviço:

AMBRÓSIO – Por tua vida, salvai-me!

CARLOS – Eu salvarei, mas debaixo de certas condições...

AMBRÓSIO – E quais são elas?

CARLOS – Nem eu nem o primo Juca queremos ser frades...

AMBRÓSIO – Não serão.

CARLOS – Quero casar-me com minha prima...

AMBRÓSIO – Casarás.

(MP: 1956a, p. 311)

Em meio a uma cultura de muitos casamentos arranjados, relacionamentos entre

primos são movidos pelo amor mútuo na dramaturgia de Martins Pena. Os primos amantes

não estão livres da permissão de seus tutores, estes que, agindo segundo os próprios

interesses, sustentam grande parte do conflito que impede o casal de se unir formalmente. No

caso de O noviço, Ambrósio é o padrasto que manipula com extrema facilidade Florência,

tutora dos filhos do primeiro casamento, Emília e Juca, e de seu sobrinho Carlos, este que

ficou órfão aos cinco anos de idade. O plano de Ambrósio é encaminhar todos os três a

exercerem funções eclesiásticas, a fim de tomar para si a herança de Florência. Conhecendo a

disputa do antigo padrasto de Martins Pena pelo espólio de sua mãe, fica evidente uma

espécie de jogo entre o vivenciado pelo autor e o entrecho.

A trama de Os dous ou O inglês maquinista é mais simples: os primos Felício e

Mariquinha se amam, porém o rapaz não desfruta de posição alta o suficiente para convencer

a tia Clemência, que se tornou tutora de Mariquinha após o desaparecimento do patriarca

Alberto, capturado há dois anos por rebeldes da Revolução Farroupilha. Embora não seja o

principal plano de Clemência casar a filha, o principal pretendente da pequena é Negreiro,

comerciante de escravos que frequenta a casa da viúva esperando pela ocasião de pedir Emília

em casamento, sem desconfiar, no entanto, dos ardis de Felício.

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FELÍCIO – Mariquinha, perdoa-me! O temor de perder-te faz-me injusto. Bem

sabes quanto te adoro; mas tu és rica, eu sou um simples empregado público; e

assim tua mãe jamais consentirá em nossa união, pois supõe fazer-te feliz

dando-te marido rico.

MARIQUINHA – Meu Deus!

FELÍCIO – Tão bela e sensível como és, ser a esposa de um homem para quem a

riqueza é tudo, que em ti só vê um dote! Ah! Não. Terá ele ainda de lutar comigo.

Se supõe que a fortuna que tem adquirido com o contrabando de africanos há de

tudo vencer, engana-se; a inteligência e o ardil podem às vezes mais que a riqueza.

MARIQUINHA – E o que pode você fazer? Seremos sempre infelizes.

FELÍCIO – Talvez que não! Sei que a empresa é difícil. Se ele te amasse, ser-me-ia

fácil afastá-lo de ti; porém ama o teu dote, e desta qualidade de gente arrancar um

vintém é o mesmo que arrancar a alma do corpo... mas não importa.

MARIQUINHA – Não vá você fazer alguma coisa com que mamãe se zangue.

(Pena: 1943, 168)

A possibilidade amorosa entre primos também aparece em O namorador ou A noite de

São João, sendo um contraponto às peças mencionadas acima. O primo Luís, que recebe a

alcunha de namorador, não esboça interesse genuíno por ninguém, mas passa a cobiçar um

casamento com sua prima Clementina tão somente pelo gosto de disputá-la com seu amigo.

LUÍS – Até então eu namorava a prima inocentemente e sem intenção, como faço

com todas as moças que encontro; isto é um hábito em mim. Mas agora, já que se

formaliza e ameaça-me, hei de lhe mostrar que não só namorarei a priminha de

noite e de dia, como também casar-me-ei com ela.

JÚLIO, raivoso – Oh!

LUÍS – O que não tem podido fazer de mim o amor, fará o amor-próprio. Estou

resolvido a casar-me.

JÚLIO, segurando-lhe na gola da casaca – Não me leves ao desespero!

(MP: 1956a, 272)

Embora Luís não receba uma punição rigorosa, como seria de se prever em uma

comédia de costumes, os primos não se casam, e por decisão do próprio namorador, que

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persuade o pai e tutor de Clementina a casá-la com Júlio, desfazendo-se a breve rivalidade

entre os amigos. Sem entrar, por ora, em maiores méritos da complexidade dessa comédia,

podemos concluir que nas três peças citadas a disputa pela personagem feminina é vencida

pelo pretendente mais probo e apaixonado. Pela reincidência dessa questão, não seria muito

pretensioso conjecturar que Martins Pena, durante a criação dos textos, pensasse em sua

querida irmã, relembrando momentos da mocidade.

Sabemos que a separação dos irmãos não durou muito, pois Martins Pena em algum

momento passou a morar na mesma residência da irmã e do cunhado, na Rua dos Barbonos,

20. Embora não tenhamos conseguido definir com exatidão quando isso aconteceu, podemos

afirmar que o futuro dramaturgo estivesse ali pelo menos desde o início de 1835, devido a um

anúncio publicado em 26 de fevereiro no Jornal do Commercio:

Um jovem brasileiro se propõe a dar lições de gramática portuguesa e francesa, e

aritmética, tudo por módico preço, dirigir-se à rua dos Barbonos n 20 (p. 4).

Consideramos que há evidências suficientes para afirmar que o “jovem brasileiro” do

anúncio seja, de fato, Martins Pena. O endereço certamente seria a melhor prova, exceto pelo

fato de, infelizmente, não termos localizado algum documento comprobatório de sua

residência anterior a 1840. Contudo, o teor do anúncio deixa pouco espaço para duvidar da

suposição. Não era incomum que ex-estudantes da Aula do Comércio dessem aulas

particulares, e Martins Pena, jovem, brasileiro, um dos cinco melhores alunos de sua classe,

sabidamente fluente em francês, admirador da língua portuguesa e bom conhecedor de

aritmética, é o presumido profissional referido no anúncio. Uma das primeiras tentativas de

autonomia do jovem, portanto, foi ser professor, função que certamente já havia exercitado

entre seus colegas na Aula do Comércio.

Por outro lado, não é certo que Joaquim Francisco Vianna e sua esposa Carolina já

residissem no número 20 da Rua dos Barbonos em 1835. Dois outros anúncios do Jornal do

Commercio, publicados em 18 de setembro e 31 de outubro, ambos oferecendo empregos, dão

a entender que o lugar não era uma simples habitação familiar. O último deles esclarece:

“Precisa-se, para casa de homens solteiros, de um preto que saiba cozinhar, seja esperto para

compras e fiel” (p. 4; grifo nosso). Por conta desse fato, a suposição de que Martins Pena ali

morasse permanece, mas como residente de uma casa de pensão. Contudo, se ele era o dono

do lugar, junto com sua irmã e cunhado, é uma questão que deixaremos em aberto.

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Voltando-nos para o contexto histórico, 1835 foi mais um dos anos politicamente

conturbados para o Império tropical. No primeiro mês, a província do Grão-Pará sofreria com

o ataque da Cabanagem e o assassinato do governador Lobo, a primeira grande vitória de um

movimento rebelde que perduraria por diversos anos. Em 7 de abril, o padre Diogo Feijó seria

eleito regente do Império, uma das mudanças administrativas previstas no ato adicional de

1834. Em setembro, dar-se-ia início à revolta no Rio Grande do Sul, ampliando-se a gravidade

e a extensão geográfica dos conflitos.

Esses e outros temas afins circulavam com frequência no cotidiano de Martins Pena,

visto que seu cunhado era deputado nesse período. Se a presença de questões políticas atuais

em sua obra não constitui nenhuma novidade, salientemos que o dramaturgo estava em

contato intenso com elas. Como Magalhães Júnior sugeriu, essa proximidade seria decisiva na

vida de Martins Pena; contudo, não somente por conta das prováveis indicações aos cargos

públicos (cf. 1972, pp. 17; 243), mas principalmente pelo convívio e pela troca de

experiências com o parlamentar.

2.3.1 Os primeiros anos do Romantismo brasileiro

Segundo os compêndios gerais de história da literatura, o começo do Romantismo

brasileiro foi datado em 1836, com a publicação do livro de poesias de Gonçalves de

Magalhães e pelo florescimento de períodos voltados à reflexão teórica e artística, sendo a

revista Nitheroy a mais citada. Não por acaso, a revista era organizada pelo mesmo autor do

livro de poemas que supostamente inicia o Romantismo no Brasil.

Uma possível explicação para esse monopólio de estreias seria a estreita ligação de

Gonçalves de Magalhães com o IHGB. É preciso ter em mente que, antes de ser literato, ele

era um excelente articulador político, ou melhor, uma pessoa muito interessada em realizações

coletivas. O poeta residia em Paris, ou seja, fisicamente distante das tensões que o país

enfrentava; porém estava próximo a elevados círculos sociais e mantinha-se informado sobre

as questões nacionais. Sua formação artística se encaminhava para um costumeiro

neoclassicismo, quando o contato com as tendências artísticas o estimulou a mudar o estilo,

ainda que sem muito sucesso, posto que os traços neoclássicos continuariam fortes em suas

produções.

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De qualquer forma, é preciso ter em conta que a agitação artística realmente aconteceu

e Gonçalves de Magalhães, Porto-Alegre e outros brasileiros do chamado Grupo de Paris se

mobilizaram para incentivar e divulgar a produção literária. Considera-se que um dos

principais fatores dessa união tenha sido o apoio que receberam do recém-fundado Instituto

Histórico de Paris, especialmente de Eugène Garay de Monglave, um dos secretários mais

assíduos e influentes. Sabe-se que ele acolheu os brasileiros, convidando-os não apenas para

assistir às sessões, mas inclusive para participar delas com seus textos:

O segundo trabalho lido na sociedade recém-fundada é a História das ciências no

Brasil, de Torres Homem, traduzida e lida por Monglave na sessão da segunda

classe (Ciências Sociais e Políticas), de 1o de julho de 1834. Nas sessões

subsequentes seguem os outros trabalhos já muito citados, de Magalhães e Porto-

Alegre, sobre a literatura e as artes no Brasil (Faria: 1967, p. 50).

A inclusão de brasileiros logo nas primeiras sessões do IHP remete à ideia de que

Monglave já estivesse em contato com o grupo antes da inauguração do instituto. É natural

deduzirmos, portanto, que Debret tenha sido o principal mediador dessa relação, visto que

Porto-Alegre foi a Paris junto com seu professor e que Debret tinha pleno interesse em ajudar

na divulgação do Brasil, não apenas como uma espécie de embaixador, mas sobretudo como

forma de atrair mais olhares para a sua Viagem pitoresca. Interesses à parte, a relação entre

Debret e Porto-Alegre se estenderia por muitos anos, o que se pode constatar pelas diversas

cartas do mestre elogiando as conquistas do discípulo, que em 1837 se tornaria seu sucessor

na cadeira de pintura da Academia de Belas Artes.

Dito isso, podemos perceber que uma das principais diferenças entre os autores do

Grupo de Paris e Martins Pena é a intensidade da influência de artistas europeus em sua

formação. Porto-Alegre aprendeu as técnicas de Debret de maneira aprofundada e não

intentou grandes mudanças no estilo. Gonçalves de Magalhães conheceu Almeida Garrett,

porém o contato com os intelectuais franceses, ainda predominantemente neoclássicos,

causou-lhe impacto maior. Em suma, as produções do Grupo de Paris acabaram prejudicadas,

de certa forma, pela necessidade de academicismo e pelo direcionamento à recepção das elites

ou do público erudito. Contudo, eles não estavam alheios ao que se passava em seu país natal,

pelo contrário, havia uma acuidade sensível às tendências da época, o que podemos atestar no

ensaio de Gonçalves de Magalhães sobre literatura:

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No século XIX, com as mudanças e reformas políticas que tem o Brasil

experimentado, nova face literária apresenta. Uma só ideia absorve todos os

pensamentos, uma nova ideia até ali desconhecida, é a ideia da pátria; ela domina

tudo, tudo se faz por ela, ou em seu nome. Independência, liberdade, instituições

sociais, reformas, política enfim, tais são os objetos que atraem a atenção de

todos, e os únicos que ao povo interessam (1836, p. 152).

Tal entendimento, bastante correto quanto às preocupações gerais da época, iria de fato

nortear as produções do Grupo de Paris. Existe um entendimento geral de que uma das

principais características da chamada primeira geração romântica seja justamente o ufanismo

ou, dita de maneira mais suavizada, a idealização da pátria. Essa presença é inegável, da

mesma forma que temas relacionados à política ocupavam o maior espaço nos periódicos que

circulavam nesse período.

Contudo, é importante refletir que essa característica se deve ao impacto das rápidas

transformações políticas e mudanças de governantes no Ocidente. Toda vez que um novo

governante subia ao poder, era comum que abundassem odes e panegíricos a ele e ao bom

futuro da nação, um procedimento que remonta a muitos séculos. Seguindo a mesma regra,

desde a independência do Brasil surgiram diversos avulsos literários, especialmente poemas,

elogiando de maneira exagerada a pátria e seus governantes, e do excesso de trocas foram

geradas a demanda e a prática nacionalistas. Pinçando um dos exemplos, temos o seguinte

trecho final de um soneto publicado em 1830 no periódico Voz Fluminense:

Santa constituição, divisa, e glória,

Eterna seja da brasileira gente!

Ergão-se altos padrões de alta vitória!

Nunca o Brasil o despotismo alente;

Ufano avulte os lustres da memória!

A pátria viva, a liberdade aumente. (13/05, p. 3)

Encontram-se, na maioria dos poemas desse teor, referências a deuses gregos e

romanos, e este não constitui exceção, dizendo anteriormente que se deve manter a postura de

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proteger a pátria “mesmo na frente ao ríspido Mavorte”, o deus Marte. Com efeito, não é

difícil perceber que a passagem do Neoclássico para o Romantismo não aconteceu de maneira

abrupta, não houve uma ruptura marcante, pois se deu de forma bastante gradual, o que

permitiu não somente produções intermediárias, como também certa liberdade para eleger

fundadores.

Colocando-se as qualidades literárias do Grupo de Paris de lado, a presença de seus

escritos motivadores na Corte deixava uma importante reflexão em seu país. Os escritores

deveriam produzir textos levando em conta sua nacionalidade, evitando-se prender às culturas

estrangeiras. De que forma isso seria feito ainda não estava claro. Para Ferdinand Dinis, a

saída seria exaltar as riquezas naturais e seus habitantes primitivos, solução acatada pela

literatura indianista; no entanto, a maioria dos letrados brasileiros nunca tiveram a

oportunidade de conhecer a realidade de uma cultura indígena, o que os fazia recorrer aos

relatos de historiadores e ao imaginário das lendas medievais europeias. Uma segunda solução

seria se orientar pelo ambiente urbano, o qual, apesar de criado nos moldes dos colonizadores,

havia resultado numa configuração bem diferente das cidades europeias. Por fim, uma última

possibilidade seria se valer apenas da autoria nacional, buscando alguma particularidade no

estilo da escrita, ainda que ambientando suas histórias fora do país, reproduzindo o que de

fato fazia mais sucesso junto aos leitores e espectadores brasileiros.

Como podemos verificar nos livros publicados e principalmente nas peças de teatro da

primeira metade do século XIX, a terceira solução foi a preferida. Isso não deve impressionar,

visto ser a mais cômoda, no sentido de não requerer grandes mudanças das ideias antigas e de

ser de menor risco, pois era o que estava em voga nas livrarias e nos palcos. Além disso,

propor mudanças estilísticas é algo bem diverso de pô-las em prática, o que ficará bastante

perceptível através dos futuros manifestos das vanguardas.

No mais, resta-nos entender que as publicações da Nitheroy e os Suspiros poéticos não

causam impacto significativo em seus contemporâneos de 1836. Na verdade, a circulação da

revista foi modesta e o livro de poemas só começaria a ser anunciado no ano seguinte,

levando-nos a cogitar que sequer tenha alcançado as livrarias antes disso. De fato, a reflexão

crítica de Gonçalves de Magalhães estaria bem mais afinada com o tempo do que seus

poemas: os brasileiros se mantinham devidamente ocupados em elogiar e criticar Feijó, em

acompanhar o desdobramento das revoltas e em se preparar para uma guerra. De toda forma, o

teatro continuava a se desenvolver, assim como os artistas.

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Dessa forma, listando alguns dos dramaturgos que estavam em atividade nesse

período, consideramos pouco justificável a forma como apagaram a presença de Francisco de

Paula Brito nos palcos da capital. A rigor, Paula Brito já havia estreado em 30 de julho de

1834, com o drama O triunfo dos indígenas ou A queda do usurpador (JC, 28/06, p. 5), fato

que isoladamente lança por terra a ausência de dramaturgia nacional no período. Em 1836, o

editor visionário e escritor experiente, então em plena atividade criativa e jornalística,

colaboraria com algumas noites de espetáculo, como a de 21 de junho, dedicada ao ator José

Cândido da Silva, quando se encenaram uma tradução de O dia de uma conspiração em

Lisboa, de Nepomuceno Lemercier, e um monólogo de gratidão, ambos escritos por Paula

Brito. O monólogo, original, foi recitado por Leopoldina Cândida da Silva, filha do

beneficiário da noite (16/06/1836, p. 2). Em 24 de janeiro de 1837, José Cândido novamente

levaria o texto do brasileiro aos palcos, dessa vez cantando a ária cômica O fidalgo fanfarrão.

Com efeito, por toda a contribuição ao desenvolvimento das artes nacionais, considerar

Franscico de Paula Brito como o primeiro romântico brasileiro é bem plausível, por

conseguinte se configura um fascinante objeto de discussão.

Ainda que a produção literária no Brasil entre a independência e 1838 seja tímida, ela

não deve ser considerada inexistente. É preciso ter consciência de ser comum textos

carecerem de atribuição autoral e dificilmente serem reproduzidos, limitando-se a poucos

exemplares ou raros manuscritos, o que, a longo prazo, significaria desaparecer. Um desses

autores desconhecidos é o sul-rio-grandense José Manuel Rego Viana, que em janeiro de 1837

já contava com, no mínimo, quatro dramas completos, a saber: Gomes Freire de Andrada ou

O verdadeiro patriota, A usurpação frustrada ou A batalha de Almoster, A Senhora D.

Maria II restituída ao trono de seus avós ou A restauração de Portugal e As tiranias de

Miguel I ou A morte de Gravito, estes que foram vendidos à Sociedade Fundadora do Teatro

da Praia no dia 24 daquele mês (JC, 26/01/1837, p. 3). Ainda que seja evidente, pelos títulos,

que os referidos dramas estejam atados à identidade lusitana, a venda dos direitos é uma

evidência de que a autoria dramática já fosse vista como objeto de mercado. A passos lentos,

os brasileiros conquistavam espaço no campo teatral.

Porém, em termos práticos, é somente em meados de 1837, com o regresso do Grupo

de Paris às terras tupiniquins, que as intenções de estimular a produção de autoria nacional

ganhariam maiores proporções. A presença física de Porto-Alegre e Gonçalves de Magalhães

na Corte foi importante para que o movimento artístico despertasse de certo ostracismo. Ao

mesmo tempo, a ideia de encenar autores brasileiros combinaria diretamente com os interesses

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da companhia de João Caetano à época. O ator e empresário contava então com dez anos de

experiência e recebia progressivos méritos à frente da Companhia Nacional. Em março de

1837, o folheto de João Caetano Reflexões dramáticas havia sido publicado por Paula Brito

(cf. JC, 03/03, p. 4) e, integrando a nova geração produtora de arte, o ator e seus sócios

sinalizariam um interesse maior em levar textos brasileiros à cena, embora essa ideia não

tenha sido muito bem concretizada.

No entanto, diferentemente do conhecido nas bibliografias, outro brasileiro de fora do

Grupo de Paris teria diversas peças representadas nesse ano, antecipando-se à suposta data de

estreia do Romantismo brasileiro nos palcos. Assinando suas peças como Um fluminense,

Joaquim José Teixeira Leite teve estreia anunciada para 2 de julho de 1837 com o drama O

ministro traidor ou O triunfo da imprensa. No anúncio de 28 de junho do Jornal do

Commercio, encontram-se algumas informações acerca de sua urdidura:

Este drama, primeira composição de um fluminense, se torna digno de atenção,

pelos quadros instrutivos que apresenta e pelas cenas jocosas de que abunda. Nele

vê-se um ministro traidor, procurando iludir seu monarca, pisar o mérito, seduzir a

honra e suplantar a imprensa, ao mesmo tempo que esta, acompanhada da

Verdade e da Justiça, lhe rompe a hipócrita máscara e o abisma para sempre (p. 3).

O anúncio acrescenta que se o público “se dignar acolher esta tosca composição, o

autor, a quem acende o amor da glória e o patriotismo, seguindo os ímpetos do seu gênio,

promete desde já oferecer-lhe outros mais frutos do seu trabalho” (idem), numa clara

demonstração de humildade e entusiasmo. Por motivos desconhecidos, a estreia foi adiada

para 5 de julho, quando finalmente aconteceu. O texto não foi encontrado, assim como não

conseguimos rastrear nenhuma publicação do mesmo. Apesar disso, é possível atestar que a

peça foi bem recebida pelo público, visto que teve ao menos mais três representações, em 14

de julho e em 12 e 23 de outubro do mesmo ano. Outrossim, receberá uma nova montagem

dez anos depois, provando sua viabilidade cênica. Não obstante, o drama em três atos, ao

menos em questão de título e entrecho, carrega um valor simbólico mais impactante do que

Antônio José, ou O poeta e a Inquisição no que tange ao surgimento do Romantismo no

Brasil.

Como prometido, o autor abriu a gaveta e novas estreias se seguiram ao Ministro

traidor ou O triunfo da imprensa. Em 28 de setembro, Uma paixão desenfreada, peça em

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cinco atos, também foi muito bem recebida, sendo reencenada em 29 de novembro, devido

aos “infinitos aplausos que este drama obteve mesmo depois de ter descido o pano”

(21/11/1837, p. 3). Um dia antes, subia pela primeira vez a comédia A aposta, gentilmente

doada para o ator João Evangelista da Costa (idem). Em 31 de janeiro do ano seguinte, lançou

duas comédias no mesmo dia, em benefício da atriz Maria Cândida de Souza: Um dos muitos

e O parasito. A primeira, segundo o anúncio, era “cheia das mais graciosas cenas e é um

resumo das coisas mais curiosas desta cidade” (12/01/1838, p. 2); ao fim da primeira peça, a

atriz e Victor Porfírio Borja emendaram “uma galopada e um dueto jocoso terminando com

um lundu, análogo a mesma peça, de composição do Sr. Gabriel Fernandes da Trindade”

(idem). A estes títulos irão se suceder outros, mas fiquemos com os que se anteciparam ao

mito da estreia do teatro rômantico brasileiro. Tanto no drama quanto na comédia, Joaquim

Teixeira Leite foi o pioneiro descartado pela ausência editorial.

Mesmo antes das estreias de Teixeira Leite, Luís Antônio Burgain já havia dado suas

primeiras mostras nos palcos. O desprezo que recebeu dos brasilianistas devido à

nacionalidade francesa é quase sempre injusta, pois ele veio ao Brasil ainda criança e a obra

literária é escrita em português e direcionada ao público da Corte, numa época em que a

escassez de produções é notória. De certo ponto de vista, Burgain é tão brasileiro quanto

Antônio Gonzaga, sem nem ser preciso adentrarmos a questão de que os intelectuais da

colônia não se percebiam como nação separada de Portugal. No dia 3 de maio de 1837, após a

execução do hino nacional, em comemoração à abertura da Assembleia Legislativa, foi

representado o drama A orfã ou A última assembleia dos condes-livres (JC, 29/04/1837). No

mesmo ano, também foram encenadas a comédia O barbeiro importuno e o drama Glória ou

infortúnio ou A morte de Camões.

Um frequentador dos teatros da Corte, entusiasmado com as estreias de autoria local,

fez questão de deixar registrado seus pensamentos na seção de correspondência do Jornal do

Commercio de primeiro de julho:

É com a maior satisfação, e cremos que todos os nossos patrícios a partilham, que

vejo o teatro nacional enriquecer-se com algumas peças escritas entre nós e para

nós. Ainda temos presentes as cenas tocantes, negras e misteriosas da Última

assembleia dos condes-livres, drama original do Sr. Burgain; as facetas do

burlesco Barbeiro importuno, do mesmo autor; quando se nos anuncia [...] o novo

drama intitulado O ministro traidor ou O triunfo da imprensa, também original,

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composição de um filho do nosso Rio, que promete oferecer-nos sucessivamente

outros frutos dos seus trabalhos literários (p. 3).

Na mesma nota, o frequentador dos teatros alude à próxima tragédia de Burgain,

Glória e infortúnio ou A morte de Camões, com vivo interesse pelo tema. O acolhimento que

essas peças obtiveram do público e o interesse da Companhia Nacional em montá-las

repetidas vezes mostram que o dramaturgo foi um dos primeiros a criar histórias

especificamente direcionadas para o público da capital. Portanto, não deixa de ser curioso que,

num período considerado um dos mais ufanistas da história brasileira, Luís Antônio Burgain

tenha sido bem aceito, mas, com o passar dos anos, sistematicamente excluído do rol de

artistas que contribuíram para o surgimento do teatro nacional.

Buscando-se um pouco de imparcialidade nessa questão, Burgain também foi alvo de

críticas. O jornalista Justiniano José da Rocha, costumeiramente negativo em suas opiniões,

diz que A morte de Camões é “inçado de inevitáveis galicismos (bem desculpáveis num autor

estrangeiro)” (O Chronista, 02/08/1837, p. 3). Embora o crítico esboce alguns elogios acerca

das situações dramáticas e do estilo do autor, são agrados feitos de maneira contida, pois a

negatividade se sobrepõe às boas impressões. Por exemplo, ele considera que o enredo de A

morte de Camões seja “fraco ainda, porém muito mais forte do que o d’A Órfã” (p. 2); ou seja,

a regra nas opiniões de Justiano é censurar primeiro e, às vezes, amenizar a censura com

tímidos elogios depois. Méritos ou injustiças à parte, na verdade Burgain era visto tanto como

autor local como estrangeiro, um paradoxo, entretanto, comum à capital do Império.

Porém, ainda que tenhamos de nos ater ao Grupo de Paris, Manuel de Araújo

Porto-Alegre estreou antes de Gonçalves de Magalhães com o Prólogo dramático em 2 de

dezembro de 1837, aniversário de Pedro II. Anunciada como Elogio dramático, a montagem

fora planejada para ter toda a pompa que a ocasião demandava:

Assim que S. M. o Imperador e as Sereníssimas Princesas, na imperial tribuna,

honrarem com a sua augusta presença, abrirá a cena e a grande orquestra tocará o

hino nacional, seguindo-se a este a representação de um novo Elogio dramático,

do gênero romântico, ornado de maquinismo, dança e música, dedicado a tão alto

quanto digno objeto e composto pelo bem conhecido e acreditado artista o Sr.

Porto-Alegre (JC, 28/11/1837, p. 2).

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A pequena peça, além de acompanhada pela música de Cândido Inácio da Silva,

contava com nossos principais atores, João Caetano no papel de Anjo da Verdade e Estela

Sezefreda no de Folia (personagem muda). Em poucas palavras, Prólogo dramático contém

todos os elementos para ser considerada uma peça do Romantismo brasileiro; de fato, é

explicitamente composta nesse sentido. A história é uma espécie de fábula em que Satã tenta

persuadir Brasil a reinar com ele. Claro que o Anjo da Verdade interrompe a situação e o

ajuda a expulsar o inimigo, não sem este aludir à guerra civil que o ameaça: “Abalai do

Ipiranga esse movimento, / Quebrai-lhe as brônzeas tábuas e fundi-as / C’o archote que

brande a civil guerra” (Porto-Alegre: 1837, p. 13).

Conforme a opinião de um dos presentes, nesse momento entraram em cena “dois

fantasmas, em quem o Brasil reconhece o Rio Grande e o Pará, e então com voz de piedade os

chama a seus braços: ‘Filhas minhas, vinde ao pátrio grêmio, / Que este amplexo nos una

eternamente’” (JC, 5/12/1837, p. 1). A descrição é importante, pois no texto publicado e

distribuído aos presentes há um pequeno erro nesse trecho, omitindo-se o nome do

personagem que a diz; assim, o leitor desvisado pode se confundir e pensar que seja a

continuação da fala de Satã. Nesse ponto do drama, executa-se um maquinismo: “os espectros

se convertem, o primeiro em um mutilado cadáver, [...] tendo no peito gravada a letra S, e o

outro em um esqueleto, com a letra N” (idem). Dessa forma, a nos valer a veracidade do

relato, a alusão às principais revoltas que o país enfrentava foi exposta claramente e “causou

um efeito maravilhoso no ânimo do público, apesar de que o pensamento do poeta não

correspondesse ao material da mágica” (idem), o que deixa a entender que a montagem teve

de adaptar a rubrica a fim de realizá-la de maneira viável.

Como contraponto, outro espectador opinaria sobre o Prólogo dramático nas “Notícias

particulares” do Diário do Rio de Janeiro com muita rispidez. Este afirma que se não tivesse

“gozado da afável presença do nosso jovem monarca”, estaria “arrependido mil vezes”:

O Elogio dramático, Sr. Redator, é uma das produções mais extravagantes que

tem aparecido em cena. O que porém admira é a afoiteza com que o Sr. P. S.

assegura no Jornal do Commercio que o elogio causou um efeito maravilhoso,

que agradou ao público! Se agradou ao Sr. P. S. por ser feito por um seu amigo, a

mim por certo que não; nem a muitas pessoas de gosto que a ele assistiram. O que

o elogio causou foi náuseas. Vagarosamente o analisaria e mostraria todos os seus

defeitos se me sobrasse tempo e se me permitisse maior espaço nesta folha. Por

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isso, direi apenas que o todo da composição é um todo de impropriedades; e

quanto aos versos, seja igualmente dito que pela maior parte não prestam: muitos

deles não são versos, mas sim prosa com certo número de pés, menos a ordem das

sílabas. O Sr. P. S. [...] deveria ser mais moderado em lisonjear o seu amigo. Os

louvores em tais casos desacreditam a quem os dá. Repito: o elogio, enquanto ao

fundo e à forma, pouco honra o autor. Que maçada! (7/12/1837, p. 3; grifos do

autor).

Valendo-nos do bom senso e dando um voto de confiança ao autor dessa crítica, é

forçoso perceber que a apresentação não agradou a todos, por motivos diversos. Porém, da

mesma forma que a crítica no Jornal do Commercio foi escrita por um amigo de

Porto-Alegre, essa possivelmente tem por autoria um de seus desafetos. De fato, podemos

suspeitar que seja novamente Justiniano José da Rocha, editor de O Cronista e conhecido

opositor de Porto-Alegre, inimizade que se estenderá a outros episódios. Logo, ambas as notas

mencionadas contêm exageros em suas ponderações. Se por um lado os versos da composição

não são os melhores em questões estilísticas, por outro é injusto afirmar que todos eles não

sigam regras básicas de versificação, pois a maioria deles está de acordo. Por fim, interessa

constatar a presença de opiniões divergentes acerca de um drama brasileiro montado em 1837,

independentemente do mérito de cada uma delas.

Em todo caso, o fato de Porto-Alegre ter se antecipado a Gonçalves de Magalhães não

é algo que deveria surpreender, pois o pintor era consideravelmente mais popular e influente

do que seu amigo. Já comentamos que, ao retornar ao Brasil e assumir a cadeira de pintura na

Academia de Belas Artes, aos poucos Porto-Alegre foi reunindo elogios e pessoas ao seu

redor, as quais ele correspondeu com vivacidade através de contatos e ações, visivelmente

tencionando dar prosseguimento aos seus projetos. Um interessante exemplo de suas

interferências diretas foi patrocinar a reabertura das aulas de modelo vivo.

Abriu-se a aula do nu, e é este curso que verdadeiramente designa aquele

estabelecimento como Academia de Belas Artes. Por causa da escassez de

modelos no nosso país, o Sr. Porto-Alegre ofereceu à Academia, gratuitamente,

um dos seus escravos, homem estupendo pelas suas formas hercúleas, que serve

de modelo (JC, 16/12/1837, p. 2).

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Como poderemos perceber nos anos seguintes, as artes plásticas ou, mais

especificamente, seu ensino, será uma das maiores preocupações de Porto-Alegre. Embora

também tenha se envolvido com a literatura a ponto de se aventurar no desenvolvimento da

epopeia Colombo na segunda metade do século XIX, suas produções literárias são de

relevância menor, principalmente quando comparadas às pinturas e aos projetos

arquitetônicos. Comentando-se de maneira mais severa, a atuação pública também ocupou

grande parte de seus pensamentos. Os resultados de seus empenhos nessa área, como a

participação no IHGB, foram decisivos para a manutenção de seu nome e obra na história.

Aproximando-nos, enfim, de uma visão mais abrangente acerca das primeiras

apresentações do teatro romântico brasileiro, podemos analisar o caso de Gonçalves de

Magalhães. Assim como os autores mencionados anteriormente, existe uma suspeita de que

ele também estivesse no conjunto de dramaturgos brasileiros postos em cena em 1837, com a

tradução do Otelo de Ducis. Segundo atestam os registros, Otelo foi a tragédia mais encenada

por João Caetano (Prado: 1972, p. 25). Contudo, novamente é preciso ter alguma cautela a

respeito dos relatos históricos que dizem respeito ao poeta de Suspiros poéticos. Além do fato

de que o anúncio em questão deixa em aberto se a versão de Otelo representada em 8 de

agosto, em benefício do ator José Cândido da Silva, seja a de Gonçalves de Magalhães, pois o

anúncio se resume a dizer que foi “traduzida do francês por hábil pena” (JC,

05/08/1837, p. 2), também é improvável que João Caetano tenha atuado nessas

representações, visto que a tragédia fora encenada no Teatro da Praia, conduzida por outra

companhia teatral. Com efeito, desde agosto daquele ano João Caetano estaria dirigindo a

peça O gênio do bem ou Os mouros de Ormuz, “magnífico drama mágico nunca visto em

algum dos teatros desta Corte” (11/09/1837, p. 3), e representava o papel principal de Ricardo

D’Arlington ou Três anos da vida de um deputado, que foi à cena em julho e agosto.

Dessa forma, sem termos comprovação da presença cênica de Gonçalves de Magalhães

anterior ao famoso 13 de março de 1838, sua estreia oficial continua sendo a mesma. Aliás, é

de se prever que a tendência do poeta fosse reivindicar a data correta, não sendo necessários

muitos esforços para defini-la. No entanto, há uma curiosidade acerca da estreia de O poeta e

a Inquisição. A princípio, a peça foi anunciada para 20 de dezembro de 1837, depois

remarcada para 3 de janeiro e, finalmente, postergada até ficar pronta. De certa forma, os

sucessivos adiamentos contribuíram não só para que a peça tivesse mais tempo de ensaio do

que o comum, como também para gerar expectativa: “a impaciência com que há muito se

espera sua representação” (JC, 06/03/1837, p. 3), criando-se involuntariamente uma das

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maiores campanhas publicitárias para uma estreia teatral. Do primeiro anúncio ao dia da

estreia, foram quase quatro meses de expectativa para o público do Teatro Constitucional

Fluminense.

Finalmente levada à cena, Antônio José, ou O poeta e a Inquisição certamente causou

um dos mais agradáveis efeitos que uma peça inédita poderia oferecer à época. As peças,

ensaiadas em prazos curtos (mas com afinco), necessitavam da presença de um ponto, alguém

que se escondia no procênio, acompanhava o texto e sopraria a fala sempre que necessário.

Dessa vez, porém, houve bastante tempo para o elenco de João Caetano ensaiar, o que deve

ter permitido trabalhar inclusive outros detalhes da ação cênica. A crítica publicada em 21 de

março no Jornal do Commercio enfatiza que houve um “vigor de execução como nunca vira a

cena brasileira” e compara a montagem ao que normalmente se costumava assistir:

A máquina declamatória, as posições automáticas, o jogo de cena amaneirado e a

rotina da ignorância foram substituídos pela expressão fisionômica, por uma

mímica nervosa, e por um colorido declamatório, onde cada ideia é representada

por um som que lhe é próprio, por um gesto que lhe é análogo e por uma harmonia

artisticamente combinada que nada deixa a desejar (p. 2).

Se novamente é perceptível o tom elogioso que permeia todo o texto, podemos extrair

dele a noção de que houve um trabalho cênico mais profundo do que o de costume. João

Caetano, que na ocasião já estava assenhorado da reputação de primeiro ator e diretor

dramático, fez valer a oportunidade de ensaiar durante cerca de cinco meses, deixando patente

um dos principais problemas do teatro nacional: a necessidade de renovação constante de

títulos para um público limitado, levando a consecutivas montagens às pressas.

Com o intuito de reforçar um pouco a importância dos esforços da montagem a fim de

viabilizar o texto cenicamente, compararemos alguns pontos do quinto ato com o descrito em

duas críticas, a citada anteriormente e a do Jornal dos Debates; esta menciona que, ao subir o

pano, João Caetano estaria “ligado a um paredão, preso por grossas correntes” (22/03, p. 2),

posição em que o ator permanece durante quase todo o ato. Contudo, a rubrica do texto diz

que Antônio José estaria “deitado no chão sobre palhas, preso por uma corrente à pilastra que

no meio da cena sustenta a áboboda do cárcere” (1865, p. 103). A mudança, aparentemente

simples, de estar preso a uma parede em vez de uma pilastra, muda um pouco o espaço

cênico, posicionando Antônio José mais ao fundo, o que deixa o centro livre para a

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movimentação de Frei Gil. Além disso, outras rubricas que se relacionem a essa devem ter

sido adaptadas, como a de se segurar à pilastra para não cair (p. 116).

Ambas as críticas elogiam o quinto ato e o identificam como ponto alto da tragédia,

mas a descrição contida no Jornal do Commercio é mais interessante para fins de comparação

com o texto. Para ele, há um “belo monólogo no quinto ato, e mais bela ainda a conversação

de Frei Gil” (p. 2), o que significa que todo o ato foi bem desempenhado, visto que a única

fala não dita por Antônio José e Frei Gil é a de um carrasco chamando o condenado para a

execução. Por sinal, o momento em que entra o carrasco com sua tropa é o que aparenta ser

mais detalhado na descrição do espectador.

Antônio José perdoa-lhe em nome de Deus, abraça-o como irmão, uma esperança

lhe esvoaça na mente quando toca o sino e o chamam para a morte

.......Silêncio..... (sic) Ouve-se o subvenite; vestem-no com o sambenito; dão-lhe a

tocha, e ele como uma fênix se reanima e saúda o momento de sua liberdade.

Consideramos importante transcrever fielmente a extensão das reticências, pois

enfatiza como o recurso cênico de gerar tensão dramática através do silêncio foi utilizado

naquele momento pela companhia de João Caetano. Podemos supor que tal recurso não fosse

costumeiramente utilizado devido à impossibilidade de manter o público silencioso por muito

tempo. A luz do teatro ficava acesa durante toda a representação, havia contínua

movimentação nos camarotes, cumprimentos, aplausos, vaias, cochichos, enfim, toda a sorte

de ruídos poderiam interferir no espetáculo. Porém, levando-se em conta a honestidade da

descrição, João Caetano conseguiu prender o público a tal ponto que o silêncio se impôs no

teatro. Isso, de fato, pode ser entendido como um momento raro da execução cênica no Brasil.

Além disso, deve-se outra vez levar em conta os esforços da montagem, visto que as rubricas

diferem do relato, inclusive quanto à referida pausa:

Ouve-se o estrondo do ferrolho que corre, a porta de cima da escada se abre,

descem alguns homens com brandões acesos, outros ficam nos degraus; um deles

grita de cima: Antônio José!

FREI GIL – Deus!

Antônio José, sem dar acordo do que se passa, fica imóvel no mesmo lugar: um

homem que traz os vestuários da pena de fogo se aproxima, tira-lhe a cadeia e o

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veste, sem que ele ofereça a menor resistência; depois de vestido, o puxam pelo

braço para que marche (1865, p. 131).

É preciso destacar que a ideia contida na rubrica acerca de Antônio José ficar imóvel

se deve principalmente ao choque de acabar de ter descoberto, na conversa com Frei Gil, que

Mariana e o Conde de Ericeira estavam mortos. Além disso, segundo a descrição, canta-se um

subvenite, isto é, um canto gregoriano fúnebre, o que nos leva a crer que os homens que

entraram em cena participaram em forma de coro, outra ação que não está prevista na rubrica.

De fato, comparando a descrição e o texto da tragédia com maior rigor, ainda existem outros

pontos destoantes, como a de entregar uma tocha para Antônio José, mas são diferenças

menores. Por ora, basta-nos perceber que a peça foi tão bem ensaiada que houve tempo de

adaptar o texto e, assim, aumentar sua viabilidade cênica.

Após o sucesso da representação, a tarefa de eternizar o momento estaria nas mãos de

Gonçalves de Magalhães e seus amigos. Nos textos do poeta, encontram-se com facilidade

referências à ambição de permanecer na história. No poema “Ao deixar Paris”, em meio à

despedida e aos elogios que presta ao amigo Torres Homem pelo sucesso no campo das

ciências, humildemente se revela incerto quanto ao próprio futuro: “Eu mísero, fosfórico

meteoro / Sem nome vago. – E morrerei sem nome?” (1836, p. 344). Esse sentimento,

embrionário, cresceria conforme o poeta conquistasse prestígio entre seus pares.

Consideramos que o primeiro sucesso de Gonçalves de Magalhães tenha sido, de fato,

a representação de O poeta e a Inquisição, de modo a ser o ponto em que se lhe desperta a

certeza de poder alcançar a glória. Após a estreia, Gonçalves de Magalhães redigiu dois

poemas dedicados aos dois principais atores da companhia, João Caetano e sua companheira

Estela Sezefreda, que foram publicados no Jornal do Commercio de 22 de março por “Um

admirador” do poeta.8 Nos versos a João Caetano, há o seguinte terceto: “Tu deixarás teu

nome; avante, oh jovem! / Que a glória que predizem teus amigos / Será pelo porvir

sancionada”, e, nos versos a Estela Sezefreda: “Não há classe p’ra o gênio, quando a glória /

De perfumes o cobre, e o nome envia, / Para modelo, às páginas da história” (p. 2). Pelo que

se pode perceber, o desejo de perpetuação na história é reinante e, ainda que em poesia

encomiástica, pode-se cogitar a projeção dos próprios desejos do poeta.

8 A íntegra dos dois poemas de Gonçalves de Magalhães se encontra no Anexo 6 desta tese.

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Enfim, quando da publicação da tragédia para seus admiradores, Gonçalves de

Magalhães fez questão de redigir um prefácio. Primeiramente, para dar mais informações

sobre Antônio José, visando combater “o desleixo com que tratamos os poucos escritores que

nos dão glória” (1865, p. 3); mas depois, no decorrer do prefácio, ressaltam-se suas

impressões da peça e os pensamentos acerca do próprio projeto literário.

Se devesse julgar do mérido desta tragédia pelos aplausos que lhe prodigalizou o

público nas repetidas vezes que subiu à vena, eu me acreditaria autor feliz, isento

de censuras, atendendo ao entusiasmo com que foi recebida e os elogios que

mereceu, particularmente o 5º ato (p. 6).

Consciente do sucesso de sua obra, Gonçalves de Magalhães toma para si os aplausos

que a tragédia recebeu, num prefácio que não cita nem agradece a companhia de João Caetano

e os esforços de adaptação que certamente proporcionaram maior viabilidade cênica ao texto.

Fugindo dessa questão, o autor se mostra temeroso sobre “quanto perde a obra do entusiasmo

em uma leitura fria e desanimada” (idem) e reforça o mérito de O poeta e a Inquisição ser “a

primeira tragédia escrita por um brasileiro, e única de assunto nacional” (p. 7), argumento

amplamente aceito. Não nos cabe retirar esse marco, visto que não dispomos dos textos dos

dramas anteriores para intentar alguma reclassificação de gênero, porém não devemos nos

esquecer de que a dramaturgia brasileira já existia antes disso. Em todo caso, o autor, na

despedida, convida os escritores a segui-lo “na árdua empresa de enriquecer a nossa pobre

literatura, apesar da vergonhosa indiferença com que se tratam hoje os literatos” (p. 8) e, com

efeito, o poeta realmente desejava a existência de um grupo de literatos brasileiros – desde

que ele pudesse ser o líder.

Diante desse conjunto de realizações, desde meados de 1837 os jovens escritores

brasileiros foram motivados a produzir, julgando existir um cenário favorável à inserção de

suas narrativas nos jornais, livros e palcos do Império. Martins Pena estaria nesse grupo e se

prontificou à criação. Nos palcos, sabemos que estreou com O juiz de paz da roça, mas é

importante ressaltar que o acolhimento às obras nacionais foi uma constante das noites de

espetáculo em benefício da companheira de João Caetano, a atriz e dançarina Estela

Sezefreda. Em 9 de agosto de 1837, a escolhida foi A morte de Camões, de Burgain. Em 13 de

março de 1838, a emblemática tragédia de Gonçalves de Magalhães. Em 4 de outubro,

faltando poucos dias para a companhia de João Caetano deixar o Teatro São Pedro de

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Alcântara, ocorre a estreia de Martins Pena, também em noite em benefício da atriz. Como era

costume que o beneficiado escolhesse as peças, assim como a organização de todo o

programa, podemos ver em Estela uma verdadeira promotora do teatro nacional, sem grandes

contestações acerca da interferência de João Caetano nesse assunto.

2.3.2 Juvenília de Martins Pena: entre os jornais e os palcos

A estreia de Martins Pena nos palcos não foi sua primeira apresentação como autor.

Antes disso, ele já estava presente no Gabinete de Leitura, tendo assinado o conto “Um

episódio de 1831” na edição de 8 abril de 1838. No entanto, levanta-se a hipótese de que sua

atuação no periódico teria se iniciado antes, provavelmente desde o lançamento em 13 de

agosto de 1837, pois no primeiro número se encontram traduções do Revue Britanique, uma

das publicações consultadas por Martins Pena na Biblioteca Nacional.

Em algum momento de sua pesquisa, Darcy Damasceno lançou-se à empreitada de

verificar se algum dos artigos poderia ser atribuído ao comediógrafo; contudo, receoso pelo

fato de não serem assinados, evitou qualquer tipo de indicação apressada. Essa atitude foi bem

sensata, pois não podemos nos furtar à ideia de que à época do surgimento do Gabinete de

Leitura já existiam cronistas tão ou mais hábeis que Martins Pena. Além disso, alguns dos

escritores dos periódicos possuem traços de estilo muito semelhantes aos do dramaturgo, o

que dificulta bastante a tarefa de pinçar textos não assinados e levantar hipóteses sobre sua

autoria. No entanto, mesmo diante dos riscos, consideramos que trazer alguns desses textos à

luz seja relevante no sentido de estar em contato com as narrativas brasileiras do período.

O primeiro número do Gabinete de Leitura contém uma crônica original e relevante

para levantar suspeitas quanto a Martins Pena ter, no mínimo, lido o periódico. Intitula-se

“Uma visita” e narra a chegada inesperada de uma família do interior à casa do cronista.

Começa pelo seguinte trecho:

Desgraçado o homem que, tendo nascido na aldeia, ou tendo lá conhecidos, se

atreve a morar na cidade! A cada hora, a cada instante pode dar na cabeça a um

desses compatriotas vir à cidade e, fiado na bondade dum homem, fazer de sua

casa hospedaria para si, sua mulher, seus filhos, seus apaniguados e escravos

(p. 7).

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Dada a introdução acima, começa a narrativa propriamente dita. O cronista se deleitava

em ociosidade, cantarolando “Perché turbar la calma”, quando um “esquadrão de roceiros”

apareceu à porta. Como se tratava do compadre de seu pai, embora “escoltado de sua mulher,

de seus filhos e de sete ou oito escravos e escravas” (p. 7), teve de os acolher. Após os

hóspedes se acostumarem com a casa, resolveram passear na cidade, mais especificamente

para ver a cobra surucucu no Museu de História Natural e o elefante Pizarro. No caminho,

encontraram um anúncio do artista circence Chiarini e sua macaca equilibrista em Niterói. O

cronista teve de acompanhá-los em todos esses divertimentos e, por conta do passeio, perdeu

todo o dia, não tendo tempo de escrever para o jornal.

A quantidade de referentes que se ligam às primeiras peças de Martins Pena não pode

ser tomada como coincidência. A farsa inacabada Um sertanejo na Corte, cuja data de

elaboração coincinde com seus primeiros textos teatrais (Darcy Damasceno suspeitava que

tivesse sido a primeira tentativa dramática de Martins Pena), teria como mote a chegada de

Tobias à Corte, onde tudo constitui novidade, desde pianos até manequins de cera.

Contudo, O juiz de paz da roça possui mais correlações com a crônica, ao menos

quanto às atrações da cidade. No manuscrito, José da Fonseca diz: “no Largo de São

Francisco há uma casa onde se veem muitos bichos cheios, muitas conchas, cabritos com duas

cabeças e um jararacuçu vivo, que foi o que menos me admirou” (1956a, p. 47). Não se trata

de inovação de nomes, pois a cobra fora anunciada com ambos os nomes, sinônimos da

espécie. A macaca de Chiariani também é citada, indiretamente, após a descrição do curro:

JOSÉ – Pois o curro dos cavalinhos! Isto é que é coisa grande! Há uns cavalos tão

bem ensinados que dançam, fazem mesuras, saltam, falam etc. Porém o que mais

me espantou foi ver um homem andar em pé em cima do cavalo.

ANINHA – Em pé? E não cai?

JOSÉ – Não. Outros fingem-se bêbados, jogam os socos, fazem exercício – e tudo

isto sem caírem. E há um macaco chamado o macaco Major, que é coisa de

espantar.

ANINHA – Há muitos macacos lá?

JOSÉ – Há, e macacas também.

(MP: 1956a, p. 30)

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O trecho que se refere aos macacos, conforme citado anteriormente, é de redação

posterior ao manuscrito, logo, talvez seja uma piada criada em conjunto com os atores. De

qualquer forma, todas as atrações mencionadas foram anunciadas no Jornal do Commercio, e

vale a pena salientar que, às vezes, esses anúncios vinham acompanhados de estampas, muito

raras nas edições daquele período, portanto muito chamativas, despertando o interesse tanto

do público quanto de autores dispostos a criar cenas do cotidiano.

Outro texto publicado nos primeiros números do Gabinete de Leitura que se

assemelha ao estilo de escrita de Martins Pena é o pequeno “Loteria”. Um texto

despretensioso, porém crítico acerca da preguiça do homem que sonha em ganhar dinheiro

sem fazer esforcos. Em suma, uma experimentação satírica:

Não há coisa como os sonhos, e as loterias são sonhos. Quem me dera ver

extrair-se uma loteria por dia! Então sim, todos que entrassem com os seus

20$000 teriam crédito em todos os armazéns, lojas etc. etc., porque as loterias dão

crédito, e não é gracejo isto que digo: o meu freguês do armazém já não me fiaria

uma vela para me alumiar a hora da morte se não soubesse que eu sou devoto da

Misericórdia, do S. Sacramento, do Monte Pio, dos Teatros, do..., do..., enfim de

tudo quanto cheira a loteria, e que posso dum dia para outro pagar tudo, e ser

muito bom freguês (20/08/1837, p. 8).

A coloquialidade e a fluidez do pequeno texto nos permitem vê-lo como um

monólogo, bem próximo do estilo que Martins Pena utilizaria em A família e a festa da roça,

quando o autor experimenta falas de maior extensão, estas normalmente contendo críticas à

sociedade. O fazendeiro Domingos João inicia a peça sozinho no palco e, irritado, comenta os

problemas da lavoura com o público: “Muito mal vamos nós neste ano! As enchentes têm

apodrecido as canas; o café tem morrido no pé e secado; o arroz, nisso não falemos! Está tudo

alagado, entende o senhor?” (1956a, p. 72). Esta reclamação certamente não fala apenas da

própria fazenda, visto que seu principal produto é o café e, em teoria, não há enchentes e secas

no mesmo lugar. Portanto, a farsa se inicia com uma reclamação geral, de modo a criar uma

ambientação na roça e, desse ponto, caminha progressivamente à pessoalidade: começa por

reclamar da falta de pagamento dos foreiros e das manobras que fazem para evitar trabalho,

depois fala sobre seus planos de enviar café para a cidade, comenta a qualidade das estradas e,

por fim, verifica quantas pessoas estão presentes para a colheita, concluindo que são poucas.

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Infelizmente, para se tentar definir a autoria das crônicas, contos e textos breves do

Gabinete de Leitura seriam necessários maiores esforços linguísticos e históricos. Sabemos

que, além de Martins Pena, redigiam no periódico Josino do Nascimento Silva (que era o

editor), Firmino Rodrigues da Silva, João Manuel Pereira da Silva, entre outros. A narração

em primeira pessoa estará presente na maioria dos contos originais, sendo Pereira da Silva o

autor mais prolífero do gênero. Entre seus títulos, estão Luiza: legenda brasileira, Um último

adeus, Um primeiro amor e As catacumbas de São Francisco de Paula, todos ambientados no

Rio de Janeiro. Entretanto, esses escritos não possuem a mesma carga satírica dos textos

selecionados, assim como seus conjuntos semânticos não se encaixam muito bem. Trata-se, a

princípio, de autores diferentes.

A julgar apenas pelos redatores conhecidos, os textos que se assemelham ao estilo de

Martins Pena também poderiam ser de Josino do Nascimento ou de Firmino Rodrigues da

Silva. O primeiro deixou mais escritos assinados do que o último, o que nos ajuda a discernir

melhor seu estilo. Entre as notas manuscritas de Darcy Damasceno referentes ao cotejo desses

textos, está assinalado que Josino “também escreve com o mesmo espírito e em 1ª pessoa,

mas é mais correto na frase” (grifo do autor). A observação surge durante a análise do conto

“Minhas aventuras em véspera de Reis”, publicado em 1839 no Correio das Modas. Por sua

vez, Firmino Rodrigues da Silva tem poucas composições literárias catalogadas em seu nome,

mas Darcy Damasceno observou que o estilo do conto “Um sonho” se parece com alguns de

seus antecessores não assinados no Gabinete de Leitura. Seria o fim da linha para a tentativa

de atribuir novos contos a Martins Pena, visto que as dúvidas não poderiam ser resolvidas

com clareza.

No entanto, há um referente relevante na crônica não assinada “Vamos à feira”,

lançada no Gabinete de Leitura de 10 de setembro de 1837, com ao menos outras duas

crônicas de Josino do Nascimento, a saber, “Fui ao baile” e “Sou escritor dramático”, no

periódico O Cronista em 19 de abril e 26 de agosto do mesmo ano, respectivamente. Não

apenas os estilos se assemelham, mas também se referem ao cronista como “Sr. F.” nas falas.

A ortografia e o léxico utilizados nos textos são muito parecidos. O motivo do pseudônimo na

inicial não fica muito bem esclarecido (nada impede, por exemplo, que Sr. F. seja uma espécie

de “Senhor Fulano” usado genericamente por diversos autores), contudo, como Josino do

Nascimento foi o editor do Gabinete de Leitura, é praticamente certo que “Vamos à feira” é

de sua autoria.

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Traçar todas as semelhanças entre as crônicas e contos levaria muito tempo e, ainda

assim, restariam dúvidas quanto à autoria. De qualquer forma, ao que tudo indica o mais

improvável autor das histórias dos costumes fluminenses publicadas em 1837 seria Martins

Pena, visto que sua primeira publicação assinada, a 8 de abril de 1838, é um pequeno conto

em terceira pessoa com pano de fundo histórico e, evidentemente, os estilos se afastam.

Contudo, é possível averiguar outras diferenças, e uma das mais gritantes está na pontuação.

A frequência das reticências e múltiplas exclamações é muito maior em “Um episódio de

1831” do que em qualquer um dos contos e crônicas mencionados.

A construção da trama é bem simples. Julio é um rapaz órfão que foi deixado aos

cuidados da madrinha Rita e, por isso, tornou-se amigo de infância de Mariquinhas, filha da

mesma. Enquanto os dias eram normais, Rita planejava o casamento dos dois e conseguiu

alocar o rapaz como caixeiro, a fim de que ele pudesse juntar o mínimo de recursos. Os dois

futuros noivos se encaminhavam para a felicidade, embora um certo José, “vadio por

profissão e frequentador de botequins”, importunasse Mariquinhas e desejasse a destruição de

seu rival. O destino do casal muda em 14 de julho de 1831, quando um grupo de rebeldes

bêbados é conduzido por José à taverna de Julio, que é cruelmente assassinado. Curiosamente,

o final do conto destaca o ímpeto de Mariquinhas de sair de casa e defender seu amado.

Repentina revolução operou-se em todo seu ser, o sangue subiu-lhe à cabeça, as

veias das fontes pareciam rebentar! e sem atender aos gritos de sua mãe, ela

precipita-se na rua e corre para onde estava Julio.

Oh! como Mariquinhas era digna de compaixão! Os seus belos cabelos caíam

desgrenhados pelas suas costas; seus olhos estavam fixos, e no seu semblante

via-se uma horrível contração nervosa! Oh! quanto era digna de piedade!... ela não

podia chorar!...

Os soldados a deixam passar e recuam atemorizados como diante de uma aparição

sobrenatural. Mariquinhas, a bela Mariquinhas fazia medo!!!

Ela chegava junto a José no momento em que este cravava a baioneta no coração

do infeliz Julio.... Frenética e furiosa, lança-se como um raio sobre José e enterra

seus dentes de pérolas em suas faces!... Dois gritos se ouviram.........

Um, grito de morte, o outro foi um rugido de hiena, um grito de condenado, um

grito como não se ouve senão no inferno!!... depois uma gargalhada! uma

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gargalhada seca, anelante, estridente, uma gargalhada como dão as fúrias quando

terminam uma obra de mal!!!...

Era Mariquinhas!

Horror!!!

Ela estava doida!!!!.... (08/03/1838, p. 8).

Transcrevemos a pontuação de maneira fidedigna à versão publicada, de modo a ficar

patente o entendimento exagerado das exclamações e reticências. A propósito, no trecho com

mais pontos de reticência (“Dois gritos se ouviram.........”) há um espaço entre cada um dos

pontos, o que não ocorre nos outros textos que selecionamos. A diferença no uso de recursos

gráficos se torna, portanto, um forte indício de que Martins Pena não seja autor dos contos

anteriores.

Segundo Magalhães Júnior, “o conto vale menos por sua expressão literária do que

como um documento veraz de um período crítico da vida brasileira” (1971, p. 14); no entanto,

a questão histórica é mero pano de fundo para o rápido desenrolar da narrativa. A maior parte

do texto é dedicada ao amor e à tragédia de Julio e Mariquinhas. É verdade que a expressão

literária do conto não apresenta grande porte, mas também é natural que assim seja. Em

termos gerais, o grande mérito de “Um episódio de 1831” foi abrir as portas para um autor

estreante, de modo a incentivá-lo a produzir.

Da breve análise sobre as narrativas do Gabinete de Leitura pode-se concluir que seus

ficcionistas eram parte de um grupo que abraçou a ideia de levar histórias do cotidiano

brasileiro aos leitores, a rigor, uma ideia desenvolvida em conjunto com seu periódico irmão

O Cronista. Ambos eram produzidos na tipografia de Josino do Nascimento Silva, que

efetivamente assumia a função de editor. A diferença principal entre os dois periódicos é que

em O Cronista havia mais espaço para a discussão política e informes variados, ficando a

literatura no apêndice, espaço que às vezes também abrigava críticas teatrais. Já o Gabinete de

Leitura era um periódico dedicado à literatura, concedendo pequenos espaços para outras

matérias, como o luto por algum amigo recém-falecido.

Nesse ponto da discussão, é importante levar em conta que Josino do Nascimento,

Justiniano José da Rocha, Firmino Rodrigues da Silva e José Manuel Pereira da Silva, entre

outros, formavam um grupo jornalístico e literário importante, que tomaremos a liberdade de

chamar de Grupo de Oposição. Eles estavam em atividade desde 1836, produzindo crônicas,

contos e traduções, além de artigos criticando a regência de Feijó. Por diversos motivos,

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também rivalizaram com o Grupo de Paris, especialmente com Manuel de Araújo

Porto-Alegre. Acreditamos que a sistemática exclusão desse grupo nos compêndios históricos

em favor do Grupo de Paris não se deva ao acaso. Ao contrário, ao tomar as rédeas de contar a

história do Brasil, os sucessivos membros do IHGB valorizaram alguns e excluíram outros.

Desse modo, ao alcançar o século XX a parcialidade estaria convencionada e assim

permaneceu.

A imagem de Martins Pena, contudo, conseguiu escapar do destino de seu grupo, e

isso se deve tanto à filiação de seu cunhado ao IHGB quanto a um envolvimento discreto com

os desafetos de Porto-Alegre. Conforme se confrontam as narrativas do Grupo de Oposição e

as primeiras comédias de Martins Pena, correlações surgem com certa facilidade, suscitando a

suposição de o dramaturgo haver se inspirado neles, ou ainda de ter sido um amigo do grupo,

com o qual trocaria ideias e reflexões. Era um grupo de homens solteiros na mesma faixa

etária (o mais velho deles seria Josino, que nasceu em 1811) e com vários interesses em

comum: leitura, política, teatro, literatura, tipografia. Em suma, trata-se de uma rede de

contatos que impulsionou Martins Pena a despertar a vocação às vésperas de sua entrada no

funcionalismo público.

Uma das lacunas da produção de Martins Pena é exatamente o período entre março e

outubro de 1838, isto é, da publicação de “Um episódio de 1831” à estreia de O juiz de paz da

roça. Esse intervalo foi bastante conturbado para o jovem, devido à disputa judicial pelos bens

de seus pais, conforme detalhado anteriormente. Em julho daquele ano, o processo seria

julgado no Supremo Tribunal, última esfera do Judiciário. Além disso, é preciso considerar os

esforços necessários para estabelecer contatos no teatro, assim como o salto qualitativo na

composição da comédia frente à tímida narrativa de “Um episódio de 1831”. Ao se

ponderarem esses fatores, chega a ser surpreendente como o autor iniciante progrediu em tão

pouco tempo.

Nada impede que o dramaturgo tenha participado na produção de traduções, pequenos

textos, anetodas ou mesmo no trabalho tipográfico. Porém, importa perceber a existência de

um grupo de jovens brasileiros que trabalhava cenas pitorescas e picarescas com personagens

da cidade e do interior, antes que Martins Pena marcasse o teatro com sua estreia canônica. Os

diversos textos e traduções que se relacionam com os escritos e leituras do comediógrafo não

devem ser ignorados.

Até onde nossa investigação alcançou, o ano de 1838 não registra nenhuma outra

realização artística de Martins Pena, ou seja, nada a acrescentar ao que já se conhece. O

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dramaturgo voltaria aos jornais no primeiro mês do ano seguinte, no recém-lançado Correio

das Modas, publicado na tipografia de Laemmert e destinado ao público feminino. O primeiro

de seus contos assinados no periódico é “A sorte grande”, nas edições de 12 e 19 de janeiro de

1839. Na edição que contém a primeira parte, o conto de Martins Pena é antecedido pelo de

Josino do Nascimento Silva, intitulado “Minhas aventuras na véspera de Reis”, e sucedido por

um poema de Schiller, traduzido por Firmino Rodrigues da Silva. Nas oito páginas que

compõem o periódico, somente esses três textos estão assinados. Portanto, é novamente

dedutível alguma aproximação entre os autores.

Vale ressaltar que o texto de Josino é o único de natureza estritamente cômica. Um

grupo de rapazes decidem cantar e dançar, tal como era a tradição das vésperas de Reis, a fim

de obter uma boa ceia. Na primeira casa em que se apresentam, o anfitrião oferece “vinho,

licor, cerveja etc., mas nada de sólido que contrabalançasse os líquidos” (p. 4). Como estavam

com calor, todos beberam. A embriaguez não os impediu de continuarem a busca pela ceia,

mas tanto a cantoria quanto a música só poderiam desagradar os próximos ouvintes, que

arremessaram um balde de líquido fétido no corifeu. Após uma troca de pedradas, uma ronda

policial aparece e a trupe foge, “tomando cada um o caminho que mais lhe aprouve” (p. 5).

Podemos perceber, portanto, a forte presença da cor local nesse texto.

No caso de “A sorte grande”, a presença de humor é bem mais contida, quase não

intencional. Julio é um amante dos bailes da Corte, deseja se casar com Mariquinhas e detém

alguma riqueza, pois recebera como herança de seu pai “uma extensa fazenda de café com

numerosa escravatura” (p. 5). Porém, visto que Julio não era afeiçoado ao interior, vendeu a

fazenda e os escravos, desejando trocá-los por apólices e propriedades urbanas. Após receber

o dinheiro da venda, guarda-o todo em sua casa, enquanto aguarda por oportunidades de

comprar novos bens. Declara seu amor por Mariquinhas e a pede em casamento, o que é

aceito por ela e pelo pai. Uma noite, ao voltar de um encontro com a noiva, encontra sua casa

arrombada, descobrindo que levaram todo o dinheiro da herança. Desesperado, despede-se da

amada e toma a abrupta decisão de se alistar na tripulação de um navio partindo para a Índia, a

fim de conseguir uma nova fortuna. É no cais, antes de subir a bordo, que o momento mágico

acontece: Julio esbarra em uma senhora, “a qual por pouco ele não atirou ao mar”, e esta lhe

vende um bilhete de loteria. Após dois anos de árduos trabalhos que transformaram Julio em

um novo homem com nova fortuna, o navio retorna à barra do Rio de Janeiro, mas é tomado

por uma forte correnteza e se despedaça nos rochedos da fortaleza de Santa Cruz. Frente a

esse tragicômico acidente, Julio é o único sobrevivente de toda a tripulação, mas os esforços

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para recuperar sua riqueza foram em vão. Quando ele tenta se matar, a Providência lhe

ilumina o bilhete de loteria. Ele enlouquece, ou melhor, perde sua identidade: agora ele é o

bilhete. Ao correr para a fortaleza, quase é morto pela sentinela, mas acaba preso. Os militares

percebem que o homem está louco, porém escrevem uma carta para o fiscal das loterias a fim

de conferir o bilhete e, claro, estava mesmo premiado. Após se recuperar da insanidade, Julio

conquista seus objetivos: recupera sua fortuna e se casa com Mariquinhas. Vivem felizes,

embora o rapaz ameace recaída à loucura sempre que lê notícias a respeito de loterias.

Algumas relações entre os dois primeiros contos de Martins Pena são evidentes: em

ambos os textos, existe o amor entre Julio e Mariquinhas e um conflito para dificultar ou

impedir a realização do casamento. Outro aspecto comum é o surto psicótico: Mariquinhas

enlouquece em “Um episódio de 1831” e Julio em “A sorte grande”. Contudo, alguns aspectos

semânticos e estruturais são de maior relevância na comparação. Nos dois textos,

trabalham-se narrativas de entrechos simples, o que não impede que passem por dificuldades

em questões de verossimilhança. Com efeito, “A sorte grande” supera os problemas do

antecessor, visto que se tentou elaborar uma trama um pouco mais elaborada. Enumerando as

ações mais duvidosas, temos: guardar uma enorme soma de dinheiro na própria casa por

muito tempo; decidir-se abruptamente a tomar parte numa tripulação marítima e ser aceito

pelo capitão; ser o único sobrevivente de um naufrágio bem próximo à terra firme; encontrar o

bilhete no bolso mesmo após ter imergido no mar. Em suma, a fragilidade de “A sorte grande”

é uma interessante prova de que se autor ainda estava engatinhando nas técnicas narrativas.

Em 23 de janeiro, publicou-se, enfim, o primeiro conto verdadeiramente cômico de

Martins Pena, “Minhas aventuras numa viagem de ônibus”. Como podemos perceber pelo

título, a epígrafe “Minhas aventuras” estabelece uma ligação com o conto de Josino do

Nascimento. Narrado em primeira pessoa, conta a história de um rapaz admirador de bailes

que resolve visitar um amigo em Laranjeiras. Ele acorda bem cedo para ir no primeiro ônibus

do dia e registra a insatisfação das pessoas pelo atraso do transporte. Compram-se os bilhetes,

os passageiros tomam seus lugares e o narrador fica muito feliz ao ver chegar uma “bela

menina acompanhada de seu paisinho”, principalmente por ela sentar-se a seu lado. A

felicidade, contudo, logo se transforma em ciúmes, pois um rapaz sentado diante deles parecia

ser o namorado. A disputa pela atenção da garota é o tema central da narração, intercalando-se

com pequenas anedotas dos outros passageiros.

Um aspecto interessante da narrativa é que as principais ações do personagem-narrador

acabam por levá-lo ao constrangimento. Durante a partida do ônibus, ele vê uma mulher

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“gorda como uma baleia que corria a botar os bofes pela boca” perder o embarque e, ao

sugerir que ela “viesse rolando até a cidade”, recebe uma “descompostura formal” (p. 7).

Quando o rival pisa no pé do narrador, imaginando ser o da menina, primeiro lhe vem a ideia

de retribuir para aumentar o engano do rival; porém, após alguns momentos de diversão, o

rival pisa no calo mais sensível, levando o narrador a exclamar: “O senhor pretende alguma

coisa? Se me quer falar, não é preciso pisar-me” (idem). As palavras causam espanto aos

passageiros, envergonha o rival, mas causa indignação na menina e chama a atenção do pai

dela. Por fim, ao passarem pela Rua do Catete, uma senhora entra no ônibus e pede tabaco ao

narrador, que resolve dizer em francês: “Je n’en ai pas”, ao que a velha retruca que não está

pedindo genipapo. “Por esta vez fui o alvo das risadas; o nosso namorado achando ocasião de

vingar-se, ria como um doido, e a minha vizinha fazia coro” (p. 8).

Desse modo, o humor proposto por Martins Pena possui sensibilidade para se expor ao

ridículo, postura não muito utilizada por seus contemporâneos. Nos contos de Josino do

Nascimento, Firmino Rodrigues ou mesmo de Justiniano da Rocha, as situações embaraçosas

costumam ser direcionadas para os outros personagens, como é o caso de “Minhas aventuras

na véspera de Reis”. Quando as situações embaraçosas atingem os personagens-narradores, a

consequência mais comum é a de se esquivarem da pilhéria ou tornarem a confusão

generalizada. É o caso, por exemplo, de “Fui ao baile”, também de Josino do Nascimento.

Quando estava a ponto de dançar, o narrador recebe uma recusa de seu par porque ele não

estava usando luvas, o que o leva a uma desastrada reação em cadeia.

Não sei, ao primeiro pulo que dei, a sala retumbou com um murmúrio surdo, mas

ouviam-se distintamente abas da casaca, corrente de campainha, e em verdade,

aqui pra nós, as minhas correntes e sinetes faziam um retinido tão forte que se

parecia com o som de vinte cascavéis juntos. Desconcertei-me, e, ao segundo

pulo, meti um pé pela barra do vestido do meu par; querendo obviar este

desmancho, atirei-me para diante e fui justamente pisar com todo o peso do corpo

o pé duma dama. Em conjuntura tão extravagante, com um pé preso à barra do

vestido do meu par, com o outro sobre o pé da bela dama que me ficava vis-à-vis,

fiz um movimento, perdi o equilíbrio e certo iria ao chão se me não agarrasse às

gadelhas dum gamenho que estava perto de mim. Então conheci que não eram

cabeleiras, mas penteados à Sansão (Lima Sobrinho: 1960, p. 166; grifos do

autor).

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Dadas as semelhanças entre os estilos de Josino do Nascimento e Martins Pena, além

da presença de ambos nos mesmos periódicos, ganha força a ideia de que os dois eram amigos

e trocavam ideias com frequência. Talvez devêssemos nos perguntar se os autores do Grupo

de Oposição não foram mentores do estilo cômico do jovem, visto que o dramaturgo era um

cronista iniciante, enquanto seus companheiros contavam com uma considerável experiência,

além de uma frequência de escrita bem maior.

Segundo os registros, a próxima publicação de Martins Pena no Correio das Modas

seria “O poder da música”, aparecida a 23 de fevereiro. Contudo, descobrimos duas novelas

históricas publicadas em outro periódico, O Sete d’Abril. O editor do jornal era Bernardo

Pereira de Vasconcelos, autor do ato adicional de 1834 e, em 1839, líder do Partido

Conservador, também chamado de regressista. A posição era de oposição à Regência, à época

exercida por Pedro de Araújo Lima, sucessor de Feijó. Logo, havia uma afinidade ideológica

entre o político e o Grupo de Oposição. Entre os inimigos em comum, estava Manuel de

Araújo Porto-Alegre, que fez caricaturas tanto de Justiniano José da Rocha quanto de

Bernardo Pereira de Vasconcelos.

O Sete d’Abril era, evidentemente, um jornal cuja temática principal era a política e

assuntos relacionados a ela. Em atividade desde 1833, o conteúdo foi crescendo aos poucos,

tendo em 1839 quadruplicado seu tamanho inicial. O que antes era um meio quase exclusivo

de divulgação dos pensamentos e orientações de seu editor, agora abria espaço para notícias

comerciais, marítimas, correspondências, recortes de outros jornais; enfim, ampliaram-se

bastante os espaços. Embora possamos encontrar poesias satíricas desde seu início, o espaço

para a literatura sempre ocupou um espaço menor. Contudo, em 24 de janeiro, uma seção

intitulada “Literatura” traria o conto “Duguay-Trouin”.9 À época, dizia-se que era um

“romance histórico”, tal como podemos conferir em outras obras do mesmo formato; contudo,

devido ao tamanho do texto, não se enquadraria como romance no entendimento atual de

gêneros.

Os historiadores não haviam encontrado, logo, supunham se tratar de algo bem maior.

Mario Camarinha da Silva, nas notas do artigo “A Moreninha centenária”, menciona dois

teóricos que especularam sobre a fonte de “Duguay-Trouin”. Para Artur Mota, a novela teria

9 Reproduzido, na íntegra, como Anexo 4 desta tese.

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sido publicada na Sentinela da Monarquia ou no Correio Official em algum momento a partir

de 1840; para Haroldo Paranhos, teria sido publicado no Jornal do Commercio, sem

mencionar a data (Silva: 1944, p. 36). O artigo, dedicado à contextualização do surgimento de

A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, faz um pequeno histórico das narrativas de

autores locais. Segundo o autor, em 1839 houve um “surto novelístico romântico”, e

exemplifica com as novelas de Pereira da Silva e a crônica “O descobrimento do Brasil”, de

Varnhagen; contudo, julgando ser um erro misturar história com ficção, as narrativas são

consideradas de pouco valor artístico e dá-se a entender que o texto de Martins Pena se

enquadraria nesse patamar.

O conto se inicia com a ambientação do episódio em que a esquadra de René

Duguay-Trouin invade o Rio de Janeiro, isto é, a cidade de São Sebastião:

Na manhã do dia 11 de setembro de 1711 os sinos da Igreja da Sé, situada no

morro do Castelo, e os tambores dos regimentos de milícias tocaram a rebate. O

povo corria atemorizado pelas ruas da cidade; uns dirigiam-se para o Castelo e

outras eminências da cidade, e os mais timoratos corriam para as suas casas (p. 3).

A escolha dos elementos iniciais do texto são dignos de nota. O som de sinos e dos

tambores alertam a população de que uma grande ameaça está se aproximando. O “povo”, no

texto original, inicia-se com letra maiúscula, assim como “milícias”, o que indica certa

importância aos elementos que compõem a cidade, personificando-a. O clima de medo e

agitação é um cenário bem conveniente para cenas trágicas, pois atos desesperados se

justificam com certa facilidade. Portanto, situar o texto no momento da invasão do corsário

francês não tem como objetivo principal fornecer informações históricas, mas buscar algum

momento extraordinário em que os personagens possam agir com mais liberdade, inclusive

arriscando suas vidas.

O conto prossegue por mais alguns parágrafos narrando as ações dos habitantes, dos

militares portugueses, do governador da cidade e de Duguay-Trouin e seus subordinados.

Contudo, é durante a investida do corsário para se apossar da Ilha das Cobras que emerge

Henrique, personagem principal da história, descrito como um “mancebo de alta estatura, que

comandava uma das companhias postadas no Forte do Calabouço” (p. 3). Ele se revolta com a

lentidão das forças navais portuguesas, que nada puderam fazer para conter a marcha da

esquadra francesa para dentro da baía. Percebendo que a tomada do forte na Ilha das Cobras

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seria o ponto de partida para a invasão e o bombardeamento da cidade, pede licença ao

comandante para ajudar sua irmã Henriqueta a fugir. É nesse ponto, portanto, que surge o

conflito principal da história:

Henriqueta e Henrique moravam em uma casa com frente para o mar e, por

conseguinte, exposta ao fogo inimigo. Henrique sobe apressadamente as escadas

de sua casa e encontra a sua cara irmã muito assustada. Ela lança-se nos braços de

seu irmão e oculta as suas belas faces no peito deste.

Ambos amantes, ambos órfãos, viviam estes dois irmãos. Henrique tinha 16 anos

e Henriqueta 10 quando perderam seu pai; a vinda de Henriqueta ao mundo tinha

custado a vida à sua mãe... Infelizes!....

Henrique sentia por esta única pessoa de sua família o amor sagrado e puro de um

irmão; amor sem tempestade e egoísmo (p. 3).

O amor fraternal é trazido a primeiro plano, reduzindo a ambientação histórica a pano

de fundo. Cabe-nos perceber que o drama particular do autor está diluído na situação dos

personagens: a condição de órfão, a morte prematura do pai, a morte da mãe durante o parto.

O encontro entre os irmãos é o ponto de virada da história. Henriqueta está com medo e

Henrique pede para que ela se acalme e vá buscar algumas roupas antes de fugirem. É quando

duas balas de canhão atingem a casa: a última acerta fatalmente a irmã. Diante do quadro

tenebroso, o rapaz jura vingança, embora o choque o faça desmaiar. É encontrado por amigos,

que o acordam e o ajudam a levar o corpo de sua irmã ao local do sepultamento.

A nova investida de Duguay-Trouin acontece dez dias depois do incidente com os

irmãos, à meia noite de 21 de setembro. Durante um momento de forte nevoeiro, o corsário dá

ordens para que se invada a cidade transpondo a pequena faixa de mar em pequenas lanchas.

A ideia seria entrar furtivamente, tanto que se envolveram os remos com panos, a fim de

silenciar a movimentação. Contudo, um relâmpago denuncia a presença dos franceses,

reiniciando o combate. Os ruídos dos tiros e canhões põem novamente os habitantes em fuga.

Durante o combate, a esquadra portuguesa percebe que não terá como impedir a entrada das

forças invasoras e também bate em retirada. Somente Henrique se recusa a partir:

Uma só pessoa não fugia com os outros: via-se que com infatigável vigor

carregava barris do Forte do Calabouço para sua casa: esta pessoa era Henrique.

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– Onde vais, Henrique, gritaram os seus companheiros, que já tinham abandonado

as armas para correrem com maior presteza; aonde vais? Vem conosco; daqui a

pouco tudo estará reduzido a ruínas e cinzas; vem.

– Não! Respondeu Henrique; ainda não vinguei Henriqueta: e ele continuava no

seu porfiado trabalho (p. 4).

O temerário ato de Henrique é justificado por uma situação em que vale a pena

entregar a vida. Os soldados inimigos, ao encontrarem a cidade vazia, decidem saqueá-la. No

meio dos assaltos, capturam Henrique e o levam até Duguay-Trouin. Há uma breve conversa

entre os dois: o rapaz diz ao almirante amar os franceses e propõe indicar o local de um

tesouro em troca de ser levado à França com eles. Diz também haver resistência no local,

sendo necessário cinquenta homens para que consigam capturar as riquezas. Henrique

consegue convencer o corsário a enviar os soldados, embora o próprio Duguay-Trouin não o

acompanhe. O rapaz os leva até a casa onde preparou a armadilha e, mesmo tendo a seu lado

um soldado com a espada apontada para ele, saca uma pistola e dispara num dos barris,

fazendo a cidade tremer e todos os homens que acompanharam Henrique morrerem com a

explosão.

A história é cortada nesse ponto para dois últimos parágrafos de conclusão, que

também funcionam como desfecho moral.

Um mês depois Duguay-Trouin partiu para França levando consigo 4 naus, 6

fragatas, 60 navios do comércio português e 600 mil cruzados; porém ele não

gozou de todas estas presas feitas no Brasil. Uma grande tempestade destroçou,

antes de chegar à França, grande parte da sua esquadra.

A Providência castigou a França por ter querido invadir a América..... (p. 4).

Um ponto a ser considerado em “Duguay-Trouin” é que representa um avanço quando

comparado ao primeiro conto, “Um episódio de 1831”. Neste, o momento em que a cidade

passa por uma emergência é muito superficial, o que deixa uma sensação de ter sido colocado

ali apenas para desenvolver o conflito entre os personagens amantes. Já em “Duguay-Trouin”

existe equilibrio entre as partes dedicadas a narrar a invasão da cidade e o desenvolvimento do

drama de Henrique. Por outro lado, deixa a desejar em alguns aspectos, como a ausência de

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sinestesias, ou melhor, a falta de alguns sentidos humanos, pois apenas o visual e o sonoro são

bem trabalhados.

De qualquer forma, é interessante refletir que “Duguay-Trouin” teve um significado

especial para Martins Pena e seus familiares, pois foi o único texto narrativo lembrado na

biografia de Veiga, que colheu informações do filho de Carolina. Embora o conto não seja

autobiográfico, as semelhanças entre a situação de Henrique e Henriqueta e a de Carolina e

Luiz Carlos Martins Pena causariam comoção suficiente para que o texto ficasse marcado na

irmã mais velha, sendo repassado ao filho.

Quase três semanas depois, em 11 de fevereiro de 1839, o Sete d’Abril publicaria outro

conto de Martins Pena, intitulado “A rebelião dos maranhenses ou A morte de Beckman”.10

De fato, o texto ocupa mais da metade de todo o jornal do dia, o que faz do escrito o mais

extenso no gênero produzido por ele. Divide-se em sete capítulos e, como podemos deduzir

pelo título, passa-se no final do século XVII, durante a revolta liderada por Manuel Beckman.

O projeto do conto é mais ambicioso do que o do anterior, representando uma evolução no

estilo. Inicia-se com uma contextualização histórica:

O monopólio concedido aos negociantes de Lisboa em 1680 excitou o maior

descontentamento entre os maranhenses. Os paraenses, pela sua parte, sentindo-se

também lesados nos seus interesses gerais e particulares, fizeram uma

representação às cortes de Lisboa. Porém os maranhenses, menos sofredores,

formaram e executaram um projeto de sublevação. Manuel Beckman, homem

valente e destemido, foi o chefe dos insurgentes (p. 2).

Tal início possui um estilo que difere dos escritos de Martins Pena. Na verdade,

seguindo a indicação da única nota do conto, no quinto capítulo, podemos perceber que o

trecho é uma colagem do livro História do Brasil, de Francisco Solano Constâncio.

1684 – Os habitantes de Pará, sentindo-se lesados nos seus interesses gerais e

particulares, fizeram representações à Corte. No Maranhão o monopólio

concedido aos negociantes de Lisboa excitou o maior descontentamento entre os

10 Reproduzido, na íntegra, como Anexo 5 desta tese.

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habitantes, que formaram e executaram o projeto de sublevação de que Manuel

Beckman foi o chefe (1839, p. 30).

Essa evidência demonstra os primórdios de uma característica da criação de Martins

Pena: a apropriação de outros textos, algumas vezes de forma plagiária. Conforme

vasculhamos os escritos ao alcance do autor, mais aparecem ligações entre eles e a obra do

dramaturgo, lançando por terra a ideia de que ele tenha criado suas histórias apenas do

cotidiano observável. As leituras o teriam influenciado de forma semelhante à observação da

realidade.

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3

Um dramaturgo na Corte

Em algum momento de 1839, Martins Pena passou a canalizar sua energia criativa

para a dramaturgia. Embora não esteja absolutamente claro se abandonou a atividade

jornalística, não se tem conhecimento de mais nenhuma publicação sua em prosa até 1846,

quando retornaria aos jornais com os folhetins, na figura de crítico teatral e ficcionista.

Contudo, no início dessa trajetória ocupava um simples cargo de amanuense e, de alguma

maneira, encontrava tempo para construir pouco a pouco sua obra. Não obstante, esse período,

um dos mais decisivos de sua carreira, é um dos menos estudados, pois foi quando escreveu

seus malsucedidos dramas.

É certo que o dramaturgo já frequentava o teatro, o que o levou a entender melhor a

complicada rotina de se representarem novas peças com os mesmos atores em curtos períodos

de tempo. Em dezembro de 1838, havia duas grandes companhias teatrais em atividade: a

companhia de atores portugueses, que ocupava o Teatro de São Januário, e a liderada por João

Caetano, no Teatro de Niterói. Também existiam grupos de atores dedicados às comédias de

fim de espetáculo, mas vinculados às companhias principais. Como não tinham loterias para

financiá-las, atuavam de maneira periférica, fazendo jus a seu espaço quase acessório nos

programas dos espetáculos.

No Teatro de São Januário, era comum que a atriz Margarida Lemos cantasse.

Evidentemente, tinha formação lírica e dispunha de um agradável repertório, como árias de O

barbeiro de Sevilha, de La gazza ladra, a cavatina de Semiramide, entre outras, donde se

percebe a difusão e a preferência da obra de Rossini na capital do Império. As atrações

principais eram dramas portugueses ou traduzidos do francês, como Polder, ou O carrasco de

Amsterdã, O órfão português, A floresta de Hermanstad e a tragédia Fedra, de Racine, que

trazia Ludovina Soares no papel principal.

Enquanto isso, a companhia de João Caetano, no Teatro de Niterói, investia em atores

e peças nacionais, como A última assembleia dos condes-livres, Antônio José e O juiz de paz

da roça. Também contava com números de música, preferencialmente instrumentais, e

apresentações de dança. O público da capital não tinha problemas em se aventurar nessas

noites de entretenimento do outro lado da baía, pois havia uma barca especial para as

ocasiões, que retornava meia hora após o término do espetáculo.

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A mudança temporária de endereço da companhia de João Caetano se justifica, entre

outras razões, pela reforma do Teatro de São Pedro de Alcântara, em curso desde 1838. João

Caetano havia se despedido da capital e a organização executiva do Teatro de São Pedro

começou a traçar novos planos. Arrecadou-se o suficiente para decorá-lo majestosamente,

pelas mãos dos melhores artistas disponíveis, via diversas loterias. Um visitante da obra

publicou, no Jornal do Commercio de 23 de janeiro de 1839, as seguintes considerações:

A maneira por que a companhia do Teatro de São Januário emprega os dinheiros

das loterias, tão prodigamente concedidas, nos faria recear que a sociedade do

Teatro de São Pedro de Alcântara os imitasse, se a consideração de que

negociantes probos e não necessitados desses pequenos favores não nos viesse à

lembrança. Esse precedente já nos enchia de esperanças e nos fazia crer que o

dinheiro da nação concedido a essa sociedade se reverteria em benefício do

público; convecemo-nos muito mais dessa verdade com a nomeação do Sr. Albino

José de Carvalho para diretor da empresa da sociedade e pela escolha que esse Sr.

fez do Sr. Porto-Alegre para a execução das obras. O público desta capital

conhece bem o nome desse artista e que só ele era capaz de encarregar-se do

imenso trabalho de corrigir, modificar e dar um aspecto brilhante ao nosso

primeiro teatro: a escolha do artista certificou as boas intenções da sociedade e

desta vez a realidade excedeu nossas esperanças em uma visita que fizemos ao

teatro. O teatro se prepara com um luxo extraordinário; o teto é de uma grande

riqueza de composição, cheio de figuras e ornatos realçados a ouro fino, que

produz um efeito maravilhoso. O Sr. Porto-Alegre disse-me que se lisonjeava

muito com a escolha que fizera dos seus artistas e mostrou-me o Sr. Oliver,

arquiteto e pintor, assim como o Sr. Carvalho, que executará as grinaldas de flores

que tanto admiramos. Como não pretendemos antecipar o prazer do público, que

deve extasiar-se na abertura do teatro, não faremos maior descrição do que vimos,

limitando-nos a dar parabéns a esta capital, que vai possuir um dos melhores

teatros e, sem dúvida alguma, o primeiro da América. Conta-nos que o magnífico

lustre com 102 luzes chegara e que se mandará contratar uma companhia italiana

que deve trabalhar alternativamente com a companhia nacional; e estamos

ansiosos para ver aparecer de novo na cena o nosso jovem João Caetano dos

Santos, esse moço que principia a ser velho na cena e a quem se deve o primeiro

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relâmpago da reforma teatral da cena brasileira. Quem dera que os dinheiros de

tantas loterias concedidas fossem tão bem aplicados como os dessas (p. 2).

É perceptível o tom elogioso do comunicado, sendo parcial quanto ao mau uso do

dinheiro das loterias pela companhia portuguesa, ao mesmo tempo que congratula a boa

aplicação da mesma fonte pela Sociedade Dramática Fluminense. No entanto, estamos lidando

com uma sociedade que não tinha muitas regras trabalhistas para cargos como o de ator. Logo,

para que João Caetano e sua companhia continuassem a ter rendimentos, foi praticamente

forçoso buscar um novo espaço e dar prosseguimento à atividade teatral. Enquanto isso, os

executivos do Teatro de São Pedro aplicavam seus recursos em Porto-Alegre e outros artistas

subordinados ao seu projeto arquitetônico.

3.1 Primeiras peças, primeiros dramas

Nesse período de transição, Martins Pena passaria a redigir dramas nos mesmos

moldes dos que eram representados pela companhia de João Caetano, o que sugere uma

aproximação com a obra de Burgain. Segundo os estudos de Darcy Damasceno, que levaram

em conta a ortografia e o tipo de papel utilizado, o primeiro drama de Martins Pena foi

Fernando ou O cinto acusador: a data de composição não é exata, mas se presume que seja,

no máximo, do primeiro semestre de 1838. Contudo, o manuscrito existente contém diversas

falhas estruturais, evidenciando que se trata de uma versão inacabada e, a nos valer dos

registros, posta de lado sem nunca ser revisada ou encenada até meados do século XX.

Portanto, o primeiro drama finalizado de Martins Pena é D. João de Lira ou O rapto.

Nesse caso, valemo-nos da data do próprio autor nos manuscritos. Existem duas versões da

peça e um manuscrito avulso. A primeira versão contém a inscrição de 14 de dezembro de

1839, lançada na folha de rosto juntamente com o título e a assinatura. Contudo, Darcy

Damasceno diz que houve “seguramente desatenção do autor ao datar a peça” (1956b, p. 50),

considerando que o drama teria sido finalizado na mesma data, mas no ano anterior. A

afirmação faz sentido, pois o segundo manuscrito, concluído posteriormente, indica o ano de

1838 como o de composição da peça. Além disso, é preciso considerar que o drama seguinte

de Martins Pena, D. Leonor Teles, traz a inscrição “feito em 1839”, portanto se tentou

desfazer a colisão da autoria entre as duas peças. Já o manuscrito avulso contém cenas que

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não se encaixam na composição final, deduzindo-se que se trata dos primeiros esboços acerca

do drama, mas abandonados durante o processo. Em termos de grafia e diagramação,

assemelha-se aos manuscritos de Fernando ou O cinto acusador e O juiz de paz da roça, o

que significa que se aproximam temporalmente. Logo, D. João de Lira deve ter sido iniciado

em fins de 1837 ou no primeiro semestre de 1838, mas passou por duas reformulações antes

de ser finalizado.

A simplicidade com que a trama foi elaborada talvez seja uma das melhores

qualidades de D. João de Lira ou O rapto. Se os principais estudiosos de Martins Pena se

mantiveram rigorosos ao criticar todos os dramas devido aos confusos desdobramentos das

histórias, o primeiro drama finalizado é o que menos merece tal ressalva. Nele, há cinco atos

curtos, que foram, inclusive, remodelados duas vezes. A princípio, o drama foi projetado para

conter quatro atos e depois foi aumentado para cinco, como podemos constatar pela enorme

rasura na folha de rosto da primeira versão da peça.

Finalmente, na segunda versão, o drama passou por várias modificações e foi

reajustado para conter três atos. Contudo, há ainda outra importante mudança a ser

considerada, pois, durante a transcrição da peça para fins de publicação, em 1956, Damasceno

optou por reconverter a peça em cinco atos. Para isso, priorizou a segunda versão nos atos I, II

e V, enquanto a primeira versão guiou os atos III e IV, posto que estes não existem na

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composição de três atos. Claro que, para gerar essa recompilação, foram necessários alguns

cortes, principalmente nas partes que se repetiriam, ou seja, no que foi aproveitado da versão

de cinco atos para a de três.

A história se inicia na rua onde mora D. Matilde, filha do Conde de Alenquer. João de

Lira e seu amigo Fernão Rodrigues entram em cena acompanhados de “um grupo de músicos

e cantores” (1956b, p. 53). Tal escolha de cena inicial remete ao fascínio do autor pela música,

elemento presente em quase todas as suas primeiras peças. A apresentação do conflito do

personagem principal é imediata.

FERNÃO RODRIGUES – Muito excessivo é o vosso amor pela condessa Matilde!

D. JOÃO DE LIRA – E como o não há-de ser! Sua encantadora beleza, seu porte

nobre e majestoso, sua voz doce e melodiosa como o canto do rouxinol inspiram

amor e adoração a todos quantos têm a dita de a ver.

FERNÃO RODRIGUES – E ela vos ama?

D. JOÃO DE LIRA – Eu daria as estrelas, se as possuísse, para estar certo de seu

amor. Há alguns meses que a amo e poucas são as vezes que com ela tenho falado,

pois seu pai, o conde de Alenquer, conhecendo o tesouro que possui, o oculta a

todos os olhos. No princípio de meu amor, tinha ela por costume ir à catedral

todos os domingos ouvir missa, mas sempre acompanhada ou de seu pai ou de um

velho criado que a vigiava como se fora sua própria filha. A minha assiduidade na

capela e algumas tentativas que fiz para falar-lhe e ver o lindo rosto que um cioso

véu ocultava a meus olhos fez desconfiar aos seus dois argos, e em breve vi-me

privado do único prazer que tinha (MP: 1956b, p. 53).

Ao levar músicos e cantores para baixo da janela de D. Matilde para uma breve

serenata, D. João de Lira deseja declarar seu amor, embora exista o risco de se expor ao

conde. O plano é pedir a amada em casamento e, caso ela assim o deseje, formalizar o pedido

junto ao pai no dia seguinte. Antes da cantoria, acrescenta-se a informação de que há outro

nobre, D. Rui de Gusmão, que também ama D. Matilde. O rival é um vilão arquetípico, a

quem se atribui o assassinato do irmão de D. João de Lira. Forma-se uma estrutura dramática

bem simples: a de um casal apaixonado contra um inimigo comum, que deseja se vingar por

não ter conquistado a mulher, conflito já explorado pelo autor no conto “Um episódio de

1831”.

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A letra da música é um dos trechos modificados na segunda versão da peça. Na

primeira versão, D. João e seu amigo Fernão cantam juntos: “Sujeito aos laços de amor / Vive

o homem, vive a fera. / Amor em todos impera, / Causando alegria e dor” (p. 99). Uma quadra

de redondilhas maiores visivelmente fracas em termos poéticos, evidenciando a falta de

prática do autor com o formato. Já na segunda versão, somente D. João canta, acompanhado

pelos instrumentos: “Lá vejo no firmamento / Uma estrela rutilante. / Estrela, se tanto brilhas,

/ É que dorme a tua amante. / De seus olhos te ofuscara / O fulgor no mesmo instante” (p. 55).

Embora ainda não sejam versos de grande primor estético, há uma considerável mudança de

estilo. Trocou-se o tom bruto e antonímico por imagens suaves e sonolentas. Nota-se,

portanto, que esse é um ponto do drama que foi repensado.

A serenata atrai o pajem de D. Matilde, e esta, reconhecendo a voz de D. João, surge à

janela, porém não se mostra muito agradada, censurando-o: “Que imprudência! Se meu pai

não estivesse no interior do palácio, e te ouvisse, o que diria?” (p. 55). Ela se mostra bastante

receosa com os perigos da empresa, mas ouve o pedido de D. João e deixa claro que ficaria

feliz em se casar com ele, porém a decisão não lhe cabe. A breve conversa entre os dois é

encerrada com a presença de um homem encapuzado: D. Rui. Logo após ouvir a conversa e

ser expulso por Fernão, que não o reconhece, o rival retorna com homens armados e a serenata

dá lugar a uma luta de espadas. Os dois amigos seriam rapidamente derrotados, mas recebem

ajuda de mais três fidalgos, que prolongam o combate até o conde abrir a porta do palácio e,

com sua tropa, cessar a briga. Ao reconhecer D. João e D. Rui, pede explicações a ambos. D.

João se resume a dizer que ele e seu amigo foram “atraiçoadamente assaltados por D. Rui de

Gusmão e seus dignos companheiros”, ao que D. Rui replica que D. João se esquecera de

dizer ter vindo com músicos e ter conversado com a filha do conde antes do embate. A partir

desse ponto, D. João age de forma prepotente, questiona o conde acerca da confiabilidade de

D. Rui e acusa o rival de ter assassinado seu irmão. A personalidade impulsiva de D. João o

assemelha a D’Harville, de Fernando ou O cinto acusador, herói com péssimas técnicas de

argumentação. O conde se mostra terrivelmente incomodado com o ocorrido, considerando

que ambos os fidalgos o ofenderam. D. João tenta reaver a confiança do conde, mas, de forma

ainda mais imprudente, pede a mão de D. Matilde.

D. JOÃO, chegando-se para o Conde – Nunca foi meu pensamento insultar ao

nobre Conde de Alenquer e, se assim o julgais, senhor, despirei todo o meu

orgulho e, deixando de se tratar de igual com igual, prostar-me-ei a vossos pés

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(ajoelha-se) e, tendo por testemunhas a todos estes fidalgos, pedirei a mão de

vossa filha.

CONDE – A ofensa ainda está muito recente para ser perdoada e seria a mão de

minha filha a recompensa de um insulto. Quando recobrares o nome de cavalheiro

e honrá-lo, que para mim perdestes, então minha filha poderá ser vossa. Mas,

antes, não, que não será ela a esposa de um espadachim (Entra em casa

arrebatadamente. D. João levanta-se) (1956b, p. 60).

Após ter seu pedido recusado, D. João novamente ameaça D. Rui, prometendo

vingança. Eles saem de cena e, com isso, finaliza-se o primeiro ato, composto de apenas um

quadro. Em termos de realização cênica, as sete cenas demorariam cerca de vinte minutos.

O segundo ato se passa inteiramente no quarto de D. Matilde, e essa economia de

cenários mostra alguma preocupação com a realização cênica, planejando-se baixos custos

para a montagem. A atmosfera sombria remete ao início do segundo ato de Fernando ou O

cinto acusador, que se passa numa sala subterrânea. Além disso, em ambas as peças a mulher

amada ocupa o centro das atenções. Contudo, enquanto em O cinto acusador Sofia está num

caixão, aparentemente morta, em D. João de Lira Matilde está rezando com vigor: “Meu

Deus, permiti que deste combate saia ele ileso! Minha Virgem Maria, rogai a vosso Filho por

ele... Eu vos bordarei uma túnica de ouro e seda. Tende piedade, meu Deus, eu o amo tanto!”

(p. 61). Entra o pajem e conversam sobre D. João e D. Rui. Em seguida, anuncia-se que o

Conde de Alenquer está a caminho para falar com a filha; ele planeja enviá-la para fora da

cidade. Ao ser questionado para onde ela iria, o conde responde: “Na hora da partida o

saberás, pois não quero que, se espalhando a notícia, te sigam aqueles de quem pretendo

afastar-te” (p. 64).

Nesse ponto, figura uma curiosidade no cotejo dos manuscritos. Damasceno informa

que, no manuscrito de cinco atos, existe a indicação do lugar para onde D. Matilde seria

enviada – “Para a casa de tua tia em Coimbra” –, inserida sobre a fala anterior, que foi riscada;

contudo, o estudioso supõe que a modificação tenha sido feita após a versão de três atos (cf.

p. 102), pois esta ainda contém a fala antiga. Ora, apesar de a asserção ser possivelmente

verdadeira, não faz muito sentido, visto que, se a peça foi modificada para ter três atos, o

primeiro manuscrito estaria obsoleto. Portanto, não está muito claro se a substituição foi uma

ideia abandonada ou uma fala que seria acrescentada em outra ocasião.

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Voltando-nos à ação do segundo ato, o conde deixa sua filha com o temor de se

separar do pai e do amante, quando o pajem retorna ao quarto dizendo que D. João deseja

entrar secretamente para falar com D. Matilde mais uma vez. Ela considera tal ato imprudente,

mas o pajem a convence a aceitar a entrevista. D. João lhe diz que, para reaver o mérito de se

casar com ela, se uniria ao exército português e, quando voltasse vitorioso, o conde não

poderia negar a mão de sua filha a um herói de guerra. D. Matilde aproveita a ocasião para

dizer que também sairia da cidade e que, por saber que seu amado também estaria longe, seus

sofrimentos seriam menores. Despedem-se com um juramento de fidelidade. Depois que D.

Matilde adormece, surge Maria, outra empregada do palácio, dizendo ao público que foi

subornada por D. Rui para facilitar a entrada do vilão pela janela do quarto. Ele entra e se

aproxima de D. Matilde, a fim de amordaçá-la, quando escuta a voz de D. João na rua a

expulsar Roberto, o comparsa de D. Rui. Há luta e D. João mata Roberto, subindo até o quarto

em seguida. Os dois rivais fazem um acordo de cavalheiros de sair dali para lutar, mas a ronda

da rua grita que há ladrões, acordando o conde. Isso precipita o combate a acontecer ali

mesmo. D. Matilde, ao acordar, lança-se no meio dos dois, apartando-os. A porta finalmente

cede e o conde entra em cena furibundo e, novamente, dá lições de moral aos dois. Apesar de

D. João acusar D. Rui de ter tentado sequestrar D. Matilde, o conde se resume a expulsá-los.

Aí reside a principal diferença entre as versões, visto que os atos III e IV foram

cortados. Martins Pena adiantou o duelo final entre D. Rui e D. João, que constitui o último

ato. Dessa forma, na versão de três atos, assim que o conde sentencia aos dois: “Fora desta

casa, senhores, fora desta casa, antes que o furor me arrebate e que vos mande espancar por

meus criados” (p. 72), o texto foi modificado e assumiu a seguinte forma:

D. RUI – A tanto não vos atreveríeis! Esta espada ensinaria o insolente que de mim

se aproximasse. Eu parto. Algum dia vos arrependereis de me teres insultado.

(Para D. João:) D. João, nem sempre seremos interrompidos. Hora virá em que só

a morte fará cair em terra uma de nossas espadas. E se teu coração palpita de

rancor como o meu, esta hora não tardará. Até sempre!

D. JOÃO – Espera! (Para o Conde:) Nobre Conde, ouvi-me para dardes diante de

el-rei fiança e crédito às minhas palavras. D. Rui de Gusmão, meu irmão foi

assassinado em Coimbra; a justiça dos homens não descobriu o assassino, e eu, D.

João de Lira, te acuso deste assassinato! D. Rui de Gusmão, dois homens se

acham neste lugar para eles vedado; um deles premedita o rapto, e eu, D. João de

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Lira, te acuso de rapto. Sustentarei o meu dito em combate a toda a requesta diante

de el-rei e de sua corte. Deus nos julgará e a justiça será feita. Eis a minha luva.

(Joga a luva no chão.)

D. RUI, com arrogância – Aceito! (Apanha a luva.)

D. JOÃO, para o Conde – Senhor, a vós interessa este combate; é de vossa honra

que se trata, mas Deus é justo e seu juízo se manifestará. Tomai este combate

como uma justificação. E eu vos cito em nome da fidalguia portuguesa que

emprazes a D. Rui.

CONDE, metendo-se entre os dois – Vós me ofendestes, senhores! Eis ali a moça

por vós infamada – é minha filha! Amanhã será seu nome levado pelas ruas da

cidade com afrontosos epítetos... Contásteis com a inexperiência da filha e com a

velhice do pai. Deus me vingará. Apelastes para seu juízo, ainda bem. Combatei,

combatei! E tremam da sua justiça!

D. JOÃO – Emprazai-nos!

CONDE – De hoje a três dias, em Alcântara, diante de el-rei e de sua corte.

D. JOÃO e D. RUI, dando as mãos – De hoje a três dias!

O conde vai para junto de Matilde, que, ao ouvir o emprazamento, oculta o rosto

em ambas as mãos (MP: 1956b, p. 105).

A atitude de cortar dois atos de D. João de Lira pode ser vista como outra evidência de

uma característica da criação de Martins Pena: um certo desprendimento com sua obra quando

se trata de prepará-la para o palco. Pela análise de seus manuscritos, é possível constatar

diversos cortes, modificações e acréscimos que são claramente ajustes para a execução teatral,

às vezes por sugestão dos próprios atores, como é o caso de O juiz de paz da roça. De fato,

esse desapego é uma ótima qualidade para o escritor de dramaturgia, pois atenua as barreiras

das inevitáveis adaptações na transposição do texto para a cena. Ainda assim, essa

característica de Martins Pena poucas vezes foi tão radical quanto esse grande corte de dois

atos.

A nos valer brevemente da primeira versão do drama, uma das maiores perdas é o

corte da primeira cena do terceiro ato, visto ser a única em que há construção humorística.

Numa taverna, o mercenário Lopo e seus três salteadores bebem. Eles foram pagos por D. Rui

para transportar D. Matilde, porém, como a primeira tentativa de sequestro não logrou,

esperam por novas ordens.

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LOPO, bebendo – Maldito vinho!

PRIMEIRO SALTEADOR – Irra, quase que me esfola as goelas!

SEGUNDO SALTEADOR – Seria milagre.

PRIMEIRO SALTEADOR – Por quê?

SEGUNDO SALTEADOR – Porque já as tens estanhadas. (Risadas.)

TERCEIRO SALTEADOR – Apara lá este pião...

PRIMEIRO SALTEADOR, cravando uma faca na mesa – Quem quiser aparar este,

que fale.

LOPO – Nada de contendas. Vamos a uma saúde. À saúde do bom vinho!

OS TRÊS SALTEADORES – Vá, vá, à saúde do bom vinho! (Botam vinho nos copos.)

PRIMEIRO SALTEADOR – Beber à saúde do bom vinho com um tão mau é uma

afronta.

SEGUNDO SALTEADOR – Venha de outro.

LOPO – Tens razão. Olá, mestre Peres? Taverneiro do diabo! Olá!

PERES, dentro – Já vou.

PRIMEIRO SALTEADOR – Depressa; quando não, tudo vai com os diabos!

PERES, entrando – Que ordenais?

TODOS – Bom vinho! Bom vinho!

LOPO – Vê lá! Se não trazes do melhor que tens na tua adega, à força to faremos

beber, até que te saia pelos olhos.

PERES – Sim senhor, sim senhor, já trago, mas...

LOPO – Mas o quê? Acaba.

PERES – Custa mais caro, e não sei...

LOPO – Que diabo, tens medo de um calote? Toma lá! (Atira com uma bolsa aos

pés de Peres.) (MP: 1956b, p. 75).

A cena lida com a tensão dramática inteligentemente. Por um lado, criam-se

expectativas acerca da continuidade do plano de D. Rui de sequestrar D. Matilde e, por outro,

gera-se alívio cômico com um salteador bêbado, preparando o espectador para a tensão do

resto do ato. Percebe-se, com isso, que Martins Pena progredia no entendimento da

estruturação dramática.

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Contudo, a criatividade para construir o conflito deixa transparecer o inocente olhar do

estreante. Logo após a apresentação de Lopo e dos três salteadores, D. João e seu amigo

Fernão entram na taverna e ficam à espera do pajem de D. Matilde, que ali marcara um

encontro às nove horas da noite. Tomando os salteadores por mercadores de gado, D. João

chega a consultá-los sobre o pajem. Um criado de D. João lhe diz haver chegado um oficial do

rei, sendo necessário ir até ele urgentemente. Após os dois fidalgos se retirarem, surge D. Rui

para instruir os salteadores. É quando o pajem, adentrando a taverna, vai até o vilão e o pega

pelo braço, chamando-o por “D. João”. Então é agarrado pelos salteadores, que lhe roubam a

carta de D. Matilde, descobrem que ela está de partida para Coimbra, subornam o taverneiro

para manter o pajem preso pelo resto do dia e partem para a emboscada. O pajem explica que

sua ama corre perigo, mas só é solto quando D. João e Fernão retornam. Ao tomar

conhecimento do ocorrido, D. João quer impedir o sequestro, porém, como não sabe para

onde D. Matilde está partindo, precisa ir até o conde para descobrir.

Não é difícil perceber a quantidade de coincidências e desencontros necessários a toda

essa confusão, postos em cena de forma que cada um dos elementos desconheça os outros, ou

seja, os salteadores não esperavam que D. João tivesse marcado um encontro com o pajem, o

criado vem anunciar uma emergência externa que evita o encontro entre os rivais e o pajem,

que não é notado pelos salteadores ou por D. Rui, praticamente os presenteia com a carta de

D. Matilde. Essa orquestração dá às cenas uma artificialidade pouco aceitável, embora seja um

bom recurso para comédias, pois essas coincidências forçadas despertam a desconfiança e o

riso da plateia. Com efeito, Martins Pena lançaria mão desse recurso em grande parte de sua

obra. Por exemplo, em Os irmãos das almas, vários acontecimentos levam três homens para

dentro do armário por razões diferentes, compondo o clímax da peça.

O terceiro ato de D. João de Lira é o único que tem dois quadros. O cenário do

segundo quadro é a floresta, onde os três salteadores, Lopo e D. Rui esperam por D. Matilde.

De certa maneira, o espectador espera que o sequestro seja bem-sucedido, visto que o título do

drama corrobora esse acontecimento. Essa expectativa não é frustrada, mas há um problema

de verossimilhança na opção do autor de fazê-la viajar numa liteira. Devemos ponderar que

não se trata simplesmente de um descuido, mas de uma espécie de improviso para facilitar a

realização cênica. A rubrica da entrada do séquito fortalece essa hipótese: “Entra pela direita,

no fundo, uma liteira em que virá D. Matilde, carregada por dois criados; ao lado da liteira, o

velho Jacques, e atrás, seis criados armados. Logo que a liteira estiver na terça parte do

caminho da cena, brada D. Rui” (1956b, p. 83).

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Martins Pena tinha uma visão detalhada do que imaginava pôr no palco e isso requer

certo entendimento da viabilidade cênica. É evidente que uma viagem até Coimbra seria feita

por carruagens, assim como uma pequena tropa de cavalaria para defender D. Matilde seria

mais verossímil. Colocar cavalos em cena não era impossível, contudo era um entrave bem

conhecido, ainda mais por anteceder uma cena de batalha. A solução imediata foi optar pela

liteira e, numa segunda etapa, pode ter sido um dos fatores que levaram à reconstrução da

peça, eliminando todo o ato.

O quarto ato tem mais cenas do que o terceiro, mas é relativamente mais curto e

objetivo. Passa-se inteiramente na parte da floresta onde está o castelo de D. Afonso, amigo

de D. Rui, para onde D. Matilde foi levada. A primeira cena trata da conversa entre os amigos:

D. Rui explica que tentou estuprar D. Matilde, mas esta lhe tomou o punhal e, desde então,

ameaça se matar quando ele se aproxima. Contudo, está resolvido a tentar novamente naquela

noite, mesmo correndo esse risco. A segunda cena é a chegada da tropa de Fernão, que, ao

entrar a cavalo, complica ainda mais a verossimilhança do sequestro no ato anterior. Uma

inconsistência que reforça as suspeitas sobre por que o autor decidiu reduzir o drama.

No quarto ato, há uma estrutura de orquestração de coincidências semelhante à do ato

anterior. D. Rui e D. Afonso partem antes da chegada da tropa de Fernão e esta, sem conseguir

informações sobre o castelo, retira-se. Inclusive, ao afirmar que D. João vem atrás deles, pois

“tomou por um pequeno carreiro que conduz a uma cabana, para saber dos moradores dela se

viram a condessa e seus roubadores” (1956b, p. 87), fica ainda mais evidente que a sequência

dos personagens em cena é providencial demais, prejudicando a verossimilhança. Em seguida,

entra o pajem de D. Matilde vestido de trovador e, sozinho em cena, conta o que tem feito

desde o desaparecimento de sua ama:

PAJEM, só – Como estou fatigado! Há vinte e cinco dias que me pus a caminho

com o firme intento de descobrir o lugar onde a minha querida senhora se acha

presa. Fui eu a causa primária de sua desgraça e assim serei a do seu livramento.

Tomei estas vestes e este instrumento para poder livremente viajar. Quando chego

a algum castelo ou cabana, toco o meu instrumento e canto o romance querido da

condessa. Assim fazendo, preencho dois fins: ganho a minha subsistência e aviso

à condessa, se ela se achar ao alcance de minha voz, que alguém vela por ela. Eis

aqui um castelo. Possa este ser o último! (Ajoelha-se) Minha Virgem Maria, fazei

com que minha querida senhora, se estiver neste castelo, ouça a voz do seu fiel

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pajem! (Levanta-se, assenta-se em uma pedra à torre da esquerda e canta) (MP:

1956b, p. 88).

Nota-se claramente um clima de fábula nesse trecho do drama: o pajem, vestido de

trovador, canta um romance – que também é um código de resgate – de casa em casa. As

preces do pajem são atendidas quando D. Matilde responde à canção. Após um momento de

felicidade, a ideia do pajem é ir contar ao conde, ainda que preocupado com o que pode

acontecer com sua ama até que ele vá e volte. É quando surge D. João a pé, reclamando por

seu cavalo ter caído num precipício. Ao saber que D. Matilde está no castelo, pede que o

pajem corra até a tropa de Fernão e os traga de volta. Enquanto isso, D. Rui e D. Afonso

retornam e ambos lutam contra D. João, que “se defende bravamente”. Com a chegada dos

cavaleiros, os dois vilões são desarmados e D. Matilde é resgatada. O fim do ato consiste na

marcação do duelo entre D. Rui e D. João, de forma semelhante ao que foi modificado na

segunda versão da peça.

A execução do último ato duraria pouco menos que quinze minutos. É uma cena única,

que se passa na liça da Corte de Alcântara. Dedica-se boa parte do tempo às formalidades que

antecedem o duelo. Pede-se autorização do rei para começar, apresentam-se os dois

combatentes (antes e depois de estarem prontos) e anunciam-se as regras da luta por quatro

arautos. Nesse ponto, há uma rápida conversação na plateia entre homens do povo. Só então a

luta teria lugar numa pequena rubrica: “As trombetas tocam a avançada. Por algum tempo não

se conhece vantagem em nenhum dos dois. Por fim, D. Rui cai mortalmente ferido. D. João,

vendo D. Rui no chão, põe o pé sobre o seu peito e a ponta da espada nos intervalos da

viseira” (p. 97).

Vitorioso, D. João ordena que seu rival confesse os crimes. O rei pede para que se

suspenda a luta. Aproximam-se de D. Rui, que ainda vive, e ele confessa ter assassinado o

irmão de D. João e sequestrado D. Matilde, morrendo em seguida. O rei pede para o conde

consentir a mão de D. Matilde a D. João. O drama se encerra dando-se vivas ao rei e ao herói,

“toca a música e, no meio de uma geral alegria, abaixa o pano” (p. 98). Como vamos

constatar, o final apoteótico é recorrente nas primeiras peças de Martins Pena.

Pouco tempo depois da primeira versão de D. João de Lira ou O rapto, iniciou-se a

escrita de um novo drama, D. Leonor Teles. Dessa vez, Martins Pena elaborou uma

construção equilibrada de cinco atos, aprendendo com os próprios erros. Contudo, para

conseguir expandir o ritmo de ação, costumeiramente rápido, precisou criar diálogos mais

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longos. O que seria um avanço em termos de composição dramática, em longo prazo se

revelou o caminho errado, configurando obras de menor mérito.

Uma das particularidades mais chamativas de D. Leonor Teles é o fato de ser a única

peça de Martins Pena que tem um prefácio. De certa forma, esse pequeno trecho pode ser

considerado mais valioso do que todo o drama, visto que se trata do único escrito conhecido

de Martins Pena em que ele reflete sobre escrever dramaturgia. A brevidade e discrição com

que faz isso, contudo, ameniza sua importância, de modo a não ser possível nenhuma

comparação com prefácios célebres, como o de Cromwell, de Victor Hugo.

A maior parte do prefácio de D. Leonor Teles descreve resumidamente a biografia da

personalidade escolhida para o papel principal. A intenção é mostrar que se conhece o

contexto histórico em que o drama é ambientado.

Foi D. Leonor Teles de Menezes casada pela primeira vez com Lourenço da

Cunha, a quem repudiou para casar-se com D. Fernando, rei de Portugal. Todo o

reino se entristeceu com o procedimento de el-rei e o povo de Lisboa queixou-se

fortemente, o que de tal modo enojou a D. Fernando, que mandou esquartejar a

um certo Fernão Vasco e a seus companheiros por ousarem dizer em sua presença

que ele, el-rei, desonrara o trono que ocupava, e que D. Leonor era indigna de

participar dele por seu nascimento e pelo seu comportamento. Esse exemplo de

severidade acalmou a murmuração do povo e D. Leonor foi reconhecida rainha de

Portugal. Em breve, pagou D. Fernando a sua cegueira e paixão, pois que D.

Leonor, casando-se com ele por ambição, e não por amor, logo que se viu senhora

do trono principiou a mostrar seu gênio altivo e a desprezar o seu novo esposo e

chegou a tanto o seu despejo que tomou por amante a João Fernandes de Andeiro,

a quem deu a dignidade de Conde de Ourém (1956b, p. 115).

Segundo Raimundo Magalhães Júnior (1972, p. 208), o dramaturgo teria encontrado

essas informações em História de Portugal, de M. de la Clède. A suspeita se deve ao fato de

Martins Pena ter se utilizado dessa fonte para o seu maior drama, Vitiza ou O Nero de

Espanha. Contudo, pelo que se pôde aferir no referido livro, não há informações suficientes

para compor essa biografia resumida. Desse modo, outras referências devem ter sido

consultadas, o que não seria difícil, dado o acervo sobre o tema na Biblioteca Nacional, além

de um bom número de conhecedores da história de Portugal no Rio de Janeiro.

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O prefácio dedica mais quatro parágrafos à história do drama. Comenta o orgulho e a

vileza da rainha, dando atenção às questões referentes ao adultério com o Conde de Ourém e

às suas tentativas de eliminar o Infante D. João. Este sucedeu ao trono após uma conspiração

em que o Conde de Ourém foi assassinado pelo infante, expulsando-se D. Leonor. Finalizadas

as explicações, o dramaturgo sai do âmbito histórico e introduz o discurso pessoal: “É esse o

fato histórico que escolhi para o meu drama, fazendo algumas mudanças, que julguei

necessárias” (1956b, p. 116).

O restante do prefácio tenta explicar a principal infidelidade histórica da peça, a saber,

uma participação maior de Lourenço da Cunha – primeiro marido de D. Leonor – no processo

que viria a destroná-la, assim como a autoria da morte do Conde de Ourém. Tal adaptação

deixaria o dramaturgo muito mais livre para criar situações e diálogos, visto que, se a

condução da peça dependesse do Infante D. João, a postura do futuro rei deveria ser

estritamente formal, o que prejudicaria o andamento do drama e, mesmo assim, haveria um

considerável risco de censura.

Recuei diante da ideia de apresentar na cena o Infante D. João abrindo o caminho

para o trono que tão nobremente ocupou por um assassinato e tive então de lançar

mão de Lourenço da Cunha, primeiro marido de D. Leonor, que necessariamente

devia ser seu inimigo. Dir-me-ão que falto à fidelidade histórica e que toda pessoa

que ler a História de Portugal poderá saber que o Conde de Ourém foi morto por

D. João, e que essa morte quase que desaparece diante de um longo e feliz

reinado, e que não é comprar muito caro a felicidade de uma nação inteira com a

morte de um só homem, sendo este, além disso, mau e perverso. À primeira vista,

parece esse argumento forte, porém eu o desmancharei dizendo que não tem o

Drama a extensão da História para poder mostrar um reinado inteiro, e que a sua

missão não é contar fatos, mas sim descrever caracteres de personagens, quaisquer

que eles sejam, e que, assim sendo, tudo quanto fizesse para mostrar fielmente o

caráter de D. Leonor seria bom (1956b, p. 115).

Percebe-se que o autor demonstra satisfação por ter pinçado um nobre de menor poder

para criar e desenvolver o drama mais livremente. Com efeito, quando analisamos a peça de

maneira isolada, Lourenço da Cunha é um dos papéis mais interessantes, inclusive com certa

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capacidade de ofuscar D. João e D. Leonor em termos de ação. É como se um personagem se

gabasse por pertencer mais ao reino do fictício do que os outros.

Não é certo que Martins Pena tivesse reais preocupações com a fidelidade histórica.

Quando diz que outros poderiam criticá-lo por conta disso, devemos ter em mente que essa

postura é quase uma formalidade em prefácios teatrais. Racine foi um dos dramaturgos que se

defendia nos prefácios acerca de suas escolhas. Por exemplo, em Bérénice, disse ter sido

criticado porque “uma tragédia com tão poucas intrigas não poderia estar em acordo com as

regras do teatro” (Tavares: 2014, p. 169). Podemos dizer que, em 1839, o prefácio de peças

era um gênero textual relativamente consolidado.

Ainda que de maneira bem resumida, Martins Pena deixa registrada parte de sua

postura ao criar uma peça. Preocupa-se muito mais com a exposição do personagem do que

com a urdidura da trama. Com essa informação, fica um pouco mais claro por que é comum

encontrar inconsistências no desenrolar de suas histórias, assim como são comuns títulos com

o nome de seus personagens, tanto vilões quanto heróis.

Desse modo, a argumentação prossegue com os motivos da inserção de Lourenço da

Cunha no drama. Apesar de já ter sido evidenciado que nem ele nem o teatro se prestam à

missão de representar os fatos históricos de maneira fidedigna, continua-se a mostrar que, em

termos de fruição do público, é mais importante dramatizar a história.

Colhi mais uma vantagem, qual é a dos contrastes, metendo Lourenço da Cunha

neste drama. D. Leonor, mulher ambiciosa e depravada, esquece-se de tudo que

deve a D. Fernando para traí-lo com um homem vicioso e sem honra, como o

Conde de Ourém; e Lourenço da Cunha, fiel ao seu rei e à honra, foge, quando

abandonado por sua mulher, para não levantar o punhal regicida. Mas logo que

sabe que ela ama a um vassalo, volta, não só para vingar o trono manchado por

seus crimes, apesar de nele se assentar o causador de suas desgraças, como para

desafrontar a sua honra. Eis os motivos que me induziram a apresentar Lourenço

da Cunha neste drama e faltar um pouco à exatidão histórica. Procurei pintar o

melhor que me foi possível o estado da época, juntando alguns episódios para

mostrar o descontentamento do povo (1956b, p. 116).

Sem entrar no mérito da qualidade da argumentação, Martins Pena coloca por escrito

mais uma de suas preocupações com a criação cênica: enaltecer os contrastes. Tal preceito,

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um dos mais simples da dramaturgia, é perceptível em praticamente todas as suas peças. Se

considerarmos que o autor era um iniciante e seus estudos na área dramática eram básicos,

podemos supor que sua criação era bastante dedicada aos poucos conceitos de que dispunha.

O último parágrafo do prefácio pode nos ajudar a ver a importância que o autor dava

aos aspectos formais de uma obra literária:

Apresento neste drama as seguintes lições morais: D. Leonor esquece-se do

juramento dado perante Deus a seu esposo, manda assassinar sua irmã e é

castigada pela mesma ambição motora de seus crimes; D. Fernando paga com

amargurados dias que passou, e com a morte, a sua fraqueza e inconstância; e

Andeiro acaba violentamente por ousar lançar cobiçosos olhos sobre o trono

(1956b, p. 116).

Por um lado, podemos deduzir que essa maneira direta de mostrar as lições morais seja

outra formalidade do gênero, prestando-se a concluir a argumentação e expor suas boas

intenções com o drama. Por outro, percebe-se que a lição moral é recorrente nos primeiros

escritos do dramaturgo, especialmente nos contos “Duguay-Trouin” e “A rebelião dos

maranhenses ou A morte de Beckman”. É como se, nessa época, Martins Pena considerasse

que, em histórias sérias, existisse a necessidade de um desfecho moralizante.

Segundo a cronologia de Darcy Damasceno, após a finalização de D. Leonor Teles,

seguiu-se a escrita de Itaminda ou O guerreiro de Tupã. Contudo, ao considerarmos os

manuscritos, tendemos a acreditar que Itaminda foi o último drama escrito por Martins Pena.

Por esse ponto de vista, a partir de dezembro de 1839 Martins Pena se lançou em sua maior

empreitada dramática: a composição de Vitiza ou O Nero de Espanha, um drama em verso

composto de seis partes: um prólogo e cinco atos. Na verdade, o prólogo contém alguns

poucos trechos em prosa e é a única parte do drama que sustenta a exceção.

Não é difícil conjecturar as razões que levaram Martins Pena a decidir se aventurar na

poesia, forma literária com que tinha menos experiência e para a qual não demonstrou talento.

Quanto mais via que os dramas encenados nos teatros eram quase sempre em versos, mais

sentia necessidade de se adaptar a essa constante. Assim, ainda que venhamos a interpretar o

drama como a pior das realizações do dramaturgo, não podemos nos furtar à ideia do esforço

envolvido nessa composição.

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Em termos gerais, o prólogo de Vitiza talvez seja a única parte que poderia ser

reaproveitada nos dias de hoje, devido à boa carga dramática, é conduzida por muitas ações e,

ao mesmo tempo, tem um interessante nível de clareza. Tais coisas irão se perder no restante

da peça. Analisemos brevemente a primeira cena:

O teatro representa uma praça. No fundo, uma muralha que alguns trabalhadores

estão demolindo; do lado direito, o palácio de Teodofredo. Um forte

destacamento de soldados comandado pelo Capitão protege a operação.

Numeroso concurso de povo enche a praça e mostra agitação.

HOMEM DO POVO – Nas muralhas está nossa defesa! / Sem elas estaremos sempre

expostos / A fácil presa ser dos inimigos. / E devemos sofrer que assim nos

tratem?

O POVO – Não! Não!

HOMEM DO POVO – Pois bem, coragem, meus amigos! / Conservemos ainda, se é

possível, / Os restos destes muros.

(O povo ataca os soldados com grande alarido.)

CAPITÃO – Insensatos!

(O Capitão e os soldados atacam o povo e batem-se de parte a parte com bravura

e com grande vozeria) (MP: 1956b, p. 237).

O prólogo se passa todo em uma praça e o povo tem papel ativo nessa parte do drama.

Colocar civis em primeiro plano remete à introdução de “Duguay-Trouin”. Contudo, essa

postura é temporária, porque, no decorrer do drama, os conflitos passam a se concentrar no

mais alto patamar da nobreza.

Além disso, o drama se inicia por um combate, ou seja, a tensão se mostra elevada

desde o primeiro minuto. Apesar de ainda não existir um personagem que provoque comoção

no público, o nível de barulho da cena por “grande vozeria” e bater de armas tende a provocar

algum desconforto. Como o dramaturgo conhecia bem o barulho da plateia, talvez tenha

criado essa situação também para impor atenção.

Com a entrada de Teodofredo, na cena seguinte, surge o primeiro nobre da peça e sua

função imediata é pôr ordem em cena. Pede para suspender o combate e, em seguida, cobra

explicações do povo: “Como ousais levantar-vos contra uma ordem / De tão alto emanada?”

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(p. 238). O homem do povo, líder civil, comenta a insensatez de se destruírem os muros da

cidade e reclama: “Ao trono nunca chegam nossos rogos / E, se chegam, são logo repelidos”

(p. 239). Teodofredo, em um gesto de grandeza política, diz que levaria os pedidos do povo ao

rei, o que é muito bem aceito pela multidão e, recebendo vivas do povo, o nobre se retira.

Em seguida, é a vez de Erico, fiel aliado de Vitiza, se apresentar à cena. O capitão o

chama e conta que o povo gosta muito de Teodofredo. O tirano, porém, já está adiantado em

seus planos, pois Erico está ali justamente porque Vitiza lhe ordenou incendiar o castelo de

Teodofredo. Erico e dois capangas se dirigem aos arredores do castelo, mas um homem do

povo pede para alguns civis os espiarem. A cena continua com a entrada dos nobres

Gunderico e Leovigildo, que reprovam a destruição dos muros e anunciam a chegada do herói

do drama, Roderigo, que entra em cena acompanhado por seu amigo Pelágio. Roderigo se

mostra bastante feliz a princípio, pois está exatamente no momento em que formalizará seu

casamento com Aldozinda, irmã de Pelágio. Ela já se encontra no castelo de Teodofredo, pai

de Roderigo, sugerindo uma união antiga. Quando vê os muros sendo destruídos e descobre

que é mais uma estranha ordem de Vitiza, Roderigo se lança ao único monólogo dessa parte

do drama:

RODERIGO – Ó patria minha, malfadada terra, / Ludíbrio dos tiranos que te regem!

/ (Para pelágio, que o quer interromper) Tu queres que eu sepulte no meu peito /

Ódio implacável, iracúndia ardente? / Oh, não, mil vezes não! Horríves males /

Sepultam num abismo a pobre Espanha, / Que de seu seio um fúnebre suspiro /

Por doloroso adeus somente solta... / Caliginoso fumo aos ares leva / Suntuosas

cidades, sacros templos, / E só montões de ruínas denegridas / Como negros

fantasmas nos revelam / Um nome que resume os crimes todos! / Das virgens o

tesouro o mais guardado / Sobre os corpos dos pais, frios cadáveres, / Entre torpes

blasfêmias é roubado. / Os ministros de Deus são arrastados / Pelas públicas

praças, ’té que a morte / Venha pôr termo a seus cruéis martírios... / Se não vemos

a terra em que pisamos / Tinta com sangue de inocentes vítimas, / É que o pranto

que vertem nossos olhos, / Copioso correndo, o sangue leva, / E purifica assim a

dor o crime! / E é isto possível? Oh, que infâmia! / Já é tempo que um brado

assombre os ares; / Um brado de vingança contra o Nero / Que de estragos,

incêndios, crimes, mortes, / Uma mortalha faz, que leva a Espanha / Ao túm’lo

das nações... Por Deus, é tempo! (p. 246).

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É possível perceber que a versificação, embora adequada em métrica, força o autor a

utilizar um linguajar que não será encontrado nem mesmo nos outros dramas. Determinado a

mostrar que tem conhecimentos mínimos de composição de versos, Martins Pena se lança a

diversas inversões sintáticas pouco agradáveis. O fato de ser muito inexperiente com figuras

de linguagem contribui para que o resultado de seus versos seja quase sempre uma

formalidade métrica que obstrui a leitura. Talvez não fosse impossível que conseguisse

melhorar sua irregular força poética com o tempo, porém, estacionado pela prática em Vitiza,

é preciso ceder à ideia de que a peça que mais demandou esforços do dramaturgo é,

esteticamente, sua pior realização.

Outrossim, Vitiza é a peça com maior número de variantes e documentos avulsos, ou

seja, também foi a mais trabalhosa para Darcy Damasceno no processo de publicação da obra

de Martins Pena. O pesquisador, sempre minucioso quanto às diferenças entre os manuscritos,

abriu uma exceção ao mostrar todas as diferenças entre as versões de Vitiza e, a partir do

terceiro ato, deixa de fazer o cotejo quando há “diferenças entre os dois manuscritos

inexpressivas” (p. 400). Dessa forma, evitou um grande número de anotações que nada teriam

a acrescentar ao drama, concentrando-se nas diferenças substanciais, que não são poucas. Uma

das muitas variantes do drama trata do esboço primitivo do monólogo inicial de Roderigo, em

prosa e bem mais curto:

RODERIGO, na praça – O sangue sufoca o grito dos vivos, e desaparece com as

lágrimas. O incêndio destrói as cidades e o vento as dispersa pelo espaço. Sobre os

cadáveres dos pais violam-se as donzelas. Não têm os nobres mais força que o rei,

e por que sofrem? A religião era um freio, e ele a desprezou para livremente

lançar-se em todos os crimes. É tempo de mostrar que não são escravos. A

Espanha geme, e nós, seus filhos, a socorreremos (p. 396).

A fala, ainda que em formato de esboço, é mais objetiva e não se utiliza de inversões

incômodas. Em todo caso, pouco há a se comparar entre elas, visto que estão em formatos e

estágios de acabamento diferentes. O mais importante a ser visto nesse trecho é parte do

processo de criação do drama: Martins Pena, ainda inseguro quanto à versificação, escrevera

trechos da peça em prosa, de modo a não perder a ideia, que seriam metrificados em momento

oportuno. Somente o prólogo contém essa particularidade, o que nos leva a duas hipóteses: ou

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outros trechos que receberam tratamento semelhante se perderam, ou o autor passou a se

sentir confiante o bastante para lançar o diálogo sempre em verso a partir do primeiro ato. É

possível que ambas as hipóteses sejam verdadeiras, mas a segunda é mais factível, visto o

considerável número de rasuras dos últimos atos, cujas modificações evidenciam o trabalho

diretamente no verso.

Após o breve momento de pouca ação referente ao monólogo de Roderigo, a peça tem

um clima de tensão conduzido progressivamente até culminar com o incêndio no castelo de

Teodofredo. Erico e o capitão escutaram todo o discurso de Roderigo, mas este não tem medo

de Vitiza e, se pudesse, diria as mesmas palavras diante do rei. Quando Roderigo e Pelágio se

dirigem ao castelo a fim de formalizar o pedido de casamento, toca-se a trombeta que precede

os anúncios reais e um pregoeiro anuncia um polêmico decreto.

PREGOEIRO, lendo – Vitiza, rei de Espanha, Galiza e Lusitânia, a todos os nobres,

condes, vilões e escravos que o presente ouvirem e constar. Fica abolido por toda

a vasta extensão do país que reconhece o seu poderio o absurdo preceito católico

que dá ao homem uma só mulher, podendo cada um tomar de hoje em diante o

número de mulheres e concubinas que for de seu agrado. É esta a vontade do rei

Vitiza e seu selo o confirma.

RODERIGO e PELÁGIO – Que vergonha! (1956b, p. 248).

De maneira inversa à do monólogo de Roderigo, o anúncio do pregoeiro tem uma

versão mais antiga em verso: “O preceito católico e absurdo / Que ao homem só concede uma

mulher / Nós abolimos. Doravante o número / De mulheres, amásias, concubinas / Será

ilimitado; aos polígamos / As leis protegerão. Salve! Vitiza” (p. 397). Certamente, a

declaração tem peso suficiente para chocar algumas pessoas mais conservadoras e, além disso,

tem uma boa indução ao humor.

O povo, nesse momento, divide-se: parte aprova e outra desaprova a decisão. Ao fim

desse alvoroço inicial, entra Amalerico, criado do castelo de Vitiza, e diz que sua noiva foi

assassinada após Vitiza ter tentado desposá-la. O criado se oferece como escravo de Roderigo,

caso ele deseje e precise de qualquer coisa para se vingar do rei. Após aceitar o pedido, o

nobre tenta retornar ao intento de se encontrar com a amada, porém uma nova trombeta o

retém para ouvir o segundo decreto.

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PREGOEIRO, lendo – Vitiza, rei de Espanha, Galiza e Lusitânia, a todos os nobres,

condes, vilões e escravos que o presente ouvirem e constar. De hoje em diante os

judeus gozarão de todas as prerrogativas e leis que os mais godos, reassumindo,

assim, seus direitos abolidos pelo Concílio de Toledo, no ano de 694, no reinado

de Egica. É esta a vontade do rei Vitiza e seu selo o confirma.

O POVO, com grande alarde – Abaixo o pregoeiro! Sim, abaixo! / Morra! Morra!

É judeu! Sus!

(Ajuntam-se à roda do pregoeiro e homem da trombeta, agarram neles para botar

nos fossos, que se supõem do outro lado das ruínas do muro.)

PREGOEIRO – Proteção!

(Roderigo e os companheiros caminham apressados para o povo e metem-se no

meio.)

RODERIGO – Arreda, arreda!

(O povo larga o pregoeiro e o trombeta, que se vêm lançar aos pés de Roderigo)

(p. 253).

Como se pode notar pela reação do povo, tal decreto causa um impacto social bem

maior do que o anúncio anterior. O antissemitismo do povo é eminente e Roderigo só protege

o pregoeiro por vê-lo como súdito do rei que não deve ser atacado por anunciar ordens que lhe

são escritas. Logo após conter o furor do povo, incentiva as pessoas a despejarem a ira contra

os judeus, argumentando que o decreto de Vitiza tornaria o povo escravo de senhores

israelitas. Evidentemente, o decreto não diz nada disso, resumindo-se a dar direitos iguais às

pessoas livres, judeus ou godos.

A questão antissemitista em Vitiza ou O Nero de Espanha é uma das mais delicadas

para a interpretação da obra de Martins Pena. Existe um silêncio, talvez protetor, em algumas

das breves análises do drama. Raimundo Magalhães Júnior, que dedicou um capítulo inteiro

da biografia de Martins Pena à peça, resume-se a dizer que o decreto tinge “o drama de uns

laivos de antissemitismo, na verdade deploráveis” (1971, p. 144). Em todo caso, o teórico

também define um dos maiores problemas da peça: a pesquisa histórica. Ao se basear em

trechos de M. de la Clède sobre a história de Vitiza, o dramaturgo se utiliza, sem saber, de

uma fonte muito duvidosa e de uma forma que seria de extremo mau gosto no futuro. É

possível que Vitiza tenha requerido rever o XVII Concílio de Toledo, convocado por seu pai

Égica, mas nem a poligamia nem os direitos dos judeus eram suas preocupações: a intenção

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era esclarecer que ele era rei legítimo, visto que Vitiza talvez não fosse filho da rainha e isso

poderia gerar dúvidas quanto à sucessão de Égica, disposta no sétimo cânon do concílio.

Contudo, é importante ter consciência sobre o catolicismo que regulava a sociedade da

época de Martins Pena. Embora os infiéis não fossem mais condenados à fogueira, a rejeição

às pessoas de outras crenças era uma constante cultural, incentivada por sacerdotes, nobres e

cidadãos influentes. De fato, a Igreja Católica somente se posicionaria contra a perseguição

dos judeus no Concílio Vaticano II, em meados do século XX.

A cena prossegue com o aparecimento de Samuel, o único homem judeu que figura no

elenco, que é imediatamente perseguido e agarrado pelo povo, que deseja arremessá-lo aos

fossos. Roderigo e seus amigos novamente intervêm, pedindo silêncio e moderação, porém

sem pedir a soltura de Samuel. Segundo a rubrica, nesse ponto “o tumulto está no seu auge”

(p. 256). É somente vendo Erico, o capitão e sua guarda que o povo solta a vítima, que se

apressa em buscar proteção entre os militares. Erico acusa Roderigo de “açular a canalha

contra um homem” (p. 256), o que gera um princípio de briga entre eles, apaziguada pelos

demais nobres.

Após toda a progressão dramática, percebem que o castelo está sendo incendiado.

Aldozinda surge à janela do castelo, gritando por socorro. Enquanto Roderigo se lança ao

resgate da amada – que é salva, porém inconsciente –, os homens que perseguiram os

incendiários os trazem cativos à cena, de modo que finalmente o povo consegue saciar sua

sede de jogar alguém nos fossos.

A nos guiar pelas datas dos manuscritos, Vitiza ou o Nero de Espanha foi a produção

que mais demandou tempo do autor, o que certamente não é de surpreender, visto o porte e o

formato do drama. Um dos manuscritos está datado de 7 de abril de 1840 na capa (e nos

inclinamos a desconfiar de que o dia não seja apenas uma coincidência), enquanto, junto ao

final, há outra data: “7 de julho de 1841” (1956b, p. 404). Não está muito clara, contudo, a

frequência com que o drama foi escrito. Sabemos que em 8 de maio de 1840, ou seja, um mês

depois da datação na capa de Vitiza, Martins Pena ganhou um mês de licença para cuidar de

sua saúde e que em 16 de julho de 1841 participou da coroação de D. Pedro II. Além disso,

também teria assistido à estreia de sua segunda peça, A família e a festa da roça, em 1º de

setembro de 1840.

Diante dos aplausos e da boa recepção de sua segunda comédia, Martins Pena se

motivaria a adentrar a fase mais prolífera de sua carreira: a da grande sequência de comédias

que se representaram no Teatro de São Pedro de Alcântara a partir de 1844. Enquanto as

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tentativas de escrever dramas somente resultariam em peças de pouca aceitação, tanto em sua

época quanto nos tempos atuais, as comédias ganhariam as editoras, os palcos, o público e o

cânone literário.

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Considerações finais

A proposta inicial desta tese era desenvolver um olhar mais profundo sobre a obra de

um dos principais dramaturgos brasileiros. De fato, durante as pesquisas realizadas no Brasil,

na Inglaterra e em Portugal, encontramos boa quantidade de informações valiosas para

construir esse novo vislumbre. Contudo, nutríamos o sonho de abranger toda a vida de

Martins Pena, o que infelizmente não foi possível. Colhemos matéria-prima para realizar a

empreitada, mas, devido a dificuldades nossas, o período de quatro anos de doutorado se

revelou curto para sua plena realização.

Citando resumidamente os dados que não puderam ser enfocados aqui, estão aqueles

relativos à suposta filha de Martins Pena, as informações acerca da promoção do autor a adido

de primeira classe, os detalhes de sua viagem à Europa ao final de 1847 e de sua temporada

londrina no ano seguinte, as circunstâncias de seu adoecimento e os pormenores de seus

últimos dias em Lisboa, assim como do translado de seus restos mortais de volta ao Rio de

Janeiro.

Entretanto, entendemos que este estudo tem plenas condições de ser ampliado e,

transformado em livro tão logo seja possível, poderá se tornar uma das mais completas

abordagens da vida e da obra de Martins Pena. Tal confiança decorre do fato de havermos

encontrado e analisado fatos e documentos esquecidos ou inéditos, além de propormos outra

perspectiva de interpretação dos escritos do comediógrafo.

Através dos registros de controle da Biblioteca Nacional, foi possível constatar alguns

hábitos de leitura de Martins Pena. O dramaturgo tinha um interesse especial por publicações

com gravuras, mas também consultava enciclopédias, guias de curiosidades, livros de viagem,

entre outros. Além disso, acompanhava a Revue Britannique desde 1833, o que sugere

afinidade com a cultura da Inglaterra, país para o qual, catorze anos depois, viajaria como

adido de primeira classe da legação brasileira. Como vimos, desde essa época ele nutria

interesses artísticos, especialmente pela música, mas sem excluir a literatura e o teatro.

Tendo em vista que nos anos de 1836 e 1837 o jovem dramaturgo fez uma ampla

consulta às edições do Correio Official, investigamos as possíveis razões desse

comportamento e descobrimos o longo caso da partilha dos bens de sua família. Ao

analisarmos mais detidamente o caso, vimos que Martins Pena atravessou boa parte da

adolescência sem saber se obteria alguma parte dos bens deixados por seu pai. Igualmente

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importante foi poder levantar a hipótese de a vivência desse conflito jurídico haver inspirado

seu despertar pela dramaturgia, com O juiz de paz da roça.

A partir dos indícios de que Darcy Damasceno havia deixado muitas anotações sobre

Martins Pena que não puderam ser trabalhadas a ponto de poderem ser publicadas, lançamo-

nos à procura dessa fonte, encontrando diversos detalhes sobre a vida e obra do dramaturgo.

As muitas anotações que o pesquisador fez em seu exemplar das Comédias mostram que

deveria existir uma pequena errata em O juiz de paz da roça, Os dous ou O inglês maquinista,

O namorador ou A festa de São João. No caso da primeira comédia, há diferenças mais

significativas, visto que inclui trechos até então desconhecidos, encontrados durante um novo

cotejo com o manuscrito (que é bastante truncado). Nas outras duas comédias existem

diferenças mínimas, porém, no caso de Os dous ou O inglês maquinista, Damasceno também

descobriu existir uma edição não mencionada. Por meio dessa indicação, foi possível localizar

e ter acesso a um exemplar na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,

de modo que, a partir de nosso estudo, essa fonte primária ficará à disposição de todos.

Um segundo objetivo da tese era repensar alguns tópicos da biografia de Martins Pena

à luz da história do surgimento do Romantismo no Brasil. O período em que o dramaturgo

viveu coincide perfeitamente com a transição política de Colônia a Império tropical, por

conseguinte com a construção da identidade nacional e o florescimento da estética romântica

no país. Coube-nos, portanto, lançar nosso olhar sobre esses dois temas.

Ao tratarmos da educação no início do século XIX no Brasil, pudemos abordar os

caminhos percorridos pelos antepassados de Martins Pena, especialmente seu pai e seu avô

paterno, que obtiveram nível superior em Portugal. Também coletamos informações inéditas

sobre a infância do dramaturgo, ampliando, assim, a visada sobre seus primeiros anos de vida.

Sabe-se que os dois anos em que Martins Pena cursou a Aula do Comércio foram

importantes para que ele se comprometesse com uma carreira séria. Partindo dessa premissa,

demos uma atenção especial a esse momento: coletamos muitos documentos acerca do

referido curso e estabelecemos correlações com acontecimentos e publicações do período.

Durante a pesquisa, descobrimos que Martins Pena cursou a oitava turma, exatamente quando

a grade foi reduzida de três para dois anos. Constatamos que ele se matriculou ainda sob a

guarda de seu tutor, mas concluiu o curso com a própria assinatura, o que significa que sua

passagem pela Aula do Comércio foi marcada pela emancipação. O fato de haver sido

condecorado oficialmente pelo professor, que o menciona devido a ter-se “dado a um rigoroso

estudo”, é prova importante da inteligência do dramaturgo.

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Tentamos destacar a importância de Carolina Pena para a formação e o sucesso de seu

irmão. É de conhecimento geral que o cunhado de Martins Pena, Joaquim Francisco Viana, foi

essencial ao ingresso do dramaturgo na carreira pública e, obviamente, em certos círculos

sociais. Contudo, a influência de Carolina foi minimizada, devido à ausência de documentos.

Tendo em conta que nessa época a presença escrita das mulheres era muito esquiva, lidamos

com a previsibilidade de os irmãos haverem sido muito unidos, visto que viveram sob o

mesmo teto até a partida de Martins Pena para a Inglaterra. Uma de nossas maiores suspeitas é

de Carolina ter ajudado o dramaturgo na composição de suas peças, notadamente como

copista de D. Leonor Teles. Porém, a ausência de registros calígrafos de Carolina não nos

permitiu confirmar a hipótese. Ainda assim, vimos que o envolvimento dos irmãos era

intenso, portanto tratamos de elucidar algumas relações possíveis entre as peças de Martins

Pena e sua vivência fraterna.

Concomitantemente à atuação como dramaturgo, Martins Pena começou a publicar

pequenas narrativas em periódicos, o que nos levou a procurar pelos textos resultantes de uma

possível atuação jornalística. Se não encontramos marcas de sua autoria em matérias não

literárias, tivemos o inusitado encontro com dois “romances históricos”, que são, na verdade,

contos com ambientação histórica: “Duguay-Trouin” e “A rebelião dos maranhenses ou A

morte de Beckman”, que, conforme indicado, temos o prazer de reproduzir como anexos desta

tese. Precisamos fazer diversas pesquisas até encontrar “Duguay-Trouin”, do qual se tinha

conhecimento por meio do relato do sobrinho de Martins Pena, filho de Carolina e Joaquim. A

tecnologia nos permitiu encontrar os textos no periódico O Sete d’Abril. Dessa maneira, a

bibliografia de Martins Pena se acresce agora desses contos, que muito têm a dizer sobre o

imaginário do dramaturgo no momento em que iniciava a composição de seus dramas.

Além disso, ao analisarmos seus contos já conhecidos, entramos em contato com

ficcionistas cuja aproximação com o estilo de escrita de Martins Pena é notória, por

conseguinte não pôde ser ignorada. Assim, nomes como os de Josino do Nascimento,

Justiniano José da Rocha, Firmino Rodrigues da Silva e José Manuel Pereira da Silva

surgiram para compor um grupo jornalístico pouco conhecido, mas com relações estreitas com

a obra de Martins Pena. Ao examinar minimamente essas relações, foi possível compreender

que o dramaturgo teve compatriotas em quem se inspirar e com quem compartilhar

experiências, minando o entendimento comum de haver brotado como um advento isolado,

ainda que a singularidade e a grandeza de sua obra não possam ser contestadas.

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Ainda segundo essa linha de raciocínio, reconstituímos parte do surgimento do teatro

romântico no Brasil, a fim de contestar a visão comum de que ele tenha começado em 1838,

com Antônio José, ou O poeta e a Inquisição e O juiz de paz da roça. Acompanhando

atentamente os anúncios das representações teatrais, vimos que outros autores brasileiros

foram levados ao palco antes das emblemáticas estreias de Gonçalves de Magalhães e de

Martins Pena. Ao elegerem essas peças como pioneiras, os historiadores do século XIX não

apenas lançaram alguns autores e títulos no esquecimento como ignoraram o fato de que,

durante as estreias de 1838, o florescimento do teatro brasileiro já estava claramente em curso.

Por fim, lançamos um breve olhar sobre D. João de Lira ou O rapto, o prefácio de D.

Leonor Teles e o prólogo de Vitiza ou O Nero de Espanha, a fim de compreender o momento

que antecede o apogeu da dramaturgia de Martins Pena. Esses títulos, muito pouco estudados,

contêm diversas informações acerca do desenvolvimento técnico do autor, daí sua importância

no âmbito de uma pesquisa que se propôs a analisar, também, seus primeiros anos de atuação.

Outrossim, acreditamos que o fato de essas peças não terem alcançado nenhum sucesso

ajudou Martins Pena a descobrir o que seu público gostaria de assistir e que, na verdade,

estava destinado a escrever comédias.

Em suma, acreditamos haver lançado um novo olhar sobre a vida e a obra de um dos

principais dramaturgos brasileiros, de modo que, a despeito de suas assumidas limitações, este

estudo talvez possa fomentar futuras leituras tanto da obra de Martins Pena quanto do

surgimento do teatro romântico brasileiro. Em meio às comédias irreverentes do

comediógrafo, encontramos muitos traços críticos à sociedade, alguns que perduram até os

dias atuais. Ao penetrar mais em suas linhas, deparamo-nos com fragmentos de uma história

pessoal repleta de conflitos, traumas, situações engraçadas ou frustrantes, desejos e ambições.

Um mosaico de experiências e sentimentos que compõem um autor marcante e uma obra

emblemática da tragicomédia brasileira.

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DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO. Rio de Janeiro: Tip. do Diário, N. L. Vianna, de 1826 a

1837.

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GABINETE DE LEITURA. Rio de Janeiro: Tip. de J. do N. Silva, 1837 e 1838.

GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: Tip. Rua Sete de Setembro 72, 1877.

IMPÉRIO DO BRASIL: DIÁRIO FLUMINENSE. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1825.

JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, 1835 a 1841.

JORNAL DOS DEBATES. Rio de Janeiro, 22/03/1838.

MUSEO UNIVERSAL, JORNAL DAS FAMILIAS BRAZILEIRAS. 1. v. Rio de Janeiro: Tip. J.

Villeneuve e Cia., 1837 e 1838.

NITHEROY. Paris: Dauvin et Fontaine, 1836.

O CHRONISTA. Rio de Janeiro: Tip. de J. do N. Silva, 1837 e 1838.

O DESPERTADOR. Rio de Janeiro: Tip. da Assoc. do Despertador, rua da Quitanda 55, 1839.

O MERCANTIL. Rio de Janeiro: Lopes e Cia., 1847.

O SETE D’ABRIL. Rio de Janeiro: Tip. Americana, 24/01/1839, 11/02/1839, 12/02/1839.

O SIMPLÍCIO. Rio de Janeiro: Tip. Patriótica da Astrea, 18/01/1832, 29/03/1832.

O SIMPLÍCIO DA ROÇA. Rio de Janeiro: Tip. Imperial e Constitucional de E.

Seignot-Plancher, 26/02/1832, 04/03/1832.

REVUE BRITANNIQUE. Paris: Dondey-Dupré Père et Fils, 1830.

REVUE BRITANNIQUE: Choix d’articles traduits des meilleurs écrits périodiques de la

Grande-Bretagne. Bruxelas, 1831.

THE EDINBURGH REVIEW, OR CRITICAL JOURNAL. v. LVIII. Edimburgo: Ballantyne

and Company, 1834.

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2. Manuscritos

Biblioteca Nacional

BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Livros de assentos das consultas públicas realizadas na

Bibliotheca Nacional e Pública, ordenados por aviso da Secretaria de Estado dos

Negócios do Império de 9 de outubro de 1833. Microfilme MS-607.

DAMASCENO, Darcy. Biobibliografia de Martins Pena: notas várias (Ref. 26, 2, 108).

______. Biografia de Martins Pena, ideologia, repertório e teatro de São Pedro em 1830

(Ref. 26, 2, 111).

______. Cronologia das farsas apresentadas entre 1830-1848 (Ref. 26, 1, 193).

______. Dados biográficos de Martins Pena: notas várias (Ref. 26, 2, 95).

______. Questões sobre autoria de censura e da peça Uma mulher feia de Martins Pena,

cópias de anúncios de representação da citada peça (Ref. 26, 2, 78) [s.n.].

______. Relação cronológica de publicações sobre Martins Pena, encontradas na Biblioteca

Nacional e no Real Gabinete de Leitura: 1833-1839 – notas várias (Ref. 26, 2, 93).

PENA, Martins. Caderno de frases vernáculas. [S.l.], [18__]. 11 p. (Ref. I-06, 25, 002).

______. Drama sem título em dois atos (Ref. I-06, 26, 04).

SOARES, Manuel. Requerimento ao Conservatório Dramático Brasileiro, solicitando exame

censório para a peça Uma mulher feia (Ref. 8, 4, 66).

Arquivo Nacional

Junta do Comércio. Quadro demonstrativo. 7X. Cód. 196.

Museu D. João VI

Livro de matrículas para diversas classes e concursos para professores da Academia de

Belas Artes. Índice 6208.

3. Obras gerais

ARÊAS, Vilma Sant’Anna. Na tapera de Santa Cruz. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

BIBLIOTECA NACIONAL (BRASIL). Annaes da Bibliotheca Nacional. v. XIII. Rio de

Janeiro: Tip. Leuzinger, 1889.

______. Anais da Biblioteca Nacional. v. 119. Rio de Janeiro, 1999.

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______. Anais da Biblioteca Nacional. v. 122. Rio de Janeiro, 2002.

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ANEXOS

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Anexo 1

Fac-símiles de páginas de Comédias, de Martins Pena, anotadas por Darcy Damasceno

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Anexo 2

Entrevista com Iracilda Mendes Damasceno dos Santos

Conhecer e entrevistar Iracilda Mendes Damasceno dos Santos, viúva de Darcy

Damasceno, foi um dos momentos mais comoventes desta pesquisa. Se a encontrei apenas

com o intuito de compreender melhor a pessoa de Darcy, ao fim dos encontros tive (não sem

surpresa) a sensação de poder me considerar um amigo póstumo do poeta. Por mais que o veja

como professor através dos manuscritos, nem mesmo isso seria possível sem a mediação de

Iracilda, companheira e protetora da memória de Darcy Damasceno. Logo, ninguém melhor

do que ela para nos dar um testemunho a respeito desse fluminense nascido em Niterói.

Rafael Loureiro de Almeida

Como era Darcy?

Tinha traços agradáveis, mesmo bonitos, olhos claros, verdes, tendendo para o azul em

momentos de grande tensão ou emoção violenta. Magro, de compleição franzina, que não

deixava suspeitar a força do caráter, a integridade, seu estoicismo (que já fora alguma vez

confundido com cinismo). Fumante, teve saúde regular até ser surpreendido pelo câncer que

afinal o matou e do qual nunca o ouvi lamentar-se: aceitou com serenidade invulgar o

sofrimento.

Sensibilidade capaz de lágrimas, sempre contida por inviolável pudor. Avesso a

exteriorizações ruidosas, prezava o silêncio e a contemplação, mas não se furtava ao convívio

dos amigos, que escolhia bem e respeitava.

Tranquilo e calmo na intimidade, ordeiro nas suas coisas, tinha mesmo habilidades manuais

aprendidas nos ginásios estaduais onde estudara, e sabia lidar com ferramentas e fazer

pequenos reparos quando necessários na casa.

Grande contemplativo, paisagens, acontecimentos e seres podiam comovê-lo profundamente.

Observador arguto e cético da política, foi equivocadamente tido como homem de esquerda,

mas nunca pertenceu a partidos e não se filiava a grupos ou correntes literárias. Desconfiava

muito “da Glória” – todas elas.

E quanto à formação de Darcy e sua vida profissional?

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A formação básica foi feita em antigos ginásios estaduais. Graduou-se em Línguas Neolatinas

pela PUC-RJ. Recebeu bolsa para aperfeiçoar-se em Literatura Espanhola e passou um ano na

Espanha. Posteriormente, voltou para a universidade para um período de reciclagem em

Teoria da Literatura.

Ainda universitário, trabalhou no Arsenal de Marinha como escriturário. Após a diplomação,

fez concurso público e foi nomeado Técnico de Educação, cargo com o qual foi trabalhar na

Biblioteca Nacional, levado pelo professor Eugênio Gomes, que lhe reconheceu as qualidades

de intelectual e pesquisador. Desempenhou na Biblioteca Nacional, por quase trinta anos, a

função de chefe da Seção de Manuscritos, cujo acervo conhecia profundamente. Foi aquele o

ambiente propício para desenvolver seus dons de pesquisador obstinado e rigoroso,

reconhecido por intelectuais brasileiros e estrangeiros – literatos, cientistas, historiadores,

naturalistas, que aí o procuravam com frequência. Lá organizou catálogos, exposições,

trabalhos de pesquisa incorporados aos Anais da Biblioteca Nacional, preparou edições

críticas que, se lhe valeram reconhecimento, tomaram-lhe o tempo e a energia necessários

para uma obra poética maior.

Foi também professor secundário, concursado, do estado do Rio de Janeiro. Traduziu, e bem,

Góngora, Valéry, Saint-John Perse, Seféris.

A família de Darcy tinha afinidades com o mundo das artes? Também gostava ou incentivou

esse interesse?

Oriundo de família de classe média, sem muitos recursos, não houve nela ninguém mais

voltado para a arte do que ele próprio. Foram pessoas, no geral, inteligentes, caprichosas,

afetuosas e bem-humoradas que, se não o incentivaram, por certo não o desestimularam. O pai

gostava de música, tocava flauta e tinha belíssima letra. Darcy teve primos que pintaram ou

tentaram fazer poesia. Nada além disso nos anais da família.

A senhora teria alguma ideia do que o motivou a se interessar pela literatura?

Em Darcy, a poesia foi vocação e necessidade. Desde estudante ginasiano, fora premiado hors

concours em redação e literatura. Lia muito, fez-se poeta, ligou-se a jovens amigos poetas,

escritores, artistas, com alguns dos quais fundou ou participou de revistas literárias. Publicou

seu primeiro livro em 1946, com 24 anos, portanto.

Leitor, desde cedo, de clássicos como Sêneca e Hölderlin, tinha preferências que o

acompanharam por toda a vida e que ressoam em sua obra poética e crítica. Admirava

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Joaquim Nabuco, Manuel Antônio de Almeida, Martins Pena, Augusto Meyer, Cornélio

Penna, Hugo de Carvalho Ramos (sobre cuja obra rascunhou um ensaio). Dentre os poetas,

valorizava a poesia de Murilo Mendes, Dante Milano, Henriqueta Lisboa e, sobretudo e

sempre, Cecília Meireles, sua maior admiração, objeto de seu principal ensaio, que ainda é

referência no assunto.

Acho que um dos principais trabalhos de Darcy foi o ensaio sobre Gregório.

O trabalho sobre Gregório foi um enorme, penoso e incompleto desafio. O que pretendia era

mesmo um grande ensaio, focado na datação e interpretação dos códices, uma vez que

considerava os problemas referentes ao texto já devidamente tratados. Reuniu farto material

em notas, mapas e observações que, infelizmente, não chegou a poder organizar em livro.

Pretendia também ainda reunir e refundir numerosíssimas notas e artigos já esboçados sobre a

obra de Cecília Meireles, para um livro que seria o “definitivo”.

A atração pela poesia da Cecília não aconteceu devido a laços de amizade?

Não. Além de admirá-la, e ter com sua poesia afinidade e intimidade muito grandes, ele tinha

clara e objetiva noção da grandeza da obra de Cecília, a quem considerava a nossa maior

poeta. Ela mesma reconheceu nele, certa vez, “o melhor exegeta e crítico de sua poesia” e,

quando ela morreu, a ele a família concedeu a organização da edição da obra completa, feita

pela Nova Aguilar.

Na época que vocês se conheceram, Darcy já estava fazendo o cotejo e a organização dos

textos e manuscritos de Martins Pena?

Sim, certamente. Casamos em 1955 e o trabalho que lhe fora sugerido e confiado por Augusto

Meyer, então diretor do INL, já fora entregue e pago. A edição é de 1956. Obra de tal

envergadura não poderia ter sido feita, rigorosamente, em pouco tempo. Darcy contou com a

colaboração preciosa e eficiente da Dra. Marília Figueiras, e eu mesma, ainda noiva, andei

ajudando no cotejo de versões, provas...

A senhora compartilhava gostos artísticos com Darcy?

Sim. Ambos gostávamos imensamente de música erudita, que eu estudara. Darcy era bom

ouvinte, embora sem conhecimentos teóricos. Livros de arte, de poesia, literatura em geral,

discos, revistas de cultura ocupavam grandes espaços em nossa casa e eram apreciados e

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discutidos em comum. Íamos sempre que possível a concertos, exposições, cinema, teatro.

Nossos amigos eram, na maior parte, artistas.

Para finalizar, gostaria de saber se vocês assistiram a peças de Martins Pena, principalmente

se foram convidados para vê-las.

Que me lembre, nunca recebemos convites para qualquer encenação. Aliás, íamos pouco ao

teatro, por falta de tempo ou dinheiro, ou por estarmos morando longe da área onde se

localizavam os teatros.

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Anexo 3

Reprodução de documentos relativos à Aula do Comércio

(Fonte: Arquivo Nacional)

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(Fonte: Arquivo Nacional)

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(Fonte: Arquivo Nacional)

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(Fonte: Arquivo Nacional)

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Anexo 4

Duguay-Trouin

Martins Pena

I. A vingança

Na manhã do dia 11 de setembro de 1711, os sinos da Igreja da Sé, situada no morro

do Castelo, e os tambores dos regimentos de milícias tocaram a rebate. O povo corria

atemorizado pelas ruas da cidade; uns dirigiam-se para o Castelo e outras eminências da

cidade, e os mais timoratos corriam para as suas casas. Os soldados de milícias, saindo

fardados e armados de suas habitações, dirigiam-se com a pressa que lhes permitia o seu

armamento, para se reunirem aos seus respectivos corpos. A guarnição portuguesa, desde o

dia 10 já estava sobre pé, e se tinha postado no prolongamento da costa, compreendida entre o

Forte do Calabouço e o Saco do Alferes. O ruído das armas, os pesados passos dos soldados, o

surdo rodar das carretas das peças de artilharia, o som do clarim, tudo enfim atemorizava as

almas fracas, ao mesmo tempo que incutia valor nos peitos valentes e destemidos.

O povo, que coroava o morro do Castelo, podia distinguir com facilidade uma

esquadra que bordejava fora da barra: era ela a causa do terror espalhado entre os habitantes

de S. Sebastião. No dia 10, depois do meio-dia, viu-se algumas velas que se dirigiam para a

entrada do porto; em pouco tempo pôde-se distinguir a sua nacionalidade. Todos os navios

traziam o pavilhão francês.

O governador D. Francisco de Castro, não esperando da parte dos franceses senão

hostilidades, já por cobiçarem as inumeráveis riquezas minerais, descobertas nas províncias de

S. Paulo e Minas Gerais, já pelo assassinato cometido na pessoa do Almirante Du Clerc, deu

ordens para que as fortalezas do porto e a guarnição fizessem todo o possível para impedir a

entrada da esquadra inimiga.

Toda a tarde do dia 10, e parte da manhã do dia 11, os franceses bordejaram fora da

barra e do alcance da artilharia dos fortes. O seu prudente chefe, o Almirante Duguay-Trouin,

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não queria aventurar a sorte da esquadra debaixo de seu comando, em um ataque mal dirigido,

e onde não visse um feliz êxito; assim esperava ele um vento favorável para poder entrar com

vantagem no porto. Às 8 horas da manhã principiou a soprar da parte do sul um vento rijo e

forte. Duguay-Trouin faz sinal a toda a sua esquadra para que o siga, e ele, pondo-se à sua

frente, dirige a proa de seu navio para a entrada da barra.

As pessoas que viam das iminências e arredores da baía o aspecto hostil que tomava a

esquadra inimiga, esperavam com ansiedade o êxito do combate.

As fortalezas e fortes abriram o fogo, porém a esquadra continuava a sua marcha. A

capitania foi a primeira que sofreu o fogo dos fortes; uma chuva de balas caía ao redor dela e

fazia ferver o mar; os artilheiros franceses, como morrões acesos, esperavam com impaciência

o momento do combate. Duguay-Trouin, depois de estudar a posição de toda a sua esquadra,

manda fazer sinal para que ela abra o seu fogo, e embocando a sua buzina de comandante,

solta estas palavras há muito esperadas : – Fogo! fogo de bombordo e estibordo!!

Uma detonação terrível se ajuntou ao concerto infernal. Toda a esquadra seguiu o

exemplo.

– Assim! assim! meu bravos!.. sustentem o fogo; que um turbilhão de fumaça nos

oculte à artilharia dos fortes!

Uma fumaça densa e branca ocultou aos olhos dos espectadores a cena do combate;

porém eles ainda podiam conhecer que a esquadra continuava a avançar.

Um mancebo de alta estatura, que comandava uma das companhias postadas no Forte

do Calabouço, via com impaciência que a esquadra francesa penetrava no porto, e que os

navios de guerra portugueses estavam estacionários.

– Ah! que não esteja eu dentro de uma daquelas Naus! Então; enquanto uma só tábua

estivesse unida a outra, eu defenderia a entrada do porto. !.... Agora é que eles principiam a

suspender ferro!.... mas já é tarde!!.... Oh! e eu nada posso!! . . .

Henrique tinha razão. A esquadra portuguesa foi lenta em seu movimento; e quando

ela quis impedir a marcha vitoriosa da esquadra francesa, foi tarde.

Duguay-Trouin atravessou toda a baía, fazendo continuadamente fogo, e com pouco

custo apoderou-se da Ilha das Cobras, aonde desembarcou.

Henrique, temendo o bombardeamento da cidade pela esquadra francesa e Fortaleza da

Ilha das Cobras, pede licença ao comandante de seu batalhão, por um instante, para ir pôr em

segurança a sua querida irmã Henriqueta.

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Henriqueta e Henrique moravam em uma casa com frente para o mar e, por

conseguinte, exposta ao fogo inimigo. Henrique sobe apressadamente as escadas de sua casa e

encontra a sua cara irmã muito assustada. Ela lança-se nos braços de seu irmão e oculta as

suas belas faces no peito deste.

Ambos amantes, ambos órfãos, viviam estes dois irmãos. Henrique tinha 16 anos e

Henriqueta 10 quando perderam seu pai; a vinda de Henriqueta ao mundo tinha custado a vida

à sua mãe... Infelizes!...

Henrique sentia por esta única pessoa de sua família o amor sagrado e puro de um

irmão; amor sem tempestade e egoísmo.

– Henrique, diz Henriqueta, eu tenho medo destes tiros!...

– Não tenhas medo.

– Tu queres que eu não tenha medo?! ah! mas eu não posso, eu tremo!

– Sossega, minha cara irmã; vai ajuntar alguma roupa tua para sairmos desta casa.

– Sim, sim eu vou.... Vê, vê Henrique, aquele navio que ainda vem fazendo fogo!? – e

ela apontava para um dos navios franceses que cobriam a retaguarda da esquadra, e que ainda

não tinha lançado ferro.

– Ele se há-de cansar. Vai aprontar a tua roupa.

Henriqueta caminhava para seu quarto, quando uma bala, atravessando a parede, passa

assobiando por diante dela.

– Ah! Henrique!!...

Ambos ficaram pálidos como a morte. Henrique sustém sua irmã meio desfalecida, e a

conduz para uma cadeira.

– Minha irmã, cobra alento, não te assustes.

– Henrique, eu tenho medo!!...

Uma pancada forte e seca fez este voltar a cabeça, e ver ao mesmo tempo uma das

janelas, que estavam bem fechadas, fazer-se em mil pedaços, e uma bala, batendo em sua

irmã, atirá-la no chão toda ensanguentada!

– Henrique, adeus! . . . (foram as últimas palavras que proferiu esta desgraçada.)

E Henrique?

Oh! eu não posso pintar a sua desesperação. Ele levantava a sua irmã em seus braços,

beijava as suas faces já frias, procurava reanimá-las; dirigia preces ao céu, para que lha

restituísse; levantava os braços para a esquadra francesa em sinal de maldição... Oh! como não

devia ele sofrer!...

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– Infames assassinos! dizia ele, infames! ah eu juro pelo frio corpo de minha irmã, de

vingar-me! ah! sim, tremei!...

Henrique não pôde por muito tempo resistir ao terrível choque, que feriu

repentinamente a mais cara afeição de sua alma, ele caiu desmaiado junto de Henriqueta.

Alguns de seus amigos, procurando-o, acharam-no neste estado e com muito custo

conseguiram que ele recuperasse os sentidos. Henrique não deu mais uma só palavra, porém

via-se no seu olhar frio e brilhante que uma só ideia o preocupava.

Quando ele acompanhou o corpo de sua irmã para a sua última morada, antes que o

túmulo os separasse para sempre, chegou-se para ela, e dando-lhe um beijo, disse-lhe com voz

trêmula:

– Henriqueta, tu serás vingada!...

D. Francisco de Castro vendo os franceses senhores da Fortaleza da Ilha das Cobras,

retirou-se para Mata-Porcos, e de lá expedia as ordens para a defesa da cidade.

Duguay-Trouin lhe enviou uma nota, pedindo satisfação pela morte de Du Clerc e a

entrega de seus assassinos. D. Francisco de Castro recusou ambas as coisas, e então

começaram de novo as hostilidades.

A noite de 21 a 22 de setembro foi uma noite de horror. Nuvens de uma cor medonha

se estendiam como um manto por todo o firmamento, e de entre as vagas do mar se ouvia um

mugido triste e sinistro. Os gritos de – alerta! bom quarto! – que os sentinelas e marinheiros

enviavam uns aos outros só interrompiam este lúgubre silêncio.

À meia noite, o almirante francês, seguido de grande número dos seus, desce com

precaução para uma das praias que cercam a fortaleza, onde já estavam prontos alguns

lanchões, e manda embarcar a sua gente, e lhes ordena que tomem por abordagem a esquadra

portuguesa.

– A noite está escura, diz o almirante, ela nos favorece. Marinheiros franceses, fazei o

vosso dever!

Os lanchões partem; o almirante sobe para a fortaleza e manda apontar toda a sua

bateria para a cidade.

As sentinelas postadas nas praias da cidade viam ao longe um rastilho luminoso,

causado pela ardentia do mar, e uma sombra negra, que os precedia; porém não ouvindo bulha

de remos, não desconfiaram ser surpresa alguma da parte dos inimigos.

Os franceses para melhor ocultarem a sua empresa tinham envolto os remos com pano,

e assim caminhavam silenciosamente.

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A fortuna teria coroado a sua tentativa, se um forte relâmpago não viesse mostrar aos

portugueses o perigo que os ameaçava. Os soldados gritam às armas, e uma descarga de

mosquetaria de uma das naus faz retroceder os lanchões franceses. Foi este o sinal do

combate.

As baterias da Ilha das Cobras principiaram a fazer fogo sobre a cidade, a esquadra

seguiu o exemplo: os navios portugueses atiraram sobre os franceses, porém sem se

aproximarem, por estarem estes cobertos com a artilharia da fortaleza. O estampido do trovão,

então em todo o seu furor, a luz dos relâmpagos, os tiros de uma numerosa artilharia e os

gritos das pessoas, que fugiam espavoridas de suas habitações, faziam um todo horrível.

Todo o povo fugia atropeladamente para fora da cidade; a mesma guarnição

abandonou os seus postos: a noite ocultou aos franceses o abandono da cidade.

Uma só pessoa não fugia com os outros: via-se que com infatigável vigor carregava

barris do Forte do Calabouço para sua casa: esta pessoa era Henrique.

– Aonde vais, Henrique, gritaram os seus companheiros, que já tinham abandonado as

armas para correrem com maior presteza; aonde vais? Vem conosco; daqui a pouco tudo

estará reduzido a ruínas e cinzas; vem.

– Não! respondeu Henrique; ainda não vinguei Henriqueta: e ele continuava no seu

porfiado trabalho.

II.

Depois de quatro horas de um continuado fogo, Duguay-Trouin à frente dos seus

desembarca na cidade. Um silêncio de morte reinava por toda a parte! As ruas estavam em

algumas partes impraticáveis pela queda de edifícios abatidos pelas balas. Aqui e ali viam-se

cadáveres de diversas pessoas que a morte tinha surpreendido na sua fuga.

– Saque! Saque!! gritavam os soldados franceses.

Todo o cuidado do almirante foi infrutífero para impedir o saque. Os soldados corriam

desenfreados pelas ruas. Um grupo deles tendo no meio Henrique aproxima-se a

Duguay-Trouin, e lhe entregam o que eles dizem prisioneiro.

– Como te chamas? pergunta o Almirante.

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– Henrique.

– Por que não fugiste com os teus compatriotas?

– Porque amo os franceses; e porque sem mim eles não encontrariam um imenso

tesouro.

– Um imenso tesouro! E onde está ele?

– Se vós me prometeis metade, a outra é vossa; e eu também exijo que me leveis para

França.

Um sorriso imperceptível correu pelos seus lábios.

– Eu exijo que me acompanhe uma força de pelo menos 50 homens, pois desconfio

que haja oposição.

Duguay-Trouin dá ordem a uma companhia que acompanhe Henrique, e recomenda

todo o cuidado ao chefe que a comanda, porém ele deixa-se ficar.

– Não vindes, senhor?, lhe diz Henrique.

– Não, o capitão que comanda os meus é mais que suficiente para esta expedição.

Henrique viu a sua principal vítima escapar-se; mas ele levava 50 atrás de si.

Acompanhado dos soldados encaminha-se para a sua casa, depois de ter penetrado no

interior, volta-se para o capitão e diz:

– Senhor, mandai que dois soldados guardem a porta, e que todos os outros nos

acompanhem.

– Até aqui, replica o capitão, eu vos tenho seguido sem hesitar, porém permiti que eu

agora tome algumas precauções. Camarada, continua o capitão voltando-se para um soldado;

ficareis ao lado deste homem, e ao menor sinal de traição cravai a vossa espada no seu

coração. Agora podeis conduzir-nos.

Henrique, tendo de um lado o capitão e do outro o soldado com a espada

desembainhada, e abrindo a porta faz ver uma grande quantidade de barris.

– Eis-aqui o tesouro! diz ele.

O capitão desce, e vê com espanto que todos os barris estavam cheios de pólvora.

– Traição! Traição! gritam todos.

O soldado que estava junto de Henrique quer atravessá-lo com a espada; porém este

saltando para cima de um barril e puxando por uma pistola diz:

– Henriqueta eu te vingo!! e disparando a pistola para dentro de um dos barris,

comunica o fogo a esta quantidade enorme de pólvora!!

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Uma forte explosão se ouviu, e uma coluna imensa de fogo, paus e corpos humanos,

subiu até às nuvens!!! Toda a cidade tremeu.

Henrique e os 50 homens que o acompanharam todos morreram!

Um mês depois Duguay-Trouin partiu para França levando consigo 4 naus, 6 fragatas,

60 navios do comércio português e 600 mil cruzados; porém não gozou de todas estas presas

feitas no Brasil. Uma grande tempestade destroçou, antes de chegar à França, grande parte da

sua esquadra.

A Providência castigou a França por ter querido invadir a América...

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Anexo 5

A rebelião dos maranhenses ou A morte de Beckman

Martins Pena

I.

O monopólio concedido aos negociantes de Lisboa em 1680 excitou o maior

descontentamento entre os maranhenses. Os paraenses, pela sua parte, sentindo-se também

lesados nos seus interesses gerais e particulares, fizeram uma representação às cortes de

Lisboa. Porém os maranhenses, menos sofredores, formaram e executaram um projecto de

sublevação. Manuel Beckman, homem valente e destemido, foi o chefe dos insurgentes.

Nas torres das igrejas da cidade de S. Luís de Maranhão dava meia-noite; as ruas

estavam silenciosas, uma só patrulha não se via nelas. O dia tinha sido abrasador, porém uma

branda viração, depois que o sol entrou, veio mitigar o calor do dia. Aqui e ali abriam-se

algumas janelas; mas as pessoas que as abriam, ou fosse receio de se constiparem, ou por

outro qualquer motivo, depois de olharem cuidadosamente para um e outro lado da rua, as

fechavam com precaução, e ainda depois de fechadas, escutavam com os ouvidos encostados

nas tábuas se algum rumor perturbava o silêncio da noite.

Um homem que passeasse a estas horas podia conhecer, ainda que com dificuldade,

que este silêncio da cidade era aparente. Do interior das casas ouvia-se às vezes um rumor

surdo e um tinido de armas, e distinguia-se o som claro causado pelas varetas dos canos das

espingardas; porém nunca se ouvia mais que uma pancada; sinal este que denotava precaução

e receio de descoberta no manejo desta arma.

Em uma sala de uma das principais casas da cidade estavam vinte pessoas sentadas ao

redor de uma grande mesa. Todas as janelas estavam fechadas; duas candeias nas

extremidades da mesa alumiavam uma cena verdadeiramente sublime. Sobre a mesa estavam

dispersas diferentes armas; um crucifixo, tendo a seus pés um missal, levantava-se no meio de

todas estas armas de destruição: podia-se ler nos semblantes das diferentes pessoas que aí

estavam que uma ideia fixa os preocupava, e que aí se debatia uma questão de vida ou de

morte. À cabeceira da mesa, cercado de alguns papéis, estava o valente Beckman, tendo a seu

lado três dos principais chefes da insurreição, depois dele. À sua direita, via-se Eugênio

Ribeiro e Jorge de Sampaio, e à sua esquerda o hercúlio Manuel Serrão, homem capaz de

abater um touro com um murro; seguiam-se depois os outros insurgentes.

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– Maranhenses! diz Beckman, levantando-se, chegou o momento de mostrarmos a

Portugal e ao Mundo inteiro que os Brasileiros sabem defender os seus direitos! Há quatro

anos que El-Rei D. Pedro II concedeu aos negociantes de Lisboa o privilégio exclusivo de

comerciarem com o Pará e Maranhão; há quatro anos que sofremos! Os paraenses fizeram

uma representação às cortes; ela foi desprezada! A nossa também seria se a fizéssemos; assim,

façamo-la com as armas na mão; aonde não chega o clamor da justiça, chega o da revolta!...

Maranhenses! Às armas!

– Às armas!! às armas!!! gritam todos, levantando-se.

– Eu me congratulo convosco, continua Beckman, depois de ter imposto silêncio, por

ver o nobre ardor que anima os vossos peitos; porém, ouvi-me com atenção, para que as

outras nações não digam que os maranhenses revoltaram-se como um bando de salteadores!

Não! esta ignomínia não cairá sobre nós! Os maranhenses e todos os mais brasileiros

defendem os seus direitos; mas não são salteadores!!... E sofrereis que este epíteto caia sobre

nós?!...

– Não! não! não!! respondem todos tumultuosamente.

– Pois bem. Ouvi-me. Eis o nosso plano. O capitão-mor Baltazar Fernandes será preso

depois de atacarmos o palácio e dispersarmos a sua fraca guarda. Esta tarefa pertence ao

valente Serrão. E vós, senhor, continua Beckman voltando-se para Serrão, respondereis pela

vida de Baltazar, e vigiareis para que não lhe seja feito mal algum. A Jorge de Sampaio e a

Eugênio Ribeiro pertence o ataque do aquartelamento dos soldados portugueses; e a mim

pertence o ataque do palácio do governador Telo de Menezes. Se nosso plano tiver bom êxito,

convocar-se-á uma junta para depor o governador e o capitão-mor, para abolir o monopólio e

expulsar os jesuítas. Merece este plano a vossa aprovação?!

– Sim! sim! merece!

– Eu contava convosco, não me enganei! Armemos-nos!!

Todos os conspiradores armaram-se com as diferentes armas espalhadas por cima da

mesa. Serrão armou-se de uma forte trave que pesava, pelo menos, uma arroba.

– Agora juremos pelo Cristo que nos ouve, diz Beckman, de sermos fiel à causa que

defendemos. Repitam comigo. Eu juro (continua ele, estendendo a mão sobre o missal, sendo

acompanhado por todos nesta ação e palavras), eu juro combater, até a última gota de meu

sangue, para defendermos os nossos direitos; e arda eu por toda a eternidade no inferno se for

falso ao meu juramento!! Os nossos direitos, ou a morte!!!

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Beckman, depois de fazer o juramento, abre uma janela e diz para os seus

companheiros: – Eis o sinal da revolta!! Ele estende o braço fora da janela e dispara uma

pistola de forte adarme11

.

Um grito unânime respondeu a este sinal:

– Às armas! às armas! às armas!!

Beckman, seguido de seus companheiros, sai para se reunir aos outros insurgentes.

II.

Beckman, com o seu gênio infatigável, tinha arranjado a sublevação de modo que ela

arrebentase a um sinal dado: este sinal foi o tiro de pistola.

Repentinamente grande número de portas se abriram, e uma multidão de gente armada

saiu por elas.

O silêncio da cidade tornou-se em um motim estrondoso: os sublevados armados, uns

de espingardas, outros de pistolas, espadas, enfim, de tudo quanto servia de arma ofensiva,

corriam atropeladamente para se reunirem a um ponto marcado pelo chefe. Eles já não

ocultavam os seus intentos; do meio da multidão ouviam-se continuados gritos de – Abaixo o

governador!.. Morram os jesuítas!... Abaixo o monopólio!!

Beckman e os seus companheiros dirigiram-se para o lugar da reunião, e lá já acharam

grande número de insurgentes: – Viva o nosso chefe! viva!! gritaram todos assim que o

avistaram.

Beckman atravessa apressadamente por meio deles, e sobe para uma pequena

eminência; e aí vê que ninguém faltou ao juramento. O campo estava atulhado de povo, e

ainda chegava mais de todos os lados. – Maranhenses! exclama Beckman estendendo o braço

para pedir silêncio: – Maranhenses! Chegou o momento de nos vingarmos da afronta que se

nos têm feito; porém sejamos humanos. Nós devemos vencer com um braço e socorrer o

inimigo com o outro! Se o governo português tomasse em consideração os nossos clamores,

nós seríamos submissos; mas ele nos trata como desprezíveis colonos e os nossos vexames só

servem de escárnio para ele!! Maranhenses! Eu já vejo a agitação em que estais; os vossos

peitos já não podem conter tanta indignação, e o vosso ardor já suspira pelo momento do

11 O mesmo que calibre, medida antiga.

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combate, este ardor é louvável, eu o partilho convosco. Maranhenses! Eis o nosso grito de

guerra: – Os nossos direitos, ou a morte!!

– Os nossos direitos, ou a morte!!! repetem todos.

Beckman desce do lugar onde estava e divide os insurgentes em três divisões; a

primeira ele entrega ao comando de Serrão; a segunda ao de Sampaio e Ribeiro; e a terceira,

que era composta da melhor gente por ter de assaltar o palácio do governador, fica debaixo de

seu comando. Cada uma das divisões segue para seu lado.

O governador-general dormia com grande quietação, quando um criado entrando

apressadamente e com o terror pintado no semblante, acorda-o dizendo:

– Senhor! Senhor! Levantai-vos, nós estamos perdidos!

D. Telo acorda sobressaltado, assenta-se na cama, e manda ao criado que se explique.

– Eu dormia, diz o criado todo trêmulo, quando uma vozeria me fez acordar espantado;

levanto-me, abro a janela, e vejo uma multidão correndo pela rua, e dando gritos de morra o

governador!! O capitão da vossa guarda já estava acordado e tinha todos os soldados formados

no pátio; a porta da rua ele tinha fechado temendo alguma invasão no palácio que não pudesse

obstar com os poucos soldados que estão às suas ordens. O povo continua a correr e gritar!!...

e nós estamos perdidos!

D. Telo veste-se apressadamente e manda chamar o capitão: este chega e confirma a

notícia dada pelo criado. D. Telo ordena-lhe que conserve a porta fechada, e que poste

soldados em todas as janelas. Esta ordem foi executada; e todos no palácio esperavam

ansiosos o fim destes preparativos.

Uma hora se passou sem aparecer sinais de hostilidades; porém no fim de algum

tempo ouve-se um rumor como o das vagas de um mar distante; pouco a pouco foi crescendo

até que se tornou em um verdadeiro tumulto. Os insurgentes capitaneados por Beckman

desembocaram na rua do palácio e em poucos minutos estavam todos defronte dele. Um

silêncio de morte parecia reinar no interior do palácio e os mesmos insurgentes ficaram por

alguns instantes silenciosos. Uma janela do palácio se abriu e D. Telo, com todas as suas

insígnas de governador-general, apareceu: todos os rostos voltaram-se para ele.

– Que delírio é o vosso, maranhenses! diz o governador: Vós vos levantais contra a

autoridade legal, e não sabeis... aqui foi ele interrompido pelos gritos de – Abaixo o

governador!! Do meio da multidão dispararam, e a bala foi bater na ombreira da janela onde

ele estava.

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O governador retira-se apressadamente, e fecha a janela; neste mesmo instante todas as

outras abrem-se, e um chuveiro de balas vem espalhar a morte entre os sublevados.

Beckman toma um machado de um dos que estavam a seu lado, e avança

intrepidamente para a porta.

Os soldados continuaram a fazer fogo, porém a porta cedeu depressa aos repetidos

golpes de machado dados por Beckman e seus companheiros. Os soldados ainda fizeram

alguma resistência, mas o número os abafou.

D. Telo, conhecendo que toda a defesa era inútil, esperou os sublevados com

dignidade; e quando estes entraram na sala em que ele estava, dirigindo-se a Beckman, que

vinha à sua frente, disse:

– Vós vindes assassinar um fraco velho, eu me entrego nas vossas mãos; saciai o vosso

furor!

– D. Telo, replica Beckman, nós não somos assassinos, a nossa missão não é de

sangue, nós defendemos os nossos direitos, vós sereis respeitado, Lázaro de Melo com mais

quarenta homens vigiarão sobre vós, e nenhum mal se aproximará de D. Telo de Menezes.

Beckman deixa no palácio Lázaro de Melo, seu pupilo, com uma forte guarda, e

dirige-se com o resto dos companheiros para proteger a operação dos outros chefes, no caso

de necessidade.

Ribeiro e Sampaio, ainda que com alguma dificuldade, assenhorearam-se do

aquartelamento dos soldados.

Serrão encontra resistência antes de poder apoderar-se do capitão-mor: depois de ter

arrombado a porta da casa, debaixo das pedras, cômodas, leitos que lançaram das janelas,

sobe ele e seus companheiros, penetram no corredor; porém aí encontrou ele o colossal

Nóbrega, amigo do capitão-mor, e um criado. Logo que o criado avistou Serrão, disparou

sobre ele uma pistola, a bala passou entre a sua orelha e a cabeça, deixando um rastilho de

sangue. Serrão ficou atordoado por um instante, e Nóbrega, querendo aproveitar a ocasião,

caminha para ele com a espada levantada; porém aquele, recobrando alento, recua três passos

e, levantando a trave, descarrega-a sobre a cabeça de Nóbrega e a faz em pedaços. O colosso

caiu sem vida.

O capitão-mor ainda resistiu algum tempo; porém, desejando salvar a vida, entregou-se

à discrição.

Quando Beckman chegou a falar com os três diferentes chefes, já tudo estava

concluído.

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III.

A rebelião foi tão bem organizada que o governador só teve notícia dela quando o

povo, rompendo os diques da paciência, soltou o grito. Nós vimos nos capítulos antecedentes

a sua marcha e o seu feliz êxito.

Logo que os chefes da rebelião puderam acalmar o povo exaltado pela sua vitória,

convocaram uma junta dos três estados para reger o Maranhão.

Beckman sabia muito bem que o Maranhão não podia por muito tempo conservar-se

independente. Uma grande parte da população era nascida em Portugal e esta havia, sem

dúvida, de pugnar pelos interesses de sua pátria; se eles protegeram a rebelião foi porque o

governo português feriu seus interesses particulares, concedendo privilégios aos negociantes

de Lisboa, e ele também sabia que ao menor sinal de revés ficariam abandonados; o que em

pouco tempo se realizou. A outra parte da população era composta de filhos do país

descendentes de europeus; e de indígenas: os primeiros eram pouco numerosos, e os segundos

só serviam de instrumento para uma revolução, e não para sustentar um governo qualquer.

Beckman via tudo isto; porém, esperava que a nova da rebelião havia de causar grande

sensação em Lisboa, que o governo, conhecendo o espírito hostil dos maranhenses, melhoraria

a sua sorte. O governo português ou havia de ceder à petição dos maranhenses, apresentada

por seus emissários, ou havia de mandar um novo governador com novas tropas para abafar a

revolta. No primeiro caso estavam as esperanças dos maranhenses realizadas, pois o

monopólio e os jesuítas não pesariam mais sobre eles; no segundo, Beckman esperava que

seria uma medida intempestiva, pois os maranhenses haviam de pugnar por seus direitos até a

sua última gota de sangue, pois esta medida feriria os seus interesses gerais e particulares, e

que esta oposição ensinaria ao governo português a ser mais prudente. Sampaio, Ribeiro,

Serrão, ele e outros mais foram nomeados membros da junta provisória.

Três meses se passaram sem a maior novidade, a não ser o que alguém já tinha

previsto, isto é, a deserção de muitos dos levantados. O governador e o capitão-mor estiveram

presos todo este tempo, porém foram tratados com humanidade. Os jesuítas refugiaram-se nas

províncias vizinhas.

IV.

Em uma sala de mesquinha aparência, sentada em uma cadeira de assento de couro e

encosto alto, guarnecido de cabeças de prego dourado, uma bela rapariga lia o catecismo:

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repetidas distrações a desviavam de sua leitura; e, depois de um quarto de hora, ela tinha

voltado a mesma folha seis vezes para poder compreender o que lia, tal era a sua preocupação.

Leonor, assim se chamava ela, fecha o livro com impaciência e vai para janela; assim que aí

chegou, seus olhos brilharam de prazer, o sangue subiu às suas faces, e pronunciou com prazer

estas palavras: – Enfim!

Leonor esperava seu amante Lázaro de Mello; ela corre para abrir a porta, e Lázaro se

precipita em seus braços.

– Minha Leonor!

– Meu Lázaro! Oh! que saudades me tens causado! Já te não lembras de mim, não é

assim, ingrato?

– Esquecer-me de ti! Isto é impossível. Beckman, meu tutor e padrinho, reteve-me

todo este tempo junto a si, para ajudá-lo a escrever diferentes papéis que dizem respeito à

junta provisória. Eis, meu amor, o motivo de minha ausência. Tu me desculpas, não é

verdade?

– Tu bem sabes que eu sempre te perdoo. Assentemo-nos, tu deves estar cansado.

– Ah! Leonor, se pudesse estar sempre junto de ti! Viver só para ti! Então eu seria

feliz!

– Lázaro, se nisto consiste a tua felicidade, e se tu não és feliz, é porque não o queres.

É verdade que eu sou filha de um cutileiro e tu és cavalheiro; porém eu sou filha única, e meu

pai tem sabido ajuntar uma boa fortuna; muitas pessoas desejam a posse de minha mão; mas

eu os desengano, porque só a ti amo. De que te serve, Lázaro, a tua nobreza sem dinheiro? tu

és orfão: Beckman tem sido o teu benfeitor, ele também tem família, e tempo virá que tu lhe

serás pesado..... mas que digo eu! Insensata! Lázaro, não me desprezes pelo que eu te digo! Eu

não te quero comprar com a minha fortuna, oh! Não! Não era este o meu pensamento! Eu te

amo, e então tudo quanto eu julgo capaz de te ligar a mim eu ponho em prática! Ah! Perdoa!

– Leonor, se dependesse só de mim o ser o teu esposo, há muito que o seria, porém

uma vontade superior à minha a isto se opõe; e esta vontade, continua Lázaro com furor, e

esta vontade é de Beckman! A política tem secado o seu coração! Ele não se compadece dos

tormentos que eu sofro longe de ti, e não pensa senão na junta!... E que me importa a junta,

que me importa a independência do Maranhão sem Leonor!!

– Egoísta! replica Leonor. Tu não te importas com os interesses da tua pátria?! Lázaro,

eu não esperava estas expressões de tua boca; se queres que eu te continue a amar, ame

também a nossa pátria; eu nasci no Maranhão, e no meu peito bate um coração brasileiro.

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– Minha Leonor; perdoa os delírios de minha imaginação!... Eu vou-me lançar aos pés

de Beckman: se ele for humano me há de ouvir. Adeus, eu vou ouvir minha sentença, porém,

se ele me não ouvir! Que trema!! A minha ving..... Adeus! Adeus, Leonor!

Lázaro sai precipitadamente, deixa Leonor assustada com seu arrebatamento e

encaminha-se para a casa de seu tutor. Beckman estava sentado à mesma mesa onde o vimos

pela primeira vez; diferentes papéis o rodeavam, e ele, cansado de escrever, cruzou as mãos

sobre o peito e lançava um olhar vago por todos estes papéis amontoados diante de si.

– Há apenas três meses, dizia ele com melancolia, que o povo corria entusiasmado

pelas ruas desta cidade para abolir o infame monopólio, e em tão pouco tempo já este não se

lembra nem de sua bela vitória, nem do desprezo ignóbil com que era tratado!.. O povo!.. o

povo!! desgraçado de quem se fia na popularidade! Hoje panegirista de um governo levantado

por suas próprias mãos, amanhã ele o calcará na lama, e levantará sobre a sua ruína um novo

governo! Um homem pertinaz com uma ideia nova é tudo quanto basta para levá-lo atrás de si

e fazer uma revolução, arriscando-se, é verdade, a ser vilipendiado ao depois por aqueles

mesmos que mais o favoreciam... Arlequim!... Trabalhemos ainda alguns instantes, amanhã é

dia de Junta.

Beckman puxa os papéis para junto de si e, quando os principia a ler, entra Lázaro.

– Senhor! diz este entrando.

– Que pretendes?

– Eu vos venho pedir uma graça.

– Se estiver em minhas mãos servir-vos, podes contar com ela.

– Eu amo a Leonor, e....

– É escusado continuares; por muitas vezes já vos tenho dito, que não consentirei em

semelhante casamento.

– Ouvi-me, Senhor! diz Lázaro com a voz trêmula de raiva: ouvi-me!

– Lázaro, responde Beckman com brandura; eu desejo a tua felicidade, não o duvides!

Pede-me outra qualquer coisa, e serás servido; porém esta não! Eu não faltarei ao meu

juramento.... Ouvi-me. Quando teu pai morreu tinhas apenas dois anos: no leito de morte, ele

me disse estas palavras: “Meu amigo, a ti confio o meu tenro filho, tu o levastes à pia do

batismo, tu serás o seu pai; e eu exijo de ti o juramento de não dares o teu consentimento para

que meu filho se case, no caso de o querer, antes que tenha completado os 25 anos; e isto por

motivos que eu levarei ao túmulo comigo”. Eu fiz o juramento que teu pai exigiu de mim; eu

te tenho criado com a mesma afeição que as minhas duas filhas. Teu pai te deixou pobre, e eu

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te tenho feito uma posição no mundo; por pedido meu fostes nomeado capitão de um

regimento; e eu farei tudo quanto for possível para tua felicidade, pois eu te amo como o meu

próprio filho. Uma só coisa te tenho eu negado, e te negarei até que tenhas completado os teus

25 anos, o consentimento para o teu casamento.

– Este podia ser o parecer do meu pai; porém eu penso de outro modo.

– Mancebo; já vos disse que isto me é impossivel.

– Senhor!!

– Torno-te a repetir: não pode ser.

– Oh! isto é muito!! E que me importa o vosso consentimento?! Eu passarei sem ele.

– Eu te irei arrancar do lado de tua amada, e mostrarei o meu direito.

– Direitos de um déspota! Oh! Os maranhenses foram felizes na troca!

– Lázaro de Melo! responde Beckman levantando-se com arrebatamento: Mede as tuas

palavras, e não confundas os interesses sagrados da pátria com as tuas paixões particulares,

aliás...

– Eu não vos temo! diz Lázaro fora de si: eu não vos temo!... Respondei-me pela

última vez: ainda persistes em usares do direito que tendes sobre mim?

– Ainda!

– Adeus! Beckman! Neste momento esqueço-me de todas as obrigações que te devo!

Ah! Tremei!

– Tu me ameaças?!

– Beckman, lembra-te do dia de hoje!!

Lázaro sai como um furioso da sala.

Beckman, depois de ficar algum tempo pensativo, assenta-se e diz sossegadamente:

– Mocidade, mocidade.

V.

A nova da rebelião dos maranhenses causou grande inquietação em Lisboa. Receava-

se que os franceses, tendo-se estabelecido em Caiena, quisessem renovar a tentativa de fundar

uma colônia nas margens do Orelhana, renovando as suas pretensões sobre o Maranhão. Nesta

crítica conjectura, resolveu el-rei mandar um novo governador, homem de talento, probidade e

reconhecido talento. Gomes Freire de Andrade, que possuía todos estes requisitos, foi

escolhido para o importante cargo. Depois de se ver contrariado por mil intrigas, conseguiu

por fim plenos poderes de el-rei D. Pedro II; partiu a bordo da nau Conceição e a 15 de maio

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chegou à barra de Maranhão, onde ancorou. Beckman e seus sócios mandaram a bordo um

ajudante para saber se era o novo governador ou um navio do pirata D. João de Lima. Gomes

Freire o acolheu bem e manifestou as disposições mais favoraveis aos habitantes: disse que

em Lisboa tinha conferido com Tomás Beckman, irmão do chefe dos levantados, o que fez

crer aos sublevados que nada tinham a recear. O governador, aproveitando a ocasião, pediu ao

oficial que levasse para terra duas pessoas que tinham sofrido muito durante a viagem, e a

quem o ar da terra seria muito útil para restabelecer a saúde, o que foi atendido. Embarcou-se

pois Francisco Teixeira de Moraes e Francisco da Mota Falcão. Este voltou a bordo e

informou Gomes Freire que não havia na cidade preparativos de defesa, e que os habitantes

estavam inteiramente confiantes no resultado das representações de seus procuradores de

Lisboa. Mas Beckman, tendo resolvido excitar o povo e opor-se ao desembarque do

governador, fez partir o procurador, o secretário e a junta para irem a bordo cumprimentar

Gomes Freire, mostrando-se disposto a reconhecer a sua autoridade, mas persuadindo-lhe que

quisesse demorar o seu desembarque até o dia seguinte, para dar tempo aos aprestos de o

receberem dignamente; mas ele, descobrindo facilmente o ardil, disse-lhes que ia publicar

uma anistia geral e que desembarcaria na maré imediata; e logo expediu dois oficiais com

cinquenta soldados que se apoderaram do forte sem resistência. Beckman e alguns de seus

sócios fugiram para o interior.12

VI.

Uma tropa de 200 a 250 homens marchava silenciosamente por um pequeno e agreste

atalho; não se ouvia senão a bulha dos pés dos homens nas folhas secas que cobriam o

caminho, e o susurro do vento entre as folhas das árvores. Já tinha dado meia-noite, uma

escuridão completa cobria a terra; porém, o chefe da tropa a dirigia com segurança e sem

hesitar, por entre o intrincado bosque e a escuridão da noite. Por espaço de uma hora marchou

a tropa sem que se ouvisse a voz de um só homem; o chefe ia adiante, os outros seguiam um

após o outro, por não o permitir mais a natureza do caminho. Iam sair do bosque para entrar

12 Todo o quinto capítulo, com pequenas variações, é um enxerto da descrição do episódio

feita por Francisco Solano Constâncio em seu livro História do Brasil, publicado em Paris no

ano de 1839.

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em um campo, quando a voz do chefe deu a ordem de fazer alto; todos pararam, e ele

dirigindo-se à tropa em voz baixa:

– Meus companheiros, nós temos marchado até aqui sem que tenhamos sido

percebidos por pessoa alguma; porém, até agora o bosque protegeu a nossa marcha; o mesmo

não acontecerá quando atravessarmos o campo que está diante de nós; assim, atravessemo-lo

com prudência. Curvemo-nos até o chão, e sigam todos o meu exemplo.

Ele bota as mãos no chão e, seguido de todos os outros, principia a atravessar o campo.

Quem pudesse ver de uma certa distância todos estes homens andando a quatro pés havia de

supor que era uma manada de carneiros que a noite tinha surpreendido no bosque. Eles tinham

dado 20 a 30 passos, quando uma bulha de um dos lados do campo os fez deitar com a barriga

sobre a terra. Um quarto de hora permaneceram nesta posição e, como não ouviram bulha de

novo, o chefe deu ordem de continuarem a marcha. Nada mais os interrompeu até chegaram

ao outro lado do campo.

O campo neste lugar se estreitava; à esquerda, corria um rio bastante impetuoso, e à

direita um bosque que se estendia até as portas da cidade. Do outro lado do rio, havia também

um outro bosque, que o acompanhava em todas as suas sinuosidades, ficando apenas um

pequeno caminho entre o rio e o bosque à direita.

Logo que chegaram ao princípio desse caminho, Beckman (pois já é tempo de dizer o

seu nome), depois de se ter levantado, olhou com atenção para todas as pessoas, como

procurando alguem; porém, depois de procurar inutilmente quem ele desejava, voltou-se para

o Serrão e diz: – Onde está Lázaro?

– Ele marchava na retaguarda, responde este.

– Mas eu não o vejo! Onde estará?!

– Há muito tempo que eu vos tenho dito que desconfio deste Lázaro; porém vós não

me tendes querido dar atenção.

– Lázaro é meu afilhado, e não me trairá.

– Ele vos ameaçou, segundo me dissestes, em uma entrevista que teve convosco a

respeito de um casamento; e isto já não dá muito boa ideia dele. Ameaçar o seu benfeitor!!...

Oh! Isto é infame!...

– Mocidade! Mocidade!

– Queira Deus, replica Serrão, que essa vossa incredulidade não custe a nossa ruína!...

Enfim, marchemos.

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A tropa entrou no caminho e principiou a marchar, tendo de um lado o rio, e do outro o

bosque. Por meia hora nada a interrompeu; Beckman e seus companheiros já esperavam

penetrar na cidade com facilidade, surpreenderem a guarda do governador, matar a este e, no

meio do tumulto ocasionado por este acontecimento, excitar o povo a uma nova revolução,

quando de dentro do bosque uma descarga bem dirigida de mosqueteria veio surpreendê-los

no meio de suas esperanças.

– Traição! Traição! gritam espavoridos os companheiros de Beckman. Eles não sabem

já o que fazem, a confusão se apodera deles: uns correm para um lado, outros correm para o

outro. A confusão estava no seu auge.

– Camaradas! grita Beckman, que terror é o vosso?! Ataquemos o bosque; o inimigo aí

está!!

Uma nova descarga, tão bem dirigida como a primeira, incute terror e pânico nas

fileiras de Beckman; e principiaram a fugir debandadamente. Uma companhia de alabardeiros

sai do bosque e os persegue. Uns caíam no rio e achavam a morte na sua impetuosa corrente,

outros morriam com as alabardas enterradas nas costas. Eles já não procuravam defender-se,

mas sim fugir; porém, o caminho era estreito, atropelavam-se, e todos querendo fugir

ocasionavam a morte de todos. Serrão, com um pesado machado na mão, aproxima-se do

chefe dos alabardeiros e faz a sua cabeça saltar fora do seu tronco; e vendo, do outro lado dos

soldados, Lázaro que os tinha traído, gritou: “Espera, traidor!” e arremessa-se para ele; porém

o gancho de uma alabarda o retém pelo pescoço, ele cai, sendo logo amarrado pelos soldados.

Ribeiro, Sampaio e Beckman fizeram prodígios de valor; porém foi forçoso ceder ao número.

Ribeiro e Sampaio foram feitos prisioneiros, e Beckman pôde escapar-se.

Os soldados do governador, comandados pelo traidor Lázaro, fizeram uma carnificina

horrível.

Expliquemos a causa desta surpresa.

Lázaro de Melo, depois que ameaçou Beckman, procurou conciliar-se com ele, o que

conseguiu facilmente. Neste tempo chegou o novo governador, e foi forçoso a Beckman fugir;

Lázaro o acompanhou, esperando poder vingar-se em occasião oportuna, e esta não tardou

muito, quando Beckman, à frente de alguns de seus amigos, empreendeu uma nova

insurreição. Nós acabamos de ver como ele conduziu esta expedição e o seu desgraçado fim;

Lázaro os tinha traído, apartando-se deles por caminhos deles conhecidos; e fazendo conhecer

ao governador o perigo que o ameaçava. Teve por prêmio o comando dos soldados mandados

contra Beckman, o qual ele esperava ver morto para poder unir-se a Leonor.

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Seus intentos foram malogrados pela fugida de Beckman; mas conhecendo ele bem

todas as localidades da casa de seu tutor, e onde supôs que ele se tinha refugiado, marchou

com os soldados. Beckman foi preso na sua casa no meio de sua desgraçada família por

aquele que, por muito tempo, fez parte dela.

VII.

O povo da cidade alvoroçou-se quando soube da prisão de Beckman. A expedição

tinha sido feita com presteza e segredo, assim, não souberam desta notícia senão depois que o

seu antigo chefe já estava preso. Esta notícia espalhou-se com a velocidade do raio, assim

como o nome de traidor. A multidão estava defronte do palácio do governador; alguns gritos

sediciosos se ouviram do meio dela; porém o temor os abafou logo. Grande número de

patrulhas percorriam as ruas em todos os sentidos. Se no meio deste povo aparecesse um só de

seus chefes, uma insurreição ainda mais sanguinolenta que a primeira havia de rebentar; mas

eles estavam todos presos, e o povo não tinha quem os conduzisse; faltava uma voz poderosa

que desse unidade às suas ações.

– Se algum dia encontrar o infame que atraiçou Beckman, dizia um pedreiro para o seu

vizinho: hei de enterrar o meu martelo em sua cabeça!

– E fazes bem, responde o vizinho: um ingrato, é capaz de todos os crimes. Oh!

Atraiçoar o seu padrinho! não sei o que me retém aqui e que o não vá procurar para

arrancar-lhe o coração!

– Infame! Malvado!

– Oh! Sim! Ele é bem malvado! diz uma mulher que ouvia a conversa dos dois: bem

malvado! Desgraçada viúva! Desgraçados orfãos!

– Pois Beckman há de ser morto?! pergunta uma outra mulher.

– Ainda o duvidas?!

– Coitadas de suas infelizes filhas!.. Se eu fosse homem havia de levantar-me contra

esta barbaridade!

– Isto é fácil de dizer, mas não de executar. Quem nos há de dirigir? Os chefes estão

presos e, além disso, vê quantos soldados vieram com o novo governador.

– É verdade! É verdade!

Estas e outras palavras se ouviam por toda a parte. Repentinamente o povo se agitou

como as vagas do mar, e os gritos de – Morra, morra o traidor! se repetiam.

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Lázaro queria atravessar a multidão para entrar no palácio do governador, porém logo

que o avistaram, correram para ele como frenéticos, aos gritos de – Morra o traidor! Ele não

teve remédio senão procurar na fuga a sua salvação.

O povo ainda ficou por algumas horas junto; porém, foi pouco a pouco retirando-se; à

noite, já não havia pessoa alguma nas ruas.

Lázaro, vendo-se obrigado a fugir dos que o perseguiam, entra em casa de Leonor,

onde ele ainda não tinha estado depois de sua traição. Leonor estava inquieta pela agitação

que via na cidade e ainda ficou mais quando viu Lázaro entrar impetuosamente com o terror

pintado em seus olhos.

– Leonor! Leonor! socorrei-me!

– Ah! O que é isto?!

– Eles me perseguem! Eles têm sede de meu sangue! Eles dizem que sou um traidor!!

Ah! Sim, eu sou traidor!

– Tu, traidor!...

– Sim! Sim! Eu traí Beckman! Beckman, meu tutor e padrinho!! Tu foste a causa,

Leonor!.. Enquanto ele vivesse, eu não podia ser teu, e ele morto tu és minha! Leonor!

Beckman vai morrer, ele está preso: e eu fui quem o prendi!.. – Lázaro quer abraçar Leonor,

seus olhos brilham como os de um louco, todo o seu corpo treme. O furor do povo contra ele

lhe revelou toda a infâmia em sua alma e o temor se apoderou dele; e estes dois sentimentos o

faziam delirar.

– Lázaro! Deixa-me! diz Leonor afastando-se dele.

– Deixar-te, eu!.. Não!.. Vês este sangue que cobre a minha mão? Pois bem, ele foi

derramado por tua causa!

– Por minha causa?! Tu deliras?!..

– Leonor! Leonor, tende piedade de mim!

– Eu te amava como poucas pessoas amam, eu ainda te amo; mas fostes traidor! Tu

derramastes o sangue de teus patrícios, a minha existência não se unirá mais à tua! Lázaro,

antes de eu ser amante, era maranhense!

– Tu também me odeias?! Oh!

– Eu te amo como mulher, e te odeio como brasileira, e este sentimento prevalece.

Lázaro, ide buscar o vosso tutor, ide restituir o pai às filhas, e depois vinde, que eu serei tua;

porém, antes disso, não o esperes.

– Oh! Isto é impossivel, o governador já lavrou a sua sentença.

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– Sai de minha presença, traidor! diz Leonor com dignidade, porém com lágrimas nos

olhos.

– Lázaro, diz ele, tu és um traidor! Todos te aborrecem!... Ah!... Leonor! Adeus!

Adeus!...

Ele sai com impetuosidade.

Leonor, assim que Lázaro saiu, caiu sentada em uma cadeira, tapou a cara com a mão,

e suas lágrimas correram por entre os dedos.

E Lázaro?

Logo que ele saiu da casa de Leonor, caminhou como um louco para onde tinha

surpreendido os companheiros de Beckman. Não sabia para onde ia, um sentimento maquinal

o dirigiu para este lugar. Seus olhos pareciam querer saltar fora de suas órbitas, seus cabelos

voavam com o vento, seus vestidos completamente desarranjados, enfim, tudo nele denotava

loucura.

A terra, no lugar da surpresa, ainda estava úmida com sangue. Apenas chega ali, ouve

rumor no bosque, era uma cobra que se movia, porém supôs que alguém o perseguia e,

olhando para trás, com o movimento que faz, escorrega-lhe um pé no mangue, e cai para a

parte do rio; a não ser o ramo de uma árvore que pendia sobre o rio, ele se teria afogado; mas

ainda não estava fora do perigo. O ramo em que ele estava suspendido por um braço era frágil

e, com seu peso, dobrou. Ora, tendo o ramo dobrado, e dobrado muito, a cabeça de Lázaro

ficou oito palmos abaixo da superficie da terra firme. O rio debaixo de seus pés faria um

redomoinho, Lázaro a todos os momentos se aproximava dele.

Estendia o braço a ver se podia firmar-se na terra; porém inutilmente. O ramo

principiava a estalar, seu braço já não podia suportar o peso do corpo: ele procura agarrar no

ramo com a outra mão e, com o esforço que fez, o ramo estala e seus pés se aproximaram

mais ao redemoinho. Lázaro viu diante de si uma morte inevitável; suas ideias principiam a

abandoná-lo; um suor frio cobre todo o seu corpo; e crê ouvir milhares de vozes dizendo ao

redor dele: “Traidor! traidor”!! Quase já ia abandonar o ramo; porém, lançando-se para um

lado, vê – oh que horror! – um enorme jacaré com os olhos fitos nele!! Esta vista lhe dá novas

forças; ele pode conseguir agarrar no ramo com a outra mão; seus pés procuram firmar-se na

escarpa ribanceira, o suor corre em largas gotas de sua testa; seus nervos se endurecem; suas

unhas se enterram no ramo. Com dificuldade pode firmar um de seus pés; espera escapar ao

terrível jacaré, que olha para ele com impassibilidade; em último esforço, ele está quase a

salvo; mas este último esforço acaba de destruir o seu apoio; o ramo cede, e Lázaro

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desaparece no redemoinho!! O jacaré deixa o seu lugar de observação e, com a boca aberta

mostrando os seus temíveis dentes, com a cauda batendo alegremente na água, mergulha no

lugar onde Lázaro desapareceu! Por algum tempo, a água se agitou na superfície, o lodo subia

do fundo, como denotando um combate no seio do rio; o lodo principiou a subir com sangue;

em pouco tempo o rio ficou vermelho.... e depois tudo ficou quieto....

Assim morreu desastrosamente Lázaro de Melo! E possam todos os traidores morrer

como ele.

Gomes Freire portou-se com moderação e generosidade. Depois de ter feito quanto

dependia dele para salvar Beckman, assinou a ordem de execução com mão trêmula, que

apenas se podia reconhecer a firma e, após a morte de Beckman, comprou os bens dele e os

restituiu à inconsolável viúva a quem tinham ficado duas filhas solteiras. Beckman morreu

com dignidade, assim como Ribeiro. Serrão e Sampaio conseguiram fugir.

Beckman morreu acompanhado das lágrimas de seus amigos e inimigos: assim é

lastimado o verdadeiro patriota, o cidadão honrado; os seus mesmos inimigos choram a sua

morte!

Lázaro de Melo morreu execrado de todos: assim morre o traidor!

Publicado em O Sete d’Abril, 11 e 12 de fevereiro de 1839.

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Anexo 6

Dois poemas de Gonçalves de Magalhães

Jornal do Commercio, 22 de março de 1838.

Ao meu amigo o Sr. João Caetano dos Santos, por ocasião de haver desempenhado o

caráter de Antônio José, na tragédia – a Inquisição e o Poeta – levada à cena no teatro

Constitucional Fluminense no dia 13 de março de 1838.

D’ímpia fogueira, pelo tempo extinta,

De um poeta tirei as frias cinzas,

E um nome fiz surgir, que a pátria adorna:

Com isto levantei um monumento,

Uma estátua compus; dei-lhe a palavra,

E tu lhe deste o movimento e a força.

Iguais porções de glória a nós pertencem;

E como esta obra a nós deve a existência

No futuro talvez nós lh’a devamos.

N’arte sublime, que às paixões dá vida,

Sempre mestre, e discípulo de ti mesmo,

Os voos de Talma, com quem tu sonhas,

Ovante segue, escurecendo a inveja

Que já nem ousa disputar teu gênio.

Tu deixarás teu nome; avante, oh jovem!

Que a glória que predizem teus amigos

Será pelo porvir sancionada.

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Soneto

À senhora D. Estela Sezefreda, por ocasião de haver desempenhado o caráter de

Mariana na tragédia – a Inquisição e o Poeta – levada à cena no teatro Constitucional

Fluminense, no dia 13 de março de 1838.

Tu, que da cena vais colhendo as flores;

Calcando ufana a via mal trilhada

Até’qui pelo vulgo desprezada,

Que ainda não conhece seus fulgores.

Tu que mostrando vais d’arte os primores,

Por um gênio feliz sempre inspirada,

Avante, Estela, na tão árdua estrada

Em que aplausos recebes e louvores.

Não há classe p’ra o gênio, quando a glória

De perfumes o cobre, e o nome envia,

Para modelo, às páginas da história.

A par do mestre que teus passos guia,

Conquista, Estela, o templo da memória,

É que dele e de ti se fale um dia.

Domingos José Gonçalves de Magalhães

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Anexo 7

Reprodução da edição da comédia Os dous, de Martins Pena

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