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Corações Corações Apaixonados Apaixonados Título original: Bandera's Bride Mary McBride Ele escondeu sua paixão atrás do nome de outro homem! América do Norte, século XIX: John Bandera sabia que uma jovem de uma família tradicional do Mississippi jamais poderia partilhar a vida com um fazendeiro mestiço de índio, por isso escondeu-se atrás de um nome falso. Mas quando ela foi a sua procura, não havia como continuar a farsa. Uma paixão ardente explodiu entre ambos, e tudo que ele queria era tornar Emily Russell sua esposa. Uma gravidez indesejada e

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CoraçõesCorações ApaixonadosApaixonados

Título original: Bandera's BrideMary McBride

Ele escondeu sua paixão atrás do nome de outro homem!América do Norte, século XIX: John Bandera sabia que uma jovem de uma família tradicional do Mississippi jamais poderia partilhar a vida com um

fazendeiro mestiço de índio, por isso escondeu-se atrás de um nome falso. Mas quando ela foi a sua procura, não havia como continuar a farsa. Uma paixão ardente explodiu entre ambos, e tudo que ele queria era tornar Emily Russell sua esposa. Uma gravidez indesejada e a solidão

levaram Emily procurar o homem de seus sonhos, mas em vez de encontrar o cavalheiro sulista que imaginara amar, deparou-se com John

Bandera, um misterioso que exalava sensualidade.

Doação: Valeria

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Digitalização: JoyceRevisão e Formatação: Amanda F.

Copyright © 2000 by Mary MyersPublicado originalmente em 2000 pela

Harlequin Books, Toronto, Canadá.Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou

parcial, sob qualquer forma.Esta edição é publicada por acordo com a Harlequin Enterprises B.V.

Todos os personagens desta obra, salvo os históricos,são fictícios. Qualquer outra semelhança com pessoas

vivas ou mortas terá sido mera coincidência.Título original: Bandera's Bride

Tradução: Carmita AndradeEditor: Janice Florido

Chefe de Arte: Ana Suely S. Dobón Paginador: Nair Fernandes da SilvaEDITORA NOVA CULTURAL LTDA.Rua Paes Leme, 524— 10s andar

CEP 05424-010— São Paulo— BrasilCopyright para a língua portuguesa: 2000

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.Fotocomposição: Editora Nova Cultural Ltda.

Impressão e acabamento: Gráfica Círculo.

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PRÓLOGOTexas, 1866

Não era uma sociedade perfeita, aquela entre o sulista Price McDaniel e o mestiço John Bandera. Estava tão longe de ser perfeita quanto longe estava a paisagem do sul do Texas das elegantes colinas do condado de Russell, no Mississipi. Os dois homens não tinham nada em comum.

Fisicamente, eram disparatados como a luz do dia e a escuridão da noite. McDaniel, um homem longilíneo e frágil, tinha os cabelos louros e sedosos. Os de John Bandera eram negros, e a pele bronzeada. Meio índio, meio mexicano, e parte não se sabe o quê, impunha-se por sua estatura. Mas eram seus olhos escuros, às vezes esverdeados de gato, ou acinzentados?, que mantinham a maioria dos homens à distância.

Seu sócio, Price McDaniel, estava geralmente bêbado para ser cauteloso.

Quando bêbado, o que acontecia quase sempre, fazia seus discursos com a língua enrolada, numa linguagem um terço do Mississipi e o restante do uísque do Ten-nessee. John Bandera raramente bebia e em geral não contrariava o sócio.

Os dois homens nem ao menos se gostavam. Contudo, eram sócios, presos por um ato de heroísmo na travessia do Cimarron em 1864, quando o tenente McDaniel salvou a vida do escoteiro Bandera.

Apesar das diferenças, a sociedade foi benéfica a ambos. No ano anterior, depois da dispensa que ambos obtiveram do serviço militar, Price tinha muito dinheiro e resolvera desenvolver uma fazenda no Texas que rivalizasse a qualquer uma no Mississipi, embora ele não soubesse distinguir um boi de uma mula, ou um bezerro inteiro de um novilho castrado.

John estava derrotado tanto física como financeiramente. Precisava de emprego. O Exército não tinha lugar em suas fileiras para um escoteiro de muletas, e John necessitava de um local onde pudesse recuperar-se dos ferimentos de guerra. Devia sua vida a Price e achou que um ano de trabalho na fazenda do sulista pagaria sua dívida. Agora o ano terminava.

A casa estava pronta. O chão e as portas tinham um aroma delicioso de pinho. O local ainda cheirava a serragem mas o odor misturava-se à fragrância do carvalho e à do couro.

A mobília de Price McDaniel chegara naquele dia bem cedo, vinda do Mississipi: guarda-roupas, cadeiras, cômodas, espelhos, todos os tipos de camas, e uma enorme escrivaninha. E havia uma carta enfiada na gaveta do meio dessa escrivaninha.

Price chorara ao deparar com a carta. Lera-a no mínimo uma dúzia

de vezes e não parara de olhar para a foto que acompanhava a carta.3

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— As mulheres, ― ele disse — em especial as do sul, são como as gardênias. Você já viu uma gardênia, John?

— Não. ― John teve vontade de dizer que jamais vira uma lady também.

— São pálidas e têm as pétalas de cor creme. São úmidas e agradáveis ao toque. Mas você não pode tocá-las, pois adquirem nódoas. Tal qual gardênias são as mulheres sulistas. Não se esqueça disso, John, se um dia tiver a desgraça de conhecer uma delas.

John, com um lápis na mão, preparava a lista de suprimentos para a fazenda a fim de que atravessassem sem dificuldades o inverno que se aproximava.

"Não vou me esquecer", pensou ele. Aliás, suas chances de conhecer uma lady, fosse ela sulista ou de qualquer outro lugar, eram mínimas.

Aprendera muito cedo e a duras penas a não desejar o impossível. E uma lady ocuparia o topo dessa lista dos impossíveis.

Ele colocou o toco de lápis atrás da orelha, e disse: — Se você já terminou com suas lamentações, Price, podemos

agora tratar de outro assunto? Price pegou a carta e jogou-a longe. O fino papel foi cair aos pés de

John que o apanhou, alisou-o e pôs-se a imaginar como eram os delicados dedos que desenharam palavra por palavra. Leu algumas frases:

“Como ficamos contentes ao saber que estava vivo! Tivemos pena de você ao pensar nas circunstâncias de seu passado como prisioneiro de guerra. Mas lembre-se, o condado de Russell é e será sempre seu lar.”

— Você pretende voltar para sua casa no Mississipi?— John perguntou ao sócio.

Price tornou a encher o copo de uísque, ergueu-o como para brindar, e disse:

— Ao condado de Russell, Mississippi, onde um Russell é sempre um Russell e o resto é... o resto.— ele bebeu metade do copo e continuou: — À lady Emily Russell, para que floresça e prospere no solo do condado de Russell, onde florescem as pálidas e intocáveis gardênias.— erguendo o copo uma terceira vez, ele prosseguiu: — Agora para nós John, e Deus que me castigue se eu voltar ao Mississippi.

— Vai ficar, então?— o desapontado John perguntou. Sempre tivera esperanças de que Price um dia regressasse ao lar.

Afinal, ele pertencia ao Mississipi. De qualquer forma, não fora o único que fugira da prisão e que, com o uniforme dos ianques tomara o rumo do

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Oeste. Mas não pertencia mais ao Oeste. A guerra terminara, a paz se restabelecera, e o mundo dele era o dos cavalheiros refinados e das donzelas como gardênias. E podia se considerar feliz por ter seu lugar.

— Sim, vou ficar— Price respondeu. — O condado de Russell que vá para o inferno juntamente com todos os seus habitantes.— ele pegou a fotografia e, sem um último olhar, jogou-a na escrivaninha.

John pegou-a antes que caísse no chão. Hesitante, como se tivesse medo de encarar uma lady, fitou a mulher que com mãos delicadas escrevera a carta. Que rosto poderia ser mais impecável? Que pose mais perfeita? Que sorriso mais gentil?

Nenhum! O coração de John começou a palpitar com mais força ao olhar para Emily Russell, e com o polegar bronzeado acariciou a foto. Não se espantaria se a imagem começasse a descorar. O que mesmo Price dissera? Toque-as e elas adquirem nódoas.

John teve de limpar a garganta antes de falar, mas havia algo de pouco familiar em sua voz quando enfim disse:

— Trata-se de uma lady, Price. Não vai responder a carta? — Com os diabos, não!— Price encheu o copo mais uma vez. —

Desde quando você se preocupa com o que é correto? John teve vontade de responder: "desde um minuto atrás". Mas

apenas sacudiu a cabeça e insistiu: — É a coisa certa a ser feita. — Bem, então responda você, escreva para ela, se acha que é o

certo a se fazer.— e Price ainda disse: — Vá em frente, escreva! E ele escreveu. E aí, embora pretendesse abandonar a fazenda

terminado mais um ano, John Bandera lá ficou, esperando por uma resposta.

Quando a resposta chegou, endereçada a Price, John escreveu de novo.

E esperou de novo. E de novo. Seis anos mais tarde, muito depois de seu sócio bêbado ter partido

e desaparecido no mundo, John Bandera ainda continuava lá, ainda escrevendo e assinando "Price", ainda adorando a mulher parecida com uma gardênia.

CAPÍTULO I

Mississippi, 1872 — Emily Russell, você não vai sair daqui. Proíbo-a. Ponha essa mala

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no chão já. Está me ouvindo? Ponha essa mala no chão! — É claro que estou ouvindo, Dodie. Está gritando como uma

coruja, e eu não ficaria surpresa se todo o condado a escutasse. — Você não sairia desse jeito se seu irmão estivesse aqui. Depois

de tudo o que Elliot fez para ajudá-la?! Como pode ser tão ingrata? Emily enfrentou a cunhada e dirigiu-se, carregando a mala, para a

porta da frente. — Por onde anda Haley Gates?— disse Emily, procurando pelo

cocheiro. — Ele prometeu que viria me apanhar às dez horas em ponto. — Se conheço bem Haley Gates, o homem deve estar dormindo em

algum celeiro por aí.— Dodie pegou a mala da cunhada e começou a levá-la para dentro de casa outra vez.

Emily deu um pulo e agarrou sua bagagem. — Você não vai fazer isso. Vou-me embora, Dodie. Já falei, e pronto! — Para o Texas?! Texas! Lá, no meio dos ínDeus que podem até

escalpelar você! Só Deus sabe como gostariam de arrancar esses seus lindos cabelos louros.

— Prometo que prenderei bem meu chapéu na cabeça. E eu é que vou escalpelar Haley se ele não chegar nos próximos dois minutos.

Dodie deu um suspiro e sentou-se na cadeira de balanço. — Elliot vai ficar furioso quando voltar de New Orleans e souber que

você fugiu no meio da noite como uma ladra. Sabe disso, não? Ele vai ficar furioso. Sente-se responsável por sua segurança.

— São dez horas da manhã, Dodie, e não sou uma ladra. Tampouco uma prisioneira. Ao menos não mais.

— Uma prisioneira! Que coisa horrível de se dizer Emily, quando tudo o que fizemos foi cuidar de você desde a morte de seus pais. Tenho certeza de que eles estão se revirando no túmulo neste momento, vendo o que a idiota e sonhadora filha está fazendo.

Emily teve vontade de rir às palavras de Dodie. Porém Dodie estava provavelmente certa quanto ao que dissera sobre seus pais, Emily admitiu.

Acerca da palavra "sonhadora"... Bem, talvez estivesse certa também, mas de idiota ela não tinha nada. Não naquele momento, pelo menos.

Dodie de outro suspiro e acrescentou: — Como eu gostaria que o bom do sr. Gibbons não tivesse ficado

doente e morrido. Ele ia pedir você em casamento. Depois de tantos anos de timidez quando estava a seu lado, o pobre homem finalmente adquirira coragem para lhe propor casamento. Vi isso nos olhos dele.

— Talvez— Emily concordou.

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E ela teria se casado com Alvin Gibbons, pensou. E depois viveriam infelizes para todo o sempre. E acontecia que agora estava bastante viva e de partida para o Texas a fim de se encontrar com um homem que mal conhecia em carne e osso mas apenas através de cartas.

— Eu gostaria de matar aquele desgraçado do Price McDaniel por enfeitiçar você desse jeito— Dodie resmungou.

— Ele não me enfeitiçou.— Emily teve vontade de gargalhar na cara da cunhada por ser tão dramática. — Price nem mesmo sabe que estou indo ao encontro dele.

— Quer dizer que você pretende percorrer milhares de quilômetros para ver um homem, um traidor, diga-se de passagem, que pode nem mesmo estar lá quando você chegar.

— Para começo de conversa não são milhares de quilômetros e Price não é um traidor. Fez o que deveria fazer, Dodie, para sair daquela horrível prisão ianque. E você sabe disso muito bem.

— O certo era ele ter vindo para casa.— Ao encontro de que tipo de recepção? ― Emily fitou a cunhada

com ódio. As duas mulheres já haviam discutido o mesmo assunto centenas

de vezes durante os seis anos em que Emily mantivera correspondência com o suposto Price McDaniel. Porém Dodie nunca soube que a cunhada se apaixonara pelo homem. Emily não se abrira com ninguém.

Bem, essa não era exatamente a verdade. Emily confessara seu amor a Price numa carta. Escrevera-a na véspera do Ano-Novo, selara-a e a enviara no primeiro dia do ano de 1872.

“Se você acha que sou ousada e impudente, querido Price, aceito seu ponto de vista. Sua Emmy te ama e é até mais ousada a ponto de propor viver com você em pessoa em vez de apenas no papel. Mande me buscar, Price. Oh, meu querido, case-se comigo!”

A resposta chegara logo, e Emily abrira o envelope com mãos trêmulas para ler o amargo adeus.

“Algum dia espero que você me perdoe por a ter enganado. Querida Emmy, não escreverei mais.”

Naquela noite Emily chorara nos ombros de Alvin Gibbons e ele, de súbito não mais tão tímido, a consolara carinhosamente. Carinhosamente demais, talvez. Duas semanas mais tarde Alvin adoecia e morria.

— Por Deus!— Dodie exclamava agora. — Você mal conhecia Price 7

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quando o homem morou aqui e não ouviu uma palavra sobre ele em meses. Como sabe que ainda está no Texas? Como sabe que ainda está vivo? Ou mesmo que deseja vê-la?

— Eu sei— ela afirmou. Porém a única coisa que sabia mesmo era que precisava sair daquela casa. Naquele dia. Naquele momento.

Não seria necessário muito tempo para que todo o condado tomasse conhecimento de que a pobre Emily, a sonhadora solteirona, a mulher cujo noivo morrera havia três meses, iria ter um filho.

Haley Gates, o cocheiro, tinha a tendência de cuspir enquanto falava, talvez a causa fosse por ter perdido vários dos dentes dianteiros. Sentada ao lado dele no carroção, Emily ficou muito contente pelo fato de Haley estar quieto enfim. Mas já havia discursado sobre todos os podres do condado, e com detalhes. Apenas o próprio segredo dela, Emily concluiu, continuava a salvo.

Porém, se Haley lhe dissesse mais uma vez que ela estava sendo muito valente indo para o Oeste sozinha, ela teve dúvida se o estapearia ou lhe pediria para dar meia-volta e levá-la para casa. Não se sentia valente, de forma alguma. Sentia-se, isso sim, doente e apavorada.

Mas não, não voltaria a sua casa. A decisão que tomara não se baseava tanto no escândalo que provocaria com a gravidez, mas no futuro de um bebê nascido fora do casamento e numa comunidade conservadora que jamais perdoaria a pobre criança, como se a mesma tivesse alguma culpa.

Emily lançou um olhar ao infeliz homem a seu lado. Haley Gates já tinha quase quarenta anos de idade e ainda se tagarelava no condado sobre sua condição de filho ilegítimo. E quase todos se referiam a ele não pelo nome, mas como ao bastardo de Sally Gates.

Isso não aconteceria com seu filho, Emily repetia a si mesma. Ele precisaria ter uma chance nesse mundo intransigente. E ela se propusera providenciar tudo pelo bem do filho, embora apavorada pelo que fazia.

Arrependia-se agora de ter fechado os olhos naquela noite, fingindo que Alvin Gibbons era o homem que ela amava, que as mãos que a acariciavam eram as de Price McDaniel, que os beijos eram os desejados, e que ele a amava tão desesperadamente quanto ela o amava.

— ...amigos ou parentes? Com um salto, Emily se deu conta de repente de que Haley lhe

perguntava qualquer coisa e que ela não prestara atenção em uma única palavra. Pediu-lhe desculpas.

— Tudo bem, tudo bem, lady Emily. Toda mente tem direito a divagar num dia lindo como este. Eu estava apenas perguntando quem a senhorita planeja visitar no Texas, se amigos ou parentes. Não sei de nenhum Russell que tenha saído do condado recentemente.

— Apenas meu tio Randolph,— Emily respondeu. — mas ele foi para Washington.

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— Quer dizer que vai visitar um amigo? — Sim. Um amigo— ela mentiu. Mas, pensando bem, que importava agora contar a verdade a

Haley? Conhecendo Dodie como conhecia, a essas horas ela já devia ter enchido o condado do que se passava. E sem dúvida os sete condados da redondeza estariam a par dos fatos em uma semana apenas.

— Tenho mantido correspondência com Price McDaniel— Emily acrescentou com naturalidade. — Depois da guerra, ele decidiu permanecer no Oeste com o fim de criar gado. E cordialmente me convidou para visitar sua fazenda.

Haley coçou a cabeça. — McDaniel. McDaniel. Não me lembro desse nome.— sussurrou. — Bem, Price saiu de Russell há algum tempo já. Ele não tinha

irmãos e nem irmãs e seus pais já haviam morrido. Moravam naquela enorme casa branca na rua Solomon.

— Oh, esses McDaniel?— Haley deu um tapinha no joelho. — Lembro-me dele muito bem. E até o ajudei na mudança dos móveis para o Texas.

— Eu também me lembro dessa mudança— disse Emily. Ela se lembrava de ter enfiado um envelope na gaveta da enorme

escrivaninha de nogueira. E, um mês depois recebera, para grande surpresa sua, a resposta escrita em caligrafia bastante masculina. A tonalidade da carta fora quase poética, o que a surpreendera ainda mais, pois não era do tipo de Price, homem não dado a poesia. Como a guerra o mudara, pensara Emily na ocasião. E então, depois disso ela achava cada carta extremamente carinhosa, e se admirava pelo fato de aquele jovem duro ter se transformado num homem de meia-idade muitíssimo gentil.

Dali por diante, de mês a mês, de carta a carta, Emily se apaixonara cada vez mais por ele. A expressão “Querida lady Russell” fora substituída por “Queridíssima Emily”. Logo depois, quando ela pôs mais fervor e paixão em suas cartas, a resposta era iniciada com “Minha queridíssima Emmy”.

A última carta, molhada de lágrimas, fora enrolada num lenço de renda e colocada dentro da bolsa que Emily carregava agora no colo. As outras haviam sido amarradas com fitas de seda, de cores diferentes para cada ano, e postas dentro de uma maleta de couro. E, embora ela tivesse escolhido suas melhores roupas para levar ao Texas, nada era tão importante para Emily como as cartas de Price, que constituíam em sua mais valiosa posse.

— Lembro-me agora de a senhorita ter me perguntado se todos aqueles móveis haviam chegado bem ― Haley murmurou, sacudindo a cabeça. — Eu gostaria muito de saber se chegaram bem no Texas. A senhorita ouviu falar alguma coisa?

— A escrivaninha chegou, Haley. — Emily sorriu. — É tudo o que sei 9

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com certeza.

O cais em Vicksburg estava lotado quando eles chegaram, bem tarde, naquele dia. O carroção de Haley, puxado por mulas, não era o veículo mais modesto lá estacionado. Mas também não podia ser considerado como um dos melhores. Levando-se em conta, contudo, suas condições financeiras por ocasião da viagem, Emily achou que podia se considerar feliz por ter conseguido contratar um carroção, pagar a passagem do barco Memphis Zephyr cujas cabines, por sinal, já estavam cheias de fumaça.

— Depressa, Haley— ela disse, tirando do carroção a maleta com as preciosas cartas, antes que o cocheiro chegasse perto a fim de ajudá-la, ela pediu.

Emily correu para apresentar sua passagem ao comandante. Ele sorriu e perguntou:

— Viaja sozinha, lady Russell? — Sim. Depois de ter pegado o bilhete, tocando ligeiramente a mão de

Emily, ele acrescentou: — Cuidarei da senhorita. Boa família, essa sua gente. Estive com

seu tio, o senador, em uma ou duas ocasiões. — Que ótimo— Emily respondeu enquanto pensava que tio

Randolph seria o primeiro a renegá-la ao tomar conhecimento de sua condição.

— Dê minhas recomendações a ele quando o vir, sim? — Pois não, comandante. — É aquele o carregador com sua bagagem?— ele perguntou,

apontando para Haley que chegava carregando as malas. Em seguida, acenando a um marinheiro o comandante ordenou: — Leve a bagagem de lady Russell ao camarote dela, sim?

Emily foi se despedir de Haley. Ele olhava para o chão, pois a ponta gasta de uma de suas botas estava presa entre duas pedras.

— Bem, acho que está na hora de a senhorita embarcar— sugeriu ele. Depois presenteou-a com um sorriso de sua boca desdentada. — Eu gostaria muito de ir com a senhorita, lady Emily. Adoraria conhecer o Oeste, onde tudo é absolutamente novo.

— Absolutamente novo— Emily repetiu, apesar de sentir um nó na garganta, de repente com mais pena de Haley do que dela mesma. — Nesse caso, venha comigo— ela disse, surpresa por constatar como adoraria que Haley aceitasse seu convite. — Venha comigo para o Oeste onde tudo, na verdade, é absolutamente novo.

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A bota de Haley ficou presa nas pedras de novo. — Seu convite é tentador, lady Emily, porém moro com minha mãe

no condado de Russell. Sabe, não? Ela não está muito bem de saúde e tenho certeza de que morrerá se eu a deixar sozinha.

Emily ficou tão emocionada por causa da lealdade do homem pela mãe que seus olhos encheram-se de lágrimas.

Você é uma mulher feliz, Sally Gates, ela pensou. Afinal, seu filho bastardo ficou sendo sua bênção, concorda? Espero que eu tenha a mesma sorte.

— Haley, sei que lhe devo apenas um dólar pela viagem.— Emily remexia na bolsa enquanto falava. — Mas, tome aqui. Quero que fique com isto.— ela pôs na mão do cocheiro uma moeda de ouro de cinco dólares.

— Oh, lady Emily, mas isto é demais! O Memphis Zephyr apitou três vezes, quase ensurdecendo quem

estava no cais.— Isso é demais!— Haley insistia, agora gritando.— Preciso correr, senão perco o barco.— Emily segurou as saias e

começou a se apressar na direção do embarcadouro. Mas ainda disse ao cocheiro, de longe: — Guarde esse dinheiro, Haley. Compre alguma coisa bonita para sua

mãe. — É muita bondade sua, lady Emily. Faça uma boa viagem e

aproveite bem todas as novidades do Oeste. Quando voltar para casa, conte-me tudo o que viu.

— Contarei, Haley— ela mentiu, tentando sorrir apesar das lágrimas.Emily acenava do convés enquanto o navio erguia a prancha de

embarque como se ele, também, desse um longo e último adeus ao Mississipi e a todos os que estavam reunidos no cais.

CAPÍTULO II

John Bandera estava cansado até a medula dos ossos. Apenas chegara de Abilene depois de uma terrível temporada onde perdera dois homens e no mínimo duzentas cabeças de gado. Os animais que sobreviveram voltaram num estado lastimável. Por isso, em vez de conseguir seus costumeiros cinquenta dólares por cabeça, no fim da viagem John teve de se considerar feliz com apenas trinta. Pagara os

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empregados, deixara-os divertindo-se nos salãos, e retornara, solitário, para o sul do Texas.

Era bom estar em casa, pensava, ao tirar as botas empoeiradas e sentar-se no pórtico. Deus! Era um paraíso estar em casa, não apenas bom. Talvez até trocasse o nome de sua fazenda para Puro Paraíso. Ou simplesmente para Lar.

John pensava no passado, no início de sua vida no Texas, quando mancava devido aos ferimentos de guerra. No decorrer dos anos se recuperara quase totalmente. E agora, sentado no pórtico que ele e Price haviam construído, concentrava o pensamento em seu sócio que abandonara tudo e todos no Texas, conservando como único amigo a garrafa de uísque.

Esta sempre ao seu alcance. Numa linda manhã, sem aviso nenhum ou despedidas, a garrafa e

Price McDaniel simplesmente desapareceram. Meses mais tarde ele mandara um telegrama pedindo a John que lhe remetesse dois mil dólares aos cuidados de uma senhora em Denver, sem dúvida em pagamento de suas bebedeiras. O cheque fora enviado, descontado, e nunca mais houve uma única palavra de Price. Pelo que John imaginava, seu sócio estava morto.

E agora, após sua volta de Abilene, pensava em descansar por algum tempo até o começo do outono. Talvez decidisse passar uns dias em Corpus

Christi ou em Brownsville. Uma longa e sonolenta semana numa enorme cama de latão com lençóis amarfanhados na companhia de uma senhorita bronzeada, era do que necessitava para acalmar não apenas o corpo, mas a mente também. Quanto ao coração, a coisa era outra.

Suspirou, olhando o espaço, para nada em particular, recusando concentrar-se em algo que estava sempre à tona de seus pensamentos. Resistia até em pensar no nome dela. Quase resistia. Mas... não completamente.

Emmy. Deus, como a amava! Como tinha saudade das maravilhosas cartas. Voltara de sua viagem com esperança, quase rezando, para que ela lhe houvesse escrito mais uma vez apesar do fato de lhe ter sugerido que não o fizesse. E Emily não escrevera.

Uma nuvem de poeira chamou sua atenção. Da casa, que fora construída no que chamavam de colina naquela área plana, era possível ver vários quilômetros além, em todas as direções. E agora, na ponte sobre o riacho Sweetwater, John divisava a escura silhueta de um carroção puxado por dois cavalos.

Droga! Esperara ter a casa só para si durante alguns dias e sua governanta a sra. Fuentes, e a fllha, chegavam das férias em Nuevo Leon mais cedo do planejado.

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— Droga!— ele disse em voz alta, levantando-se para apanhar os óculos de alcance que deixara sobre a mesa.

A última coisa que desejava no momento era a volta da jovem Lupe, a irrequieta filha da sra. Fuentes. Ele nunca teria contratado a viúva mexicana se tivesse sabido que o trato incluía uma jovem de dezessete anos.

Blasfemando mais uma vez, John preparou-se para receber as duas. Esperava ver a qualquer instante, resignado, os cabelos grisalhos da governanta e os negros de Lupe. Porém, jamais esperara deparar com uma cabeleira loura, brilhando à luz do entardecer, como girassóis, enquanto o carroção seguia pela estrada acidentada.

Achou que seu coração iria parar de bater; e sua boca ficou seca. Cada nervo do corpo reagiu como se ele houvesse divisado um bando de renegados comanches que iriam roubar-lhe o gado.

Blasfemou ao jogar o telescópio longe, esfregou os olhos. Talvez estivesse com a vista perturbada. Mãe de Deus, faça com que seja isso. Ou quem sabe estivesse exausto e sua fantasia se transformara em realidade, como miragem num deserto. Ou talvez, e mais provável, a necessidade de amar o fizera perder a razão.

Sua mão tremia tanto quando tentou pôr o telescópio junto aos olhos mais

uma vez, que teve de usar a outra mão como auxílio. Enxergou melhor, viu o carroção de novo, e focalizou a mulher!

Emmy! "Droga! Amaldiçoados sejam aqueles cabelos cor de ouro da linda

cabeça." Mesmo a alguns quilômetros de distância imaginava estar vendo os olhos azuis da cor do céu, os traços perfeitos da mulher.

Então John Bandera se amaldiçoou, desejando morrer. O amor vinha ao encontro dele, e sua vida lhe pareceu arruinada.

O coração de Emily pulsava mais depressa do que os dois cavalos que puxavam o carroção. Ela sentia-se como se estivesse viajando durante três longos anos. Contudo, apenas três dias se haviam passado desde que embarcara em Vicksburg para depois se transferir a bordo de um navio maior em Nova Orleans a fim de seguir pela costa do Golfo até Corpus Christi.

O tempo todo suas emoções foram um misto de esperança e medo, de brilhante antecipação e negro pavor. Porém, naquele momento, aproximando-se da fazenda, uma calma como nunca sentira antes tomou conta dela. Não tanto por estar próximo o resultado de sua façanha, mas, não importando com o que viesse, teve certeza de que agira acertadamente indo até lá.

A vegetação, selvagem, era tal qual Price a descrevia em carta após carta. Cada centímetro de terreno foi surpreendentemente familiar a

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Emily, como se ela tivesse estado naquele lugar antes. A relva era muito verde, também como Price descrevera, e o céu se estendia de leste a oeste sem uma única nuvem. Flores silvestres cresciam em profusão, como enorme tapete numa mistura de vermelho, azul e amarelo.

O gado que pastava ergueu a cabeça quando o carroção passou, fitando-a placidamente para depois voltar ao banquete. Ela vira bandos de antílopes, de veados, e até alguns javalis cheirando as raízes de um arbusto.

Tudo lhe era familiar, porque Price pintara aquelas cenas com arte e detalhes, nas maravilhosas cartas.

Emily sentia-se, de fato, como se já tivesse ido à fazenda. Tudo se apresentava conforme esperara.

Exceto o calor. Terrível! Price dissera que o clima era quente, mas não explicara que o corpo podia quase derreter, como acontecera com o dela o dia inteiro. Claro, Price não usava saias e mais saias, nem colete que, embora não muito apertado, a fazia ter a impressão de que barras quentes de ferro circundavam sua cintura.

O homem que conduzia o carroção usava um chapéu de palha de aba larga. Porém, mesmo assim, sua camisa estava ensopada de suor.

Mas Emily não teve pena dele, pois cobrara uma soma exorbitante para levá-la de Corpus Christi à fazenda. E não dissera mais do que três ou quatro palavras desde o momento da partida, o que a fez ter saudades do amável tagarelar de Haley Gates. O que estaria Haley fazendo agora em Mississippi?

Mississippi... Como sua casa estava longe! O que a esperava no futuro? Não tinha a mínima ideia.

Por um segundo, a coragem a abandonou. Essa parte sul do Texas, essa terra de novas coisas, pareceu-lhe perigosa, muito perigosa. Um lugar de plantas cheias de espinhos, de árvores e animais em profusão. Mississipi era supercivilizado, em comparação. Seguro também. Talvez devesse ter ficado lá, apesar do escândalo a caminho. Ao menos as pessoas a conheciam e se ocupariam dela, mesmo que fosse para bisbilhotar.

O cocheiro que a conduzia naquele momento foi o primeiro texano que ela conheceu. Além de pouco comunicativo, parecia não ter noção de onde estavam. Quando Emily apontava para os pontos de referência que Price mencionara, ele apenas sacudia os ombros sem dizer nada.

Afinal, quase chegavam. O coração de Emily palpitou mais forte no instante em que os cavalos bateram com as patas nas margens rústicas do riacho Sweetwater. Bem diferente dos arroios verdejantes do Mississippi, aquele era tal qual um rio estreito, agora marrom e quase seco, à espera das chuvas de inverno. A boca de Emily ficou seca como o

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riacho. Aí, de repente, a casa de Price surgiu no alto da colina. Emily

esqueceu-se do medo. O sol se punha atrás da construção de dois andares, com um terraço coberto na frente. E os raios solares pintavam tudo de vermelho, rosa e laranja. Exatamente como imaginara, ela refletiu. Não. Melhor... porque, na frente do pórtico havia um homem com um pequeno telescópio na mão, focalizado na direção dela. Seria Price?

Oh, por favor, meu Deus, ela rezou. Faça com que seja Price. Faça-o chamar-me de Emmy. Não permita que ele me mande embora. Não permita que ele nos mande embora.

As galinhas da sra. Fuentes ciscavam a terra quando o carroção entrou no pátio. Na estrebaria, os cavalos aproximaram-se da cerca relinchando para investigar a causa da mudança da corrente de ar, e para farejar os recém-chegados. Mas nada a impressionou tanto como a vista de John Bandera apoiado no gradil do pórtico, braços cruzados, parecendo bem à vontade. Porém essa atitude escondia o aperto do estômago e o pânico do cérebro.

Ele decidira mentir. Diria à mulher, a sua amada Emmy, que Price estava ainda em Abilene e que o dia de sua volta era incerto. Além disso, John não tinha ideia do que mais poderia dizer ou fazer.

Contudo, a mentira inicial lhe parecera boa. Mais tarde, quando

pudesse pensar mais claramente, teceria uma malha em volta dessa mentira. No momento, tudo oque conseguiu fazer foi olhar estupefato para a mu-lher sentada no carroção.

Ela estava lá! Emmy em carne e osso! John mal podia acreditar. A fotografia criava vida. Mas os cabelos eram mais dourados, mais

lindos do que supusera. Os olhos grandes, e muito azuis. A pele clara e luminosa como a aurora.

Seis ou sete anos se haviam passado desde a data em que a foto fora tirada, e esses anos adicionaram impressionante sensualidade aos lábios dela, como também um arredondamento no corpo tornando-a mais mulher. Emily Russell era mais linda do que John ousara sonhar. Por segundos desejou que sua Emmy fosse horrível, que na foto artifícios houvessem sendo usados. Assim, seria mais fácil esquecer-se dela.

— Ei, o senhor aí— o cocheiro chamou-o de seu assento no carroção. — Esta senhora procura a fazenda de John Bandera e Price McDaniel.

— Encontrou-a— John respondeu descendo os poucos degraus do pórtico e indo ao encontro dos recém-chegados.

Procurava manter uma expressão neutra, fingindo não reconhecer o amor de sua vida, ignorando as batidas de seu coração, que eram como marteladas.

— É o sr. McDaniel?— o cocheiro indagou.15

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— Não. Sou... — John Bandera!— Emily exclamou alegremente, debruçando-se na

janela do veículo. — Eu o reconheceria em qualquer lugar, pela descrição de Price.

Quando Emily estendeu-lhe a mão, John segurou-a como se fosse um imã.

— Sou Emily Russell. Do condado de Russell, no Mississippi. Talvez Price tenha mencionado meu nome.

— Sim, ele mencionou. Sentindo que segurava a mão de Emily por muito tempo já, largou-a

e afastou-se. — Price não me esperava— ela sussurrou. — Price não está aqui no momento. A alegria abandonou o olhar de Emily, John notou, como se alguém

lhe houvesse dito que Price morrera. — Onde... — Em Abilene. — Abilene? E quando... — Acho que ele vai demorar um pouco, lady Russell. — Entendo...— não, ela não entendia. Ficou terrivelmente

desapontada, sentiu um aperto no peito, um nó na garganta. Quase não podia falar. — Vim de tão longe...— murmurou.

— Pretende ficar ou voltar ao lugar de onde veio? — o cocheiro perguntou, de mau modo. — Se for para Corpus Christi, a viagem lhe custará o triplo, considerando-se que vai escurecer logo.

Emily não respondeu. Ficar? Voltar? Ela não entendeu o sentido das palavras, e- menos ainda que lhe eram destinadas. Escurecer logo? Iria mesmo? Emily sentiu-se de repente apatetada. Teria o sol excessivo lhe roubado a capacidade de falar e de se mover?

O cocheiro a fitava, franziando a testa. John Bandera também a encarava, mas com expressão enigmática.

— Bem?— o cocheiro disse. — Como vai ser, lady? Fica ou vai? Não tenho o dia inteiro para permanecer aqui, aguardando sua decisão.

— Ela fica. E então, com uma ruga na testa, John Bandera tirou a bagagem de

Emily do carroção. Dirigindo-se a ela, ordenou: — Venha. Com enormes mãos segurou-a pela cintura erguendo-a e colocando-

a no chão, antes que Emily se desse conta do que se passava.16

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— Quanto a lady lhe deve?— John perguntou ao cocheiro. — A viagem está paga— o homem respondeu. — Nesse caso, tudo bem.— John deu uma palmada no lombo de um

dos cavalos, dizendo ao cocheiro: — Vá embora, então. Emily e John demoraram-se fora ainda alguns segundos,

observando o veículo que se afastava. Vai? Fica? Emily não decidira ainda, mas lá estava ela, afinal.

Perguntava-se se o cocheiro a ouviria, caso o chamasse. Porém, sem uma palavra, John pegou as malas e entrou. Emily, embora não se considerando bem-vinda, seguiu-o, como se

acompanhasse um funeral. — Você vai ficar confortável aqui. Por enquanto, ao menos— ele

disse, colocando a bagagem de Emily na cama da sra. Fuentes. — Minha governanta e a filha vão se demorar no México por algum tempo ainda— John declarou. Mas logo corrigiu-se: — Nossa governanta, quer dizer.

— A sra. Fuentes, não é?— Emily ainda estava parada na porta do quarto.

— Price me escreveu sobre a governanta. Sobre as galinhas, sobre o jardim que ela cuidava, e sobre sua filha Lupe. Sabe, quase me sinto como se as conhecesse.

Ainda de costas para Emily, John refletia acerca do que fizera. Fechou os olhos e suspirou. Deus... aquilo não iria funcionar. Ficaria louco tentando tomar cuidado com cada palavra que saísse de sua boca.

Devia tê-la mandado de volta. Devia ter pago o maldito cocheiro, o triplo, tudo bem, com a condição de que levasse Emily para Corpus Christi. Devia ter dito: "Price McDaniel foi embora há muito tempo já. As prováveis chances são de que esteja morto. Sua viagem foi em vão, lady Russell. Adeus!" Essa, afinal, era a verdade.

— Foi muita bondade sua me deixar ficar, sr. Bandera. Emily estava bem atrás dele agora. Se virasse, John poderia tomá-la

nos braços como desejara tanto fazer, ano após ano, noite após noite. Mas quando se virou, Emily deu um passo atrás, com certeza

temerosa. Afinal, ele era um estranho. Não era Price. — Provavelmente está com fome, lady Russell— disse. — Vou lhe

preparar alguma coisa para comer. — Seria maravilhoso.— ela começou a tirar as luvas, um delicado

dedo de cada vez. — Chame-me de Emily, por favor. Sinto-me como se o conhecesse há muito, sr. Bandera, para chamá-lo por seu nome de batismo. Posso? John?

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— Claro. Por que não? — Bom.— ela jogou as luvas na cama e tirou os grampos que

prendiam o chapéu. — Você vai achar esquisito o que vou dizer, John, mas esta fazenda é mais como meu lar, em muitos aspectos, do que Mississippi era.

John não respondeu. Já ia saindo do quarto, depressa, antes que os cabelos dourados de Emily ficassem totalmente liberados, uma vez tirado o chapéu.

Exausta, Emily permaneceu muito tempo acordada na estreita cama da governanta, sob lençóis bem passados, e colcha bastante gasta. Tentava pensar em Price, mas a imagem que lhe vinha à mente era a de John Bandera. Que homem interessante era ele! E nada parecido com a descrição feita por Price.

Emily lembrava-se de uma carta que Price lhe escrevera referindo-se a John como um cachorro vira-lata, um mestiço de origem indefinida. Ela respondera pedindo-lhe detalhes. "A mãe era comanche", Price respondera. "Quanto ao pai, presumo que tenha sido branco, de olhos claros e muito alto,

John tem quase dois metros de altura, e deve ter desaparecido sem nem no menos estar presente ao nascimento do filho." "Bandera não fala muito", Price escrevera em outra carta. Conhecendo Bandera agora, Emily achou um pouco exagerado o comentário sobre a mudez do homem. Bandera era um homem de poucas palavras, isso era verdade. A impressão de Emily naquela noite foi de que ele tinha mesmo dificuldade em falar e era grato às pausas da conversa. Aliás, pareceu ter ficado aliviado quando chegou a hora de dizer "boa noite".

Era um homem peculiar, sem dúvida. E ao mesmo tempo muito atraente, cujos traços pareciam ser o resultado de uma mistura do melhor de cada um de seus antepassados. Os cabelos escuros, de índio, tinham uma ligeira ondulação, dádiva do pai, sem dúvida, como também um quê de acinzentado que brilhava em seus olhos castanhos. Os traços não eram bem esculpidos como os de Price, mas tinham uma irregularidade agradável, bem masculina, da testa ao queixo.

Ele era tão diferente de Price como a noite do dia. No entanto, houve um momento ou outro enquanto comiam em que John a fez se lembrar de Price, não em semelhança física mas no vocabulário. De vez em quando ele usava uma palavra ou uma frase em que soava terrivelmente como Price. Estranho! Porém, ela não devia se surpreender com aquilo, pois os dois homens conviveram durante anos no Exército e agora na fazenda por oito anos mais ou menos. Era muito natural, portanto, que tivessem os mesmos hábitos, as mesmas maneiras de agir e modos de falar.

Emily finalmente adormeceu pensando em como seria o som da voz de Price atualmente, e se era tão profundo como o de John Bandera. E se o Price que ela amara tanto adquirira o sutil sotaque espanhol que tornava o

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tom de voz de John tão sensual e tão sofisticado. John podia ser um homem de poucas palavras, mas quando

pronunciadas, soavam como música.

CAPÍTULO III

A linda hóspede, não convidada, dormira até tarde na manhã seguinte, pelo que John ficou muito grato pois lhe dera um tempo adicional, muito necessário aliás, para pôr tanto a casa como a mente em ordem.

Na noite da véspera, depois de Emily ir à cama, ele pegou todas as cartas e a fotografia e guardou-as no cofre onde punha os documentos da propriedade e o dinheiro para o pagamento dos empregados.

No momento nenhum deles apareceria para ser pago, graças ao bom Deus. Todos já haviam recebido seu dinheiro. Quanto à sra. Fuentes e à filha, quase não falavam inglês. Portanto, ele não precisava se preocupar com a possibilidade de as duas mulheres mencionarem qualquer coisa sobre o desaparecimento de Price.

Pelo que sabia, o espanhol de Emily limitava-se à meia dúzia das palavras que ele usara nas cartas. Além disso, Price sumira antes de a governanta ter sido contratada para trabalhar na fazenda. Mãe e filha nem ao menos sabiam o nome do antigo sócio.

Era diferente, contudo, no caso dos antigos vaqueiros, dos que lidavam com o gado desde o início da propriedade. Felizmente dois dos mais velhos, Diego e Hector, conheciam do inglês apenas o suficiente para encomendar almoço num restaurante em Abilene. Mas havia Tater Latham, que não apenas falava inglês mas com voz tão alta que as pessoas estavam sempre lhe pedindo que baixasse o tom. Tater poderia consistir num problema. Esse sim.

A solução óbvia seria mandar Emily para casa, para seu próprio lar no Mississippi. E durante uma longa noite sem dormir, John decidira exatamente isso. Mandar a linda lady Russell de volta ao condado de Russell, seu verdadeiro lar.

Mas não ainda.Deus, não ainda.Embora tivesse se apaixonado pelas cartas de Emmy, John levara

apenas minutos para se dar conta de que aquelas cartas haviam sido o reflexo perfeito da mulher de carne e osso. Emily era tão inteligente quanto linda. Tão bondosa quanto honesta.

Uma lady da cabeça aos pés, e mais sensual do que ele poderia ter imaginado através das cartas, com aqueles lábios carnudos e olhar

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brilhante. O sotaque de Emily lembrava o de Price, porém a voz de seu sócio estava sempre impregnada de sarcasmo enquanto que a de Emily lembrava o aroma das flores do campo.

E apesar de ser uma lady, ela não lhe dera a mínima indicação de que a cor de sua pele a ofendia, ou de que seu sotaque lhe machucava os ouvidos, ou sua origem a perturbava. Emily não possuía preconceitos de espécie alguma.

Na noite da véspera John examinara a calma expressão do rosto dela achando que talvez Emmy não se importasse a mínima por ele não ter olhos azuis, pele clara, e por não pertencer à elite social como Price. Mas, claro, devia se importar. Como poderia ser o contrário? O caso era que lady Emily Russell, do condado de Russell, Mississippi, parecia ser uma pessoa bondosa demais, gentil demais, uma verdadeira lady, para demonstrar desprezo por

quem quer que fosse. — Você não passa de um idiota— John sussurrou para si mesmo. —

Idiota! Ele blasfemou mais uma vez e tirou da gaveta da escrivaninha uma

folha de papel com o fim de fazer a lista dos suprimentos necessários à fazenda, como farinha, sal, ração para as galinhas, metros e metros de corda. Assim, desviaria o pensamento da mulher que dormia ali perto, no quarto da governanta.

Havia registrado apenas alguns itens quando ouviu a voz suave dela.

— Bom dia, John. Emily aparecia de repente na porta do escritório, enrolada num

robe de seda azul, e com os cabelos dourados soltos caindo pelos ombros, tal qual quentes raios do sol da manhã. Depois ficou ali parada, os olhos na escrivaninha.

— Oh, você está trabalhando... Desculpe-me, John. Não tive intenção de interrompê-lo.

— Não, tudo bem. Não está me interrompendo. Eu apenas... As palavras morreram em sua garganta de repente ao olhar para a

lista e para a caligrafia do que estava escrito. Teria ela percebido alguma coisa? Com um movimento rápido virou a folha.

— Isto pode esperar— disse, pondo a caneta de lado e levantando-se da cadeira.

Emily continuou olhando para a escrivaninha, com um ricto melancólico nos lábios e uma luz estranha no olhar.

— Eu pensava em Price— murmurou, sonhadora. — Imagino que aí era onde ele se sentava para escrever minhas cartas, não era?— ela fez um gesto apontando a cadeira da qual John acabara de se levantar.

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— Talvez. Não sei.— John sacudiu os ombros. Ela deu uns passos à frente e segurou a caneta, com tanta delicadeza como se fosse um objeto precioso.

— Você deve me achar uma tola por ser tão sentimental acerca de um objeto inanimado como este. Mas é que...— Emily segurou a caneta com força e seus olhos ficaram cheios de lágrimas. — Quando você acha que Price voltará de Kansas? Em alguns dias? Semanas?

— Não sei.— nunca, ele quis dizer. Jamais.Sob o manto dourado dos cabelos, John pôde perceber o suave

tremor dos ombros dela. Teve vontade de tomá-la nos braços, de confortá-la. Precisou apertar as mãos para se conter. Emily parecia tão frágil naquele momento, tão pálida, tão vulnerável! Achou que Price usara a palavra certa ao comparar as beldades sulistas a gardênias. Toque-as e elas adquirem nódoas.

Emily pôs a caneta sobre a escrivaninha com extremo cuidado, suspirando, e depois encarou John, tentando um sorriso.

— Bem, chega disso— sussurrou. — Ninguém deseja uma hóspede chorona, não é verdade? Daqui por diante procurarei ser melhor companhia, John. Prometo. Agora, não permita que eu tome mais de seu tempo. Não quero desviá-lo do trabalho.

— Não há muito a se fazer numa fazenda de gado nesta época do ano.

John gostaria que houvesse. Gostaria que houvesse toneladas de trabalho para distraí-lo. Uns vinte cavalos para treinar. Uma centena de bezerros para cuidar. Enfim, mil atividades que ocupassem todo seu tempo. Qualquer coisa que pusesse mais distância entre si e aquela mulher. Talvez essa não fosse má ideia. Distância.

— Eu planejava sair a cavalo hoje para verificar se há barracões que necessitem de reparos— John declarou. Emily fitou-o com olhar tão brilhante, que ele se surpreendeu dizendo coisas que jamais ousaria dizer se estivesse em estado normal: — Que tal você ir também? Se quiser, claro. Pode conhecer parte da fazenda.

Antes que ele pudesse retirar o convite, Emily respondeu, com o rosto iluminado:

— Oh, eu adoraria. Vou me aprontar num instante. Emily examinou-se o quanto pode no pequeno espelho que ficava

entre o crucifixo de madeira da sra. Fuentes e o candelabro com a vela. Amarrou o colete deixando-o um tanto folgado e pôs seu mais leve vestido de musselina. Tinha aspecto saudável mas se achou um pouco gorda. Afinal, estava quase no quarto mês de gravidez. Contudo, grávida ou não, aguardava com entusiasmo a excursão pela fazenda.

— É melhor levar alguma coisa para passar a noite.

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Como Emily arregalou os olhos, ele acrescentou:— Sabe, estamos no Texas. Talvez não possamos voltar esta noite.Emily aceitou a explicação e se surpreendeu pelo fato de não se

perturbar em passar a noite na mata, na companhia de um estranho mestiço de índio. Muito pelo contrário. Queria conhecer tanto quanto possível a fazenda de Price; porém, mais do que isso, aguardava com ansiedade ficar ao lado de John Bandera, ouvir-lhe a voz profunda com sotaque espanhol, e ver os olhos castanhos com um quê de acinzentado.

"Muito bem, Emily Russell, sua assanhada!", uma voz interior sussurrou.

Ela sorriu ao se olhar no espelho, pensando que só por estar no Oeste já se livrara de vários constrangimentos da sociedade que se considerava elite,

mas que ela considerava esnobe. Por um segundo teve vontade de descarregar o carroção, de levar a

madeira e as ferramentas ao depósito, e de dizer a Emily que o vento estava ameaçador ou que seu cavalo não parecia bem, ou que o eixo do veículo tinha algum problema, ou de inventar qualquer coisa para que não tivesse de pôr as mãos nela.

Mas Emily já havia fechado a sombrinha, arregaçado as saias e agarrado a lateral do carroção para subir. Porém teria estatelado no solo se John não a tivesse amparado.

Ele ergueu as mãos no instante em que enxergou Emily solta no ar, e assim ficou por segundos, atônito. Mas logo se viu com ela nos braços, juntamente com quase dez metros de saias e a maldita sombrinha.

O grito inicial de Emily se transformou logo numa gargalhada, e os lindos olhos azuis brilharam ao se fixarem nos de John que logo os comparou aos lagos das altas montanhas e ao céu de verão. Lembrou-se de como adorara o senso de humor contido nas cartas dela, que provocava gargalhadas cada vez que as lia. Quis fazer coro à risada de Emily, naquele momento, mas hesitou. Não ousou.

Em vez disso, blasfemou em espanhol e repreendeu-a:— Precisa ter mais cuidado, Emily. Poderia ter quebrado o pescoço.Ela assustou-se com o tom de voz de John e parou de rir

imediatamente. A luz do olhar escureceu. O adorável brilho desapareceu.John ergueu-a bruscamente até a altura do assento do carro e

ordenou:— Segure-se bem. Há uma boa distância daí até o chão.— Emily

sacudiu a cabeça demonstrando que havia entendido e pensou que o tombo teria sido bem mais perigoso do que John imaginara, considerando-se seu adiantado estado de gravidez. Fato de que se esquecera por completo ao tentar subir na carroça sem a ajuda dele.

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Desde o instante em que chegara ao Texas, Emily sentia-se jovem e aventureira. Isso não era bom. Aos vinte e seis anos de idade ninguém podia ser tão jovem. E grávida de quase quatro meses, não devia se sentir inclinada a aventuras. Afinal, grávida ou não, não deveria ficar tão excitada à perspectiva de fazer uma excursão com um homem que mal conhecia.

O que pensaria o pessoal do condado de Russell sobre seu comportamento ultrajante? O que pensaria Price quando soubesse que ela saíra a passeio com seu sócio? Com certeza não aprovaria.

Porém, tão logo pensou nisso deu-se conta de que era ridículo se preocupar com a aprovação ou desaprovação de Price ou de qualquer outra pessoa.

Sua reputação já estava arruinada. Já era uma mulher perdida. Emily abrira a sombrinha e a colocava acima da cabeça quando

sentiu que o assento ao lado cedia. De repente, viu-se grudada a John, do ombro à coxa.

— Pronta?— ele perguntou."Pronta para quê?", Emily pensou, antes de enunciar um alegre

"sim". — Vamos então— disse John, com suas enormes e bronzeadas mãos

postas nas rédeas. As três da tarde o sol era ainda muito quente, e os atingia como

marteladas de fogo. Do lado oeste o céu estava claro. Mas ao sul apresentara-se amea-çadoramente escuro durante a última hora, e no momento prometia chuva. John não gostou daquilo nem um pouco.

Ele preocupava-se com Emily apesar de ela dizer o tempo todo que estava habituada ao calor. Eles pararam um pouco para comer, mas depois de um ovo cozido Emily sentiu-se mal. E quando ela pediu licença e desapareceu atrás de uma árvore, John percebeu que o ovo voltava do estômago.

E agora, com ameaça de tempestade, ele se amaldiçoou por havê-la trazido consigo. Devia ter concentrado seu olhar no céu em vez de nos olhos da mulher. Devia ter pensado no conforto de Emily em vez de em seu desejo de estar perto dela. Afinal, ela não era uma camponesa, acostumada ao sol e a viagens sem conforto. Era, conforme Price dissera, uma gardênia. E, embora nunca tivesse visto uma, John podia imaginar a cor delicada da flor depois de ter visto Emily.

Desviou o olhar do céu para fixá-lo na mulher a seu lado. Os olhos de Emily estavam brilhantes como sempre, e seus lábios abriram-se num sorriso de satisfação.

— Estou adorando o passeio, John— ela disse. — É difícil acreditar que já viajamos durante cinco horas e ainda estamos em suas terras. Você e Price se saíram muito bem na vida.

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— Acho que sim. Não é tão difícil, contudo, quando um sócio fornece o dinheiro e o outro o trabalho. É o que Price sempre dizia, afinal. O que ele sempre diz — John se corrigiu depressa.

Emily fitou-o espantada e John lembrou-se imediatamente de que repetia o que ele mesmo escrevera numa das cartas, anos atrás.

Droga! Cada vez que ele abria a boca se enterrava mais. Havia tanto que não podia dizer que se tornava difícil falar o que quer que fosse. Não conseguia se lembrar.

— Price adora este lugar— Emily comentou. — Talvez não gostasse muito no início, mas tenho a impressão de que, no decorrer dos anos, a fazenda

passou a ser seu lar. Suponho que o mesmo tenha acontecido com você.

— Acha? — Venho observando-o hoje, o tempo todo. O modo como seus

olhos bebem a paisagem, o modo como sorri quando vê os bezerros correndo atrás da mãe e os veados desaparecendo nos arbustos. Vi preocupação em seu olhar quando apontou, quilômetros atrás, a armadilha feita para apanhar animais selvagens.— em seguida, com um sorriso brejeiro e erguendo um dedo, ela acrescentou: — Você não me engana, John Bandera.

— Não?— Não. Você ama cada centímetro deste lugar como Price o ama.— Talvez— John respondeu, lembrando-se de como seu

desaparecido sócio chegara a odiar a poeira que cobria tudo, o calor insuportável e, no fim, até a vista do gado. Price chegara a falar em voltar para o Mississippi, o menor de dois males, ele dizia, antes de subitamente desaparecer para lugares desconhecidos, e com certeza não melhores do que os anteriores.

Emily fechou a sombrinha, pois o sol cedera lugar a nuvens escuras. Uma rajada de vento arrancou a fita de seus cabelos.

— Uma coisa que Price mencionou foi que o que ele ama especialmente aqui é ver a mudança do tempo chegando— Emily comentou. — Ele diz... Oh, como foi que ele descreveu isso? Ele diz que é um pouco como observar um rebanho de búfalos fugindo em debandada pelo céu.— Emily ergueu o olhar para cima. — Price tem razão, posso ver isso agora mesmo. Parece mesmo um grande rebanho de búfalos.

Búfalos ferozes, também, John pensou. E vêm depressa em nossa direção. Ele e Emily estavam ameaçados de ser atropelados e esmagados pelas patas poderosas desses animais. John admitiu por segundos chicotear o cavalo a fim tentar fugir da tempestade. Porém percebeu logo que não adiantaria. Embora ele tivesse enfrentado apenas um temporal com ventania antes, na Índia, aprendera muito bem que não se conseguia

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fugir dos demônios dos furacões. A única solução era se esconder.As nuvens agitadas os envolviam agora, e o vento começava a

espalhar poeira, folhas mortas e gravetos secos. De repente, um raio cortou o céu, depois outro, e outro. O barulho da trovoada foi ensurdecedor.

John chicoteou o cavalo e ao mesmo tempo lançou um olhar desesperado examinando o local. O leito seco, estreito, de um riacho, ficava a mais ou menos trinta metros de distância, um pouco à esquerda. Poderiam chegar até lá, talvez, se corressem.

CAPÍTULO IV

O que acha de deitarmos embaixo do carroção?— Emily sugeriu quase gritando para se fazer ouvir, tal a fúria da ventania.

— Perigoso demais— John respondeu, berrando também. Bem depressa ele liberou da carroça o apavorado cavalo. Assim que

terminou de fazer, as primeiras pedras do granizo caíram sobre seus ombros e na aba do chapéu. John concluiu então que mal havia tempo para chegarem ao riacho seco.

Emily, com todas as suas saias revoltas pela ventania, tentava em vão descer do carro. John estendeu-lhe os braços.

— Venha— disse.Com um rápido mas não muito amável movimento, ele ergueu-a do

assento e a pôs no chão. Ambos correram na direção do riacho.O mundo todo se transformara num molhado e desagradável verde

em volta deles, com longos e barulhentos raios de luz azulada seguidos de trovões cada vez mais perto agora e mais ensurdecedores. As pedras do granizo eram enormes e os atingiam com uma rapidez impressionante.

Emily estava pálida e com os olhos arregalados de terror. Tropeçava o tempo todo ao lado de John. Deus! Ele achava que Emily tinha todo direito de estar apavorada.

Uma vez no riacho seco, John não fez cerimonia e empurrou-a, com o rosto virado para o solo. Imediatamente jogou-se em cima dela, tentando, da melhor maneira possível, cobrir-lhe a cabeça com os braços a fim de criar uma barreira entre a mulher e a tempestade.

O tornado soava como uma locomotiva a toda velocidade quando os atingiu. John não podia saber exa-tamente a que distância estava, mas o vento era tão forte que parecia querer despi-los.

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De repente, a chuva gelada desabou. Algumas pedras eram do tamanho de uma bala de canhão quando os atingiam, por isso ele apertou seu corpo ainda mais de encontro ao de Emily, com a intenção de colocá-la fora da linha de fogo.

— Tudo bem, Emily— sussurrou-lhe ao ouvido. — Não permitirei que nada de mal lhe aconteça.

Suas palavras foram mais para reforçar a confiança em si próprio do que para confortar Emily, pois não sabia por quanto tempo poderia aguentar manter seu corpo pesado meio erguido para não esmagar o delicado corpo de Emily.

Provavelmente vinte anos se haviam passado desde a última vez em que confessara seus pecados a um padre, mas agora as palavras da Ave Maria voltavam-lhe à mente e sussurrou-as uma vez, outra vez, muitas vezes, acrescentando uma prece toda sua.

Santa Maria, por favor, não nos deixe perecer aqui. Ou leve-me, se for necessário levar alguém, mas permita que esta mulher viva.

A tempestade, que os atingira como um trem em disparada, desaparecera tão depressa como emergira.

O granizo se transformara em chuva suave, e a ventania em brisa úmida. Os raios e trovoadas cessaram. Alguns raios de sol espiaram por detrás das nuvens.

— Graças ao bom Deus!— Emily murmurou. — Só agora se dava conta de onde vinha o calor que sentia sobre si.

Tentava em vão se mover, se virar.— John?— não se surpreendeu pelo fato de sua voz tremer como

todo seu corpo. — John, você está bem?— Estou bem. E você? Como está?— Acho que bem. Meu Deus, estivemos perto da morte, não foi?— Perto demais— John respondeu, virando o corpo a fim de permitir

que ela se sentasse.Depois disso, esfregando os olhos e olhando ao redor, Emily gemeu:— Oh, meu Deus!Por toda parte o chão estava coberto de bolas brancas de gelo,

algumas do tamanho de laranjas. Emily vira tempestades de granizo antes, porém nunca com pedras maiores do que bolas de gude. Contudo, o espetáculo mais maravilhoso que presenciou em sua vida, algo de sobrenatural, foi quando o sol começou a filtrar seus raios através das nuvens, incidindo sobre o campo de gelo.

A paisagem era tão branca que dava a impressão de que estavam na lua. Mas, onde fora parar o carroção? E o cavalo? E tudo o mais? Até os galhos das árvores quase sem folhas inclinavam-se na direção oposta de onde viera a tempestade.

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Emily tentou se levantar, porém logo descobriu que seus joelhos não a sustentavam. E caiu num montão de saias molhadas e cheias de lama.

— Venha— John estendeu-lhe o braço. — Dê-me sua mão.O contato com a mão dele, quente e firme animou-a. Mas Emily

preocupou-se quando ouviu um gemido em espanhol e uma blasfémia.— O que foi, John?— perguntou.— Nada. Estou bem. E você, como se sente? Nenhum osso

quebrado? Nenhum ferimento?Emily sacudiu a cabeça num gesto negativo, sorriu e respondeu:— Apenas joelhos trêmulos. Foi a tempestade mais horrível que

testemunhei. Considero um milagre não termos morrido.John observava a paisagem agora, os olhos fixos nos blocos de gelo

como se fossem seres vivos capazes de ainda causar danos. Sua respiração era irregular e os lábios se contraíam fazendo Emily imaginar que ele sofria. E que tentava esconder seu sofrimento.

— John?Ele suspirou e foi ao encontro de Emily.— Venha— disse. — Se puder andar, vamos juntos procurar o cavalo

e o carroção antes que anoiteça. Muito em breve estará escuro como breu, e não encontraremos nada.

— Posso andar, sim, John. E você...— Estou bem— ele interrompeu-a. Segurou-a pelo cotovelo para que

não escorregasse no tapete de gelo semi-derretido. — Vamos!O sol se punha no horizonte, a oeste, e a escuridão vinha depressa

quando John, enfim, resmungou qualquer coisa. Considerava-se vencido.Não iriam encontrar o carroção. E, mesmo que o achassem, estaria

em pedaços. Não queria nem pensar no que acontecera ao seu cavalo preferido.

Tampouco queria pensar muito sobre sua própria condição física. A medida que as horas passavam, a dor aumentava, e ele concluíra que uma bola de gelo quebrara ao menos uma de suas costelas. Fora um bem merecido castigo, sem dúvida, por ter exposto Emily a tal calamidade. E agora pagaria ainda mais por seu crime por terem de dormir lá naquela noite, ao ar livre e juntos.

Pagaria o dobro agora por uma garrafa de tequila que lhe aliviasse a dor e afastasse seus pensamentos da mulher que caminhara a seu lado nas últimas horas, sem se queixar, alegre até, em contraste com seu incrível mau humor.

— Vamos ficar aqui— ele comunicou-lhe.— Sim— Emily respondeu com um suspiro. — Acho que não há outra

escolha.27

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Ela parecia cansada agora, mais do que John supusera. Mesmo assim, sorria.

— Nunca acampei ao ar livre antes, você sabe, John.— Emily olhou para o céu escuro. — Nunca dormi sob as estrelas.

Ele sabia. Discutiram o assunto nas cartas. Emily o invejara, escrevera, por ele poder dormir sob um céu estrelado. Claro, sempre imaginando que era Price quem lhe escrevia.

E John muitas vezes sonhara com isso, desejando partilhar com sua Emmy essa experiência, observando a constelação Polaris, a Cassiopeia, e a Orion, com um braço em volta dos delicados ombros dela, e o outro apontando o céu. Achou que isso jamais aconteceria. E agora iria acontecer.

— Perdoe-me pelo sucedido— ele desculpou-se com Emily. — Eu a levarei de volta à casa amanhã. De volta a uma cama decente. Desculpe-me mais uma vez pelo que se passou.

— Desculpar?! — Emily exclamou. — Por quê, John Bandera? Está achando que é responsável pela tempestade? Não me admira você e Price combinarem tanto como sócios. Acredito que teriam a mesma reação. Porém Price me garantiu que dormir sob a luz das estrelas é estar mais perto de Deus do que em qualquer igreja.

— Eu não sabia que meu sócio era um filósofo.— Garanto que há muito acerca dele que você ignora.— não havia

hesitação na voz de Emily. Apenas certeza. E profundo carinho. — Acredito que homens se abrem mais com o sexo oposto.

— Talvez...Emily fitou-o com um olhar que era parte piedade, parte curiosidade

feminina.— Posso interpretar esse seu talvez duvidoso como se a razão fosse

nunca ter partilhado suas emoções com uma mulher?— Interprete como quiser, Emily. O que sei agora é que preciso

apanhar lenha antes que escureça por completo.John afastou-se dela mancando. Depois de ter catado bastante lenha

acendeu um bom fogo e os dois sentiram-se bem melhor. Porém John padecia de uma dor nas costas como se uma flecha estivesse alojada dentro de si. Não adiantava esconder mais, ou fingir que não estava com dor, ou que não havia gravidade nessa dor. Se a invisível flecha prejudicasse seu pulmão, aí teria problemas sérios.

Ele começou a desabotoar a camisa no instante em que Emily apareceu por trás, com um feixe de achas nos braços.

— Eu sabia!— ela exclamou, jogando a lenha no chão. — Você está machucado, John. O que houve exatamente? O que posso fazer para ajudá-lo?

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Emily colocou a mão no ombro de John e esse toque provocou reações em todo o corpo dele. E agora, além das dores musculares, sofria a terrível dor do desejo.

— Nada sério — disse ele, procurando esconder na medida do possível o que sentia. — Apenas uma costela machucada, penso. Vou tirar a camisa e rasgá-la em tiras para fazer ataduras.

— Não faça isso— Emily protestou. — Não vou permitir. Ele rangeu os dentes e olhou para o céu estrelado, pedindo ao bom

Deus que lhe desse paciência. Sofria muito e não poderia deixar de despir a camisa só por levar em consideração o puritanismo de lady Emily Russell, por atender aos pruridos ridículos da mulher.

— Ouça! — ele declarou abruptamente. — Sou quase um estranho para você, e sei que não é cortês tirar a camisa a sua frente. Mas precisa confiar em mim, Emily, é muito, muito necessário o que pretendo fazer.

— Não foi o que eu quis dizer, John. Emily estava ainda atrás dele, portanto John não podia ver nada,

mas o som que ouviu foi o farfalhar inconfundível da seda de saias femininas.

— O que eu quis dizer— ela prosseguiu —, foi que seria bobagem você rasgar a camisa quando tenho toda esta seda que não serve para nada além de armar meu vestido. — Ela se pôs então na frente de John com os braços carregados de seda branca rendada. — Olhe aqui. Viu? Agora, por favor, diga-me de que largura deseja as faixas.

A voz decidida de Emily não deu chance a John de apresentar qualquer argumento. Limitou-se a dizer qual deveria ser a largura das faixas.

— Meio metro mais ou menos — sussurrou.— Tudo bem.E ela pôs-se a rasgar o tecido. Assim que terminou com uma das

saias, começou com a outra. John observava-a em silêncio, apreciando-lhe os dedos delicados que pareciam voar. Em questão de minutos tudo estava pronto, e as tiras enroladas num volume só.

John fitava-a. Emily mantinha a boca fechada mas, de quando em quando, passava a língua pelos lábios a fim de umedecê-los. O corpo dele começou a reagir de maneira impressionante. A idéia de que pudesse beijar aqueles lábios deixava sua boca tão seca a ponto de quase impossibilitá-lo de falar. Pelo menos não as palavras que queria dizer.

— Obrigado, Emily— murmurou finalmente. — Pagarei você por seu prejuízo assim que voltarmos a casa.

— Esqueça. Ficarei grata de não precisar carregar o peso dessas saias em nossa caminhada amanhã. Agora, dispa a camisa.

John começou a fazer isso sozinho, mas logo sentiu mãos delicadas ajudando-o e animando-o com palavras de carinho.

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— Oh, querido, nunca vi ferimentos assim. Em especial neste lugar!— ela exclamou.

O toque suave dos dedos de Emily causaram nele uma sensação agradável ao mesmo tempo que dolorosa.

— Posso tomar essa providência sozinho— John murmurou, pegando as ataduras.

— Sei que você pode— Emily disse. — Mas tenho certeza de que farei isso melhor. Apenas avise-me quando estiver muito apertado. Não se deve apertar demais, não é verdade, para funcionar?

Emily já enrolava as faixas feitas de suas saias em volta do tórax de John, seus cabelos tocando-lhe a pele, seu hálito quente e doce no rosto, no pescoço e ombros dele. Por um segundo John sentiu-se quase culpado, como se tivesse encomendado a tempestade e aquele momento de intimidade. Mas fechou os olhos para poder saborear tudo. Sonhava com Emily havia tanto tempo...

— Pronto— disse ela. — Tudo bem, por enquanto.— John suspirou, aliviado.

— Sinto-me muito melhor— confessou. — Muchas gracias, Emily. Devo-lhe mais isso.

— De nada, John. Acho que Price não me perdoaria se eu não fizesse o possível para ajudar seu sócio em dificuldade. Você concorda?

A expressão do rosto de John se alterou e esperava que Emily não notasse seu desaponto à menção do nome de Price. Aquele momento de intimidade, tão precioso para ele, sumira como fumaça.

— Acho que Price a perdoaria por tudo— ele disse, evitando encará-la, imaginando que também a perdoaria por qualquer coisa, incluindo a fúria dela quando soubesse da verdade.

Emily adormeceu, tentando esquecer-se de que pousava a cabeça num travesseiro humano.

Minutos atrás, John insistira que ela dormisse um pouco.— Se não dormir— dissera — não conseguirá dar um passo amanhã,

e não terei condições de carregá-la. Deite-se e feche os olhos. Aqui.— ele apontou para sua perna. — Faça de conta que sou um travesseiro.

Um travesseiro, Emily pensou, recheado de músculos e ossos. O colchão era de grama, ainda molhada por causa da chuva, e duro como barra de ferro.

Havia estrelas no céu, aos milhares, mas não era o que Emily imaginara para suas noites passadas sob as estrelas. Suas fantasias incluíam uma cabana, uma cama, e um pouco de comodidade. Incluíam Price também, mas agora lá estava ela num chão duro, a cabeça apoiada na musculatura rígida da coxa de John Bandera.

Com as pernas cruzadas em posição indiana, ele estava tão imóvel que poderia ser confundido com um tronco de árvore. Bem... um atraente

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tronco de árvore. Emily examinava os ângulos do rosto dele à luz das chamas. A

herança de seus antepassados podia ser vista nos malares altos, e no contorno do nariz. A fogueira do acampamento lançava chamas azuis nos cabelos escuros dele.

John nunca se casara. Ao menos Price mencionara isso em suas cartas. E Emily se perguntava como escapara de um casamento. Homem nenhum, mesmo não atraente como John, ficaria solteiro até os trinta anos de idade no condado de Russell.

Como John Bandera era diferente de Price, ela refletia, sentindo-se subitamente culpada por não ter levado em consideração o amor de sua vida, Price, claro, durante as últimas horas. Não pensara em nada, e em ninguém, exceto na companhia de John.

Surpreendia-a o quanto desejava que aquele homem a amasse, o quanto desejava que a respeitasse caso não houvesse afeição recíproca. Mas por que até chegara a tratar do ferimento dele como se tivesse feito isso mil vezes antes, como se a vista de um tórax nu de um homem não fosse nada de novo para ela? Isso a intrigava terrivelmente.

Bem, vira seu irmão, Elliot, claro, mas isso quando muito jovens. E o outro homem com o qual tivera intimidade fora Alvin Gibbons, porém a única união acontecida havia mais de três meses já, tivera lugar quando ambos estavam completamente vestidos.

A vista de John havia pouco, de tórax nu, quase a deixara sem ar. Tocando-o como o fizera, sentindo o calor da pele dele e a firme musculatura, provocara-lhe uma reação estranha, inesperada. Felizmente estava bastante escuro para esconder o rubor que lhe subira do corpo às faces.

Duvidou ser a primeira mulher a acender o coração de John Bandera. Aí começou a pensar quantas mulheres já passaram pela vida dele. Conversariam bastante? Riam juntos? Sussurraria ele, aos ouvidos de suas amantes, palavras de amor em espanhol?

Como seria ser beijada por lábios firmes e bem torneados? Ou tocada por mãos bronzeadas?

— Durma já— Emily ordenava a si mesma. — Pare de pensar como uma amante afogueada. Você é uma mulher bem-educada, apesar de grávida sendo solteira. Não está dormindo sob as estrelas com esse homem porque ele planejou ficar aqui. Tudo aconteceu acidentalmente. E, afinal, sua tola, você está apaixonada por Price McDaniel. Não se esqueça.

Ela olhou, pela última vez, para os longos cabelos e o rosto de John Bandera, iluminados pela fogueira, e amaldiçoou-se por ceder à tentação.

Mesmo assim, com maldição ou não, daria quase qualquer coisa para saber o que seu travesseiro de carne e osso pensava enquanto olhava para o espaço escuro, além das chamas da fogueira.

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CAPÍTULO V — Só mais dois quilômetros. Emily achou que aquelas eram as quatro palavras mais carinhosas,

mais lindas, mais acolhedoras da língua, quando John as pronunciou na tarde seguinte.

— Oh, que bom!— ela respondeu, tentando demonstrar que dois quilômetros adicionais não representavam quase nada. Apenas um agradável passeio. Isso quando seus pés doíam terrivelmente, e cada músculo de seu corpo protestava. Até os sorrisos, que esboçava toda a vez em que John a fitava, pareciam agora cortar-lhe o rosto como faca de lâmina enferrujada.

Mas não se queixava. Sabia que seu companheiro de viagem estava em condições bem piores do que as dela. Não que John lhe houvesse confessado algo, mas a dor que sentia era evidente pela expressão do olhar, pela rigidez dos ombros enquanto caminhava.

Por causa da dor nas costas, John não dormira um minuto na noite anterior. Emily sabia disso pois, não tendo também dormido muito bem, sempre que acordava olhava para ele e via-o de olhos bem abertos, fitando à distância, contemplando sabe-se lá o quê.

De quando em quando, na longa caminhada de volta, observavam os estragos que o temporal fizera. Bem cedo pela manhã depararam com a carcaça de um touro. O vento por certo apanhara a pobre criatura, empurrara-a fazendo com que os chifres se enterrassem no solo, enquanto a parte posterior do corpo ficara virada para o céu. John acocorou-se ao lado do animal, sacudindo a cabeça, passando a mão ao longo do resto do couro estraçalhado da vítima.

— Pobre diabo— ele murmurou com suavidade, fazendo Emily pensar imediatamente em Price, que usara as mesmas palavras para descrever um touro que se afogara numa poça d'água num verão úmido, coisa muito fora do comum no Texas.

Que coisa estranha, um sulista de origem inglesa e irlandesa, um homem criado numa mansão cheia de empregados, entre pratas e com todos os privilégios que o dinheiro proporcionava, falar como um meio-ín-dio que não tinha raízes nobres de forma alguma. E que estranho dois homens tão diferentes poderem se assemelhar tanto.

— Às vezes, John, você me parece tão igual a Price— ela dissera. — Talvez porque os dois viveram juntos durante tanto tempo.

Porém, em vez de se sentir envaidecido pelo comentário de Emily, John ficou irritado. Rangeu os dentes e se ergueu do solo abruptamente, onde estivera ao lado do touro morto.

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— Talvez sejamos gêmeos — ele resmungou. — Como duas solteironas se consolando mutuamente.

Depois disso, John trocou poucas palavras com Emily até anunciar que estavam a apenas dois quilômetros da casa. Da casa! Da fazenda!

O que aconteceria se Price tivesse voltado?, Emily se perguntou de repente.

Olhou para seu vestido sujo, para a bainha desmanchada. Podia imaginar como estava queimada pelo sol e com os cabelos em absoluto desalinho. Bem, Price não se importaria, claro. Não dizia ele sempre em suas cartas que aqui no Texas as pessoas valiam pelo que eram e não pelo que usavam? Por isso ele preferira o Texas ao lugar onde nascera, o issippi.

Ela não era mais, definitivamente, a pálida lady Russell, do condado de Russell, Mississipi. Talvez Price tivesse orgulho em saber que sobrevivera a uma saraivada. Duas tempestades, na realidade. Primeiro o furacão, e depois, mais recente, o temperamento áspero de John Bandera.

Assim que a casa da fazenda apareceu à vista, John sussurrou uma prece de agradecimento por tudo estar relativamente bem na fazenda, depois da tempestade. Alguns telhados das casas dos empregados haviam sido carregados pelo vento e um grande galho do velho carvalho caíra. Mas, afora isso, o lugar lhe pareceu intacto.

Infelizmente para ele, contudo, estava habitado demais. A sra. Fuentes, na porta dos fundos, jogava milho para as galinhas. E sua filha, Lupe, com as saias sacudidas pela brisa, pendurava as roupas lavadas no varal. Voltaram, John pensou com tristeza. Fora-se sua privacidade.

Ele quase esperara que a governanta e a filha houvessem decidido se demorar mais com os parentes em Nuevo Leon. Como explicaria a elas a presença de Emily lá? Não poderia fingir que a bela e alva moça era sua irmã ou prima.

Emily estava ao lado dele agora, com uma das mãos em pala protegendo a vista do sol, e a outra segurando os cabelos. Olhava para a casa.

— Oh, há alguém lá!— exclamou. — Será... Acha que... Sua esperança, de que fosse Price esse alguém, se desvaneceu

logo. Quando John lhe contou de quem se tratava, o desaponto de Emily foi enorme.

— Pensei que Price tivesse voltado— ela sussurrou, baixando o olhar para o chão em vez de apreciar a casa.

— Não, ainda não— John respondeu. Nem nunca, pensou. — Tudo bem, de qualquer maneira. Estou ansiosa por conhecer a

sra. Fuentes e a filha. Price escreveu-me muito sobre as duas. Não sei como nos comunicaremos, nenhuma delas fala inglês, verdade?

— Não, nenhuma fala— John respondeu. E com a graça de Deus,

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disse a si mesmo.A sra. Fuentes os viu se aproximando e acenou com a mão. Chamou

a filha e apontou para o casal que chegava. Lupe deu um grito, deixou no chão a roupa que tinha nas mãos e correu ao encontro de John.

Bem perto da casa agora, Emily pôde vê-la melhor. Como pudera confundir aquela linda moça com Price? Lupe era exatamente como Price a descrevera, dos pés nus e tornozelos finos aos seios cheios e cabelos negros penteados em lustrosa trança. Linda, sem dúvida entusiasmara-se ao ver John. Por qualquer razão, Emily pensava, Price não mencionara que a jovem mexicana tinha tanto... interesse... por um dos donos da fazenda.

Emily sentiu um nó na garganta. Por quê? Não saberia dizer. Para compensar seu desaponto, abriu um sorriso de boas-vindas às duas mulheres.

Lupe não se aproximou dela, mas correu ao encontro de John, envolvendo-lhe o pescoço com seus longos braços, e os quadris com suas lindas pernas escuras. Então, quando ele gemeu de dor, rapidamente ela soltou-o, deu um passo atrás, e John caiu de joelhos.

— Juanito?— Lupe sussurrou. A pobre moça sentiu-se culpada, como se ela mesma tivesse causado aquele terrível acidente, mas sem ter ideia em que consistira o acidente. Mas, quando fez menção de querer abraçar John de novo, Emily estendeu a mão para impedi-la.

— Não. Não faça isso. Ele está ferido— disse à moça, esperando que ela entendesse. — Aqui.— Apontou para uma de suas costelas e fez uma careta, fingindo sentir dor.

Apesar da diferença de idiomas, Lupe pareceu entender, porque lágrimas brotaram logo em seus olhos.

— Oh, pobrecito— gemeu, ajoelhando-se ao lado dele, e beijando-o no ombro e no rosto.

John disse qualquer coisa em espanhol para ela, e Lupe respondeu levantando-se e ajudando-o a se pôr de pé.

— Que posso fazer para ajudar você, John? — Emily lhe perguntou.— Nada. Não se preocupe. Ficarei bom depois de descansar um

pouco. Vá descansar também, Emily.Com o auxílio de Lupe, John levantou-se. Sussurrou qualquer coisa

ao ouvido da moça. Emily seguiu-os até a casa, observando-os com curiosidade. Estava intrigada pela intimidade entre os dois e se perguntava por que motivo o controle de John com ela fora tão evidente enquanto agia com tanta naturalidade quando tocava a jovem mexicana e apoiava o corpo contra o dela.

Lupe fitava-o como se fitasse um amante. Contudo, por mais que Emily tentasse, não conseguia ler a expressão do rosto de John quando ele encarava a mexicana.

A sra. Fuentes levou Emily a um dos dois dormitórios do segundo

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andar, onde já se encontravam suas malas encostadas à parede. Tendo John desaparecido no outro quarto, ela concluiu que aquele onde se encontrava devia ser o de Price. Porém, quando perguntara à governanta, a mulher simplesmente sorrira, sacudira os ombros e respondera rapidamente em espanhol, fazendo Emily concluir que a mulher não falava mesmo nada de inglês.

— De Price— disse Emily, apontando para a cama. — Mister, quer dizer, senor Price McDaniel. Este é o quarto dele?

A mulher olhou para a cama, depois para Emily, e respondeu: — No se, senorita. Estranho a sra. Fuentes não saber o nome de seu empregador,

refletia Emily. Bem, talvez Price estivesse usando um nome equivalente em espanhol. Mas, se havia em espanhol algo que traduzisse McDaniel, Emily não conseguia imaginar.

A sra. Fuentes continuou onde estava, olhando para Emily e dando pancadinhas no próprio ventre.

— Não... entendo— Emily gaguejou. Santo Deus, era possível que a mulher já houvesse descoberto sua gravidez em apenas cinco minutos? Era possível?

Olhou para o ventre a fim de ver se havia crescido nos últimos dias, mas não percebeu nada. As pregas do vestido estavam no mesmo lugar onde sempre estiveram.

Aí a sra. Fuentes fez gestos com a mão, levando até a boca um garfo invisível.

— Ah, agora entendi. Quer saber se estou com fome? Sim, estou faminta!— Emily deu um suspiro de alívio e sacudiu a cabeça, num gesto afirmativo.

Encantada com seu sucesso em comunicação, a governanta saiu correndo, provavelmente com o fim de preparar qualquer coisa para Emily comer.

Sozinha agora, Emily pôs-se a examinar o quarto. O papel de parede tinha um fundo cinza-claro, e um motivo sóbrio, bem masculino, de medalhões. As janelas estavam sem cortinas, e possuíam venezianas de madeira igual à da cama. Havia tapetes persas espalhados por toda parte, e no centro do quarto ficava a cama, bem grande, com a cabeceira e os pés de mogno entalhado. Talvez os móveis tivessem vindo da mansão McDaniel da rua Solomon. Porém Emily não podia ter certeza disso. No entanto, se aquele quarto era mesmo o de Price, alguém o esvaziara dos objetos pessoais. Ela abriu a gaveta da cómoda. Vazia. Abriu o guarda-roupa que continha apenas dois cobertores, bem dobrados, numa das prateleiras. Onde estavam os pertences de Price? Ele não podia ter levado tudo numa simples viagem a Abilene.

Emily concluiu então que a governanta, tendo encontrado a bagagem numa pequena sala embaixo, decidira preparar o quarto do

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patrão para alojar o hóspede. Ou a hóspede.Emily sentou-se na cama e acariciou o colchão onde Price passara

tantas horas. O que pensaria quando voltasse e a encontrasse não apenas instalada na fazenda mas em seu próprio quarto? Ficaria irritado por ela ter aparecido sem ser convidada? Ou contente em vê-la, apesar do que escrevera na última carta?

Talvez se enganara achando que ela o enxergava apenas como um amante, e não também como um amigo. E, se se alegrasse em vê-la e continuasse sendo amigo, por quanto tempo duraria essa amizade depois de ser informado acerca da criança que iria nascer? Pensando com honestidade, não poderia esperar alegria da parte de Price. Contava apenas com um pouco de compreensão. Se não pudesse retribuir o carinho que ela espontaneamente lhe oferecia, ao menos que desse sua proteção à criança que viria ao mundo. Sentindo-se de súbito só, e mais do que ansiosa sobre seu futuro, Emily abriu a maleta que continha as cartas de Price, presas com fitas em paeotes de ano por ano. No total, dois anos.

Na primeira que releu, Price desenhara uma árvore gigante com suas raízes ocupando metade da folha. Na segunda, havia flores secas entre as páginas.

Sentada na cama, Emily perdeu-se, encantada, nas palavras de Price, mais importantes agora que pessoalmente conhecia a fazenda. Tão absorta estava que nem vira a sra. Fuentes entrar no quarto com uma bandeja apoiada em seu avantajado quadril.

Dessa vez a governanta nem se deu ao trabalho de falar, mas sorriu enquanto colocava a bandeja sobre a mesa perto da janela. Então, quando Emily disse uma das palavras de seu mísero vocabulário em espanhol, Gradas, a mulher fez uma saudação inclinando a cabeça e continuou saudando-a até chegar à porta.

Emily praticamente mergulhou no prato de comida, ovos mexidos, pimentões e tortillas. Esquecera-sè de quão faminta estava, e riu ao se recordar que a antiga lady Russell comia por dois agora.

Depois despiu-se e deitou-se na cama de Price. Adormeceu imediatamente.

Alguma coisa, uma voz, uma porta que batia, acordou-a. Emily sentou-se na cama, espantada ao ver como estava escuro, não conseguindo se localizar por segundos. Onde estava? Céus, dormira durante horas.

Achou na mesa de cabeceira uma caixa de fósforos e acendeu a vela. Nove e meia! Isso significava que dormira no mínimo seis horas e não apenas, como planejara, fechara os olhos por meia hora antes de ver como estava o pobre John com suas costelas doloridas.

Amaldiçoando-se, procurou na mala um robe e vestiu-o. Em seguida, em outra mala, foi atrás de uma caixa de remédios que carregara na viagem. Admirou-se de ter se lembrado de tudo aquilo com a cunhada a

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seu lado protestando contra cada item que ela punha nas malas. Pôs no bolso do robe um frasco de láudano e saiu do quarto. Entrou

no hall. Se John estivesse dormindo, não o acordaria. Mas se estivesse acordado e com dor, umas gotas de láudano o aliviariam enormemente.

Naquele instante a porta do quarto dele se abriu e Lupe apareceu no hall.

— Boa noite— Emily saudou-a em inglês, esperando que a moça a entendesse.

Se entendeu ou não, Lupe meramente fitou-a e sem uma palavra, sacudindo as tranças, desceu as escadas.

A porta do quarto de John ficara entreaberta. Emily abriu-a um pouco mais e disse:

— John? Trouxe-lhe uma coisa que...Engoliu o que ia dizer quando viu John recostado na cabeceira da

cama contra um travesseiro, usando apenas as faixas em volta do tórax. Uma colcha mal lhe cobria o corpo da cintura para baixo. A vela acesa lançava uma luz mortiça sobre os olhos dele. Fitou-a em silêncio.

Emily achou que jamais vira coisa ou pessoa alguma tão linda em sua vida. Linda e perigosa. Quis tocá-lo mas não ousou. Sentiu um nó na garganta. Procurou ignorar a sensação e vencer o súbito desejo de fugir.

— Trouxe-lhe um pouco de láudano— ela disse. John não respondeu, apenas ergueu uma sobrancelha.

— Láudano— Emily repetiu. — Um remédio. Acho que vai ajudar.Ele continuou calado, apenas fitando-a com insistência, como se não

entendesse nada e não a reconhecesse. Só então Emily desconfiou que John Bandera estivesse bêbado. Terrivelmente bêbado. De certo nem ao menos a reconhecera.

Emily suspirou, e tornou a pôr o frasco de remédio no bolso.— Acho que você não precisa disto— falou. — Durma bem, John.— Emmy.Ela já estava saindo e voltou. Teria ouvido mal?— Venha cá.— John estendeu a mão para ela. — Por favor.— Não, eu... É bastante tarde, e você está...— Muito bêbado.— Ele sorriu. — Não aprova?— Não desaprovo.— Emily sacudiu a cabeça. — Ante as

circunstâncias, é provavelmente a melhor coisa a se fazer.— Provavelmente— ele repetiu. — Mas não tenha medo de mim.— Que absurdo, John! Não tenho medo de você.— Nem um pouquinho?Emily cruzou os braços numa atitude defensiva. Se não tinha medo,

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por que então as batidas de seu coração eram tão aceleradas?— Não, nem um pouquinho— ela respondeu. — Por que haveria de

ter medo?John mudou um pouco de posição na cama e comprimiu os lábios

como se tivesse dor. Contudo, não desviava os olhos do rosto dela. Seus olhos pareciam duas chamas.

— Por quê? Porque você é uma lady sóbria, e eu um mestiço bêbado.

— Você é amigo e sócio de Price, John. Sei que ele o respeita e confia em você. Por isso eu também confio em você.

— Confia em mim, Emily?— Sim. Naturalmente. — Então venha mais perto de mim, Emmy. Se ele não estivesse tão embriagado, se não estivesse enrolando a

língua, Emily juraria que a tinha chamado de "Emmy", o apelido que Price inventara.

John estendeu-lhe a mão de novo e agora a mão pareceu ter uma força magnética, conduzindo-a inevitavelmente para ele. Emily deu um passo à frente e nesse instante a porta se abriu e Lupe entrou.

— Su botella — Ela segurava pelo gargalo uma garrafa com um líquido claro e passou por Emily indo para o lado de John. Entregou-lhe a garrafa, dizendo:

— Toma. — Gracias— John respondeu, com os lábios crispados. Em seguida

olhou para a porta, como se convidasse Lupe a sair. — Vaya— ordenou. — Não— a moça protestou. Alisou a colcha que cobria as pernas

dele e inclinou-se para arrumar o travesseiro. John arrancou com os dentes a rolha da garrafa e cuspiu-a no chão. — Vaya— ordenou de novo. Lupe ignorou a ordem e continuou perto dele, lançando um olhar

furioso a Emily. Obviamente, considerava-a uma intrusa naquele quarto. De repente, envergonhada, Emily achou que ela era de fato a

intrusa. Uma hóspede não convidada que se intrometia numa situação íntima, num quarto de homem. Recordou-se de como Lupe recebera John na chegada e de como o tocara, sem a menor cerimonia, sem o menor constrangimento. Como fora ingénua não adivinhando o que se passava entre a filha da governanta e John. Mas, o que quer que fosse, não era de sua conta, Emily admitiu. E nem queria saber. Não queria saber nada.

Em especial não queria saber o que poderia ter acontecido se ela tivesse segurado a mão estendida de John, apenas um momento atrás. E consolou-se achando que estava terrivelmente desapontada agora por não ter sido Price quem a chamara de Emmy e quem lhe estendera a mão.

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— Boa noite— disse. Sua voz soou como a de uma colegial, mas fria como o gelo.

Fechou a porta deixando os dois amantes em paz, e foi para seu quarto o mais depressa que pôde. Tivera dificuldade em não correr.

CAPÍTULO VI

Quando John acordou, não teve condições de decidir sobre o que doía mais, se as costas ou a cabeça. Continuou deitado na cama, tentando angariar coragem para abrir os olhos à luz do sol que aquecia suas pernas. Deus. Bebera tanta tequila, em tão grande quantidade, que se surpreendia de ter acordado no dia seguinte. Achou que dormiria durante uma semana.

Ainda de olhos fechados, testou seu corpo e concluiu que a dor na costela quase passara de todo. De certo não a quebrara de novo, apenas machucara-a. Não havia nada preocupante. Precisava se preocupar, isso sim, com seus lapsos de memória daquela manhã e com as visões confusas que flutuavam entre esses espaços vazios.

Visões de mulheres lindas. Lupe com seus olhos escuros, convidativos, lábios de menina mimada, e tranças negras, longas, que chegavam até o peito. Emmy apareceu também, alva e radiante quando surgiu à porta do quarto tal qual fada assustada, tímida.

Santo Deus, o que fizera ele na noite da véspera? O que dissera a ela antes de finalmente afogar sua dor num rio de tequila?

Abrindo os olhos, John tentava acomodar a vista ao sol que entrava pela janela. Ao ver seus pés nus voltou-lhe à memória a imagem de Lupe procurando tirar-lhe as botas, enquanto, abaixada, ela lhe dava chance de ver seus jovens seios morenos.

Agora, observando os lençóis amarfanhados, John se apavorou. Deus, por favor, rezava, diga-me que isso não aconteceu. Passara os últimos dois anos de sua vida evitando os avanços ardentes da jovem mexicana, só para sucumbir durante uma bebedeira?

Outra lembrança da véspera se solidificava. Porém, agora a mulher não era Lupe. Era Emily, na porta do quarto, e depois dizendo que não tinha medo dele. John se perguntava se dissera que deveria ter medo, que ele não conseguia fitá-la sem desejá-la, que hospedá-la em sua casa era mais doloroso do que uma dúzia de costelas quebradas. Teria lhe contado a verdade toda sobre Price na noite passada? Ou, se mentira, que novas falsidades inventara?

Abria os olhos devagar agora, deixando que o sol clareasse sua cabeça. Pela posição do sol, imaginava que era quase meio-dia. Ergueu o corpo e enxergou tudo melhor, as paredes em seu lugar, a porta na posição certa.

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Deus, pensou, se confessara tudo a Emily à noite, ela estaria odiando-o esta manhã por ter sabido a verdade acerca de Price. E, mesmo não lhe tendo contado, provavelmente a ofendera, e Emily manteria distância durante sua permanência na fazenda.

Talvez, John refletia, ela já estivesse arrumando as malas para partir, para voltar ao Mississipi, seu verdadeiro lugar. Porém, não muito depois de ter chegado a essa conclusão, ouviu uma voz de mulher com sotaque sulista vindo do pátio abaixo. Uma voz musical, alegre, e mesclada de esperança.

— Bom dia— John ouviu-a dizer. — Sou Emily Russell, do Mississipi.Depois, uma voz não muito musical, respondeu:— Como vai, madame? Sou Tater Latham, nascido e criado em

Kansas, e muito contente agora por ver outro lindo rosto de mulher aqui na fazenda. Mississippi, hein? Imagine só! Pretende ficar muito tempo por aqui?

— Bem, não sei, sr. Latham. Depende.Então, antes que o homem de Kansas pudesse lhe perguntar do que

dependia a permanência dela na fazenda, John gritou do alto, da janela do quarto.

— Tater Latham, preciso falar com você. Agora mesmo!O súbito grito vindo da janela não surpreendeu Emily, acostumada

que estava com as bebedeiras de seu irmão. Toda vez que Elliot consumia muito uísque, de manhã estava sempre irascível e falava em voz alta, gritando mesmo. John Bandera, ela sabia, bebera demais.

O tom de voz alterado tampouco surpreendera Tater Latham. O homem apenas suspirou, despediu-se de Emily e obedientemente entrou na casa.

Emily entristeceu-se com a retirada súbita do rapaz, pois tivera prazer em ouvir um pouco de inglês depois do tagarelar em espanhol da sra. Fuentes, todas as manhãs. Parecia não fazer nenhuma diferença o fato de Emily não entender uma palavra do que ela dizia. A mulher continuava falando sem cessar. Quanto mais Emily sacudia a cabeça, mais depressa e mais alto a sra. Fuentes falava.

Lupe não se achava visível em parte alguma, portanto Emily imaginava que estivesse no quarto com John. Na cama, claro. Mas... por que isso a perturbava tanto? Por quê? Não haveria de ser a impropriedade do affair. Afinal, quem era ela para atirar a primeira pedra?

Se a mãe de Lupe não tomava nenhuma providência, quem era ela, Emily, uma quase desconhecida, para se preocupar com a jovem mexicana? Quanto a John Bandera, bastante adulto, tinha capacidade suficiente para fazer suas escolhas, incluindo a companheira de cama.

Emily suspirou enquanto se dirigia à estrebaria. Prince muitas vezes lhe escrevera sobre Smoke, um grande garanhão cinza que ele comprara em San António um ano atrás, e ainda necessitando ser domesticado. Ela

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desejara muito ver o animal, quase selvagem, e aquela manhã parecia ser perfeita para isso.

Ao chegar na estrebaria, uma égua imediatamente surgiu na cerca, relinchando. Enfiou a cabeça para fora a fim de ser acariciada.

— Bom dia, Corazon— Emily disse, agradando o longo focinho do animal. — Ouvi falar de você, querida. Teve dificuldade em trazer ao mundo um potro, anos atrás. Verdade?

A égua sacudiu a cabeça e fungou, como se tivesse entendido e concordado.

— Coitadinha. Price não dormiu durante quase quarenta e oito horas tentando ajudá-la. Depois de alguns dias seu potrinho morreu. Isso o deixou muito triste. Acredito que você também tenha sofrido.

Emily permitiu que a égua lambesse sua testa e de repente preocupou-se. Tantas coisas aconteceram desde sua chegada à fazenda que se esquecera completamente da própria gravidez. Parecia-lhe tão distante, quase irreal! Mas, e se seu parto fosse difícil como o da égua?, Emily refletia. E se o bebê não sobrevivesse? E se ela...

Sacudiu a cabeça para afastar pensamentos tão mórbidos. Ela era forte, saudável. Não havia razão para pensar no pior. Por quê? Sobrevivera ao terrível furacão, não sobrevivera?

Ela beijou o focinho da égua e disse: — Na próxima vez, eu lhe trarei alguns torrões de açúcar. — Não faça isso. Ela pode ficar doente. Emily virou-se e deparou com John, ali bem perto. Seu coração

disparou e ela pôs a mão no peito... — Você me assustou— disse. — Outra vez? Desculpe-me. Meu andar é sempre muito leve. Emily quis dar um passo atrás mas estava bastante perto da cerca

da estrebaria. Corazon aproveitou a oportunidade e esfregou o focinho no pescoço dela. Emily deu então um passo à frente e foi de encontro a John. Nem houve tempo para ela proteger o corpo comos braços.

John abraçou-a automaticamente. No entanto, soltá-la foi algo difícil depois de ter aspirado o aroma dos cabelos e sentido nas mãos a delicada estrutura do corpo de Emily. Foi um milagre, pensou, não ter matado a delicada criaturinha no dia anterior, quando a protegera da tempestade com seu corpo pesado.

Fechou os olhos a fim de saborear melhor aquele momento precioso, desejando que nunca terminasse.

— Espero que os olhos escuros de Lupe não o vejam nunca nessa posição. Ela lhe daria trabalho— Tater Latham resmungou de algum lugar atrás dele, depois se dirigiu à estrebaria, rindo.

Emily afastou-se de John e baixou o olhar, arrumando a saia só para 41

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fazer alguma coisa. — Sinto muito, John— disse. — Sente? Por que motivo? — Bem, não gostaria de ser responsável pelos problemas que você

possa ter. — Problemas? Os olhos azuis o encararam por um segundo. — Com Lupe, claro— ela sussurrou. — Com... John começou a rir, mas logo parou quando pensou em algo melhor.

Poderia ser muito bom se Emily achasse que ele e Lupe eram amantes. Aceitaria qualquer barreira que pudesse surgir entre sua pessoa e aquela mulher. A idéia de que estava envolvido com Lupe o ajudaria a manter distância entre os dois, e ele precisava de toda a distância possível. Seu autocontrole diminuía como o gelo de um lago no fim do inverno, e cada vez que Emily o encarava ou estava por perto esse controle decrescia mais rapidamente.

— Não é problema seu— John sorriu, fingindo indiferença. — Às vezes a jovem Lupe se torna possessiva demais. Ela tem tendência a ver dificuldade onde não existe.

— Suponho que eu devesse ficar envaidecida por ser considerada rival de uma jovem tão linda.— Emily esboçou um sorriso que escondia tristeza.

John sacudiu os ombros em vez de lhe dizer que ela, Emily, era a mulher mais linda que conhecera. Emily deu um suspiro para depois voltar sua atenção a Corazon, acariciando-a de novo.

— Suponho que seja melhor eu ir embora daqui— ela acrescentou, falando com a égua mais do que com John.

Sim, isso resolveria o problema, John pensou. Não, isso o mataria.— Como? Voltar ao Mississipi?— ele perguntou. Emily riu muito e disse:— Não. Não ao Mississipi. Não para um lugar assim tão distante. Eu

estava pensando em alugar um quarto em Santander. Não é a aldeia mais próxima?

— Sim. Duas horas de viagem. — Dias se passarão, até semanas, antes de Price voltar. Não quero

me transformar em problema permanecendo na fazenda, ou num pomo de discórdia entre você e Lupe.

John não deu uma palavra. Deveria ele ficar contente por Emily estar tomando providências, ela própria? Deveria rir de satisfação?

— Muito bem, então— ela prosseguiu, decidida. — Vai providenciar 42

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alguém para me levar lá, John? A Santander? Amanhã, se possível.— Vou providenciar.Mas já sabia que ele mesmo a levaria, e já sabia também quanto

essa separação lhe iria custar.

Santander não era nada mais do que uma região de estadia para os homens que traziam o gado do México. Tinha uma população de apenas cem habitantes, um mercado, uma estrebaria, um saloon, uma pequena igreja batista onde um ministro aparecia um domingo sim outro não.

O local era tão quieto que quando John surgiu com seu carroção as galinhas e os porcos saíram do caminho para lhe dar passagem.

— Você ficará segura aqui— disse John, parando na frente do saloon. — Hy Slocum e a esposa alugam quartos acima do saloon e não permitem qualquer tipo de imoralidade. Não precisa se preocupar com coisa alguma.

— Não estava preocupada.— Emily fechou a sombrinha. — Você tem tomado muito cuidado comigo, John. Sou-lhe grata e garanto que Price também será, quando voltar.

John esboçou um sorriso amarelo. E achou que, se ouvisse mais uma referência ao ausente, ao invisível Price McDaniel, sua cabeça explodiria.

— Espere aqui— ele disse — enquanto verifico se os Slocum têm um quarto vago.

O que, na realidade ele queria fazer, era ter certeza de que Hy conservaria a boca fechada sobre Price, que passara várias noites lá depois de suas bebedeiras. Não precisava se preocupar com Sarah, pois Price já havia partido quando ela chegara em Santander, dois anos atrás, recém-casada com o calvo Hy.

Como em geral, quando não havia clientes, o dono do bar sentava-se numa das mesas, perdido num jogo solitário. John podia quase se ver refletido na careca de Hy. Nunca parara de se surpreender com o fato de um homem ter tantos pêlos no bigode, e nem um fio de cabelo na cabeça.

— Ganhou?— John perguntou a Hy, sentando-se à mesa e dando-lhe uma pancadinha nas costas.

Hy Slocum ergueu a cabeça e sorriu.— Por Deus, John! Não o vejo há meses. Por onde tem andado?

Como vai?— Muito bem. Como vão os negócios?— O que acha?— Hy franziu a testa, apontando para a sala vazia. —

Depois que Sarah chegou, todos os bêbados sumiram, foram para outro lugar. Você é meu primeiro cliente hoje. El numero uno, John. Recebi na semana passada um barril de boa cerveja vindo de Saint Louis. Quer experimentar?

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John sacudiu a cabeça, não aceitando.— Não, obrigado. Uma lady me espera lá fora. Procura um quarto.— Oh, sim? Bem, vá buscá-la então. Sarah tem ambos os quartos

prontos. Só Deus sabe como minha mulher ficará contente em ter uma companhia feminina. Deixe-me chamá-la.

Hy levantou-se imediatamente mas John segurou-o.— Mais uma coisa antes de eu fazer a tal lady entrar.— ele baixou a

voz, em tom conspirador. — Essa mulher é parenta de Price, Hy, e veio à procura dele. Mas não tive coragem de lhe dizer que provavelmente Price esteja morto. A lady me parece de saúde delicada e...

— Ela está esperando bebê?— Hy perguntou. John riu ao absurdo da pergunta.

— Não. Claro que não. É uma mulher solteira. E de boa formação moral. A moça já sofreu muitos dissabores ultimamente, e receio que mais um seja demais para ela.

— Algumas mulheres são assim— Hy concordou. — Muito frágeis. — Isso mesmo. Por isso eu apreciaria se, quando ela lhe fizesse

perguntas sobre Price, você lhe dissesse que não o conhecia.— Tudo bem. Não é coisa difícil de fazer. De qualquer maneira, eu o

conheci tão pouco! McDaniel quase não falava cada vez que vinha aqui. Apenas bebia.

— Muito obrigado, Hy. Vou buscar lady Russell agora. Ela está esperando lá fora.

Emily observava, pela janela do carroção, um suíno cavoucando o chão perto da roda da frente, e esperava que o animal não espantasse os cavalos. Alguém gritou:

— Saia daí, seu porco. Saia.— O animal saiu correndo. — Você deve estar esperando por John Bandera— a mesma voz continuou. — Prazer em conhecê-la. Sou Sarah Slocum.

Emily viu-se então diante de uma ruiva bonita, com um vestido num tom amarelo-vivo. A mulher tinha um rosto cheio, corado, e pela largura da roupa via-se que estava esperando bebê.

— E eu sou Emily Russell. Ah, sim, estou a espera de John. Ele se encontra aí dentro.— Ela apontou para o saloon. — Procura um quarto.

— Para você? — É. — Imagine!— Sarah sorriu. — Então, você é a tal? — A tal? — Aquela pela qual ele se interessou todos estes anos. Eu estava

começando a pensar que tudo não passava de uma história que John 44

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inventava para manter suas admiradoras à distância. — Eu não sou...Sarah ria agora, não a ouvindo. E disse:— Quer dizer que era verdade esse tempo todo! Aquele atraente

filho de comanche falava a verdade! Quando vai ser o casório?— Oh, não... Não haverá...John aparecia à porta do saloon naquele instante, chamando logo a

atenção de Sarah, como se fosse um enorme imã.— John Bandera, seu demônio!— ela exclamou. — E eu que achava

que você estava inventando essas histórias sobre sua namorada!Chegando mais perto do carroção, John retrucou:— Você é quem está inventando uma história agora, Sarah.— e

olhando para o ventre crescido dela: — Hy não contou nada sobre o bebê que vem vindo aí.

— Isso porque está apavorado. Até parece que é ele quem vai dar à luz.

John abraçou Sarah pelos ombros e beijou-lhe a cabeça. Mais uma vez Emily maravilhou-se de como ele se sentia à vontade com mulheres. Lupe. Sarah Slocum. E a misteriosa mulher pela qual se interessava. Todas essas mulheres, menos ela.

Contudo, quando se aproximou para ajudá-la a descer do carroção, por um momento Emily teve a impressão de que John queria ser mais do que cavalheiro, queria abraçá-la em vez de meramente ajudá-la a descer.

— Pronta?— ele perguntou.— Sim.Emily fechou os olhos quando os braços dele envolveram sua

cintura. E aspirou o aroma quente, masculino, quando John a ergueu. Mesmo depois de ter os pés firmemente plantados no chão, Emily apoiou o corpo contra o de John por mais alguns segundos, absorvendo a solidez e força que provinham dele.

— A maternidade está fazendo bem a você— John disse.Emily arregalou os olhos e retesou o corpo. — Como?— perguntou, assustada. Foi só então que percebeu que John falava com Sarah, postada do

outro lado do carroção. — A maternidade me fará bem na verdade quando o bebê estiver

em meus braços em vez de me dando pontapés na barriga, da manhã à noite.— Sarah olhou para Emily. — Você entenderá um dia o que estou dizendo. John, leve a bagagem de sua companheira enquanto vou ver se o quarto está em ordem.

Tão logo Sarah desapareceu, John sussurrou:45

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— Acho que ela pensa que você é outra pessoa.— É. Concluí isso. Mas, quem?— Alguém.— ele tirou a bagagem do carroção. — Todas elas.

Vamos.Não aguentando a curiosidade, Emily continuou:— Quem, John? Com quem Sarah me confundiu?Já a meio do caminho do saloon John parou, com expressão sombria,

quase trágica. Cada ruga de seu rosto parecia mais profunda agora. A luminosidade dos olhos diminuiu. Foi como se ele tivesse envelhecido uma década ou mais nos últimos dez segundos.

— Uma mulher que eu amei— John respondeu. — Nada importante.— Uma mulher que você ainda ama— Emily corrigiu-o. — Posso ver

isso claramente em seu rosto.— Talvez. Mas não importa.— ele sacudiu os ombros.— Oh, John, você não poderia estar mais errado! Amor é o que

importa na vida. E mais do que qualquer outra coisa. Por que acha que viajei centenas de quilômetros? Foi o amor que me trouxe até aqui.

— Mas não devia ter feito isso— ele respondeu bruscamente. Depois deu-lhe as costas e continuou a caminhar.

As palavras de John machucaram-na mais do que se ele a tivesse esbofeteado. Nunca haviam discutido o relacionamento dela com Price, porém Emily jamais tivera a impressão de que ele o desaprovava. De um momento para o outro sentiu-se como se John não apenas o desaprovava mas que mal podia encará-la por causa disso. Considerou-se uma intrusa de novo.

E, por acaso, não era? Droga! O que John Bandera sabia das intimidades que ela e Price compartilharam nas cartas? O que sabia ele sobre o amor, quando sem a menor cerimónia abandonara a mulher que significara tanto para ele no passado? E a pobre Lupe? E como ousava esse homem, quase um desconhecido seu, dizer-lhe que ela não devia ter ido ao Texas quando essa fora a façanha mais maravilhosa, mais valente de toda sua vida?

Ela segurou as saias e saiu correndo atrás dele. Ia responder-lhe à altura. Aí sentiu um movimento fora do comum dentro de si, como borboletas batendo asas.

Seu filho!Parou, ficou imóvel, estupidificada. Desejou, desesperada, que Price

voltasse logo para poder dividir com ela o milagre dos milagres. Seu ódio por John Bandera dissolvia-se.

Ele que pensasse o que quisesse. Não importava. Afinal de contas, John não era Price.

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CAPÍTULO VII

As mulheres conversavam em cima enquanto John, no saloon, aceitava a oferta de Hy Slocum para experimentar a cerveja vinda de Saint Louis.

Não se sentia bem em deixar Emily sem se despedir dela, em especial depois de seu comentário cruel sobre os quilômetros que a pobre moça percorrera em função do amor. Considerava-se um animal insensível.

Claro, agira de maneira errada, mas que mais poderia fazer? Nunca deveria ter escrito aquela primeira carta seis anos atrás. Assim, Emily jamais teria se apaixonado por Price. Por ele! A coitadinha ficaria livre para amar um cavalheiro do condado de Russell, casar-se e já estaria com dois ou três filhos agora.

Em vez disso encontrava-se ela no momento com vinte e seis anos, sem filhos, e completamente devotada a um amante feito de papel e tinta. Ele arruinara a vida de Emily, pensava. E arruinara a sua também, claro.

John observava Hy roubando no jogo solitário, se perguntando se Hy gostava de ganhar ou se apenas odiava perder. Com certeza um pouco de cada.

— Parabéns pelo bebê a caminho— disse John, erguendo o copo com o fim de saudar o futuro papai.

— Obrigado. Sarah tem bom aspecto. E parece muito contente, não achou?

— E você, não está?— Oh, estou, penso! Será bom ter um filho andando por aqui. Talvez

se pareça comigo. Quem pode saber?— Careca como um ovo?— John riu muito. — Disso tenho certeza.— Preocupo-me com Sarah.— Hy enfim confessou.— Que bobagem. Ela aguentará tudo bem. Mulheres têm filhos

desde o começo dos tempos, Hy. Não se preocupe tanto.— É o que venho dizendo a ele o tempo todo— Sarah opinou de

repente, ao se aproximar da mesa. — Pelo modo como Hy está agindo, se pensaria que sou a primeira mulher do mundo a dar à luz.

Ela beijou a cabeça calva do marido e piscou para John.— Sua amiga está se instalando lá em cima. Mas o que falou para

ela, John, para deixá-la tão exasperada?— Difícil de explicar.— John acabou de beber, suspirou e levantou-se

da mesa. — O que quer que tenha sido, é melhor que eu suba e peça

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desculpas.— Primeira porta à direita— disse Sarah. Sorriu e acrescentou: — Vá

devagar, John Bandera. Sabe o que quero dizer, não?Ele sabia exatamente o que Sarah quisera dizer. E decidiu se

desculpar com sua Emmy em vez de se despedir dela para sempre.Emily estava perto da janela olhando para o terno de um homem

pendurado no varal, se perguntando se era de Hy Slocum ou se Sarah se ocupava do trabalho da lavagem de roupa de outras pessoas. Dos hóspedes, por exemplo.

Talvez sim, Emily pensou. Não que ela, em toda sua vida, tivesse lavado mais do que um lenço. Porém agora, uma trouxa de roupa de homem e uma dúzia de fraldas fervendo em enorme tacho pareceram-lhe as coisas mais maravilhosas e mais naturais do mundo. Como estivera ansiosa por começar sua nova vida no Oeste! E encontrava-se ela lá agora, sozinha, num quarto de aluguel!

Enxergou-se de repente na fazenda, estendendo roupa no varal em vez de Lupe. Quando iria sua vida no Texas começar?

Ela ouviu uma pancada suave na porta.— Entre— disse, contente pela interrupção a seus pensamentos

mórbidos.Tinha certeza absoluta de que se tratava de Sarah. Mas qual não foi

a surpresa ao deparar com John Bandera, de chapéu na mão, encostado no batente da porta. Seu coração acelerou.

— Você já não devia estar voltando para a fazenda?— indagou friamente, ignorando as pancadas violentas do peito.

— Daqui a pouco— disse ele, entrando no quarto e fechando a porta. — Olhe, sobre aquilo que falei antes...

Emily cerrou os dentes. Devia ter sabido que o insensível homem não ficaria contente até convencê-la mais uma vez de que ela errara em ter ido ao Texas. Todos os homens eram a mesma coisa. Cruéis, vaidosos, donos da verdade. Todos, exceto Price.

— Vamos esquecer o que o senhor me disse, por favor— Emily declarou. — Cada pessoa pode ter sua opinião, sr. Bandera. E eu prefiro não discutir meus assuntos pessoais com estranhos.

John suspirou. Então, voltava a ser o sr. Bandera outra vez. Um estranho outra vez.

Tudo bem. Porém ela não era a única culpada. Mesmo assim, como pôde ser tão tola, viajando centenas de quilômetros por nada, por ninguém? Devia ter tido certeza antes de que Price a receberia. John teve vontade de sacudi-la.

— Parece-me que seus assuntos pessoais não existem no momento, lady Russell.

— Presumo que essa seja, mais uma vez, sua maneira de dizer que 48

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eu não deveria ter vindo aqui. — Pois presuma isso, lady— John resmungou. — Que tal se seu

querido Price não voltar de Abilene? Nunca mais? Emily fitou-o atentamente. Estava mais pálida do que estivera um

momento antes, os olhos muito abertos e dramaticamente sombrios. — O que quer dizer com isso? — perguntou. Deus! O que pretendera ele dizer?, John se perguntou. Subira para

falar com Emily, havia um minuto apenas, com a intenção de lhe dar um carinhoso adeus, e agora lá se encontrava ele, ralado de ciúme de um homem morto! Mãe de Deus! E, como se toda a desgraça da pobre moça não bastasse, mentia como uma serpente. De novo!

— Quero dizer que não sei o que meu sócio faz no momento, ou porque continua em Kansas esse tempo todo. Como posso saber? Talvez tenha se apaixonado por uma mulher lá.

— Talvez esteja doente— ela completou, com firmeza. — Ou talvez a senhora não devesse ter acreditado tanto num

homem que nem conhece bem, lady. — Talvez o senhor deva sair deste quarto imediatamente, sr.

Bandera. Já. — Muito bem.— John pôs o chapéu na cabeça. — Cuide-se, lady

Russell. E aproveite sua estadia em Santander. Quando e se Price decidir voltar um dia, providenciarei para que saiba onde poderá encontrá-la.

— Apreciaria muito sua atenção— ela retrucou, orgulhosa, de cabeça erguida.

Antes de sair, John ainda disse:— Por quanto tempo pretende esperá-lo, lady?— Pelo tempo que for necessário."Pelo tempo que for necessário." John repetiu a mesma sentença

para si uma centena de vezes. "Pelo tempo que for necessário."Falava sozinho, como um louco, “un hombre demente”, durante a

viagem de volta à fazenda. Até os cavalos lançavam olhares estranhos a seu solitário mas louco patrão.

John passara trinta e quatro anos de sua vida sendo honesto, sem precisar temer as consequências de suas ações e palavras. Tinha orgulho disso. Era como um homem deveria ser. Mas agora não passava de um covarde mentiroso que não aguentaria olhar para sua própria imagem refietida num espelho. Droga! E não apenas mentia para Emily, mas pedia a outras pessoas, a Tater Latham e a Hy Slocum, por exemplo, que mentissem para ela, também.

Puxou as rédeas, parando na estrada e olhando ao longe. Mas não via nada, apenas pensava no que fazer para consertar tudo. Só a verdade consertaria, naturalmente. Mas qualquer um que dissesse que conhecida a

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verdade se sentiria aliviado, devia ser um louco ou nunca amara uma mulher da maneira que ele amava Emily.

A verdade não a aliviaria. Faria com que ela se sentisse enganada e abusada. Emily o desprezaria pelo resto da vida.

Mas merecia isso, refletiu. Talvez essa fosse a resposta. Aguentar um desprezo bem merecido.

Quanto a Emily, encheria o coração de ódio em vez de amor pelo homem que acreditara amar e ser amada. Price. Um homem que nem mais existia.

John deu meia-volta ao carroção e tomou o caminho de Santander.Não havia muito a se fazer em Santander. Isso ficara claro a Emily

depois de ter dado um passeio pela pequena cidade empoeirada, seguida por um porquinho que parecia igualmente sem ter o que fazer. Dez minutos depois de haver saído do saloon, já voltava, ansiosa por se recolher a seu quarto abafado, do segundo andar.

Havia um minúsculo pórtico na entrada, sombrio, por isso ela mudou de ideia e decidiu ficar lá algum tempo, abanando-se e vendo uma ou outra pessoa que ousava passar pelas ruas banhadas de sol ardente. Dissera a John que esperaria por Price naquele lugar; mas agora, só de pensar em ficar lá mais do que alguns dias, entrava em desespero.

Sarah Slocum apareceu e, observando o aspecto de Emily, comentou:

— Esta aldeia parece um túmulo, não acha? — Eu pensava nisso mesmo agora— Emily respondeu. — E sempre

assim? — Mais ou menos. — Sarah sentou-se num banco perto dela.

Apontou para um porco que tentava encontrar um lugar à sombra. — Há mais porcos aqui do que gente. Teria sido muito melhor para você ter ficado na fazenda, casando-se com John Bandera. Não acha? Sei que mesmo a fazenda não é igual a Mississippi, de onde você veio. Mas é muito melhor do que Santander.

— Concordo— Emily observou. — John é um bom homem, lady Russell. Trabalhador. Honesto. Você

devia se considerar uma mulher feliz. — Sei disso, mas eu... Emily não sabia como explicar sobre Price e sobre as cartas, sem

parecer uma idiota. A atenção de Sarah, de qualquer maneira, estava naquele instante voltada para três homens que, montados, vinham do Leste.

— Falando de porcos— disse Sarah, levantando-se — quero preveni-la de que esses rapazes da fazenda Bettman não lhe farão nenhum mal. Mas são grosseiros, não têm boas maneiras. São clientes nossos porém nenhum deles sabe como tratar uma lady. Entende o que quero dizer,

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não?— Sarah gritou para o marido, da porta do saloon: — Rudy, Pete e Walleye estão aqui.

— É melhor que eu vá para meu quarto — Emily sugeriu, observando os três homens desmontar no meio da rua, levantando uma nuvem de poeira marrom e espantando galinhas e porcos.

— Se preferir, tudo bem— disse Sarah. — Porém, como já lhe disse, eles são inofensivos. Não precisa correr e nem se esconder. Está bastante segura comigo e com Hy.

Contudo, Emily não se sentiu muito segura quando viu três pares de olhos fitando-a à distância. No Mississippi, homens jamais a encarariam daquele jeito, pois sempre uma jovem estaria acompanhada. Excetuando-se, claro, no caso de seu encontro com Alvin meses atrás.

Ela já se preparava para sair quando um dos homens gritou:— Espere, lady. Não precisa fugir.— Trata-se de uma lady, Rudy— Sarah repreendeu-o — Portanto,

não toque nela. Você me ouviu?O cowboy de nome Rudy sorriu, e disse:— O que você falou, Sarah? Quer me explicar o que quis dizer com

não toque nela?— O que você ouviu. Lady Russell é noiva de John Bandera. Rudy parou de sorrir. — Achei mesmo que essa informação arrancaria o sorriso de seus

lábios— disse Sarah. — Hy tem um barril de cerveja lá dentro, amigos. Entrem no saloon.

Emily começou a se retirar, mas sentiu que alguém a segurava pelo cotovelo.

— Um minuto, minha beleza. Como é possível que uma mulher bonita como você se interesse por um mestiço como John Bandera? Você não é daqui, é?

Emily olhou para o rosto barbado do homem e achou que ele era o de nome Walleye.

— Sou do Mississipi— respondeu, puxando o braço. — De um lugar onde homens não dirigem a palavra a mulheres na rua, a menos que as conheçam bem.

— Mas acontece que não está no Mississipi agora.— Walleye riu. — Está no Texas. E acontece que não sou um cavalheiro. Não fui, pelo menos na última vez em que estive com uma mulher.

O terceiro cowboy, Pete, riu muito e comentou:— Não, você não foi um cavalheiro, Walleye, quanto a isso não há a

menor dúvida. Mas vamos deixar nossa lady em paz, amigos. Viemos aqui para molhar a boca e não o sexo.

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— Fale por você, Pete— Walleye resmungou. — E quando foi a última vez em que viu uma lady sentada à porta de um saloon? Quando foi?— ele tornou a segurar o braço de Emily e disse: — O que está fazendo aqui, boneca? Espera algum homem para lhe pagar uma cerveja e depois levá-la ao quarto do segundo andar?

— A lady está esperando por mim. John Bandera aparecia junto à porta do saloon. Seu rosto estava

escuro como a tempestade, e a voz profunda como a trovoada. — Deixe-a, Walleye, se quiser continuar vivo— alguém disse a ele. De onde John viera, Emily não tinha idéia, mas sabia que nunca se

sentira tão feliz em sua vida. Reconhecia, também, que nunca vira ninguém com aparência tão perigosa como a de John, naquele momento. Ao lado dela viu Walleye engolir em seco e largar-lhe o braço.

— John estava brincando— disse Pete, tentando apaziguar os ânimos dos dois homens. — Por onde anda seu senso de humor, Bandera?

— Nunca tive um.— John foi para perto de Emily e segurou-a pela cintura. — Esta lady me pertence. Ninguém causará problemas a ela.

— Não, mas só se ela não quiser os problemas— sussurrou Walleye, com olhar de lobo mau.

— O único problema que tenho no momento é sede— disse Pete, empurrando Walleye para a porta. — Vamos experimentar aquela cerveja?

Mesmo depois que os cowboys entraram no saloon, John continuou segurando Emily pela cintura. Ele ainda tinha expressão de ódio no olhar.

— Bem, tudo isso foi muito desagradável— Emily comentou, tentando fingir que o incidente não a apavorara. — Mas muito obrigada, John, sou muito grata por sua interferência.

— O carroção está aí fora— disse John. — Vá buscar suas coisas.— Mas acabei de chegar— Emily protestou.— E agora vai sair.Emily retesou o corpo. Ele usava o mesmo tom de voz que usara

minutos atrás, falando com os três cowboys. Duro. Inflexível. Provocando-a a discordar. E, bastante estranho, mesmo ressentindo-se da atitude de domínio de John, Emily de repente viu-se grata em poder voltar à relativa segurança da fazenda.

— Muito bem— respondeu ela com toda a calma que conseguiu ter, como se a viagem de volta tivesse sido sua opção. — Apenas quero entrar e me despedir de Sarah.

— Vá esperar no carroção— John ordenou. — Mandarei chamar Sarah.

— Mas eu...John deixou escapar uma blasfémia em espanhol e agarrou-a pelos

ombros.52

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— Você vai me esperar dentro do carroção ou a largarei aqui. Nada de muitas malas. Nada de despedidas. Nada de nada. A escolha é sua.

— Mas eu apenas quero...— Silêncio!John sacudiu-a então, com força suficiente para fazer com que os

cabelos longos de Emily se desprendessem da fita. Ela rangia os dentes. Se John parecera raivoso minutos atrás, agora assemelhava-se a um selvagem.

— Ouça-me, pelo amor de Deus, Emily. Entre no carroção. Agora. Não me faça matar um homem hoje só porque você é linda.

CAPÍTULO VIII

— É verdade mesmo o que você disse, John?— Emily lhe perguntou, quebrando o silêncio. — Iria de fato matar um homem?

Estavam já bem longe de Santander. Exaustos. Ele, Emily, e o silêncio que reinava entre os dois. A pergunta o surpreendeu, mas não a pessoa que fizera a pergunta.

A mulher que ele conhecia tão bem abominava a violência, mesmo nas formas as mais insignificantes. Ela lhe escrevera sobre o assunto tantas vezes, durante anos. Lembrava-se de lhe haver contado que uma vez enrolara uma aranha num lenço e a levara para fora da casa, em vez de pisar no inseto e matá-lo.

Quando tinha dez ou onze anos de idade, salvara um pequeno esquilo da boca de um cão, e o alimentara durante algum tempo até o animal ingrato mordê-la e abandoná-la, fugindo para o mato. Batizara-o de César Augusto. Gus, para os íntimos. Mas como ele, John, não era Price, não poderia conversar sobre o assunto.

E, uma vez não sendo ele o nobre Price mas um selvagem, um mestiço, achou que sua ameaça de violência em Santander não causaria surpresa a ela. E se perguntava, agora, como Emily conseguira disfarçar sua desaprovação aa voz e o desdém na expressão.

— Isto é o Texas— John respondeu à pergunta dela. — As coisas são diferentes aqui. Precisamos usar a força. Homens, pelo menos, a usam.

— Incluindo você? — Sim, me incluindo. Não sou diferente dos outros.— ela fitou-o de

um modo estranho, enigmático, mas com uma sombra do sorriso. Se não a conhecesse bem, pensaria que Emily estava flertando com ele.

— O que houve?— perguntou. — Por que está sorrindo? — Você voltou a Santander...

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— Sim, voltei. — Por quê? — Por que acha que eu voltaria?— a pergunta de John não foi por

não ter entendido o que Emily dissera, mas por não saber que resposta dar. Não estava preparado a dá-la. Pior do que um covarde, era um covarde apaixonado.

E então, inadvertidamente, disse a verdade: — Quis ver você outra vez.— Oh! Após aquela exclamação ela não disse nem mais uma palavra.

Meramente permaneceu sentada, olhando para a frente, mexendo com a alça da bolsa, com as luvas, com a renda da beirada da manga.

A reação de Emily foi a que John esperara, não a que ele merecia. Provavelmente, pensou, Emily era educada demais e bondosa demais para lhe dizer que, embora grata por ele haver aparecido salvando-a de uma situação desagradável com os cowboys, simplesmente não estava interessada nas atenções de um mestiço de coman-che. De que outra maneira poderia Emily responder?

Mais uma vez, o silêncio ocupou um impenetrável lugar entre eles dois.

Parecia que viajavam durante horas já, por isso Emily concluiu que deviam estar perto da casa da fazenda agora. Ficara silenciosa por tanto tempo que achou que sua voz sairia rouca se tentasse falar.

“Quis ver você outra vez”. John queria vê-la outra vez!O que deveria ela responder?Desencorajá-lo imediatamente? Ou rir como a mulher acostumada a

elogios? Ou fitá-lo, furiosa pelo atrevimento?Vou apenas fingir que não ouvi o que você disse, John. Ela devia ter

falado. E agradeço-lhe se não comentar mais sobre isso no futuro. Preciso lembrar-lhe, sir, de que estou comprometida com seu sócio?

Mas o caso era que ela, Emily, não estava indignada. Surpresa, sim. Atônita. Até secretamente sentia-se entusiasmada pela declaração de John. Deus que a perdoasse se errava, mas também desejara vê-lo de novo. No instante em que ele saíra de Santander, pedira aos céus que voltasse.

Olhando as mãos bronzeadas de John segurando as rédeas, imaginou-ás entrelaçadas em seus dedos alvos, e quisera mais uma vez tocar-lhe a pele quente como na noite em que rasgara as saias para colocar as faixas nas costelas machucadas. Uma onda de calor que não tinha nada a ver com o sol quente do Texas espalhou-se pelo pescoço e pelas faces. Seu coração estava esquisito, vazio e cheio ao mesmo tempo.

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Nunca antes Emily experimentara atração física semelhante por outro homem. Por mãos escuras e braços fortes, musculosos. Pelo sotaque de ressonância exótica de espanhol. Pelo aroma de sabão e trabalho duro. Pelo estalo do cinto de couro, o tilintar da fivela de metal, a música das esporas.

Como conhecesse John Bandera muito pouco, a atração que sentia só podia ser física, mas o poder dessa atração a assustava. Era como algo vivo que se enrolava em seu corpo, regulava as batidas do coração, fazia o sangue correr mais quente. Em contraposição, seus sentimentos para com Price pareciam agora pálidos e etéreos, nascidos de uma união espiritual que não tinha nada a ver com os prazeres e tentações da carne.

Emily se perguntava se isso acontecia pelo fato de ela ter perdido a inocência. Agora que deixara de ser virgem, seria mais suscetível aos desejos físicos? Amante de sexo uma vez, amante de sexo para sempre? Seria esse seu destino?

Ao se aproximarem da fazenda, ocorreu a Emily que se Price estivesse lá, de volta de Abilene e esperando-a no pórtico, sua primeira reação seria de desaponto. Desaponto! Desaponto ao deparar com seu querido Price, que ansiara ver durante seis longos anos?! Poderia isso ser possível?

E então, como se o destino quisesse puni-la, havia na entrada da casa um homem alto, magro, de cabelos louros. Santo Deus, não pode ser!

— Price?!— ela sussurrou, os lábios trémulos. A seu lado, John não falou nada, mas chicoteou os cavalos para que

chegassem mais depressa. Quem quer que fosse ele, o homem foi ao encontro do carroção,

dando a impressão de inclinado a criar problemas. John endireitou o corpo, pronto a pegar a pistola caso houvesse

necessidade. O desconhecido parecia não estar armado, mas isso nunca se podia saber com o tipo de roupa que ele usava. Sempre era possível uma arma na manga do paletó, uma faca na bota. Armado ou não, o homem tinha o rosto rubro e os olhos faiscavam de ódio. Perigoso!

— Emily Russell— ele disse, quando já bem perto do carroção —, você tinha de ter vergonha do que nos fez passar. Eu devia estrangulá-la, sua tola, criatura sem consideração por ninguém.

O maldito berrava tanto que chegou a espantar os cavalos. John precisou segurar as rédeas com toda força, para os animais não dispararem.

— Onde foi se meter?— o homem continuava. — E quem é esse diabo a seu lado? Por certo não se trata de Price McDaniel.

— Elliot!— Emily exclamou.— Conhece esse indivíduo?— John perguntou a ela, sem tirar os

olhos do intruso.55

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— Conheço. É meu irmão. — Seu... — Sou irmão e tutor dela— Elliot Russell berrou. Cruzou os braços e

perguntou a John: — Agora, se não se importa, eu gostaria de saber quem é o senhor, sir.

O sir foi pronunciado mais como um insulto do que como forma cortês de tratamento. Por isso John respondeu com a mesma arrogância:

— Esta é minha terra e aquela é minha casa, sir. — Ele é John Bandera, Elliot— Emily retrucou. — E meu amável

anfitrião, devo acrescentar. Como ousa entrar aqui e agir com tamanha grosseria?

John enxergava em Elliot os mesmos traços de família agora, e também o mesmo temperamento. O rapaz sacudia um dedo em riste no rosto de Emily enquanto ela apontava a sombrinha na direção do irmão. Os cavalos ficavam cada vez mais assustados, relinchando e prontos a disparar para a frente ou a voltar para trás.

— Ajude sua irmã a descer, mister, antes de os animais irem parar na próxima aldeia— John ordenou a Elliot. — E você— disse a Emily —, jogue fora essa sombrinha antes de arrancar o olho de alguém.

— Seu eu o fizer, não será por acidente— Emily sussurrou. — Sabe por que ele está aqui, não sabe, John? Meu irmão quer me arrastar de volta a Mississipi.

— Ninguém vai arrastar ninguém, Emily— disse John calmamente. — Não, a menos que sejam estes cavalos. Desça agora. Já.

Resmungando o tempo todo, Emily permitiu que o irmão a ajudasse. Uma vez no chão, ela apontou a sombrinha como uma espada, abrindo caminho.

Suspirando, John conduziu os assustados cavalos à estrebaria, passando por entre os dois combatentes," enquanto Tater Latham ria da porta.

— Sabe, chefe, se o general Lee tivesse tido umas mulheres armadas de sombrinhas mortíferas como essa, de certo não teria perdido a guerra— sussurrou Tater, sacudindo a cabeça. — Qual a razão de tanto barulho?

— Me matem se eu sei. Cuide destes animais, por favor, Tater.— John apeou. — Há quanto tempo esse homem está aqui?

— Desde o meio-dia mais ou menos. O carroção, que carrega lama de Corpus Christi, deixou-o aqui. E o homem ficou andando de um lado para o outro, atormentando a sra. Fuentes, irritado porque ela não entendia uma palavra do inglês. Então veio a mim, fazendo todo o tipo de perguntas.

— Que perguntas?— John franziu a testa. — Começou me perguntando por onde andava lady Russell... E

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quando não lhe dei uma resposta satisfatória, começou a fazer perguntas sobre McDaniel.

John sentiu a terra tremer sob seus pés. Estava acostumado a manter o controle em todas as situações, porém agora sentia-se quase impossibilitado.

— E o que você respondeu? — Sobre McDaniel?— Tater riu muito e coçou a cabeça. — Nada.

Então o maldito sulista me deixou tão irritado com sua insistência que eu teria tomado providências sérias contra o homem mesmo que ele me oferecesse uma centena de dólares.

— Bom— disse John. A terra sob seus pés ficou um pouco mais firme. Sentiu que ainda mantinha o controle da situação. No momento, pelo menos.

— Apenas fique fora do caminho dele, Tater. Eu cuido do caso. Vá até o arroio Roja e veja se é necessário se fazer algum reparo no local. O furacão do outro dia talvez tenha causado danos.

— Tudo bem, chefe. Partirei agora mesmo. Vou selar o cavalo. E não lamento nada perder essas "festividades".

— Eu também gostaria de perdê-las. Antes de selar o cavalo, coloque as malas de lady Russell dentro de casa, por favor, Tater.— depois disso, com um novo suspiro, John saiu da estrebaria e foi ao encontro dos dois irmãos que ainda discutiam calorosamente no pórtico de entrada da casa.

Talvez eu até deva me alegrar, ele pensava, por Elliot ter vindo atrás de Emily. O rapaz era, obviamente, responsável pela irmã e percorrera toda aquela distância, o que provava sua responsabilidade, embora tenha se portado mais como um galo de briga do que como um pai. Por que não segurara a irmã em casa, para começo de conversa?, John se questionava. Resolveria os problemas de todo o mundo.

Do gramado em frente da propriedade John olhou para o pórtico. Os Russell, irmão e irmã, continuavam lá. Emily abandonara a sombrinha, e encarava o pugilista. Elliot dava socos no ar. O legendário sangue quente dos mexicanos era nada comparado a esses dois pálidos sulistas do Mississipi, John disse a si mesmo.

— Eu não fugi no meio da noite— Emily dizia quando John entrou no pórtico. — Parti no carroção de Haley Gates em plena luz do dia. Tenho certeza de que Dodie lhe contou isso.

— Sim, ela me contou. E outras pessoas também me contaram, e depressa, assim que cheguei. Você e o bastardo de Sally Gates riram o caminho todo até Vicksburg, garanto.— Elliot deu outro soco no ar. — Haley Gates está dizendo a todos que você é amiga dele agora. E a amiga mais querida! É escandaloso, Emily, e humilhante.

John não se admirava de Price não querer voltar para o condado de Russell. Ele nunca entendera bem as razões de seu sócio até o momento.

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Tampouco entendera a real natureza do desafio de Emily mantendo correspondência com um dos mais malvistos filhos do condado de Russell. A ida de Price para o Texas, John entendia agora, fora um ato de bravura que mereceria uma medalha.

— Tater vai trazer sua bagagem— John disse a Emily. Porém, antes que ela pudesse responder, o irmão tomou a palavra.

— Não será necessário. Deixe tudo lá. Quero comprar seu carroção, Bandera. E os dois cavalos.— ele pôs a mão no bolso tirando de dentro uma carteira de couro. — Trezentos dólares serão suficientes?

— Não estão à venda.— Quatrocentos, então? Ouça, homem, dê o preço. Queremos partir

o mais depressa possível.— Já lhe falei que não estão à venda.— E não vamos partir, Elliot— disse Emily. — Pretendo ficar aqui.

Você não tem direito...— Fique quieta, Emily— o irmão ordenou. — Vai fazer o que eu lhe

mandar. Já causou a nossa família toda a dor e embaraço que teremos agora de aguentar.

— Nesse caso devia ter muito prazer em se livrar de mim, Elliot. — Não me livrarei de você, sua endiabrada, até que se case,

entendeu?— Elliot olhou ao redor. — E não vejo Price McDaniel em parte alguma com um buque na mão ou uma aliança. Você vê? Para se casar percorreu toda essa distância, não foi?

— Você não vê Price porque ele está em Abilene, Kansas— Emily explicou. Em seguida acrescentou: — A trabalho.

Elliot fitou John, esperando uma confirmação, como se não pudesse acreditar numa mulher, e naquela em particular.

— Ele está viajando— John confirmou, mais uma vez sentindo uma mentira pular de sua boca como uma pedra.

— Ele sabe que minha irmã está aqui?— John sacudiu os ombros.— Emily— Elliot prosseguiu —, suspeito que seu amante sabia muito

bem que você viria para cá, por isso foi embora. Sempre tive Price como um covarde, desde criança. Duvido que haja mudado.

— Você não sabe nada sobre ele— disse Emily. — e com certeza não é um covarde. Ele é, John?

Como John não respondesse, Emily pressionou-o:— Ele é, John? Covardes não arriscam a vida para salvar a dos

outros, por Deus. Conte a Elliot como Price salvou sua vida no Exército.Elliot riu.— O Exército no qual ele se engajou para se safar de uma prisão

ianque? Esse Exército?

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— O que venceu— protestou John. Em seguida passou pelos dois irmãos indo para a porta. — Tenho alguns papéis a escrever. Se você pretende passar a noite aqui, Elliot, há muitas camas no barracão. Pegue a que preferir.— depois, sem a menor amabilidade na voz, acrescentou: — Amanhã, não quero vê-lo mais na fazenda.

Emily bateu na porta do escritório e ouviu a voz de John dizendo: — Olá? John não sabia bem se aquilo queria dizer vá embora ou entre.

Esperou um momento, indeciso, até que a porta se abrisse. Os olhos que a fitaram estavam ainda cheios de ódio.

— Meu irmão lhe deve desculpas, John, mas ele nunca as pedirá. Espero que aceite as minhas.

— Não, não aceito. Uma lady jamais deveria apresentar desculpas pelo comportamento de um tolo.— ele deu um passo atrás fazendo um gesto para que Emily entrasse.

— Elliot está acostumado a ser um tolo importante no local onde vive. Receio.— Emily sorriu, divertida. — Agora acho que entende por que Price preferiu ficar no Texas em vez de voltar ao condado de Russell.

John tinha sobre a escrivaninha um livro de contabilidade. Vendo que ele estivera ocupado, Emily falou, hesitante:

— Eu gostaria de conversar com você. Mas, se está ocupado, posso esperar.

— Não tão ocupado— John respondeu. — Sente-se. Posso pedir a Lupe que lhe traga uma xícara de café?

— Não, obrigada. Emily sentou-se, achando que a última coisa que desejava agora,

depois da gritaria do irmão durante os vinte minutos anteriores, era Lupe fitando-a com maus olhos por estar ela quase invadindo um território que não lhe pertencia.

Enquanto Elliot discutia, Emily fazia planos. Queria pedir a John se podia ficar na fazenda. Mas, claro, não poderia permanecer lá sem a ajuda dele.

— Elliot quer me levar de volta a Mississipi— disse, procurando falar com calma mesmo estando em pânico por dentro. — Não voltarei. Estou segura disso, John, daí eu precisar de sua ajuda.

— Além de pôr uma bala entre os olhos dele, não sei como poderei ajudá-la. Elliot é seu irmão, Emily, quer o melhor para você.

— O melhor para mim! Quer o melhor para si, o que consiste em me ver casada e fora de sua responsabilidade. Elliot não ficará contente com nada menos. Infelizmente acredita que meu relacionamento com Price seja produto de minha imaginação exaltada e, não importa o que eu diga, não consigo convencê-lo do contrário.— Emily fez uma pausa, depois continuou em voz mais baixa. — Mas tenho um plano, John. Pode me

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ouvir?John fitou-a com certa suspeita. Em seguida concordou.— Fale.— Elliot partirá, mesmo contra sua vontade, se eu lhe garantir que

meu futuro está assegurado. Uma vez que Price não está aqui para comprovar minha idéia, pensei que... bem... você está aqui e... talvez você...

John levantou-se dum salto.— Ora! Um minuto, Emily. O que pretende me pedir?— É mais do que pedir, John, é suplicar. Se você convencer meu

irmão de que deseja se casar comigo, ele partirá amanhã e nunca mais voltará aqui. Deixarei de ser da responsabilidade dele. Elliot me considerará propriedade de meu marido e lavará as mãos. E eu serei livre.

John andou até a janela e ficou olhando para fora. Não disse uma palavra. Como se não a houvesse ouvido.

— John? Estou suplicando sua ajuda. Pode fazer isso para mim?— Tenciona dizer a seu irmão que eu a pedi em casamento?— John

falou vagarosamente, sem se virar. Emily não podia saber se o espanto manifestado na voz dele era visível no rosto.

— Trata-se de deslavada mentira, naturalmente— ela reconheceu —, e sei que você é um homem honesto, não inclinado a faltar com a verdade. Porém seria apenas por um dia ou dois. Vai funcionar, tenho certeza de que vai.

— Não, não vai. Elliot jamais acreditará nisso. — Vindo de mim, não— Emily concordou. — Contudo, se você falar

com ele, John, e tornar sua intenção clara, como pode Elliot não acreditar? Ele pulará de alegria à perspectiva de meu casamento. Tudo que meu irmão deseja é que eu saia da sua responsabilidade.

John virou-se para ela, não com a expressão de surpresa, como Emily imaginara, mas sombria. Melancólica, mesmo. Fitou-a demoradamente antes de responder.

— Seu irmão nunca permitirá que você se case comigo.— Ao contrário. Ele permitirá que eu me case com qualquer pessoa

que não use saia, apenas para me tirar de suas costas. Conheço meu irmão. Acredite-me.

— Talvez. Mas Elliot conhece você, também, e em momento algum acreditará que a irmã se casaria com um homem sem sentir amor por ele.

— Nesse caso, fingirei.— Que me ama?— ele perguntou, com suavidade na voz.— Sim, sim!John ficou sério durante alguns segundos, depois sorriu.

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— Acha que poderia fingir tão bem a ponto de convencê-lo?— Sei que poderia. Tenho certeza disso. Por favor, por favor, diga

que vai me ajudar.— Tudo bem, então. Também fingirei que te amo, Emily. Mas apenas

por pouco tempo...

CAPÍTULO IX

Jantaram tarde naquela noite, os três na sala de jantar de mesa de mogno e cadeiras entalhadas pertencentes a Price. A sala não fora usada desde o desaparecimento de Price. John jantava na cozinha, ou no escritório, ou no barracão com seus homens.

Ele sempre se sentia pouco confortável naquela sala. Ficar olhando para os retratos pálidos de McDaniel, de nariz comprido e lábios finos, fazia mal a sua digestão e a seu humor. E esse humor não estava nada bom, pois quando Lupe os serviu bateu com força no prato de Emily, quase quebrando-o.

Elliot Russell, por outro lado, parecia relaxado naquele ambiente familiar.

— Um ambiente que eu não esperaria numa fazenda.— foi como o homem classificou a sala, ao entrar.

E agora ele saboreava com prazer as costeletas de porco, preparadas pela sra. Fuentes, e a tortilla. Falava quase que exclusivamente com a irmã. Olhava para John, na cabeceira da mesa, como se olhasse para um móvel qualquer.

Em frente ao irmão, Emily sentava-se na beirada da cadeira. Comia como um passarinho. Fitava John de quando em quando, chegando a cutucá-lo com o pé por baixo da mesa a fim de fazê-lo se lembrar, mais uma vez, da combinação.

Como se ele pudesse se esquecer! Como se fosse possível!Emily às vezes duvidava que seu irmão preconceituoso fosse

acreditar que ela se casasse com um mestiço! Quanto a John, aceitara com prazer a oportunir dade de demonstrar seu amor. Seu amor mas, para os outros, "pretenso" amor.

Durante pelo menos algumas horas ele, naquela dia, iria dedicar amor a Emily. Apesar de se tratar de um teatro preparado para Elliot, fecharia os olhos e se imaginaria vivendo a realidade. Ter Emily em seus braços por algumas horas era mais, muito mais, do que esperara.

— John salvou minha vida por ocasião de um tornado, sabe, não?— Emily dizia ao irmão. — Aconteceu logo após minha chegada aqui.

— Mesmo?— ele acabara de cobrar o último pedaço da tortilla com 61

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uma colherada de molho, colocando-o na boca. Fechava os olhos enquanto mastigava. — Emily, você precisa pedir àquela mulher a receita da... da... como se chama isto?, para dá-la a Delia. É bem melhor do que pão de milho.

— Chama-se tortilla— Emily informou-o, tentando pronunciar a palavra da maneira certa, com sotaque espanhol.

— Ah— Elliot sussurrou. — Uma delícia! E uma iguaria espanhola ou mexicana?

— Mexicana— Emily respondeu.— Entendo...— ele empurrou o prato vazio e em seguida tirou do

bolso um charuto. — Posso fumar, irmã?— perguntou.— Claro.— apontando para o irmão, ela disse: — Talvez nosso

anfitrião também apreciasse fumar um, Elliot.Elliot acendeu vagarosamente seu charuto, expeliu uma baforada

produzindo uma nuvem de fumaça. Depois perguntou a John:— Aceita um, Bandera?— Não, obrigado.Elliot começou a passear pela sala, examinando retrato por retrato.— Bandera, qual é exatamente sua origem?— indagou, de repente.— Não sei— John respondeu.— Oh?!— John é parte índio— Emily disse, no mesmo tom de voz como se

estivesse informando o irmão que John tinha sangue azul.— Oh, não diga!— Elliot expeliu nova baforada. — Realmente? E a

outra parte, qual é?Ele perguntou num tom seco assumindo que a "outra parte" não

poderia ser de nada mais civilizado do que serpente ou rato.— Lobo— John respondeu, feliz por satisfazer a expectativa do

desagradável hóspede. Pôs o guardanapo sobre a mesa, puxou a cadeira e disse: — Refrescou um pouco lá fora. Alguém aceita dar um passeio?

O sol se punha no horizonte e soprava uma brisa suave vinda do sul, sacudindo a folhagem rendada das árvores e a saia de seda de Emily enquanto ela caminhava ao lado de John. Elliot não aceitara o convite de passear, para grande alívio de Emily. Preferira permanecer no pórtico com o segundo charuto e um cálice de tequila substituindo seu conhaque de depois do jantar.

— Elliot é detestável— comentou Emily assim que pôde falar sem ser ouvida.

— Não pretende desculpar-se por ele de novo, pretende?Por causa da nota divertida na voz de John, Emily fitou-o. O

avermelhado do pôr-do-sol enfatizava o bronzeado da pele, e os olhos 62

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tinham um tom de amêndoa. Ela achou que jamais o vira tão atraente como naquele instante.

E, no momento em que Emily chegava a essa conclusão, John entrelaçou-lhe os dedos nos dele.

— Casais apaixonados seguram as mãos— disse. — Provavelmente seu irmão esteja nos olhando.

— Sem dúvida.Emily deixou escapar um suspiro, parte de alívio por John estar

seguindo o programa combinado, e parte por prazer ao sentir o contato da mão quente dele.

— Obrigada, John. Você esteve tão quieto durante todo o jantar que me preocupei achando que tinha mudado de idéia quanto a me ajudar.

— Cheguei a mudar de ideia. Seis vezes ao menos. Talvez sete. Não sei. Mas agora voltei a aceitar o que você me propôs.

— Sou-lhe grata, John.Emily virou a cabeça para trás a fim de ter certeza de que o irmão

ainda olhava na direção deles. Sim, olhava. E os observava intensamente. Emily se perguntava, contudo, se ele podia perceber, a tanta distância, que estavam de mãos dadas. Podia também ser que Elliot não olhava para eles, mas para o maravilhoso pôr-do-sol do Texas.

— Acho que dar as mãos apenas não dá a impressão de noivado, John— Emily comentou. — Que acha de nos abraçarmos?

— Tudo bem. Se é o que deseja... Ele parou e envolveu-a com os braços, num perfeito movimento de

câmara lenta. Emily pressionou o rosto contra o tórax de John e sentiu as batidas fortes do coração, batidas essas que reverberaram por todo seu corpo. Como música, ela pensou. E música contagiante, pois acompanhava as batidas-de seu próprio coração. Os dois corpos pareciam um só.

Emily suspirou e, para sua grande surpresa, John fez o mesmo. Estaria John também tendo prazer naquele abraço? Tanto prazer que valera um suspiro? Ou estaria ele apenas tentando ser perfeito no teatro planejado?

Sendo este último o sentimento verdadeiro, a atuação de John era de primeira categoria. Ele encostara os lábios na testa de Emily, sussurrando qualquer coisa em espanhol, enquanto a puxava mais para perto de si. Emily chegou a pensar que o desejo de John por ela não era somente um ato de representação.

John parecia tão forte, e ela tão segura nos braços de musculatura firme! Tão segura. Emily fechou os olhos para fingir que se tratava de Price e que seu sonho enfim se transformava em realidade. A mesma coisa fizera meses atrás com Alvin. Porém não se sentira segura com Alvin. Sentira-se? Na verdade, não sentira nada. Nada comparado ao que

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sentia agora.Os lábios de John estavam tão próximos que ela pôde quase prová-

los. Imaginou-os doces como chocolate derretido.— Corazon. Mi corazon. Te quiero.— Seu coração?— Emily sussurrou, à guisa de resposta.— Si. Meu coração.— E as outras palavras?— Te quiero, Emita. Eu te amo, Emily.Bem lentamente, os lábios de John uniram-se aos dela, quentes,

deliciosos, úmidos. Por um momento Emily achou que iria desmaiar devido ao calor que se desprendera através do beijo apaixonado.

Emily não queria que aquele beijo tivesse fim. Nunca!— Assim que pudermos ter os necessários papéis prontos— declarou

John, segurando com mais força o braço de Emily, receoso de perder totalmente as forças pois sentia seu corpo todo amolecer.

— Você precisava ter sido tão categórico?A pergunta escapou dos lábios trémulos de Emily logo depois que

retomaram o caminho da casa, andando durante algum tempo atrás de Elliot.

Engraçado, John pensou. Ele se fazia exatamente a mesma pergunta. Sem dúvida, o fato de ser categórico sobre a data do casamento concorrera para Elliot Russell acreditar na mentira. O homem poderia não estar se regozijando tanto em ter como cunhado um mestiço da cor do café, cabelos escuros, enfim, um selvagem falando espanhol; mas seu alívio à perspectiva de se livrar da irmã solteirona, e logo, lhe pareceu evidente e valiosa. Elliot Russell chegou a ponto de apertar a mão de John e de lhe oferecer um charuto.

John tentava se convencer de que dissera o que deveria ser dito sobre a data do casamento. Simplesmente não sabia que funcionaria tão bem. E funcionou. Céus, funcionara como um verdadeiro milagre.

Mas embora tivesse se considerado um mentiroso digno, merecedor de um prémio pelo que conseguira, ainda não se considerava digno aos próprios olhos. Não fizera aquilo pelo bem do irmão de Emily, de forma alguma. Mentira porque queria se casar com Emily! Essa fora a razão primordial da mentira! Tanto quanto fora a razão primordial da verdade, dizer que a amava. Queria se casar com Emily. Não mentira, de forma alguma, ao confessar seu amor.

Foi enquanto a beijava que John criara esse esquema só seu, nada a ver com os planos de Emily. Mas um plano quase tão tolo, tão arriscado e também tão astuto como o de Emily.

— John— ela disse mais uma vez, ainda sussurrando porém com mais insistência agora —, não acho que tenha sido uma boa idéia dizer a Elliot o que você disse. Sabe, talvez os papéis para o casamento não

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levem tanto tempo assim a ficarem prontos. — Dois ou três dias, imagino. — Então, não disse? E agora? O que vamos fazer? Viu o que

aconteceu? Sim, ele via. E o que via com mais clareza de tudo era que

aproveitara a oportunidade mais perfeita, talvez única na vida, de fazer sua aquela mulher que ele amava havia tanto já. Lady Emily Russell, do condado de Russell, que acreditara estar apaixonada por Price McDaniel, que nunca sonhara se casar com homem algum que não fosse sulista igual a ela, seria sua esposa. Seria a noiva de John Bandera.

— Tudo o que vejo— ele respondeu finalmente — é um homem que parece estar muito contente em deixar a irmã caçula ficar no Texas. Foi essa a finalidade de seu pequeno plano, não foi? Ou será que entendi mal?

Emily parou de andar, puxando o braço, fitando-o com fogo nos olhos azuis e esforçando-se para não gritar.

— Meu pequeno plano, como você o chama, John, não incluía um verdadeiro casamento, por Deus.

— Emily. Mi corazon.— ele ria suavemente ao to-mar-lhe o braço de novo. — O que faz você pensar que haverá um verdadeiro casamento?

CAPÍTULO X

Os papéis ficaram prontos no dia seguinte. Em apenas um dia! Isso graças aos esforços de Elliot Russell que batera em várias portas, dera socos em várias mesas em Corpus Christi e, para tudo isso e sem o mínimo constrangimento, usara o nome de seu ilustre primo, o senador Russell do Mississippi. O pobre do juiz ficara muito impressionado e correra para realizar a cerimónia a fim de que Elliot pudesse partir ao meio-dia no vapor The Biloxi Belle.

— Bem, você é a sra. Bandera agora, minha irmã— Elliot disse, sorrindo para ela enquanto estavam em pé no cais.

Emily teve certeza de que a umidade dos olhos do irmão era mais por causa da forte brisa do Golfo do que por ternura ou sentimentalismo.

Elliot não sorrira para Emily em anos, desde quando assumira o peso da responsabilidade pela irmã solteira. Pensando bem, Elliot não sorrira muito para ela nem quando eram crianças. Cuidara da irmã mais por dever do que por afeição. E agora que Emily se tornara esposa de John Bandera, seu dever de irmão mais velho estava cumprido.

— Por favor, dê lembranças minhas a Dodie e às crianças— Emily 65

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pediu. — Diga a ela que escreverei com frequência. E, quem pode saber, Elliot? Talvez John e eu façamos uma visita ao condado de Russell muito em breve.

— Ótimo! A expressão do rosto de Elliot não foi de muito entusiasmo,

contudo, Emily constatou. Seu preconceituoso irmão de certo já pensava em como explicar aos amigos a cor bronzeada de John Bandera, os malares salientes, os longos cabelos negros. Porém, conhecendo o irmão como conhecia, Emily já imaginava que ele, apenas de volta ao condado de Russell, espalharia o boato de que a irmã se casara com um espanhol nobre ou, quem sabe, com um potentado hindu.

No cais, John mantivera distância dos dois irmãos a fim de permitir que se despedissem com mais privacidade. Emily olhava o tempo todo para sua mão esquerda, onde brilhava a aliança de ouro. Ficara atônita naquela manhã, sem palavras, chocada até, quando John tirara do bolso, na sala do juiz, a jóia. Uma aliança! De ouro! Isso fizera tudo parecer tão... oficial!

Até aquele momento, pelo menos para ela, o plano era apenas uma artimanha inocente que a ajudaria a ficar no Texas. Mas, ao ver a aliança de ouro em seu dedo anular, quase achou que havia cometido um sacrilégio e até chegou a pensar em confessar ao irmão seus pecados e pedir-lhe que a levasse de volta a casa.

Porém casa, ela lembrou-se depressa, era o lugar onde seu filho estaria destinado a crescer e a ser conhecido como o filho bastardo de Emily Russell. E ela não deixaria que isso acontecesse. Não deixaria. Não, mesmo que tivesse de se casar com o próprio diabo, para impedir.

Talvez agira certo, ela admitiu, ao lançar um olhar para John que usava um terno preto, calça justa e botas brilhando. Os cabelos longos estavam puxados para trás e amarrados com uma fita preta de veludo, o que faria qualquer homem parecer efeminado mas que concorria para dar a John uma aparência mais masculina ainda, pondo em evidência os fortes traços de seu rosto, os malares salientes. Ele estava atraente como... o diabo.

— Cuide bem dela, Bandera— Elliot pediu. Sorrindo, John respondeu, segurando Emily pela cintura:

— Pretendo. Emily pensou de repente, e mais uma vez, que John continuava

representando seu papel, e incrivelmente bem, até o navio deixar os dois sozinhos no cais.

E agora?, ela se perguntou. Santo Deus, e agora, o quê?O irmão se fora. Bons ventos o levassem! Agora, enquanto os

recém-casados voltavam para o hotel, John começou a se sentir mais como um homem e menos como um animal exposto numa jaula. Ao lado, ouviu sua noiva suspirar.

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— Está feliz, Emily?— perguntou, olhando para o pequeno chapéu de veludo que combinava com o vestido azul-escuro. Teve ímpetos de tirá-lo da cabeça dela e deixar que os cabelos louros lhe caíssem pelas costas, como um xale de seda amarelo.

— Feliz?— ela repetiu, parecendo ter dificuldade em entender o sentido da palavra "feliz".

— Seu irmão foi embora e você ainda está no Texas. Era o que queria, não era?

— Sim, o que eu queria— Emily sussurrou, não muito convicta. — Mas... mas, John...

O resto da frase foi inaudível devido ao ruído da brisa do golfo. — Sim, Emily? — Agora que estou aqui, e agora que estamos... casados, me

pergunto o que irá acontecer depois? Tentando não revelar, pelo tom de sua voz, a felicidade imensa que

sentia, ele respondeu:— Não sei, querida. O plano foi arquitetado por você. Diga-me você

o que virá depois.Emily parou de andar, fitou-o e respondeu:— Bem, não sei. Não tenho a mínima idéia. John não saberia dizer se fora o espanto de Emily o que ele achara

engraçado, ou se o súbito reconhecimento de que aquela linda mulher era sua esposa, mas teve uma explosão de alegria, rindo muito. Mal reconheceu o som de sua risada, pois ria assim tão raramente! Sentia uma felicidade imensa subindo pelo peito como um pássaro levantando vôo.

Estava feliz! Mãe de Deus! Era o homem mais feliz do Texas. Não. Da terra!

Emily fitou-o, confusa e boquiaberta, enquanto John a fez girar. Carregou-a. A brisa envolveu a ambos nos metros e mais metros do tecido da saia azul de Emily.

— John, você ficou louco?— ela disse, com voz mais de prazer do que de censura. — Ponha-me no chão. Agora. Neste minuto.

Ele não a pôs no chão imediatamente, mas a fez escorregar ao longo de seu corpo. Bem devagar. Sensualmente. E nem mesmo as inúmeras camadas de algodão e seda impediram-no de sentir as delicadas ondulações do corpo de Emily, o formato dos seios, o palpitar do coração contra o seu.

Passou-lhe pela cabeça naquele instante que um raio poderia matá-lo e ele não se importaria de jeito nenhum, pois durante toda sua vida jamais conhecera nada tão delicioso, nada melhor do que aquilo.

Então, antes que os pés de Emily tocassem o solo, enquanto o corpo dela ainda estava grudado ao seu, e os olhos azuis brilhavam de prazer e

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espanto, John tentou sussurrar o nome dela, dizer-lhe que a amava Contudo, a voz morreu-lhe na garganta. Ele beijou-a, então.

Os lábios de Emily eram tão suaves, a boca tão generosa, e ela estranhamente estava tão sem medo algum, que John entusiasmou-se e aprofundou o beijo, usando a língua para prová-la, os dentes para testar a carne dos lábios carnudos.

Um desejo selvagem apoderou-se dele. Jamais se sentira assim antes. Achou que suas pernas fraquejavam.

Foi Emily quem interrompeu o beijo, inclinando a cabeça para trás, tentando tomar fôlego. O rosto dela estava pálido, com exceção de manchas avermelhadas nas bochechas. John não conseguiu ler as emoções através da face de Emily, mas suspeitou que ela estivesse furiosa. Colocou-a no chão, esperando pelo tapa que, aliás, bem merecia.

No entanto, quando Emily ergueu a mão foi só para arrumar o chapéu e o vestido, e finalmente para apagar da boca a evidência do beijo.

Esse pequeno gesto levou John de volta à dura realidade. E sentiu seu coração dilacerado.

— John!— Emily estava ainda quase sem fôlego, como se tivesse corrido um quilómetro. — Eu... bem... nós não precisamos mais fingir nada. Céus! Elliot já está em alto-mar agora, tenho certeza.

John deu um profundo suspiro. Não iria, de forma alguma, pedir desculpas pelo beijo que significara tanto para si. Porém achou que precisava falar alguma coisa. E disse:

— Sinto muito, querida. Sim, Elliot já se foi, não precisamos mais fingir. Prometo nunca mais fazer o que fiz. Juro.

Enquanto calçava as luvas, Emily sacudiu os ombros, dizendo: — Você não precisa pedir desculpas, John. A culpa não foi apenas

sua, eu também o beijei, certo? E foi...— ela sacudiu os ombros de novo, não podendo decidir o que dizer.

— Errado?— ele sugeriu.— Talvez.— Emily sorriu e piscou enquanto passava seu braço no

dele. — Mas foi muito agradável! Agradável, apenas agradável?, John se perguntou, ainda sentindo os

efeitos do beijo queimando-lhe o corpo todo. Agradável! Ele queria rir, gritar, dar socos no muro sólido de tijolos. O que poderia uma moça que passara a vida inteira protegida pela família saber das quentes correntes de desejo sexual provocadas por um beijo? Agradável? Apenas agradável? Mas... pensando bem, como poderia uma mulher fria, uma suave pétala de gardênia, crescida em estufa, entender dessas emoções?

Não, ela não entendia. Nem poderia. John aceitou a explicação, silenciosamente.

— Sim, foi agradável para mim também, querida. Agora venha. Você 68

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deve estar fatigada depois de uma manhã de casamento e beijo. Vou levá-la de volta a seu quarto, onde poderá descansar.

Agradável! Durante todo o caminho de regresso Emily se censurava por ter usado adjetivo tão insípido, tão de aluna de curso primário, para descrever um beijo tão indescritível.

Santo Deus, Emily reconhecia, aquele beijo acendera uma fogueira na boca de seu estômago, velas no peito, alfinetadas no cérebro e um rio de calor que descia até a ponta dos artelhos. O beijo a inflamara.

Se John não a estivesse segurando com tanta força, teria caído na calçada e ali ficado como um monte de cinzas, sem forma definida. Mesmo naquele instante, minutos depois que ele a pusera no chão, seus joelhos ainda estavam fracos, moles como manteiga.

Olhou para John a fim de constatar se o beijo causara o mesmo efeito nele. Porém não havia nada na expressão de John que revelasse alguma coisa além do propósito de levá-la ao hotel onde tinham passado a noite anterior.

Price! John com certeza sentia remorso por ter beijado a namorada do sócio. Isso pareceu explicar a Emily o silêncio súbito e a expressão quase amarga de John. Entretanto não explicava por que motivo ela, a mulher que acreditara amar Price loucamente, não tivera o mínimo sentido de culpa enquanto seus lábios pressionavam os de John.

Agora sentia-se culpada, depois do fato consumado. Mas dessa vez, Deus que a perdoasse, não podia usar a desculpa de que fingira que seu amante era Price. Fora John Bandera quem a beijara. Apenas John. Nada de encenações naquele momento. E havia sido John quem ela desavergonhadamente, até ansiosamente, beijara, retribuindo um beijo quente.

Como, Emily se perguntava, uma coisa tão errada podia fazer uma pessoa se sentir tão maravilhosamente certa?

Perdida em seus pensamentos, ficou surpresa quando John de repente disse:

— Chegamos. E guiou-a através do saguão do hotel onde os três haviam passado

a noite anterior, cada um em seu quarto. Era o melhor hotel da cidade, pois Elliot não aceitaria nada inferior.

Ela e John mal haviam chegado ao sopé da escadaria quando um empregado uniformizado os abordou, dizendo:

— Sinto muito, mas os quartos que o senhor reservou não mais estão disponíveis, sr. Bandera. Tomei a liberdade de arrumar sua bagagem que está na porta da frente.

Emily viu então suas malas com as de John ao lado de uma enorme planta, na recepção.

— O que significa isso ?— ela perguntou ao gerente. — O senhor

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não tinha o direito de mandar que entrassem em nossos quartos para mexer em nossas coisas.

Em vez de responder a ela, o gerente disse a John: — Na noite passada o senhor era um convidado do cavalheiro do

Mississipi. Eu... bem... espero que compreenda o que quero dizer com isso. Não desejamos ter quaisquer tipos de problemas.

Emily ia começar a falar quando John apertou-lhe o braço, forçando-a a calar-se. Ele respirou fundo e, quando falou, não foi com indignação ou raiva. Sua voz era baixa, incrivelmente calma.

— Lady Russell está muito cansada. Ao menos quer lhe permitir o uso de um quarto por algumas horas?

— Sr. Bandera— o gerente insistia —, entende o que quero dizer, não entende? O juiz Avery realizou a cerimônia esta manhã, penso.

— E isso é de sua conta?— Emily protestou.— Emily!— John chegou mais perto dela, pressionando-lhe o braço

de novo.John a queria passiva, porém ela não iria aceitar as ordens daquele

gerente, daquele homenzinho com cara de rato que parecia querer jogar a bagagem que lhes pertencia na rua, sem motivo aparente. E ela não entendia por que razão John agia com tanta humildade, lá em pé, aceitando ser insultado, e permitindo que sua esposa fosse insultada também.

— Sim, nós nos casamos esta manhã— ela disse, tirando a luva para que ele visse a aliança. Pôs o dedo no nariz do homem. — Olhe, viu? Somos marido e mulher. Como pode julgar algo ilícito em nosso comportamento?

Como resposta, o gerente apenas limitou-se a fitá-la friamente e a chamar um empregado para carregar as malas à rua.

— Andrew— o gerente disse —, por favor, ponha essa bagagem na calçada. O sr. e a sra. Bandera estão saindo.

— Não, nós não estamos...— Emily começou a falar.— Sim— John interrompeu-a abruptamente —, estamos saindo.Antes que Emily pudesse dizer qualquer outra coisa, John a conduzia

para fora do hotel. Um segundo mais tarde as malas foram colocadas na calçada, aos pés deles.

John respirou fundo, para se acalmar. Por muito menos ele mataria homens antes de o Exército lhe ter ensinado que precisava ter paciência, autocontrole. Isso antes de ele haver completado dezessete anos de idade.

Respire fundo, disse a si mesmo, sabendo que a vergonha do insulto passaria e, junto com ela, a raiva que o queimava. Apenas respire fundo.

— John?70

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A voz de Emily parecia vir de longe, como se ela estivesse a quilômetros de distância em vez de ali mesmo ao lado dele. John teve ódio de Emily o ter visto naquele estado, lutando para se controlar, tentando não agir como um selvagem, adjetivo que sempre lhe davam. Ela com certeza o considerava um louco. Ou pior. Enfim, John procurou encarar o rosto da mulher ali perto em vez de se concentrar em seu ódio.

Os olhos de Emily estavam cheios de lágrimas quando encontrou os dele, e John tinha certeza de que sua Emily chorava de raiva por ter sido posta para fora do hotel, e de vergonha. Em toda a vida dela, John sabia, jamais fora tratada assim, e o choque roubara-lhe por completo o brilho do olhar. Apenas minutos atrás a linda face de Emily brilhava como consequência do beijo. Agora ela estava pálida, ferida, sofrida.

A partir daquele momento sua Emmy seria verdadeiramente, e apenas, a esposa de Bandera, sujeita aos preconceitos e perigos que o perseguiram durante toda sua vida.

John abriu a boca para lhe pedir desculpas, para lhe dizer que sentia por ter sido a causa de colocá-la na mesma posição dele, por arruinar-lhe a vida, mas suas palavras ficaram presas na garganta. Foi Emily quem falou em primeiro lugar.

— Acho que devemos voltar à fazenda, John— ela declarou calmamente. — Não gosto nada disto aqui.

CAPÍTULO XI

Os cavalos pareciam tão ansiosos em voltar à fazenda quanto seus passageiros. John deixou as rédeas soltas, permitindo que os animais corressem na direção do sudoeste, enfrentando o vento e distanciando-se cada vez mais de Corpus Christi.

Emily falara pouco, quase nada, durante a primeira hora de viagem, e John ficara grato por esse silêncio. Combinava com o seu. Agora ele comparava-a a um anjo cada vez que a fitava.

Mas o Texas não era lugar para anjos. Precisava mandá-la de volta ao Mississipi. Urgentemente.

Já era noite quando chegaram à fazenda. Emily abriu os olhos, sonolenta, quando John tocou-lhe o ombro.

— Chegamos em casa?— ela perguntou, esfregando os olhos e procurando se sentar.

— Sim, chegamos em casa— John respondeu, embora um pouco triste por ela considerar a fazenda sua casa.

Chamar a fazenda "casa" foi tudo o que ela pôde fazer para evitar tocar-lhe o rosto e dizer que voltar à fazenda era o que desejara do minuto em que saíra de lá para ir a Corpus Christi. Mas o silêncio e a expressão

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dura de John a impediram de fazer qualquer coisa que o fizesse se lembrar da humilhação por que passara no hotel.

Acima de tudo, Emily quisera lhe dizer como se sentira orgulhosa por ele ter controlado o próprio temperamento. Não se esquecera do que John dissera em Santander sobre os cowboys, prevenindo-a para não o fazer matá-los só porque ela era bonita.

Ansiava em lhe dizer que se impressionara por sua atitude digna no hotel, em especial lembrando-se de que, se tivesse tido chance, ela teria dado um pontapé nas virilhas do ridículo gerente.

E mais ainda, queria confessar a John que não podia imaginar que existisse no mundo homem mais forte, mais gentil, mais nobre do que ele, e que esperava, caso seu bebê fosse homem, que crescesse na fazenda longe do mundo preconceituoso, para que se tornasse um homem exatamente igual a um John Bandera. Era tudo o que Emily queria dizer a John, logo que ele tivesse condições de ouvi-la. Precisava, sem dúvida, lhe contar tudo sobre sua gravidez. Não poderia adiar mais.

Em vez disso, apenas sussurrou:— É tão bom estar em casa!As mãos fortes de John ergueram-na pela cintura, a fim de fazê-la

descer do carroção. Ele segurou-a um pouco mais do necessário, possessivo, mesmo depois que os pés de Emily tocaram o chão.

John tomou-lhe a mão, beijou a aliança e ordenou:— Você pode tirar isso de seu dedo agora.Ela olhou para o anel por segundos. Tirá-lo de seu dedo? Tão

depressa? Aquela aliança parecia-lhe tão normal lá como se estivesse no mesmo lugar durante toda sua vida!

— Nada do que se passou foi real, querida. Tampouco nós somos reais, e você sabe bem disso— John explicou.

— Sim, mas eu... — Tire essa aliança já.— o tom de voz dele era severo agora. —

Esse maldito anel só vai lhe causar problemas aqui na fazenda.— John apontou para a casa no instante em que a jovem Lupe aparecia no pórtico.

— Juanito— a moça chamou-o, ansiosa. À luz da lanterna os cabelos longos de Lupe brilhavam como um

xale de cetim negro, e os olhos escuros pareciam de ébano. — Hola, mi Juanito — ela insistiu, com voz sensual.Lupe! A amante de John! Naturalmente que John não queria que

Lupe visse a aliança que ele pusera no dedo de outra mulher, ainda que para auxiliar essa outra mulher e não como sinal de afeto.

Emily tentou tirá-la, mas por qualquer motivo seu dedo inchara um pouco e não houve possibilidade de removê-la, por mais que a puxasse.

— Não quer sair— Emily sussurrou em pânico, sem desviar o olhar 72

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de Lupe que descia os degraus com os pés nus, ao encontro do carroção. — John, está presa.

Uma blasfémia escapou dos lábios de John segundos mais tarde, quando Lupe pendurou-se no pescoço dele pronunciando palavras que Emily não pôde entender, mas que obviamente eram de amor. Ela voltou ao carroção para apanhar seu chapéu e as luvas.

Sentiu-se de repente como uma tola. Pior ainda, sentiu-se magoada, ferida. Não que não soubesse do envolvimento de John com Lupe, ele jamais fizera segredo disso. Só que...

Só que... nada. O problema estava no próprio John Bandera, pois apesar de toda sua força admirável e impressionante autocontrole, de toda sua atração masculina, ele não era e nunca seria Price McDaniel. E se John a impressionara tanto, mexera tanto com suas emoções, como iria ela agir quando Price voltasse à fazenda?

Apanhando o chapéu e as luvas Emily foi juntar-se aos amantes. O que mais poderia fazer?

— Alô, Lupe— ela disse, forçando um sorriso. Lupe não sorriu. Examinou-a da cabeça aos pés e em seguida os olhos negros concentraram-se na mão esquerda de Emily.

— Un anillo?— Lupe encarou John, mas ele simplesmente sacudiu os ombros como resposta.

— Un anillo?— ela repetiu, agora com os olhos cheios de lágrimas e os lábios trémulos. — Juanito, cual es este?

— Nada— ele respondeu, cerrando os dentes. — Nada?!— Lupe chorava copiosamente agora, segurando a manga

de John. — Es ella su esposa? Es Ia gringa su esposa? Di mi, Juan. — Silêncio.— John puxou o braço e posicionou-se entre Emily e a

enraivecida mexicana. A conversa continuou, quente, mais quente ainda, num espanhol

violento, sem que Emily entendesse uma única palavra do que diziam. Percebeu, contudo, que a discussão havia terminado quando Lupe enfim cuspiu no chão e esbofeteou John antes de correr para sua casa.

John ficou parado um instante, pronunciando mais algumas blasfémias na direção de Lupe.

Emily continuava tentando tirar a aliança. E blasfemando também.— Se eu tivesse um pedaço se sabão, seria mais fácil. Talvez

manteiga. Ou uma colher de gordura— ela disse, à guisa de desculpa. — Não se preocupe com essa maldita aliança— John resmungou. —

Tarde demais agora.— ele pegou as malas de Emily. Ainda continuando a lidar com a aliança, Emily declarou: — Tenho certeza de que, no instante em que Lupe se acalmar, você

poderá lhe explicar a situação. E ela o perdoará uma vez entendendo o 73

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que houve. Terá de perdoar. — Você acha, não?— John sorriu. — Isso pode ser. Mas o que me

preocupa agora é se ela vai perdoar você. — Eu? — Si, corazon. Se você falasse espanhol saberia o que a pequena

Lupe acabou de dizer. Foi à cozinha buscar uma faca para com ela atravessar meu coração e depois o seu.

— Ela não podia estar falando sério. — Oh, estiava, sem dúvida estava. Agora venha. Quero vê-la dentro

da casa onde ficará mais segura. Dentro da casa, John subiu as escadas atrás de Emily, bem perto

dela o mais possível. Amaldiçoou-se por não ter previsto que seria mais prudente Emily ter tirado aquela aliança do dedo antes de chegarem. Tivera um pressentimento de que a possessiva filha da governanta explodiria se suspeitasse que sua rival a vencera.

Mas esperara apenas uma explosão de lágrimas. A faca não fora levada em consideração. Ele deveria ter admitido isso, pois sabia que Lupe era temperamental e ciumenta o suficiente para tentar qualquer coisa.

Mujeres! Mulheres! Como era possível que essas criaturinhas lindas, delicadas, pudessem fazer tamanho estrago na vida de um homem?

John pensou que, se tivesse chance de voltar atrás, não teria escrito aquela carta para o Mississipi e, quando a senora Fuentes chegasse das férias com sua temperamental filha, as teria mandado de volta ao México fazendo todo o trabalho caseiro ele mesmo.

Enquanto subia as escadas podia ouvir Lupe gritando da cozinha. Percebia que pratos eram jogados longe e concluiu que poderia se considerar feliz se tivesse um pires inteiro quando a beldade morena terminasse com sua cena de mulher mimada.

— John, não me empurre, por favor!— Emily pediu. — Não posso subir mais depressa do que estou subindo. Receio tropeçar nas saias.

Ele pediu-lhe desculpas, parou de empurrá-la, pensando que o melhor seria carregá-la. Ia fazer isso quando Lupe gritou de novo, dessa vez do sopé da escada. Ao olhar para trás, John notou que ela estava com uma faca na mão, erguida no ar, pronta a atacar.

Ele empurrou Emily para a frente e agarrou Lupe pelo pescoço, pelos cabelos, em qualquer lugar onde pôde segurá-la firme. Deu-lhe um safanão, fazendo-a perder o equilíbrio.

Lupe bateu contra o corrimão, gritando de dor agora em vez de por ciúme. John arrancou-lhe a faca das mãos. Mas nesse movimento brusco o salto de sua bota ficou preso nos babados da saia de Emily.

Aí foi Emily quem gritou, segurando na manga da camisa dele. John derrubou a faca para ampará-la com ambas as mãos. Porém... tarde demais.

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A seda da saia escapou de suas mãos e Emily rolou, degrau por degrau, até chegar ao sopé da escada. Ela percorrera grande distância na queda.

Emily teve dificuldade em recuperar o fôlego. Ficou deitada no chão, e embora tivesse os olhos abertos, não enxergava nada.

Rolara as escadas, sim. Ao menos isso ela sabia. O terrível tombo pareceu ter levado uma eternidade. Pela enormidade da queda devia ter quebrado o pescoço, e uma infinidade de ossos, mas não sentia nada quebrado. Não sentia dor, apenas não conseguia raciocinar bem.

Ele não prometeu. Não disse coisa alguma, apenas deixou escapar, num tom de voz muito baixo, uma maldição. Quando Emily segurou-lhe a manga, ele puxou-a. O colchão moveu-se abruptamente e, um segundo mais tarde a porta do quarto batia, fechando com força.

John bateu com força a porta da frente da casa também, atravessou o pórtico e foi à estrebaria. Arreou sua égua preferida, montou-a em pêlo, sem se dar ao trabalho de colocar uma sela, e saiu galopando para longe da casa, para longe da mulher que se encontrava deitada lá em cima, para longe de tudo.

Se ficasse um segundo mais poderia fazer algum mal à mulher e à criança. Deus que o perdoasse, mas houve um momento em que, cego, seus dedos poderiam ter circundado aquele pescoço alvo, sufocando-a até tirar-lhe a vida. Houve um instante em que suas mãos poderiam sacudi-la até que cada delicado osso dela se quebrasse, como os galhos de uma árvore frágil.

Então, somente um segundo após o desejo de matá-la, sua fúria mudou de direção, e ele desejou assassinar o homem que tocara em sua Emmy, que a beijara, que a amara, e que colocara a semente dentro dela.

Um instante depois ficou furioso consigo mesmo, por ter se deixado iludir pelos olhos inocentes da mulher, por seus ares de pureza, e, pior de tudo, por continuar amando-a apesar da traição.

Agora, cavalgando na direção de lugar nenhum, sem rumo, tentando não pensar, tentando não sentir, John queria alcançar as alturas e arrancar a lua do espaço. Queria fazer um buraco no céu, mergulhar as mãos para junto de Deus, cair de joelhos, chorar e nunca mais se levantar.

Fez a égua cavalgar mais velozmente, indo cada vez mais longe da casa. Enterrava os calcanhares nos flancos do animal, os artelhos nas costelas. Forçava-o brutalmente, até o quente suor da montaria espirrar em seu rosto, misturando-se às lágrimas que lhe escorriam pelas faces.

John fazia a pobre égua galopar, sem piedade, até o lombo dela ficar tão escorregadio, tão espumoso, que lhe era quase impossível continuar montado. Então o animal relinchou e parou de repente, jogando o cavaleiro no solo, estonteado e quase louco, de encontro a uma árvore cheia de espinhos.

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CAPÍTULO XII

Bem cedo na manhã seguinte John lavou-se no barracão deserto, grato por não haver ninguém por lá. Do contrário, seria obrigado a explicar a razão de seus olhos roxos e dos numerosos cortes no rosto e nas mãos.

Parecia ter tomado parte numa briga de gatos, pensou. Não, parecia ser um louco que passara a melhor parte da noite abraçado a uma árvore cheia de espinhos, enquanto gritava para o céu surdo e sacudia os punhos para a lua que mal aparecera naquela noite.

Que idiota! Que idiota.Mas, idiota ou não, chegara a uma conclusão pela manhã, uma vez

tendo clareado a mente o bastante para raciocinar. Agora, enquanto se olhava no espelho rachado do barracão, e fazia uma barba de dois dias, John procurava se convencer de que suas decisões eram as mais acertadas.

Em primeiro lugar, a sra. Fuentes e a filha teriam de ir embora da fazenda. E, quanto mais cedo, melhor. Ele pagaria à governanta o salário do mês completo e lhe daria uma carta de recomendação elogiosa, sem mencionar a atitude assassina da filha. Depois mandaria Tater Latham levá-las para onde a sra. Fuentes quisesse ir. Corpus Christi. Matamoros. Nuevo Leon. Não importava onde, contanto que ficasse distante da fazenda impedindo assim que Lupe voltasse. Detestava privar Emily dos cuidados de uma governanta, em especial agora, no estado em que ela se encontrava, mas não havia outra solução. Não poderia mais confiar na temperamental Lupe morando no mesmo teto de sua esposa e filho.

John dissera essas mesmas palavras em voz alta havia pouco, a sua égua, enquanto a conduzia à estrebaria. Minha esposa e meu filho. Agora, com a navalha encostada no rosto, sussurrava as mesmas palavras de novo. Minha esposa e meu filho.

Nem pensava mais em mandar Emily de volta ao Mississipi. Podia imaginar como os "nobres" do condado de Russell a tratariam, considerando-a manchada para sempre. Os habitantes do Texas não eram muito fáceis de perdoar, também, em se tratando de bastardos. Porém, estando ele e Emily casados no presente, não haveria grandes problemas. Não haveria bastardos na fazenda, de qualquer forma.

Nem casamento fictício. Tampouco divórcio. Emily era e seria para sempre a sra. Bandera, sua esposa, e a criança seu filho.

Olhou-se no espelho, o rosto cheio de sabão, e viu-se incapaz de suprimir um sorriso.

Era o que sempre desejara, não era? Não poderia ter planejado melhor, refletiu. Seu sonho transformara-se em realidade. Um pouco aleijado, talvez. Um pouco longe da inocência, da pureza. Mas ele poderia

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conviver bem com isso. O passado de sua Emmy não interessava mais. Havia apenas o futuro a se considerar.

E, pela primeira vez na vida, John sentiu-se como um homem com futuro.

Quando Emily percebeu movimento embaixo, suspirou fundo e sentou-se na cama apoiada na montanha de travesseiros que fora colocada atrás dela. Mesmo que não pudesse entender as palavras que voavam pelo ar, vindas de várias pessoas, entendia muito bem que emoções violentas flutuavam atrás dela. Era o mesmo que ouvir os sons de uma ópera. Pelo menos a uma ópera ela comparou a gritaria.

John fazia a parte do barítono ultrajado, Emily decidiu. A sra. Fuentes a da soprano sofrida. E havia ainda Lupe, cheia de indignação e batendo com os pés no chão, e guinchando de quando em quando. Chorando? Talvez.

O melodrama pareceu continuar por horas, do que Emily gostou muito. Isso porque, quando John terminasse com a governanta e a filha, acreditava ser ela a próxima a sentir a agulhada do mau humor do homem. Haveria dúvida sobre isso?

Mudou de posição na cama, depois suspirou enquanto alisada a colcha e a pressionava com suavidade sobre seu ventre ligeiramente aumentado.

— Tudo bem— ela sussurrou para o bebê que crescia dentro de si. — Não deixarei que ele nos mande embora, ouviu? Farei qualquer coisa, o que quer que seja, para fazê-lo nos deixar ficar aqui.

Quando ouviu o inconfundível som dos passos de John nas escadas, a reação inicial de Emily, reação instintiva, foi de pular da cama e fugir na direção oposta à porta. Contudo, a sra. Fuentes tornara bem claro, com gestos e palavras em espanhol, que, pelo bem da criança, ela precisaria ficar deitada ao menos até que o sangramento cessasse. Por isso, só por isso, Emily não se moveu. Apenas segurava a respiração à medida que os passos se aproximavam.

John bateu suavemente na porta.— Emily, posso entrar?Ela sentiu um pequeno alívio. John não parecia zangado. Na

verdade, a voz dele era gentil. Se pretendesse mandá-la embora, ao menos o faria de maneira civilizada. Ao menos isso...

— Sim, claro— ela respondeu. — Entre.John não irrompeu no quarto como Emily esperara, abruptamente,

mas caminhava com cuidado sobre o tapete persa e o soalho polido, encarando-a insistentemente. Emily comparou-o a um gato de maneiras graciosas, que se aproximava de algo desconhecido. Tinha expressão sombria, quase triste. Parou perto da cama e perguntou:

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— Posso me sentar?— Claro!Emily afastou-se um pouco mais à esquerda, não apenas para criar

espaço mas também para manter mais distância entre os dois. Porém quando o colchão cedeu ao sólido corpo, ela escorregou para perto dele, encostando a perna nos quadris imóveis de John.

— Como se sente esta manhã?— ele interessou-se em saber. — Melhor?

— Sim.Bem, não era aquele o homem que iria mandá-la embora!, pensou.

Não era? Se era, parecia tão amável, tão hesitante...— Bom— ele murmurou. — Isso é muito, muito bom. Depois ficou

calado, estranhamente calado, fitando-a, examinando o rosto dela como se procurasse alguma coisa lá impressa, letras quase apagadas que tinha dificuldade em ler.

Foi só naquele instante que Emily notou as manchas negras que rodeavam os olhos, e os arranhões do rosto de John. Então, sem se dar conta, passou as mãos pelas faces quentes, feridas dele.

— Foi Lupe?— perguntou. John sacudiu a cabeça, sorrindo.— Não, não foi Lupe. Tive uma briga com uma árvore espinhosa

ontem à noite. E não se preocupe mais com Lupe, querida. Mandei-a embora juntamente com a mãe. Para bem longe.

— Oh, entendo.Emily preocupou-se com a próxima decisão de John. Afinal, se ele

despachara a jovem amante juntamente com a mãe, não teria nenhuma dificuldade em se livrar da amiga de seu sócio. Teria?

— A sra. Fuentes disse que você precisava ficar aqui, na cama, ao menos por uma semana depois que o sangramento cessasse— John disse, fitando-a ainda mais severamente agora. — Ela tornou isso bem claro para você? Pode entender?

— Pude. Não entendi bem por quanto tempo, mas entendi que não posso me levantar. Uma semana? Mais? Menos?— Emily tentava disfarçar o súbito oti-mismo de sua voz. — Tem certeza do que ela disse? Uma semana, foi?

— Tenho certeza. Foi uma semana— John confirmou.Emily pode sentir sua tensão ir desaparecendo dos ombros, do

pescoço, e o nó da garganta sumiu. Por causa de sua condição delicada, John lhe permitira ficar por uma semana. E depois?

Muita coisa poderia acontecer no espaço de uma semana.Não era ela, por acaso, a prova viva disso, tendo viajado do

Mississipi, sobrevivido a um tornado, se casado, e rolado um lance de escadas, tudo praticamente no espaço de uma semana? Emily pressionou

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os lábios evitando um sorriso.John continuou fitando-a, como se tivesse algo mais a lhe revelar,

mas que não sabia como. Lançou o olhar para o ventre dela, depois voltou à face.

— O pequenino ser, para quando é esperado?— indagou, com voz suave.

— Para dezembro, creio.— Dezembro— ele repetiu. — Presente de Natal. Sinal de boa sorte,

de felicidade... — E?! — Emily sentia tudo menos felicidade naquele momento,

pensando onde estaria ela no Natal. — E o pai?— a voz de John não passou de um sussurro rouco,

áspero. — Ele... — Morreu. — Entendo. John caiu em outro misterioso silêncio, mas agora olhando para o

chão. Emily não conseguia adivinhar o que ele pensava, ou sentia. O rosto de John era uma máscara escura. Os olhos não revelavam nada. Nem compreensão, nem dor, nem curiosidade.

Se pudesse saber o que John queria... Talvez alguma explicação de como surgira essa gravidez, talvez alguns detalhes tristes como estupro ou briga de amantes? Desejaria John ter uma chance de tornar a condição dela mais aceitável? Em sua opinião, claro. Porém John não abria a boca.

Emily pensou em inventar que fora estuprada, livrando-se assim de qualquer responsabilidade pela gravidez. Porém, do instante em que a idéia surgiu-lhe à mente, afastou-a. Não, não caíra tão baixo a ponto de mentir de tal maneira.

Uma coisa era mentir para o irmão no caso de seu casamento com John Bandera. Mas enganar John Bandera, agora que ele já sabia da criança, seria inadladyível. Respeitava demais a inteligência dele, e sabia por instinto que John consideraria mais vergonhoso ser desonesta do que se engravidar de uma criança ilegítima.

— Acredite ou não— ela disse —, isso aconteceu apenas uma vez. E nós não

— Psiu.— John a fez se calar pondo um dedo nos lábios dela. — Não cabe a mim saber.

Emily esboçou um sorriso, não sabendo se fora pelo toque terno do dedo de John ou pelo alívio de não ter de trazer a baila seu sórdido passado.

Ao mesmo tempo, não pôde deixar de pensar se a reação de Price seria metade cavalheiresca do que a de John. Provavelmente não. John, afinal, não poderia exigir nada dela. Nada além de um documento legal atestando que o casamento realizado fora feito sob base falsa.

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— Falaremos acerca do assunto mais tarde— ele declarou, levantando-se da cama. — Você precisa dormir agora. Estarei aqui perto. Se precisar de alguma coisa, chame-me.

Emily ajeitou-se melhor nos travesseiros e disse: — Você tem sido muito bom para mim, John. Sou-lhe grata. Espero

que saiba isso. — Sim. Eu sei. Agora durma. Assim que ouviu o barulho do trinco da porta, Emily fechou os olhos.

John Bandera era um bom homem, apesar de sua propensão à violência. Era honesto, até carinhoso.

Havia momentos em que pequenos lampejos de intuição, rápidos, que desapareciam com a mesma rapidez com que vinham, a faziam pensar que o conhecia melhor do que na realidade o conhecia, considerando-se o tempo. Às vezes ele a fitava como se sentisse o mesmo, dando a impressão de que a enxergava mais do que apenas como a amiga de Price. E Emily dizia a si mesma que, se pudesse dar crédito a cartomantes e a advinhas de linhas das mãos, sentir-se-ia tentada a crer que ela e John haviam se conhecido em vidas passadas.

Contudo, era a vida presente o que a preocupava agora. E tinha de descobrir um meio de prolongar a exígua semana de estadia na casa de John, para uma vida inteira.

Lupe esperava por ele no sopé da escada. Seus longos cabelos, bem escovados, pareciam agora mais negros e mais brilhantes. Eram como as asas do corvo. Lupe tinha os braços cruzados e exibia parte de seus seios morenos acima do decote da blusa branca. Batia no chão com um dos pés, ambos descalços.

John descia as escadas fazendo mentalmente a mudança de sua Emmy, da frágil gardênia para a espinhosa rosa que o aguardava no quarto. Ocorreu-lhe inesperadamente que, se as coisas tivessem sido diferentes, a filha da governanta poderia ser agora sua esposa. Não fosse por seus sentimentos em relação a Emily, duvidava que tivesse continuado a fugir da beleza e dos quentes charmes de Lupe.

Caramba. Ele tinha apetite por mulheres, sem dúvida. E considerava-se um homem morrendo de fome. Mas fora o anjo decaído lá de cima quem o tentara, não a beleza demoníaca aqui de baixo.

John descia as escadas lentamente, se perguntando como poderia se livrar de Lupe, como poderia mantê-la longe de Emily sem a ajuda de uma corda ou de uma corrente, quando Tater Latham de súbito apareceu na porta da frente.

— Voltei, chefe— ele disse.— Bom— John respondeu. — E na hora certa. Tenho um trabalho

para você.John chegava ao sopé da escada agora e, sem dizer uma palavra,

dobrou um pouco os joelhos e agarrou Lupe pelos quadris. Depois 80

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endireitou o corpo, com cinquenta quilos de uma mulher gritando, esperneando, sobre seu ombro.

— Quero que você leve a sra. Fuentes e a filha para o lugar onde elas quiserem ir.

Tater, ainda coberto de poeira após a viagem no carroção, tirou o chapéu, coçou a cabeça e perguntou:

— Como? Hoje?— Agora.John estava furioso. Com os joelhos Lupe golpeava-lhe o tórax e com

as mãos dava socos em seus ombros e costelas.— A sra. Fuentes já foi avisada e está se preparando para sair— John

acrescentou, indo na direção da porta.Tater encostou-se na parede para evitar os pontapés de Lupe,

enquanto John passava por ele para sair, indo até o carroção que ainda continuava com os cavalos atrelados. Lá colocou Lupe no traseiro junto a um barril de água, a um barrilete de pregos, a metros e mais metros de corda, e a toras de madeira.

— Cuide para que ela não saia daí, Tater-— ele ordenou —, enquanto ajudo a sra. Fuentes a terminar com os preparativos.

— Tudo bem, chefe.Assim que John deu as costas, ouviu, além dos gritos e blasfemias

de Lupe, o ruído de couro de um coldre de arma sendo aberto, enquanto o cowboy murmurava, sonolento:

— Fique quieta aí sentada, lady Lupe, sua gata do inferno.Em qualquer outra ocasião, a preguiçosa, letal ameaça de Tater a

Lupe teria provocado um sorriso nos lábios de John. Mas não agora. Ele riria, sim, mas só depois que a pequena gata do inferno estivesse bem longe dali.

Porém, mesmo depois que mãe e filha se foram, durante dois longos dias John não sorriu. Nem poderia.

Assumiu o encargo todo da casa, entusiasmado de início, selecionando as galinhas mais gordas do pátio a fim de fazer um caldo substancial para Emily. Uma vez depenada a ave, colhia cebolas e cenouras na horta, as mais perfeitas, e pegava batatas sem manchas na despensa.

Depois de ferver tudo durante uma hora, provava o caldo. Se estivesse bom de sal, serviria a sopa. Mas, quando achava que faltava sal, em vez de pôr uma pitada apenas, punha uma colher de sopa.

Aí começou seu embaraço, quando Emily não conseguiu comer a tal da sopa, tão salgada estava.

Começou o embaraço e continuou. Emily ficou muito sem jeito quando ele tirou o urinol colocado embaixo da cama. E ficou ainda mais

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sem jeito, rubra de vergonha, no instante em que John recolheu suas roupas íntimas manchadas de sangue.

E muito depressa ele constatou que não conseguia remover as manchas, por mais que fervesse as roupas.

A situação ainda piorou quando dois cowboys conhecidos que passaram pela estrada o viram pendurando roupas no varal. Os rapazes riram muito e chegaram até a chamá-lo de Juanita.

Ay de mi!Na noite seguinte, após esfregar as camisolas de Emily em vez de

passá-las a ferro, como pensou que já pudesse fazer, ele subiu as escadas sentindo-se tão cansado como se mil bruxas o houvessem perseguido com suas vassouras.

Emily chamou-o com voz suave assim que ele atingiu o topo da escada. O abajur na cabeceira da cama estava aceso quando ele espiou no quarto.

— Você está bem?— perguntou. — Sim, muito bem. Apenas não consigo dormir. Será que você

poderia me fazer um favor, John? — Qualquer coisa que você queira. Ela apontou para a cômoda, dizendo: — Há um monte de cartas na gaveta do meio. Seria muito trabalho

você... — Não. Trabalho nenhum. -ele abriu a gaveta mencionada e

surpreendeu-se ao deparar com sua caligrafia num envelope amarrotado. O pacote de envelopes estava atado com uma delicada fita azul.

— De Price?— John perguntou, pondo as cartas na mão estendida de Emily.

— Sim.— ela suspirou enquanto seus dedos delicados desamarravam a fita. John observava-a. A luz do abajur tecia faixas douradas nos cabelos soltos de Emily. — Às vezes...

Conte-lhe, uma voz interior dizia a John. Conte-lhe agora.— Às vezes sinto tanta saudade dele— Emily terminou a frase. — É

bobagem, suponho. São apenas cartas, contudo me fazem sentir que estou perto de Price.

Conte-lhe, seu covarde. Seu rematado covarde.— Você tem sido tão bom para mim, John— ela disse. Porém, mesmo

confessando isso, Emily tinha a impressão de que o fitava como a um intruso invadindo sua privacidade, a um desconhecido não bem-vindo.

A ternura estampada no rosto, a luz dos olhos de Emily, o brilho que antecipava a leitura das cartas, não eram para ele, John percebia, mas para o aristocrata cavalheiro que não existia em parte alguma agora, a não ser nos sonhos de Emily.

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Como poderia ele contar-lhe a verdade, e apagar as esperanças, os sonhos e os desejos dela? Como poderia ferir de forma tão cruel aquela delicada gardênia?

Mais grave ainda, como poderia confessar tudo, e continuar ali em pé vendo também seus próprios sonhos morrer na expressão de um rosto acusador? Seria melhor, muito melhor, ao menos por enquanto, ambos terem seus sonhos separados mas vivos. Seria melhor deixá-la ser feliz amando um Price que não mais existia, em lugar de tristemente não ter ninguém para amar.

— Fique com sua leitura— disse John. — Estarei embaixo no escritório, caso você precise de mim. Quero também ler alguma coisa.

John pensou nas cartas que recebera do Mississipi, trancadas no cofre, cartas que não tivera mais necessidade de ler desde o dia em que a autora das mesmas chegara. Lê-las mais uma vez naquela noite seria intolerável, sabendo que ao mesmo tempo Emily lia suas cartas no quarto. Estar tão junto dela e ao mesmo tempo sentir-se tão solitário! Deus! Tinha vontade de chorar.

Ele engoliu em seco e disse: — Durma bem, Emily. — Obrigada, John. Espero que você igualmente durma bem. Boa

noite. Mas Emily já estava absorta em uma carta, a carta dele, já sorrindo

cheia de desejo, apaixonada, quando John saiu do quarto.

CAPÍTULO XIII

Terminada a semana de repouso, Emily não ficou tentada a estendê-laco, conforme havia pensado antes, para evitar o risco de ser mandada embora. De mais a mais, o repouso na cama, em sua opinião, deixara muito a desejar.

Sentira-se quase louca ao permanecer deitada sem coisa alguma a fazer além de memorizar o desenho do papel de parede, ou de olhar pela janela a mudança das cores do céu. Mesmo as cartas de Price não eram mais suficientes no sentido de aliviar a monotonia de seus dias. E também começara a sentir-se mais do que culpada vendo John servi-la dia após dia.

No momento presente, a maioria dos empregados da fazenda havia voltado, porém John não permitia que ninguém cuidasse dela além dele mesmo. Mas os dias se passavam e Emily melhorava. Então, até os empregados começaram a achar que o patrão necessitava de repouso. John tinha círculos escuros em volta dos olhos e sua boca parecia congelada numa expressão permanente de tristeza.

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Como Emily tinha saudade dos sorrisos que frequentemente brilhavam naquele rosto atraente!

Ao se vestir na manhã do oitavo dia, Emily não pôde deixar de rir ao ver as manchas em sua roupa, manchas de roupa mal lavada. John Bandera podia ser um homem muito capaz, mas não tinha aptidão para dona de casa. Com a saída da sra. Fuentes e de Lupe, a fazenda tinha necessidade de uma mulher para cozinhar, lavar, passar, remendar roupas e fazer a limpeza da casa. Mesmo que Emily jamais tivesse feito esses trabalhos na vida, sentia-se pronta a oferecer seus préstimos agora. Assim, quando John a mandasse embora, ela apresentaria uma centena de razões para continuar lá. Sendo que a principal delas seria Price, naturalmente, que ainda não voltara. Cada vez que perguntava sobre Price a John, ele de pronto mudava de assunto. E, embora tendo saudade, Emily tinha de admitir que sentia um alívio por não precisar encará-lo ainda, ou por não precisar explicar sua condição.

Essa condição parecia bastante estável agora. Emily não notara nenhum sinal de sangue e os movimentos do bebê em seu ventre eram cada vez mais fortes e mais frequentes. Seu filho estava seguro, disso Emily tinha certeza. Portanto, tudo o que tinha a fazer era garantir um lugar para os dois neste mundo.

Ela sentiu um começo de tontura ao descer as escadas. Parou, segurando no corrimão com força, respirou fundo, tentando se convencer de que aquilo era normal ante as circunstâncias. Depois de ter estado na horizontal durante tanto tempo, não era de surpreender que seu corpo resistisse a ficar em pé.

Ao chegar na cozinha a tontura passara, exceto por um instante de falta de ar quando viu John entrar com uma cesta de ovos numa das mãos e um buque de flores de campo na outra. Imediatamente ele franziu a testa.

— Você devia estar na cama— disse a Emily, pondo os ovos e as flores sobre uma mesa.

— Eu me sentiria uma verdadeira preguiçosa se ficasse na cama agora que me sinto perfeitamente bem— ela respondeu tentando sorrir e mostrar naturalidade. — Que lindas flores! Posso procurar um vaso para colocá-las?

John segurou-lhe a mão quando Emily a estendeu para pegar o buquê.

— Tem certeza de que está bastante bem?— ele perguntou. — Tem certeza de que o bebê está bem?

— Fiz tudo o que a sra. Fuentes ordenou, John. Fiquei na cama uma semana inteira e noto que voltei ao normal— Emily insistiu. — Acho que está mais do que na hora de eu pagar minha estadia aqui, concorda?— ela lançou um olhar pela cozinha agindo como se fosse essa uma atitude sua habitual. — Por onde prefere que eu comece?

— Por aqui.84

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John puxou uma cadeira e depois com firmeza mas ao mesmo tempo gentilmente a fez sentar-se. Em seguida pegou outra para si.

— Consegui tomar uma ou duas decisões nessa semana que passou— ele disse. — Decisões sobre você e a criança.

— Oh?De súbito as esperanças de Emily como que explodiram no ar, e

uma sensação de desgraça alojava-se em seu peito enquanto esperava, ali sentada, a sentença de John. Pela determinação expressa no rosto dele Emily percebeu que nada o demoveria de seu intento. Nada do que ela pudesse dizer iria mudar a mente dele ou seu destino.

— Estive pensando em Santander, Emily. Assim que você se sentir bem para viajar.

— Entendo.Não, ela não entendia. Não podia mais enxergar nada através das

lágrimas quentes que de súbito a cegaram. Mordeu os lábios para não chorar copiosamente.

— Tenho alguma escolha? — ela indagou. A pergunta pegou John de surpresa a se julgar pelo modo como ele

apertou as pálpebras e mudou de posição na cadeira. — Pensei que você tivesse gostado da companhia da mulher de Hy

Slocum— disse. — Sarah? Sim, gostei da companhia dela, mas o que tem Sarah a

ver com isto tudo? O olhar de John, sempre tão direto e honesto, intrigou Emily, pois

ele parecia procurar as palavras certas para bani-la da fazenda. Sempre tão cavalheiro e aberto, estava hesitante agora.

Maldito homem!, ela disse a si mesma. E John começou a falar com certo embaraço: — Você precisa estar perto de uma mulher que tenha tido alguma

experiência com partos. Agora que a sra. Fuentes se foi, não há ninguém aqui que possa lhe dar assistência caso aconteça algo errado. E, além da ajuda de Sarah Slocum, há um médico que visita Santander várias vezes por ano, também.

— Então, quer dizer que está me mandando embora para meu bem, é isso?— ainda que desolada, Emily não conseguiu eliminar o sarcasmo da própria voz.

— Sim, acho que pode considerar minha atitude dessa maneira. É para seu bem e para o bem do bebê. Não quero que nada de mal aconteça a você ou à criança, podendo ser evitado.

Como, ela se perguntava, era possível que um homem tão bondoso pudesse ser tão cruel? Emily deixou escapar um suspiro.

— Oh, John!85

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Ele então afagou-lhe o rosto, dizendo:— É porque me preocupo com você, querida, e com o bebê, que faço

isso.Emily afastou-se dos quentes dedos de John. Que tipo de bondade

era aquela, afinal, que o fazia mandá-la embora da fazenda? Era assim que se preocupava com ela e com o bebê?

Sem encará-lo, Emily levantou-se e foi para a porta.— Vou fazer minhas malas já. Estarei pronta num minuto— disse.— Emmy?O apelido carinhoso a fez parar. Ela virou-se para fitá-lo mais uma

vez. Teria John mudado de idéia?— Sim?— Santander não é tão longe.— Não é, John? Neste momento me parece que fica a mais do que

milhões de quilômetros daqui.John continuou sentado, vendo-a desaparecer pela porta, sentindo

sua língua mais presa do que a corda em volta de uma sela. As flores que ele tencionara dar a Emily ficaram esquecidas em cima da mesa, murchando, como murchara o sorriso de Emily quando John lhe revelara seus planos.

Não, ele lhe contara apenas parte de seus planos. Não mencionara o amor que nutria por ambos, mãe e filho, não mencionara seu desejo de ser não apenas marido dela mas pai da criança, e não mencionara seu desejo ardente de proteger ambos. Para um homem tão eloquente, ele se transformara num rapazinho analfabeto no instante em que precisou expressar seu amor.

Podia ouvir os passos de Emily em cima, abrindo e fechando gavetas enquanto apanhava seus pertences.

De repente ocorreu-lhe que ela de certo entendera mal sua intenção, que concluíra ter sido mandada embora para sempre, para morar em Santander com os Slocum indefinidamente.

Ay, Juanito. Conte-lhe tudo, seu covarde. Diga-lhe que a ama. E mesmo que ela não o ame, lhe será grata por você legitimar o filho. Então, talvez um dia essa gratidão se transforme em amor.

John agarrou o buque, mais decidido do que nunca a enfrentar Emily e a lhe explicar seus sentimentos. Subiu as escadas dois degraus de cada vez, impulsionado por sua necessidade de falar. Mas quando entrou no quarto, suas palavras ficaram presas na garganta, num bolo de emoções, enquanto a observava apertando uma das cartas contra o peito. Mesmo à distância, percebeu que o rosto de Emily estava banhado em lágrimas.

— Emmy, por favor, não chore— disse, indo ao encontro dela. A carta caiu no chão como uma coisa morta. O rosto de Emily tinha

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uma expressão de luto. Os olhos azuis estavam acinzentados como o céu úmido de inverno. E, quando finalmente ela falou, sua voz foi quase inaudível.

— Ele morreu, não morreu, John? Do contrário, não acha que Price teria dado sinal de vida até agora?

— Não sei. E era verdade. Porém suas palavras deixaram um gosto amargo na

boca. John amaldiçoou o dia, sete anos atrás, quando Price não apenas salvou-lhe a vida como mudou o curso dessa mesma vida para sempre.

— Ele fez isso antes?— ela perguntou, segurando as lágrimas. — Simplesmente desapareceu? Sem deixar uma carta ou uma palavra de despedida?

— Uma vez ou duas ele fez isso.— John sacudiu os ombros. — Como sócio, Price não foi dos melhores. Nada confiável.

Emily inclinou-se para apanhar do chão a carta, depois olhou-a como se tivesse sido escrita em língua estrangeira.

— Durante todos estes anos— ela disse — nunca tive a mais ligeira idéia da instabilidade de Price. O homem que vim a conhecer através das cartas era sólido, confiante, o verdadeiro homem de responsabilidade.

Pegando a carta das mãos de Emily, John olhou o próprio manuscrito. Era como olhar seu rosto num espelho, com todos os traços, todas as expressões familiares.

— Palavras escritas podem enganar às vezes— disse.— Eu contava com isso sabendo da natureza de Price. Esperava,

contudo...— Emily colocou a mão no ventre. — Confesso que esperava que Price concordasse em ser o pai de meu filho. Ou, não sendo isso possível, ao menos que desse ao coitadinho um nome legítimo.

— Parece-me— John declarou com naturalidade, apesar de com esforço — que seu bebê já tem esse nome, sra. Bandera.

— Mas...— Emily encarou-o — como pode dizer isso se já quer me mandar embora?

— Apenas por curto espaço de tempo, a fim de que tenha uma companhia feminina. Já lhe falei sobre o caso. Não lhe disse que queria o melhor para você?

— Sei que me disse, John, mas imaginei que fosse apenas por bondade, para suavizar minha dor. Está por acaso me dizendo que posso voltar para cá, para ficar indefinidamente com meu filho?

John fez um sinal afirmativo com a cabeça, ainda incapaz de falar, temeroso de que a linda mulher que ele amava tanto pudesse encontrar uma razão para não aceitar sua oferta.

Emily afastou-se dele, e ficou olhando pela janela, em silêncio. Incapaz de ver-lhe a face, John imaginou que a expressão fosse de incerteza, talvez de desaponto.

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— Podemos aprender a ser uma família— ele observou. — Já cuidamos dos papéis, não foi?— John tomou-lhe a mão. — A aliança está aí, em seu dedo.

Emily riu, permitindo que ele lhe segurasse a mão por mais tempo. E depois respondeu:

— Isso porque não consegui tirá-la.— Porque, quem sabe, este é o lugar onde ela deve ficar— John

respondeu. — Talvez seja nosso destino, o meu, o seu, e do pequenino ser que virá, mi corazon.

Emily não respondeu imediatamente, mas relaxou, inclinando a cabeça contra o tórax de John. Enfim suspirou, e disse:

— Não sei o que pensar, John, apenas que sentirei sua falta enquanto estiver em Santander. Você vai me visitar?

— Naturalmente.— ele encostou os lábios nos cabelos de Emily, resistindo à tentação de beijá-la na boca.

— Ou, se não for possível me visitar— ela continuou —, me escreverá uma carta de vez em quando?

— Não sou muito bom em escrever cartas, Emily— John mentiu. — Mas irei vê-la, tão frequentemente quanto você desejar me ver.

No dia seguinte, ainda decidido a levá-la a Santander, John preparara uma cama para Emily no carroção, com colchão, travesseiros, lençóis e colchas, em nível um pouco alto para que ela pudesse apreciar a paisagem durante a viagem. Isso pareceu simbólico a Emily, poder ver o lugar onde estivera enquanto o futuro continuava sendo um mistério.

John oferecera-se para ser o pai de seu filho. Isso ainda a impressionava. Se se tratava de generosidade ou amabilidade, Emily não sabia bem.

Pouco falara com John depois que ele lhe dissera que ambos, mãe e filho, seriam bem-vindos de volta à fazenda. No instante em que John dissera isso ela teve vontade de abraçá-lo, tal sua gratidão. John Bandera era um homem firme e responsável, como imaginara que Price fosse. Ela encontrara, de qualquer maneira, um destino como jamais sonhara encontrar.

Um destino que se tornava cada vez mais intrigante a cada momento que se passava. E Emily tinha de confessar que pensava muito em John, pensamentos que não se limitavam apenas à natureza generosa dele ou ao caráter reto, mas ao homem em si, com seus traços atraentes e musculatura impressionante.

Naquela manhã mesmo, quando John a carregara para colocá-la no leito do carroção, um calor espalhou-se pelo corpo dela, da cabeça aos dedos do pé. E, uma vez acomodada nos travesseiros e sob a colcha, sentiu-se relutante em tirar os braços do pescoço dele. Pensara até em como seria bom se John a beijasse. Seus próprios lábios chegaram a ponto de se preparar para recebê-lo.

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Mas John não a beijou. Pelo contrário, desembaraçou-se dos braços dela e concentrou sua atenção nos cavalos. A mesma sensação de desaponto que tomara conta de Emily mais cedo naquele dia, voltava, fazendo-a sentir-se tal qual uma tola.

John Bandera, afinal, casara-se com ela por generosidade, não por amor. E agora queria permanecer casado por um sentido de responsabilidade para com a criança, nada a ver com ela propriamente.

Concluir qualquer coisa além disso seria infantilidade, fantasia, Emily concluiu, e precisava se considerar feliz por ter o sobrenome de um homem para seu filho, e não ficar perdendo tempo querendo o coração dele também.

Quanto a seu próprio coração, não pertencera a Price durante anos? E pertenceria sempre, supunha, voltasse ele ou não.

O carroção subiu e desceu uma colina e Emily olhou para trás, tendo uma última visão da casa da fazenda. Suspirou e fechou os olhos, acompanhando com o corpo o balanço do veículo, sonhando com o dia em que voltasse para lá, com o bebê no colo.

Emily acordou com as mãos frescas de John em seus ombros e a sombra dele em sua face. Apertou as pálpebras para clarear o olhar e perguntou:

— Chegamos, John? Tão depressa?— Você dormiu quase o tempo todo. E o dia já passou. Estamos

próximos do pôr-do-sol.Quando ela começou a lutar para se levantar, com esforço devido ao

peso extra que carregava, John passou os braços em volta da cintura dela e, com muita facilidade, a fez sentar-se. Emily pôde então ver o círculo alaranjado do céu, devido ao sol que se punha. Do lado esquerdo ficava o saloon de Hy Slocum, um edifício praticamente em ruínas. Emily lembrou-se muito bem de tudo o que passara lá. E de repente se deu conta de como sofrera a falta de uma companhia feminina depois da saída da governanta. E ficou ansiosa em ver o rosto alegre e bonito de Sarah.

— Você teve razão em querer me trazer aqui, John. Vai ser maravilhoso para mim passar alguns dias com Sarah.

— Garanto que ela sentirá o mesmo em relação a você— ele respondeu. — Venha. Poderá conversar com Sarah enquanto eu for apanhar suas malas.

John carregou-a e, em vez de colocá-la no chão imediatamente, fitou-a de maneira estranha.

— O que foi?— Emily perguntou. — Nada.— ele sacudiu a cabeça. — Não foi nada. – mas o sorriso

continuava em seus lábios e os olhos tinham um brilho diferente. — Há alguma coisa, John. Por que está sorrindo, então? Ele apertou-lhe a cintura com mais força e respondeu:

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— Estou rindo de você, minha Emmita. Não é mais a criatura magrinha de apenas uma semana atrás.

— Estou gorda como uma vaca, eu sei. E horrorosa também. Que falta de gentileza a sua, John, de chamar minha atenção sobre isso.

— Oh, não, querida.— ele afagou-lhe o rosto de tal maneira que Emily sentiu seu coração derreter. — Uma mulher nunca pode ser feia quando carrega a vida dentro de si.

Emily não conseguia desviar o olhar do dele. Não queria, na verdade. De súbito, em lugar de se sentir como uma vaca, achou que era tal qual um cisne, cheia de beleza e graciosidade.

— Vamos— ele ordenou. — Antes que eu a beije.— John olhou para a porta do saloon.

De repente Emily achou que não podia pensar em nada que desejasse mais do que um beijo de John. E teria lhe pedido isso se ele não a tivesse encaminhado para porta do saloon.

Uma vez lá dentro, era impossível ver qualquer coisa além de uma lâmpada a óleo acesa numa das mesas e, brilhando, a careca de Hy Slocum inclinada sobre um jogo de cartas, seu querido solitário.

— Alô, Hy— ela cumprimentou-o alegremente. — Sou Emily Russell. Vim aqui para visitar sua adorável esposa.

Hy ergueu a cabeça vagarosamente, e encarou Emily, como se não tivesse a mais vaga idéia de quem era ela.

— Emily Russell— Emily repetiu. —Amiga de John Bandera. Lembra-se? Estive aqui não há muito tempo atrás.

— Não há muito tempo atrás. Hy repetiu as mesmas palavras, parecendo com raiva. Mas, por

quê? Por que zangado com ela? O que lhe fizera? Talvez Hy quisesse um pagamento por sua breve ocupação do quarto do segundo andar. Quem sabe Sarah pudesse explicar.

— Vim para ver Sarah— disse Emily. — Ela está...— Ela se encontra lá atrás— Hy apontou para a porta dos fundos. —

Sarah está lá atrás.— Oh, bom.Hy voltou para seu jogo, ignorando completamente a presença de

Emily.— Bem, quero apenas dizer alô a ela— disse Emily, somente

tentando ser amável com Hy, apesar da rudeza do homem. Saiu pela porta traseira do saloon.

Assim que abriu a porta Emily sorriu, antecipando o prazer que teria em ver sua amiga de cabelos ruivos.

— Sarah— ela chamou, entrando no pequeno pátio, cheio de barris de cerveja e engradados de bebidas. Quando ninguém respondeu, ela

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disse de novo:— Sarah! Alô!E viu então a árvore, o carvalho seu conhecido, a alguns passos

adiante. Havia lá uma cerca recentemente pintada, circundando pequeno espaço. E no interior duas cruzes, lado a lado, uma bem menor que a outra.

— Sarah – Emily gemeu. — Oh, Sarah!

CAPÍTULO XIV

Naquela noite em Santander foi terrível. John a classificou como a pior de sua vida.

Embaixo, no saloon escuro, não havia nada a se dizer a Hy Slocum, porque o homem recusava consolo de espécie alguma. A perda da esposa e do filho tornara-o incomunicável, inclinado a sofrer sua dor em silêncio e solitário.

Em cima, John não sabia o que dizer a Emily, por medo de horrorizá-la. Deus! Ele não achava justo mulheres morrerem assim, tentando pôr no mundo uma nova vida. Isso quase o fazia jurar que, se Emmy se saísse bem de seu parto, ele dormiria sozinho e sofreria pelo resto da vida em vez de correr o risco de perdê-la.

Portanto, dividira algumas horas da noite entre o pranto de Emily em cima, e o silêncio doloroso de Hy embaixo.

A um dado momento, exausto, foi para o outro quarto. Mas lá deparou com um colchão manchado de sangue e concluiu que fora a cama onde a linda Sarah e o bebê haviam morrido. Fechou a porta, suspirou, e bateu suavemente na porta do quarto de Emily.

Apesar do adiantado da hora, ela estava sentada na cama, segurando os joelhos, os olhos secos com círculos vermelhos e inchados por causa das lágrimas que derramara. John colocou seu cobertor e o rifle na porta.

— Vou deixar isto aqui esta noite— ele disse. — Amanhã voltaremos à fazenda assim que você estiver pronta.

— Você parece tão cansado, John. Onde vai dormir? Ele quis mentir, dizer que encontrara uma cama em algum lugar.

Mas quando abriu a boca as palavras não vieram. Estava cansado demais para mentir àquela mulher, a sua mulher. Sentia dor de cabeça e o coração pesado como chumbo.

— Não sei— ele disse finalmente. — Talvez no carroção. Não importa onde. O silêncio é completo lá embaixo. Posso me recostar no saloon. Estou acostumado a passar muitas horas sem dormir.

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— Acredito, mas não será necessário fazer isso esta noite.— Emily estendeu o braço ao outro lado do enorme colchão. — Durma aqui— convidou-o.

John sacudiu a cabeça.— Não, não seria...— Não seria o quê? Não seria correto? Foi o que você quis dizer? Ou

que não seria decente?— Bem...— Como poderia ser indecente, John, agora que somos marido e

mulher?— ela cruzou os braços e ficou esperando. — De qualquer maneira, quero que você fique aqui. Não desejo passar a noite sozinha, com minha melancolia.

— Nesse caso, não passará a noite sozinha. E ele fechou a porta do quarto.

Apagou a luz enquanto Emily se acomodava sob as cobertas. Ela não podia vê-lo, mas sentiu o colchão ceder quando John se deitou na cama e esticou as pernas. A sensação de calor vinda do corpo dele foi imediata, apesar dos lençóis e colchas entre os dois.

A mera presença de John diminuiu enormemente a angústia de Emily por causa da morte de Sarah, como também por causa de sua condição atual. Por qualquer razão inexplicável, Emily achava que nada poderia acontecer com ela tendo John Bandera a seu lado.

E havia provas disso, afinal. Passara por terrível tornado e emergira sem nem ao menos um arranhão, pois tinha John a seu lado. John a resgatara das mãos de um grupo de cowboys, ali mesmo em Santander. E, além disso, não a salvara das garras de Elliot? E da faca assassina, mortal, de Lupe? Quase se esquecera de Lupe...

Mas o sentido de proteção que sentia era muito mais do que apenas físico. Havia uma paz dentro de si quando estava com aquele homem, como se esse fosse seu lugar destinado no mundo. Engraçado, Emily pensava, não era nada muito diferente das sensações que experimentava ao ler as cartas de Price. Mas... como podia ser possível uma quietude similar ser proveniente de um homem que ela mal conhecia?

Talvez estivesse na hora de conhecer esse homem, seu marido, um pouco melhor. E não havia momento mais apropriado para isso do que o presente, Emily concluiu. Contudo, seria cruel lhe fazer perguntas enquanto ele tentava dormir. Não seria? Virou-se então olhando para a sombra estendida ao lado dela na cama.

Mesmo na escuridão, notou que John estava deitado de costas, em cima das cobertas, com os braços atrás da cabeça. Mesmo no escuro, teve certeza de que ele mantinha os olhos abertos, fixos no teto.

— Está dormindo?— Emily sussurrou, para não acordá-lo caso dormisse.

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— Não— ele respondeu. — Mas sei que vou dormir logo. — Sabe? — Sim. — Como sabe?— Emily indagou, curiosa.Ele demorou em responder à pergunta. E quando o fez, não tinha

irritação na voz. Terminou antes de cantarolar uma música em espanhol que a fez se lembrar do som do bandolim.

— Sei que dormirei logo porque nunca passo do B.— John respondeu, enfim.

— Desculpe-me, mas o que quer dizer com isso? B de boneca? — Não, querida. Refiro-me à letra B apenas. De boneca e de muitas

outras coisas. É um jogo de que lanço mão para dormir. Assim que John terminou de falar, Emily lembrou-se imediatamente

de que conhecia o mecanismo do jogo. Era uma estratégia usada por Price para dormir, e consistia em enumerar coisas em ordem alfabética. Dez coisas com cada letra. Jogo exaustivo. Ele lhe escrevera sobre isso mais do que uma vez. Emily tentara a técnica em uma ou duas ocasiões, mas sem sucesso. Em lugar de fazê-la dormir, deixara-a ainda mais alerta e tensa.

Ela sorriu, e ergueu um pouco o corpo apoiando-se num cotovelo, tentando ver melhor o rosto de John apesar do escuro.

— Conheço esse jogo. Você deve ter aprendido com Price. John murmurou qualquer coisa, que poderia ter sido "sim" ou "não" — Bem, mas não funciona— Emily acrescentou. — Nas vezes em

que tentei, fiquei acordada noites inteiras, indo até o maldito Z. — Esforçou-se demais— disse John, olhando fixamente para ela. —

Ponha sua cabeça no travesseiro— ordenou.— Não tenho sono nenhum— ela protestou.— Faço o que estou mandando.Com um suspiro, Emily obedeceu. Cruzou os braços e ficou olhando

para o teto.— Já fiz— ela declarou. — E agora?— Feche os olhos.— ela fechou.— Agora concentre o olhar nas pálpebras fechadas e veja qualquer

coisa começando com a letra A.Ele esperou um momento, um longo momento na opinião de Emily

antes de perguntar:— O que você vê?— Anjos.Na verdade, ela não vira nada, apenas trevas, mas anjos lhe

parecera um bom assunto para começo do jogo.93

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— Isso é bom— John murmurou. — Muito bom. O que mais vê?Emily concentrou-se, de olhos bem fechados, mas não viu nada

outra vez, absolutamente nada. — Argonautas— disse enfim. — E? — Oh, agora vejo um arco-íris. — Continue— John insistia. — Bem...— Por desejar ver qualquer coisa para agradar John, ela

procurava outra palavra começando com A. — Acrobatas!— falou, com entusiasmo.

Bem perto dela agora, John perguntou: — Está mesmo vendo tudo isso? Jura? — Bem, não exatamente. Estou pensando em tudo isso. — Porém precisa ver, não pensar, querida. Nunca vai conseguir

dormir desse jeito. — Foi o que eu disse a você, John. Não é um bom jogo. É mais algo

para dar trabalho às pessoas do que para fazê-las dormir.— ela abriu os olhos. — E trabalho duro, sabe?

— Não funciona para todos, acho.— ele ergueu-se apoiando-se num cotovelo, e ficou inclinado sobre Emily. — Vamos tentar outra coisa. Vire-se.

— Como? — Vire-se de lado. Vamos! Ela começou a se virar para ficar face a face com John, e ele

segurou-a, impedindo que continuasse com o movimento. — Não assim— disse. — Fique de costas para mim. Emily lutava sob

as cobertas. — Não é muito fácil, sabe? Há duas pessoas aqui, eu e meu filho.

Pronto! — Está confortável? — Sim, bastante. — Bom. Agora vai dormir num minuto. Prometo. Nem bem foram

pronunciadas essas palavras, Emily sentiu as mãos de John em suas costas. Com os dedos, ele massageava-lhe os nós dos músculos dos ombros e do pescoço. Em vez de protestar, Emily gemia de puro prazer. Ninguém jamais a tocara daquele jeito. As mãos dele eram firmes mas gentis, trabalho profissional e de intimidade ao mesmo tempo. O prazer foi completo e indescritível.

As sensações ficaram mais intensas quando ele desceu as mãos ao longo da espinha, vagarosamente massageando os músculos das costas.

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Depois subiu aos ombros e ao pescoço de novo. Emily gemeu mais uma vez. — Assim deve ser o céu— ela murmurou. — Agora estou vendo

anjos de verdade. E de olhos fechados. — Psiu— John murmurou. — Não fale. Não pense. Durma! Em alguns minutos Emily dormia profundamente. Ele pode sentir de

imediato a diferença no tônus muscular, na resistência dos músculos a suas mãos, à medida em que a cadência da respiração dela ficava regular. Aí, mesmo sabendo que seu trabalho estava terminado, John não parou.

Sabia que dava prazer a Emily, mas sentia que o seu era muito maior. Quantas noites sonhara em tocar aquela mulher? Durante quantos anos se prevenira de que seus sonhos jamais se transformariam em realidade?

Agora, ali no escuro, estudava um corpo de mulher tal qual um homem cego, memorizando cada centímetro como se fosse um salmo ou um poema. A omoplata, as costelas, a curva dos quadris, e a cintura ligeiramente aumentada.

Foi tudo o que pode fazer para impedir que suas mãos escorregassem por baixo da camisola a fim de sentir o verdadeiro calor e a textura do corpo íntimo de Emily, a fim de sentir o tamanho e a maravilha dos seios.

Suspirou, resistindo à tentação de não dormir para prolongar aquele momento, pensando que ao mesmo tempo conhecia melhor Emily, fazendo-a sua esposa não apenas de nome.

Porém finalmente ele dormiu, contra a vontade, com uma das mãos ainda nos quadris da mulher, desejando ardentemente que sua Emmy pudesse saber um dia que seu marido era seu fiel amante, e de longa data.

Emily acordou na manhã seguinte com os raios do sol penetrando pela janela. O companheiro da noite anterior desaparecera.

Eram mais de dez horas com certeza, ela calculou pela posição do sol.

Que estranho ter dormido tanto! Onze ou doze horas? Mas em vez de se levantar ergueu os braços bem acima da cabeça e sorriu, lembrando-se da noite da véspera. Havia sido maravilhoso, extasiante, dormir sob as mãos gentis, hábeis, de John.

Seu sorriso foi mais franco ao admitir a possibilidade de outras noites iguais, no futuro. Que coisa maravilhosa!

Sorriu mais ainda ao pensar que poderia fazer o mesmo com John, que poderia deslizar as mãos ao longo do corpo dele, que poderia acariciar os enormes ombros, as costas bronzeadas. Teria vergonha de fazer isso? Não, claro que não. Afinal, não era ela sua esposa?

Naquele instante Emily ouviu vozes na rua. Espiou pela janela. O 95

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carroção continuava estacionado no mesmo lugar, e uma das vozes era de John. A outra, de Hy Slocum.

— Não vou mais estar aqui na próxima vez em que você vier à cidade, Bandera— Hy dizia. — Pretendo vender tudo e partir. Muitas recordações!

— Aonde vai?— John lhe perguntou. — Não sei. Vagar por aí. Vou fazer o mesmo que Price McDaniel fez. Emily ficou mais atenta à menção do nome de Price. Porém não

pôde ouvir bem a resposta de John, pois ele apenas sussurrava. Escutou somente uma parte:

— ... se você não disse nada a ela... — É claro que não disse— Hy respondeu. — Não me esqueci do que

me pediu, John. Nem direi nada agora. Na verdade, acho que nem terei chance de me despedir dela. Apresente minhas despedidas a lady Emily, por favor. E cuide-se, amigo. Espero que as coisas funcionem melhor para você do que funcionaram para mim.

— Adeus, Hy. Emily enrolou-se na colcha e foi à janela. Chegou a ver a careca de

Hy enquanto ele descia a pé a rua, distanciando-se do saloon. Por isso não o chamou, pois queria lhe perguntar o que ele quisera dizer com "Vou fazer o mesmo que Price McDaniel fez". Quando foi que Price fizera algo estranho? O que significava aquilo?

Em seguida Emily ficou olhando para o homem que permanecera no mesmo lugar, perto do carroção. John! O que John Bandera tentava esconder? O que sabia ele de Price que não queria que ela descobrisse?

Um ódio terrível apoderou-se de Emily. Desejava uma resposta, e logo. Ia gritar para chamar John. Debruçou-se mais na janela, porém no mesmo instante viu o movimento gentil da vagarosa mão escura que percorria o flanco de um dos animais.

O cavalo estremeceu ao toque de seu dono. E ao observar a cena Emily lembrou-se da mesma mão que a massageara durante a noite. Não conseguiu mais falar nada, não conseguia nem ao menos se lembrar do que queria dizer.

Estavam quase chegando à fazenda, os cavalos em disparada cortavam o vento frio quando Emily chamou por John de seu ninho, na traseira do veículo.

— Senti muito não ter tido chance de me despedir de Hy Slocum esta manhã e de lhe dizer mais uma vez como sofri com a morte de Sarah.

— Tenho a impressão de que Hy preferia não falar sobre o assunto— John respondeu, virando um pouco a cabeça para vê-la.

— Entendo. E tive a impressão de que havia outros assuntos sobre os quais ele não queria falar.

John sentiu a mudança no tom da voz de Emily imediatamente. Não 96

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mais uma tonalidade de conversa entre amigos, mas inquisitiva agora. Ele continuou olhando para a frente, para os cavalos e para estrada, e dessa vez não se virou a fim de responder.

— Hy não é muito comunicativo. — E verdade. Tampouco você, John Bandera. Ao menos acerca do

desaparecimento de seu sócio. Após segundos, John declarou: — Sim. Principalmente porque não gosto de suposições. — Bem. Mas faça um esforço agora, e conte-me quais são essas

suposições.A voz de Emily mudou completamente. Ficou áspera tal qual uma

ostra. Sua Emmy de repente soava como um promotor tentando arrancar a confissão do réu.

— Faça-me esse favor, John. Revele suas suposições, sim? — Sobre Price?— perguntou ele inocentemente, ainda sem olhar

para trás, receando que ela lesse algo em sua expressão de culpado.— Sim, sobre Price. Se um sócio meu desaparecesse, John, acho que

eu me preocuparia muito, sem mencionar que teria alguma suposição acerca do motivo desse desaparecimento.

— Minhas suposições não o trariam de volta. Já lhe contei, Emily, que ele fez a mesma coisa antes, e mais de uma vez. Price nunca pareceu criar raízes muito profundas na fazenda.

— Isso que me fala é o contrário de tudo o que sei sobre Price— Emily insistia.

— Entendo, mas, nesse caso, acho que você é que não o conhecia bem— John respondeu, irritado por se ver novamente acuado em situação difícil.

— Talvez não. Talvez eu não o conhecesse bem— Emily concordou. — Porém acho que há alguma coisa que você não quer me contar. Algo que você acredita que eu não seja bastante forte ou corajosa para enfrentar.

— Não há nada a lhe contar — ele respondeu la-conicamente, na esperança de por um ponto final ao assunto.

Mas isso não aconteceu.— Muito bem, John, mas insisto em saber a verdade. Apenas a

verdade. E é importante. Mais importante do que sempre o foi antes.Apesar de ansioso por terminar com o assunto, John não conseguiu

evitar a pergunta:— E por que é tão importante agora?Ela não respondeu logo. Na realidade, levou tanto tempo para

responder que John teve de olhar para trás a fim de ver se tudo estava

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bem com Emily. Ela o recebeu com uma expressão diferente no rosto, expressão essa que John nunca vira antes. Emily sorria, mas ao mesmo tempo seus olhos azuis pareciam maiores e estavam molhados de lágrimas. Com os cabelos louros caindo pelos ombros, parecia tão linda como o súbito raio de sol que atravessava a fina chuva de verão.

— Emmy?— e depois ele perguntou de novo, atarantado pela disparidade das emoções na expressão de Emily e das lágrimas de felicidade. — Por que agora, Emmy? Por que é tão importante agora saber sobre Price?

Ela suspirou e ergueu a beirada da colcha para enxugar a umidade dos olhos, mas sorria o tempo todo.

— É importante eu saber agora sobre Price porque acredito, John, que estou me apaixonando pelo sócio dele.

CAPÍTULO XV

John riu. Ele riu, riu, e não parava de rir. Seus dentes muito brancos

cintilavam à luz do sol, e os olhos escuros brilhavam quando ele tirou o chapéu e jogou-o no ar, sempre rindo. Rindo de felicidade.

A reação de John, depois que ela revelou que o amava, não foi a que Emily esperava. Ela também se surpreendia agora por sua coragem, mas não havia nada de engraçado naquilo, pelo menos a seu ver.

— Suponho que você me ache ridícula por ter me apaixonado, considerando-se que ainda nem nos conhecemos muito bem— ela declarou.

Achava que se parecia mais com uma menina mimada do que com uma adulta, uma mulher madura, cujos sentimentos já haviam sido postos à prova.

As gargalhadas de John diminuíam aos poucos, e Emily observou-o pondo o pé no freio e pulando para a traseira do carroção. Com muito cuidado, removeu o monte de cobertas com o fim de fazer espaço ao lado dela. Depois sentou-se e abraçou-a segurando-a bem junto a si, apesar da resistência inicial de Emily.

— Não acho você nada ridícula. Estou também apaixonado, Emita. Que acha disso?

— Está?— ela perguntou, quase sem poder respirar, enquanto inclinava a cabeça para trás a fim de ver melhor o rosto de John.

A expressão dele lhe pareceu de muita sinceridade. O sorriso era franco, quente de afeto, e isso causou enorme prazer a Emily que retribuiu o sorriso com igual calor.

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— Acho que fomos ambos pessoas muito superficiais, dando pouca atenção a nossos afetos que aumentavam dia-a-dia— disse ela. — É que nunca dei muito crédito a amor à primeira vista.

— Acontece que estamos muito longe da primeira vista, Emmy.— Sim, mas ainda mal nos conhecemos, John— ela insistia. — Por

certo não do modo...O sorriso de John se evaporou e seu atraente rosto se transformou.— Não do modo como você e Price se conheceram?— Exatamente— ela sacudiu a cabeça, concordando.— Então, diga-me o que você e Price sabem disto? Quase antes de ele terminar de falar, segurou-a bem junto a si, e

beijou-a de um modo que fez com que Emily parasse de pensar para se abandonar completamente aos quentes lábios de John e ao prazer inesperado da língua e dentes que a provocavam.

Emily não queria que aquele beijo terminasse. Nunca. E quando as mãos de John começaram a percorrer-lhe o corpo, não queria também que ele parasse. Desabotoou-lhe a camisa e fez o mesmo.

O desejo tomou conta de Emily, como se seu sangue se tivesse transformado num rio de lava escaldante, consumindo cada músculo e cada osso em sua rota. Ela sentiu-se pegando fogo. Era algo que nunca lhe acontecera antes.

Foi só quando os animais relincharam que os dois voltaram à realidade. Ou melhor, John voltou, pois Emily continuava envolvida numa névoa quente e sensual, sentindo-se incapaz-de focalizar a vista em parte alguma.

John assobiou chamando a atenção dos cavalos que se puseram logo em movimento, ao som da voz enérgica do patrão.

— Não é nada inteligente, tampouco confortável— ele disse a Emily — fazer amor num carroção. Desculpe-me, querida. Não perderei a cabeça de novo. Prometo.

Ela passou um dedo pelos lábios de John, ainda úmidos dos beijos que lhe dera.

— Não peça desculpas. Gostei muito, John. Do fato de você ter perdido a cabeça, quero dizer. Espero que a perca de novo.— e acrescentou, quase num sussurro: — Espero que a perca frequentemente.

Uma vez de volta à fazenda, John levou a bagagem de Emily para cima, providenciou para que ela ficasse confortavelmente instalada, e sem uma palavra de despedida ou um olhar deixou a casa e a mulher.

Já se passara uma hora desde o violento beijo na traseira do carroção, mas ele ainda precisava de mais tempo para se recuperar. Enquanto se aproximava da estrebaria, ficou tentado a se atirar na gamela de água dos animais. Em vez disso contentou-se em jogar um balde de água na cabeça. A égua Corazon, junto à cerca, observava-o com

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curiosidade. — O que está você aí olhando, chica?— ele perguntou. — Nunca

reparou como um homem apaixonado é ridículo? John riu muito no instante em que a égua sacudiu a cabeça,

parecendo ter entendido tudo perfeitamente bem. E desejou que ela tivesse mesmo entendido.

Se alguém lhe houvesse dito, durante os longos anos que passara namorando, como um escolar, a distante e inatingível lady Emily Russell, que um dia ela confessaria seu amor sem constrangimentos, ele não teria acreditado.

Era verdade, contudo, Emily o amava! Dissera isso, não dissera? E então, em algum lugar entre Santander e a fazenda, sua Emmy se transformara em gata no cio.

Houvera uma sensualidade nos olhos dela que John nunca vira antes. O azul fora como chama quando Emily o fitara. Houvera algo diferente no sorriso dela e um corado nas faces que não tinha nada a ver com o sol ou o vento.

Deus. Nunca devia tê-la beijado. Não daquele jeito, ao menos. Apenas quisera provar-lhe que amar um homem real era bem melhor do que amar as cartas de um espectro.

Pretendera, com o beijo, despertar algum calor bem dentro de Emily, uma chama pálida e delicada. Em vez disso, convencia-se agora, inadvertidamente provocara uma queimada na floresta, uma conflagração que fugia a seu controle, sem se falar ao dela.

Inclinado contra a cerca, John acariciava o focinho da égua, deixando-a lamber a água que escorria de seus cabelos, enquanto se lembrava do potro que Corazon perdera havia um ano mais ou menos. Depois, a visão da cama manchada de sangue no quarto em Santander misturou-se a outras imagens em seu cérebro.

Aquilo não aconteceria de novo. Não enquanto ele pudesse fazer qualquer coisa para evitar. Não enquanto pudesse se refrear de qualquer ato que causasse o mesmo drama.

Não iriam adiante do beijo, sem se importar com a tentação ou o calor que sentissem. Porém isso seria sem dúvida mais fácil de conseguir antes que sua

Emmy pegasse fogo. Fechando os olhos, John inclinou a cabeça pressionando-a contra o

pescoço da égua, pensando em quanto tempo levaria para o bebê nascer, no Natal. Séculos, no mínimo.

Emily não sabia para onde John fora momentos após a chegada, mas sabia estar feliz e aliviada por ter voltado à fazenda, seu lar.

Sim, era na verdade seu lar agora. Não mais viagens no futuro. Não mais navios, ou trens, ou carroções que balouçavam nas estradas

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poeirentas e esburacadas. Não mais fazer e desfazer malas. Ela era a sra. Bandera agora, e estava em seu próprio lar, para ficar.

John deixara sua bagagem no quarto de Price, como sempre. Porém Emily duvidava que dormiria lá outra vez. Levou algum tempo arrumando suas coisas. De vez em quando olhava-se no espelho acima da cômoda, e espantava-se ao ver uma mulher feliz, de faces rosadas e olhos brilhantes. E se perguntava quanto tempo levaria continuando se sentindo feliz, contente com sua nova vida. Seu medo, sua incerteza, era por não estar familiarizada ainda com essas novas emoções.

Tirou de uma valise o monte de cartas e segurou-as contra o peito. Sabia-as de cor e imaginara conhecer o homem que as escrevera. Mas agora não lhe parecia mais ser essa a razão de sua felicidade.

Era John a fonte da felicidade que sentia no momento, não Price. E, se o conhecia intimamente ou não, era John o merecedor de sua gratidão, e o autor de sua fidelidade.

Agora, a mera vista das cartas fazia Emily se sentir desleal a John. Tinha de jogá-las fora. Todas elas. Seria o certo a se fazer, decidira. Aí, com um suspiro, colocou as cartas no bolso e foi à cozinha. Se queimasse algumas por dia, quem sabe seu ato destruidor não fosse tão triste, tão doloroso. Mas logo desistiu da ideia. Queimaria todas de uma vez.

O fogão estava apagado. Porém, com alguns gravetos não seria difícil acendê-lo. E foi o que fez. Tão logo as chamas começaram a surgir, ela ajoelhou-se e colocou os envelopes vagarosamente, observando as chamas devorá-los até ficarem reduzidos a um monte de cinzas negras. Assim estava seu coração. Reduzido a um monte de cinzas. Emily nem notou que chorava. Ia jogar a última carta quando ouviu a voz suave de John atrás de si.

— O que está fazendo, Emily?— Queimando meu passado— ela respondeu, jogando a última

carta.— Não precisava fazer isso. Não por mim, não sou um homem

ciumento.— Eu sei.— ela enxugou as lágrimas. — Você é um bom homem,

John. E quero ser uma boa esposa. Leal e honesta.Alguma coisa brilhou nos olhos de John quando ela falou em

honestidade, mas Emily não soube interpretar a razão. Esse era seu problema, ela admitiu. Não podia ler John como lia Price.

— Bem que podíamos nos corresponder mutuamente— Emily sugeriu sorrindo, surpresa por sua súbita idéia. Não má ideia, lhe parecera.

— Que bobagem— John protestou, de cenho carregado. — Não concordo com você.— sim, poderiam escrever cartas um ao

outro, como Price e ela haviam feito. Por que não pensara nisso antes? — Trata-se de algo fora do comum, concordo, John, mas seria um meio de

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nos conhecermos melhor.— Como dois escolares em vez de marido e mulher?— John retrucou.— Apenas pensei...— Guarde as cartas que ainda tem, Emily, se precisa de alguma

coisa para ler— John interrompeu-a abruptamente, bastante irritado.— Não foi o que eu pretendia com minha sugestão— ela insistiu.— Não importa o que você pretendia. – ele já estava na porta

quando ainda disse: — Escrever cartas! Deus! Não tenho tempo para esse divertimento ridículo.

Depois que ela se retirou para o quarto, John passou o resto do dia no escritório, segurando a caneta e tentando escrever: Queridíssima Emmy. Tentou várias vezes, mas nada. Tentou até escrever como se fosse Price. Nada. John não sabia o que fazer.

Era tarde demais para confessar o que fizera no passado. Receava envenenar a afeição que Emily começava a ter por ele. Escreveu então um pouco mais, sendo que o chão ficou forrado de folhas de papel inutilizadas. E havia mais tinta em seus dedos e na camisa do que na carta que finalmente conseguiu redigir.

Queridíssima Emmy, assim começava a carta. Embora não acostumado a escrever cartas...

Tarde naquela noite, John subiu as escadas sem fazer barulho, olhando para a réstia de luz na soleira da porta fechada de seu quarto. Teve certeza de que Emily estava acordada. Do que não tinha certeza era sobre o que falaria com ele após a discussão da tarde.

Bateu com suavidade na porta, vagamente desejando que Emily o mandasse embora.

— Entre— ela disse. John abriu uma fresta apenas, enfiando o envelope como um bilhete

da paz que lhe oferecia. — O que é isso?— ela perguntou, com voz baixa, talvez temendo

mais brigas pelo mesmo motivo de antes. — Uma carta. — Pensei que você estivesse ocupado demais para esse

"divertimento ridículo..."— Emita!— ele agora abriu bem a porta. Emily estava sentada na

cama, e seu lindo rosto tinha um ar preocupado, com certeza ainda por causa das discussões havidas. Mas John mal olhou para o rosto dela, pois não conseguia desviar o olhar dos seios, que o tecido da camisola mal escondia. Por segundos, quase se esqueceu do motivo que o levara até lá. Ah. A carta.

— Você prefere continuar zangada, Emita, ou gostaria de ler isto?— John estendeu-lhe a carta.

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— Você escreveu uma carta para mim?— Emily indagou, com uma sombra de sorriso.

— Sim. O meio sorriso desabrochou quando ela estendeu-lhe a mão. — Fico muito contente por você ter mudado de ideia, John. Deixe-

me ler essa carta. Oh, por favor. Ele deu um passo atrás, receando que suas palavras não a

impressionassem agora, como a impressionaram as palavras que escrevera antes, em nome de Price. Simplesmente achou que a desapontaria.

— John— ela suplicou, estendendo as mãos. — Por favor, deixe-me ler essa carta.

Ele já podia até visualizar o brilho do olhar de Emily ir desaparecendo ao percorrer as linhas da página. Podia até quase sentir o peso do desaponto no coração ansioso dela. Não seria muito diferente do modo como sentia seu coração naquele instante, dolorido pela possível decepção. John amassou o envelope.

— Oh, não faça isso— ela gritou.Por um momento que pareceu uma eternidade, John ficou ali em pé,

olhando para a mulher que ele amava mais do que qualquer coisa na terra. Emily era seu sonho que se tornava realidade, a alma que Deus lhe reservara, e com a qual não conseguia se comunicar. Palavras, as verdadeiras palavras, faladas ou escritas, não lhe vinham à mente porque o trairiam na certa.

Emily olhava para o envelope amassado, com lágrimas escorrendo-lhe pelas faces.

— Eu apenas quis que nos conhecêssemos melhor, John...— Não sou um poeta, Emily.— Sim, eu sei. E não esperava um poema.— ela ajoelhou-se no

centro da cama, as mãos estendidas, os olhos brilhando por causa das lágrimas, suplicantes. — As cartas eram apenas um meio de nós... começarmos. Um meio para nos tocarmos.

— Não sou Price McDaniel— ele disse, segurando forte o envelope amassado. — Não sei tocar uma mulher com papel e tinta.

— Oh, John.— Emily sacudiu a cabeça tristemente, e mergulhou embaixo das cobertas de novo. — Então não sei como poderemos ser mais do que estranhos apesar do fato de sermos marido e mulher.

De repente John se deu conta, coisa que soubera o tempo todo, de que para tocar sua amada teria de tocá-la de verdade. Por fora e por dentro. A união deles, duradoura ou não, seria apenas uma união de corpos e não de almas, a menos que ele confessasse seu amor.

Contudo, por que se entristecer com isso? Afinal, a maioria dos casamentos que conhecera não passava de uma união na cama e uma

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vida separada durante o dia, até o escurecer. Mas não era o que ele desejava. Não sonhara com isso, mas talvez se tratasse de um castigo merecido por sua falsidade. Seu castigo consistiria em ter aquela mulher mas sem a ter totalmente, cada um dando apenas uma parte de si.

— Estranhos...— John sussurrou — não se sentem quando se beijam como nós nos sentimos.

Os olhos tristes de Emily ergueram-se para encontrar os dele. Mas havia agora naqueles olhos tristes um vislumbre de fogo azul sob o cinza escuro do desaponto.

— É verdade, suponho— Emily balbuciou.— Não mais cartas— John disse, rasgando o envelope em

pedacinhos enquanto se aproximava da cama, observando o calor do olhar de Emily e o corado que começava a se espalhar sobre suas faces.

O papel rasgado foi das mãos de John para o solo, como flocos de neve. John pisou de propósito sobre eles, esmagando-os no tapete.

De mãos vazias agora, apagou a luz da mesa de cabeceira.Uma vez na escuridão, pegou Emily nos braços, não para lhe falar

sobre seu amor, mas para fazê-la viver esse amor.

CAPÍTULO XVI

Emily ficou na ponta dos pés para pendurar outra fronha no varal, nos fundos da casa. O vento quente de setembro, o vento que fazia suas saias se enrolarem nas pernas e que ameaçava arrancar-lhe as fitas dos cabelos, secaria a roupa de cama num instante. Ao meio-dia mais ou menos, ela calculava, subiria e arrumaria a cama com os lençóis perfumados pelo calor do sol.

A cama deles. Dela e de John. Esse pensamento foi suficiente para excitá-la. Sorriu, um daqueles

sorrisos de prazer. E ela podia sentir um colorido tingir suas faces. — Nunca vi uma mulher estendendo roupas tão feliz, após o terrível

trabalho de lavá-las— disse Minerva Hopkins, as palavras abafadas por causa dos pregadores que lhe enchiam a boca.

A mulher recém-enviuvada chegara à fazenda proveniente do Kansas, havia algumas semanas, para visitar seu irmão Tater Latham. E concordara em ficar permanentemente na fazenda como cozinheira e governanta.

Tratava-se de pessoa competente no trabalho, disposta a fazer de tudo. Emily era grata pela ajuda mas não pela presença dela.

— A verdade é— disse Minerva enquanto sacudia vigorosamente um lençol antes de estendê-lo — que nunca vi uma mulher em seu estado ser

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tão feliz por qualquer coisa, lady Bandera.— Mesmo?— Não, nunca vi.— Minerva tirou o último pregador da boca e

colocou-o na corda do varal já cheia de roupa. — Em especial confesso que poucas vezes vi mulher nesse estado continuar dormindo com o marido, pois é uma situação na qual a mulher não quer saber de nada com seu homem. Bem, digamos assim, isso em minha experiência de vida. E com a maioria das mulheres, não todas.

— E já teve muita experiência, suponho, Minerva. A idosa mulher sorriu. — Acho que sim. Sete filhos. Todos com saúde. — Sete! Oh, Deus!— Emily exclamou. — Este é meu primeiro. — E não será seu último, a se julgar pelo modo como o patrão a

olha. Emily sentiu-se corar. Sim, John fitava-a com indisfarçado desejo em

seus lindos olhos escuros, porém Minerva não sabia que o desejo de John nunca se realizava até o fim. Desejo, sim. Mas sem consumação.

Desde a noite em que ele rasgara a carta e apagara a luz deitando na cama com Emily, John lhe dera aulas sobre o desejo. Ensinara-a, com incrível paciência, sobre os píncaros que um corpo poderia atingir. Acariciando-a, noite após noite, com as mãos e com os lábios, ela chegava às alturas, para depois descer em espirais, como foguetes gastos, entrando num relaxamento completo.

As emoções entusiasmavam-na de tal forma que Emily mal podia esperar a noite para se entregar a outro encontro apaixonado. Desejava John de uma maneira como jamais supusera que um ser humano pudesse desejar outro. Sentia esse frenesi nos ossos, nos músculos, em cada gota de sangue de seu corpo. Pela primeira vez na vida considerava-se completa.

Bem, quase completa. John, apesar de toda a paixão e calor que instilava nela, recusava

chegar ao final do ato que iria transformá-los numa só pessoa. Não queria machucá-la. Ou melhor, não queria machucar o bebê. Poderia ser muito perigoso, pois a criança ainda não estava formada, ele dizia.

De repente Emily se deu conta de que continuava lá de pé, preocupada, pensando em John e esquecendo-se completamente de Minerva.

— Sinto muito— ela desculpou-se com a empregada. — Eu estava longe. Você me perguntou alguma coisa?

— Não perguntei nada mas quero preveni-la— disse Minerva, pegando o último lençol e estendendo-o. — Ouvi alguns dos rapazes no barracão falando da senhora, do patrão e da criança que vai nascer.

— É?!— Emily retesou o corpo. — Detesto fofocas, Minerva.105

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Emily chamou a atenção da empregada, mas ao mesmo tempo queria saber o que haviam falado deles, esperando que Minerva não desse ouvidos a suas palavras de censura.

— Entendo, eu também detesto. Mas ninguém anda de ouvidos tampados, sabe, não? Não se pode evitar ouvir o que é falado a sua volta. Uma pessoa pode fechar os olhos, mas é impossível fechar os ouvidos.

Emily teve muita esperança de que Minerva enfim falasse o que escutara. Porém, quando isso não aconteceu, perguntou:

— Enfim, o que você ouviu?— Oh, uma bobagem. Eles se perguntavam há quanto tempo o

patrão e a senhora estavam casados em relação ao...— a governanta olhava para o ventre protuberante de Emily. — Sabe, as pessoas falam, não dê importância a isso.

— Não é da conta de ninguém, apenas nossa— Emily respondeu, morrendo de vontade de ir ao barracão e estrangular o primeiro homem que aparecesse a sua frente.

— Eu vivi a mesma situação— Minerva explicou. E em seguida baixou a voz. — Eu estava apenas com dezessete anos e grávida de seis meses quando o sr. Hopkins e eu nos casamos. Meu jovem namorado morrera de uma queda.— a mulher baixou a voz ainda mais e acrescentou: — Depois do casamento, o sr. Hopkins e eu passamos a maior parte do tempo embaixo dos lençóis. Portanto, quando o bebê nasceu três meses mais tarde, todos pensaram que fosse dele.— Minerva piscou. — Exatamente como a senhora e o patrão, imagino.

Embora embaraçada por estar discutindo esse assunto com a governanta, a curiosidade de Emily era maior do que o desconforto. Durante as últimas três semanas John não parara de dizer que uma união completa entre eles dois era desaconselhável, perigosa até. Mas agora aquela mulher acabava de informá-la que não apenas era admitida para se obter um amor completo naquele estágio de uma gravidez, como também altamente recomendável, talvez até necessária para instilar um sentido de paternidade em relação ao pai atual da criança.

— Você não se preocupava, você e seu marido, sobre as consequências?

— Consequências?— Algum mal à criança como resultado do... bem... você sabe.— Nós tomamos algum cuidado, foi tudo. – Minerva sacudiu os

ombros e inclinou-se para pegar a cesta de roupa, depois colocou-a apoiada num de seus enormes quadris. — Não se preocupe, lady Bandera. Para quando é o bebê? Para o Natal?

— É. Minerva contou os meses nos dedos.— Setembro. Outubro. Novembro. Mais ou menos, não é? A senhora

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e o patrão têm ainda muito tempo para se amar antes que ele se retire para o quarto lá embaixo.

Enquanto Emily observava a gorda mulher caminhando na direção da casa, começou a contar o tempo em seus dedos. Contou meses, calculou os meses em semanas, depois em noites, no mínimo noventa em seus cálculos, enquanto um sorriso se abria em seus lábios, e um tremor se espalhava pelo corpo.

Era tarde da noite. John lavou-se depois de ter passado a maior parte do tempo medicando um garanhão doente.

Passou uma boa quantidade de sabão no tórax e embaixo dos braços, na esperança de eliminar o cheiro forte do cavalo e do feno, pensando em como passara a adorar aquele ritual de água e sabão, preparando-se para compartilhar a cama de Emily.

Iria esborrifar no corpo umas gotas do perfume que Price deixara lá. E se algum cowboy caçoasse dele, chamando-o de efeminado, pouco se importaria. Emily gostava, e isso lhe bastava.

Muitas vezes, quando a beijava ela dizia:— Hum! Que cheiro bom!Ele se banharia em chá de baunilha e mel se Emily lhe pedisse, e

sofreria as caçoadas dos homens para sempre, tal sua vontade de lhe dar prazer.

Naturalmente, dar prazer a Emily naquelas noites não queria dizer que usufruía o mesmo prazer. Após beijá-la, tocá-la, e conduzi-la a um alívio extasiante, e após Emily cair em sono profundo, John ficava acordado metade da noite ouvindo-lhe a respiração, deixando que seu sangue esfriasse nas veias e os nervos voltassem ao devido lugar.

Ele se enxugou, pensando... Havia coisas piores no mundo do que seus desejos refreados. A perna doente, por exemplo, que parecia ter piorado nos últimos tempos.

Porém o importante era que estava prendendo essa mulher a ele através do prazer que lhe proporcionava. E, embora isso lhe custasse, pretendia prendê-la mais e mais até ficarem fisicamente inseparáveis, até que ela não pudesse dormir sem o toque de suas mãos.

Depois de enxuto, pôs algumas gotas do perfume de Price, e subiu para o quarto.

— Você não precisava esperar por mim— ele disse, quando viu Emily recostada nos travesseiros com um livro sobre o ventre.

— Que não precisava, eu sei— ela respondeu, fechando o livro e pondo-o na mesa-de-cabeceira — Mas eu quis.— Emily abriu a cama para que John deitasse. — Você parece cansado. Venha dormir.

Não tão cansado que não pudesse notar o rosado das faces ou o sorriso diferente dos lábios de Emily. Os sorrisos de sua Emmy eram em geral inocentes, doces. Aquele, contudo, surpreendeu-o mais pela sedução

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do que pela doçura. O rosto também tinha uma expressão que ele nunca havia visto antes.

— Apague a luz— Emily pediu, assim que John se aproximou da cama.

Depois que o quarto ficou às escuras, ele sentou-se na beirada da cama para tirar as botas, como fazia todas as noites. E como todas as noites, por ter despido a camisa embaixo, as costas viradas para Emily estavam nuas. Naquela noite, para sua grande surpresa, antes mesmo que se abaixasse a fim de tirar as botas, mãos quentes passearam por seus ombros, em seguida para baixo e para cima ao longo da espinha.

— É bom?— ela sussurrou, com um traço de rouquidão na voz. Bom? Delicioso! O toque de Emily acendera um fogo imediato no

sangue de John. — Sim...— ele respondeu com cuidado, não desejando encorajá-la a

continuar, mas já tentado a aceitar o contrário. — E assim?— Emily perguntou, deslizando as palmas das mãos

sobre as costelas dele, percorrendo o tórax com as pontas dos dedos, e beijando o ombro.

John deu um profundo suspiro e depois falou. Sua voz saiu trêmula, ofegante, como se ele tivesse percorrido quilômetros correndo. E ladeira acima.

— Cuidado, mi Emita. — Como?— ela perguntou. — Eu disse, cuidado— ele preveniu-a. Mas Emily continuou viajando com as mãos, pelo corpo de John. — Cuidado com o quê?— ela perguntou enquanto seus lábios

vibravam ao longo das costas, e seus seios roçavam a pele quente dele. John suspirou mais uma vez e, tirando a segunda bota jogou-a

contra a parede. Em seguida mudou de posição, ainda na beirada da cama, e segurou ambas as mãos de Emily nas suas.

— Pare!— ameaçou-a. Estava escuro demais para ele ver a expressão do rosto de Emily,

mas imaginou que fosse de desaponto, a se julgar pelo modo como as mãos pararam de agir.

O desaponto e espanto eram indiscutíveis no som da voz dela quando finalmente falou:

— Não quer fazer amor comigo, John? Ele trouxe-a mais para perto de si.— Quero mais do que qualquer coisa no mundo, querida— ele

sussurrou.— Então, por que não permite que eu também lhe dê prazer? Por

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que o prazer há de ser só para mim?A pergunta de Emily, feita com voz rouca, provocou riso em John. Ela

tentava parecer experiente, como se conhecesse no mínimo uma centena das práticas sensuais de agradar a um homem. Com tal habilidade de sua Emmy, John jamais sonhara.

Porém, que a amara sem essas carícias sensuais, era verdade, ele concluiu, pois amara-a à distância. E agora, o simples sorriso dela fazia seu sangue ferver. No passado, as palavras de Emily nas cartas foram suficientes para fazer com que sua temperatura se elevasse em alguns graus.

— Você me dá prazer, Emmy. — Não foi o que eu quis dizer. Referia-me a outra coisa. E ela começou a afagá-lo de novo. O prazer que isso dava a John

era indescritível. A um dado momento Emily pousou a palma quente da mão sobre o coração dele e murmurou:

— Seu coração está batendo tal qual as asas de enorme pássaro. Um pássaro engaiolado, John pensou. Um gavião apanhado nas

garras persistentes de uma onça faminta. — Faça amor comigo, John, e não venha me dizer que é arriscado

demais em minha condição, porque sei muito bem que não é. John segurou-lhe as mãos mais uma vez e levou-as aos lábios. — Emmy, eu... Fora atrás do barracão, um som de bala quebrou a quietude da

noite. John reagiu instantaneamente, pulando da cama e agarrando suas

botas. Por uma razão ou outra, ficara grato com o incidente. — O que significa isso?— Emily perguntou, sentando-se na cama. —

Quem atiraria a esta hora da noite?— É o que vou descobrir— declarou John, calçando as botas, uma

após outra. — Provavelmente não é nada. Apenas um cowboy bêbado. Não se preocupe, Emmy. Por que não tenta dormir?

Enquanto vestia a camisa, ele notou que Emily procurava acender o lampião ao lado da cama. Esperava vê-la enrolada nas colchas, como sempre. Em vez disso, as cobertas da cama haviam sido jogadas longe e lá estava ela, na beirada da cama, usando apenas uma fina camisola de algodão.

Mesmo à luz fraca do lampião, ele podia distinguir os mamilos escuros contra o tecido claro e, um pouco abaixo, a maravilhosa protuberância do ventre. Seus joelhos quase fraquejaram ante o que presenciava. Nunca vira nada tão sensual, encantadoramente tão feminino. Se desejara aquela mulher no passado, seu desejo empalidecia diante do que sentia agora.

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Tivera de forçar o olhar para o rosto dela, onde não havia dúvida de que sua Emmy era de verdade uma mulher desejosa de fazer amor. Os olhos azuis eram profundos como os poços e mais escuros do que qualquer um deles à meia-noite. E os movimentos do olhar eram como os de uma gata faminta, insaciável.

Deus. Ele não poderia mais continuar combatendo o desenho de Emily. Não quando seu desejo era igual ao dela, se não maior. Não, quando sua Emmy tinha um aspecto tão convidativo. E ele teria voltado à cama, com tiroteio ou não, se não tivessem batido na porta de seu quarto naquele instante, pancada essa seguida pelo apelo ansioso de Tater Latham.

— Desculpe-me acordá-lo, patrão, mas é melhor que vá ao barracão.

— O que quer que seja, não pode esperar até amanhã? — Bem, poderia— o homem gaguejou — mas duvido que espere.John suspirou.— Estarei lá num segundo.Tater Latham retirou-se. John virou-se para Emily, e disse, enquanto

abotoava a camisa: — Você venceu com seu pedido, sra. Bandera. Não me demorarei e,

quando voltar, mi Emita, vai me dar todo o amor que puder pelo resto de sua vida. Acha que pode esperar por mim?

O sorriso vagaroso, sensual, e o brilho do olhar de Emily foram suficientes para informá-lo de que ela o esperaria o tempo que fosse necessário. E, mesmo que estivessem casados havia um mês já, aquela noite seria sua noite de núpcias. Finalmente.

John atravessou, resmungando o tempo todo, os muitos metros do pátio escuro indo ao encontro de Tater que o aguardava lá. Qualquer que fosse a tal de emergência, não poderia ser nem a metade mais importante do que fazer amor com a linda mulher, no momento lânguida, voluptuosa, deitada em sua cama.

— Que diabos está acontecendo lá no barracão que não pode esperar até amanhã, Tater?— John perguntou.

— O patrão verá. Ou seria melhor eu dizer, o patrão verá o que está acontecendo, mas não vai acreditar.

Um pouco adiante deles, com as luzes do barracão acesas, podia-se distinguir um movimento desusado através das janelas sem cortinas.

E John praguejou nas costas de Tater: — Que bêbado idiota ousou entrar lá para ser baleado? Hector? — Ninguém foi baleado, patrão. — Mas eu ouvi um tiro de rifle. — Sim, entendo. Contudo, ninguém foi baleado.— Tater sorriu. — Eu

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diria mais que se tratou de um tiro de saudação.

Se John já estava irritado antes por ter tido sua noite de amor interrompida, a resposta misteriosa de Tater o fez ranger os dentes, de pura frustração. Chegavam à porta do barracão e Tater girou o trinco.

— O senhor entra antes, patrão— ele disse, fazendo um gesto para o interior enquanto a porta se escancarava.

— Gracias— John agradeceu, entrando no barracão e observando os homens que estavam aglomerados em volta de uma mesa no centro da sala. —Alguém vai me dizer o que está acontecendo por aqui, a altas horas nesta maldita noite?

Porém, antes mesmo que qualquer um dos empregados respondesse, John soube a resposta.

O homem que atirara, à guisa de cumprimento, estava jogado numa cadeira. Porém conseguiu erguer a cabeça o suficiente para falar, não com muita clareza, pois enrolava a língua:

— Alô, John! Aposto que você pensou que eu estivesse morto.Price McDaniel voltara.

CAPÍTULO XVII

Uma mulher esperando para fazer amor, Emily dizia a si mesma, era incrivelmente similar a uma criança esperando pelo Natal. O coração dela disparava no peito, os lábios recusavam voltar à posição normal. Sorria o tempo todo. Havia um calor dentro de si que não tinha nada a ver com a temperatura do quarto, e uma antecipação que produzia um formigamento em todos os nervos de seu corpo.

Emily fechou o livro abruptamente, sem se preocupar em marcar o lugar onde estava lendo, e olhou para o relógio. John saíra havia meia hora já; mas uma vez reinando silêncio no barracão, nada de gritos, nada de tiros, não via razão para se preocupar. Portanto, o que quer que fosse que requererá a presença de John no meio da noite, seria resolvido por seu competente marido. Disso Emily tinha certeza absoluta.

Seu marido! Ela sorriu de novo. Como as coisas caminharam de modo estranho! Ela não duvidava, nem por um momento, que os laços de amor físico que a ligavam a John se fortalecessem, e talvez, com o tempo, surgisse uma união muito firme em sentimentos e compreensão mútua.

E mesmo que não tivessem o mesmo tipo de relacionamento emocional que ela e Price haviam estabelecido, tudo bem; poderia viver sem isso. Em resumo, considerava-se a mulher mais feliz do mundo, pois encontrara um homem bom e generoso com quem partilharia sua vida. O destino a abençoara com sua maneira indireta de agir.

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Emily sorriu. Só Deus sabia que existiam destinos bem piores do que compartilhar a cama de um homem viril, atraente, que punha o coração dela em chamas. E a alma, quem sabe?, provavelmente se aquecesse o suficiente no processo.

Em vez de ficar deitada na cama, esperando por John, Emily foi à janela. O barracão estava ainda todo iluminado. O que estaria havendo?

Como uma resposta a sua pergunta a porta do barracão se abriu e ela viu o vulto alto e forte de John emergir. Bem, finalmente, Emily pensou. Logo ela estaria nos braços de seu homem de novo; seu coração começou a acelerar à mera ideia.

Porém, num exame mais cuidadoso, constatou que John não estava sozinho. Um homem magro se encontrava ao lado dele, ou melhor, caminhava aos tropeções ao lado dele, tentando acompanhar os passos firmes de John. Não era Tater, Emily viu logo. Era bem mais dândi do que Tater ou do que qualquer outro homem do campo. Usava sapatos, não botas, e andava, apesar de vacilante, como um cavalheiro acostumado a calçadas pavimentadas e a tapetes, bem diferente de um cowboy.

O recém-chegado usava chapéu mas, mesmo que não o usasse, com luz tão escassa não seria possível enxergar-lhe o rosto. No entanto, devia ser conhecido de John. Não havia dúvida quanto a isso. Conversavam agora animadamente, bem abaixo da janela de seu quarto.

O som das vozes, embora sussurradas, subia até a janela. Como sempre, o tom melódico do espanhol de John chamou a atenção de Emily. Mas, à medida que os dois homens se aproximavam, ela ia ouvindo cada vez com mais nitidez uma melodia diferente que não tinha o sotaque espanhol de John, mas era uma voz tão familiar a ela como o som de sua própria voz.

E soube tudo. Santo Deus, Price! E seu coração movimentou-se em outra posição, diferente da

anterior. Após ter voado nas asas da alegria, mergulhou de súbito no desespero. Emily continuou no mesmo lugar onde estava, por um momento incapaz de se mover, e não sabendo se rir ou chorar.

Price voltara!Mas... se isso era tão bom, se se tratava de notícia maravilhosa após

longa espera, Emily se perguntava por que então começara a chorar?Aquela era a casa de Price, a metade pelo menos, por isso John não

poderia mandar que ele fosse dormir no barracão. Quanto a John, a partir do instante em que reconhecera seu sócio havia muito desaparecido, não conseguia pensar claramente.

O choque inicial ao ver Price fora de ódio, depois de medo, e, finalmente, de profundo desespero.

Price não mudara nada. Continuava sendo o mesmo sulista dândi que sempre fora, usando uma máscara de afabilidade que escondia o

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cinismo. O sorriso era um tanto mais relaxado do que o fora três anos atrás, e os movimentos muito menos ágeis. O uísque ainda corria em suas veias obscurecendo a vista e perturbando a fala.

Mas a única coisa realmente diversa era que Price McDaniel estava morrendo. Era evidente pela palidez do rosto, pelos olhos amortecidos e faces encovadas.

O homem não precisava dizer, mas se podia ver isso enquanto caminhava na direção da casa.

— Minha fazenda...— ele declarou decididamente. — Acho que quando um homem sente que vai morrer, este é um bom lugar. O que você acha, John?

— A fazenda é metade sua, Price— John respondeu, andando mais devagar para acertar os passos aos dele.

— Bem, isso faz bastante sentido. Metade da fazenda para meio homem.— Price sacudiu os ombros. — Eu seria um louco se desejasse também metade do gado, metade das plantações. Sou um bêbado inveterado.

John sorriu. Quis dizer a Price que, de fato, na ocasião em que os dois tiveram baixa do Exército, acharam que uma fazenda no Texas poderia competir com qualquer uma do condado de Russell. Porém, ao pensar na mulher que pertencia a esse condado, calou-se.

Toda sua artimanha com as cartas estava em vias de ser exposta. Ele tinha dificuldade até em respirar. Tinha impressão de que suas emoções o estrangulavam.

Perder sua Emmy, e a perderia, seria o mesmo que perder a vida. Teria sido o mesmo se Price o tivesse alvejado com sua arma.

Quando chegaram ao pórtico de entrada da casa Price tropeçou e soltou uma praga no instante em que John amparou-o.

— Seu quarto está do mesmo jeito como você o deixou— disse John. — Aliás, nada mudou muito na casa.— ele respirou fundo e acrescentou: — Exceto que há uma mulher...

Price sorriu maliciosamente e retrucou:— Bem, nunca imaginei você gostando da mesma mulher por mais

do que uma noite. Não vá me dizer agora que entregou seu coração a uma única mulher. Se foi, naturalmente bonita. Acertei?

John teve vontade de confessar o que fizera quanto às cartas, e de pedir a Price que aceitasse concordar com ele em deixar Emily às escuras, sem saber a verdade. Por algum tempo, pelo menos.

Deus. Se ao menos ele tivesse tempo de pensar, de acrescentar alguns fios à embaralhada malha que criara, para manter Emily e Price separados até...

De súbito a porta se abriu e Emily apareceu, carregando uma lanterna na mão.

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— Price?— ela perguntou, hesitante. — E você mesmo?— Madame— disse Price, tirando o chapéu e saudando-a num gesto

teatral — a honra de cumprimentá-la é minha, tenho certeza disso. Pelo visto, ele não a reconhecera.— Price, sou eu, sua Emmy.— Emmy?— ele repetiu, como se se tratasse de um nome

desconhecido. Aliás, o que na realidade era.John não deu uma palavra, mal podendo respirar, observando como

Emily se tornava mais e mais confusa.— Emily— ela disse. — Emily Russell, Price. Por Deus! Percorri a

enorme distância do Mississipi até aqui...— Emily Russell— Price repetiu vagarosamente, como um bêbado

acostumado a fazer confusões.De súbito, uma luz iluminou-o.— Oh! E Emily Russell do condado de Russell! E, se não me falha a

memória, deve ser a gardênia que me escreveu aquela linda carta anos atrás.

Price estendeu-lhe a mão e levou os dedos trêmulos de Emily aos lábios.

— Minha querida Emily— ele gaguejou — você deve me considerar um canalha por nunca ter respondido sua carta durante todos estes longos anos.

— Mas, Price, você...As palavras que Emily ainda iria pronunciar sumiram como fumaça.

Seus lábios tremeram e ela empalideceu. John achou que Emily iria desmaiar e preparou-se para carregá-la.

Porém naquele instante Price foi para perto dele e murmurou, com voz muito fraca:

— Estou muito feliz por estar aqui, amigo. Eu gostaria de ir a meu quarto agora. Pode, por favor, me ajudar a subir as escadas, John?

Emily afastou-se para lhes dar passagem. Nesse exato momento, John lhe perguntou:

— Emmy? Você está bem?O rosto triste com que ela o fitou lhe dizia que nunca mais estaria

bem de novo.John bateu na porta do quarto e entrou hesitante, esperando

encontrar o mesmo rosto triste que vira minutos atrás. Contudo, não pode constatar se acertara, pois Emily estava na cama com a cabeça coberta.

— Emmy?— ele sussurrou.— Vá embora, John. Por favor. Quero ficar sozinha. Mesmo que as

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palavras tivessem sido enunciadas sob camadas de lençóis e colchas, o tom fora bastante claro.

— Não chore— ele disse. — Chorarei se quiser chorar. — Mas não vai ajudar em nada.Emily afastou as cobertas da cama e sentou-se ereta, fitando-o

firmemente.— Bem, o que mais pode uma pessoa fazer quando perde seu

melhor amigo do mundo?— Price? E ele é seu melhor amigo do mundo?— John perguntou,

indeciso. — Claro, naturalmente que é Price. Quem mais poderia ser? Por que

fez ele isso para mim, quando temos tão pouco tempo para estarmos juntos?

— Fez o quê? — Ouviu o que Price disse sobre minha carta, não ouviu? Como

negou ter respondido a carta? — Ouvi. Você não acreditou nele? — É claro que não acreditei.— ela enxugou as lágrimas com a ponta

da colcha. — Mas por que mentiria ele sobre isso?— o que John queria na

realidade descobrir era como Emily chegara a essa absurda conclusão. — Porque tentava proteger meus sentimentos. Acredito que Price

pense que o fato de eu o perder seja menos penoso para mim se fingirmos que jamais houve um forte elo entre nós dois.

John quase gargalhou ante o ridículo da resposta, ante a teimosia de Emily em querer conservar o Santo Price em seu pedestal. Ao mesmo tempo, ficou absurdamente grato por ter assim mais tempo para decidir o que fazer acerca das cartas.

— Bem— ele respondeu — com Price é sempre difícil saber se o que ele diz é verdade, pura fantasia, ou invenção. Acho que você está pretendendo fazer parte desse pequeno drama. Certo?

— Sim. E não interfira, por favor, John. Sei que não há mais muita amizade entre vocês dois, e a chegada de Price é... bem...

Emily olhou para a cama com lençóis revoltos, onde sem dúvida ela e John estariam fazendo amor naquele instante, não fosse pela chegada intempestiva de Price.

— Farei o que você quiser, Emita— ele disse. — Se acha que as coisas ficarão mais fáceis, poderei encontrar uma cama no barracão para mim durante algum tempo.

Lágrimas rolavam abundantes pelo rosto de Emily mais uma vez.

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— Não é que eu não ame você, John. Eu o amo muito. E somente porque estou perdendo meu melhor amigo...

Então era Price, John pensou. Mas seria considerado seu melhor amigo por muito tempo?

Price, em pessoa, não era o homem que amara durante tanto tempo no papel, Emily reconhecia isso. Porém ela de certo atribuía a diferença entre os dois homens, John achava, à precária condição da saúde de Price como também à decisão dele de ignorar a existência das cartas supostamente escritas por sua mão.

Mesmo após uma semana, Emily tentava não dar atenção às frequentes indiretas de Price. Ela fingia não ouvir os comentários desagradáveis acerca de qualquer assunto que viesse a baila. Minerva, por outro lado, não perdia nada.

— Não me interessa se ele está à beira da sepultura— a velha empregada disse, não se dando ao trabalhe de baixar a voz mesmo estando à porta do quarto dele com uma jarra de água fresca na mão. — Não há razão de lavarmos três lençóis do homem todos os dias. Em especial sabendo que é a bebida que faz isso.

— Psiu!— Emily encostou um dedo nos lábios. — Price pode ouví-la.— E espero que ouça. Vai ser bom para ele.— Minerva sacudiu os

ombros. — A senhora devia guardar toda a energia para seu marido, se sabe a que energia me refiro, lady Bandera. O patrão tem estado muito triste ultimamente. Isso desde que Sua Alteza arrastou sua carcaça para cá.

De repente, um sapato ou um livro foi atirado contra a porta do quarto pelo lado de dentro, e uma voz se fez ouvir.

— Por favor, diga a essa velha maluca que volte para a cozinha...— um acesso de tosse impediu-o de continuar.

— Viu?— Emily censurou-a. — Viu o que você fez? Ela tirou a jarra das mãos da empregada, deu um suspiro e depois

entrou no quarto -que estava às escuras. — Trouxe um pouco de água fresca para você, Price— disse Emily.

— Quer que eu encha um copo? Com as venezianas fechadas, ela não podia ver-lhe o rosto. Price

estava deitado no meio da enorme cama de madeira de lei. Porém Emily não precisava vê-lo para saber que enrugara a testa antes de lhe responder.

— Ainda tentando com todas as forças enferrujar minha garganta? Água foi feita para a pessoa se banhar, Emily, ou para nadar se gosta do esporte.

Ela ouviu o distinto som de uma rolha sendo tirada da garrafa, e do líquido entornado num copo. Suspirando, colocou a jarra sobre uma mesa.

— Quando eu descobrir qual é o cowboy que você vem subornando 116

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para lhe trazer esse veneno, será o último dia dele na fazenda. E sairá daqui com a impressão de meu pé nos fundilhos, como um souvenir.

— Você adquiriu uma linguagem rude para uma dama do condado de Russell, não acha?— Price tomou um grande gole da bebida. — Deve ter sido influência de meu sócio mestiço.

— Duvido— Emily respondeu enquanto erguia do chão o livro que ele jogara contra a porta minutos antes. — Sempre segui minhas próprias idéias. Você, acima de qualquer pessoa, devia saber disso...

Ela parou abruptamente, censurando-se mais uma vez por quase ter quebrado o voto de silêncio que fizera, acerca das cartas. Esse seu lapso ocasional pareceu agitar Price.

— A única coisa que sei— ele retrucou, — é que não poderei morrer em paz com você e essa velha incessantemente envenenando meu resto de vida. Ao menos John teve a delicadeza de sumir de minha frente.

— Ele tem trabalhado muito— Emily retrucou, tomando a defesa de John. Nos últimos dias ele sumira de sua vida também.

— Mas será recompensado por isso.— Price esvaziou a garrafa no copo. — Faça-me um favor, Emily. Não vou lhe pedir que me traga outra garrafa, pois sei que não o fará. Mas lhe ficarei muito grato se me trouxer papel, uma pena e tinta. Pode fazer isso para mim?

— Naturalmente. — Bom. Depois, mais tarde, trará aquela antipática velha de volta e

vocês duas poderão testemunhar a veracidade de meu último desejo e testamento.

— Seu...— Emily ficou pálida.Price emitiu um som, metade igual a uma risada maldosa, metade

igual a uma tosse dolorida, antes de conseguir sussurrar, tão fraco estava:— O que mais poderia eu estar tentando escrever, minha cara?

Certamente não pensava que iria finalmente responder a suas cartas melosas, piegas, de colegial. Não pensou, não é mesmo?

O som da risada nauseante de Price acompanhou Emily até o último degrau da escada.

CAPÍTULO XVIII

John sentava-se à escrivaninha, tentando se concentrar no livro de contabilidade. Procurava entender uma coluna de cifras que para ele mais pareciam caracteres do alfabeto chinês, pois a melhor parte de sua atenção dirigia-se aos sons variados do resto da casa.

Esperava. Era quase só o que fazia ultimamente. Esperava que a lâmina da guilhotina caísse, que a mola do alçapão cedesse e que ele

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fosse lançado para baixo. Estivera em espinhos desde o dia em que Price chegara, aguardando o inevitável desfecho quando todas as suas mentiras seriam descobertas.

E, Deus que o perdoasse, desejou mais de uma vez que Price morresse, levando a terrível mentira consigo.

Passou muito tempo pensando em como as coisas poderiam ter sido com ele se tivesse confessado tudo a Emmy no dia em que ela chegara à fazenda. Talvez Emily houvesse encontrado um meio de perdoá-lo, na ocasião. Se não, ao menos diria a si mesmo que agira com honra, confessando. Errar era humano, todos erravam, mas confessar o erro não parecia ser muito comum. Esse era seu ponto de vista, enfim.

No entanto, agora seria tarde demais para confissões. E honra, se algum dia tivera, era irrecuperável.

Por esse motivo John esperava e ouvia os passos irritados de Minerva subindo e descendo as escadas, o som distante das gargalhadas demoníacas de Price, e finalmente escutou o farfalhar das saias de Emily quando ela apareceu à porta, indo até a escrivaninha. John fechou o livro de contabilidade, refletindo como sofria por causa de sua desonestidade. Mas, ao ver o rosto pálido de Emily e as marcas das lágrimas, deixou de ter pena de si, resolveu abandonar a autopiedade.

— Querida — disse, indo para o outro lado da escrivaninha a fim de abraçá-la. Pelo modo como Emily agarrou-se a ele, John percebeu que o terrível segredo ainda continuava salvo.

— Price está morrendo.— os soluços de Emily ficaram abafados contra o tórax possante de John. — Ele não tem mais muito tempo de vida.

— Eu sei. Sinto, Emita. Entendo como deve ser difícil perder alguém que significa tanto para você.

Emily afastou-se um pouco, esfregando os olhos e fungando. Disse: — Ele significou. Quer dizer, significa. Oh, nem sei mais o que devo

dizer. — Price não merece suas lágrimas, Emmy— John declarou com mau

humor. — Tenho a impressão de que chorar é a única coisa que venho

fazendo nestes últimos dias— ela declarou, agora enxugando as lágrimas com um lenço. — Chega! Com toda essa confusão, esqueci-me do que vim fazer aqui, em primeiro lugar. Ah, lembrei-me. Price me pediu para lhe levar papel e uma caneta. Posso?

Ela já se encaminhava a fim de pegar o papel quando John a segurou pelo pulso.

— Papel e caneta? Para que deseja ele papel e caneta?— Quer redigir um testamento antes que seja tarde demais para isso

— ela explicou. — John, você está me machucando. Largue meu braço, por favor.

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John não se dera conta da intensidade com que segurava o pulso de Emily. Envergonhada, soltou-o, aliviado por não a ter machucado mais, tal seu pânico.

— Providenciarei tudo, Emily, para que ele escreva o que deseja. Deixe isso comigo. De qualquer modo, preciso falar com Price sobre alguns problemas financeiros da fazenda.

— Ficarei agradecida a você, John.— Emily sorriu. — Deus que me perdoe, mas fingir que não sou nada mais do que uma estranha para aquele homem está me desgastando.

— O que você precisa é de descanso, Emmy. Deixe que Minerva cuide de Price por enquanto.

— Minerva parece querer apressar essa morte. Ela e Price são como duas lixas se esfregando. Ou como cão e gato, como se diz frequentemente.

— Falarei com ele. — Price não o ouvirá.— Emily suspirou, começou a ir até a porta, e

parou: — John? — Sim, Emita.— Sinto falta de você.— lágrimas escorreram-lhe pelas faces de

novo. — Apenas recentemente senti como dependo de sua força silenciosa e de sua absoluta honestidade.— John deu uns passos ao encontro dela, desejando abraçá-la. Porém Emily estendeu os braços para conservá-lo à distância. — Não, deixe-me falar. Receio que se me tocar agora poderei me esquecer do que preciso lhe dizer.

John obedeceu, porém com relutância.— Não nego que amei as cartas de Price e que sempre terei saudade

da poesia daquelas cartas. Chorarei por essa perda até o fim de meus dias.— Emily respirou fundo antes de continuar: — Mas quero que saiba que sou grata ao destino que nos uniu, e que saiba como aprendi a valorizar... não, a amar sua honestidade e sua linguagem simples, que vai sempre direto ao ponto.

John tinha os olhos fixos no chão, sem coragem de encará-la, sabendo que Emily com certeza enxergaria muita coisa através de seu rosto e leria as mentiras encravadas em sua alma.

— E quero que sabia— Emily prosseguiu — que a volta de Price não alterou o desejo que tenho de ser sua esposa, John. Tampouco alterou meu desejo de que nos conheçamos melhor, no decorrer dos tempos.

— Emmy!— ele exclamou, lutando com a necessidade de usar toda a poesia da qual ela achava falta, todas as palavras lindas que tão facilmente escrevera nas cartas, mas que agora paravam em sua garganta quando tentava enunciá-las.

Aí, chegando à conclusão de que não tinha nada mais a dizer, Emily virou-se mais uma vez para sair.

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— Vou descansar um pouco— disse. — Não se esqueça do que Price me pediu, sim? Leve papel e uma caneta ao quarto dele assim que puder.

— Não, querida. Prometo que não me esquecerei. Price chamava-a pelo nome, o que intrigou Emily considerando-se

que ele estava a seu lado, ali bem junto. Porém... em sonho. Mas não era o verdadeiro Price, naturalmente. O homem que lhe

aparecia nos sonhos era a fantasia que ela criara durante anos. Um homem alto, saudável, de olhar puro, alma limpa, e carinhoso no trato. Quando falava a voz era parte poética, parte angelical. Emily devorava as palavras dele.

Por que estaria Price chamando-a, Emily se perguntava, sonhadora, uma vez que se encontravam juntos, andando de braço dado pela rua Solomon, passando em frente à mansão dos McDaniel e depois, coisa fora do hábito deles, atravessando um campo cheio de árvores ornamentais que cresciam no solo do condado de Russell?

— Emily!Dessa vez era o grito de Price que entrava em seu sonho e a trazia

de volta à realidade, de volta à fazenda onde o homem que ela amara de todo seu coração e alma era agora um desconhecido que morria, e o homem que ela desejava amar da mesma maneira não passava de um novo amigo embora tivessem compartilhado da deliciosa intimidade da cama.

Emily sentou-se, tendo se esquecido completamente, durante o sonho, do filho que carregava no ventre, e de sua forma avantajada.

Price chamou-a de novo.— Sim. Já estou indo— Emily respondeu, contente por ter dormido

vestida o que lhe permitiu atender ao chamado dele mais depressa. Não se importou com sua saia amassada, com os cabelos em desordem, pois Price realmente nunca a olhava.

Percebeu, enquanto atravessava o corredor, que dormira mais do planejado.

O quarto de Price estava mais escuro do que em geral, o que dificultou que se lhe visse o rosto.

— Eu concluí que você estava tendo grande prazer em me ignorar— ele disse com voz ácida, enquanto Emily apressava-se em acender a vela da mesa-de-cabeceira.

— Isso é maldade sua, Price. Eu cochilava e vim assim que escutei seu chamado.

O rosto dele adquiriu uma expressão amarga. Essa foi a resposta de Price.

— Não lhe faria mal algum me pedir desculpas, não acha?— Emily disse.

— Tudo me incomoda, tudo me custa sacrifício. Estou morrendo. 120

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Lembra-se, não?— ele ergueu a mão e apontou para o armário. — Meu testamento está lá dentro. Preciso de sua assinatura como testemunha. A bruxa já assinou.

Emily pegou a folha de papel, com intenção de apenas lançar um olhar. Porém, quando viu aquelas letras negras, firmes, no papel branco, seu coração quase parou de bater e ela quase se esqueceu de respirar.

Quantas vezes a vista daquela caligrafia fizera seu coração palpitar como um louco? Quantas vezes rira ou chorara, ou as duas coisas ao mesmo tempo, lendo as palavras tão carinhosamente desenhadas? Como poderia viver sem elas?

Forçando o nó que tinha na garganta, para poder falar, Emily disse: — Sua caligrafia não mudou nada, Price. Teve dificuldade em

escrever? — John me ajudou. — Não me surpreendo.— Emily relia tudo agora, focalizando o olhar

nas formas familiares das letras. E comentou: — John me parece ser o único beneficiário.

— Não que não a tenha levado em consideração, minha cara. Mas achei que tudo o que era de John era seu.— Price tossiu, e acrescentou: — Além disso, minha ida será provavelmente a melhor coisa que eu poderia lhe deixar.

— Oh, Price.— por mais que tentasse, Emily não conseguia evitar as lágrimas. — Se você ao menos...

— Pare com essa choradeira, mulher. Chamei-a aqui apenas para assinar meu testamento. Nada mais. E lhe ficarei muito grato se sumir daqui com suas lamúrias e soluços, e me deixar beber o último uísque em paz.

— Tudo bem, Price. Emily molhou a pena no tinteiro e assinou na última linha da

página. Depois percebeu, para seu desaponto, que assinara Emily Russell e não Bandera. Molhou a pena de novo e acrescentou Bandera, seu nome legal agora.

— Pronto — ela disse, soprando para secar a tinta. — É tudo? Vou levar a caneta e a tinta de volta à escrivaninha de John.

— Deixe tudo aqui— Price ordenou. — Para quê? Ele abria uma garrafa quando respondeu: — Bem, nunca se sabe. Posso, de repente, ter vontade de

acrescentar um codicilo.— depois ele gargalhou e disse: — Ou talvez uma carta, minha cara Emily. Uma carta com atraso de anos.

Ao sair do quarto de Price, ouvindo ainda as gargalhadas dele, Emily foi para o pórtico a fim de tomar um pouco de ar fresco. Era bem

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tarde e se surpreendeu ao encontrar Minerva e o irmão, Tater Latham, conversando.

— Boa noite, madame— disse Tater, levantando-se da mureta de pedra. — Estávamos falando sobre a senhora, não foi, Min?

— Estavam?— Emily sentou-se na cadeira de balanço ao lado de Minerva, procurando encontrar forças para sorrir amavelmente. — Falando coisas boas, espero.

— Muito boas— Minerva respondeu. — Estávamos comentando como será bom termos uma criança aqui conosco.

Emily suspirou antes de responder: — Confesso que tenho andado tão preocupada que até me esqueci

do bebê e de nosso futuro na fazenda. — Não me surpreendo nem um pouco. E, se me perdoa— a

governanta continuou — aquele homem lá em cima bem que poderia ter morrido em algum outro lugar em vez de vir aqui para causar tanta dor.

Sem um pingo de sentimento de caridade, Emily quase desejou que Price tivesse mesmo feito isso. Se nunca houvesse conhecido o homem como ele era na verdade, suas lembranças, embora mal orientadas, não teriam sido maculadas.

— Calma, Min— o irmão preveniu-a. — McDaniel adquiriu o vício, vários aliás, mas não é a encarnação do demônio que você pretende que ele seja. Posso me lembrar...

Emily virou a cadeira onde se sentava para encarar Tater, ansiosa por ouvir alguma coisa, qualquer coisa!, boa sobre Price.

— Conte-me, Tater. Por favor. Conte-me todas as coisas boas de que se lembra acerca dele.

Tater debruçou-se no gradil e coçou a cabeça.— Bem, deixe-me ver se me lembro. Houve um dia, alguns anos

atrás, em Kansas, quando ele...— Está ficando tarde, Tater.— a voz de John veio do maciço escuro

das árvores, um pouco antes de ele aparecer no canto do pórtico.— Boa noite, patrão. Eu estava contando a tniss Bandera sobre o

tempo em que... — Eu disse que estava ficando tarde— John repetiu. John subiu os poucos degraus. A claridade da lanterna incidiu em

seu rosto que estava duro e inflexível como Emily nunca o vira antes. Mas o falante Tater ousou continuar.

— Como eu dizia a lady Bandera...— Basta!— John berrou.O cowboy fechou a boca. Ninguém disse uma palavra mais até o

momento em que Minerva levantou-se, quase gritando:

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— Tater Latham, um dia espero que o bom Deus faça você ouvir mais do que falar. Vá para a cama. Agora!

— Tudo bem, Min.— ele começou a andar mas não sem antes encarar John que ainda o fitava, furioso. — Algumas pessoas não apreciam meu dom de conversar.

Minerva retirou-se também, e sussurrou para o irmão:— Algumas pessoas querem algum tempo para ficar sozinhas, seu

tolo. John sentou-se ao lado de Emily e tomou-lhe a mão. Estava gelada

apesar da temperatura agradável da tarde.— Devia ir se deitar, Emita. Não há nada mais que você possa fazer

por Price. — Ele não tem muito tempo de vida— ela murmurou com tristeza.

— Foi grande bondade a sua ajudá-lo a escrever o testamento, John.John apenas inclinou a cabeça, concordando. Achava que bondade

não tinha nada a ver com o que ele fizera. Ao contrário, oferecer-se para registrar os desejos finais de seu sócio agonizante no papel teve por finalidade tentar convencer Emily definitivamente de que fora Price quem lhe escrevera durante todos aqueles anos.

Agora, a única coisa que faltava para que seu segredo jamais fosse revelado era a morte de Price. Logo. Naquela noite. Deus. Por causa de seu mau agouro, John pensou, iria por certo um dia encontrar-se com Price de novo nas profundezas do inferno. Mas achou que valeria a pena, se em troca disso pudesse passar mais algum tempo com Emmy na terra.

— É esquisito, não acha— Emily continuou, com sua mão ainda presa à de John —, que uma pessoa cujo caráter tenha se alterado tão dramaticamente, ainda possua a mesma caligrafia de anos atrás? Juro que, ao imaginar a mão elegante de Price escrevendo o testamento, esta noite, as cartas dele voltaram-me à mente.

— Bem, ao menos ele fez uma boa coisa na vida mandando-as para você.

— Como pode dizer isso, John?— Emily puxou a mão. — Price me enganou horrivelmente. Como pode me dizer que foi bom?

— Porque— John respondeu com calma — isso a trouxe para mim, Emita. Você e o bebê.

— Mas era Price quem eu procurava quando vim para cá. O que aconteceu conosco foi meramente... ora... acidental, obra do acaso.

— Não importa. Não importa.— ele tomou-lhe a mão de novo e segurou-a com mais força do que antes. — É o fim que interessa, corazon. Não o princípio— John disse, pedindo a Deus que o fim de Price acontecesse logo para que ele, Emily e o bebê pudessem começar.

Morra, seu imprestável canalha. Morra esta noite, e leve meu segredo para o túmulo com você. É o único meio para que eu possa viver

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feliz.Uma hora mais tarde Emily subia as escadas. Seus passos estavam

pesados como o coração. "É o fim que interessa". John dissera, esperando com isso animá-la.

Porém, apesar de não ter protestado no momento, aquelas palavras tiveram o efeito oposto. Emily sentia-se arrasada.

O fim era o fim. Uma vez Price morto, suas alegrias e queridos sonhos também morreriam. Sua alma nunca estaria satisfeita. Durante o resto da vida, por mais grata e contente que se sentisse sendo esposa de John Bandera, haveria sempre uma parte vazia nela, não saciada, em vão esperando ser preenchida.

No topo da escada Emily parou à porta do quarto de Price, escutando. Nada de ruído com as cobertas, não de garrafa de encontro ao copo, não de respiração ofegante. Não vinha som nenhum do outro lado da porta. O silêncio era completo, tão profundo e sem fronteiras como o próprio céu, tão vazio como sua alma. Então Emily soube que Price morrera.

Lentamente, respirando fundo para se acalmar, abriu a porta do quarto e entrou.

A vela ao lado da cama estava acesa, mas quase no fim, lançando uma luz pálida sobre o vulto deitado na cama. Price tinha os olhos fechados, parecendo em paz. Ele dobrara as cobertas sobre o peito, como se soubesse que sua hora chegara.

As mãos, uma de cada lado, seguravam alguma coisa. A esquerda uma garrafa, dando a impressão de que ele relutava, mesma na hora da morte, em abandonar o prazer que o matara. Mas foi o que Emily viu na mão direita de Price, um papel, que fez seu coração palpitar com mais força.

Suas mãos tremiam quando tocou a mão já fria de Price. Ao puxar o papel, notou as nódoas de tinta nos dedos dele, que não estavam lá mais cedo, no mesmo dia.

Antes de abrir a carta hesitou e deu um longo suspiro, sabendo que, na próxima vez em que respirasse, sua vida seria diferente. Melhor? Pior? Não sabia ao certo. Apenas diferente.

Desdobrou o papel mais vagarosamente do que cada batida de seu coração. Por causa das lágrimas, no primeiro instante não pôde ler com facilidade o que Price escrevera. Piscou uma vez, outra vez, para focalizar a escrita, uma mistura de manuscrito e letras de forma que não seguiam uma linha reta. Não somente horrível, a caligrafia não era nada familiar. Com grande concentração Emily conseguiu ler, seus lábios formando cada palavra em leitura silenciosa.

“Minha queridíssima Emily, eis aqui, finalmente, sua carta. Eu gostaria de lhe ter respondido anos atrás. Estaria salvo de minha vida de filho pródigo. Com meu mais profundo remorso e

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sincero arrependimento, Price.”De súbito, o mundo pareceu a Emily ficar reduzido a frangalhos,

como cada um dos garranchos que ela lera. Suas pernas dobraram e caiu de joelhos, ao lado da cama.

Não fora Price. Nunca fora Price. As coisas faziam sentido agora. Fora John quem tão perfeitamente, e poeticamente e astuciosamente, a enganara.

CAPÍTULO XIX

Ainda no pórtico, John olhava para a escuridão relaxando dos trabalhos diários, ouvindo os sons da noite e os roncos dos homens que dormiam no barracão. Aproveitava a brisa que soprava suavemente e escutava o ocasional bater de asas de alguma coruja em perseguição a uma ave que voava mais abaixo.

O ar refrescante lhe prometia algumas horas agradáveis com Emily na sala, conversando sobre vários assuntos; e mais tarde, na cama, lado a lado, sob uma pilha de cobertas, sussurrando e se tocando. Como ele desejava esse tipo de vida, os dois juntos, numa verdadeira existência de marido e mulher, que enfim começava.

Assim que Price morresse. John esperava ardentemente por isso. Observava todos, os movimentos da casa. Ouvira mais cedo, sentindo-se um tanto culpado, o ruído de Emily subindo as escadas e esperara pelos soluços abafados dela ou até de gritos que seriam um sinal do fim de Price e do começo de sua vida. Segurou a respiração antecipando as boas novas. Mas depois do som dos passos de Emily, o silêncio invadiu a casa.

Amanhã, talvez. Os moribundos tinham uma tendência de se esforçar por passai- a noite, como se o amanhã significasse um novo começo. Então, quando as primeiras luzes do amanhecer enfim surgiam, e com elas as dores, eles morriam com uma sensação de grande desaponto na alma.

Ele matara homens, isso era verdade, mas sempre agindo com justiça, arriscando a própria vida no processo. Mas nunca desejara a morte de uma pessoa. Por outro lado, nunca tivera um segredo a proteger, ou uma mulher que não poderia perder.

De súbito, John ouviu o suave farfalhar das saias de Emily na porta. A aparição dela agradou-o, mas não o surpreendeu apesar do avançado da hora. Numa casa onde alguém estava morrendo era comum os vivos relutarem em dormir, ou até em fechar os olhos.

Quando a porta se abriu totalmente, John levantou-se para recebê-la.

— Não conseguiu dormir, Emita?— perguntou sorrindo, abrindo os

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braços para receber o corpo quente, suave de Emily. — Price morreu— ela anunciou.A porta bateu assustando John, mas não tanto quanto as palavras

duras de Emily, ou melhor, o tom com que ela falara. Emily tinha os olhos secos e quentes como as areias do deserto.

— Não é sem tempo— John respondeu, baixando os braços mesmo que seu maior desejo fosse confortá-la, sussurrar-lhe palavras de segurança sobre fins e começos, frios invernos e primaveras quentes e verdes e, acima de tudo, sobre o amor eterno.

Price morrera. Seu segredo estava salvo. Estava na hora de ele começar a falar. Contudo, mal começara, Emily ergueu a mão, dizendo:

— Seu desprezível! Como pode me enganar desse jeito? Olhe.— ela jogou uma folha de papel no nariz de John. — Leia isto.

Ele não conseguiu. A primeira vista, as palavras eram borrões à luz da lanterna. Mas logo, reconhecendo a caligrafia ilegível de Price, John simplesmente fechou os olhos. Não precisava ler o que o sócio escrevera para concluir que sua vida estava terminada, faltando apenas algumas furiosas acusações finais.

— Por que fez isso, John?— Emily perguntou num gemido. — Riu à minha custa todo este tempo? Achou que minha ingenuidade e tristeza eram engraçadas? Tudo não passou de um jogo para seu divertimento?

John sacudiu a cabeça num gesto negativo sentindo-se desprovido das palavras numerosas de um momento atrás, perdendo a habilidade de falar.

Emily arrancou-lhe o papel das mãos.Apesar de todos os pecados de Price McDaniel, ele nunca mentiu

para mim. Ele deve, isso sim, me ter considerado uma idiota por continuar com correspondência tão ridícula.

— Não, ele...— E você aí parado, rindo, enquanto eu prosseguia escrevendo. E

você brincando comigo como um gato de olhos amarelados perseguindo um rato ignorante e cego.

— Não, querida...John tentou segurar-lhe a mão porém ela afastou-o, dizendo:— Não me toque. Nunca mais me toque, John Bandera. Ele ergueu então a mão, num gesto submisso. Dava um passo atrás

exatamente no momento em que Minerva entrava no pórtico, resmungando. Os cabelos grisalhos da governanta estavam trançados, prontos para a cama, onde por certo ela já estivera até um momento atrás.

— Não quero lhes faltar com o respeito, sr. e sra. Bandera, mas os dois estavam gritando tão alto, que seria suficiente para acordar um

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defunto daqui até o México— ela declarou, enrolando-se melhor no cobertor que a envolvia.

— Salga, mujer— John berrou, apontando a porta. Mas Minerva continuou parada no mesmo lugar, encarando o patrão como se não houvesse entendido nada. John teve dificuldade em traduzir a ordem que dera. Enfim, repetiu: — Vá embora!

— Não ouse se afastar, Minerva— Emily o contradisse. — Suba comigo e ajude-me a fazer as malas.

— Fazer as malas? Por Deus, lady Bandera. Será que a senhora não pode esperar uma hora decente para fazer as malas? Esperar até amanhã?

— Não, não posso.— Emily agarrou Minerva pelo braço e arrastou-a para a porta. — Quando essa hora decente da manhã chegar— ela disse, encarando John com fúria —, pretendo estar o mais longe possível desta maldita fazenda.

Minerva não se compadeceu ao ouvir que Price estava morto. — Ótimo — disse. — Farei uma limpeza completa naquele quarto,

do teto ao chão, quando retirarem de lá á carcaça do homem.A sonolenta empregada não foi muito eficiente no arranjo das malas,

como também Emily não o foi. Ela ainda estava brava e agitada em excesso para fazer muito mais além de abrir gavetas, ficar olhando o conteúdo das mesma, e depois fechá-las de novo.

Minerva encostava-se na cômoda vendo Emily andar de um lado para o outro do quarto, e ouvindo-a contar repetidas vezes, do começo ao fim, o incidente das cartas. Explicou sua decepção esperando que Minerva concordasse com ela, achando que John a usara e que ir embora da fazenda seria a coisa mais sensata a ser feita, a única coisa na verdade.

Contudo, Emily ficou decepcionada quando Minerva suspirou e disse:— Não entendo por que a senhora está analisando os fatos dessa

maneira, lady Bandera.— De que outra maneira queria que eu os analisasse? Acho que

você não escutou uma palavra do que eu disse. Minerva arrumou os laços que prendiam suas tranças, depois jogou-

as para trás, e comentou: — Sim, escutei tudo com atenção. A senhora cuspiu palavras como

verdadeiro amor, alma gêmea e melhor amigo. — É verdade.— Emily cruzou os braços. — Isso para não falar

mentiroso, canalha e rematado cafajeste. E me sentirei muito feliz se não vir a cara dele nunca mais em minha vida.

Minerva sacudiu a cabeça e encolheu os ombros. — Bem, eu... eu me sentiria diferente na mesma situação— disse. — Diferente?— Emily franziu a testa. — Diferente, como?

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— Em lugar de ficar como a senhora, furiosa e aflita em partir, continuaria onde estava, cheia de felicidade.

— Felicidade?!— Emily exclamou. — Felicidade! O que vê de felicidade em tudo o que me aconteceu?

— Muito, lady Bandera.— Minerva examinou mais uma vez o laço das tranças, esquecendo-se de que fizera isso apenas minutos atrás. — Veja, lady Bandera, descobriu que seu melhor amigo, seu verdadeiro amor e... qual foi a outra coisa que mencionou?

— Alma gêmea.— Isso mesmo, gosto do som das palavras. Alma gêmea. Não que eu

tivesse tido uma na vida.— ela deu um suspiro. — Os homens que conheci nem se davam conta de que eu tinha uma alma, imagine desejarem que a alma deles fosse gêmea da minha. A senhora acabou de descobrir que sua alma gêmea não morreu, afinal, e ficou brava em vez de ficar alegre.— Minerva sacudiu a cabeça de novo. — Não entendo, juro que não entendo, não entendo mesmo.

— Mas ele me enganou. E durante anos. Desde a primeira palavra que escreveu nas cartas, me fez acreditar que era Price.

— Claro, claro que fez. Santo Deus, o homem não é nada bobo. Sabia que a senhora não lhe escreveria de volta se ele dissesse: "Querida lady Emily, gostaria de se corresponder com um cowboy mestiço de índio?"

— Não é isso...— faltou vigor no protesto de Emily. Ela apenas fitou Minerva cujos lábios se curvavam num sorriso de satisfação.

— Mas se não pretende fazer as malas esta noite, lady Bandera— a mulher bocejou —, eu gostaria de voltar para minha cama.

Apesar do fato de estar encarando a governanta, observando o movimento dos lábios dela, Emily mal entendeu o que Minerva dizia no momento, porque ainda escutava as palavras que ela dissera antes.

Era verdade. O que Minerva dissera era absoluta verdade, Emily admitiu. Sem a mentira de John no caso das cartas, nunca teria conhecido um amor tão maravilhoso, ou uma alma sincronizada tão perfeitamente com a dela.

Sua alma gêmea não morrera, afinal, mas estava viva, cheia de energia. E, miraculosamente, era seu marido, que se encontrava lá embaixo agora.

John amassou outra folha de papel e jogou-a no chão, junto às doze anteriores. Deus. Sentia marteladas na cabeça e tinha impressão de que seu coração secara. Não havia palavras em sua mente excèto as que Price lhe dissera anos atrás.

Mulheres sulistas foram feitas só para ser olhadas. Toque-as e adquirem nódoas.

John deixou que a caneta caísse de suas mãos.

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Não havia possibilidade de ele dizer adeus em nenhuma língua, não havia possibilidade de apagar o mal que fizera para ela, para si. Emily iria embora e...

Ela apareceu à porta do escritório, sem se anunciar com o ruído dos passos muito leves, ou com o farfalhar das saias. John virou o rosto para o lado a fim de não a encarar. Vê-la doía-lhe demais.

— Mandarei Tater levá-la até Corpus Christi amanhã— ele disse. — Ou a qualquer outro lugar que você prefira.

— Não vou a parte alguma — Emily respondeu, agora com o ruge-ruge das saias á medida que se aproximava.

Falara com voz forte, nada similar a uma frágil e delicada gardênia. Seus passos eram firmes, determinados, e quando chegou perto da escrivaninha empurrou para o lado os papéis com os quais John se ocupava. Em seguida pegou a caneta que ele pusera de lado, girando-a nos dedos.

Se Emily pretendia trespassar seu coração, John pensou, muito bom, lhe pouparia o trabalho de ele mesmo fazer isso.

— Se eu continuasse com a idéia de ir a algum lugar— ela ainda disse —, teria de arrancar meu coração antes, John. E mesmo que fosse possível, como poderia arrancar minha alma? Porque, de qualquer maneira, não saberia onde encontrá-la. A menos que...

Emily parou de falar tão abruptamente que John viu-se forçado a fitá-la para ver se ela estava bem. Emily sorria, apesar das lágrimas.

Ou seriam dele as lágrimas? John não tinha mais certeza de nada.— a menos que...— Emily riu suavemente, como uma gardênia

perfumada sacudida pela brisa do sul, e enroscou seus pálidos dedos nos dele enquanto prosseguia encarando-o.

— Acredito estar vendo minha alma brilhar em seus lindos e expressivos olhos escuros, John Bandera. E agora que realmente a encontrei, nunca mais me separarei dela.

EPÍLOGO

Natal Bandera veio ao mundo com um grito vigoroso um dia depois do Natal, no ano de 1882, na mesma data em que sua irmã nascera dez anos antes. Entre a menina loura que fora batizada com o nome de Alma, e o recém-nascido, um menino moreno de cabelos negros, vieram Juanito, Russell, e Emílio, três meninos fortes, muito parecidos fisicamente.

A fazenda se transformara numa das maiores do Texas, e os 129

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proprietários pareciam inclinados a fazê-la a mais populosa também. Apesar de sua constituição delicada, Emily não sofria durante a gravidez, tinha partos relativamente fáceis e rápido restabelecimento. Porém, para espanto de todos, a bem-nascida e sofisticada lady do Mississipi, durante o parto, gritava tanto e com tanto vigor como seus bebês ao vir ao mundo.

Depois de ter banhado e vestido o pequeno Natal, e colocado-o na cama ao lado da mãe, Minerva disse:

— Acho que vou mandar Tater buscar o patrão e as crianças. Ele arrebanhou todas esta manhã e fugiu daqui como um coelho assustado no instante em que a senhora foi para a cama.

Emily sorriu, primeiro para o bebê, depois para sua leal governanta.— Sim, faça Tater dizer a ele que pode voltar agora. Francamente,

Minerva, acho que depois de cinco bebês John já devia estar acostumado a isto tudo, você não acha?

A velha mulher sacudiu a cabeça.— Ele nunca vai se acostumar. Apesar daquele tamanhão e

aparência selvagem, o patrão tem coração mole como manteiga. E garanto que será o mesmo drama com o próximo.

— O próximo!— Emily riu muito. — Oh, Deus, muito em breve teremos mais bebês do que gado nesta fazenda.

Minerva já estava saindo quando Emily perguntou: — Você não está se esquecendo de alguma coisa? A mulher parou, enfiou a mão no bolso do avental e tirou de dentro

um envelope.— Parece-me uma loucura, os dois se escrevendo cartas quando

dormem na mesma cama. Mas sei que o patrão vai me arrancar o couro se eu não lhe der isto.— Minerva entregou a carta, e acrescentou: — Vou dizer a Tater que vá buscá-lo agora.

— Sim, faça isso. Diga-lhe que se apresse— Emily respondeu, já tirando a carta do envelope, ansiosa como sempre em ler as palavras destinadas apenas à ela, sempre para ela.

Fim

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