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7/27/2019 Marxismo Direito e Sociedade - Olavo de Carvalho http://slidepdf.com/reader/full/marxismo-direito-e-sociedade-olavo-de-carvalho 1/73 Marxismo, Direito e Sociedade http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_1.htm Debate entre Olavo de Carvalho e  Alaor Caffé Alves Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 19 de novembro de 2003.  Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me  pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns  pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra.  Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”,  publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C. Observação Os três artigos citados acima estão neste mesmo documento, logo na sequência MEDIADOR : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade  brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muito conhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamento  brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e social de nosso tempo, tomando por

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Marxismo, Direito e Sociedadehttp://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_1.htm  

Debate entre Olavo de Carvalho e Alaor Caffé AlvesFaculdade de Direito da Universidade de São Paulo,

19 de novembro de 2003.

 Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas

uma delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me

 pareceu a mais completa. Agradeço a eles e também aos autores das

demais, que me serviram para corrigir a presente versão em alguns

 pontos, ainda que sem fazer uma revisão em regra. 

 Alguns pontos brevemente mencionados neste debate receberam

depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do

marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”,

 publicados no Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.

Observação

Os três artigos citados acima estão neste mesmo documento, logo na sequência

MEDIADOR  : Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaor Caffé Alves, muitoconhecido por nós estudantes por nos levar à crítica do Direito e doEstado e a olhar para dentro as relações sociais e enxergar a suaautêntica expressão. À direita, apresento o polêmico filósofo Olavo deCarvalho; tido pela crítica como um dos luminares do pensamento

 brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições , entre outros livros, e trazhoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contraa tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, maisuma vez, um centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxistacontra um liberal. A iniciar pelo prof. Alaor, teremos trinta minutospara cada debatedor mais quinze minutos para as réplicas; em seguida,abriremos às perguntas. Prof. Alaor e Olavo de Carvalho, neste debate

da realidade econômica, política e social de nosso tempo, tomando por

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 base o marxismo, qual função cabe ao Direito na sociedade? E no seuentendimento, quais as conseqüências de se pensar o Direito destaforma? Com a palavra, o prof. Alaor Caffé Alves.

 A LAOR  C AFFÉ A LVES : Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof.Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizerquase nada a respeito do pensamento jurídico, e especialmente dopensamento jurídico calcado na perspectiva de uma metodologiasingular, que é a metodologia marxista. Já digo inicialmente que nãosou um marxista no sentido tradicional do termo, mas tenho meunamoro com relação a certas questões, e a certas questõesmetodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento

teórico marxista, desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindashistóricas, problemas graves, inclusive de situações relacionadas comfrustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso nosdá um grau de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite veralgumas coisas importantes. Eu simplesmente tive de escolher –porque meia hora é tão pouco – alguma coisa estratégica relacionadacom o Direito, a sociedade e a perspectiva marxista, que é umaperspectiva que no século XX teve um domínio muito grande,especialmente na ordem política, embora não daquela forma quedesejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas noesquema político e social, enveredou nações inteiras por caminhos quenão são efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelomenos na conclusão do ideal desse pensador que conhecemos, que éMarx. De qualquer forma, influiu muito a vida do século XX, e a nóscabe apenas uma perspectiva um pouco mais elementar, porque vamostratar apenas de uma parte da sociedade e sob uma certa ótica, que é a

 jurídica. Marx nunca tratou do Direito. Na verdade, Marx foi um

economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito singular no planodo pensamento teórico da economia, estabelecendo seus princípios,enfim, aquilo que ele julgava adequado para explicar a sociedade emque ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não valem mais, emfunção da historicidade dessas mesmas expli cações. Então, é claro,temos de dar o devido valor e entender que isso não significaabsolutamente compreender Marx sob o ponto de vista dogmático, massim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos oferecer para entender

um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no nosso caso, oproblema jurídico.

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Para colocar a questão muito rapidamente, muito estrategicamente, noponto de possível discussão, nós temos de levar em conta ascaracterísticas do Direito exatamente dentro da perspectiva e daposição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa

dimensão estrutural social; precisamos entender o que significa achamada estrutura social, se ela comporta ou não previsibilidade, seadmite ou não as possibilidades de um conhecimento razoável do serhumano, a ponto de prever as condições objetivas de sua vida social.Nós encontramos várias ciências sob o ângulo da previsão, como asociologia, como a própria economia, mas a questão é saber se ahistória pode ser prevista. Essa é uma questão importante, porque opróprio homem é considerado como ser produto da história e de sua

socialidade. Se o ser humano é um produto social, a par da situaçãoindividual em que ele se apresenta também como ser biológico – eletambém tem a sua individualidade singular, biológica, psicológica –,aqui também se indaga sobre a forma social que toma essa expressão

 biológica e psicológica. Até que ponto a socialidade determina asdimensões de vontade, os valores humanos, as crenças? Em quesentido isso ocorre?

O próprio Direito é uma expressão social, pois é um fenômeno social e,sendo um fenômeno social, tem de ser estudado desde de certoscritérios que permitem caracterizar uma certa regularidade no Direito.É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um sabercientífico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim comoum saber apenas prático; alguns levam em conta se é possível um saberprático ou se há apenas um conjunto de propostas gerais que não têmuma fundamentação científica adequada para verificação de sua

 validade, de sua verdade. Tudo isso é um problema complicado, pois se

trata da metodologia do saber jurídico, focada na perspectiva dametodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre esse assunto. Porexemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico

 jurista, que sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, umgrande pensador que, atendendo às premissas, enfim, às diretrizespostuladas pela metodologia marxista, pela visão marxista do mundo,acabou dando-nos uma visão interessante, que depois ele mesmotransforma; ele mesmo altera seu ponto de vista, dá uma virada, e

acaba morto em 1937 na União Soviética. É claro que outros filósofosexistem: mais atualmente, temos os filósofos juristas como Ceromi [?],

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grande pensador italiano, ligado também à perspectiva marxista, etambém Atienza, um grande pensador ligado às questões da ordem dométodo marxista do Direito. Também temos o namoro feito porNorberto Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um

neoliberal, mas de uma forma um tanto diferente daquelas relativasaos neoliberais do século XIX e mesmo do século XX.

Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte:como é que vamos tratar o Direito dentro de uma perspectiva nãopositivista? Uma delas é a marxista. O conceito de direito no sentidopositivista, como vocês sabem, decorre exatamente de uma posição edefinição da lei como sendo aquela que deve definir as condições e as

específicas diretrizes jurídicas de uma sociedade. A sociedade deve serproduzida do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O grande problemaé saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há, claro,explicações, inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo,que são muito interessantes – mas não vamos perder tempo agora emdefini-los, porque é muito complicado e precisaríamos de mais tempo–, explicações estas que não têm normalmente, por definição, aprodução do espírito humano senão mediante a confissão de reflexõesfilosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal do Direito. Por exemplo,a perspectiva idealista ou a perspectiva não-materialista correspondeao fato de que há um espírito, espírito este que não significa o de cadaum de nós, mas o conjunto dos espíritos, que na verdade são as açõesculturais dos homens, particularmente, que formam o espírito que emúltima instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale dizer,o espírito na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a

 busca da liberdade produz praticamente a vida social. O Estado mesmo

é uma expressão desse mesmo espírito. Essa visão é extremamentecriticada pelos marxistas, que acham que a espiritualidade tem por

 base uma estrutura social calcada na visão da produção da vida social,na produção da vida material. Se não houver a idéia da produção da

 vida material da sociedade, nós não temos a idéia mais clara do próprioespírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada àmaterialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, comonão caberia existir a matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é

 jamais a matéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidadedos físicos gregos clássicos, a busca de um “ em si ”, de uma substância

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material no mundo. Para Karl Marx, a matéria é postulada em funçãoda produção da vida social humana. Materialidade, portanto, é algoque é prenhe de espiritualidade, de certo modo; há uma relaçãodialética entre o processo de pelo qual os homens agem no mundo e

transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo,os homens, progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. Éisso o que acontece.

Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade, exatamente ooposto da visão positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, ocaso de Kelsen, que trabalha uma visão fundamentalmente estática, ou,

 vale dizer, muito abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente

norma e é uma estrutura de sentido. A norma como estrutura desentido não será estudada do ponto de vista de sua gênese e nem deseus fins, porque gênese e fins da norma são questões de outrasciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, seexprime pela norma abstrata, por um dever-ser postulado segundouma estrutura de coação, que é definida pelo próprio Estado. Então,um dever-ser , para Kelsen, é fundamental, e ele separafundamentalmente o dever-ser do ser. Evidentemente, essa posturanão é aceita pela perspectiva marxista, porque o ser e o dever-ser secompõem numa relação dialética. Não é fácil compreender isto. Édifícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se fazdiferença profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina odever-ser , isto é, ele é condição para o dever-ser. Ou seja, Kelsen aceitaque a sociedade deve existir necessariamente para que exista o Direito,para que exista o dever-ser, a norma; mas o dever-ser não tem porfundamento o ser, ou seja, a relação social, a sociedade, e sim tem porfundamento um outro dever-ser, e este outro tem por fundamento um

outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele chama de normafundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o ser éabsolutamente separada, não existe uma comunhão entre uma e outraa não ser pela condição necessária – não a condição per quam , pelaqual, mas a condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. Éclaro que não há Direito sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsenera um homem extremamente ladino, profundo, grande pensador doDireito; mas tem uma visão formalizada. O Direito como estrutura de

sentido organiza a vontade; o Direito, embora tendo como causa a vontade humana, porque já não pode mais ter causa divina (desde que

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Deus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essa posturade direito teologal, como também não há a idéia do direito natural, umdireito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser ,em que o próprio ser é dever-ser. Como já não se admite isso, a única

forma de se admitir o Direito é aquele imposto pelos homens. A formade impô-lo implica uma relativização do Direito, e esta relativização doDireito imposto pelo homem (porque o homem é um sercircunstanciado, histórico, condicionado por situações singulares)evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do que ele faz,especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen nãopode aceitar senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que apositivação do Direito moderno é fundamental, porque é uma das

formas pela qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da formacomo se diz o Direito. Diz através da lei, a lei é a positivação do Direitomediante formas escritas; por isso a codificação do sistema, porqueantes não havia esta codificação tão expressiva, mas a partir do séculoXVII, a codificação se torna cada vez mais presente, e no século XIX épraticamente universalizada. O Direito é um direito escrito, e enquantodireito escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que tem de serinterpretado. Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se

torna muito complexa, determina a necessidade de os homensregistrarem o Direito necessariamente, sem o que o Direito não podeser devidamente interpretado e aplicado adequadamente.

Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modoextrai as possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece-seKelsen dos fundamentos sociais, das estruturas sociais; daí o problemade que no positivismo se faz uma separação entre Direito como normapositivada e justiça, moralidade e ética jurídica. Estas questões são

muitos distintas. O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura ediz que o Direito é isto. É claro que esta visão é formalizada, portanto,uma visão estática do Direito, melhor ainda, uma visão universal doDireito. De certo modo se diz o seguinte: a norma jurídica, como

 jurídica que é, que dá a essencialidade à compreensão do Direito, éigual no sistema capitalista, socialista, comunista, feudal, clássico: anorma é sempre a norma, é sempre o dever-ser . É por isso que ele,então, essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um

pouco o caminho platônico: as próprias experiências, a singularidade, ahistória, a factualidade, as circunstâncias, isso passa a ser como que,

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digamos, alguma coisa esmaecida do mundo, como que sombras dacaverna. O que importa fundamentalmente para essencializar o Direitoé a norma; a norma é uma estrutura de sentido, e sentido da vontade, enão a vontade é a norma. Vejam a diferença entre a postura marxista e

a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada, maisampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todoo sistema capitalista; fora, evidentemente, os sistemas jurídicoscalcados na perspectiva teológica que como nós temos ainda em váriospaíses do mundo que a adotam, mas os países mais avançados têm estalinha muito consagrada da positividade, portanto a linha da legalidade.

Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia da

processualidade, que é uma idéia dialética. Por isso eu faço sempreuma diferenciação entre o processo e o produto. A idéia é normalmenteseparar o resultado do processo, então fica complicado porque ficamosapenas com o resultado. Em termos operacionais e práticos dá parausar o resultado muito bem de forma instrumental, e como diziaHabermas, a instrumentalidade racional permite que se manipule oresultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido eentendido cientificamente se não se atender para o processo pelo qualo resultado é resultado. Então, há uma processualidade no mundo e

 buscar o processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por si mesma; buscar o processo pelo qual ohomem se desenvolve é melhor para entender o próprio homem, aqui eagora. Por isso, o homem tem de ter a expressão do passado. Ele tem aexpressão do passado, mas tem sua negatividade; porque o homem nãoé o passado, ele supera esse passado. Uma visão um tanto quantohegeliana, mas a possibilidade de que o homem supere o passado é aafirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação. Ele se afirma,

tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criançaque foi, portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa,e isso existe no plano do Direito.

Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temosentão de projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: asociedade, como se dá? Em que termos a sociedade entra comoprocesso? É um problema que eu sempre levo em conta: ela é uma

produção puramente espiritual, é uma produção material, ou ématerial e espiritual ao mesmo tempo? Parece que é conjugada. Ela

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não é puramente espiritual, não é apenas a história do espírito humanoque define o homem; também não é uma materialidade pura esimplesmente, naquela concepção mecanicista e substancialista damatéria; mas é uma relação, uma dinâmica entre espiritualidade e

materialidade. Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é ofundamental nisto? Os marxistas consideram que, em última instância,a dimensão material (naquele sentido dito por Marx, não no sentido damatéria bruta, mas no sentido da produção, ou seja, da matériaenquanto produção do homem, portanto) é claro que tem história. Seexaminarmos antropologicamente, vê-se que os homens nãoproduziram sempre aquilo que produzem hoje; produziram de formamuito diferente, produziam outras coisas, em modos diferentes de

produção. As formas sociais para produção são diferentes, as relaçõesque os homens guardam entre si são diferentes nos diversos momentoshistóricos. Então, você vê que, efetivamente, existe um problema quedeve ser visualizado pelo teórico do Direito para saber até que ponto opróprio Direito é uma resultante deste processo.

O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um exemplo bem específico para vocês entenderem o que euquero dizer. No sistema feudal, as relações produtivas eram muitosingelas; era uma economia mais natural, mais de subsistência; o valorde uso predominava; não havia valor de troca expressivo; a moeda nãocorria muito; os feudos centralizavam o sistema econômico. Havia,portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício da força, porque apoliticidade também tem em seu centro a possibilidade do exercício daforça; isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A relação econômica era a produção feita pelos homens e a relação socialdestes homens para a produção. Mas a relação social se compunha, ao

mesmo tempo, de uma dimensão econômica, pela qual se exercia umpoder para transformar o mundo; e isto implica, evidentemente,utilizar a força produtiva, a mão-de-obra e os mecanismos que existempara fazê-lo, mas existia também uma atuação política, uma forçapolítica para esse exercício. Então, sabe-se que numa época escravista,como a época feudal, as relações entre os homens para produzir nãoeram as mesmas das épocas modernas, da época que chamamos

 burguesa ou capitalista, da época mercantil. É uma época diferente

porque o exercício da força sobre o trabalho é praticamente muitopresente. Portanto, o econômico e o político se viam de tal maneira

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misturados, de tal maneira acoplados, de tal maneira feridos em suaintegridade, que o agente econômico era o mesmo agente político. Osenhor feudal era ao mesmo tempo agente econômico, agente cultural eagente político: ele exercia a força, ele inclusive trazia a mão-de-obra à

força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro elementoque é a ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de exploraros homens nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensãoeconômica muito própria que traduz uma forma política específica daépoca medieval. Quando entretanto – e aqui vem a tese marxista – háuma evolução desse processo produtivo, vale dizer, a dimensãotecnológica, a condição material da produção, vale dizer, a tecnologia(isto também é uma visão tecnológica de certo modo, que foi muito

discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia avançapelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seutrabalho, da sua atuação direta com o mundo, buscando novas formasde cultivar o mundo, inventando várias coisas como o moinho de

 vento, a roda dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, éclaro que isto vai implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a se desenvolver, e há um conflitoentre o desenvolvimento produtivo (a produção) e os limites do sistema

feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor basicamente, e depois,na expansão, era muito complicado fazer com que a venda dessasmercadorias (elas passam a ser mercadorias) se estendesse para todoconjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondocertas situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aíexiste um conflito singular entre uma força produtiva típica singularfeudal e a força nascente, que seria exatamente essa dimensão calcadana perspectiva de uma nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se, portanto, um período de crise em que forma e matéria, forma econteúdo, entram em crise e aí vem uma nova fase: o homem começa aprecisar de uma nova forma de produção. Era preciso distribuir amercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, queganhem recursos para que possam consumir a mercadoria do mercado.Mas como seria possível fazer isso se as relações eram tipicamente ouservis ou escravistas? Impossível, porque não se podia distribuirrecursos; para isso, era preciso criar novas formas, como a forma damoeda (a monetarização da economia), o salário (o assalariato se inicia

neste processo). É evidente que neste momento tudo passa a ser

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diferente: o sistema econômico não mais é garantido em função deuma relação de imposição sobre o trabalho, mas era preciso fazer comque o trabalho passasse a ter agora uma outra dimensão, a dimensãode liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das

peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazercom que a força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, eportanto vendável. Então, é o momento em que aparece a venda naforça do trabalho, e esta venda forma o mercado, o mercado detrabalho, onde as mercadorias passam a circular, entre as quais, aprópria força do trabalho. É claro que, nesse caso, a relação entre ocapital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, comoacontecia no sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior,

mas havia uma imposição sobre o trabalho, pela força do senhor feudalou do escravizador. Agora não: ela se universaliza na sociedade de umaforma completamente diferente, é preciso que os homens estabeleçamrelações entre si de forma mercantil, de troca, e a troca pressupõe,

 basicamente, proprietários. Todos têm que ser proprietários: osproprietários do capital (do salário) e os proprietários correspondentes.Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do outro lado aforça de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário;

com esse salário formavam o mercado e com isso então expandia-se aprodução.

Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura docontrato, que se universaliza nesta época. Então, é somente com oaparecimento de uma nova forma de produção que se universaliza afigura do contrato juridicamente. A figura do contrato pressupõepessoas contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há que haver portanto, auniversalização das pessoas jurídicas. Há necessidade de que as

pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar coisas de quetenham posse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, aliberdade: como é possível contratar sem liberdade? O suposto é aliberdade; o suposto é a igualdade. Vocês vêem, portanto, que asfiguras jurídicas formuladas no direito civil especialmente (isso depoistranscende para o direito público) acabam resultando de um processode movimento das forças produtivas, da capacidade material doshomens, que determina formas diferentes. Não vejam, portanto, o

contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado nocosmos. Não: primeiro existem as relações de troca, depois elas vão

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para o código para ser reguladas de forma detalhada, singular, egarantidas.

 Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta

estrutura de pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõeuma dimensão muito singular, muito interessante, que deve ser objetode exploração. Não quer dizer que ela seja a única – cuidado com isso!Ela deve ser objeto da expansão metodológica porque ela nos dáalgumas bases interessantíssimas para explicar um pouco melhor ospróprios institutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um momentoestratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia nova,interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão

universal, mas pode nos dar um conhecimento um tanto quanto maisseguro, principalmente dos processos pelos quais os institutos chegama ser institutos jurídicos. É isto basicamente.

MEDIADOR  : Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.

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OLAVO DE C ARVALHO : Muito bem. Agradecendo muito a ThiagoMagalhães e a seus colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar,que o meu interlocutor é bem menos marxista do que me disseram, oque de certo modo facilita o trabalho, porque a análise do marxismo ésempre um problema quase impossível de resolver, pelamultilateralidade dos seus aspectos. Vocês vejam que o marxismo éuma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma

estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma crítica cultural, é uma organização política da militância:ele é tudo isso ao mesmo tempo. Ora, vocês não encontrarão em todo omundo, em toda a história humana, nenhum fenômeno parecido: nãoexiste nenhum outro fenômeno que abarque de maneira unificadatantos aspectos ao mesmo tempo. Isso quer dizer que o marxismo noscoloca desde logo o problema de que não sabemos a que gênero defenômenos ele pertence.

Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critérioaristotélico do gênero próximo e da diferença específica, nós já nos

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esborrachamos no primeiro degrau da escada por não haver um gêneropróximo. Isso significa que toda a tentativa de discussão do marxismoimita aquele célebre caso dos cegos com o elefante, em que um pega aperna e diz que o elefante é um poste, outro pega a tromba é diz que é

uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma folha de papel, e assimpor diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno econômico –o pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia, porquea crítica liberal da economia marxista é tão arrasadora que este é ocampo mais fácil para discussão –, quando pensam que estãoganhando a discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo,a da crítica moral do capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalhoque o liberal fez está perdido. Se nós atacamos o materialismo e o

anticristianismo do marxismo, também quando estamos quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete a teologia dalibertação, dizendo que é mais cristão do que nós. Então, realmenteestamos lidando com um ente proteiforme e indefinido. É evidente quea análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas que,sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão decríticas ao marxismo que se fizeram desde o século XIX até hoje, nãodigo que seja inútil, mas pega somente detalhes e partes às vezes

insignificantes do problema.

Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escalade abrangência e de abstração, e conseguirmos dizer, afinal decontas, o que é o marxismo. Então, abreviando quinze ou mais anos deestudo que me levam a esta conclusão, vamos começar por definir omarxismo pelo seu gênero próximo. Eu tenho a pretensão de terencontrado esse gênero próximo: o marxismo não é uma filosofiapolítica, não é uma economia, não é um partido político, não é

nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura , no sentidoantropológico do termo. Uma cultura significa um universo inteiro, umcomplexo inteiro de crenças, símbolos, discursos, reações humanas,sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas deação e, sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa.Para toda cultura existente, o desafio número um é a suaautopreservação. Isto quer dizer que o marxismo, ao longo de suahistória, desenvolveu uma infinidade de meios de autopreservação cujo

funcionamento, inclusive material, dificilmente é objeto de curiosidadedas pessoas. Não deixa de ser estranho que o marxismo, que professa

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tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela baseeconômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressãode que as idéias marxistas, exatamente como as idéias do antigoidealismo, se propagam no ar sem nenhuma ajuda humana e sem

nenhuma sustentação econômica.

Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu eraum jovem militante do Partido Comunista e, à medida que fuidescobrindo os dados a respeito, eu vi que o próprio marxismo era umfenômeno econômico dos mais interessantes. Quando digo que omarxismo é um fenômeno sui generis , que nunca houve um complexocultural assim tão vasto, há um outro ponto no qual o marxismo

também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a entidadechamada NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nomeinúmeras vezes –, este era um serviço de uma abrangência que aquinós dificilmente conseguimos imaginar. A KGB, já entre as décadas de50 e 60, tinha quinhentos mil funcionários, sem contar toda amilitância comunista espalhada pelo mundo (o que era um serviçoauxiliar também obrigatório), com o que se pode somar mais dez ou

 vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais vinte milhõesde auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos osserviços secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, osEstados Unidos não tiveram um serviço secreto para atuar no exteriorsenão durante a Segunda Guerra – os Estados Unidos desconheciamisso. Isto quer dizer que a ação da KGB na intelectualidade européiacomeça já na década de 20, havendo ali um festival de compra deconsciências como nunca houve na história humana. A respeito disso,recomendo um livro de Stephen Koch, Double lives(“Vidas Duplas”),que trata exatamente da apropriação da intelectualidade européia pela

KGB, através não só de mecanismos normais de persuasão masrealmente da compra de consciências, de chantagens etc. Isso já nadécada de 30. A respeito também deste período há um outro livro queeu lhes recomendo: chama-se Hollywood Party , de KennethBillingsley, sobre o Partido Comunista no cinema americano. Vocês jáouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se tornou famosa nomundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pelaCâmara dos Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas

nenhum artista de Hollywood jamais compareceu perante a comissãoMcCarthy e sim perante uma outra comissão totalmente diferente na

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Câmara dos Deputados): havia uma lista negra no cinema americanodesde quinze anos antes, que se compunha das pessoas que nãocolaboravam para o Partido. Tudo isso tem aparecido nos últimos anosdez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.

Eu digo isso para vocês terem uma idéia do sustentáculo econômico eorganizacional da difusão das idéias marxistas. Nenhuma outra nomundo jamais teve isto a seu serviço. Notem bem que a eficácia dessemecanismo ainda nos atinge no Brasil. Onde quer que haja cinco ouseis professores marxistas – não no sentido do prof. Alaor Caffé, peloamor de Deus, porque já vi que ele é um homem sensato –, mas nosentido de um militante efetivamente comprometido, há uma equipe

de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao quequer que não interesse ao Partido (qualquer que seja o nome dopartido, chame-se Partido Comunista, Worker's Party, como quiser).Eu vou lhes dar um exemplo de como se faz isso: este livro chama-se Dicionário Crítico do Pensamento da Direita . É uma obra feita por140 professores universitários brasileiros; portanto, é representativa deuma classe. Esses 140 professores trabalharam durante seis anos, com

 verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para nos dizer o queé o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do PartidoComunista, eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudartambém o pensamento de direita e tenho a pretensão de conhecê-lo.Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui:nem Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz. Em suma,todos os pensadores que fizeram a cabeça do movimento conservadornos Estados Unidos e na Inglaterra estão totalmente ausentes. O querepresenta o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels,Julius Streicher (este era um maluco pedófilo que nem o partido

nazista suportou: ele foi expulso do Partido Nazista por pedofilia econsta como pensador de direita!). Então, você compra uma obra

 baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali um bloqueio total do que quer que lhe possa dar uma idéia do adversárioque não combine com a idéia precisa que este grupo de militantes querimpor às pessoas. Esse procedimento não é exceção. Após a aberturados arquivos de Moscou, nós temos uma documentação enorme sobreo uso desses métodos no mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma

dificuldade para estudar o marxismo, porque entre seus mecanismosde defesa existe também o mecanismo de escamotear sua própria

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história e a história do adversário. Ressalto: nunca houve umaorganização de tamanho comparável, dedicada a fazer isso no sentidoextramarxista ou antimarxista. Todos os movimentos, atéanticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de

curta duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si. Para vocêsterem uma idéia, o sujeito pode ser anticomunista porque é judeuortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista: vocês não vãoquerer que o anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista sedêem as mãos. Por causa disto, nós dizemos que a versão marxista dascoisas se apresenta de maneira tão disseminada e tão impossível de selocalizar que todo o debate neste sentido falha logo de início.

Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que estáinfinitamente acima de minha capacidade, mas creio que um primeiropasso é fazer com que essa figura nebulosa e proteiforme do marxismoseja substituída por uma figura mais reconhecível. Daí a minhadefinição do marxismo como uma cultura. Sendo uma cultura, a suaprópria preservação tem prioridade absoluta e, em nome dessaprioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler aqui umtrechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem eleé), em que ele relata um debate que teve com Norberto Bobbio, arespeito da teoria jurídica do marxismo. Bobbio dizia que, no fim dascontas, o marxismo não tinha teoria jurídica alguma, e Negri dizia quetinha. Diz Antonio Negri:

“O problema foi que o objeto da discussão não era o mesmo, nem paraos dois participantes, nem para os espectadores, nem para ospartidários dos dois lados. Para Norberto Bobbio, uma teoria marxistado Estado só poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura

da obra do próprio Marx, e ele não tinha encontrado nada disso. Para oautor marxista radical (isto é, ele mesmo, Antonio Negri), no entanto,uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das instituições

 jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário –uma prática que tinha pouco a ver com filologia marxista, maspertencia antes à hermenêutica marxista da construção de um sujeitorevolucionário e à expressão do seu poder”.

O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que,embora não haja realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos

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de Marx – existem apenas observações mais ou menos esporádicas ededuções que os discípulos podem tirar delas –, existe uma críticamarxista que está de certo modo embutida na própria práticarevolucionária e na afirmação do seu poder. Ou seja, se queremos saber

qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx: é necessárioobservar a história do movimento comunista, ver como ele sedesenvolveu e ler a crítica jurídica que está embutida ali. Estácompreendido? Muito bem, só que em seguida ele diz: “ Se havia algo

em comum entre Bobbio e seu interlocutor era que ambos

consideravam o socialismo real (Sabem o que é socialismo real? É osocialismo cuja existência foi documentada na União Soviética, naChina, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um

desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. Aredução do marxismo à história do socialismo real não faz nenhum

sentido ”. Ora, mas o que é o socialismo real? Ele não foi precisamentea cristalização histórica do resultado da tal “prática da criação dosujeito revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria marxistado Estado não está nos escritos de Marx e também não está noresultado da prática revolucionária, onde diabos ela está? Resposta: elaestá na prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está

promovendo. É esta prática que é a legítima, as anteriores não. Isto éuma constante na história do movimento socialista.

Tão logo enunciados os princípios do marxismo no ManifestoComunista de 1848, a primeira coisa que os comunistas fizeram foicolocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo capítulo da históriado marxismo após a sua fundação, de modo que, aos revisionistas(Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marxestabelecia entre marxismo e violência era ilegítima. Não nos façamos

ilusões: Karl Marx sempre disse que a revolução somente se faria pormeio da violência, ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar omarxismo por meio da educação ou qualquer outro meio pacífico einclusive dizia, lamentando-se, que “para implantar o socialismo nomundo nós temos de destruir no caminho uns quantos povosinferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à violêncianão fazia parte da essência do marxismo, mas era uma espécie deexcrescência devida a alguma perturbação na cabeça do próprio Marx.

No terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin,acreditando-se que é absolutamente necessário fazer a revolução

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através do uso da violência; e, através do uso da violência, constitui-sea duras penas, com sacrifício de milhões de militantes, sobretudomilhões de inimigos e dissidentes, o Estado Soviético. Uma vez prontoisto, o que diz a geração seguinte? “Isto não é representativo, isto não é

o verdadeiro marxismo”.

Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal,quando aparecerá o verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já:nunca. Porque o verdadeiro marxismo não existe como nenhumaformulação explícita, que possa ser discutida racionalmente. Omarxismo só existe como uma cultura, na qual a formulação doutrinalé apenas um elemento provisório e tático, que pode ser trocado

quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somentemudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito emnome do marxismo já não seja marxismo – e apareça um novomarxismo que ele tem na cabeça –, mas consiga também fazer até omilagre oposto: ele consegue não apenas limpar a memória de seuspróprios crimes, mas consegue trazer para si os méritos do adversário.

 Vou lhes dar um exemplo de como se faz isso, exemplo que tirei dopróprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da criação do sujeitorevolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “ isso faz parte

da história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários

desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado,

desde o Levante de Paris de 1789 até a Queda do Muro de Berlim ”. A Queda do Muro de Berlim integra-se na sucessão das lutas para acriação do sujeito revolucionário e para a afirmação do seu poder. Sófalta então dizer que o único marxista autêntico daquela época eraRonald Reagan. O representante de qualquer religião, ideologia,partido político ou clube esportivo que se permita uma tamanha

elasticidade será evidentemente condenado como charlatão ouinternado como louco. Mas dentro do marxismo isto vale. Mais ainda,digo para vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidadeconsciente. Isto é possível dentro do marxismo porque ele não é umadoutrina, não é uma teoria que se tenha de defender mediante umadiscussão racional.

Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma

cultura, todos os meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade não devem entrar na linha de conta, porque

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 veracidade, ciência, cientificidade, moralidade e racionalidade sãoapenas expressões parciais da cultura, de maneira que fazer cobrançasà cultura em nome delas parece uma insuportável revolta das partescontra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a cultura

está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria.Sendo o marxismo uma cultura, todas as mentiras que ele venha adizer não podem ser impugnadas no campo doutrinal, evidentemente.Porque, ou nós as impugnaremos no campo moral e, a cultura estandoacima da moral, rejeitará nossa argumentação como irrelevante, ou nósargumentaremos em nome da ciência, da racionalidade etc., e a culturacomo um todo jamais poderá se colocar sob a fiscalização da moral edos bons costumes. É tão absurdo você discutir com um marxista sobre

a sua cultura quanto seria você chegar numa tribo de índios do AltoXingu e dizer a eles que algum de seus costumes é imoral. Ele nãoentenderá o que você diz, porque a moral para ele são exatamente oscostumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele possaapelar. Nós temos idéia de uma moral supracultural porque vivemosem enormes blocos civilizacionais multiculturais, recebemos o impactode muitas culturas e podemos compará-las entre si. Isto, por um lado,nos induz ao relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um

padrão de abstração e abrangência maiores, mais científicos.

Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, equalquer produto externo só será admitido lá dentro uma veztrabalhado e modificado no seu sentido, de modo que se torneinofensivo. Por exemplo, o pensamento conservador todo serásubstituído por pensadores de direita de baixíssimo nível – depreferência psicopatas nazistas que se denunciem a si mesmos naprimeira palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às

 vezes, procede-se de maneira menos grosseira, escolhendo certosadversários que até são de alto nível, mas trabalham dentro de umafaixa teórica tão limitada que fica fácil vencê-los saindo de seu quadrocategorial, puxando a discussão para um outro quadro. Por exemplo, afamosa discussão com Kelsen: Kelsen está apenas tentando definir oque é o Direito considerado em si mesmo. Se existe, dentro de umasociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religiãoetc.), nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste

cada um desses elementos? Se dissermos que cada um dos elementosnão é nada, que só existe a mistura, será então a mistura de vários

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nadas que miraculosamente dá em alguma coisa. Na época de Kelsen,houve vários esforços em várias ciências totalmente distintas paraconseguir definir seu campo de maneira, como eles diziam, “pura”.Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros, houve o esforço

de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguémentenderá uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentrodeste movimento. Como o universo categorial conceitual de Kelsen é

 bastante limitado (e eu, particularmente, também acho que Kelsen estáerrado ao definir o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil,numa discussão com ele, apelar para conceitos sociológicos e históricosque estão infinitamente fora do quadro de referência dele e fazer deconta que o derrubou, quando simplesmente não se entrou no assunto.

E assim se procede com praticamente todo mundo.

Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamentesobre o marxismo, muito menos sobre as teorias jurídicas domarxismo, que eu acredito piamente que não existem. Mas vamosexaminar muito rapidamente alguns conceitos marxistas.

Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de

 Hegel que a realidade social dos homens condiciona a sua consciência;

nas Teses sobre Feuerbach , ele vai um pouco mais além e diz“determina”. Isto quer dizer que você tem uma posição na sociedadeque é definida pelo seu papel no sistema de produção e você tem umconjunto de idéias que é determinado por esta posição. Quanto édeterminado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz é que, emúltima instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relaçãoentre posição social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, comodiz Marx, ou posição social é uma coisa e ideologia é outra

completamente diferente. Se houvesse uma conexão efetiva, então o burguês tem de pensar como burguês, o proletário como proletário,podendo haver, é claro, exceções. Mas qual seria a possibilidade de que

 justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não fosse umproletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E oquarto também não? E de que praticamente toda a liderança domovimento comunista, ao longo dos tempos e incluindo Antonio Negri,nunca fosse de proletários? Eles podem dizer que são burgueses

esclarecidos e que aderiram. Mas se você tem a liberdade de aderir,

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outros também têm. Portanto, a conexão entre a sua condição social e asua ideologia é de sua livre escolha, e a famosa conexão não existe.

Outro item (eu poderia dar uns cinqüenta, mas vou usar um que foi

lembrado aqui pelo prof. Alaor) é o de que cada etapa histórica émarcada por um sistema de propriedade, e que dentro deste sistemaexistem forças de produção que crescem até um certo ponto ederrubam este sistema de propriedade – o prof. Alaor deu comoexemplo o feudalismo. Então, o feudalismo tem lá um sistema depropriedade; quando a produção cresce, ela cria umaincompatibilidade e o feudalismo cai. Perguntem-me quando issoaconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu muito antes de que

houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e osmeios de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição realou monárquica. O feudalismo foi derrubado quando o rei, que eraum primus inter pares , decide derrubar os seus pares e tornar-seo primus“sem pares”. Para isso, no caso da França, constitui-se, pelaprimeira vez, uma imensa burocracia estatal, com a qual nem ossenhores feudais nem muito menos os burgueses puderam competir demaneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que naRevolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são oscapitalistas, não? Façam a lista dos líderes da Revolução Francesa e

 vejam quantos capitalistas havia ali. Resposta: um. Os outros eramtodos padres, aristocratas frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram

 burgueses ou capitalistas pessoalmente, eles podiam ter algum contatocom entidades de capitalistas que lhes diziam quais eram seusinteresses, interesses que queriam defendidos. Mas nunca houve estecontato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução Francesa era aideologia dos capitalistas ou da burguesia, curiosamente os burgueses

se esquivaram de defendê-la: ela foi defendida por pessoas que nãotiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum burguês

 vindo-lhes pedir que fizessem algo.

Isso é para lhes dar uma idéia de até que ponto a teoria marxista dahistória é pura mitologia e charlatanismo em cada um dos seus itens. Éclaro que, se em meia hora o prof. Alaor não pode expor a parte dele (aqual vocês já estão acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar

toda essa novidade. Dêem-me alguns anos e eu provo isto com todos osdetalhes.

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MEDIADOR  : Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaor Caffé Alves.

http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_3.htm  

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Bem, isso se trata de um debate, e se é um debatepressupõe um embate de algumas idéias que são postuladas.Obviamente eu não penso como o prof. Olavo no sentido tão global decultura marxista; não considero que isto exista no sentido que foicolocado. Há uma ideologia, obviamente, e toda ideologia pressupõesempre a restrição, em princípio, de seus membros ideologicamentepreparados e geralmente tenta excluir as outras ideologias, tantoquanto a ideologia neoliberal tenta excluir a ideologia marxista – éóbvio, é a mesma falta. O importante é estudar a ideologia. É claro que,como foi colocado aqui, a ideologia de Marx nunca foi assim colocada.Marx tem até um trabalho muito conhecido, A ideologia alemã , ondeele desenvolve três conceitos de ideologia; e além disso, depois, nocurso dos seus trabalhos, desenvolve outros conceitos. Aliás, aideologia é plurívoca, tem várias idéias, vários conceitos para definiçãoe caracterização das ideologias, mas não é tão singelo assim como se fez

parecer. Obviamente, foi colocada aqui uma série de questões relativasà história do socialismo real, mas nós aqui dissemos aos senhores queisso não significa que reflita de forma nenhuma as bases autênticas dopensamento marxista.

Muitos pensadores, inclusive da estirpe marxista, são de variadasconcepções, de variadas formas de ver o mundo. Não existe “um”marxismo mesmo. Existe o próprio Marx: quem quiser estudar, estude

Marx. Não se postula apenas inicialmente como uma cultura, porqueMarx iniciou seu trabalho cientificamente. Pode ter muita coisa errada,disso não há dúvida nenhuma. Mas que ele iniciou seu trabalho comuma análise científica da economia burguesa de sua época, ele fez isso.Ele não teve intenção de estabelecer uma sociedade socialista,comunista; ele nem tratou disso, na verdade. Ele sempre propugnavaalguns programas em bloco, propugnava uma sociedade mais justa.

 Aliás, é exatamente esse o problema: como dizer que o marxismo é um

conjunto de besteiras, de bobagens, se ele parte exatamente de uma

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realidade que até hoje é presente? Expliquem para mim aracionalidade de que o bolo social é um só e, no entanto, um grupopequeno de pessoas amealhe esse bolo, patrimonialize esse bolo,capitalize parte desse bolo, e uma grande quantidade de pessoas não

tem absolutamente nada, nem sequer o que comer. Eu já não estoupartindo da literatura, nem do pensamento, nem das coisas abstratas.Estou pensando na realidade atual: milhões de brasileiros não têm oque comer, não têm recurso, e eles participaram na elaboração do bolo.Ou não? Pensar que aqueles que têm um patrimônio imenso, recursosacumulados imensos. Esses recursos vêm de fora da sociedade? DeDeus? Deus seria malvado, não é? Ele dá recursos só para um grupo enão dá para os outros. Eles vêm da sociedade conjunta, de todos, e no

entanto temos uma diferença tão profunda que não há sequerneoliberalismo – que hoje é dominante – que resolva esta questão, enão vai resolver. Assim como se diz que o marxismo não vai resolver, oneoliberalismo também não vai.

OLAVO DE C ARVALHO : Tem toda razão.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Há anos estão aí, com mais amplitude, globalizados,e tudo o mais; e no entanto nós temos seis bilhões de seres humanos,

dos quais três bilhões estão numa situação de penúria ainda, secontarmos a África, a Ásia, [palavras inaudíveis]. A pergunta é aseguinte: onde está a razão de que um grupo social mantém umaestrutura, e que o Direito está aí presente, ele é um instrumento paraesse mesmo efeito? Não é que o Direito seja culpado, de formanenhuma. Os culpados são os homens, não o Direito. Ele não tempernas próprias. São os homens que fazem isso, somos nós. Como

 justificar as discrepâncias, as diferenças terríveis que existem nesse

país? Dizem que é a nona economia do mundo, mas é a 54 a emdistribuição de renda. [Palavras inaudíveis.]

Perguntou-se a respeito da Revolução Francesa, e se disse querealmente não havia nenhum capitalista na Revolução Francesa. E hojenós temos o sistema mais bem definido, mais bem claro, mais bemcaracterizado que é o sistema capitalista no Brasil e em outros países eeu pergunto: vocês encontram políticos burgueses? São os capitalistasque estão lá fazendo leis? São os capitalistas que estão organizando eque estão governando o país? Não é só no Brasil, não. E aí pensar: “Aí

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está o PT agora. O PT é comunista, é socialista.” Claro. Não estãoconseguindo fazer o que queriam fazer? Erguer até operário? Porque osistema é tão forte, a dimensão objetiva estrutural do sistema é tãoforte, que podem ter lá idéias comunistas e socialistas que não vão

conseguir nada. Porque a estrutura determina isso. A questão científicaestá em saber quais são os elos que vão nos explicar por que é que lá,no Congresso Nacional, não temos burgueses, mas as leis são

 burguesas: interessante essa mecânica. Eu gostaria que se utilizasseminstrumentos sociológicos, e a sociologia política inclusive, ou asociologia eleitoral para mostrar como é que se dá isso. Quantosoperários nós temos no Congresso? Nenhum, ou poucos, contam-secom as mãos. No meio rural? Pouquíssimos. E mesmo os restantes não

são burgueses capitalistas. Não são os pró-capitalistas. Eles nuncaquiseram… Aliás, o empenho deles não é participar no sentido doproscênio político. Já tem toda uma dimensão estruturadora dosistema que se chama “forma de produção ideológica”. É para issomesmo. Vamos criticar, por exemplo, as novelas, a mídia, os jornais, os

 jornalistas. [Palavras inaudíveis.] Criticar todos, porque todosparticipam desse processo de fazimento, realização e estruturação dasidéias dominantes. Idéias estas que definem exatamente essa profunda

injustiça que existe.

Então nós temos de nos revoltar contra isto. Sei lá que idéias vocês vãousar, se idéias marxistas, idéias neoliberais, idéias liberais, idéiassocial-democratas. Não importa. O fato importante, fundamental éeste, gente: nós temos de vencer as discrepâncias, as diferenças sociaisprofundas que existem nesse país. Isto é muito grave, sério. Poucoimporta, inclusive, o esquema de idéias que vamos utilizar. É naturalque diante de uma situação dessas, os homens tendem sempre a tentar

equacionar o problema mediante seus conceitos, mediante suacompreensão, como fazer isso tudo, como resolver essa questão dadistribuição da renda. Não é fácil. Dentro do regime de mercado, que étão defendido pelos neoliberais, nós não encontramos nenhumasolução. Até agora nunca houve isso. Pelo contrário, no sistema demercado temos uma diferença tão profunda entre os homens: entremuitos que não têm absolutamente nada, que não vão ter mais nada doque têm, isto é, nada, e aqueles que têm muito, que vão ter a chance de

ter, fora isso, mais e mais. É a lei da acumulação. Ela existe ou nãoexiste? É a lei do mercado: quem tem recursos, tem como produzir a

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liberdade, ou não tem? Quem tem recursos vai à Europa, vai à Ásia, vaiconhecer o fruto de culturas diferenciadas, vai expandir suapersonalidade, vai ter educação, vai ter a medicina, vai ter a saúde, vaiter a sua cultura acrescentada, porque tem recursos. E quem não tem?

E quantos não têm? Não têm nem recursos para ter saneamento básico, nem água destinada à sua higiene. Minha gente, isso é umarealidade, eu não estou falando aqui como se fosse uma construçãosilogística ou teórica. Isso é real, e o mercado está ali, defendido, pois éele exatamente por enquanto assim jogado às suas próprias forças,autonomicamente desta forma como ele é, que ele é sempre um indutorda miséria e das diferenças profundas sociais. Isso não é só o Brasil,não. É em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos. Lá até é um

pouco melhor em relação, porque o país é riquíssimo.

Falou-se da KGB. Falou-se da KGB. Claro, quem é que vai aceitar umacoisa como esta? A KGB. Quem é que vai aceitar um negócio desses?Ninguém vai aceitar. Ninguém, na boa consciência dos homens. Estácorreto o professor, o doutor Olavo. Mas é preciso também dizer oseguinte: hoje, os Estados Unidos põem 450 bilhões de dólaresanualmente no seu orçamento militar. Não estou falando em KGB, não.Não estou falando de espionagem. Estou dizendo de máquinasmortíferas: sabe aquelas que caem bombas, sabe aquelas que apertam

 botões e vai matando gente? 450 bilhões de dólares. Já imaginaram oque é 450 bilhões de dólares em um ano? 450 bilhões de dólares! Seisto fosse distribuído para toda a África em três tempos nós teríamos odesenvolvimento de toda a África. É claro que não vão fazer isso, poiseles vão cuidar eles próprios dos seus próprios problemas. Fazer issosignifica criar opressividade para eles. Imagine o que seria 450 bilhõesde dólares aqui no Brasil, de vez; basicamente o país inteiro há muito

está precisando. Isso em um ano! Mas eles jogam isso em um ano namáquina, na máquina de guerra! Então, isto está muito claro. Se nósestivéssemos importando recursos deste tipo, não há dúvida queteríamos chances enorme de ter um desenvolvimento enormeimediatamente. Eu diria que, em dez, quinze ou vinte anos, ou trintaanos no máximo, teríamos desenvolvido o globo inteiro; mas essedesenvolvimento não é comportado pelas relações produtivas dosistema capitalista. Este sistema, como vocês vão vendo, não só os 450

 bilhões, são bilhões e bilhões derramados não só no exército, mas naestrutura social americana, na NASA. A pergunta é a seguinte: vocês já

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 viram aquelas coisas maravilhosas que tem lá? Aquilo custa dinheiro,aquilo custa recursos. Vocês acham que aquilo tudo vem dos EstadosUnidos? Vem do povinho que vai lá, que trabalha e que portanto fazseus programas espaciais, o seu programa de atuação militar, a sua

dimensão de políticas sociais? Nada! É do mundo inteiro que elestiram!

 Alguém da platéia : A China também, né, professor?

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Mesma coisa. Que seja. A mesma coisa. Aí vocês vêem portanto o que eu quero dizer. Eu não estou falando do povo dosEstados Unidos singularmente; eu estou dizendo, gente, que o sistemanão funciona de outra forma. Vocês, jovens, estão vivendo na carnehoje o problema do desemprego. O desemprego não é uma questãosimplesmente conjuntural, é uma questão estrutural hoje. Não é noBrasil, é no mundo inteiro.

O fenômeno da globalização: esse desemprego é decorrente do quê? Daintrojeção de tecnologia e ciência no processo produtivo. É muitoóbvio. É muito fácil isso. É necessário. Mas na medida em que se vãointrojetando sistemas cada vez mais sofisticados de produção, vai se

expulsando cada vez mais mão-de-obra do processo produtivo. E não ésó expulsão no primeiro ou no segundo setor da economia, na indústriaou no setor rural; também no terciário: cada vez mais vocês têmdificuldades em ter engajamento. E o sistema não tem como fazer,porque ele está entrando em contradições profundas. Ele écontraditório na sua própria realidade estrutural, na sua dinâmica. Eleé contraditório mesmo. Ele não vai criando só mercado; ele produzcada vez mais e mais, com máquinas, com automatização, com

informática, com a robótica, com tudo. Mas os homens vão e seapresentam às fábricas. Mas como pagá-los, a esses homens, para queeles possam formar o mercado, a fim de consumir essas coisas todasproduzidas pelas máquinas sofisticadas? Como? A resposta é: não temcomo. E então não podemos avançar mais com a economia, nãopodemos avançar mais com a tecnologia, com a ciência. Nósprecisamos distribuir renda.

Isto decorre exatamente da perspectiva, da visão deformativa do que

nós chamamos de materialismo histórico: o desenvolvimento das

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forças produtivas está definindo uma nova relação entre os homens.Como sair dessa? É claro que pode levar dez dias, levar dez anos, oumesmo uma centena de anos; isso aí nunca se sabe, isso é um produtohistórico. Mas que as contradições internas o estão corroendo, estão.

Não porque os homens assim queiram; é porque a estrutura social eeconômica está definindo esta forma: as relações entre os homensmediante os processos produtivos e os instrumentos de produção.Talvez não comporte mais esse tipo de relação; uma outra relação ondehaja uma [palavra inaudível] cada vez maior, uma produtividade cada

 vez mais sofisticada, mas uma distribuição que ainda não se enfrentou.Não se distribui mais pelo salário, então vai se distribuir de que jeito?Como? Por quê? Conte para mim. Conte. De que jeito vai distribuir?

Isso é decorrente, inclusive, da econômica; não é teoria, nem teorético,de jeito nenhum. Com isto todos estão preocupados, inclusive osteóricos burgueses neoliberais; eles sabem disto, estão percebendo isso,certamente, claro.

 Ainda se fala no caso do Estado, como se só o Estado aparecesse; comose não houvesse nenhuma alteração do sistema feudal que passou parao sistema capitalista, burguês, sem uma modificação específica. OEstado, inclusive, foi tomado primeiramente pelos nobres que atuavamde forma absoluta, mas não se percebeu aqui que o Estado apareceu

 justamente neste momento como Estado absoluto. Por que é que oEstado apareceu? Apareceu justamente na continuidade do que euhavia dito antes, e é preciso analisar, é preciso trabalhar bem a análiseanaliticamente. O que eu disse? Eu disse que o processo dedesenvolvimento das forças produtivas determinou que os homensampliassem o mercado, portanto aparecem neste momento as forçasmercantis progressistas que avançaram. Não vão pensar que o

capitalismo apareceu como uma mazela. Foi muito bom, sem ocapitalismo teríamos avançado para fora do planeta; tivemos enormesprogressos; o individualismo se criou no sistema, quando nobre,adequado, compreendido e evidentemente praticado dentro dascondições éticas, tudo bem. Infelizmente o próprio sistema exacerbouesse processo pela busca do mundo, pela busca exacerbada daacumulação desenfreada. Porque o Estado não podia aparecer nestemomento para coibir o processo produtivo.

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 Vejam uma coisa importante, para que tenhamos uma idéia clara.Quando o trabalho não é mais posto forçadamente… Porque no sistemafeudal, o que aconteceu, isso precisa ser explicado concretamente: osistema feudal, o sistema de trabalho, da produção da vida material dos

homens era feito em função de uma imposição por parte de uma forçapolítica, que também era econômica. Como eu disse, os nobres eramdetentores não só do esquema econômico, eram patrimonialistas emfunção do sistema feudal, como também esses nobres eram os políticosdo sistema, ou seja, aqueles que podiam manipular a força para imporo trabalho ao produtor direto. Quando, então, há o desenvolvimentoprogressivo da economia, e era preciso fazer a distribuição de renda afim de criar mercado, em função do desenvolvimento das próprias

forças produtivas, era preciso tirar, extrair, afastar a questão política daquestão econômica. Não era possível manter o econômico e o políticoconjugados à força daquele que produzia, não só por razões deinteresse econômico, mas também por questões de ordem política,atuava para que o trabalho fosse força. Na hora em que o trabalhocomeça a ser assalariado (o que precisava sê-lo, para que o sistemafuncionasse), aí ninguém admite a liberdade e a igualdade necessárias,porque senão não há contrato. É por isso que neste período começa a

pensar-se ideologicamente no chamado contratualismo: ele se expandeentre os teóricos do contratualismo porque o contrato passa a ser umafigura, um instrumental fundamental para aproximar capital etrabalho. Não havia isso antes. Por isso é que é preciso estabelecer quetodos sejam sujeitos de direito, direitos e obrigações. O capitalista veme diz: “Você me traz sua força de trabalho e eu lhe pago o seu direito desalário.” O trabalhador diz: “Está certo. Eu entro com meu trabalho, eusou obrigado a empregar a força de trabalho, tenho obrigações, mas eutenho de receber o meu salário. Eu tenho o quê? É evidente. Direitos eobrigações.”. E isso se universaliza por toda a sociedade, justamentenos séculos XV, XVI e XVII. E nesse período, o que acontece com opolítico? Ele vai se destacando e se concentrando não mais nasociedade descentralizada, como havia antes; ele se concentra no poderabsoluto dos reis, e aí é que aparece o Estado pela primeira vez. UmEstado ainda não adequado à burguesia totalmente, mas como efeitode um processo que correspondia exatamente a esse movimento docapital. Era a necessidade de que o trabalho, o contratado, deveria ser

contratado e não forçado, conseqüentemente não podia haver a política

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no processo, mas a política deveria estar presente a todo instante emque o contrato fosse rompido. Aí era preciso evocar e convocar opolítico, ou seja, a força, para que o sistema continuasse a funcionar.Como isso é apenas formalizado em nível de mercado e não em nível da

produção, porque a produção ainda continuava a envolver umainequação profunda (porque é lá no processo produtivo que havia oprocesso expropriatório de acumulação), era preciso manter umaestrutura de força para qualquer tipo de emergência que houvesse;caso grande parte dessa população que tinha de entregar a sua parte detrabalho para acumular a outra parte, era preciso que houvesse aemergência possível de uma força, caso falhasse o esquema ideológico.O esquema ideológico começou a desenvolver-se amplamente para que

todos aceitassem a situação como natural. Mas a miséria, às vezes,alcança níveis tão altos que o sistema burguês hegemônico tem de termeios para poder resolver e neutralizar qualquer tipo de crise. E como

 vai fazer isso senão através do Estado, através da força centralizada doEstado que só aparece no sistema burguês. O Estado é um fenômenotipicamente moderno. Não havia Estado na época feudal; haviaorganização política, isso havia, mas não Estado. Não havia Estado naépoca clássica, não existe Estado romano. Tinha Império romano, com

uma dimensão descentralizada enorme, por causa dos senhores deescravos, que atuavam diretamente de suas fazendas; eram as famíliasque tinham atuação de poder político. Isso não acontece mais nosistema burguês, não acontece mais no sistema moderno, onde osistema então acrescenta o ponto de vista mercantil, e vai sedesenvolvendo até chegar à Revolução Industrial; e isto se concentraenormemente num processo imenso em que o Estado faz presente ogendarme, o Estado-polícia, para evitar qualquer tipo de proposta que

 viesse a conflitar com os interesses da política dominante, o queaconteceu mesmo já o século XIX.

O próprio Marx, que postulava idéias estranhas a esse sistema, foiperseguido, e teve de, inclusive, tomar posições complicadas nesseprocesso, e outros movimentos, é claro, movimentos operários nessaépoca do século XIX. Aí vocês vêem que não há nada de culturalidadeabstrata. É preciso agora (eu disse isso, é claro, de forma muitogenérica) mas eu preciso basear agora os erros concretos de cada coisa.

Eu explicaria para vocês o contrato, explicaria a hipoteca, explicaria oaluguel, explicaria tudo a partir dessas estruturas! Não posso fazê-lo

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porque tenho apenas meia hora. Portanto, não é uma questão abstrata,ampla, múltipla simplesmente, é uma questão que envolve métodosespeciais singulares.

Outra questão que se colocou a respeito de Kelsen, que se colocoumuito bem aqui, porque Kelsen – eu mesmo disse a vocês que ele eramuito inteligente –, ele era um leitor fruto das condições do chamadopositivismo, do primeiro quartel do século XX. Ele postulava a idéia deciência pura, a partir de uma idéia do positivismo como ciência doobjetivo. A ciência tem de ser objetiva, de tal maneira a dizer o que acoisa é, não o que ela deve ser. Ele dizia que se há ciência do direito,essa ciência deve dizer o que é o direito. O direito dele lá, como objeto,

é dever-ser , é norma, não há dúvida – pelo menos isso, pelo menosisso. Mas o direito como ciência tem que dizer o que ele é, e como é,significa dizer o que é o dever-ser, como é a norma . E ele, muito bemaparelhado com a perspectiva e a visão dos positivistas, não só dospositivistas jurídicos, mas dos positivistas filosóficos, os filósofospositivistas, que tentavam buscar a extração do sujeito em relação aoobjeto, evitar a mistura de sujeito e objeto, pelo contrário, neutralizar omais possível o sujeito para que o objeto se sobressaísse claramentecomo algo objetivo. Então, tem de se buscar o direito objetivo. Claroestá que esta dimensão foi fracassada, mas não por ele, Kelsen, não porele, mas pela crítica da própria sociedade.

Já mesmo nas épocas do começo do século XX, nós encontramos porexemplo um [?], um François [?], esses pensadores, esses sociólogos,que tentaram quebrar a condição formal de Kelsen. E Kelsen ainda dizassim: “Não, mas a questão sociológica não é uma questão jurídica nasua essência.” Nós sabemos muito bem disso. Muito bem! Essa história

é muito bem contada! Efetivamente, é claro que Kelsen queria só umapequena questão, que é a questão do que é, na sua essência, o jurídico.O problema é que ele não foi aceito, não por ele mesmo, mas por váriospensadores que chegaram à conclusão de que o Direito não pode serpuro quanto à sua tese, quanto à sua teoria. O Direito em si mesmo, oDireito como objeto, é claro que ele nunca foi puro, e o próprio Kelsensabia muito bem disso. O Direito é impuro por natureza; pura é a teoriasobre ele, isto é que é puro. Mas é válida do ponto de vista – agora veja

o que eu digo – epistemológico. Como uma crítica epistemológica, é válido consignar essa forma de compreender o mundo? Talvez fosse

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 válida naquele momento. Compreensível! Mas depois da SegundaGuerra Mundial, com a conturbação imensa do humano, do homem, jánão se pensava mais em buscar ciências puras, isoladas, solitárias, cadauma de per si . Percebeu-se que os homens tiveram mazelas profundas

exatamente por não se comunicarem não só eles, como com as própriasciências. Daí vem toda a questão da interdisciplinaridade que vocêsconhecem hoje, que é um problema muito complexo, muito difícil, quenão se soluciona facilmente. Buscar o Direito na sua expressão a partirda forma interdisciplinar, em que envolvemos não só a juridicidadecomo norma, mas também o que é a dimensão social, econômica, eassim por diante. Como compreender uma realidade plenamente senãodescendo às suas próprias raízes? Isso é como imaginar que somente o

estudo do caule lhe dê a realidade da planta. Não é isso. E o caulesozinho existe? Não. Ele só existe em ligação com a planta, e este sóexiste em ligação com as suas raízes. Vejam, então, os senhores que,efetivamente, é claro que há muitas outras questões a serem colocadas,como afinal eu queria colocar que é a da violência, da revolução. Marxnunca pensou só na revolução no sentido da violência. Pelo amor deDeus! Foi colocada aqui a questão das teses sobre Feuerbach.Nas Teses sobre Feuerbach, Marx coloca muito claramente o que ele

entende por revolução. Ele não fala especificamente de revolução: elefala em transformação pelas raízes. A revolução não tem de sernecessariamente violenta, de jeito nenhum. Pode ser outra. Porexemplo, essa questão que eu coloquei agora há pouco, que é a dalimitação do próprio sistema econômico capitalista que não podesuperar-se a si próprio, vai implicar uma revolução, umatransformação profunda. Isso não precisa ser pelo caminho das armas.É até bom evitar isso, evitar a morte das pessoas. Quanto mais aspessoas forem conscientes, mais educadas, mais claras em ver omundo, tanto mais facilmente poderemos fazer a transmutação. Porisso é que nós preferimos então a democracia, não uma democraciasimplesmente representativa, mas uma democracia participativa quepermite a todos nós trabalharmos o mercado. Nós vamos contrapor ademocracia participativa não à ditadura, não aos meios autocráticosapenas, mas também, gente, opô-la ao mercado, esse mercado terrívelque não tem força nenhuma que o coíba. É preciso coibi-lo através doquê? Da conjunção, do consenso da comunidade, para buscar melhor a

expressão do valor do uso social! Evitar que esse valor de troca toque

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todo mundo. [Palavras inaudíveis.] Esse mercado tem de sofrerimpactos restritivos em prol da comunidade, em prol da dignidadehumana, em prol da distribuição para os homens, em prol da paz entreos homens. Isto é fundamental. É disso que se trata.

MEDIADOR  : Passo a palavra para Olavo de Carvalho.

OLAVO DE C ARVALHO : Então está muito bom. Já que passamos adiscussão para o terreno dos fatos, e partimos de uma situação queMarx teria encontrado e que ainda se encontra mais ou menos igual nomundo, então vamos ver um pouco a relação entre os fatoresconsiderados: mercado e miséria. Segundo o prof. Alaor, o grandeculpado da miséria e da desigualdade é o mercado descontrolado. Eleusou a palavra “controlar” e a palavra “coibir”. Portanto, é necessáriocontrolar e coibir o mercado.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Não foi isso.

OLAVO DE C ARVALHO : Aí eu não sei…

 A LAOR C AFFÉ A LVES : [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE C ARVALHO : Quando chegar a sua vez o senhor fala. Eu não lhedei aparte. O senhor usou as expressões “controlar” e “coibir”.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : [Interrupção inaudível.]

OLAVO DE C ARVALHO : Eu não lhe dei aparte! O senhor espere. Eu espereiaqui. Muito bem. “Controlar” e “coibir”. Quanto eu não sei. A coibiçãototal seria a estatização total dos meios de produção. Não me parece

que o prof. Alaor seja um defensor disto, e não creio que exista mais,nem mesmo entre os teóricos marxistas, alguém que defendaexatamente isto. Mas, se o grande culpado da miséria e dadesigualdade é o mercado descontrolado, então para melhorar acondição dos pobres temos de controlá-lo. O controle se faz

 basicamente de duas maneiras: a mais direta, que é a participação doEstado na economia como proprietário e investidor, e a segundaatravés de legislações controladoras e restritivas, seja sob o aspectofiscal seja sob outros aspectos.

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Muito bem. Nós temos aqui um índice de liberdade econômica.Liberdade econômica seria a ausência de controle. Ausência total nãoexiste, assim como controle total não existe. Mas dentro dessa escalaque vai de 1 a mais ou menos 150, nós temos entre os países de

economia mais livre do mundo Hong Kong, Nova Zelândia, Irlanda,Luxemburgo, Holanda, Estados Unidos, Austrália, Chile, Reino Unidoetc. E assim, à medida que aumenta o número de controles,supostamente para proteger os pobres, nós vamos descendo na escalade liberdade econômica. Passou a primeira página, passou a segunda,aí mais ou menos no meio da terceira, encontramos o Brasil em 79 olugar. Quem tem mais controle do que o Brasil e, portanto, está abaixonesta lista? Eu vou dar alguns: Paraguai, Nicarágua, Quênia, Zâmbia,

Guiné, Ruanda, Tanzânia, e assim por diante. Se vocês pegarem estemesmo quadro transformado para uma projeção visual, nós temos aquiem verde e azul as regiões de mais liberdade econômica e, portanto, demenos controle, e em amarelo e vermelho aquelas que têm maiscontrole. É só você olhar estes dados, que são coletados anualmentecom muito critério por um grupo de economistas, e você verá que aidéia mesma de melhorar a condição dos pobres através de controle éum absurdo sem mais tamanho. Se disserem que o neoliberalismo não

 vai resolver, é claro que não. Em primeiro lugar, porque neoliberalismonão é liberalismo. Neoliberalismo é um liberalismo meia-bomba quetambém se mistura com um socialismo meia-bomba, e oneoliberalismo é simplesmente um pretexto para fazer o que o nossogoverno tem feito, que é controlar mais e mais e mais. Hoje em dia, sóde dispositivos que regulam o orçamento federal, vocês sabem quantoshá? Cinco mil e quinhentos. Isto quer dizer que para um sujeito votar oorçamento com consciência de causa, ele precisa conhecer cinco mil equinhentas leis. Isto é humanamente impossível. Isto é o controleestatal.

Ora, o prof. Alaor reconhece que aqueles que estão no Congresso e quefazem as leis não são capitalistas e, ao mesmo tempo, ele diz que eleslegislam em favor dos capitalistas. Aí eu me permito concluir que sefossem proletários não legislariam necessariamente em favor dosproletários. Porque acabamos de ver que a ideologia e os ideais doindivíduo não são de maneira alguma condicionados nem

determinados pela sua condição social. Porque se fosse esse o caso, eu,que sou filho de operário de indústria e neto de lavadeira, deveria ser o

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mais marxista de todos, ao passo que pessoas como o sr. EduardoSuplicy e toda essa gente seriam pró-capitalistas. Mas, se oslegisladores, tanto no Brasil como em outros lugares, não são nemcapitalistas nem proletários, o que é que eles são?

Ora, eu estava lhes contando a história do fim do feudalismo. Desde oreinado de Luís XIV se começa a formar, para fins militares, umprincípio de organização burocrática estatal. Aos poucos essaorganização burocrática vai tirando da aristocracia feudal as funçõeslocais que elas exerciam (por exemplo, tribunais, juiz de paz, coleta deimpostos etc.) e passando para a burocracia. É evidente que osaristocratas perdiam a sua função sem perder a sua quota dos

impostos, criando então uma classe ociosa imensa, contra a qual se volta, com toda justiça, a Revolução Francesa dois séculos depois. Masao mesmo tempo que se forma a burocracia estatal, para preenchê-la énecessário ter funcionários preparados. Para ter funcionáriospreparados, é preciso haver uma expansão do ensino. Então cria-se,para uma multidão de pessoas de todas as origens sociais mais pobres,desde a pequena burguesia até os camponeses, uma promessa de subirna vida através do funcionalismo público. Este é um fenômeno inéditona História. E acontece que o funcionalismo público cresce, a

 burocracia cresce, e junto com ela cresce o ensino. Mas, naturalmente,o número de candidatos cresce formidavelmente mais. E com isso secria uma legião de pessoas que têm alguma instrução e que aspiram aocargo público e não o têm. É a esta classe que eu chamo a burocracia

virtual .

Se você estudar a história de todas as revoluções (Revolução Francesa,Revolução Russa, Revolução Chinesa etc.) não através de impressões

gerais e nomes de classes – gêneros universais como burguesia eproletariado – mas se você for vendo uma a uma a origem social doslíderes, era a esta classe que pertenciam. Esta é a classe revolucionária.Mais ainda: todas as revoluções que ela fez foram sempre em proveitopróprio. Quem sai ganhando com as revoluções não é o proletariado etambém não é a classe capitalista. É a burocracia virtual, que semprelegisla em causa própria, segundo a norma que foi assim enunciadapelo próprio Trotsky: “O encarregado da distribuição jamais se

esquecerá de distribuir a si próprio em primeiro lugar.” Isto é norma, eé por isso que esses países onde o Estado não deixa a economia à sua

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própria mercê, onde a economia é controlada, são os mais pobres e osque têm os mais altos índices de corrupção. Isto é necessariamenteassim, e não há solução enquanto o poder da burocracia, sobretudo da

 burocracia virtual, não for quebrado.

Mas é preciso muita cara-de-pau para lhes dizer isto justamente aqui.Porque esta escola existe para isto. Numa pesquisa feita entreuniversitários brasileiros dois anos atrás, verificou-se que menos de 2%deles queriam ser empresários depois de formar-se. Todos queriam umemprego. De cara eu fico espantado, porque eu sempre ouvi dizer que aUniversidade faz parte do aparelho ideológico da burguesia paraformar a classe dominante, e de repente nós descobrimos que todos

eles querem ser empregados. Que tipo de empregado? Não é necessáriodizer. Então, isto quer dizer que vocês são burocratas virtuais,esperando para transformar-se em burocratas reais. Portanto, são porexcelência a população da qual o movimento político revolucionáriocolhe os agentes de transformação social. Porque, evidentemente, nãohá lugar para os burocratas virtuais em nenhuma sociedade; só haverálugar quando eles estiverem no poder. Ora, tomam o poder acreditandoque vão pôr fim às injustiças. Uns acreditam, outros são mais cínicos esabem que não.

 Vamos fazer aqui uma comparação: aqui nós temos um sujeito maior emais poderoso que está oprimindo este aqui, que é menor e menospoderoso. Então eu entro e digo: vou parar com essa injustiça, eu vouintervir. Ora, para intervir numa briga entre o mais forte que oprime omenos forte, eu tenho de ser necessariamente mais forte que os dois.Isto quer dizer que qualquer intervenção política que vise a diminuir adesigualdade econômica tem de fazê-lo necessariamente aumentando a

desigualdade política, portanto concentrando o poder político. Isto éuma regra jamais desmentida em qualquer processo revolucionário

 violento ou pacífico do mundo. Então, eu vou ter de concentrar opoder; concentra o poder, concentra o quê? O controle.

Por outro lado, se eu concentro o poder político, do que é que vive opoder político? O poder político não custa dinheiro? O próprio prof.

 Alaor estava falando do orçamento militar americano. Isso quer dizerque se há uma concentração do poder político, há necessariamenteuma concentração ainda maior do poder econômico. E é isto que

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permitiu ao socialismo realizar um feito jamais igualado na históriahumana: matar de fome, em cinco anos, trinta milhões de pessoas, noGrande Salto para a Frente, que foi o quê? A centralização daagricultura chinesa. Isto é uma verdadeira maravilha! Ninguém

conseguiu isto. Ora, se vocês quiserem tentar novamente… Bom, agoraquerem. O MST, no fundo, quer isto: “Nós vamos fazer uma agriculturacentralizada, estatizada, diretamente sob controle do ministério”.

 Vocês sabem perfeitamente que o MST não produz nada e que vive decestas básicas. Saiu recentemente um livro de um jornalista chamandoNelson Barreto, que visitou mais de trinta acampamentos rurais edisse: “São favelas rurais”. É claro, não poderiam ser outra coisa. A socialização da agricultura sempre dá nisto. Se você pegar todos os

países africanos que estão numa condição de miséria atroz, todos elesforam vítimas de políticas estatistas, centralizadoras e socialistas. Hojeem dia, na Etiópia, por exemplo, se você toma uma cerveja, você paga82% de imposto; se você tem um firma que ganha mais quinhentosdólares por ano, você paga 52% de imposto, e para cada tostão queultrapassa os quinhentos, você paga mais trinta, e assim por diante.Saiu um livro recentemente descrevendo a economia da Etiópia – éuma maravilha, é o controle. Se o mercado é o monstro que está

deixando as pessoas miseráveis, lá eles não correm esse perigo, porqueo mercado está amarradinho. Ele está amarradinho na Etiópia, naZâmbia, no Gabão. Por que é que não imitamos esses lugares? Pareceque a presente geração está seriamente inclinada a fazer isso. Por que éque está inclinada? Porque o raciocínio que preside essa decisão, essaescolha, não é um raciocínio baseado na economia, na realidadeeconômica, na racionalidade econômica. É um raciocínio de ordemcultural.

Existe uma cultura marxista que está associada a símbolos de valorético, de bondade e de solidariedade intergrupal. Ora, você sedesvencilhar de uma ideologia ou de uma idéia é relativamente fácil,porque você simplesmente muda de idéia. Mas, como é que você fazpara se desgarrar do meio marxista, da atmosfera marxista? Primeiro,tem de abandonar seus amigos: eles não gostam mais de você. Isto,todos meus alunos depõem, nesse sentido, e eu recebo centenas decartas: “Eu sou discriminado porque não sou marxista…” São centenas,

e chegam todo mês. Não estou acusando os marxistas de serem maus,não é isso o que eu estou dizendo. Se eu fosse fazer um diagnóstico

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desse tipo, eu nem precisava vir aqui: eu estou tentando ser o maiscientífico que eu posso. Científico não quer dizer neutro, quer dizerapenas honesto.

Por exemplo, o professor se refere às novelas, ao poder ideológico queelas têm sobre o público. Vocês já ouviram falar de uma novelachamada Kubanacan ? Vocês sabem o que quer dizer “Kubanacan”?Sabem o que quer dizer essa palavra? É o nome da agência oficial deturismo de Cuba. Se você pegar todas as novelas da Globo, de vinteanos para cá, a seleção ideológica é estrita. No tempo do falecido DiasGomes havia uma central de seleção de novela. A novela passava portrês peneiras de seleção: primeiro, ideológica; segundo, artística;

terceiro, comercial. Qual era a primeira instância? Ideológica. Ou seja,se não atende ao requisito ideológico, nem passa à segunda instância.Nós estamos impregnados de cultura marxista 24 horas por dia; édifícil sair de dentro dela. Mesmo no tempo em que as coisas não eramassim, quem quer que participasse desse meio tinha certa dificuldadede sair. Vou lhes contar por que.

Quando eu comecei a trabalhar na imprensa, a primeira coisa que eufiz foi entrar no Partidão. O sujeito que me cooptou para o Partidão era

um jornalista pernambucano chamado Pedro. Eu vou lá, participo de várias reuniões da “base” (na época chamava-se base à unidademínima). A base era na Folha de São Paulo, que se chamava EmpresaFolha da Manhã na época. Passa um mês, chega um sujeito muitosinistro do Comitê Estadual e nos reúne na ausência do tal do Pedro,que era o chefe da base, e diz: “Companheiros, estamos com umproblema. Nós estamos desconfiados de que o companheiro Pedroarrumou uma amante, e temos razões para crer que ela é agente do

Dops. Não temos certeza, e por isto nós precisamos isolar essecamarada enquanto tiramos o assunto a limpo. Para isso precisamosque vocês arrumem um local para depositá-lo (um cárcere privado,evidentemente) enquanto averiguamos”. Delegou quatro voluntários,entre os quais este que vos fala, para fazer esta porcaria. Eu arrumeium barraco numa favela onde eu nunca mais conseguiria chegar – éimpossível, é depois de Deus-me-livre. E deixamos o camarada lá.Passou uma semana, duas, três, e nós íamos levar comida e cigarros

para o sujeito. Daí a equipe de apoio logístico foi trocada e eu passeimeses sem ouvir falar do camarada. Um dia eu escuto na redação a

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seguinte conversa (isto, uns nove ou dez meses depois): “Sabe quemestava aí na portaria? Aquele f.d.p. do Pedro. Nós não deixamos nementrar.” “Ótimo, estamos livres do problema.” Passam mais algunsmeses, eu estou no bar na frente da Folha tomando um cafezinho e

chega o tal do Pedro, magro, chupado, barbudo, verdadeiro mendigo. E veio falar comigo, e eu, como bom militante, virei-lhe as costas. Esteera um processo normal dentro do Partido: excluir as pessoas que lheeram desagradáveis. Isso não aconteceu com um, aconteceu comcentenas. Isso é muito comum, porque é considerado uma justamedida de segurança.

Por aí vocês vêem como é difícil sair desse meio. Eu levei vinte anos

para sair. Você tem de cortar os contatos um por um, você tem de fazernovas amizades, você tem de mudar de lugar, porque se você está ali você não vai agüentar a pressão. Isto não é a força de uma ideologia,uma ideologia não pode ser tão forte assim. Uma ideologia não penetraaté às mais íntimas reações emocionais da pessoa. Isto éuma cultura no sentido antropológico do termo, da qual evidentementefazem parte as formulações doutrinais do marxismo; mas nãoessenciais, tanto não são, que podem ser trocadas. Eu acabei de lhescitar o caso de que Marx acreditava que era imprescindível o uso da

 violência (e nisto ele é textual, não há menor possibilidade de dúvida),que a geração seguinte já acredita que se pode implantar o socialismopelo voto e que, em seguida, se volta à teoria da violência, e assim pordiante, numa sucessão absolutamente alucinante de transformações.Então, o marxismo hoje diz isso e amanhã pode dizer uma outra coisacompletamente diferente, sem perder o senso de unidade – isto é que émiraculoso. Há pessoas que dizem que o marxismo é uma religião; eudigo: de maneira alguma. Ele pode ser uma religião no sentido

primitivo, em que cultura, religião e sociedade formam um amálgamaindiscernível. Mas no sentido das religiões universais – Judaísmo,Cristianismo e Islam – elas têm de ter um dogma perfeitamenteidentificável, com o qual você possa discutir, e aceitar ou impugnar.Mas o marxismo não tem. O marxismo pode se livrar de qualquer dassuas doutrinas, se livrar de qualquer dos seus feitos, e absorver osfeitos do adversário. Eu já lhes provei como é assim.

Um exemplo característico é o das relações entre marxismo e fascismo.O fascismo existiu no mundo e chegou a ter força graças à União

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Soviética. Por quê? Stalin, analisando marxisticamente o fenômeno,acreditava que aquilo era uma rebelião meio anárquica de classe médiaque conseguiria destruir as instituições das velhas democraciascapitalistas, mas que não conseguiria manter-se no poder. Então, ele

dizia que os fascistas eram “o navio quebra-gelo da revolução”. Dito deoutro modo, eles ganham e nós levamos. Então, decidiu ajudá-los omais que pudesse, sobretudo do ponto de vista militar. Vou lhesmostrar aqui mais um livro: The Red Army and the Wehrmacht . É ahistória de como a União Soviética construiu militarmente a Alemanhanazista. Isto foi escondido durante muito tempo e apareceu agora coma abertura dos arquivos de Moscou. Muito bem. Acontece que estateoria que Stalin tinha a respeito do nazifascismo não era a que Hitler

tinha. Hitler tinha outra teoria. Em função disso, ele de repente dá paratrás e invade a União Soviética. Aquilo era tão absurdo do ponto de

 vista da interpretação marxista de Stalin que ele levou dois dias paraacreditar que aquilo estivesse acontecendo. Ele achou que era umaoperação de contra-informação feita pelos malignos ingleses. Bom,durante toda a década de 30 houve estreita colaboração com onazismo, antes da eleição de Hitler. Hoje todo o mundo sabe do pactoRibentropp-Molotov de 1939. O pacto foi apenas a exteriorização de

uma colaboração muito profunda que pelo menos desde 1933 construiuo poder militar da Alemanha. Ao mesmo tempo, como operaçãodiversionista, Stalin lançava em alguns países ocidentais,especialmente na França, uma imensa campanha de antifascismoliterário, na qual toda a intelectualidade francesa colaborou, sendomuitíssimo bem paga. Até hoje, a noção de fascismo que nós temos éesta. Em 1933 houve o famoso atentado ao Parlamento alemão; daílançaram a culpa num comunista e prenderam um agente doKomintern, George Dimitrov – vocês já devem ter ouvido falar disto.George Dimitrov chega ao tribunal e diz: “Eu estou aqui preso porcausa da tirania fascista dos capitalistas, a ditadura dos Krupp e dosThyssen.” Até hoje as pessoas acreditam que nazifascismo é isto. Nãosabem, por exemplo, que o velho Thyssen, quando veio o nazismo,fugiu para a França, de onde foi seqüestrado e obrigado a voltar paracolaborar com os seus inimigos. Mas como é que George Dimitrov foiparar na cadeia? É muito simples. Ele era a figura mais importante doKomintern, e estava ali na Alemanha; foi almoçar no restaurante que

era o ponto de encontro de toda a oficialidade nazista; vocês imaginem

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um militante clandestino fazer isso, almoçando com dois de seusassessores ao lado. Foi preso ali, evidentemente, sem nenhuma

 violência, foi levado até o tribunal, onde pôde fazer o seu show e emseguida foi inocentado e devolvido em paz à União Soviética. Seus dois

assessores que sabiam da história foram mortos. Isto quer dizer quetoda a nossa concepção corrente de fascismo é um mito publicitário,criado para encobrir a colaboração profunda da União Soviética com ofascismo.

Olhem, eu lhes asseguro com a experiência de quem estuda essenegócio há trinta anos: eu não sou um teórico neoliberal, não pertençoa movimento nenhum, tenho horror dessa direita brasileira, cuspo na

cara de todos eles, estou pouco me lixando para o que pensam, nãoestou falando em nome de ninguém, e não tenho nenhuma soluçãopara os problemas do mundo. Eu falo somente daquilo que eu estudei.Esse negócio de marxismo e de história do comunismo eu estudei. Eulhes garanto: eu nunca encontrei uma afirmação central, fosse dopróprio marxismo fosse da cultura comunista em geral que,examinada, não se mostrasse exatamente o contrário da verdade. Éuma por uma, a lista não acaba mais. Eu mesmo, chegou uma hora emque comecei a ficar alucinado: não é possível, tudo o que eles dizemque é invenção da tal da direita é verdade.

É experiência de vida que eu tenho para lhes dizer. Para mim foichocante, porque eu saí do Partido não por discordância ideológica; saísimplesmente porque fiquei moralmente confuso com episódios comoesse que eu lhes contei, e durante 25 anos não dei palpite em nenhumassunto político, fiquei quietinho no meu canto, estudando e tentandochegar a conclusões. O material que eu tenho sobre isso é imenso, e me

leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx era um vigarista. Porexemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria os ricos maisricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo queele tinha à mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boasestatísticas na época, e o melhor material eram os Blue Books,relatórios anuais do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios,descobriu que, ao contrário do que ele estava dizendo, a condição daclasse operária tinha melhorado. O que é que ele fez? Ele tinha todos os

relatórios e consultou um por um. Os registros estão na biblioteca doMuseu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros, mas como os

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registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar osregistros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o queseja. Mais ainda: na hora em que o sujeito editou o seu próprio sistemade “materialismo dialético”, vocês já pararam para pensar nessa

expressão? Uma dialética é um fluxo, um processo inteligível de idéias.Em que sentido isto pode acontecer na matéria? Engels diz que amatéria tinha estrutura dialética. Por exemplo, hoje nós diríamosassim: o elétron é a tese, o próton é a antítese e o átomo é a síntese.Não é preciso dizer que todas essas idéias foram absolutamentedesmoralizadas. Depois de desmoralizadas, apareceu esta versão que oprof. Alaor defende agora: “Não, Marx não quis dizer isto, mas usou omaterialismo apenas no sentido da convivência do homem com a

matéria, no sentido da ação histórica sobre a matéria.” Se omaterialismo de Marx diz respeito apenas à nossa ação sobre a matéria,então a matéria é o fator passivo e alheio ao materialismo dialético. Sóexiste materialismo dialético, portanto, na ação humana. Mas que raiode materialismo sem matéria é esse aí? Isto não é um materialismo. Oque é a matéria para Marx? Marx não diz absolutamente nada sobreisso, e ele acredita que o processo central é a “ação transformadora dohomem no cosmos”. Ora, quanto do cosmos o homem pode

transformar? Um pedacinho insignificante da crosta de um planetinha,e todo o restante do cosmos permanece perfeitamente indiferente a istoaí. Como é que este processo pode ser o centro da realidade material?Se você disser que espiritualmente ele é o centro, isto é possível, aí fazsentido; embora pequeno fisicamente, ele é significativo. Colocá-lomaterialmente no centro é nonsense e é de um primarismo filosóficodigno de analfabeto. Mas Marx não era um analfabeto, Marx erasimplesmente mentiroso. As provas disso são abundantes: a suafalsificação de fontes, as interpretações absolutamente forçadas. Porexemplo, quando ele diz que inverte Hegel e o põe de ponta-cabeça: elenão faz absolutamente nada disso. O que ele faz com a dialética nãotem nada a ver com Hegel, ele passa longe. E no entanto todo mundoacredita que é a estrutura da dialética de Hegel que está lá dentro, eassim por diante.

 A quantidade de charlatanismo é muito grande para eu poder lhesexpor em meia hora, ou até em um mês. Eu tenho dado aulas e mais

aulas sobre isto, e o negócio não acaba. Então, eu vou terminar estaexposição com um apelo. Não se sai de uma cultura mudando de idéia.

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 A cultura abarca a personalidade das pessoas. Para você abandonaressa cultura, você vai ter insegurança, problemas psicológicos edificuldades existenciais terríveis. Isto quer dizer que dentro daredoma dessa cultura não é a mente ou a opinião das pessoas que está

presa: é a alma e a existência delas. E se é para falar em liberdade,então, antes de querer a liberdade para os outros, experimente o que éa liberdade. Experimente examinar a cultura marxista não desdedentro, como ela sempre faz, mas experimente olhar de fora, e vocêsterão uma visão bem diferente da que talvez tenham. Muito obrigado.

MEDIADOR  : O prof. Olavo de Carvalho não concorda com passar dezminutos ao prof. Alaor Caffé Alves para tecer comentários.

OLAVO DE C ARVALHO : Só se eu também tiver dez minutos também. Ou éigual ou nada. Ou é tudo ou nada. Ou é honesto ou é sacanagem.

[Há uma discussão sobre a continuação do debate e fica decidido quecada um dos debatedores terá a palavra por dez minutos.]

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Bem, eu acho que as coisas estavam indo muito bem. Mas esta última, inclusive o aplauso que se deferiu para um tipo

de política que me é extremamente estranha e séria, mostrou inclusiveque não se sabe o que é o nazismo. Porque os outros, isso que vocêsconhecem, vocês sabem o que é… Porque existe uma outra idéia donazismo que talvez fosse aceitável, como o Olavo falou. Profundamentetriste isso. De qualquer forma, a questão de dizer que Marx é umcharlatão é muito complicado, é muito difícil formular dessa formaporque é atacar uma pessoa que não está presente, que não tem nem acondição de se defender. Mas isso é muito complicado porque não

existe só a literatura marxista, existem marxistas, os que sãosimpatizantes de Marx, os que aproveitam parte da concepçãomarxista, e que admitem perfeitamente a possibilidade de desenvolverteses interessantes e importantes, de cunho científico. Marx viveupraticamente a vida inteira naquela biblioteca de Londres dando toda asua vida para isso, e estudou profundamente a sociedade da sua época.Como eu disse, ele pode ter errado em muitas coisas. Até a gente aceitaisso, que Marx errou nisto ou naquilo. Mas atacar uma dimensãomoral, contra um intelectual que é um dos primeiros no mundo, é um

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dos maiores intelectuais, indiscutível isso… Alguém vai discutir umacoisa dessa?

OLAVO DE C ARVALHO : Eu vou discutir.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : É, sempre tem alguém. Eu acho tudo muito gratuitoisto, colocar essas questões que foram colocadas aqui, muito gratuito.Não, não é assim que vamos discutir. Eu, por exemplo, fiz toda umasérie de colocações singulares a respeito de como se estrutura osistema, pelo menos aí rapidamente, pelo menos no sentido de

 verticalização, mas eu fiz umas coisas concretas, de mencionarportanto discussões conceituais. Quando se penetrou no terrenoconceitual, se diz que Marx não sabe nem do quê está falando sobre amatéria, mas Marx nunca se preocupou especificamente com a matériano sentido físico. E quando ele [Marx] fala em matéria, a matériacorresponde a um esforço da transformação do homem como um fatoimportantíssimo, que não foi nem colocado aqui. E ele [Olavo] diz queestudou, temos que fazer uma análise disso. Que é “o” debate. Debateda forma pela qual os homens agem sobre o mundo, transformando omundo. Dizer que Marx queria transformar o universo não temsentido. Não é disso que ele estava falando. Ele nem pensava nisso…

OLAVO DE C ARVALHO : Nem eu disse isso.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : … ele nem disse isso. Nem foi dito isso, nunca. “A transformação do universo, do cosmos.” A transformação que o Marxpropunha era a transformação do homem, do homem na sua pequenaTerra mesmo, no seu planetinha, direitinho. Mas é o homem, ele estavaestudando o homem! Ele não estava estudando um marciano nem nada

disso. É o homem e, portanto, os homens, claro, têm uma dimensãoconcreta que é a ação humana, que ele imagina não poder explicar asquestões especulativamente. Era isto o que ele queria dizer só. Que aespeculação filosófica, puramente teórica, não é suficiente paracaracterizar o que o homem é. Marx postulava algo um pouco nacontraposição, na contramão dos racionalistas, especialmente umDescartes, que dizia que o homem é um ser pensante. A postulação dohomem, inclusive, como ser pensante, o distinguia dos outros animais,é assim que se pensava em forma clássica. E Marx não acreditou

simplesmente nessa posição, ele avançou. Ele não está excluindo a vida

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teórica, ele foi um teórico. Ele se trancou. Ele quis incluir a vidaemocional dele, a vida da praxis , da ação, da decisão, dos valores. Issoaí ele quis incluir. E é claro que o movimento da praxis envolveexatamente o movimento do homem como um todo, não apenas como

inteligência, como um ser especulativo, como lógica. Ele via o homemcomo um movimento do seu corpo, dos seus pés, das suas mãos. E umarelação social, nunca se viu o homem tornar-se solitário. Ele nãopensava na matéria no sentido, por exemplo, dos gregos, buscara arkhe , o fundamento de todas as coisas, como se fazia desde Tales deMileto, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, e esses pensadorestodos que passaram, os pré-socráticos. Na verdade, ele trabalhou muitocom esses filósofos interessantes, que aliás foram trabalhados também

por Engels, que é Parmênides e Heráclito, com as suas posições. Penaque não dá tempo de desenvolver toda a temática desses pensadoresmuito maravilhosos, que foram trazidos para nós, que foramrecuperados.

Quando Marx faz essa postura, de não ser um homem teórico, é porqueestá vivendo justamente num período que se chama “RevoluçãoIndustrial”. O homem pobre não pode ser simplesmente teórico, eletem que entrar em contato com o mundo, transformar o mundo, eletem de mudar a matéria-prima, ele tem de buscar matérias-primas, eletem de transformar o mundo com as suas mãos, com a sua indústria.Daí porque ele teve de começar a pensar especificamente, não de formapuramente teórica, ou de forma especulativa. Esta dialética é diferente.Quando ele busca a materialidade, não é essa materialidade portantoabstrata. É muito concreto, porque ela é calcada no trabalho humano.Para ele, o trabalho é fundamentalmente aquele núcleo que perpassa opróprio homem. O homem é produto do seu trabalho na história e

socialmente. Não há homem sem trabalho, sem ação com o mundo.Trabalho é a administração do homem sobre o mundo, transformandoesse mundo, porque nisso ele transforma-se a si mesmo. É isso que elequis dizer: matéria transformada permanentemente pela sua própriaação. Não é matéria bruta, como eu contava para ele [Olavo]. Ele nemtinha essa idéia da física nem da química. Não contava para Marx isso.O importante para ele era a dimensão fundamentalmente social, isso éque era importante para ele.

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Essa questão da burocracia, é claro, todo sistema social hoje, tem de teruma burocracia. Por isso mesmo que se propugna por uma dimensãooutra, que é aquela que o Olavo disse a respeito do poder maior do queaqueles poderes. Um poder que oprime o outro, que pressupõe o outro,

que é bem maior. Sabe qual é o poder maior? É a comunidade! É asociedade democraticamente organizada, articulada de foma tal que sepermita coibir (agora sim, a palavra mais correta) a ação sozinha esolitária do mercado. Não pensem os senhores que vamos aquiimaginar que o mercado que age diariamente, com bilhões e bilhões dedólares se movimentando pelo alto, pelo labor da globalização, nós

 vamos conseguir neutralizar isso. Simplesmente com o quê? Com a vontade singular de cada um? Ou com recursos que nós não temos? A 

única forma de coibir é exatamente através de uma democraciaparticipativa! Não é através da democracia representativa, que dequatro em quatro anos vocês vão correndinho num domingodeterminado de manhã cedo e depositam um voto ali, para eleger ospolíticos que, em última instância, vão ser cooptados pelo sistema. Nãoé isso. É a democracia participativa formada por divisão de comissões,de conselhos, de articulação de comunidades. Não é fácil de fazer isso!É lógico que é uma coisa difícil. É ela que vai, de certo modo, se opor às

dimensões do mercado, que está sob a decisão de quantos? Eupergunto aos senhores: quantos? Poucos! Os donos do mundo! Elesdecidem o que querem! Onde pôr o capital, investir, tirar, pôr… Elesfazem. Esses movimentos de capitais procuram as comunidades onde amão-de-obra é mais barata. Dizer… Essas postulações de que se oEstado interfere o sistema fica pior, ele está propugnandofundamentalmente que largue tudo ao mercado, que façam tudo deacordo com as forças do mercado, que tudo vai bem. Como, se cadapessoa tem o seu poder no mercado em função do quê? Em função dasua entrada, da sua renda. E quantos têm renda? Eu não estoucolocando a questão daqueles que não têm trabalho, porque esses nãotêm mesmo nada. São aqueles que ainda têm trabalho e que ganhammetade de um salário mínimo, milhões de pessoas aqui. Como é queessas pessoas vão definir situações, vão decidir sobre questões domercado? E essas pessoas vão fazer o quê? Vão ganhar mais? Então

 vocês estão percebendo que eu acho que essas questões de colocarMarx como espertalhão, como… não é bom. Não fica bem. Não fica

 bem. Vamos trabalhar mais com os outros filósofos, com outros

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pensadores que seguiram, inclusive que houve outras mudanças,outras formas inclusive de considerar Marx, a questão até dessa

 violência, nunca Marx falou de materialismo histórico, nunca! Meconta onde Marx diz materialismo histórico! O primeiro a aplicar isso

foi Paul Lafargue. Foi outra pessoa! Marx nunca falou em materialismohistórico.

OLAVO DE C ARVALHO : Falou em “materialismo dialético”.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : E mesmo sendo “dialético”, Marx nunca estabeleceuessas formas, esses jargões (que eu concordo, são jargões), que no fimacabam distorcendo até o pensamento, embora dê a entender Marx nosseus conceitos. Ler O Capital , ler… Tem várias obras delemaravilhosas e interessantes, já que ele [Olavo] está fazendo tantodenegrir, tanto. Eu diria para vocês que há obras notáveis. Obrasnotáveis que exprimem conceitos riquíssimos. Podem não ser todossuficientes para explicar tudo no mundo, é claro que não é isto. Masque nos ajuda a compreender o homem, como outros mais, não sóMarx. Pensem num Weber, por exemplo, um Durkheim. Tem deestudar esses pensadores para mostrar plenamente que tudo secompõe, esse sim, o espírito humano, mas como a base fundamental da

estrutura de ação humana constante e permanente, que é o trabalho,que nós devemos cultivar permanentemente. Estou contra essa idéia de“Marx charlatão”. Acho muito baixo para isso. E o prof. Olavo nãoprecisa se socorrer desse tipo de coisa. Não precisa. Ele ésuficientemente filósofo, eu sei, eu conheço o trabalho dele. Dá paradizer uma coisa mais profunda, mais tranqüila, mais científica. É isso.

http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_4.htm  

OLAVO DE C ARVALHO : Em primeiríssimo lugar, é preciso lembrar aossenhores que o conceito de fraude intelectual não é um insulto, é umconceito, inclusive jurídico, perfeitamente delimitado, e que eu tenhotodas as provas de que Marx se enquadra nisto, pela falsificação defontes, pela má interpretação proposital de autores que ele conheciaperfeitamente bem, e assim por diante. Em segundo lugar, eu não vejo

por que eu deveria me abster de usar a palavra correta para designar o

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procedimento dele, quando na verdade eu li Marx durante muitotempo e conheço bem o estilo de Marx. Marx se referia a pessoascontra as quais ele não tinha tantas acusações assim chamando-as decães sarnentos, vendedores de drogas, proxenetas, canalhas. Assim,

este é o estilo de Karl Marx. Eu não estou usando nada disso, eu estouusando um conceito perfeitamente delimitado de ordem jurídica,dizendo que isto é fraude intelectual. Outra coisa: eu não possoconfundir a tranqüilidade com a cientificidade. Estar nervoso ou estarcalmo não tem nada a ver com esta história. Não vamos confundircalma e tranqüilidade com honestidade. Só interessa uma coisa aqui:tem de ser honesto. Ou seja, não fingir que sabe o que não sabe nemque não sabe o que sabe: isto é a definição de honestidade intelectual.

Os indícios, as provas da fraude intelectual de Marx são vastíssimas, e éuma literatura enorme. Infelizmente essa literatura, no Brasil, édesconhecida, porque o ensino universitário aqui é nesta base: existe aredoma. Prova de que existe a redoma é que o prof. Alaor ficouescandalizado quando eu sugeri que havia um outro conceito denazismo que não fosse aquele expresso por Dimitrov, o que significaque ele não conhece, ele nem imagina que existe: ele também estádentro da redoma. As principais obras sobre o nazismo rebatem essaconcepção marxista no todo: as obras de Norman Cohn, Eric Voegelin,Leo Strauss, há uma bibliografia imensa sobre o nazismo. Se existeuma coisa que é bem conhecida hoje, é o nazismo. Sabemos que ele nãofoi de maneira alguma a ditadura do grande capital, sob aspectonenhum, e muito menos ainda foi um regime capitalista: foi um dosregimes mais socialistas e mais intervencionistas que houve na históriado mundo. E quando eles se chamaram de partido nacional-socialista,não foi à toa, não foi só para parecer. A semelhança estrutural entre

nazismo e comunismo permite dizer que, de fato, a única diferença éentre socialismo internacional e socialismo nacional. É somente isso, eé por isso mesmo que não pode haver uma “Internacional Nazista”,porque só quem se identifica com a cultura nacional é que podeparticipar daquela porcaria. Então, existe outro conceito sobre onazismo sim. Não é para ficar escandalizado, mas o próprio escândalodo prof. Alaor mostra como essas idéias e essas informações estãodistantes do meio universitário hoje. Porque o prof. Alaor não é um

homem inculto; ao contrário, é um homem bem informado. Só que é oseguinte: alimenta-se dessa cultura, e tudo o que recebe de fora já come

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no formato apropriado a esta cultura. Pode-se passar uma vida assim, eeu digo: eu levei vinte anos para sair disto.

Uma outra coisa que foi dita na outra intervenção é a respeito dos 400

 bilhões de dólares do orçamento militar americano: “Se dessem 400 bilhões de dólares para o Brasil ou para a África, nós sairíamos do buraco.” Eu lembraria a vocês um outro dado: só no ano de 2000 (é ainformação mais recente que eu tenho, não tenho outra maisatualizada), os cidadãos americanos – cidadãos e empresas, sem contaro governo – fizeram um total de 200 bilhões de dólares decontribuições para entidades de caridade, principalmente do TerceiroMundo. Some com o governo, e veja quanto saiu. Ora, o que acontece

com esse dinheiro? É dado diretamente aos necessitados? Não, é dadoa uma estrutura burocrática da democracia participativa: é a comissão,é o conselho, é não-sei-o-quê etc. E tudo isso tem despesa: tem depagar telefone, tem de pagar aluguel, tem de pagar empregados etc.

 Vocês sabem como os americanos definem FMI? FMI é uma entidadeque se dedica a tirar dinheiro das pessoas pobres nos países ricos paradar às pessoas ricas nos países pobres. Essa definição é muito precisa.De vez em quando nós vemos a nossa esquerda irritada com o FMI(“Ah, porque o FMI…” etc.) como se o FMI fosse um propugnador daeconomia liberal e não um dos maiores controladores da economia queexiste no mundo: é o órgão controlador por excelência fundado porLord Keynes, que além de ser um estatista feroz era um colaborador daespionagem soviética. Ora, isto quer dizer que ficam brabos de vez emquando com o FMI, usando-o como símbolo do capitalismo. Mas,quando o FMI estrangulou economicamente o governo Somoza paradar o poder aos sandinistas, ninguém ficou brabo. Ou seja, o FMI nãotem essa identidade ideológica que lhe estão dando, ele tem uma outra.

Quer saber qual é a outra? Eu lhe digo: se o senhor fala das grandesfortunas, veja as duas grandes fortunas, Rockefeller e Ford.

 Vocês sabem que se não fossem Rockefeller e Ford não existiria aesquerda nacional. Elas subsidiam partidos, ONGs, o Fórum SocialMundial etc, e ninguém pára para pensar que talvez a equaçãosocioeconômica do mundo seja um pouco mais complicada, um poucomais sutil do que o esqueminha marxista admite que você veja. Na

 verdade, se você pensar: mas por que é que esses grandes capitalistascontribuem para o movimento revolucionário? É por um motivo muito

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simples. O sujeito enriquece dentro da economia liberal e acumulatanto dinheiro, mas tanto dinheiro, que dali a pouco ele entra naseguinte consideração: “Não podemos permitir que essa fortuna, quecustou tanto esforço, esteja à mercê das forças irracionais do mercado.

É preciso preservá-la.” Então, ele deixa de raciocinar capitalisticamentee passa a entrar em considerações dinásticas. Ele tem de assegurar acontinuidade daquela fortuna: o mercado não pode fazer isso, somenteo Estado pode. Por isso é que se você pegar as duzentas maioresfortunas de Wall Street, elas jamais apoiaram uma política liberal.Entre dois candidatos nos EUA, eles apóiam sempre o maisintervencionista e estatista. Isto é regular. Por que é que eles podemfazer isso? Porque eles sabem, pelo menos desde a década de 20, que o

estatismo total jamais acontecerá. Então, eles estão seguros: por maisestatismo que venha, haverá uma margem de liberdade econômicapara quem tenha o poder de assegurá-la. Eles sabem que o estatismototal não funciona, porque isto lhes foi demonstrado. Eles aprenderam– e nós, parece que até hoje não – com o economista Ludwig von Misesna década de 20. Ludwig von Mises disse o seguinte: se você implanta osocialismo, você elimina o mercado; se elimina o mercado, as coisasnão têm preço; se não têm preço, não dá para fazer cálculo de preço; se

não dá para fazer cálculo de preço, não dá para fazer economiaplanejada; portanto, não existe socialismo. Por isto mesmo, tanto osmetacapitalistas quanto os dirigentes socialistas se prepararam paraisto. Na União Soviética, por exemplo, sempre se reservou uma quotade 30 a 40% para a economia capitalista clandestina. E é por isso quese explica o surgimento dos grandes milionários russos. Que, se eratudo do Estado, de onde apareceu tanto milionário do dia para a noite?Já eram milionários. Sempre existiu capitalismo na Rússia, comosempre existiu na China. Ou seja, a estatização total nunca acontecerá.Os líderes comunistas sabem disso, e os grandes banqueiros sabemdisso. Por isto, os grandes banqueiros, as grandes fortunas, só têm uminimigo: chama-se economia liberal. Porque ela dissolve as grandesfortunas na concorrência do mercado e eles precisam do Estado paragarantir o seu poder monopolístico; por isto fomentam movimentossocialistas e estatistas em todo o Terceiro Mundo. E nós, idiotas,caímos nessa acreditando que estamos lutando contra o poder docapitalismo quando o estamos servindo. Muito obrigado.

Mediador : Passamos agora às perguntas.

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P: Eu vou fazer duas perguntas ao prof. Olavo. A primeira, talvez eutenha compreendido mal – na verdade são três perguntas –, o senhorchegou a dizer que os censores das novelas da Globo tinham umaideologia marxista…

OLAVO DE C ARVALHO : Certamente.

P: Eu só queria confirmar isso. Isso não me parece evidente, então eugostaria de um pouco mais de explicação. Com relação à sua concepçãodo marxismo como cultura, no sentido antropológico de termo, eutambém não consigo enxergar claramente todas as dimensões disso,porque a cultura no sentido antropológico implica instituições, e aí eugostaria de enxergar mais claramente quais são as instituiçõesmarxistas que nós temos no Brasil, no Paraguai, em qualquer outrodesses países. E a última pergunta é que o senhor faz umaaproximação, inclusive mostrando gráficos, entre o Estadointervencionista e centralizado e o marxismo… [troca de fita]

OLAVO DE C ARVALHO : Bom, são três perguntas. Em primeiro lugar, estudesimplesmente as biografias de Dias Gomes e de Janete Clair, quesempre foram militantes do Partido Comunista; em seguida, você vai

precisar de informações de um pouco mais de dentro e conheceros scripts de novela que são propostos, que você vai averiguargradativamente a introdução de elementos de propaganda claramenteesquerdista, se bem que light , evidentemente. Porque você vai usar omeio de propaganda conforme a natureza e o público que você vaiatingir. Em segundo lugar, quanto à questão da cultura marxista, aresposta é simples: leia Gramsci. E não é verdade que cultura impliqueinstituições. Cultura, no sentido antropológico, é um termo que

abrange desde culturas indígenas primitivas até às [culturas]modernas. Eu usei “cultura” e não “sociedade” exatamente por estemotivo. As instituições dos países socialistas se incluem nisto; fora dospaíses socialistas você pode ter um domínio sobre uma parte dasinstituições, mas isto não é absolutamente essencial para o processoque eu estou descrevendo. E, quanto à terceira pergunta, é verdade quenaquele momento Marx advogava o livre câmbio porque as políticasprotecionistas eram políticas herdadas de um concepção mercantilistaantiga, e naquele momento Marx achava que era mais importanteliberar a força do capital, para que crescesse e para que, no entender

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dele, chegasse a criar a contradição que resultaria no socialismo.Porém, a verdade é que, no século XX, sempre os partidos comunistase de esquerda favoreceram as políticas protecionistas, como no Brasil.

 Aliás, uma das vantagens da esquerda é ser internacional. Por quê?

Porque ela explora as contradições entre países. Então, por exemplo,nos EUA, a esquerda sempre apóia políticas protecionistas; e noTerceiro Mundo reclama contra as políticas protecionistas americanasque ela mesma criou.

P: É o seguinte: eu estava ouvindo aí esses temas – a revolução, ospolíticos, o jurídico, qualidade de vida dos brasileiros, milhões demiseráveis, como resolver isso, distribuir renda – e isso me fez lembrar

que três anos atrás aproximadamente eu lia o Joelmir Beting, queescreveu um artigo em que ele defendia, em vez da apropriação dosmeios de produção, a tributação da produção e da renda. Deu comoexemplo países como Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia. Talvezeu não esteja sendo preciso por uma questão de memória fraca, maseram basicamente esses países da Escandinávia. Eu pesquisei edescobri que exatamente esses países citados pelo Joelmir Beting sãopaíses com cargas tributárias extremamente elevadas (30%, 40%, 45%,50% e mais). E, por coincidência, esses países também são os paísescom melhor índice de desenvolvimento humano, ou seja, melhorqualidade de vida. Então, será que nos regimes capitalistas vigoraria oque Joelmir Beting chamou de “socialismo fiscal”?

OLAVO DE C ARVALHO : De maneira alguma. Na escala de liberdadeeconômica a Dinamarca está em 12 o lugar. Imposto elevado não bastapara caracterizar um controle estatista. É necessário haver legislaçõesrestritivas etc. No conjunto, a economia dinamarquesa é extremamente

livre, está bem mais próxima do liberalismo do que qualquer outracoisa, e assim também os outros países. Se me escreverem para o meue-mail, eu passo essa escala para quem quiser.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Bem, a tributação vem do corte financeiro em cimada sociedade civil. A sociedade civil tem a produção. O Estado precisa

 viver de um recurso, quer dizer, o recurso é extraído da produção. Econseqüentemente a produção, como não é neutra, ela envolve capital,o capital muitas vezes resiste à tributação. Vocês vêem que ele resiste àtributação tendo em vista o fato de que isso atrapalha a acumulação

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dele. Então, ele não quer evitar, ele não quer ter limitações de suaacumulação. A tendência, portanto, é haver uma crise interna, peloprocesso capitalista, quando há essa quantidade muito grande, muitoacentuada dos tributos. Portanto, mais uma vez existe o problema dos

conflitos e das contradições internas da sociedade em torno disso.Quando não acontece isso, o sistema cria o “caixa 2”. Vocês já ouviramfalar no “caixa 2”: não paga exatamente para ficar com uma parte econseguir fazer, com isto, a acumulação. Há portanto uma dinâmicaeconômica no processo, muito importante: não é simplesmente tirar dasociedade.

P: Eu gostaria de saber dos dois professores como é que eles definem o

atual momento político e ideológico do país, e se os dois têm esperançano Brasil, e no quê eles teriam esperança?

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Bem, o atual sistema, o atual momento político é ummomento à esquerda. Sabemos que é isso. Pelo menos como ideário, osistema que prevalece hoje é o Partido, é o PT. Só que é evidente que oPT não pode tomar posições senão pragmáticas, em função da situação.Porque aquilo até que se esperava – que o PT tomasse uma posiçãomais radical em termos econômicos –, não o fez, aceitando de certo

modo as diretrizes de definição econômica e social, tendo em vista osproblemas que eles estão enfrentando. Vocês vêem até que eles estãoconservadores no processo, inclusive de abertura econômica. Issosignifica, é claro, que não é a perda do ideal mais socializante, ou entãomais equalizador, do sistema social. Isso é importante. Não é estaperda. São as impossibilidades que o próprio sistema impõe. E essaimpossibilidade não é fácil. Por ter uma atuação pragmática que tem defazer, porque tem de governar o país, e não perdê-lo mas governá-lo,

então ele tem de tomar certas posições pragmáticas nesse sentido. Éclaro que isso implica uma série de questões e problemas que nóstemos de enfrentar como um todo, o país como um todo. E o própriogoverno neste caso tem problemas muito graves e gargalos seríssimos.Não porque ele não tenha essa dimensão social, mas porque eleenfrenta dificuldades e medidas que eles não têm suficiente controle econdições de fazer.

OLAVO DE C ARVALHO : Muito bem. O presente governo tem duasprioridades e nenhuma delas tem nada a ver com o chamado “social”. A 

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primeira é manter o equilíbrio orçamentário, controlar a inflação e, emsuma, atender às exigências do FMI de, como eles chamam, sanidadefinanceira. Notem bem que essas exigências não têm o teor ideológicoque as pessoas lhes atribuem. Esse mesmo conjunto de exigências pode

ser usado para esmagar governos de direita ou de esquerda – acabei delhes dar o exemplo de Somoza. Então, dependendo de quem controla oinstrumento, ele aperta aqui ou aperta acolá. Esta é a primeiraprioridade. Para quê? Para o governo ter tempo de desenvolver asegunda parte, que é a integração dos movimentos políticos latino-americanos – movimentos revolucionários – e a identificação dePartido com o Estado. São essas duas coisas. Essas duas coisas dão umtrabalho miserável.

Eu acho que o governo está fazendo isso da melhor maneira possível.Eu acho tudo isso de uma extrema habilidade. Mais ainda: esta é apolítica que Lenin seguiria. Três meses antes de o Lula ser eleito, euescrevi um artigo chamado “O que Lenin faria”, se ele tivesse o poderna mão. Faria exatamente isto: acalmar o investidor estrangeiro(através do equilíbrio fiscal etc.) e montar um sistema de controlepolítico (através da expansão indefinida do Partido, da identificaçãoentre Partido e Estado etc.).

Ter esperança ou não ter esperança é uma coisa que, com relação àpolítica, eu sou incapaz de ter. Eu nunca coloquei nenhuma esperançaem política alguma; nem chego a entender o que as pessoas queremdizer com isso. Eu estou me limitando a estudar a situação e tentarentendê-la da melhor maneira que eu possa. Não tenho nenhumafórmula para salvar o Brasil, mas se fosse para fazer uma coisa boa, eufaria algo que o governo Lula anunciou no começo que ia fazer. O

governo viu que o grande número de propriedades imobiliáriasirregulares no país (quase 80%) impede a formação de capital para ospobres. Ou seja, os pobres têm o capital na mão, mas é capital morto,não tem liquidez. E ele fez o plano de distribuir títulos de propriedadeimediatamente. Mas falou isso durante uma semana e depois broxoucompletamente. Isto era a coisa boa para se fazer: não tem nada a vernem com agradar o FMI nem com fazer a revolução latino-americana.Isto eu teria feito se estivesse no lugar deles.

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P: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o prof. Alaor, e se o sr. Olavoquiser comentar também… Bom, o professor falou que acredita numademocracia participativa, e entende isso como a participação de cadaindivíduo de uma sociedade brasileira diretamente nas decisões

governamentais. Eu pergunto: como isso é possível hoje no Brasil, semque haja uma dominação dos meios públicos? Por exemplo, aqui nafaculdade tem o orçamento participativo: os alunos vão, orçamentoparticipativo, pá-pá-pá, chega aqui, assembleísmo, pá, a maioria dosalunos acaba não decidindo porque “não tem tempo, não pôde ver, nãopôde ir para a aula”. Enfim, como é que isso vai acontecer com o restodo povo brasileiro, com o pescador, um sujeito que não entende muito

 bem de política (com todo o direito), como é que… Enfim, não sei se o

senhor entendeu a minha pergunta. Eu não acredito no orçamentoparticipativo. Como é que o senhor acredita?

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Não. Acontece o seguinte: a democraciaparticipativa impõe todo um processo muito amplo de mobilizaçãosocial e de organização social. Se não houver a mobilização e aorganização social não haverá nunca a democracia participativa. Ela éagora uma coisa nova. Na verdade, ela é uma proposta de quê? De dezanos, no máximo. Não tem ainda a organicidade que deve ter, e, muitas

 vezes, a participativa é cooptada. Esse é que é o problema complicado.O próprio sistema não quer saber da democracia participativaefetivamente, mas existem indicações. Por exemplo, eu vou dar umaidéia para vocês entenderem isso. O sistema de conselhos no Brasil édifícil, não é? Ele fica praticamente neutralizado e acaba não surtindoos efeitos que deve surtir. O sistema de conselhos seria interessante,não o conselho de rua (geralmente há o conselho de rua). A chamadademocracia representativa é a democracia da rua: todas as pessoas vão

à rua, os políticos vão à rua, propõem as suas colocações, fazem as suasexposições, e tentam amealhar, tentam cooptar as pessoas, ou seja,persuadir as pessoas. Eu acho que essa democracia não é suficiente.Por exemplo, a democracia que envolve a possibilidade de participaçãode todas as comunidades, inclusive as comunidades escolares, fabris,os clubes, as igrejas, as vizinhanças, mas isso ainda tem muito acaminhar. Nós precisamos trabalhar muito e estudar muito esseaspecto e tentar estabelecer relações internas dessas unidades todas e

externas, ou seja, inter-relacionais. Não é fácil. Não é fácil. Nós temos ademocracia representativa, que domina completamente. E muitas

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 vezes eu tenho perguntado aos vereadores, aos deputados etc., sequerem a participação. Eles não querem, eles acham que isso diminui,elimina os seus poderes respectivos. Portanto, eles fazem uma propostasempre constante de democracia representativa, evitando o mais

possível o domínio da democracia participativa. É complicado,demanda consciência, demanda, digamos, uma dimensão muito maiscriativa e consciente, politicamente, por parte das organizações. Aquipor exemplo, na faculdade tem muito pouco disso. Precisaria ter muitomais disso, de um movimento político nesse sentido.

OLAVO DE C ARVALHO : É preciso ver se nós estamos discutindo as palavraspelo seu valor de dicionário e pela sua associação emocional ou pela

substancialidade das situações de fato que elas representam. Comrelação ao conceito genérico de participação, ninguém pode ser contra.Santo Tomás de Aquino já dizia que qualquer sociedade política sópode estar segura da sua sobrevivência se todos os seus membrosparticiparem da política. Quer dizer, isto é uma espécie de consensouniversal. Ninguém discute isso há sete séculos. O problema é o como.Ora, a estrutura partidária da representação que nós temos já ésuficientemente complexa para que nenhum cidadão possa dizer que aconhece. Agora, multiplique isso por uma infinidade de conselhos,comissões, assembléias etc., e ademais pergunte: todas as pessoas que

 vão dirigir todas essas coisas são militantes trabalhandogratuitamente? Ou seja, a concepção atual da participação é tãocomplexa e tão custosa que eu a afastaria de cara como simples psicose.

 A proposta de democracia participativa pode servir como uminstrumento propagandístico para desmoralizar o sistemarepresentativo, que já não está muito bem das pernas. Mas que vásubstituí-lo é absolutamente impossível.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Bom, é óbvio que o “como” é complicado mesmo.Mas ele demanda mesmo uma complicação em função de umasociedade altamente complexa. Não há dúvida. Não há dúvida. O queocorre é que a democracia representativa não assumiu, e não assumede forma nenhuma, as dimensões necessárias para compor políticaspúblicas de forma a efetivamente trazer à comunidade a satisficaçãonecessária, tendo em vista exatamente esses problemas que nós

elencamos, como, por exemplo, o caso das diferenças profundas entreas pessoas. Essa democracia que nós temos, a representativa, ela tem

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um problema de representação das camadas sociais e das classessociais muito distorcido. Não há possibilidade de um aproveitamentoclaro nesse sistema. Por outro lado, a questão de comissões etc.depende dos “bolsões”. Não é comissão para toda coisa geral. Tem a

comissão do meio ambiente, a comissão da educação, disto ou daquilo,as comissões singulares, que vão atuando em sistemas capilares. Éclaro que isso é complexo mesmo. É um assunto altamente complexo,numa sociedade complexa como a nossa. O que nós não podemos é teruma posição, digamos, pessimista quanto a isso, porque depois não hásistema nenhum, nenhuma engenharia social ou institucional que nospermita realmente tomar conta da sociedade. Para largar a sociedade

 justamente para quem? Para aqueles que são os donos do sistema, os

hegemônicos do sistema, os donos do capital.

OLAVO DE C ARVALHO : Quando você fala dos “donos de capital”, eu querialembrar uma coisa a você. A chamada corrente liberal só tem umainstituição que a defende: chama-se Instituto Liberal. O InstitutoLiberal de São Paulo fechou por falta de verbas. Jamais faltam verbaspara o Fórum Social Mundial, para o PT, para o MST etc. Portanto, adistribuição do poder e do dinheiro não é exatamente esta quegeralmente se pensa: “Aqui estão os burgueses defendendo os seusinteresses e ali estão os partidos de esquerda heroicamente lutando emfavor dos pobrezinhos.” Simplesmente não é assim. Eu não vim aquipara defender proposta nenhuma, o meu ponto de vista é a realidade, ea realidade no momento é esta. Por exemplo, essa capilaridade se fazem grande parte através de ONGs. Vocês sabem que nenhuma dasONGs que nascem no Brasil é produto local? Vocês sabem que a ONUtem um curso de formação de movimentos sociais no Terceiro Mundoque anualmente espalha vinte mil profissionais disso para tudo quanto

é lugar, subsidiados por outras ONGs enormes financiadas porRockefeller, George Soros, Morgan etc.? Vocês têm idéia de que essa talda democracia participativa é ela mesma uma obra de engenhariasocial que está sendo implantada em toda a parte, e não está surgindode baixo? Estudem esse assunto. Estudem a estrutura atual da ONU.Existe um livro do Pe. Michel Schooyans, que foi professor de filosofiano Brasil, chamado La face cachée de l'ONU (“A Face Oculta daONU”), que trata dessas coisas. Então, notem bem que a estrutura do

poder global é bem diferente do que uma análise marxista permitiria

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imaginar. A estrutura do poder não corresponde a isto. Muita coisa queparece movimento social vem diretamente do grande capital.

P: Eu acho as posições dos dois muito radicais, né. Então, eu queria

saber a opinião de “um”, que coloca que aparentemente não há solução,e a do professor, que o sistema capitalista não seria a solução. Euqueria saber se dentro do próprio sistema capitalista vocês não achamcompletamente inviável uma coisa que o pessoal abomina: ohobbesianismo, o princípio do interesse próprio. Na verdade ointeresse próprio de cada indivíduo capitalista, digamos, não podeencaminhar em direção ao interesse social, sem pensar num idealismoromântico, sem apelar para o bom senso ou para a caridade, mas que o

próprio capital para se manter ele vai criar, e cria – como tem criado –a função social das empresas, a ação voluntária das pessoas, paradesenvolver os próprios mercados que ele quer explorar e não, aocontrário, destruir mercados dos quais ele precisa.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Não, não se trata disso, do fato de que o capital nãofaça o possível para ficar com uma fachada boa e muito interessante. Enão se trata do fato de que o capital não faça também alguma coisa decunho social. Eu não coloquei essa questão, eu coloquei uma questão

de estrutura interna. De qualquer forma, todas as empresas vão buscaro quê? Elas querem mercado, querem tentar colocar os seus produtos.O que eu disse aos senhores é que com a inclusão da sofistificaçãogrande da técnica e da ciência, o sistema se coloca a si mesmo emxeque. Há uma contradição interna no sistema (que não foi comentadaaqui), e eu falei com toda a clareza: o sistema, por receber toda adimensão muito sofisticada da produção… Não porque o capitalistaqueira, ele não quer isso mesmo. Qual é o dono do capital que vai

querer isto? Vai querer nada. Mas ele é obrigado a fazer em termos dasua competição mundial, ele precisa fazer isso. Mas ao fazer isso, elelibera necessariamente a mão-de-obra porque faz parte dos custos. Eletem de tirar isso da frente. Os custos mais facilmente tiráveis, ou seja,que são possíveis de ser eliminados, são os custos relacionados com amão-de-obra. A matéria-prima ele tem de aplicar, as máquinas ele temde fabricar e tem que utilizá-las, não tem jeito. E as máquinas e amatéria-prima vão todas para o produto. A única coisa que ele pode

eliminar é a mão-de-obra. Mas na hora em que ele elimina a mão-de-obra (não é porque ele queira, ele vai ter de fazer isso), mesmo fazendo

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ajustes sociais, fazendo tudo o que você imaginou, a beleza da coisa, seele está metido em algum processo de acumulação, ele vai precisarnecessariamente continuar o processo de expansão da economia,porque a lei do capital é esta mesma: é de permanente ampliação e

acumulação. Ele entra num processo de crise e de conflito, que tem umlimite, é claro. O capital tem limite, gente. Ele é um processo social,histórico. E como ele tem um começo, um dia vai ter um fim. Um dia

 vai ter, mas eu não sei nem quando. Qual é a idéia que se vai ter disso?Ele é um processo social. Ou o capitalismo é eterno? De repenteapareceu o final da História: é o “Fim da História”? Quebrou aqui eaqui, e não tem mais? Não é isso. Nós estamos mostrando ascontradições que levam o sistema a outra situação, mesmo um sistema

que seja em geral “bonzinho”.

OLAVO DE C ARVALHO : Bem, evidentemente o capitalismo pode acabar. Seo socialismo acabou, por que é que o capitalismo não pode acabar?

 Ademais, o capitalismo não tem de ser defendido como ideal pararesolver o que quer que seja, porque, em primeiro lugar, o capitalismo

 já existe. E quando eu o defendo – e mesmo assim com limitações, queeu não sou nenhum entusiasta do capitalismo – é apenas como algoque está funcionando, que funciona bem onde lhe permitem funcionar.Destruí-lo em função de hipóteses como “democracia participativa” ésuicídio. Até o momento se falou em contradições: é claro que temcontradições, toda sociedade tem contradições. Mas nunca ocapitalismo chegou às tais contradições que Marx denominava“contradições antagônicas”, que o destruiriam desde dentro. A isso nãochegou até hoje; e o socialismo chegou. O socialismo mostrou que éincapaz de passar de um certo ponto. Em matéria de contradiçõesantagônicas, o socialismo está ganhando.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Parece que não se percebeu claramente a lei domaterialismo histórico. É que a indução do socialismo no séculopassado foi artificial. Não é que socialismo acabou, como você estádizendo. Ele nem começou.

OLAVO DE C ARVALHO : Ah!

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Nem começou.

OLAVO DE C ARVALHO : Então me enganaram o tempo todo!

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 A LAOR C AFFÉ A LVES : Enganaram todo o tempo. Quer dizer, isso de verfantasmas socialistas de anos atrás por toda a parte [palavrasinaudíveis], isso realmente obscurece a pessoa.

OLAVO DE C ARVALHO : [Risos.]

 A LAOR C AFFÉ A LVES : É preciso ter clareza disso aí. O socialismo como tal,como o próprio Marx disse, teria de fazer com que as forças produtivasavançarem de tal maneira a chegar no limite das relações sociais deprodução. O fato é que até agora não se chegou aos limites do sistema.Está se percebendo agora que está começando a entrar nesse processo.

OLAVO DE C ARVALHO : Puxa, que maravilha…

 A LAOR C AFFÉ A LVES : A crise está começando a entrar agora. Agora é queestão começando a se desenvolver os problemas de desemprego, dosocial etc., né? A crise mundial, onde as coisas são irracionais. Umsistema como esse americano, que faz a coisa mais absurda eirracional, como atacar um país inteiro sem motivo praticamente, a nãoser um motivo pessoal, um motivo articulado do próprio país, que é a

 busca de energia que ele precisa tanto para desenvolver o seu sistema.

Porque se ele não tem energia, minha gente, ele cai, ele caicompletamente. Ele precisa segurar a energia. É por isso que elesfizeram isso. Não é o Bush que é mau, não. O Bush não é malvado(pode até ser, mas a gente nunca sabe). Ele tem de fazer isso em razãoda própria impulsão do sistema. Pode estar certo, Olavo: o socialismonão começou, não. Ainda temos muita coisa para ver. Muita água ainda

 vai correr embaixo da ponte. Infelizmente, eu gostaria que as coisasfossem mais rápidas, mas não são. O que aconteceu foi o

desenvolvimento de um tipo de revolução artificial, que não chegou justamente aos limites que o sistema vai ter. Porque os limites osistema vai ter. E está tendo já, está começando agora. Não sei quantotempo, pode durar duzentos anos, sei lá. No entanto, é isso mesmo.Estamos agora já com a indicação histórica que alguma coisa agora estácondenada pelo sistema capitalista. É isso aí que eu estou dizendo.

 Agora, se vai ser socialismo… que tipo de socialismo, que forma desocialismo. isso nós não sabemos. É claro, isso não sabemos.

OLAVO DE C ARVALHO : Bom, vocês sabem quantos livros foram publicadoscom o título de “A Crise Geral do Capitalismo”?

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 A LAOR C AFFÉ A LVES : Ih, muitos…

OLAVO DE C ARVALHO : Milhões e milhões. Todos faziam esse diagnóstico:“Agora sacamos a crise, agora cai, e agora virá o socialismo.” E quando

se diz que muita água vai correr, não: muito sangue ainda vai correr.Matar cem milhões não foi o bastante. Notem bem, uma ideologia que,com esses mesmíssimos argumentos da estrutura de classe, daideologia, do mercado etc., tomou o poder em um terço do globoterrestre, matando cem milhões de pessoas e só conseguindo gerarmiséria em proporções jamais vistas, como se gerou na China – depoisde tudo isso, é preciso ter muita cara-de-pau para dizer: “Não, masaquilo não era o verdadeiro socialismo. Nós vamos tentar outra vez.

 Vocês me dêem mais um creditozinho de confiança, e desta vez nós vamos acertar.” Ora, por que vamos dar esse crédito de confiança?Baseado em quê? Na autoridade dos cem milhões que vocês mataram?Chega disto! O capitalismo não é grande coisa, o capitalismo chega ater aspectos até demoníacos. Porém, esse tipo de malefício ele jamaisfez: nunca chegou tão profundamente. Portanto, não vamos destruiruma coisa razoável que temos, que pode ser mudada e aperfeiçoadamuito, para tentar apostar novamente no socialismo. Mais ainda:porque não é possível uma teoria dizer ao mesmo tempo que as idéiasnão existem separadamente da história, que as idéias só existem pelasua encarnação material na história, e em seguida dizer que toda ahistória deles durante um século não o compromete de maneiraalguma, e que ele como ideal permanece puro e intocável no céu dasidéias platônicas. Isso é charlatanismo.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : [Palavras inaudíveis.] É evidente que isto não é umaresposta. Em primeiro lugar, ninguém está aqui defendendo a União

Soviética, nem está pretendendo que era isto que eu estaria fazendo.Ele [Olavo] está com fantasma na cabeça. Também isso nem precisamais pensar, que isso já foi mesmo, é coisa da História. Então é umfantasma pensar que o que se propugna é aquilo que estava lá. Não énada disso. Soube-se que houve erros profundos, sérios, seríssimos.Exatamente porque se propôs impor um sistema fora da hora, fora daHistória, da dimensão histórica. Porque não se viu realmente adimensão histórica. Então, é isso que se está colocando aqui. Não é a

defesa de coisa nenhuma, de três milhões, de cinco milhões, de trintamilhões que foram perdidos em relação a isto; mesmo porque outros

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sistemas [palavras inaudíveis], ele [Olavo] não provou que ocapitalismo não fez tantas mortes.

OLAVO DE C ARVALHO : Não fez!

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Não?

OLAVO DE C ARVALHO : Não fez! Não fez! De jeito nenhum!

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Tantas mortes e muitos problemas gravíssimos demuitas guerras, desde que existem claramente, basicamente as guerrasdeste mundo inteiro? Quem fez isto, senão todo o sistema burguêscapitalista que fez isto? É evidente que houve também essa ampliação

 burocrata em termos objetivos por parte do socialismo. Então, nestecaso, o certo é o seguinte, só para terminar: não adianta entrar nestaquestão. Eu quero que ele me explique como é que ele vai resolver oproblema das contradições dele (mas claro, tem de ser relido comconceitos) decorrentes deste processo que está ocorrendo com odesenvolvimento tecnológico das forças produtivas, expulsando a mão-de-obra, expulsando a capacidade de poder consumir aquilo que opróprio capital produziu. Eu quero que ele me explique, me explique!

OLAVO DE C ARVALHO : Essas contradições são exatamente as mesmas queLenin diagnosticava em 1915, e em nome das quais se fez a revolução.

 Agora, quanto ao morticínio, está aqui: O Livro Negro do Capitalismo .Quando saiu O Livro Negro do Comunismo , feito por pessoas deesquerda, que provava documentadamente que os comunistas haviammatado cem milhões de pessoas, encomendou-se a um monte deintelectuais que produzissem, de qualquer maneira, cem milhões de

 vítimas do capitalismo. Então, eles produziram este livro: são trintaautores de alto prestígio no meio esquerdista. Então, para chegar aoscem milhões, foi preciso atribuir ao capitalismo todas as vítimas daSegunda Guerra Mundial (cinqüenta milhões, todas as vítimas de todosos lados), todas as vítimas da Revolução Espanhola (de todos os lados),todas as vítimas da Primeira Guerra Mundial… Isso é charlatanismo.Todo marxista é um charlatão.

P: Eu gostaria que os dois debatores comentassem algumas

considerações minhas e vou fazer uma pergunta específica para o prof.Olavo. Pelo tema do debate, eu esperava que houvesse uma discussão a

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respeito das principais teses desenvolvidas pelo Marx, masinfelizmente as discussões tomaram outro rumo, e eu percebo que asteses propriamente de Marx foram tangenciadas. Como por exemplo acrítica feita ao materialismo, se ele não é o poder de a matéria gerar

frutos, o que me parece uma concepção inclusive meio bíblica – ohomem feito do barro etc. Quando na realidade o fundamento domarxismo reside justamente na interação do homem com a natureza,que é, segundo o próprio Marx, o corpo inorgânico do homem, e aprodução da ideologia se dá a partir dos pressupostos da atividadeespiritual humana. Então, nós estamos aqui fazendo o quê? Nósestamos aqui debatendo, mas nós estamos aqui vestindo roupas, nósestamos calçados, os debatedores estão tomando água, fumando

cigarro. E de onde vêm essas coisas? Tudo isso foi produzido, tudo issofoi criado de alguma forma através de alguma espécie de intervençãohumana. Isso é a produção da ideologia, e não dizer que o trabalhadortem de pensar como proletário e o capitalista tem de pensar como umcrápula. E isso é ridículo. E a maior prova ao contrário dessa fórmula éo Presidente Lula, que é um trabalhador e que diz: “Eu nunca fui deesquerda.” Então, a questão é mais por aí. Eu gostaria que osdebatedores comentassem essa minha consideração. Outra delas é que

me pareceu ali muito claro o tempo todo que o socialismo foi discutidoem termos de planificação estatal, quando na realidade a teoria deMarx é muito diferente disso. Não se trata de perfectibilizar o Estadoou de aprimorar as camadas políticas, tampouco de controlar omercado. A perspectiva de Marx é radical. A perspectiva de Marx é adestruição do mercado, a destruição do Estado, mas a destruição domercado não para substitui-lo pela planificação, mas para substitui-lopela apropriação social. Esse é segundo ponto que eu gostaria que fossecomentado. E aí, por fim, a pergunta para o prof. Olavo. Eu fiqueimuito feliz com a vinda do senhor aqui, pela oportunidade de pedir umcomentário sobre um artigo que eu li há cerca de um ano ou um ano emeio no jornal O Globo , se não falha a memória, em que você afirmaque o então presidente Fernando Henrique Cardoso estariamancomunado com o MST e preparando a transição do Brasil aosocialismo. Eu gostaria que o senhor comentasse esse seu ponto de

 vista.

OLAVO DE C ARVALHO : Vocês façam a conta de quanto saiu do governoFHC para o MST. Sem isso, o MST simplesmente não existiria. É só

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isto: ele fez o MST, ele é o criador do MST. Quais foram as intençõesideológicas, eu não sei, evidentemente. Porém, houve uma série deartigos publicados por Alain Touraine na Folha de São Paulo (AlainTouraine é uma pessoa que tem influência grande sobre a cabeça de

FHC), nos quais ele traçava o plano de uma virada do Brasil àesquerda. Eu não sei se foi isto que FHC quis ou não – nem me cabeconjeturar –, mas eu estou apenas cotejando dois fatos e vendo que épossível haver uma ligação. Quanto saberemos se houve isso ou não?Daqui a muito tempo, certamente. Mas que o governo FHC construiu oMST com verbas do Estado, isso é um fato inegável.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Eu não tenho muito que comentar à formulação

dessas questões. Elas estão muito corretas para mim, né? Ou seja, ofato de que a materialidade depende das relações de produção doshomens. Por exemplo, o caso que foi colocado aqui: nós estamos aquinessa mesa, tudo está sendo visto, todos estamos vestidos, temos nossaalimentação já preparada, temos nossas roupas; amanhã ainda teremosporque outras pessoas estão trabalhando para nós também. Nósestamos trabalhando para eles, e eles para nós. Há uma relação socialenvolvida necessariamente. Isto é uma dimensão social grave e séria.Eu não posso estabilizar que os homens, apenas pelas suas idéias, é quetransformam as coisas ou fazem as coisas; fazem através do movimentoprático da praxis deles, dentro da estrutura social e econômica onde háa troca entre os homens, fundamentalmente. Portanto, eu não muito oque dizer sobre esse aspecto da matéria. Não é a matéria no sentido,como eu disse a vocês, abstrata, mas é a matéria do ponto de vista dasrelações humanas concretas, o homem agindo sobre o meio etransformando o meio. E quanto à apropriação social, que foi uma daspropostas, mostra claramente que a apropriação social é feita de uma

forma totalmente desequilibrada. Por isso, se houver essa questão quefoi colocada aqui pelo Olavo, pelo jornalista Olavo, foi colocada arespeito da necessidade de estabelecer uma esquerda, de uma posição àesquerda. Se for para a distribuição melhor da sociedade, umadistribuição das riquezas, que vamos para a esquerda. Ué, se há umamiséria imensa, e nós vemos que as estruturas tradicionais nãoresolvem a questão, não tem importância: vamos à esquerda. Pois seela tentar resolver e se resolve, melhor. E Agora, nós não temos a

certeza de tudo isso, é verdade. Mas dizer que o sistema é bom, é quaseque dizer… Primeiro ele diz: “Olha, eu não sou um arauto do sistema,

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de forma nenhuma, mas vamos então admiti-lo como bom, que ele é aúnica coisa boa que tem.” Mas nós temos também expectativas,utopias, nós temos também meios de ver o mundo, nós temos tambémaspirações, nós temos nossa imaginação, e nós precisamos realmente

imaginar um mundo melhor e utópico. Isso é otimismo. Não é umpessimismo que diz que tudo o que está à frente, se for à esquerda, nãopresta. Quer dizer, aqui se defende exatamente posições de direitadizendo não está se fazendo isso: “Não estou fazendo isso.” Está aquiatacando a esquerda e dizendo: “Não é uma diferença de idéias.” É umataque com toda força à esquerda, às visões marxistas etc., que sãorazoáveis em muitas questões. Como eu já disse, não é perfeito. Não éque seja a panacéia, e não será mesmo. Nós temos de criar a nossa

própria panacéia. Nós temos de criar o nosso mundo, a nossa utopia.Não é Marx no século XIX. O importante é que temos de utilizar isso. Épena que tudo isso que nós conversamos e desenvolvemos nóspensamos em falar em “Marxismo, Direito e Sociedade”, especialmentea questão do Direito. E eu vi que isto fugiu completamente. Talvez eutenha sido vítima da direita. A esquerda também é vítima, embora elediga que não, porque tudo aqui é da esquerda, todos são, até as novelassão de esquerda, a Globo é de esquerda. É ver as coisas que não tem,

que não existem mais. Até esse fantasma do chamado comunismo, issoacabou. Nós temos de agora buscar uma outra vida, uma outra forma,uma outra sociedade. É isso que tem de fazer, e não ficar remoendoproblemas do passado. Existe aqui até um movimento muito sério,muito grave em São Paulo, chamado TFP (Tradição, Família ePropriedade), que faz esse tipo de coisa, ficam agindo nas ruas como sehouvesse ainda esse fantasma, como se essa esquerda fosse o quê? Elasimplesmente vai tentar desenvolver um sistema onde haja maisdistribuição social. Mas é só isso que se pretende fazer. O que sepretende fazer? Uma igualação, uma igualdade melhor entre oshomens. É isso que se pretende fazer. O que é que se pretende fazer? Oque é que se pretende fazer senão melhor igualdade, maior igualdade,para condicionar uma vida de paz social, e que as pessoas tenhamoportunidade de aprimorar sua personalidade, a sua vida… Enfim, éisso que nós queremos. Não queremos mais nada do que isso. E nãoficamos aqui apresentando esses exemplos; esses exemplos históricosque são mais do que conhecidos, sabemos que tem isso. Até ele [Olavo]

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chega a dizer que esses exemplos são todos eles terríveis; do outro lado,o nazismo não teve nenhum problema…

OLAVO DE C ARVALHO : [Olavo protesta.]

 A LAOR C AFFÉ A LVES : “Nós não sabemos, não conhecemos nada.” E ocapitalismo é um sistema absolutamente muito bom. O que é que éisto? Todos estão de acordo com esse tema que ele está, com essadistribuição terrível que ele está, com essa miséria do Brasil? Daqui apouco vai se falar que a miséria é determinada pelos esquerdistas, pelaesquerda…

OLAVO DE C ARVALHO : E é, e é.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : … como está se fazendo colocando a questão de queo FMI é de esquerda, os EUA é de esquerda, Rockefeller é de esquerdaetc. Isso é uma coisa maluca. É uma questão emocional muito grave…

OLAVO DE C ARVALHO : Ora, o prof. Alaor tem a pretensão de diagnosticaros meus problemas emocionais. Dele, eu só diagnostico uma coisa:ignorância. Primeiro, ignorância dos escritos de Marx. Ele diz que a

matéria é função da produção; Marx diz exatamente o contrário: Marxsubscreve inteiramente as concepções atomísticas de Demócrito eaceita a ciência newtoniana como a tradução perfeita da realidade.

 Ademais, a idéia de uma dialética interna da matéria está exposta nosescritos do próprio Engels e faz parte da tradição do movimentocomunista. Abolir tudo isso, dizendo que Marx só falou da produção éabsolutamente ridículo, é coisa de ignorante, para não dizer mentiroso.Não o acuso de mentiroso mas o acuso de ignorante. Em segundolugar, com um homem que chega para mim e diz por um lado que “ah,esse momento é da esquerda, a esquerda está com tudo” e, por outrolado, diz que não existe esquerda nenhuma, em algum ponto a coisaestá falhando. Em terceiro lugar, o conselho de “esqueçamos aHistória, nada disto aconteceu, vamos tentar de novo, vamos confiar”,isso é uma palhaçada, isso é pueril. Não se pode aceitar uma discussãonessa base.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Bem, eu evidentemente não estava esperando essa

agressividade. Essa foi demais.

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OLAVO DE C ARVALHO : Agressividade é a sua, que começa a falar emproblemas emocionais.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Veja bem, tem de respeitar. Chamar a gente de

ignorante, e pressupor que eu não conheça Marx…

OLAVO DE C ARVALHO : Pressupor não: afirmo!

 A LAOR C AFFÉ A LVES : ... e ele diz também que quatro décadas foi doPartido Comunista. Maluco isso! Nunca foi coisa nenhuma! Foi nada!

OLAVO DE C ARVALHO : O quê? Está me acusando de mentiroso?

 A LAOR C AFFÉ A LVES : O senhor me acusou de mentiroso aqui.

OLAVO DE C ARVALHO : Não, eu te acusei de ignorante.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : [Palavras inaudíveis.]

[Tumulto.]

OLAVO DE C ARVALHO : Você é que está mentindo.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Você é que me xingou!

OLAVO DE C ARVALHO : Você é mentiroso! Safado!

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Ele vem aí com coisa [palavras inaudíveis] anti-socialista ou antimarxista e vem dizer que já foi, sabe, e conhece tãoprofundamente. Imagine que ele agora não é, porque ele analisou tãoprofundamente isso e está dizendo…

OLAVO DE C ARVALHO : Pois foi exatamente isso que você nunca fez.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Ora, pelo amor de Deus!

OLAVO DE C ARVALHO : Você é um idiota.

 Alaor Caffé Alves : Olha aí! Quer dizer, eu estou falando ao mesmotempo; agora, se você disser que eu sou idiota. Olhem, vocês me

perdoem. Eu sou da Faculdade. Eu não vou permitir uma coisa dessa!Isso é uma agressão pessoal. Eu esperava…

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OLAVO DE C ARVALHO : Você me agrediu primeiro, falando de problemasemocionais.

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Eu comecei muito bem, dei para vocês o mais

possível a minha idéia a respeito de um conceito sobre Direito, sobre aquestão que o Marx colocou; e a coisa foi num crescendo que eu não

 vou me admitir, vocês me perdoem.

 A LGUÉM DA PLATÉIA  : Está fugindo?

 A LAOR C AFFÉ A LVES : Estou fugindo. Vou fugir. Estou fugindo pararespirar. Eu sei que vocês, grande parte de vocês, foram mobilizados.Houve uma mobilização aqui, séria, grave, séria, e eu não vou me

permitir, como professor da casa, ser agredido dentro da minha casa,por uma pessoa como esta. Vocês me perdoem.

* * *

 Nota de O. de C.: Ao final dos debates, há um tumulto geral, aplausos

e vaias misturam-se de maneira indiscernível. A maior parte das

vaias condena a atitude de desistência do prof. Alves, mas num canto

da sala ouve-se distintamente o refrão gritado por um grupoorganizado de jovens de idade manifestamente inferior à da média da

 platéia: “Alerta! Alerta! Alerta aos fascistas! A América Latina será

toda socialista.”. – O. de C. 

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 A natureza do marxismo 

Olavo de Carvalho Jornal da Tarde, 18 de dezembro de 2003http://www.olavodecarvalho.org/semana/031218jt.htm  

Investigando durante décadas a natureza do marxismo, acabeiconcluindo que ele não é só uma teoria, uma “ideologia” ou ummovimento político. É uma “cultura”, no sentido antropológico, umuniverso inteiro de crenças, símbolos, valores, instituições, poderesformais e informais, regras de conduta, padrões de discurso, hábitosconscientes e inconscientes, etc. Por isso é autofundante e auto-referente, nada podendo compreender exceto nos seus própriostermos, não admitindo uma realidade para além do seu própriohorizonte nem um critério de veracidade acima dos seus próprios finsautoproclamados. Como toda cultura, ele tem na sua própriasubsistência um valor que deve ser defendido a todo preço, muitoacima das exigências da verdade ou da moralidade, pois ele constitui atotalidade da qual verdade e moralidade são elementos parciais,

motivo pelo qual a pretensão de fazer-lhe cobranças em nome delas soaaos seus ouvidos como uma intolerável e absurda revolta das partescontra o todo, uma violação insensata da hierarquia ontológica.

 A constituição da sua identidade inclui dispositivos de autodefesa queimpõem severos limites à crítica racional, apelando, quando ameaçadareal ou imaginariamente, a desculpas mitológicas, ao auto-enganocoletivo, à mentira pura e simples, a mecanismos de exclusão e

liquidação dos inconvenientes e ao rito sacrificial do bode expiatório.

Iludem-se os que acham possível “contestar” o marxismo por umataque bem fundamentado aos seus “princípios”. A unidade e apreservação da sua cultura estão para o marxista acima de todas asconsiderações de ordem intelectual e cognitiva, e por isso os“princípios” expressos da teoria não são propriamente “o” fundamentoda cultura marxista: são apenas a tradução verbal, imperfeita eprovisória, de um fundamento muito mais profundo que não é de

ordem cognitiva e sim existencial, e que se identifica com a própria

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sacralidade da cultura que deve permanecer intocável. Essefundamento pode ser “sentido” e “vivenciado” pelos membros dacultura por meio da participação na atmosfera coletiva, nosempreendimentos comuns, na memória das glórias passadas e na

esperança da vitória futura, mas não pode ser reduzido a nenhumaformulação verbal em particular, por mais elaborada e prestigiosa queseja. Por isso é possível ser marxista sem aceitar nenhuma dasformulações anteriores do marxismo, incluindo a do próprio Marx. Porisso é possível participar do movimento marxista sem nada conhecerda sua teoria, assim como é possível rejeitar criticamente a teoria semcessar de colaborar com o movimento na prática. A investida críticacontra as formulações teóricas deixa intacto o fundamento existencial,

que atacado reflui para o abrigo inexpugnável das certezas mudas ousimplesmente produz novas formulações substitutivas que, se foremincoerentes com as primeiras, não provarão, para o marxista, senão ainfinita riqueza do fundamento indizível, capaz de conservar suaidentidade e sua força sob uma variedade de formulaçõescontraditórias que ele transcende infinitamente. O marxismo não tem“princípios”, apenas impressões indizíveis em constante metamorfose.Como a realidade da vida humana não pode ser vivenciada senão como

um nó de tensões que se modificam no tempo sem jamais poder serresolvidas, as contradições entre as várias formulações do marxismofarão dele uma perfeita imitação microcósmica da existência real,dentro da qual o marxista pode passar uma vida inteira imune àstensões de fora do sistema, com a vantagem adicional de que as dedentro estão de algum modo “sob controle”, atenuadas pelasolidariedade interna do movimento e pelas esperançascompartilhadas. Se o marxismo é uma “Segunda Realidade”, naacepção de Robert Musil e Eric Voegelin, ele o é não somente nosentido cognitivo das representações ideais postiças, mas no sentidoexistencial da falsificação ativa, prática, da experiência da vida. Por issoqualquer povo submetido à influência dominante do marxismo passa a

 viver num espaço mental fechado, alheio à realidade do mundoexterno.

Detalharei mais no próximo artigo estas explicações, resumo das queofereci no meu recente debate com um professor da Faculdade de

Direito da USP, às quais meu interlocutor respondeu que eu pensava

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assim por ter “problemas emocionais graves” -- sem perceber que, comisso, dava a melhor exemplificação da minha teoria.

Marxismo esotérico 

Olavo de Carvalho Jornal da Tarde, 1 de janeiro de 2004

http://www.olavodecarvalho.org/semana/040101jt.htm  

Quando digo que o marxismo é uma “cultura”, está aí implícito quecompará-lo a uma “religião” é abusar de uma analogia. Essa analogiasó funciona, em parte, se por “religião” se entendem os primitivoscomplexos mitológicos em que crenças, ritos, governo e sociedade sefundiam numa totalidade inseparável. As religiões universais são porexcelência transportáveis para fora da sua cultura originária, e o são,

precisamente, porque nelas o depósito inicial da revelação setransmuta numa formulação teológico-dogmática racional compretensões de verdade universal, a qual se oferece para ser validada ouimpugnada no plano do exame teorético. Já o marxismo não admite demaneira alguma ser discutido nesse plano, porque a essência do seuconteúdo intencional, como já expliquei, não está expressa emdiscurso, mas imbricada organicamente, como um segredo mudo, notecido da prática revolucionária, do qual deve ser desentranhada por

meio de sutis mutações de significado, procedimento esotérico cujaautoridade transcende a dos escritos do próprio Marx.

 Antonio Negri, escrevendo em 1994 sobre uma discussão com NorbertoBobbio, afirma: “Para Bobbio, uma teoria marxista do Estado só

 poderia ser aquela que derivasse de uma cuidadosa leitura da obra do

 próprio Marx. Para o autor marxista radical (Negri), no entanto, era

a crítica prática das instituições jurídicas e estatais desde a

 perspectiva do movimento revolucionário -- uma prática que tinha

 pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à

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hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e

à expressão do seu poder. Se havia algo em comum entre Bobbio e seu

interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real um

desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista.”  

De um lado, o marxismo não consiste nas formulações expressas deMarx, mas transmuta-se na “construção de um sujeito revolucionário” .De outro, também não se identifica com o “socialismo real”, isto é, coma situação historicamente objetiva produzida por essa mesmaconstrução. Mas, se o “verdadeiro” marxismo não está nem no projetonem no edifício, nem nas intenções da teoria nem nos resultados daprática, onde está então? Está no trajeto, no processo em si. Está nas

profundezas ocultas e moventes da praxis, veladas a seus protagonistase agora em parte desveladas pelo tirocínio hermenêutico do sr. Negri,para grande surpresa de seus predecessores que se imaginavammarxistas. Longe de ser uma religião dogmática apegada à letra darevelação, o marxismo é um fluxo esotérico de símbolos em movimentoperpétuo cujo sentido só vai se revelando ex post facto, cada novageração provando que os ídolos revolucionários de ontem não eramrevolucionários e sim traidores, como numa Igreja auto-imunizante emque a primeira obrigação de cada novo Papa fosse excomungar oantecessor. Compreende-se o risco temível de discutir com marxistas.

 Você tem um trabalho medonho para vencê-los, só para depoisaparecer alguém alegando que, da derrota deles, o marxismo saiu nãosomente incólume, mas engrandecido.

Nessa linha, o sr. Negri afirma que “uma crítica muito radical do

direito e do Estado tinha se desenvolvido no curso do processo

revolucionário e tinha sido reprimida nas codificações e constituições

da União Soviética e do ‘socialismo real’” . Num estalar de dedos, amáxima realização histórica do movimento socialista se torna o seucontrário: a repressão do socialismo. Mas, com a mesma desenvolturacom que se isenta de responsabilidade por suas ações, a “práticarevolucionária” atribui a si própria os méritos de seus inimigos: naperspectiva do sr. Negri, o “conjunto de lutas pela libertação que os

 proletários desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e

seu Estado” abrange “desde o levante de Paris em 1789 até... a queda

do muro de Berlim” . A leitura esotérica transmuta a derrocada docomunismo em rebelião anticapitalista.

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Como raciocínio filosófico, científico, dogmático ou mesmo ideológico,não faz o menor sentido. Como argumento retórico, é ridículo. Comotrapaça, é pueril demais. Mas, como operação de emergência para asalvação da unidade cultural ameaçada, faz todo o sentido do mundo.

 As culturas são a base da construção da personalidade de seusmembros, que desmorona junto com elas. A defesa da cultura é umaurgência psicológica absoluta, que justifica o apelo a medidasdesesperadas

Diferenças específicas 

Olavo de Carvalho Jornal da Tarde, 8 de janeiro de 2004

http://www.olavodecarvalho.org/semana/040108jt.htm  

Caracterizado o marxismo como cultura, é necessário dar mais precisãoao diagnóstico por meio de algumas diferenças específicas.

O marxismo não é um processo cultural autônomo, mas umatransmutação ocorrida no seio do movimento revolucionário mundial,que àquela altura já tinha uma tradição centenária e uma identidadedefinida, ao ponto de ser popularmente designado pela simplesexpressão “o movimento” ou “a causa”, malgrado a coexistência, nele,

de uma infinidade de correntes e subcorrentes em disputa.

O Manifesto Comunista de 1848 apresenta-se como superação eabsorção desse movimento desordenado numa totalidade superior. Daípor diante, as relações entre o marxismo e as demais correntesrevolucionárias foram as do patrão com seus empregados, que a seucapricho ele convoca, demite, expulsa ou chama de volta.

Foi assim que ele pôde condenar como revolta pequeno-burguesa osprotestos existenciais de ordem sexual ou impugnar o nacionalismo

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como o pior inimigo da revolução proletária, e logo em seguidaconvocar um e outro para que servissem sob suas fileiras. Suacapacidade de absorção e expulsão é ilimitada, já que ele não tem dedar satisfações senão à prioridade única, que é a sua própria

subsistência e expansão, toda consideração de veracidade oumoralidade sendo rebaixada, pragmaticamente, à condição de ancilla

revolutionis. Oportunismo levado às últimas conseqüências, seu totaldescompromisso com a verdade pode ser medido pela constância comque o movimento comunista anuncia sua vitória próxima contra asnações capitalistas e, ao mesmo tempo, jura que nem sequer existematerialmente, denunciando como paranóia e “teoria da conspiração”qualquer tentativa de identificar sua rede de organizações e seus modos

de ação. Aqui também a comparação com as religiões dogmáticas éinadequada. Nenhum fanatismo religioso produziu esse tipo desociopatia em massa.

 A diferença fundamental entre o marxismo e as demais culturas é quepara estas últimas o teste decisivo é a adaptação ao ambiente natural, aorganização da economia. Qualquer cultura que falhe neste ponto estácondenada a desaparecer. O marxismo, ao contrário, cujo completofracasso econômico em todas as nações que dominou são notórios(valendo lembrar que nenhuma organização econômica jamaisconseguiu matar de fome 10 milhões de pessoas de uma só vez, como o“Grande Salto para a Frente” da agricultura chinesa), parece tirar desseresultado as mais extraordinárias vantagens, crescendo em prestígio eforça política quanto mais se torna frágil e dependente da ajuda dospaíses capitalistas.

Sua incapacidade de explorar eficazmente um território, comparada à

 brutal eficiência no expandir-se dentro do território alheio, mostra queo marxismo não existe como cultura em sentido pleno, capaz deafirmar seu valor contra a resistência do ambiente material, masapenas como subcultura parasita incrustada numa sociedade que elenão criou e com a qual não pode competir.

Subcultura parasita da cultura ocidental moderna, o marxismo não écapaz de substituí-la, mas é capaz de enfraquecê-la e levá-la à morte. Oparasita, porém, não pode subsistir fora do corpo que explora, e adebilitação do organismo hospedeiro dá margem à ascensão de uma

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outra cultura concorrente, a islâmica -- esta sim cultura em sentidopleno --, a cujo combate anti-ocidental o marxismo acaba servindo deforça auxiliar enquanto procura utilizar-se dele para seus próprios fins.

 A adesão islâmica de importantes pensadores marxistas como Roger

Garaudy e a “aliança anti-imperialista” de comunistas e muçulmanossão símbolos de um processo muito mais complexo de absorção domarxismo, que alguns teóricos islâmicos descrevem assim: a luta pelosocialismo é a etapa inicial e inferior de um processo revolucionáriomais vasto que acrescentará à “libertação material” dos povos a sua“libertação espiritual” pela conversão mundial ao Islam. Ao mesmotempo, os marxistas acreditam dirigir o processo e utilizar-se darebelião islâmica como em outra época usaram de variados

movimentos nacionalistas, sufocando-os em seguida.

Se os marxistas são a tropa-de-choque da revolução islâmica ou osmuçulmanos a ponta-de-lança do movimento comunista, eis a questãomais interessante para quem deseje saber para onde irá o mundo naspróximas décadas.