9
CARLOS HEITOR CONY Como nasceu o sinal que mudou a história Dois carpinteiros, numa pequena oficina não muito longe do Templo, estão aplainando duas peças de madeira. Uma delas é maior do que a outra. A encomenda fora feita por alguém do palácio de Pilatos. Os dois operários trabalham em silêncio, com suas ferramentas: a lâmina de ferro dentado para serrar, a lâmina polida para aplainar. Pouco depois, colocaram uma das peças cruzando com a outra. Antes do meio-dia, virão buscar aquele instrumento de tortura e ignomínia, no qual deverá morrer um condenado de última hora. Na véspera, haviam entregue duas encomendas iguais para que nelas morressem dois ladrões, um de Jerusalém, outro de Samaria. O trabalho termina: a cruz está pronta. Deixam-na do lado de fora, é um objeto que não será roubado por ninguém. Os judeus nem sequer a tocariam, sabiam o que ela significava. Somente os soldados romanos, que desprezavam tudo o que os judeus produziam, viriam apanhá-la para com ela se divertirem durante a execução do condenado. Diziam que o haviam flagelado durante a noite e o coroado com espinhos. O próprio Pilatos o apresentara assim, exangue e humilhado, dizendo: "Eis o homem!". Os dois carpinteiros fecham a oficina, um deles vai beber na nova taberna aberta no caminho que leva a Jericó, o outro se dirige para casa, pouco antes da porta de Damasco Eles não sabem que acabaram de criar o maior símbolo da história. Nem Fídias nem Michelangelo, ao esculpirem mármores imortais, jamais fizeram algo que se aproximasse da grandeza e da universalidade daqueles dois madeiros cruzados, expressão de opróbrio então, que logo se tornariam símbolo de fé e de graça. Erguida num morro próximo à cidade, que desde os tempos de Davi chamavam de Gólgota, e que os romanos, supersticiosos, chamavam de Calvário (parecia um crânio sinistro e calvo), aquela cruz iniciaria sua trajetória mansamente. Durante os três séculos seguintes, enfrentaria a cólera dos imperadores de Roma. Venceria-os um a um. A simplicidade de seu "design" serviria de inspiração ao gesto do crente que se identificaria e, ao mesmo tempo, se propagaria. Milhões de seres humanos morreriam com os olhos fixos naqueles dois madeiros atravessados. Em sua simplicidade, seria o instrumento mais poderoso produzido pela mão do homem. Atravessaria os séculos em estandartes que conquistariam o Velho Mundo. E romperia os mares no

Material Aula 25-10

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Material para aula de LP V

Citation preview

CARLOS HEITOR CONYComo nasceu o sinal que mudou a histriaDois carpinteiros, numa pequena oficina no muito longe do Templo, esto aplainando duas peas de madeira. Uma delas maior do que a outra. A encomenda fora feita por algum do palcio de Pilatos.Os dois operrios trabalham em silncio, com suas ferramentas: a lmina de ferro dentado para serrar, a lmina polida para aplainar. Pouco depois, colocaram uma das peas cruzando com a outra.

Antes do meio-dia, viro buscar aquele instrumento de tortura e ignomnia, no qual dever morrer um condenado de ltima hora. Na vspera, haviam entregue duas encomendas iguais para que nelas morressem dois ladres, um de Jerusalm, outro de Samaria.O trabalho termina: a cruz est pronta. Deixam-na do lado de fora, um objeto que no ser roubado por ningum. Os judeus nem sequer a tocariam, sabiam o que ela significava. Somente os soldados romanos, que desprezavam tudo o que os judeus produziam, viriam apanh-la para com ela se divertirem durante a execuo do condenado.Diziam que o haviam flagelado durante a noite e o coroado com espinhos. O prprio Pilatos o apresentara assim, exangue e humilhado, dizendo: "Eis o homem!". Os dois carpinteiros fecham a oficina, um deles vai beber na nova taberna aberta no caminho que leva a Jeric, o outro se dirige para casa, pouco antes da porta de Damasco

Eles no sabem que acabaram de criar o maior smbolo da histria. Nem Fdias nem Michelangelo, ao esculpirem mrmores imortais, jamais fizeram algo que se aproximasse da grandeza e da universalidade daqueles dois madeiros cruzados, expresso de oprbrio ento, que logo se tornariam smbolo de f e de graa.Erguida num morro prximo cidade, que desde os tempos de Davi chamavam de Glgota, e que os romanos, supersticiosos, chamavam de Calvrio (parecia um crniosinistro e calvo), aquela cruz iniciaria sua trajetria mansamente. Durante os trs sculos seguintes, enfrentaria a clera dos imperadores de Roma. Venceria-os um a um. A simplicidade de seu "design" serviria de inspirao ao gesto do crente que se identificaria e, ao mesmo tempo, se propagaria.Milhes de seres humanos morreriam com os olhos fixos naqueles dois madeiros atravessados. Em sua simplicidade, seria o instrumento mais poderoso produzido pela mo do homem. Atravessaria os sculos em estandartes que conquistariam o Velho Mundo. E romperia os mares no mastro das caravelas que descobririam o Mundo Novo.Seria gravado a fogo no punho das espadas, no escudo de ao dos cruzados. Encimaria o prtico dos castelos. E, sua sombra, peregrinos de todos os tempos procurariam refgio e consolao.Gosto de citar minha maneira e com as minhas palavras o prefcio que Wilson Barrett escreveu para um romance de pssima literatura que foi filmado pela Paramount a pelos anos 30. Humberto de Campos, no Brasil, fez o mesmo. Giovanni Papini, na Itlia, incorporou a mesma idia em sua biografia de Cristo.Dois simples madeiros, toscamente aplainados, foram reproduzidos em ouro e prata no peito de milhes de crentes e, transformados em mrmore ou bronze, assinalariammilhes de tmulos daqueles que, confiados em sua f, esperam a ressurreio dos mortos.O gesto primrio de quem assinala um ponto ou dele toma posse repetido todos os dias, h mais de 2.000 anos, na cabea das crianas, no peito dos mortos, nas mos dos que casam, na testa dos que pedem bno.E tudo nasceu naquela tarde, em Jerusalm, quando dois carpinteiros, no cumprimento do ofcio humilde, aplainavam dois madeiros que nada significavam. Em alguns lugares, a pena de morte por crucificao importava num suplcio suplementar ao condenado: ele teria de levar o instrumento de sua tortura, geralmente a haste mais pesada. O brao seria pregado no local do sacrifcio. Assim fora feito na vspera, com as duas cruzes destinadas aos dois ladres. Mas haviam recebido instrues dos soldados de Pncio Pilatos para pregarem o brao na haste a fim de que ocondenado daquela tarde tivesse maior peso para carregar. O que fizera ele para merecer um castigo a mais? S sabiam que era um forasteiro que viera ao Templo para celebrar aPscoa, no roubara nem matara; que crime fizera ele? Os dois carpinteiros ficariam assombrados se conhecessem o destino daquela encomenda. Nenhuma mquina fabricada pelo homem teria a formidvel fora daquele sinal. Nunca, na histria da humanidade, to pouco representaria tanto.Eles fecharam a oficina, um deles foi beber na nova taberna onde -diziam- se bebia um vinho forte, produzido no muito longe dali, nos vinhedos fracos de Jeric. O outro foi para casa, pouco antes da porta de Damasco, preparar-se para o sabbat. Uma grande festa que comearia quando a primeira estrela, solitria, brilhasse sobre o deserto da Judia.(Esta crnica foi publicada aqui mesmo, na Ilustrada, em 28 de maro de 1997. Irms de um convento em Florianpolis pediram-me que a republicasse na Sexta-Feira Santa deste ano.)