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MÁXIMAS DE EPICTETO Tradução de Alberto Denis Compilação da 1ª Edição da GRÁFICA E EDITORA EDIGRAF LTDA. São Paulo, Brasil Col. Biblioteca de Autores Célebres 1 A escravidão do corpo é obra da sorte. A da alma é obra do vício. Quem desfruta da liberdade do corpo é escravo, se tem agrilhoada a alma; quem tem a alma livre desfruta de inteira liberdade, embora carregado de pesados grilhões. A natureza, com a morte, põe cobro à escravidão do corpo, mas a da alma só cessa com a virtude. 2 Guarda-te de exaltar os teus feitos no comércio comum com os homens, pois se sentes grande prazer em narrá-los, nenhum sentem eles em ouvi-los. 3 Envergonhar-te-ia, sem dúvida, a vil entrega do teu corpo ao primeiro transeunte e, no entanto, sem corar, abandonas a alma ao primeiro que se te depara. 4 Não ornes a tua casa com belas pinturas; pelo contrário, faze que resplandeçam nela, por toda parte, a sabedoria e a temperança. Os quadros não passam de uma impostura para enganar os olhos; a sabedoria é um ornamento real e verdadeiro. 5 Sacode enfim o jugo e, livre da servidão, levanta ao céu o rosto para dizer ao teu Deus: "Serve-te de mim como te agradar; nenhum feito me será odioso, se justificar a tua misericórdia para com os homens". 6 Traze constantemente gravados no pensamento a morte, o desterro e as demais coisas que se te afiguram terríveis, e podes ter a certeza de que jamais te assaltarão idéias indignas, nem tampouco desejarás com demasiado ardor coisa nenhuma. 7 O verdadeiro bem do homem está sempre na parte em que difere dos animais; seja essa parte bem fortalecida e alvo de assíduos cuidados, defendam-na as virtudes e, seguramente, nada terá que temer. 8 Vais a Roma, empreendes tão grande jornada para obter um cargo mais brilhante que o de que estás revestido. Que jornada empreendeste para melhorar os teus juízos e opiniões? Que consultaste para corrigir o que em ti há de defeituoso? Em que tempo, em que idade cuidaste de examinar os teus juízos? Percorre com a imaginação todos os anos da tua vida e verás que sempre fizestes o que hoje fazes. 9 O que é senso-comum? Assim como, em todos os homens, existe um ouvido geral e comum que lhes permite discernir igualmente as vozes e ouvir todas as palavras que se proferem, e, mais, outro ouvido, que pode ser chamado artístico, que discerne e separa os sons uns dos outros, assim também há em todos os homens certo sentido natural que, quando não possuem nenhum defeito assinalado no entendimento, lhes permite compreender igualmente tudo o que se lhes propõe. E essa disposição, igual em todos, é o que se chama senso-comum. 10 Um homem é eleito tribuno da plebe. Volta para casa e a vê iluminada. Todos se congratulam com ele. Corre ao Capitólio, faz sacrifícios e dá graças aos deuses. Deu-lhes, por acaso, graças por ter são entendimento e vontade conforme à natureza? 11

Máximas de epicteto

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Page 1: Máximas de epicteto

MÁXIMAS DE EPICTETOTradução de Alberto Denis

Compilação da 1ª Edição da GRÁFICA E EDITORA EDIGRAF LTDA. São Paulo, Brasil Col. Biblioteca de Autores Célebres

1

A escravidão do corpo é obra da sorte. A da alma é obra do vício. Quem desfruta da liberdade do corpo é escravo, se tem agrilhoada a alma; quem tem a alma livre desfruta de inteira liberdade, embora carregado de pesados grilhões. A natureza, com a morte, põe cobro à escravidão do corpo, mas a da alma só cessa com a virtude.

2

Guarda-te de exaltar os teus feitos no comércio comum com os homens, pois se sentes grande prazer em narrá-los, nenhum sentem eles em ouvi-los.

3

Envergonhar-te-ia, sem dúvida, a vil entrega do teu corpo ao primeiro transeunte e, no entanto, sem corar, abandonas a alma ao primeiro que se te depara.

4

Não ornes a tua casa com belas pinturas; pelo contrário, faze que resplandeçam nela, por toda parte, a sabedoria e a temperança. Os quadros não passam de uma impostura para enganar os olhos; a sabedoria é um ornamento real e verdadeiro.

5

Sacode enfim o jugo e, livre da servidão, levanta ao céu o rosto para dizer ao teu Deus: "Serve-te de mim como te agradar; nenhum feito me será odioso, se justificar a tua misericórdia para com os homens".

6

Traze constantemente gravados no pensamento a morte, o desterro e as demais coisas que se te afiguram terríveis, e podes ter a certeza de que jamais te assaltarão idéias indignas, nem tampouco desejarás com demasiado ardor coisa nenhuma.

7

O verdadeiro bem do homem está sempre na parte em que difere dos animais; seja essa parte bem fortalecida e alvo de assíduos cuidados, defendam-na as virtudes e, seguramente, nada terá que temer.

8

Vais a Roma, empreendes tão grande jornada para obter um cargo mais brilhante que o de que estás revestido. Que jornada empreendeste para melhorar os teus juízos e opiniões? Que consultaste para corrigir o que em ti há de defeituoso? Em que tempo, em que idade cuidaste de examinar os teus juízos? Percorre com a imaginação todos os anos da tua vida e verás que sempre fizestes o que hoje fazes.

9

O que é senso-comum? Assim como, em todos os homens, existe um ouvido geral e comum que lhes permite discernir igualmente as vozes e ouvir todas as palavras que se proferem, e, mais, outro ouvido, que pode ser chamado artístico, que discerne e separa os sons uns dos outros, assim também há em todos os homens certo sentido natural que, quando não possuem nenhum defeito assinalado no entendimento, lhes permite compreender igualmente tudo o que se lhes propõe. E essa disposição, igual em todos, é o que se chama senso-comum.

10

Um homem é eleito tribuno da plebe. Volta para casa e a vê iluminada. Todos se congratulam com ele. Corre ao Capitólio, faz sacrifícios e dá graças aos deuses. Deu-lhes, por acaso, graças por ter são entendimento e vontade conforme à natureza?

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Nunca te vanglories do que de ti não depende. Se um cavalo pudesse falar e dissesse: Sou formoso, seria suportável. Mas que digas tu com vanglória: tenho um formoso cavalo, não. De pouco te envaideces, já que tomas parte apenas no mau uso que fazes da tua imaginação. Quando a usares, sem contrariar a natureza, poderás gloriar-te, porque te gloriarás de um bem que é teu.

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Quando pretendemos embarcar, desejamos um bom vento para seguirmos o nosso caminho; esperando o dia da partida, vamos com freqüência verificar que vento sopra, e, se nos é contrário, exclamamos: sempre vento norte! Quando soprará o vento do poente? Meu amigo, soprará quando lhe aprouver, ou melhor, quando aprouver a Quem manda em todas as coisas. Serás, por acaso, dispensador dos ventos, como Éolo? Façamos sempre o que de nós depende, e valhamo-nos do resto, tal qual se nos apresenta e sucede.

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Se pretendes que teus filhos, tua mulher e teus amigos vivam sempre, és louco, pois é querer que as coisas que de ti não dependem dependam, e seja teu o que é de outro. Também, se queres que o teu criado não cometa nunca falta nenhuma, estás louco, pois é querer que o vício não seja tal vício. Não queres ver contrariados os teus desejos? Não desejes senão aquilo que de ti depende.

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De que te queixas? A Divindade deu-te o que há de maior, de mais nobre, de mais divino, deu-te a faculdade de poderes fazer bom uso das tuas qualidades, e de em ti próprio achares os verdadeiros bens. Que mais pretendes? Regozija-te, adora tão carinhoso pai e não deixes de dar-lhe graças no fundo do teu espírito.

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Os deuses criaram todos os homens para serem felizes; se são desgraçados a culpa é somente deles.

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As enfermidades entorpecem os atos do corpo, mas não os da vontade. A coxeadura poderá ser um obstáculo para o meu pé, mas não para mim. Pensa desse modo em todos os acidentes que te ocorrerem, e verás que poderão ser obstáculo para tudo, menos para ti.

17

A natureza do mal não existe no mundo, pois não se concebe um fim destinado a se não realizar.

18

Perdeste bens, prazeres, presentes, distinções, e consideras tal uma grande perda de que não consegues consolar-te; mas, ao perderes a fidelidade, o pudor, a doçura, a modéstia, não notas falta. No entanto, uma causa involuntária, e alheia a nós, é que nos rouba aqueles bens, e, por conseguinte, não é vergonhoso perdê-los. Pelo contrário, estes últimos, bens internos, não os perdemos senão por nossa culpa; e se é vergonhoso e reprovável não possuí-los, mais digno ainda de reprovação e vergonha é chegar a perdê-los.

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Assim como um mercador não repele moeda de ouro assinalada pelo busto do Príncipe, não recusa a alma os verdadeiros bens; com freqüência os recebe falsos, mas é que o busto do Príncipe a enganou, e ela não possui a arte de lhe conhecer a falsidade.

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Se empreenderes feito superior às tuas forças, o pior não é que, por fim, o abandones, mas que te esqueças do que poderias realizar.

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Em todas as coisas deve fazer-se o que de nós próprios depende. Quanto ao resto, mantenhamo-nos firmes e tranqüilos. Sou obrigado a embarcar. Que devo fazer? Escolher cuidadosamente o barco, o piloto, os marinheiros, a estação, o dia e a hora, ou seja, o que de mim depende. Já em alto mar, sobrevem terrível tempestade; não é assunto meu. O barco afunda. Que fazer? Tudo quanto de mim depende: não grito, nem me atormento. Sei que tudo o que nasceu deve morrer; é a lei geral. É preciso que eu morra. Não sou a eternidade, sou um homem, uma parte do todo, assim como a hora é uma parte do dia. A hora chega e passa; eu também chego e passo. O modo de passar é indiferente, quer seja pela febre, quer pela água; tudo é o mesmo.

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Quem se ajusta como deve às circunstâncias necessárias é prudente e hábil no conhecimento das coisas divinas.

23

Não pretendas que as coisas sejam como as desejas. Deseja-as como são.

24

Lembra-te sempre destas máximas gerais: "Que é próprio de mim? Que não é próprio de mim? Que devo fazer?" Até agora, deixaram-te os deuses gozar de um prazer imenso, deram-te tempo suficiente para pensar, ler, meditar, escrever acerca destas importantes matérias. Esse tempo deve haver-te bastado. Agora, dizem-te: Vai, combate, mostra o que aprendeste, mostra se és atleta digno de nós e de ser coroado, ou um desses gladiadores vis que percorrem o mundo ocultando as suas derrotas.

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É admirável a natureza e a lei que nos liga à vida tão fortemente, dizia Xenofonte. Temos extraordinário cuidado com o nosso corpo, por repulsivo e desagradável que seja, ao passo que, se tivéssemos de cuidar do nosso vizinho, por quatro dias que fosse, a coisa nos pareceria insuportável

26

És cego e injusto; podes ser independente e preferes depender de um milhão de coisas que te são estranhas e te afastam do verdadeiro bem.

27

- Sou pretor na Grécia. - Tu pretor? Sabes julgar? Onde aprendeste tal ciência? - Tenho a nomeação de César. E se César te houvesse nomeado juiz em música, de que te valeria a nomeação, se jamais tivesses aprendido uma nota sequer? Mas deixemos isso, e já que o que procuraste foi a nomeação, responde: de que modo obtiveste o cargo? Quem to proporcionou? A quem estendeste a mão? A que porta bateste? A quem deste presente? Com que baixezas, com que indignidade, com que mentiras o compraste?

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É da virtude, e não do nascimento, que provém a nobreza do homem. - Valho mais que tu; meu pai foi cônsul, eu sou tribuno e tu não és nada. Se nós ambos fôssemos cavalos, e tu me dissesses: - Meu pai foi o mais veloz de todos os cavalos do seu tempo, e eu disponho de muito feno, de muita cevada e de um magnífico arreio, eu te responderia: - Acredito no que me afirmas; mas vamos comer. Não há no homem alguma coisa que lhe seja peculiar, como a corrida ao cavalo, e por meio da qual se lhe possa conhecer a qualidade e julgar do seu mérito? Não é o pudor, a honradez, a justiça? Mostra-me, pois, a vantagem que sobre mim tens nisso, faze-me ver que vales mais do que eu, como homem, porque se me dizes: posso relinchar ou escoicear, respondo-te que a tua vanglória se estriba numa qualidade própria de asno e de cavalo, e nunca de homem.

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Ninguém pode ser mau e vicioso sem perda segura e dano certo.

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De quem é esta medalha? De Trajano? Recebo-a e conservo-a. De Nero? Abomino-a e atiro-a para longe de mim. Faze o mesmo com os bons e os maus. Quem é este? Um homem bondoso, sociável, benfeitor, sofrido, amigo dos pobres; apoio-o, faço dele meu concidadão, meu amigo. E aquele quem é? Um homem que tem alguma coisa de Nero; é colérico, mau, implacável, cruel; repilo-o. Por que me disseste que era um homem? Homem soberbo, vingativo, colérico, não é homem, assim como maçã de cera não é maçã; desta só tem o aspecto e a cor.

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Nunca serás vencido, se não empreenderes luta na qual de ti não dependa vencer.

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Por acaso será infeliz o cavalo pelo fato de não poder cantar? Não, mas pelo fato de não poder sentir. Sê-lo-á o cão, por não poder voar? Não, mas pelo fato de carecer de inteligência. Consistirá a infelicidade do homem em não poder estrangular leões e realizar coisas extraordinárias? Não, pois

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não foi criado para isso. O homem é infeliz quando perde o pudor, a bondade, a justiça, e quando se apagam todos os divinos caracteres, impressos em sua alma pelos deuses.

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Quando ouço chamar a alguém feliz por ver-se favorecido pelo Príncipe, pergunto imediatamente: Que lhe sucedeu? - Foi colocado à frente de uma província. - Mas, obteve ao mesmo tempo tudo quanto precisa para governá-la bem? - Foi nomeado pretor. - Mas dispõe de meios e condições para o ser? Não são as dignidades que proporcionam felicidade, mas sim o desempenhá-las bem e delas fazer bom uso.

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Que não faz o banqueiro para examinar o dinheiro que lhe entregam? Emprega todos os sentidos, a vista, o tacto, o ouvido. Não se contenta com fazer vibrar a moeda uma, duas, três vezes; à força de analisar os tinidos, quase se converte em músico. Todos somos banqueiros naquilo que, julgamos, nos interessa; não há cuidado nem atenção que não empreguemos para evitar que nos enganem. Mas quando se trata da nossa razão, de examinar os nossos juízos, somos preguiçosos e negligentes, como se tal não tivesse para nós nenhum interesse, porque desconhecemos os prejuízos acarretados pela nossa incúria.

35

Exigem os sentinelas uma contra-senha de quem quer que se aproxime. Faze o mesmo: exige uma contra-senha de tudo quanto se te apresente à imaginação, e nunca serás surpreendido.

36

O desejo e a felicidade não podem estar juntos.

37

Prefiro sempre o que acontece, por estar convencido de que a vontade dos deuses é superior à minha. Atenho-me, pois, a ela, sigo-a e a ela conformo os meus desejos, as minhas vontades e os meus atos.

38

Conserva bem o teu e não invejes o alheio. Nada te impedirá de ser venturoso.

39

Em vez de fazeres a côrte a um velho rico, faze-a a um sábio. Este não te fará corar, e tu jamais te afastará dele de mãos vazias.

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Suponde uma cidade governada segundo as máximas de Epicuro. Nela tudo será transtorno. Não haverá casamento, nem magistrados, nem colégios, nem polícia, nem educação possível; a piedade, a santidade, a justiça serão desterradas; seguir-se-ão apenas torcidas regras de procedimento e conselhos perniciosos, que nem as mulherezinhas mais desavergonhadas ousarão sustentar. Pelo contrário, numa cidade governada segundo as máximas ditadas pela razão, reinará a justiça e a ordem; seguir-se-ão opiniões sãs, praticar-se-ão todas as virtudes, florescerá a justiça, estará bem regulamentada a polícia, casar-se-ão os cidadãos, terão filhos e servirão aos deuses; o marido, contente com sua mulher, não cobiçará a do próximo; contente com o seu bem, não invejará o dos outros. Numa palavra, em tal cidade se cumprirão todos os deveres.

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Não depende de ti ser rico, mas ser venturoso. A riqueza nem sempre constitui um bem e, certamente, é pouco duradoura; mas a felicidade que emana da sabedoria é eterna.

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É tão difícil aos ricos adquirir sabedoria quanto aos sábios adquirir riqueza.

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O que aflige não é a pobreza, mas a avareza, assim como não é a riqueza que preserva de todo e qualquer temor, mas a razão.

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Ornar a própria morada com móveis preciosos e magníficos é amar o luxo. Ornar a alma com bondade, liberalidade e justiça é ser verdadeiramente magnífico e humano.

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A vida que se passa na suntuosidade e na moleza é uma torrente de águas turvas, espumosas, violentas, tumultuosas e passageiras. A vida empregada na virtude é uma pura fonte cujas águas cristalinas, sãs e frescas, jamais se acabam.

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Não te esqueças de que são os ricos, os reis, os tiranos que proporcionaram personagens às tragédias; os pobres não aparecem nos nossos teatros, e quando neles têm lugar é entre os cantores e bailarinas. São os reis que prosperam no começo da obra; tudo lhes sorri, são honrados, respeitados, erguem-se-lhes altares, ornam-se-lhes os palácios de coroas e bandeiras e, ao cabo do terceiro ou quarto ato, exclamam: Ó Citérea, por que me abriste as portas?

47

Prescreve-te desde o início certas regras, e observa-as, quer estejas só, quer acompanhado.

48

Não rias por muito tempo, nem com excesso, nem com freqüência.

49

Guarda-te de usar coisas necessárias ao corpo, enquanto o não exijam as necessidades da alma, como a alimentação, as vestes, a habitação, os criados, etc., e repele tudo quanto diz respeito à moleza e à vaidade.

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Reúnes em ti qualidades, cada uma das quais exige deveres que é mister cumprir; és homem, cidadão do mundo, filho dos deuses, irmão dos outros homens. Sob outros aspectos, és senador, ou possuis outra dignidade, és jovem ou velho, filho, pai ou marido. Pensa em tudo aquilo a que te obrigam tais nomes e trata de não desonrar nenhum deles.

51

Foi bela sentença a de Agripa: jamais me servirei eu próprio de obstáculo.

52

Como os faróis dos portos que prestam auxílio aos barcos perdidos, o homem de bem, na cidade combatida por toda espécie de tempestades, é de grande utilidade aos concidadãos.

53

Antes de te apresentares ao tribunal dos juizes, apresenta-te ao da justiça.

54

Empalideces, tremes, perturbas-te quando vais ver um príncipe ou outro ilustre senhor - Como me receberá? Como me ouvirá? - Vil escravo! Receber-te-á, ouvir-te-á como queira; tanto pior para ele se acolher mal um homem prudente. Podes tu, por acaso, sofrer pelo erro de outrem? Como lhe falarei? - Falar-lhe-ás como te aprouver. - Tenho medo de perturbar-me. - Não sabes falar com discrição, com prudência e com livre dignidade? Quem te aconselhou a temer um homem? Zeno não temeu Antígono, mas Antígono temeu Zeno. Perturbou-se Sócrates quando falou aos tiranos e aos seus juizes? Tremeu Diógenes quando falou a Alexandre, a Filipe, aos piratas, ao amo que o havia comprado?

55

Quem se submete aos homens já está submetido às coisas.

56

Livra-te de desejos e temores, e livrar-te-á dos teus tiranos.

57

Acabas de libertar um escravo. Mas tu, que lhe desta a liberdade, és livre? Não és escravo de teu dinheiro, de tua mulher, de teus filhos, de teu tirano, do último lacaio de um tirano?

58

Muito bem disse Diógenes que o único meio de estabelecer a liberdade é estar pronto para morrer.

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Page 6: Máximas de epicteto

O próprio Diógenes escreveu ao rei dos persas: "Mais fácil que reduzir os atenienses à escravidão ser-te-á reduzir os peixes; um peixe viverá mais tempo fora da água que um ateniense na escravidão".

60

Quando estiveres no teu quarto, de noite, com a porta bem fechada e apagadas as luzes, guarda-te de crer que estás só, que o não estás.

61

Afirmava Traséia preferir ser morto hoje a desterrado amanhã. Que lhe respondeu Rufo? Se consideras pior o primeiro, és louco em o escolher; se o consideras melhor, em que estribas a escolha?

62

Diante de toda imagem que te assalte deves estar pronto a dizer: és enganosa, e não o que pareces. Examina-a bem, aprofunda-a e, para sondá-la, serve-te das regras aprendidas, sobretudo da que consiste em examinar se o que te aparece é do número das coisas que dependem de ti ou das que de ti não dependem.

63

Visto que aspiras a tão grandes coisas, lembra-te de que não deves trabalhar medianamente por adquiri-las. Mas de todas as exterioridades deves renunciar completamente a umas e postergar outras; porque se tentas alcançá-las juntamente, perseguindo ao mesmo tempo os verdadeiros bens, as dignidades e as riquezas, não obterás nem sequer estas últimas; talvez deixes de conseguir alguns bens, mas certamente carecerás dos únicos que realmente podem constituir a tua felicidade.

64

Não te esqueças de que se tomas por livres as coisas que, pela sua natureza, são escravas, e por tuas próprias as que de outrem dependem, verás por toda parte obstáculos, afligir-te-ás, perturbar-te-ás, e queixar-te-ás dos deuses e dos homens. Se, pelo contrário, tomas por teu o que verdadeiramente te pertence e por alheio o dos outros, ninguém te obrigará ao que não queiras, nem te impedirá realizar os teus gostos, nem terás motivo de queixa, nem de acusação.

65

Qual é a natureza da divindade? Inteligência, ciência, ordem, razão. Podes, portanto, conhecer qual a natureza do teu verdadeiro bem, que nela somente se encontra.

66

Um dia, perguntou um insolente a Diógenes: És tu, Diógenes, o que crê não haver deuses? - Sou Diógenes, respondeu-lhe ele, e tão certo estou de que há deuses, que estou completamente persuadido que te detestam.

67

Quando te aproximares dos príncipes e dos magnatas, lembra-te de que há lá em cima um Príncipe ainda maior, que te vê e te ouve, e a quem deves comprazer mais que a qualquer outro.

68

Queres agradar aos deuses? Reflete que não há coisa que mais detestem do que a impureza e a injustiça.

69

Não se entristecia Hércules por deixar órfãos os filhos, pois sabia não haver órfãos no mundo, e terem todos os homens um pai que deles cuida e que jamais os abandona.

70

O começo da filosofia é conhecermos a nossa fraqueza, a nossa ignorância e os deveres necessários e indispensáveis.

71

Que é o filósofo? Homem que, se o ouves, há de fazer-te certamente mais livre que todos os pretores.

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Page 7: Máximas de epicteto

Se há uma arte de bem falar, há igualmente uma arte de bem ouvir.

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Por que discutir com pessoas que se não rendem às mais evidentes verdades? Não são homens, são pedras.

74

Julgas que te direi laborioso, ainda que passes as noites estudando, lendo? Não, sem dúvida. Quero antes saber a que ligas tal estudo e aplicas tal esforço; porque não digo laborioso o homem que vela a noite inteira para ver a prometida; digo que está apaixonado. Se velas pela tua glória, chamo-te ambicioso; se para juntar dinheiro, chamo-te interessado; mas se velas para cultivar e formar a razão, e acostumar-te a obedecer à natureza e a cumprir os teus deveres, somente então te direi laborioso, porque é esse o único trabalho digno do homem,

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Cobres de injúrias uma pedra. Que proveito terás? Não compreenderá nada do que disseres. Imita a pedra e não dês ouvidos às injúrias.

76

Não há coisa que o homem sensato suporte menos do que tudo quanto é irracional.

77

Para cada um a medida da riqueza é o corpo, como é o pé a medida do calçado. Se te ativeres a essa regra, guardarás a medida justa; se dela te esqueceres, estarás perdido, e descambarás necessariamente para um precipício em que nada te poderá deter. Do mesmo modo, no calçado, uma vez que passares a medida do teu pé, terás sapatos dourados, terás sapatos de púrpura e, por fim, hás de querê-los bordados, pois não há termo para o que ultrapassa os justos limites.

78

Vale mais o perdão que a vingança, porque um é efeito de uma natureza doce e humana, e outra o de uma organização feroz e brutal.

79

Não deve inspirar medo a pobreza, nem o desterro, nem a prisão, nem a morte. O que deve inspirar medo é o próprio medo.

80

Adquiriste belas coisas. Tens muitos vasos de ouro e prata, és rico, mas o melhor te falta: a constância, a submissão às ordens divinas, a tranqüilidade, o estar isento de confusão e temor. Quanto a mim, pobre como sou, sou mais rico que tu. Não me preocupo com ter padrinhos na côrte; não me importo com o que possa dizer-se de mim ao Príncipe, e não faço mal a ninguém. Eis o que me faz gozar de todos os bens. Tens vasos de pedraria, mas todos os teus pensamentos, todos os teus desejos, todos os teus atos, todas as tuas inclinações são de terra.

81

Todos tememos pelo destino do corpo, e na alma ninguém pensa.

82

Lembra-te de que deves haver-te na vida como num festim. Chega-te um prato? Estende a mão com decência, e serve-te moderadamente. Retiram-no da tua presença? Não o retenhas. Ainda não chegou? Não estendas muito longe o teu desejo, e espera que chegue, afinal, ao teu lado. Faze o mesmo com os filhos, com a mulher, com os cargos e as dignidades, com a riqueza, e serás digno de admitido à própria mesa dos deuses. Se, ao te serem apresentados os manjares, os não tocares, e repelires ou menosprezares, não somente serás convidado dos deuses, mas seu companheiro. Por tal meio, Diógenes, Heráclito e outros chegaram a ser homens divinos e universalmente reconhecidos como tais.

83

Houve por bem Páris raptar Helena, e houve esta por bem segui-lo. Se da mesma maneira a Menelau se houvesse afigurado bem dispensar uma esposa infiel, que teria acontecido? Teríamos perdido a Ilíada e a Odisséia. O resto não tem importância.

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Page 8: Máximas de epicteto

Por que meio conseguiremos não formar falsos juízos? Evitando que tal nos ensinem desde a infância. A nossa nutriz, que nos ensina a caminhar, quando, por acaso, damos de encontro a uma pedra e choramos, em vez de repreender-nos, põe-se a ralhar com a pedra. Poderia esta adivinhar que iríamos bater contra ela, e mudar de lugar? Quando já somos adolescentes, se, ao sairmos do banho, não achamos pronta a refeição, irritamo-nos, e o nosso pedagogo, ou aio, em vez de nos reprimir a cólera, começa a ralhar, por sua vez, e com mais aspereza, voltando-se para o cozinheiro. Bem se lhe poderia dizer: - Pagam-te para ser mestre do cozinheiro ou do menino? Modera a cólera e corrige a impaciência do teu discípulo. - Quando já somos homens formados e temos as nossas ocupações, vemos todos os dias casos idênticos. É por isso que vivemos e morremos crianças. Que é ser criança? - Assim como na música ou nas letras, é criança quem a não sabe, ou a sabe mal, na vida pode chamar-se criança quem não sabe viver e não tem idéias sensatas.

85

O sábio salva a vida ao perdê-la.

86

Pergunto-te que progresso realizaste na virtude, e mostras-me um livro de Crisipo, que te gabas de compreender. É como se um atleta, cuja força eu pretendesse conhecer, em vez de me mostrar os braços musculosos e os largos ombros, me fizesse ver apenas as manoplas. Assim como quereria ver o que fez o atleta com as manoplas, quereria saber o que fizeste tu com o livro de Crisipo. Praticaste-lhe os preceitos? Ordenaste bem os teus temores e desejos? O progresso aparece na própria obra. Educaste a alma na liberdade, na fidelidade, no pudor? Acha-se em estado de nada lhe poder servir de obstáculo e perturbação? Prescindiste na vida dos gemidos, das queixas e das exclamações importunas? Meditaste o que é a prisão, o ostracismo, a cicuta? Podes dizer em qualquer ocasião: sigamos com valor o caminho pelo qual nos chamam os deuses?

87

O respeito que se tem ao que pode prejudicar é como o altar erguido à febre no meio de Roma. Adora-se, porque se teme.

88

Nunca digas: perdi isto, senão: devolvi. Morreu-te o filho? Devolveste-o. Morreu-te a mulher? Devolveste-a. Tirou-se-te a terra? É uma restituição que fizeste. Quem ta tira é mau; mas que importa a qualidade das mãos com as quais te é tirada? Usa todas as coisas que estão em teu poder como coisas que te não pertencem, como fazem os viandantes com as estalagens.

89

Se Sócrates, dizes, se tivesse salvado, ainda seria útil aos homens. - Meu amigo, o que Sócrates disse e fez, recusando salvar-se e morrendo pela justiça, é muito mais útil que tudo quanto houvera podido fazer noutro caso.

90

Duas coisas há que devem ser tiradas aos homens: a vaidade e a desconfiança.

91

Tudo quanto se pode utilmente descuidar, mais utilmente ainda se pode abandonar.

92

Em tudo é necessária a atenção, até mesmo nos prazeres. Há coisa que a negligência adquira facilmente?

93

Os que sustentam não haver verdade conhecida desmentem tal princípio com uma pretensa verdade. Seja verdadeira ou falsa tal afirmação é para eles, uma verdade conhecida.

94

É mister possua um Príncipe extraordinário mérito para que, somente por amor, se lhe obedeça.

95

Por que sou velho? Vil escravo! Acusas a Providência por um pé disforme. Que é mais racional, que a Providência esteja submetida ao teu pé, ou que este o esteja à Providência?

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Page 9: Máximas de epicteto

A grandeza do entendimento não se mede pela extensão; mede-se pela verdade e certeza das opiniões.

97

Pretendes ser como os maus comediantes, que só logram cantar nos coros?

98

O meu dever, enquanto me dure a vida, é dar graças aos deuses, louvá-los pública e particularmente, e não deixar de os abençoar até que tenha termo a vida.

99

Se te é possível, faze recair a conversação dos teus amigos sobre coisas convenientes e dignas. E se estás entre estranhos, guarda prudente silêncio.

100

Quando vês uma víbora ou uma serpente num barco de ouro, acaso lhe tens alguma estima? Não sentes por ela o mesmo horror, a causa da sua natureza mortal e venenosa? Faze o mesmo com o mau, quando o vês no meio dos seus haveres.

101

Evita comer fora de casa e foge dos festins públicos. Mas se uma circunstância extraordinária te obriga a assistir a um deles, redobra a atenção para contigo próprio, a fim de não vires a ser influído pelas maneiras vulgares. Sabe que se um dos convidados é sujo, necessariamente se manchará quem lhe estiver ao lado, por mais limpo que seja.

102

Cada qual se atribui livremente um preço alto ou baixo, e ninguém vale senão o que se faz valer. Tacha-te, pois, de livre ou de escravo, que isso apenas de ti depende.

103

Sócrates amava os filhos, mas amava-os como homem livre, e lembrado de que, em primeiro lugar, devia amar os deuses. Assim, jamais proferiu palavra que não fosse digna de homem de bem, nem quando se defendeu perante os juizes, nem quando foi senador, nem quando esteve na guerra. Nós, porém, em tudo achamos pretexto de baixeza e covardia; no filho, na mãe, no irmão. Não obstante, deveríamos não fazer-nos desgraçados por ninguém, e, pelo contrário, fazer de todas as criaturas meios da nossa felicidade, e, principalmente, servidores dos deuses que nos criaram, a fim de sermos venturosos.

104

Deixas de prestar atenção e confias em que tornarás a prestá-la, quando te aprouver. Uma leve falta descuidada hoje te precipitará amanhã em outra maior, e esta, repetida, formará em ti um hábito que não mais poderás corrigir.

105

Careces do necessário para viver, e perguntas-me se, para procurá-lo, deves rebaixar-te aos mais abjetos misteres: que posso dizer-te sobre isso? Há pessoas que preferem o mais baixo mister a morrer de fome: outras há às quais tal seria insuportável. Não é, portanto, a mim que deves consultar, senão a ti próprio.

106

Assim como esta proposição: é dia, é noite, é muito sensata quando está separada e constituída em duas partes, e insensata quando é complexa, isto é, quando as duas partes constituem uma, assim também nos festins não há nada tão insensato como querer alguém tudo para si próprio, sem consideração aos demais. Portanto, quando te convidarem a um banquete, lembra-te de não pensar tanto na qualidade dos manjares servidos, que te excitem o apetite, como na qualidade de quem te convidou e em conservar o respeito e admiração que lhe deves.

107

Procura, a maioria das vezes, guardar silêncio, ou, pelo menos, não proferir senão as palavras necessárias, e sê breve. Raramente nos vemos obrigados a falar, se não falarmos mais do que quando o permitam as circunstâncias; não nos entretenhamos com coisas triviais e comuns, como os combates de gladiadores, as corridas de cavalos, os trajes, o comer, o beber, que são assuntos das

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conversações de todos os dias. Sobretudo, jamais fales dos homens para criticá-los ou elogiá-los, e menos ainda para estabelecer entre uns e outros comparações.

108

Queres parecer-te ao total dos homens, como se parece um fio da tua túnica aos demais fios que a compõem, mas eu quero esta faixa de púrpura que não somente é bela, como também embeleza tudo aquilo a que se aplica. Por que, pois, me aconselhas a ser como os outros? Se eu fora como o fio, não seria como a púrpura.

109

Quando embarco e só vejo céu e água, espanta-me a imensa e líquida superfície que me rodeia, como se tivesse de bebê-la toda ao naufragar, sem ter em conta que bastam três medidas de água para afogar-me; do mesmo modo, ao menor tremor de terra imagino que vai cair sobre mim a cidade inteira, quando sei que basta uma telha para quebrar-me a cabeça. Ah, desditoso escravo da imaginação!

110

Os loucos são incorrigíveis. Afirma o provérbio que é mais fácil quebrar um louco do que mudá-lo.

111

Lembra-te de que o fim dos teus desejos é obter o desejado, e o fim dos teus temores evitar o temido. Quem não obtém o que deseja é desgraçado, e quem cai no que teme é mísero. Se não professares aversão senão ao que é contrário ao teu verdadeiro bem e de ti depende, jamais cairás no temido; mas se temeres a morte, as enfermidades ou a pobreza, serás mísero. Faze, portanto, recair os teus temores sobre as coisas que de ti dependem, e quanto aos teus desejos, faze o mesmo, porque se desejas alguma coisa que não esteja em ti alcançar, é sinal evidente de te não achares ainda em estado de conhecer as que devemos desejar. Esperando tal estado, contenta-te com desejar e temer as coisas docemente, sempre com exceção e sem violência.

112

Compomo-nos de duas naturezas assaz distintas: de um corpo que nos é comum com os animais e de um espírito que nos é comum com os deuses. Uns tendem para o primeiro parentesco, se é permitido assim falar, parentesco desditoso e morto, e outros tendem para o segundo, parentesco ditoso e divino. Nasce daí pensarem uns nobremente e outros, em maior número, só terem pensamentos baixos e indignos. Que sou eu? Um homem desditoso, e as carnes que me revestem são, com efeito, más e míseras; mas trago em mim algo mais nobre que a carne; por que, pois, tamanho apego a ela, afastando-me desse outro princípio tão elevado? Vede a pendente pela qual se atira a maioria dos mortais, e vede por que há neles tanto de tigre, tanto de lobo, tanto de leão, e tão pouco de homem. Cuidado, meu amigo! Procura não aumentar o número de tais monstros.

113

Considera, primeiramente, o que desejas; depois, examina a tua própria natureza, e vê se é suficientemente forte para levar o fardo. Queres ser gladiador? Olha os braços, considera os músculos, examina as costas, porque nem todos nascemos para a mesma coisa. Pensas que, abraçando tal profissão, poderás comer como os outros, beber como eles, renunciar como eles a todos os prazeres? É mister velar, trabalhar, afastar-se dos parentes e dos amigos, ser o joguete de uma criança, ficar por baixo de todos nas honrarias, nos cargos, nos tribunais; numa palavra, em todos os negócios. Considera bem tudo isso e vê se podes comprar por tal preço a tranqüilidade, a liberdade, a constância. Se não, dedica-te a outra coisa e não procedas como as crianças: não sejas hoje filósofo, amanhã sequaz, em seguida pretor e depois privado do Príncipe; estas coisas não se condizem. É necessário que sejas um só homem, bom ou mau, que te apliques ao que te diz respeito, que trabalhes por adquirir os bens interiores e exteriores, isto é, que te sustentes com o caráter de filósofo ou de homem comum.

114

Por que nasci de tais pais? Meu amigo, antes do teu nascimento, dependia de ti dizer: quero que tais pessoas contraiam núpcias, e quero nascer delas? Se o teu nascimento é desditoso, não depende acaso de ti corrigi-lo com a virtude?

115

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Teu amigo, teu filho, partiram; abandonaram-te, e tu choras. Não sabias que o homem era viandante? Sofres o castigo da tua loucura. Crês que terás sempre perto de ti os objetos dos teus prazeres e que gozarás sempre dos lugares e das coisas que te são agradáveis? Quem to prometeu?

116

Queres dar à tua cidade natal uma oferta raríssima e de grande valor? Dá-te inteiramente a ela, depois de te haveres convertido em modelo perfeito de doçura, de liberalidade e de justiça.

117

Queres envelhecer e não ver morrer os que amas, isto é, queres que todos os teus amigos sejam imortais, e que para ti unicamente mudem os deuses as suas leis e a ordem da natureza. É justo isso, insensato?

118

Acabas de receber novas de Roma, e cais no pranto e na tristeza. É possível que o que se passa a duzentas léguas de ti te torne desgraçado? Dize-me, suplico-te: que mal pode suceder-te onde não estás?

119

Nada tens que não tenhas recebido. Quem te deu tudo, tira-te uma coisa. Resistindo-lhe, além de louco, és ingrato e injusto.

120

As coisas que de nós dependem são livres pela sua natureza; nada pode detê-las nem levantar-lhes obstáculos, e as que de nós não dependem são débeis, escravas, dependentes, sujeitas a mil inconvenientes e obstáculos, e inteiramente estranhas.

121

Quando tornarei a ver Atenas e a Acrópole? Nada podes ver mais formoso que o céu, o sol, a lua, as estrelas, a terra, o mar. Se estás aflito por haveres perdido de vista Atenas, que farás quando for mister perder de vista o sol?

122

Hércules, exercitado por Euristeu, não se considerava desditoso, e executava tudo quanto lhe ordenava o tirano, por difícil que fosse. Tu, exercitado pelos deuses que te criaram, gritas, lamentas-te e te consideras infeliz. Que covardia, que fraqueza!

123

Não queres, pois, ser sóbrio e abandonar o leite para nutrir-te de carne sólida? Queres ainda chorar e gritar, recostado ao peito da nutriz e voltar aos contos e canções com que ela te embalava?

124

A regra e medida dos nossos atos são as nossas opiniões. De onde nasceu a Astréia de Eurípedes? Da opinião. E a sua Medéia e o seu Hipólito? Da opinião. E o Édipo de Sófocles? Da opinião.

125

Quando soar a hora, morrerei, mas morrerei como deve morrer o homem que sabe devolver o que lhe foi confiado para guarda.

126

Não devemos regozijar-nos com os homens, nem com eles congratular-nos se não pelas coisas de que têm verdadeiro motivo de regozijo e que lhes são honrosas e úteis.

127

O característico da verdadeira felicidade é durar sempre e não encontrar obstáculo. O que não possui esses dois caracteres não é verdadeira felicidade.

128

Não te esqueças das palavras de Sócrates: "Críton, sigamos corajosamente a senda pela qual nos conduzem os deuses, e nos chamam. Anito e Melito podem matar-me, mas não podem fazer-me morrer".

129

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Umas coisas do mundo dependem de nós, outras não. As que de nós dependem são os nossos juízos, os nossos movimentos, as nossas inclinações, as nossas aversões, os nossos desejos, numa palavra, todos os nossos atos.

130

As que de nós não dependem são o corpo, os bens, a reputação, as dignidades, numa palavra, todas as coisas que não são os nossos próprios atos.

131

Lembra-te de que és ator na obra, breve ou longa, em que o seu autor te fez tomar parte. Se quer que representes o papel de mendigo, mister é que o desempenhes da melhor maneira possível. Ademais, se quer dar-te o papel de coxo, de príncipe, de particular, deves representá-lo, pois está em tuas mãos desempenhar bem o teu papel, mas não escolhê-lo.

132

Temes falar da morte, como coisa de mau agouro. Não há mau agouro no que não faz senão marcar a ação da natureza. A preguiça, a imprudência, a covardia, os demais vícios, é que são realmente coisa de mau agouro. E, no entanto, uma vez que não se possa evitar uma coisa, não se deve temer proferir-lhe o nome.

133

Os verdadeiros dias de festa para ti são aqueles em que venceste uma tentação, em que atiraste para longe de ti, ou pelo menos enfraqueceste, o orgulho, a temeridade, a malignidade, a maledicência, a inveja, a obscenidade das palavras, o luxo ou qualquer outro dos demais vícios que te tiranizam. Isso, muito mais que obter um consulado ou a chefia de um exército, merece que faças sacrifícios.

134

Sobre cada uma das coisas que te divertem, que te servem e que aprecias, lembra-te de pensar e de perceber o que verdadeiramente é, começando pela menor. Se gostas de um vasinho de terra, lembra-te de que é de terra, para que, se suceda quebrar-se, não fiques impressionado. Se gostas de teu filho ou de tua mulher, dize ao espírito que gostas de uma criatura mortal, para que, se suceda morrer, te cause menos dor.

135

Quando vires alguém cumulado de honras, ou elevado a um grande poder, ou de qualquer modo florescente, procura fazer com que não diminua a tua imaginação, e não o consideres ditoso, porque se a essência do verdadeiro bem consiste nas coisas que de nós dependem, nem a inveja, nem a emulação, nem os ciúmes têm motivos de existência. Tu próprio não quererás ser general de exército, nem senador, nem cônsul, mas livre; e para alcançares essa liberdade, há somente um caminho: o desprezo das coisas que de nós não dependem.

136

Quando ouvires ou vires algo de mau agouro, não te deixes levar pela imaginação; pelo contrário, faze em ti próprio esta consideração: não diz respeito a mim próprio este infeliz agouro, senão ao meu corpo, ao meu bem ou à minha reputação, ou a meus filhos ou minha esposa. Quanto a ti, não pode haver mais que felizes presságios, se assim desejas, porque, suceda o que suceder, de ti é que depende tirar dele o maior bem.

137

De ti depende fazer bom uso de tudo o que se verifica. Não digas, pois: que sucederá? Que te importa o que possa suceder, se de tudo és capaz de tirar proveito, se de tudo podes fazer bom uso, e qualquer coisa que se realize pode chegar a ser para ti felicidade enorme? Se aos olhos se te apresenta medonha fera, ou tens que sustentar um feroz combate contra homens implacáveis e terríveis, de que te afliges? Se te antolha uma fera, o combate é maior e mais glorioso. Se pelo caminho encontrares homens prodigiosos e intratáveis, terás maior mérito se conseguires, ao vencê-los, livrar deles o mundo. E se eu morrer? Se morreres, morrerás como herói. Que mais podes desejar?

138

Ocupas-te unicamente de habitar suntuosos palácios, de te rodeares de uma turba de lacaios e mordomos, de te vestires magnificamente e de possuíres apetrechos de caça, músicos e tropa de

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comediantes. Julgas que te invejo por isso? Cultivaste a razão? Trataste de adquirir sãs opiniões e de aproximar-te da verdade? Por que, pois, te envergonhas de possuir eu sobre ti uma vantagem no que descuidaste? É que isso é precioso e grande. Tanto melhor se o sabes; mas quem te impede consegui-lo? Em vez de caçadores, de músicos, de comediantes, rodeia-te de gente sã de entendimento; ninguém pode dispor de mais tempo, de mais livros, de mais mestres do que tu. Começa; dá à razão alguma coisa do tempo que te sobra; numa palavra, escolhe. Se continuares a satisfazer-te com exterioridades, terás, certamente, móveis mais raros e magníficos que os de qualquer outro, mas a tua pobre inteligência, assim abandonada à incúria, ficará no embrutecimento.

139

É justo e natural que o que se aplica inteiramente a uma coisa a consiga, e logre nela acerto, e vantagem sobre o que a descuida. O folgazão emprega toda a vida em busca do prazer e do requinte; quando se levanta, pensa no modo de fazer a côrte ao objeto do seu amor, e de adular o príncipe; diante deles, adula-os, faz-lhe presentes. Nas suas preces e sacrifícios, só pede aos deuses que lhe dêem a ventura de comprazer-lhes. Todas as noites faz exame de consciência: Em que delinqüi? Que fiz? Que omiti do que devia fazer? Deixei de dizer ao Príncipe alguma coisa que lhe houvera agradado? Deixei escapar imprudentemente alguma verdade que lhe haja desagradado? Deixei de lhe aplaudir os defeitos e elogiar tal injustiça ou tal má ação sua? Quando, por acaso, profere uma palavra digna de homem de bem e de homem livre, teme, faz penitência, e julga-se perdido. Vede como lavra o seu bem estar. Tu, pelo contrário, a ninguém cortejas, a ninguém adulas; cultivas a alma, trabalhas por formar sãos juízos; o teu exame de consciência é assaz diverso do primeiro. Perguntas-te: Descuidei alguma coisa das que contribuem para a verdadeira felicidade e agradem aos deuses? Faltei à amizade, à sociabilidade, à justiça? Deixei de fazer o que deve fazer o homem de bem? Com desejos tão opostos, sentimentos tão contrários e tão diversa aplicação, como pode envergonhar-te não igualares o primeiro nos bens da sorte? Por que o invejas? Seguramente, ele te não invejará. E assim sucede porque, imerso na ignorância e na cegueira, está firmemente persuadido de desfrutar dos verdadeiros bens, ao passo que tu não estás ainda bastante firme e seguro nos teus princípios para ver e sentir que está do teu lado toda a felicidade.

MÁXIMAS DE EPICTETO

Tradução de Alberto Denis Compilação da 1ª Edição da GRÁFICA E EDITORA EDIGRAF LTDA. São Paulo, Brasil Col. Biblioteca de Autores Célebres Material enviado por Tiago Tomasi

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140

Não há nada tão freqüente como ver poderosos que julgam saber tudo, e nada sabem, ignorando até as verdades mais necessárias. Como nascem na abastança e não sentem necessidade nenhuma, não suspeitam de que lhes possa faltar alguma coisa. Dizia eu assim, uma tarde, a um dos mais considerados: - Estais perto do Príncipe, possuís grande quantidade de administradores poderosos e grandes alianças; por meio do vosso crédito podeis servir aos amigos e destruir os invejosos. - Que me falta, pois? perguntou-me. - O mais importante e necessário à verdadeira felicidade; até aqui, fizestes o contrário do que vos convém, descuidando o principal. Não sabeis o que são os deuses, nem o que é o homem; ignorais a natureza do bem e do mal, e, o que vos surpreenderá mais que tudo, vós próprio vos desconheceis. Ah, fugis e vos encolerizais pelo que vos manifesto com esta franqueza! Que mal vos fiz? Somente vos apresentei o espelho em que viste a vossa imagem.

141

Nada se dá sem recompensa. Pretendes um Consulado? Terás de intrigar, pedir, rogar, beijar a mão deste, daquele, bater-lhe à porta, praticar mil baixezas e mil indignidades, enviar todos os dias novos presentes. E que é ser cônsul? Levar à frente doze feixes de varas, sentar-se três ou quatro vezes num Tribunal, dar jogos e festins ao povo; eis tudo. E para estar livre de paixões e de cuidados, para ser constante e magnânimo, para poder dormir de noite e velar de dia, para não ter angústias nem temores, não queres dar nada, nem ter nenhum trabalho? Julga tu próprio o teu procedimento.

142

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Foste preferido num festim, num conselho, numa visita. Se são bens as preferências de que és alvo, devera alegrar-te recaírem elas sobre o próximo, e se são males, não te aflijas, por te não veres livre deles; mas lembra-te de que não pode caber-te deles a mesma participação que cabe aos que lidam por adquirir o que deles não depende. Quem nunca bate à porta de um grande senhor não pode ser tão bem tratado como o que lá vai todos os dias; quem o não acompanha quando sai, como o que lhe fica sempre ao lado; quem o não adula nem tampouco o lisonjeia, como o que outra ocupação não conhece. Portanto, és injusto e insaciável, se, não dando as coisas com as quais se compram os favores, os queres obter gratuitamente. Por que preço vendem os legumes no mercado? Por um óbulo. Se, pois, der o teu vizinho um óbulo e levar o seu legume, ao passo que tu, sem dar o óbulo, sem o legume regressas, não imagines ser por isso menos afortunado, pois se ele tem legume, tens tu óbulo, já que o não entregaste. O mesmo sucede neste caso: não foste convidado a um festim? Tampouco deste ao hóspede o preço pelo qual o vende; esse preço é um elogio, uma visita, uma complacência, uma subordinação; dá, pois, o preço, se a coisa te agrada, mas não queiras, sem ele, adquirir a mercadoria. No resto, não sintas pesar se não tens assento no festim, desde que tenhas conseguido conservar o que é superiormente estimável, como a independência e o direito de exprimir livremente os teus sentimentos.

143

Sê firme na prática de todas estas máximas, e observa-as, pois devem ser para ti leis invioláveis, e não te preocupe a maledicência, pois ela não figura no número das coisas que de ti dependem.

144

Quando acusas a Providência, sabe que em ti próprio está a sua justificação. Em que possui o mau vantagem sobre ti? Na riqueza? Examina-lhe o interior, e dize se te não envergonharia a vida que ele observa. Há dias, exprimi esse pensamento a um homem a quem envergonhava a prosperidade de Filostorcos. Disse-lhe eu: - Venderias os teus favores a Sura? - Não o queiram os deuses, respondeu-me, preferiria, e com prazer, perdem vida. Por que, então, te envergonhas de uma dita que tem o seu preço? Por que o achas ditoso ao possuir coisas que detestas? Em que te maltratou a Providência dando-te o que de melhor possui? Não te queixes; a sabedoria é mais preciosa que as riquezas, e a humildade mais que a ambição.

145

Não podes ser um Hércules, nem tampouco um Teseu, para limpar de monstros a terra; mas podes imitá-los, atirando para longe de ti os monstros que te assediam. Em vez de Procusto e de Círon, doma a violência da dor, o medo, a concupiscência, a inveja, a avareza, a preguiça e a intemperança. O único meio de vencer tais monstros é ter sempre diante dos olhos os deuses, ser-lhes devoto e obedecer apenas aos seus preceitos.

146

Desejas muitas coisas e, entretanto, se desejasses menos, as conseguirias. És semelhante à criança que, desejando colher as frutas metidas num vaso de estreita abertura, nela introduzisse a mão e pretendesse tirá-la cheia. A ambição desmedida só pode frutificar em lágrimas.

147

Não é raciocinar prudentemente dizer: - Sou mais rico do que tu, logo sou melhor; sou mais eloqüente, logo valho mais. - Para raciocinar consequentemente, é preciso dizer: Sou mais rico do que tu, logo o meu bem atual é maior; sou mais eloqüente, logo a minha eloquência vale mais do que a tua.

148

Quando se atiram à população figos e avelãs, os meninos se espancam para colhê-los, mas os homens não dão a eles a menor importância. Distribuem-se governos de província: são frutas para os meninos; honras, consulados, são para mim figos e avelãs. Se, por acaso, tomba um deles na minha túnica, pego-o e como-o. É tudo quanto vale; mas não me curvarei para pegá-lo, nem muito menos pisarei o próximo.

149

Os deuses me abandonam na pobreza, na miséria, no cativeiro. Não é por cólera que por mim experimentem, porque não há quem se encolerize com um fiel servidor; não é por descuido, porque não descuidam a menor coisa. Querem provar-me, querem ver se tem em mim um bom soldado, um bom cidadão; querem, enfim, que lhes sirva de testemunho vivo no seio dos demais homens.

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Até quando diferirás julgar-te digno de grandes feitos e por-te em estado de jamais ferir a reta razão? Recebeste os preceitos aos quais deverias dar o teu consentimento. Deste-o. Por que, pois, postergar a emenda? Não és uma criança, e sim homem feito. Se te descuidares, se te distraíres, se abrigares resolução e mais resolução, se todos os dias assinalares um novo em que haverás de prestar atenção a ti próprio, sucederá finalmente que, sem o perceberes, não terás realizado nenhum progresso, e perseverarás eternamente na ignorância. Valor, portanto; julga-te digno, desde hoje, de viver como homem, e como homem que já realizou alguns progressos na sabedoria; que tudo quanto se te afigure bom e belo seja para ti lei inviolável. Se se te oferecer algo de penoso ou agradável, de glorioso ou vergonhoso, lembra-te de que a luta está aberta, que os jogos olímpicos te chamam, que não convém postergar, e sim, pelo contrário, levar a caba, e enfim que, de um momento a outro de um único ato de valor ou de covardia depende a tua salvação ou a tua perda. Não foi de outro modo que logrou Sócrates chegar à perfeição fazendo com que todas as coisas servissem ao seu fim, e seguindo constantemente a razão. Quanto a ti, embora não sejas Sócrates, deves viver como se tivesses de o ser um dia.

151

Se nasceste de pais nobres, persuadido da tua nobreza, não deixas de tê-la constantemente diante dos olhos, e de com ela aturdir todos. Mas tens a divindade por pai, ela se manifesta em volta de ti, e esqueces-te dessa nobreza e ignoras de onde vieste, e a marca que trazes na testa. Eis aquilo de que deverás lembrar-te em todos os atos da tua vida. Pensa a todo instante: foi a divindade que me criou; está em volta de mim, em mim próprio a levo por toda parte. Por que ofendê-la com pensamentos obscenos, baixas e impuras ações e infames desejos?

152

Se os deuses te houvessem incumbido da guarda de uma pupila, cuidarias dela e não permitirias se perdesse tão valioso depósito. Mas confiaram-te a guarda de ti próprio. Disseram-te: não julgamos poder colocar-te em mãos de tutor mais fiel, mais afetuoso; guarda-nos este filho tal qual é por natureza; conserva-no-lo cheio de pudor, de fidelidade, de magnanimidade, de valor, isento de paixões. E tu te descuidas. Haverá maior crime?

153

Terias escrúpulo em cometer atos desonestos diante de uma estátua ou de uma imagem dos deuses; não obstante, vêem-te, ouvem-te, e não coras ao abrigar em sua presença pensamentos obscenos, que os ferem, que os desonram, que os afligem. Oh, inimigo dos deuses! Oh, covarde, que te esqueceste da tua natureza!

154

Se fosses uma estátua de Fídias, a sua Minerva, ou o seu Júpiter, e tivesses consciência do teu estado, cuidarias, lembrando-te do obreiro que te dera a forma, de nada fazer que fosse indigno dele e de ti, e por nada no mundo quererias aparecer num estado indecente que desonrasse a tua beleza; mas, sem te inquietares absolutamente com aquele em que apareceres diante dos deuses, desonras a mão que te formou. Que diferença, entretanto, entre obreiro e obreiro, obra e obra!

155

Quando fizeres alguma coisa depois de saberes a fundo que é o teu dever, não evites, ao fazê-la, ser visto, ainda que o vulgo forme de ti falsos juízos; porque se a ação é má, não deves realizá-la; e se é boa, não deve importar-te a condenem os maus.

156

Quis certa matrona romana enviar uma grande quantia em prata a um dos seus amigos, chamado Grátila, desterrado por Domiciano; disse-lhe alguém que o imperador se apoderaria da quantia e a confiscaria. - Não importa, respondeu ela. Prefiro, a não enviá-la, que Domiciano a roube.

157

Qual é o varão invencível? Aquele que, imóvel no seu lugar, não se preocupa com as coisas que não dependem da sua vontade; considero-o um verdadeiro atleta. Sustentou um combate. Sustentará o segundo? Resistiu ao dinheiro. Resistirá à beleza? Venceu em pleno dia, no meio do mundo. Vencerá, sozinho, durante a noite? Triunfará da glória, da calúnia, da adulação, da morte? Dominará todos os incômodos e todas as tristezas? Numa palavra, será vitorioso até em sonhos? Vê o atleta que eu procuro.

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Page 16: Máximas de epicteto

Hércules houvera sido Hércules sem os leões, tigres, os monstros, os bandidos e demais seres de que livrou a terra? Sem tais monstros, de que lhe teriam servido os musculosos braços, a força e a coragem, a paciência invencível e as demais qualidades?

159

Evita o juramento em tudo e por tudo; se não, sempre que o permitam as circunstâncias.

160

Um pede o Tribunato; outro a chefia dos exércitos; eu o pudor e a modéstia, porque sou livre e amigo dos deuses e lhes obedeço de todo o coração. É, pois, necessário que não dê importância ao corpo, à riqueza, às dignidades, à reputação, nem a qualquer coisa estranha, porque não querem os deuses que eu lhes dê importância. Se o tivessem querido, houveram feito com que fossem bons para mim; mas, visto que assim não procederam, não são evidentemente bons, e obedeço às ordens deles.

161

A primeira coisa que é mister aprender é que existe um Deus que a tudo governa com a sua providência e a não podem estar ocultos nem os nossos atos, nem os nossos pensamentos e vontades. Logo, é necessário examinar-lhe a natureza. Uma vez bem determinada e conhecida a sua natureza, é preciso que os que pretendem agradar-lhe e oferecer-lhe, se esforcem por parecer-se a Ele; que sejam livres, fiéis, benévolos, misericordiosos, magnânimos. Todos os teus pensamentos, todas as tuas palavras, todos os teus atos sejam, pois, atos, palavras e pensamentos de homem que imita a Deus e com Ele procura ter alguma semelhança.

162

Ensinam os filósofos que o homem é livre. Ensinam, por conseguinte, a menosprezar a autoridade do imperador? Não. Nenhum filósofo ensina os discípulos a revoltar-se contra o seu Príncipe, nem a subtrair à autoridade dele nada do que lhe está submetido. Tomai, eis o meu corpo, os meus bens, a minha reputação, minha família; entrego-vo-los; e se achardes que ensino alguém a retê-los, matai-me; sou um rebelde. Não é isso o que ensino aos homens; ensino-lhes apenas a conservar a independência das suas opiniões, de que os fez donos exclusivos a Divindade.

163

Sabei que o principal fundamento da Religião consiste em crer que existem os deuses, que estendem a sua providência sobre tudo quanto existe, que governam o Universo com perfeição e justiça, que o homem está no mundo para lhes obedecer, para admitir de bom grado tudo o que deles provenha, e prestar a sua aquiescência às coisas que deles procedem, como de Providência boa e sábia. Desse modo, jamais te queixarás dos deuses nem tampouco os acusarás de te haverem esquecido. Mas tais sentimentos não podes adquiri-los sem renunciar a tudo quanto de ti não depende, e fazendo consistir os teus bens e os teus males no que depende da tua vontade; porque se tomas por bem ou por mal uma coisa estranha, é absolutamente necessário que, uma vez que se te frustrem os desejos ou que caias no que temes, te encolerizes e acuses a causa dos teus males; porque todo animal nasceu para detestar e fugir de tudo o que lhe parece mau e prejudicial, assim como para buscar e querer tudo o que lhe parece útil e bom. É, pois, impossível que quem julga ser lastimado se mostre agradável a quem o fere; donde se segue que ninguém se regozija no seu mal. Por isso, o filho cobre de censuras e, talvez, de injúrias o pai, quando o não faz participar dos seus bens; por isso, tornaram-se inimigos irreconciliáveis Etéoclo e Polinice, que consideravam o Trono um grande bem; por isso, o lavrador, o piloto, o mercador, chegam a maldizer os deuses, e por isso, finalmente, se ouvem as queixas dos que perdem mulheres e filhos; porque, onde está a utilidade, está a piedade. Todo homem que cuida de ajustar desejos e aversões, segundo as regras prescritas, cuida de conservar e aumentar a sua piedade; nas suas libações, nos seus sacrifícios e nas suas oferendas, cada qual deve seguir o costume do seu país e realizá-los com pureza, sem ostentação, sem negligência, sem irreverência, sem mesquinhez, e, por fim, sem suntuosidade que lhe exceda as forças.

164

Não sejas, mortal, ingrato aos bens que recebeste dos deuses, e não te esqueças dos seus grandes benefícios. Dá-lhes constantemente graças pela vista, pelo ouvido que te concederam - que digo! - pela própria vida e por todos os auxílios que te prestaram para sustentá-la; pelos próprios frutos da terra. Ao mesmo tempo, porém, lembra-te de que te deram algo de mais precioso ainda, a faculdade que, servindo-se de todas as coisas, as analisa e a cada uma atribui o seu valor.

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165

Tendo sido Galba morto, disse alguém a Rufo: - Atualmente, a Providência toma parte nas coisas do mundo. - Desgraçado, respondeu-lhe Rufo, julgas, por acaso, que Galba alguma vez logrou impedi-lo?

166

Se o Príncipe te houvesse adotado, terias insuportável orgulho. Mas esqueces a Divindade, à qual tanto deves.

167

Se obrássemos com bom juízo, não faríamos outra coisa na vida pública e particular senão dar graças à Providência por todos os bens que dela recebemos. Lavrando, comendo, passeando, levantando-nos e deitando-nos, diríamos: - A Providência é grande! Tudo repercutiria o eco destas divinas palavras: A Providência é grande! Mas sois ingratos e cegos; é preciso, pois, que o diga eu por vós, e que, velho, coxo, pobre e enfermo, repita sem cessar: Como é grande a Providência!

168

Se eu fosse rouxinol ou cisne, faria o que deve fazer o cisne ou o rouxinol; mas sou homem, e tenho por patrimônio a razão. Que devo fazer? Louvar a Divindade. É o que farei a vida toda, e exorto todos os homens a fazer o mesmo que eu.

169

Os soldados que se alistam nas tropas de César prestam o juramento costumeiro. Qual é esse juramento? Que preferirão o bem do imperador a todas as coisas, que lhe obedecerão em tudo, que se exporão à morte por ele. Tu, que estás ligado à Divindade pelo teu nascimento, e por tantos benefícios que dela recebeste, tu que nasceste nas suas tropas, não farás análogo juramento? E, uma vez feito, não lhe serás fiel? Que diferença, contudo, entre os dois juramentos! O soldado jura que preferirá a salvação do imperador a todas as coisas, e tu juras que preferirás a todas as coisas a tua própria salvação.

170

- Como poderei persuadir-me, disse alguém a Epicteto, de que todas as minhas ações são vistas pela Divindade, sem que uma só passe inadvertida? Respondeu-lhe Epicteto: - Não estás persuadido de que todas as coisas do mundo estão entrelaçadas? - É claro. Não estás persuadido de que as coisas terrenas são reguladas pelas celestiais? - Estou. Com efeito, vês que todas as coisas da natureza sucedem em tempos assinalados, como, por exemplo, as estações. Ao nascer e ao pôr do sol, quando a lua cresce e mingua, a face da natureza muda. Pois se todas as coisas deste mundo miserável, se os nossos próprios corpos estão ligados e tão unidos ao todo, como podes imaginar que a nossa alma, muito mais divina que todo o universo, seja a única isolada e não esteja unida à Divindade que a criou? - Mas, como pode ela ver ao mesmo tempo tantas coisas tão diversas e distantes? - Pobre cego, quantas operações diferentes não realiza de uma só vez o teu entendimento, embora tenha tão estreitos limites? Abraça as coisas divinas e humanas; raciocina, divide, julga, consente, nega. Quantas imagens diferentes, quantas idéias contrárias não encerra? O sol ilumina ao mesmo tempo a maior parte do mundo; o que se oculta aos seus raios é apenas uma parte da terra; e Aquele que fez o sol, que, por imenso que seja, não é mais do que um ponto no enorme universo, não iluminará a terra inteira? - Mas o meu entendimento não faz as suas operações senão sucessivamente, e não pode considerar os objetos senão um depois do outro. - Quem te disse que o teu entendimento é tão extenso como a própria Divindade? Considera, verme que és, quantos objetos diferentes abraça de uma só vez o olho, que é tão pequeno. Tudo o que o horizonte encerra se apresenta simultaneamente à vista. Que poderá escapar à vista de quem fez o olho?

171

Os deuses não me deram multidão de bens; não quiseram que eu nade na opulência, nem tampouco que me entregue aos prazeres; mas de que me queixo? Não trataram melhor Hércules, que tantos feitos realizou em honra deles.

172

Quando consultamos os áugures, é tremendo e dirigindo aos deuses ardentes preces. - Deuses, tende piedade de mim, permiti que me livre felizmente deste ou daquele cuidado, - Vil escravo! Queres outra coisa que a que te convém? Que pode convir-te mais que fazer a vontade dos deuses? Por que, pois, tentas corromper o teu árbitro e o teu juiz, enquanto pedes?

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173

Por que consultar os adivinhos acerca das coisas em que o nosso dever está marcado? Se se trata de expor-me a um perigo pelo meu amigo, devo morrer por ele; que necessidade tenho de adivinho? Não possuo dentro de mim próprio um adivinho mais seguro e incapaz de enganar-me, que me ensinou a natureza do bem e do mal, e que me explicou todos os sinais pelos quais os devo reconhecer?

174

A fraqueza do homem pelos oráculos e adivinhações procede da sua timidez. Teme os sucessos, e é por isso que tem pelos adivinhos inexplicável complacência; fá-los árbitros e juizes de todos os seus assuntos, confia-lhes tudo quanto tem, e se lhe predizem algo de bom, os gratifica, como se lho estivessem dando. Que cegueira! Se fôssemos prudentes, consultaríamos os adivinhos do mesmo modo pelo qual perguntamos pela direção numa jornada, sem nos importar que seja para a esquerda ou para a direita que devemos passar. Porque, que é consultar os adivinhos? Indagar a vontade dos deuses para realizá-la. Deveríamos, pois, servir-nos dos oráculos como dos olhos, aos quais não tentamos fazer ver estes ou aqueles objetos, deixando, pelo contrário, que nos mostrem o que vêem. Façamos o mesmo com os adivinhos; não lhes supliquemos, e limitemo-nos a fazer o que nos mandarem.

175

Acusar os demais das próprias desditas é coisa de ignorante; acusar apenas a si próprio é coisa de homem que começa a instruir-se; não acusar nem a si próprio nem aos outros é coisa de homem já instruído.

176

Quando fores consultar o adivinho, lembra-te de que ignoras o que deve suceder, e que vais sabê-lo. Mas lembra-te ao mesmo tempo que, se fores filósofo, vais consultá-lo, muito bem sabendo de que natureza é o que deve suceder; porque se for coisa que de nós não dependa não poderá ser seguramente nem um bem nem um mal para ti. Não leves, pois, contigo, ao adivinho, inclinação ou aversão por coisa nenhuma; de outro modo, tremerás sempre; persuade-te, pelo contrário, e convence-te de que tudo quanto suceder será indiferente, não te dirá respeito, e que de qualquer natureza que seja, de ti depende fazer dele bom uso, sem que ninguém consiga impedir-to. Vai, pois, com confiança, como quem se aproxima de deuses que se dignam aconselhar e, ademais, quando te houverem sido dados alguns conselhos, lembra-te do que são os conselheiros aos quais recorreste, e que a tua desobediência será menosprezo das suas ordens. Não vás ao oráculo se não como Sócrates queria se fosse, isto é, não vás senão para as coisas que só podem ser conhecidas pelo acaso, e não podem ser previstas nem pela razão nem pelas regras de qualquer arte. Assim, quando se te deparar oportunidade de te expores a grandes perigos pelo amigo ou pela pátria, não vás consultar o adivinho se tiveres de fazê-lo, porque se te declarar que são más as entranhas das vítimas, serás evidente que o sinal te pressagia a morte, os ferimentos ou o desterro; afirma-te, porém, a razão, em que pese a todas essas coisas, que deves socorrer o amigo e expor-te pela pátria. Apolo Pitiano atirava para fora do seu templo quem, vendo em perigo de morte o amigo, o não ajudava.

177

Só cortejo os poderosos. Mas é esse o teu destino? De mim sei dizer que não nasci para tal coisa. Não tenho a quem comprazer, obedecer e submeter-me? Tenho os deuses, nos quais está o verdadeiro poder.

178

Quando tiveres de conversar com alguém, sobretudo se se tratar de um dos principais da cidade, imagina o que houvera feito Sócrates ou Zeno em tal entrevista. Desse modo, não terás o menor embaraço em cumprir o dever e valer-te convenientemente de tudo quanto puder deparar-se-te.

179

Supondo que homem livre é aquele a quem tudo sucede como deseja, disse-me um louco, quero que me suceda tudo quanto me aprouver. Meu amigo, jamais andam juntas a loucura e a liberdade. A liberdade não é uma coisa somente belíssima, senão também racional, e não há nada mais absurdo nem mais irracional que desejar temerariamente e pretender que as coisas se verifiquem do modo pelo qual as pensamos. Quando tenho de escrever o nome próprio Díon, devo escrevê-lo não como me agradaria, mas tal qual é, sem a mudança de uma única letra. Sucede o mesmo em todas as

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artes e ciências. E queres que na maior e mais importante de todas as coisas, como é a liberdade, impere o capricho e a imaginação? Não, meu amigo, a liberdade consiste em querer que as coisas sucedam não como as desejamos, mas como são.

180

Esperas ser feliz uma vez que tenhas obtido o que solicitas. Enganas-te; terás as mesmas inquietações, os mesmos cuidados, os mesmos aborrecimentos, os mesmos temores, os mesmos desejos. A felicidade não consiste em adquirir e desfrutar do adquirido, mas em não desejar, porque consiste em ser livre.

181

Os deuses me deram a liberdade, e não desconheço os mandamentos. Por conseguinte, ninguém logrará reduzir-me à escravidão, porque tenho o libertador que me falta e os juizes dos quais careço.

182

Um dia, perguntava Floro a Agripino: - Devo ir ao teatro com Nero? - Vai, respondeu Agripino. - E tu, retrucou Floro, por que não nos acompanhas? - Porque não sei calar-me.

183

Estava muito bem gravada no coração de Prisco Helvídio essa máxima, e ele soube pô-la nobremente em prática. Um dia, ordenou-lhe Vespasiano que não fosse ao Senado. - Tem Vespasiano o poder de afastar-me do meu cargo, respondeu Helvídio, mas enquanto eu for senador, irei ao Senado. - Se vieres, disse-lhe o Príncipe, virás somente para calar-te. - Não me peças conselho, respondeu Helvídio, e eu me calarei. Mas se estiveres presente, retrucou o Príncipe, não poderei deixar de pedir-te conselho. - E eu, disse Helvídio, dir-te-ei o que me parecer justo. - Se o disseres, far-te-ei morrer. Quando te assegurei que eu era imortal? replicou Helvídio. Ambos faremos o que de nós depender; tu me farás morrer, e eu, sem queixa, me submeterei à morte. Que lucrou com isso Helvídio, sendo o único que se colocava em tal situação? O mesmo que a púrpura sobre a túnica; orna-a, embeleza-a, e causa aos outros inveja e desejos de possuir uma semelhante.

184

- Foste condenado ao desterro. Mas haverá lugar fora do mundo para o qual eu possa ser enviado? Para onde quer que eu vá, não terei céu, sol, lua e estrelas? Não terei sonhos e agouros? Não poderei manter comércio com os deuses?

185

Depois de todos os prazeres de que desfrutavas na pátria, e que perdeste, subsiste o de pensar que obedeces aos deuses e cumpras, real e efetivamente, o dever do homem bom e sábio. Grande prazer é poderes dizer a ti próprio: a estas horas semeiam os filósofos grandes coisas nas escolas, explicam todos os deveres do homem de bem, e eu os pratico. O que ensinam são as minhas virtudes: fazem o meu panegírico, sem o saber, porque realizei o que louvam e propagam.

186

Lembra-te de que não é quem te injuria, nem quem te fere, quem te maltrata, senão a opinião que deles tens e que te faz encará-los como inimigos. Quando alguém se encoleriza e irrita, sabe que não é esse homem que te irrita, senão a opinião que tens das coisas. Trata, pois, de impedir que a imaginação te vença, porque se alguma vez o consegues, podes chegar a ser mais facilmente senhor de ti próprio.

187

Para amar, devem colocar-se no mesmo lugar a santidade, a honestidade, a utilidade, a pátria, os pais, os amigos e a própria justiça. Se se separam, não há amizade; se o que é meu, ou seja, o meu interesse está com a honestidade e a justiça, sou bom amigo, bom pai, bom filho, bom marido; mas se de um lado está o meu interesse e de outro aquelas virtudes, não é possível a amizade, nem a existência dos deveres mais santos e indispensáveis.

188

Um mestre de ginástica me exercita, endurecendo-me o pescoço, os ombros, os braços e ordenando-me provas penosas. - Levanta este peso com as duas mãos, diz-me. Quanto maior o peso,

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mais se me fortificam os nervos. O mesmo é o homem que me maltrata e injuria; exercita-me na paciência, na clemência, na mansidão, exercício pelo menos tão útil como o primeiro.

189

Somente o sábio é capaz de amizade. Como pode amar quem confunde o mal com o bem?

190

Os que se apegam à moleza, à voluptuosidade ou à vanglória não podem estimar os homens. O único amigo dos homens é aquele que ama a decência e a honestidade.

191

Quando alguém te causa dano ou de ti fala mal, reflete que ele julga estar obrigado a tanto. Não é possível que siga os teus juízos, senão os seus, de modo que, se julga mal, a si apenas é que prejudica, porque somente ele se engana; assim, se alguém tacha de falso um silogismo muito justo e racional, não é o silogismo que perde, senão quem se engana julgando erradamente. Se te servires cuidadosamente dessa regra, suportarás com paciência todo mal que de ti se diga, porque não deixarás de afirmar do maldizente: - Diz isso, porque de boa fé o acredita.

192

- Não devo vingar-me e devolver o mal que me fizeram? Meu amigo, não te fizeram o mal, visto que mal e bem só dependem da tua vontade. Quanto ao resto, se um tolo feriu a si próprio cometendo contra ti uma injustiça, por que pretendes imitá-lo?

193

- Quando alguém te repetir o mal que outro falou de ti, não te preocupes com refutar o que se afirma, e responde simplesmente: - Quem assim falou de mim ignora, sem dúvida, os meus outros vícios, pois de outro modo se não contentaria com afirmar tais futilidades.

194

O varão prudente aguarda sempre dos maus maior mal que o que deles recebe. Um semelhante me injuria; dou graças por me não haver golpeado. Golpeia-me; dou graças por me não haver ferido. Fere-me; dou graças por me não haver matado.

195

Quando chegar ao teu conhecimento qualquer má notícia, lembra-te de que nada tem de ver contigo, pois não diz respeito a nenhuma coisa das que estão em teu poder. - Acusa-se-me de impiedade? Pois bem, Sócrates também não foi acusado? - Mas poderão condenar-me. - Também Sócrates foi condenado. Lembra-te de que a pena não está onde não está o erro; é impossível que estas duas coisas se separem. Não te consideres, pois, desditoso. Quem, a teu ver, foi mais desditoso, Sócrates ou aqueles que o condenaram? O mal não está em ser acusado como ímpio, senão em o ser. Portanto, o perigo não é para ti, mas para os juizes, porque tu não podes, de maneira nenhuma, morrer culpado, e eles podem fazer morrer um inocente.

196

Em que ocupação desejas que a morte te surpreenda? Eu, por mim, quisera que me surpreendeste em ato digno de homem, grande, generoso e útil ao gênero humano; ou melhor, quisera que me surpreendesse ocupado em me corrigir, e atento a todos os meus deveres, para em tal momento poder erguer ao céu as mãos, puras e limpas de todo crime, e dizer aos deuses: todas as faculdades que de vós recebi para conhecer a vossa providência e para lhe ser eternamente submetido foram por mim observadas; até onde me chegaram as forças tratei de vos não desonrar. Vede o uso que fiz dos sentidos, das faculdades. Jamais me queixei de vós; jamais, por causa nenhuma me envergonharei da minha origem divina; nunca senti pesar pelo que tive de fazer por vós, nem desejei trocar essa tarefa por outra. Não violei as vossas ordens, e dou-vos graças por me haveres criado. Usei dos vossos bens, na medida em que mo permitistes; quereis retirar-mos, eu vo-los devolvo, são vossos, disponde deles como vos aprouver. Eu próprio me coloco em vossas mãos.

197

Entristece-te ter que abandonar lugares tão belos; lamentas-te, choras. És, pois, mais desgraçado que os corvos e gralhas, que mudam de clima e passam os mares sem gemer e sem saudades do páramos que abandonam. - Mas esses animais carecem de razão. - Não te deram os deuses a razão para algo melhor que para te fazeres mísero? Pretendes que os homens sejam como as árvores, sujeitas pelas raízes e impossibilitadas de mover-se? - Entristece-me deixar os amigos. - Ora, o

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mundo está repleto de amigos e de protetores; todos os homens estão unidos pela natureza. Ulisses, que tanto viajou, não encontrou amigos? Não os encontrou Hércules?

198

Esforça-te para que te não turve a idéia de ser menosprezado e de nada ser no mundo; porque se o menosprezo é um mal, não podes cair no mal por intermédio de outro, nem tampouco no vício. Depende de ti desempenhar os principais cargos? Está em tuas mãos seres convidado, ou não, a um festim? De maneira nenhuma; como, pois, há de ser isso para ti menosprezo ou desonra? De que modo deixarás de ser alguma coisa no mundo, quando, se és alguma coisa, sê-lo de ti é que depende? - Mas os meus amigos carecerão, por minha parte, de todo socorro. - Que queres dizer? Queres, acaso, manifestar que não poderás dar-lhes dinheiro nem fazê-los cidadãos romanos? Quem te disse que tais coisas pertencem ao número das que de ti dependem, e como podemos dar aos outros o que nós próprios não possuímos? Procura o teu bem estar, dizem-te, para que nós participemos dele. Se puder procurá-lo, conservando o pudor, a modéstia, a fidelidade, a magnanimidade, mostrai-me o caminho por seguir para que eu chegue a ser rico, e sê-lo-ei; mas se pretendeis que perca os meus verdadeiros bens, com o intuito de adquirirdes vós os falsos, examinai a desigualdade da vossa balança e até onde vos leva a vossa inconsideração e ingratidão. Preferis o dinheiro a um amigo prudente e fiel? Não fora melhor ajudar-me a adquirir tais virtudes que exigir faça eu coisas que mas fariam perder? - Mas dirás ainda: a minha pátria não receberá de mim nenhum serviço. Que serviço? Não conseguirá, por teu intermédio, pórticos nem termas? E que é isso? Certamente ninguém obtém calçados por meio de um ferreiro, nem armas com o trabalho de um sapateiro; é preciso que cada um, dentro da sua esfera, se dedique apenas ao seu trabalho. Mas se dás à tua pátria um novo cidadão prudente, modesto e fiel, não lhe prestas assinalado serviço? Certamente lhe prestarás um muito grande e não lhe serás, portanto, inútil. Que posição ocuparei, portanto, na cidade? A que puderes lograr, conservando-te fiel e modesto. Que serviço podes prestar à tua pátria, que posição ocuparás na cidade, se chegares a perder essas virtudes?

199

Quando fores visitar um varão poderoso, imagina que o não encontrarás em casa, que estarás doente, que te será fechada a porta ou que te não dará a menor importância. Se depois disso, o dever te obrigar a ir, suporta com resignação tudo quanto suceda, e nunca digas que foste contrariado, porque tal linguagem só é própria do vulgo ou daquele para quem possuem as coisas exteriores demasiado poder.

200

Supões que foi uma grande desdita para Páris entrarem os gregos em Tróia, destruírem-na a sangue e fogo ou matarem toda a família de Príamo e raptarem as mulheres. Enganas-te, meu amigo. A grande desdita de Páris se realizou quando perdeu o pudor, a fidelidade, a modéstia, e quando violou a hospitalidade. Igualmente, não consistiu a desdita de Aquiles na morte de Patroclo, senão quando chorou e se esqueceu de que não partira para a guerra em busca de amantes, e sim para devolver a um marido a esposa.

201

Guarda-te de fazer o papel de zombeteiro e de trocista, porque tal defeito te fará cair insensivelmente nas maneiras baixas e grosseiras, e fará que percam os outros o respeito e a consideração que por ti sentem.

202

Não é menos prejudicial entregares-te a conversações obscenas. Quando te encontrares nessa espécie de conversações, não deixes, se to permitir a ocasião, de repreender quem estiver com a palavra; se não, guarda, ao menos silêncio, e dá a conhecer, pelo rubor da face e pela severidade do olhar, que te não são agradáveis tais conversações.

203

Nunca viste uma feira a que acodem homens de todos os distritos? Uns vão vender, comprar outros, e um pequeno número por curiosidade, unicamente para ver a feira e saber porque se celebra e quem a estabeleceu. É a mesma coisa o mundo: todos os homens estão nele, uns para vender, para comprar outros; pouquíssimos há que admirem este grande espetáculo e examinem o que é, quem o fez, para que o fez e como o governa, porque é impossível não seja feito e governado por alguém. Uma cidade, uma casa, não existem sem obreiro, e se duram é porque alguém as governa; máquina tão imensa e admirável não pode existir por puro acaso; é impossível. Logo, existe alguém que a fez e a governa. Quem é e como a governa? E nós, que também somos obra sua, que somos e por que

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somos? Pouquíssimos fazem tais reflexões, e, após admirarem a obra e bendizerem o obreiro, se retiram contentes. Se alguém as faz é alvo das chacotas dos outros, como na feira o são os simples curiosos, a quem chamam tolos os mercadores. Se os bois e os carneiros pudessem falar, certamente se ririam de todos os que pensassem noutra coisa que não comer e ruminar.

204

Não te esqueças do valor e da serenidade de Latrão. Tendo-lhe Nero enviado o seu liberto Epafrodita, para interrogá-lo sobre a conspiração em que entrara, limitou-se a responder ao liberto apenas isto: - Quando tiver o que dizer, di-lo-ei ao teu amo. - Serás agrilhoado. - Achas que isso bastará para me entristecer? - Irás para o desterro. - E que me impede ir alegremente, cheio de esperança e de contentamento pelo meu novo estado? - Serás condenado à morte. - Mas... é obrigatório morrer murmurando e gemendo? - Dize-me o teu segredo. - Não o direi, porque isso depende de mim. - Carregar-te-ei de ferros. - Que dizes, meu amigo? A mim é que ameaças carregar de ferros? Duvido. Carregarás, sem dúvida, minhas pernas e meus braços; mas a minha vontade será sempre livre e nem o próprio Júpiter ma poderá tirar. - Mandarei agora mesmo que te cortem o pescoço. - Disse-te eu alguma vez que o meu pescoço tem o privilégio de não poder ser cortado? As obras corresponderam as palavras; levado Latrão ao suplício, foi o primeiro golpe do verdugo demasiadamente fraco para lhe cortar a cabeça; Latrão ficou um instante aturdido; mas imediatamente recobrou os sentidos e de novo apresentou o pescoço com firmeza e constância.

205

Se nos encontrássemos num calabouço e em vésperas de ser julgados por uma acusação capital, poderíamos admitir o homem que nos perguntasse se não queríamos ouvir um hino por ele composto? - Meu amigo, dir-lhe-íamos, por que vens importunar-me em tão má ocasião? Tenho cuidados de muita importância. Não sabes que devo ser julgado amanhã? Não tenho a serenidade de Sócrates, que compunha hinos na véspera da morte.

206

Foi Agripino modelo de homens contentes com a sorte. Anunciou-se-lhe que o Senado estava reunido para o julgar. - Em boa hora! exclamou; vou preparar-me para o banho, segundo o meu costume. - Apenas saiu do banho, disseram-lhe que fora condenado. À morte, ou ao desterro? - Ao desterro. - Confiscaram-me os bens? - Não, deixam-nos em teu poder. - Nesse caso, partamos, sem demora. Vamos comer no lugar de desterro; comeremos tão bem como em Roma.

207

Passas por esta cidade, e enquanto o barco se faz ao mar, exclamas: - Vamos ver um momento Epicteto; ouviremos o que diz. Vens, contemplas-me, é tudo. Que é, pois, conversar com um homem? Não é perguntar-lhe quais as suas opiniões e expor-lhe as próprias? Tenho uma falsa opinião; combate-a. Estás num falso preconceito; consente que to desfaça. Isso é falar com um filósofo. Pelo contrário, fazes-me uma visita e, pouco satisfeito, retiras-te dizendo: - Epicteto não é grande coisa; fala com rudeza. Não é assim? Vede o que são os homens; procuram com quem falar, estão todos os dias juntos, como estátuas, sem se conhecerem, sem se examinarem uns aos outros e sem melhorarem. O entretenimento ou a curiosidade é que determinam os nossos feitos e conversações.

208

A desdita dos homens procede sempre de colocarem mal a sua confiança; são como os cervos que, para fugirem à ave que ameaça cair-lhes sobre a cabeça, tratam-se de por-se a coberto e caem nas redes, onde perecem.

209

Aprendeste alguns preceitos de filosofia e pretendes ensiná-los. Que fazes senão devolver o que não digeriste, como devolve o mau estômago a comida ingerida? Digere, meu amigo, e ensinarás quando, mediante uma alteração no teu espírito, me fizeres ver o alimento que lhe deste. - Mas este ou aquele abriu uma escola, e eu não quero ser inferior. Vil escravo! Abre-se uma escola por capricho ou por acaso? Para tal é preciso ter idade madura, observar determinada vida e ser escolhido pelos deuses. Sem isso, serás sempre um impostor e ímpio. Abres uma loja e tens nela ungüentos, mas lhes desconheces o uso e maneira pela qual se aplicam.

210

Não há naturalmente nenhuma sociedade entre os homens; não intervém os deuses nas coisas humanas, e só há um bem: o prazer. Vede o que nos ensina Epicuro. Ah, infeliz! Valia a pena velar

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tantas noites, valia a pena escrever essas afirmações? Não houvera sido melhor permaneceres no teu leito macio e arrastares a vida de um verme, visto ser a única de que te julgas digno? Segundo a tua doutrina, não são piedade e santidade mais que invenções de homens arrogantes e de sofistas; a justiça é fraqueza; o pudor loucura; não mais pais, filhos, irmãos, cidadãos. Oh, imprudente! Oh, impostor! Orestes, agitado pelas negras fúrias, não é mais furioso do que tu!

211

Assim como não depende do homem dar consentimento ao que parece verdadeiro, tampouco dele depende repelir o que lhe parece bom. O epicurista que afirma não ser o roubo um mal e sim ser surpreendido, roubará, seguramente, se estiver convencido de que ninguém o observa.

212

Vais ao anfiteatro e logo te interessas e desejas que tal ator ou tal atleta seja coroado. Querem os demais seja outro o que alcance a vitória. Aborrece-te essa contradição, por seres pretor e pretenderes que todos cedam. Mas não tem os outros opinião própria? Não tem vontade e o mesmo direito de ofender-se por te opores ao que se lhes afigura justo? Se queres permanecer tranqüilo e jamais encontrar oposição, não desejes a coroa senão a quem seja coroado. Ou se queres ser dono de entregá-la a quem mais te aprouver, celebra jogos em tua casa, e então, com a tua própria autoridade, publicarás: este ou aquele venceu nos jogos píticos, ístmicos ou olímpicos. Em público, porém, não te arrogues o que te não pertence, e deixa em liberdade os sufrágios.

213

Lembra-te de que o desejo das honras, da riqueza, não é o único que nos submete e escraviza, senão também o desejo de repouso, de folga, de viagens, de estudo. Numa palavra, todas as coisas exteriores, quaisquer que sejam, nos fazem escravos quando as estimamos. O verdadeiro dono de si próprio e de nós é aquele que tem o poder de dar-nos e tirar-nos o que queremos. Todo homem, pois, que pretenda ser livre, não deseje nem deteste nada do que depende dos demais; a não ser assim, será necessariamente escravo.

214

Para julgares se é livre um homem, não dês atenção às suas dignidades; porque, ao contrário, quanto mais elevado, mais escravo é. Dirás, acaso: - Vejo que faz tudo quanto quer. - Eu também; mas advirto-te de que é um escravo que goza, durante alguns dias, do privilégio das saturnais, ou cujo dono está ausente. Espera que a festa termine ou que o seu amo regresse, e então me dirás a tua opinião. - Quem é este senhor? Todo homem que tenha bastante poder para dar-lhe ou tirar-lhe o que deseja.

215

Empreendes uma longa jornada com o propósito de assistir aos jogos de Olímpia, e mais ainda com o de admirar a bela estátua de Fídias, e consideras grande desdita morrer, sem o prazer de vê-los; mas alguma vez te pesou não contemplar obras muito superiores às de Fídias, obras que não é mister procurar tão longe, que não custam tantos trabalhos e esforços, e que por toda parte se nos deparam? Alguma vez te ocorrerá pensar que és homem e que o és por teres nascido? Permanecerás desatento ante o espetáculo tão admirável deste universo que a divindade colocou diante dos teus olhos e que te convida a conhecer?

216

Antes de iniciares um empreendimento, observa cuidadosamente os seus precedentes e conseqüências. Se não observares tal procedimento, sentirás imediatamente prazer em tudo quanto fizeres, porque não terás em conta os resultados que pode oferecer-te; mas por fim, surgirá a vergonha, e ficarás cheio de confusão.

217

Queres chegar a ser filósofo; prepara-te, desde já, a ser objeto de mofa, e sabe de antemão que o povo te vaiará e apostrofará, chamando-te filósofo da noite para o dia; ser-te-á atirada ao rosto a tua postura arrogante. Procura, por tua parte, não mostrar tal postura e ater-te às máximas que se te houverem afigurado mais belas e melhores; pensa que se nelas te mantiveres firme, os mesmos que a princípio de ti se riem, te admirarão, enquanto, se cederes aos seus insultos, serás duplamente escarnecido.

218

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Quando empreenderes alguma coisa, seja ela qual for, concentra o espírito e reflete antes em que ação te vais empenhar; se fores banhar-te, focaliza o que de ordinário se passa nos banhos; uns atiram água aos outros; não falta quem bata outro, quem lhe dirija injúrias, quem o roube; depois de pensar nisso, irás com mais segurança ao que pretenderes fazer; mas dize sempre antes: - Quero banhar-me; contudo, quero também conservar a liberdade e independência, verdadeiro patrimônio da minha natureza; o mesmo deves dizer acerca de cada coisa. Por tal meio, se um obstáculo te impedir banhar-te, terás sempre o consolo de dizer: não queria apenas banhar-me, senão também conservar a liberdade e independência, e não a conservaria se me entristecesse.

219

Se se apresentar oportunidade de falar acerca de uma questão de verdadeira importância na presença de ignorantes, guarda-te de fazê-lo, pois há grande perigo em manifestar, imediatamente, o que se não meditou. Se, por acaso, alguém te censurar e disser que nada sabes, se te não molestar nem te ferir tal censura, será certo que começarás a ser filósofo desde tal momento. As ovelhas não vão mostrar aos pastores o que comeram; pelo contrário, depois de bem digerido o pasto, dão-lhes lã e leite. Do mesmo modo, não deves malgastar, entre ignorantes, belas máximas; procura digeri-las e dá-las a conhecer por meio dos teus atos.

220

Um médico visita um enfermo e lhe diz: Tens febre; abstém-te por hoje de tomar qualquer alimento, e não bebas mais que água. O enfermo dá-lhe crédito, agradece-lhe e paga-lhe. Um filósofo diz a um ignorante: Os teus desejos são desenfreados, os teus temores são baixos e servis, professas falsas crenças. O ignorante enfurece-se e sente-se ferido no amor-próprio. De que nasce tal diferença? De o enfermo conhecer o seu mal, e o ignorante não.

221

Parecemo-nos aos avarentos que armazenam grandes provisões e, não obstante, permanecem fracos e descarnados, por deficiência de alimentação. Temos sábios preceitos, profundas máximas; mas é para discorrer delas, e não para praticá-las; as nossas palavras são desmentidas pelas nossas ações. Não somos sequer homens, e queremos passar por filósofos; a carga é para nós demasiadamente grande. É como se um homem que não tivesse força para suportar o peso de duas libras, pretendesse suportar a pedra de um moinho.

222

Não deve o homem alarmar-se facilmente nesta vida. Mandamos um mensageiro saber o que sucede; mas escolhemos mal o nosso homem, porque mandamos um covarde que, ao menor ruído, regressa espantado a nós, temeroso da própria sombra, que o segue.

223

Quando alguém se vangloria de compreender e explicar bem os escritos de Crisipo, dize entre ti: Se Crisipo não houvesse escrito obscuramente, não teria o de que vangloriar-se este homem. Que procuro eu? Conhecer a natureza e segui-la. Busco, pois, quem melhor a explicou; dizem-me que é Crisipo, e leio Crisipo, mas o não compreendo. Busco, pois, um que mo explique; até aqui nada é digno de consideração nem estima. Uma vez que encontrei um bom intérprete, só me resta servir-me dos preceitos que me explicou e pô-los em prática, e é essa a coisa que merece estima, porque se me contento com explicar esse filósofo e admirá-lo, que sou? Um puro gramático, em vez de filósofo, com a única diferença de que, em vez de explicar Homero, explico Crisipo. Quando, portanto, alguém me disser: - Explica-me Crisipo, sentirei grande vergonha e confusão, se não puder mostrar os meus atos em consonância com os seus preceitos.

224

- Componho belíssimos e saborosos diálogos e escrevo livros interessantes. - Meu amigo, preferiria que me dissesses que dominava as paixões, que compunhas os desejos, que seguias a verdade nos juízos. Assegura-me que não temes a prisão, nem o desterro, nem a dor, nem a miséria, nem a morte. Sem isso, por belos que sejam os livros que escreves, podes estar certo de que és apenas um ignorante.

225

A sede do febril é bem diversa da sede do homem são. Este, mal bebeu, está satisfeito e a sede se lhe apazigua. Mas aquele, após breve instante de prazer, sofre terríveis dores de estômago; a água se lhe converte em bílis, vomita-a, retorce-se, e a sede se faz mais insuportável. Semelhante é quem possui riqueza, cargos ou uma formosa esposa, e deixa que a concupiscência lhe invada o

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coração. É essa a sede do febril, de que se originam os ciúmes, as inquietações, as palavras indecorosas, os desejos impuros, os atos obscenos. Meu amigo, tu, que eras antes tão prudente, tão cheio de pudor, que fizeste do pudor e da sabedoria? Em vez de ler as obras de Crisipo e de Zeno, lês apenas livros abomináveis, como os de Aristides. Em vez de admirar Sócrates e Diógenes, e de lhes seguir o exemplo, não admiras nem imitas senão aqueles que corrompem as mulheres. Queres ser belo, esforças-te para isso custe o que custar, tens magníficos trajes, e essências e perfumes te arruinam. Volta em ti, combate contra ti próprio, recobra a posse do teu pudor, da tua dignidade, da tua liberdade; numa palavra, volta a ser homem. Conheci um tempo em que, se te tivessem dito: - Este ou aquele homem fará Epicteto mau, fá-lo-á usar tais trajes e apresentar-se perfumado, houveras voado em meu socorro, e imagino que o terias matado. Não se trata aqui de matar; tão somente deves voltar a ti, falar à tua consciência. Começa por condenar o que tu próprio fizeste, antes que te leve de roldão a torrente.

226

Se a imaginação te apresenta uma imagem voluptuosa, trata de fazer com que te não domine, como te houveste com o resto. Para pensar, toma um prazo, e compara os dois tempos, o do prazer e o do arrependimento que se lhe há de seguir; pensa nas censuras que por fim dirigirás a ti próprio, e opõe-nas à satisfação do vencedor, se resistires. Se vires que já é tempo de desfrutar de tal prazer, cuida de que os seus atrativos e encantos te não desarmem e seduzam, e reflete que é maior prazer ainda a consideração de havê-los vencido.

227

O que é a pureza para a alma, é o asseio para o corpo. A própria natureza to ensina. Como não é possível que, depois de comeres, não fique uma ou outra partícula entre os teus dentes, dá-te água e manda que enxágües a boca, para seres um homem e não um porco. Proporciona-te o banho, o azeite, os lenços e o vitríolo, contra o suor e a gordura que se formam na tua pele. Não te serves deles? Não és, pois, um homem? Não cuidas do teu cavalo, que mandas escovar, do teu cão, que mandas pentear, esfregar e limpar? Não trates, portanto, o teu corpo pior que o teu cão e cavalo; lava-o, limpa-o, não tenhas aversão a isso; ninguém fuja de ti, porque, quem não foge de homem sujo e mal cheiroso? Preferes ser sujo e hediondo? Se assim é, goza tu apenas do teu desleixo. Mas abandona a cidade, vai para um deserto e não envenenes os amigos e vizinhos. És todo imundície, e ousas entrar conosco nos templos, em que é proibido espirrar e cuspir.

228

Abandonas o filho quando está enfermo, porque dizes que o amas e que não tens coragem de assistir à sua enfermidade. Se é esse o efeito da amizade, mister é que todos os que o amam o abandonem: sua mãe, a nutriz, os irmãos, o preceptor; e que fique em mãos de mercenários. Que cegueira, que injustiça, que barbaridade! Seguramente não quererias tu próprio, nas tuas enfermidades, ter amigos que te amassem com tal ternura.

229

A filosofia - afirma-se - é um caminho longo e penoso. Enganas-te, meu amigo; não é tão longo, porque que pode ensinar-te a filosofia? A seguir os deuses, a satisfazer os desejos e a fazer bom uso das tuas opiniões. Os deuses, os desejos, as opiniões, isso é que é longo de explicar; mas os filósofos que te pregam o prazer são breves? Epicuro diz-te que o bem do homem está no corpo. Dize-me, então, o que é a alma, o que é o corpo, o que constitui a nossa essência, e verás que isso não é menos longo.

230

Nada grande se faz de um golpe, nem maçã nem cacho de uvas. Se me dizes: - Quero agora mesmo uma maçã, respondo-te: - Para isso é preciso tempo; espera que nasça, que cresça e amadureça. E queres que o espírito frutifique de uma vez em toda a sua perfeita maturidade. É justo?

231

Quiseras ser coroado nos jogos olímpicos e eu também, na verdade, porque é muito glorioso; mas examina bem antes o que precede tal feito e o que a ele se segue. Podes empreendê-lo após o exame. É mister observar exatamente regras determinadas; não comer mais que o que se pode; abster-se de tudo quanto lisonjeie o gosto; exercitar-se, queira-se ou não, na hora certa, durante o frio e durante o calor; jamais beber líquidos frescos, nem sequer vinho, senão pouquíssimo e com medida; numa palavras, entregar-se sem reserva ao mestre dos exercícios como ao médico; e depois disso, ir lutar, ir aos jogos; ali, ser talvez ferido, destroncar um dos pés, morder a areia, ser atingido uma vez que outra, e, após tudo isso, ser - quem sabe? - vencido. Com tal perspectiva, vê

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se queres, e sê atleta. Se não tomares essa precaução, nada mais farás do que brincar como as crianças que, quase simultaneamente, fingem ser lutadores e gladiadores, e que, depois de tocarem a corneta e despedaçar os brinquedos, representam tragédias. O mesmo se dará contigo; serás atleta, gladiador, filósofo, e no fundo da alma nada serás; mas, como símio, fingirás tudo o que quiseres fazer, por não haveres examinado os teus propósitos e procedido temerariamente e sem circunspecção, guiado apenas pelo teu capricho. Assim, muita gente, vendo um filósofo, ou ouvindo dizer que fala bem, também pretende sê-lo.

232

O príncipe deu paz à terra. Não há mais guerras, não há mais combates, não há mais piratarias. Em qualquer hora, em qualquer tempo, podemos ir sozinhos por onde quer que seja, livremente, sem nenhum temor. Mas o príncipe consegue dar-nos paz com as enfermidades, os naufrágios, os incêndios, os tremores de terra, os descobrimentos? Essa paz só os deuses é que a dão, e a razão é o arauto que a publica.

233

Cedo ou tarde, virá necessariamente a morte surpreender-nos. Em que ocupação nos surpreenderá? O lavrador será surpreendido nos cuidados da lavoura; o jardineiro nos do jardim; o comerciante nos do comércio. E tu, em que cuidados serás surpreendido? No que me diz respeito, desejo com toda a alma que o derradeiro instante me encontre atarefado em governar a vontade, a fim de que, sem turbação, nem obstáculo, nem temor, possa morrer como homem livre, dizendo aos deuses: violei, acaso, os vossos mandamentos? Terei abusado dos dons que me outorgaste? Não vos submeti os meus sentidos, as minhas faculdades, as minhas opiniões? Queixei-me de vós? Acusei a vossa Providência? Estive doente, porque assim o quisestes vós e eu também o quis. Fui pobre, porque tal foi a vossa vontade, e permaneci contente na pobreza. Fiquei na miséria, porque quisestes que eu seja miserável, e dela não desejei sair. Vistes-me triste pelo meu estado? Surpreendestes-me no abatimento e na queixa? Agora mesmo estou pronto a fazer o que vos aprouver mandar-me. O menor sinal de vossa parte é para mim uma ordem inviolável. Quereis que abandone este magnífico espetáculo? Abandoná-lo-ei e vos apresentarei os meus humildes agradecimentos por vos terdes dignado admitir-me a ele, por me haverdes feito ver todas as vossas obras e apresentado aos meus olhos a admirável ordem com a qual dirigis o universo.

234

Recebeste o consulado e és governador de província. Por quem? Por Felício. Asseguro-te que eu não quereria viver, se tivesse de viver pelo prestígio de Felício, e suportar-lhe a soberba e insolência de escravo, porque sei o que é o escravo que se julga feliz e julga cega a sua sorte. - Mas, tu és livre? - Não. Lido por o ser, mas ainda não atingi tão venturoso estado; não me é dado ainda fitar os olhos firme e serenamente nos meus amos; ainda estou agrilhoado ao corpo, e, embora alquebrado, pretendo conservá-lo; confesso a minha fraqueza. Se queres, porém, que te mostre homem verdadeiramente livre, menciono-te Diógenes. - E de que modo chegou a ser livre? - Destruindo, em si, tudo aquilo de que poderia a servidão apossar-se; desligado de tudo, isolado por toda parte, nada possuía; pedíeis-lhe o seu bem-estar, e ele o dava; pedíeis-lhe o pé, dava-o; todo o corpo, dava-o; mas estava fortemente ligado aos deuses e a ninguém cedia em obediência, em respeito, em submissão para com essa soberania. Ali estava a origem da sua liberdade. - Mas, replicas, esse exemplo é o de um único homem, a quem nada ligava ao mundo. - Queres, então, exemplo de homem que não estivesse sozinho? Sócrates tinha mulher e filhos, e não era menos livre que Diógenes, porque, tal qual Diógenes, tudo submetera aos deuses e à obediência devida à lei.

235

Que é que torna formidável um tirano? Os seus soldados, os seus sequazes, armados de espadas e de lanças. Mas um menino, embora dele se aproxime, não o temerá. Por que? Porque desconhece o perigo. Tu, que o conheces, deves desprezá-lo.

236

A alma é um compartimento cheio de água, e as suas opiniões a luz que ilumina esse compartimento. Quando a água está agitada, parece que também a luz o está, embora o não esteja realmente. O mesmo sucede no homem: quando está perturbado e agitado, não se transtornam nem confundem as virtudes; são as suas paixões que estão em movimento; uma vez acalmadas, o todo ficará tranqüilo.

237

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Que fazem os viajantes cautelosos quando ouvem dizer que os caminhos pelos quais hão de passar estão infestados de bandidos? Cuidam de não continuar sozinhos o caminho, e de aguardar a oportunidade de unir-se à comitiva de um embaixador, de um questor ou de um procônsul, e com essa precaução terminam felizmente a viagem. O sábio faz o mesmo no mundo, que está infestado de banditismo, de tirania, de miséria e de calamidades. Como passará por ele, sozinho, sem morrer? Quem esperará? A quem poderá unir-se? A um magistrado, a um cônsul, a um pretor? São estes os seus inimigos mais temíveis. Espera, portanto, uns companheiros seguros, fiéis e incapazes de ser surpreendidos, e esses companheiros são os deuses. Une-se, pois, a eles, caminha com eles e, com felicidade, vence todos os escolhos da vida.

238

Lembra-te do que dizia Eufrates, que se congratulava por haver ocultado por longo tempo que era filósofo; porque, além de estar convencido de que nada fazia para ser visto pelos homens, senão pelos deuses e por si próprio, tinha o consolo de, combatendo sozinho, sozinho também arriscar-se, e não expor o próximo nem a filosofia pelos erros que lhe poderiam ter escapado; e, finalmente, porque experimentava o secreto prazer de haver sido reconhecido como filósofo pelos seus atos, e não pelas suas palavras.

239

Não caluniar, não adular, não queixar-se, não acusar, não falar de si próprio como se fosse alguma coisa são sinais certos de que um homem progride na sabedoria. O homem que se encontra em tais circunstâncias vence os obstáculos que se lhe apresentam; se elogiado, ri-se do elogio às ocultas, e, se repreendido, não faz a sua própria defesa; pelo contrário, como os convalescentes, experimenta as forças e treme ao receio de uma recaída no começo da cura, quando a sua saúde não está ainda inteiramente fortalecida. Dominou os desejos de todo o gênero, e só odeia as coisas que contrariam a natureza do que de nós depende; adota para tudo um ar de submissão; não se entristece, quando o dizem simples e ignorante. Numa palavra, está sempre em guarda contra si próprio, como contra homem que lhe prepara constantes ciladas e é o seu pior inimigo.

240

O que nos prejudica em elevado grau é não sabermos de filosofia outra coisa senão o nome e querermos, não obstante, dar-nos ar de sábios, e pretender, imediatamente, ser úteis ao próximo como se tivéssemos de reformar o mundo. Meu amigo, reforma-te antes, e mostra depois aos outros um homem formado pela filosofia. Comendo e passeando com eles, instrui-os com o teu exemplo; cede aos caprichos deles, suporta-lhes as esquisitices, trata-os com deferência e lhes serás útil.

241

- Para que essa altivez e esse orgulho, mau filósofo? - Espera um pouco, meu amigo. Daqui a pouco serei mais fero; ainda não tenho bastante firmeza nas máximas que aprendi e às quais dei o meu consentimento; ainda temo a fraqueza. Espera que esteja mais forte e verás a minha altivez em toda a sua extensão. A estátua ainda não está terminada, os deuses não lhe deram a última demão. Mas não julgues que, uma vez terminada, seja a sua altivez produzida pelo orgulho. Será uma altivez de segurança e fé na verdade. É orgulho o que observas na cabeça de Júpiter? Não. É firmeza, é estabilidade, é constância; é o que deve achar-se no rosto de um Deus que te diz: Tudo quanto confirmei por meio de um sinal de aprovação jamais engana, é irrevogável e nunca deixa de suceder. Tratarei de imitar esse grande modelo. Ver-me-ás fiel, modesto, valoroso e inacessível à perturbação e às emoções causadas pelos acidentes que se chamam terríveis. - Mas, ver-te-ei imortal, livre da velhice e das enfermidades? Não; verás, porém, que sei morrer, que sei ser velho, que sei ser enfermo; verás os nervos de um filósofo, nervos bem sólidos. - Que nervos? - Desejos nunca frustrados, temores bem dirigidos, que previnem todos os males; movimentos da alma, regulados e convenientes; desígnios formados com reflexão e afirmações jamais seguidos do arrependimento.

242

Escrevemos belas máximas; mas, penetramo-lhes bem o sentido e pusemo-las em prática? Afirmou-se dos lacedemônios que eram leões nas suas terras e símios em Éfeso. Não convém tal a maioria dos filósofos? Somos leões perante o auditório e símios nas obras.

243

Um dos meus discípulos, com inclinação para a filosofia cínica, perguntou-me certa vez que condições devia reunir o filósofo de tal seita, e que era preciso fazer para o ser. Tudo quanto posso dizer-te, respondi-lhe, é que o homem que se atreva a tão grande empreendimento, sem que a ele

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seja chamado pelos deuses, será tão louco como o que entre numa casa, sem o consentimento do dono. - Cobrir-me-ei de farrapos, de uma túnica remendada; atirar-me-ei ao chão, buscarei um bordão e uns alforjes e proferirei injúrias contra todos. - Se julgas que nisso consiste a filosofia tens dela erradíssimo conceito. O filósofo cínico é homem cheio de pudor e sempre exposto à vista dos homens, pois nada faz de indecente; é um enviado dos deuses, para reformar os homens e ensinar-lhes com o seu exemplo que, pobre, nu, sem outro abrigo que não o céu, sem outro leito que não a terra, se pode ser feliz; homem que trata os viciosos, por maiores que sejam, como escravos; homem que, maltratado, batido, ama e abençoa os que o batem e maltratam; homem que nos outros vê filhos, que os admoesta com bondade e ternura, como se fora pai, como se fora irmão e como se fora um ministro dos próprios deuses; homem, enfim, ao qual, apesar da humildade, reis e imperadores não podem fitar sem respeito. Não foi de outra maneira que Alexandre fitou Diógenes.

244

Os hábitos só se destroem com hábitos contrários. Estás acostumado ao prazer? Domina-o com a dor. Vives na preguiça? Trabalha. És iracundo? Sofre com paciência as injúrias. Gostas do vinho? Bebe apenas água. Faze o mesmo com todos os teus hábitos viciosos e verás que não trabalhaste em vão. Mas não te exponhas com leviandade a uma recaída antes de estares bem seguro de ti, porque a luta é desigual, e o que uma vez te venceu pode vencer-te outra vez.

245

As mulheres são comuns, é a lei da natureza, disse a Diógenes um luxurioso surpreendido em adultério. Respondeu-lhe Diógenes: - as iguarias que se servem à mesa também são comuns, mas, uma vez feitas as partes, e distribuídas, é preciso ter perdido toda a vergonha e todo o pudor para se apoderar da do vizinho. O teatro é comum a todos cidadãos, mas, uma vez ocupados todos os lugares, não podes nem deves expulsar o vizinho, para no seu lugar te colocares. As mulheres são comuns, também, mas uma vez distribuídas pelo legislador, uma vez que cada uma tenha o seu marido, é-te lícito não te contentares com a tua e te apoderares da do próximo? Se assim fazes, não és homem, és lobo carniceiro.

246

Sinal certo de grosseria é ocupar-se muito tempo dos cuidados do corpo, assim como exercitar-se, beber, comer à larga, e dedicar muito tempo às demais necessidades físicas. Essas coisas não devem ser o principal, mas o acessório da vida, e devem ser feitas como que de passagem; toda a nossa atenção deve aplicar-se ao espírito.

247

Olha como brincam esses cães; acariciam-se, abraçam-se, contemplam-se. Parecem-te bons amigos. Atira ao meio deles um osso, e verás o que sucede. Assim é a amizade dos irmãos e a dos pais e filhos. Havendo no meio uma terra, um campo, uma mulher, não há nem irmãos, nem filhos.

248

Conheço um homem que, deplorando a sua desdita, foi atirar-se aos pés de Epafrodita, e disse-lhe que era o mais desventurado dentre os homens do mundo, que estava totalmente arruinado, que não tinha o de que viver, pois lhe restavam apenas cinqüenta mil escudos. Que imaginas que lhe disse Epafrodita? Pensas que se riu desse louco? Absolutamente. Respondeu-lhe formalmente: - Ah, infeliz! Por que me não contaste antes o teu infortúnio? Como pudeste suportá-lo sem morrer?

249

Era Felício um tolo a quem todos desdenhavam dirigir a palavra. O príncipe incumbiu-o temporariamente do cuidado dos seus negócios, e eis Felício feito homem importante e de inteligência. Todos diziam: - Felício falou como anjo. Esperemos um pouco, esperemos que o príncipe lhe tire o cuidado dos seus assuntos, e serás novamente tolo.

250

Outro fato semelhante dá perfeita idéia do cortesão. Epafrodita, capitão dos guardas de Nero, tinha um escravo, sapateiro de ofício, mas tão tolo e tão pouco hábil, que não lograva fazer coisa que tivesse proveito. Um criado de Nero o comprou, e o acaso fez com que o escravo chegasse a ser sapateiro do príncipe e, finalmente, seu favorito. A partir do dia seguinte, Epafrodita foi o primeiro em lhe fazer a corte, e ficou encerrado dias seguidos para deliberar assuntos importantes com o homem a quem vendera por inútil de todo.

251

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Não condeno a eloquência nem a arte de bem escrever e falar; condeno que se encare como principal objetivo da vida, havendo outras coisas de mais importância.

252

Um homem de grande consideração, voltando do desterro, e regressando a Roma, veio ver-me. Fez-me um espantoso quadro da vida da corte; assegurou-me que lhe tinha aversão, que não voltaria a ela por nada no mundo e que o pouco tempo que lhe restava de vida pretendia viver em repouso, longe do tumulto e do embaraço dos negócios. Repliquei-lhe que nada faria sem antes repor os pés em Roma, que se esqueceria de todas aquelas belas resoluções, e que, se achasse meio de se aproximar do príncipe, se aproveitaria logo do fato. Retrucou-me: "Epicteto, se ouvires dizer que pus os pés na corte, afirma que sou o maior biltre do mundo." Que aconteceu? A certa distância de Roma, recebeu uma missiva de César. Não se lembrou mais das promessas, e regressou à corte, mais pressuroso do que nunca, cumprindo-se, dessarte, a minha profecia. - Que pretendias que fizesse? - disse-me outro. - Que passasse o resto dos dias na ociosidade e na preguiça? - Meu amigo, achas que o filósofo, o homem que cuida de si próprio, é mais preguiçoso que o cortesão? Há ocupações mais importantes e sérias.

253

Há criaturas tão cegas que não tomariam por bom ferreiro nem o próprio Vulcano, se ele não usasse o gorro de forjador. Que leviandade, pois, queixar-se alguém de não ser reconhecido por um juiz pouco inteligente! Sócrates era desconhecido da maior parte dos homens. Iam pedir-lhe que os conduzisse a um filósofo, e ele os conduzia. Queixou-se alguma vez de o não tomarem por filósofo? Não. Pelo contrário, orgulhava-se de ser filósofo sem o parecer. Quem o foi mais do que ele? Procura imitá-lo e ser filósofo pelos teus atos.

254

Podemos perceber a intenção da natureza pelas coisas em que nos diferenciamos; por exemplo, quando o servo do teu vizinho quebra uma taça ou qualquer outra coisa, não deixas de dizer, para o consolar, que é apenas um acidente comuníssimo. Sabe, pois, que quando quebrares uma taça, tens de ficar tão tranqüilo como se se quebrasse a do teu vizinho. Leva esta máxima às coisas mais importantes. Quando o filho ou a mulher do próximo morre, não há homem que não diga tratar-se de uma lei da humanidade. Mas quando quem morre é o filho ou a mulher dele, só se ouvem gemidos, gritos e lágrimas. Mister nos é lembrar-nos do estado em que permanecemos ao saber das desventuras do próximo.

255

Não vos solicito cartas de recomendação; guardai-as para os covardes e os tíbios, e vede um modelo: - Recomendo-vos este cadáver, este odre de sangue, que ainda se não firmou. Vede como deve ser recomendado o homem que não possui suficiente inteligência para pensar que apenas dele depende ser desventurado ou feliz.

256

Prova-me que tens pudor, fidelidade, constância e que não és apenas um tonel vazio. Não esperarei que me confies o teu segredo para contar-te o meu. Porque, quem não teme perturbar um recipiente tão sereno? E quem recusa um depositário que é, ao mesmo tempo, o nosso fiel conselheiro? Quem não recebe com imenso prazer o carinhoso confidente que participa de todas as nossas fraquezas e nos ajuda a transportar a nossa pesada carga?

257

Que te importa saber o que te há de matar, se a febre, a espada, o mar, a peste ou o tirano? Todos os caminhos que conduzem ao inferno são iguais. Um dos mais curtos é aquele pelo qual te envia o tirano. Jamais viste o tirano matar um homem durante seis meses, ao passo que a febre o mata durante anos inteiros.

258

Assim como numa longa viagem, quando o barco entra no porto, tratas de prover-te de água, e, pelo caminho, compras mariscos ou setas, mas sempre com o pensamento no barco, e voltando a todo instante a cabeça, para verificar se o piloto te chama, e se assim for, corres para ele, temeroso de que, se te fizeres esperar, te arremessem ao barco de mãos e pés amarrados, como se foras um animal selvagem, assim também, na vida; se em vez de um marisco ou de uma seta, recebes mulher e filho, os aceitas. Mas se o piloto te chama, tens de abandonar tudo e correr para o

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barco, sem olhares para trás. Se és velho, não te afastes muito do barco, para, quando o piloto te chame, estares em condições de seguí-lo.

259

Se amo o corpo, se amo a riqueza, estou perdido. Eis-me escravo. Dei a conhecer o ponto pelo qual posso ser atacado.

260

Sabia muito bem Apolo que Laio não obedeceria ao seu oráculo, mas nem por isso deixou de lhe predizer as desditas que o ameaçavam; a bondade dos deuses não deixa de advertir os homens. Essa fonte de verdade jorra constantemente, mas os homens são sempre rebeldes, desobedientes e incrédulos.

261

Deve o homem, nesta vida, ser espectador da sua essência e das obras da Divindade, intérprete e panegirista. Infeliz, que começas e acabas por onde acabam e começam os irracionais, vivendo sem sentir, acaba, pois, por onde em ti acabou a divindade. Acabou dando-te uma alma inteligente e capaz de conhecê-la. Serve-te dessa alma, não saias de tão admirável espetáculo com só o entrever. Observa, conhece, elogia, bendize.

262

A Divindade fez-se testemunha viva das suas bondades e, ao prodigá-las, pergunta: - Não é certo que não há bem nem mal fora da vontade? Deixei, por acaso, nu um homem? Coloquei sob o poder de cada um o que pode ser-lhe útil? Que respondes? - Padeço de uma insuportável calamidade; ninguém cuida de mim, ninguém me ajuda, todos me insultam, todos me caluniam. Sou a escória dos homens. - Assim é que reconheces a honra que a Divindade te dispensou fazendo-te testemunha da sua glória e de tão grandes verdades? Fazia-te testemunha da sua bondade, da sua verdade, da sua justiça, e te converteste em seu acusador!

263

Entre os gladiadores de César, vêem-se todos os dias alguns no desespero, por não combaterem, fazendo promessas aos deuses para saírem dessa ociosidade, e pedindo, como graça maior, que sejam enviados ao anfiteatro. Mas entre nós, ninguém se encontra que deseje a ocasião de demonstrar o seu amor aos deuses.

264

A escola do filósofo é como o gabinete do médico. Não se vai lá para sentir prazer, mas sim uma dor saudável. Um leva o ombro aberto, outro uma inflamação, este uma fístula, aquele uma chaga na cabeça. O prazer poderá curá-los?

265

Para que nascem as espigas? Não é para amadurecerem e, uma vez maduras, ser segadas? Ninguém as deixa sobre os talos, como se estivessem consagradas. Se tivessem sentimento, pensas que fariam promessas para que nunca fossem cortadas? Não, sem dúvida; considerariam uma maldição nunca chegar, para elas, a colheita. O mesmo sucede aos homens: seria uma maldição, para eles, viver sempre. Não morrer, para o homem, é para a espiga jamais estar madura e nunca ser cortada.

266

Se demonstrares ao mau que não faz o que quer, senão o contrário, corrigi-lo-ás; mas se lho não demonstrares, não te queixes dele, senão de ti próprio.

267

Se queres avançar no estudo da sabedoria, não temas, nas exterioridades, passar por imbecil e insensato.

268

- Como sou infeliz! Não tenho tempo de estudar nem de ler! - Meu amigo, por que estudas? Por mera curiosidade? Se assim é, bem mísero és efetivamente. Mas o estudo deve ser apenas um preparo para a boa vida. Começa, pois, desde hoje a bem viver; em toda parte podes cumprir com o teu dever, e as ocasiões instruem melhor que os livros.

269

Page 31: Máximas de epicteto

Não te impeçam as censuras nem os motejos de teus amigos mudar de vida. Preferes permanecer vicioso e ser-lhes agradável, a ser-lhes desagradável e praticar a virtude?

270

É ser ingrato e tímido sustentar que não existe diferença entre a beleza e a feiura. Como pode ser tão agradável Tersites como Aquiles? Como podem agradar igualmente uma horrível mulher e Helena? É grosseiro e ímpio. Linguagem de gente que desconhece a natureza das coisas. Não é negando a beleza que dela se foge; podemos conhecê-la e resistir-lhe.

271

A cada tentação pensa, no íntimo: eis um grande combate, eis uma ação completamente divina, trata-se da liberdade, da felicidade, da inocência; lembra-te dos deuses, chama-os em teu auxílio, e eles combaterão por ti. Invocas Cáster e Pólux numa tempestade; pois bem, a tentação é, para ti, uma tempestade mais perigosa.

272

O sol não espera que lhe supliquem difundir luz e calor. Imita-o e faze todo o bem que puderes, sem esperar que to implorem.

273

Lembra-te sempre do que disse Eumeu, em Homero, a Ulisses, que o não reconhecia, e lhe agradecia os bons tratos: - Não me é lícito menosprezar nem maltratar um forasteiro que vem a minha casa; nem o seria, ainda que estivesse em condição mais vil e desprezível que aquela em que vos encontrais, porque os forasteiros e os pobres são enviados de Deus. - Fala da mesma maneira a teu pai, a teu irmão e ao teu próximo: não me é lícito portar-me mal convosco, nem mo seria, ainda que fosse mais miserável o vosso estado, porque sois enviados de Deus.

274

Por que caminhas tão erecto como se levasses no corpo uma árvore? - Quero ser admirado por todos os transeuntes e ouvir dizer à direita e à esquerda: olhai, um grande filósofo. - Quem são, pois, essas pessoas a cuja admiração aspiras? Não disseste repetidas vezes, tu próprio, que eram loucas? Como queres ser, agora, o primeiro entre elas?

275

Um dia respondeu Diógenes a um homem que lhe pedia cartas de recomendação: - Meu amigo, aquele a quem pretendes que eu escreva em teu favor verá logo, sem o meu auxílio, que és um homem, e se for conhecedor, verá, mais, se és bom ou mau; se não for bom conhecedor, ainda que eu lhe escreva cem cartas, não chegará a conhecer-te. Será melhor que procures parecer-te à moeda de ouro, que se recomenda por si própria a todos os que sabem distinguir o verdadeiro do falso.

276

Quando um corvo te prediz alguma coisa com o seu grasnar, crês que é um deus que te fala, e não um corvo. Do mesmo modo, quando um filósofo te adverte, crê que é um deus quem te adverte, e não um filósofo.

277

Começa as tuas ações e todas as tuas empresas com esta prece: - conduzi-me, grande Júpiter, e vós, poderoso Destino, aonde eu tiver de ir. Seguir-vos-ei com todo o meu coração, e sem demora.

278

Assim como, quando passeias, cuida de não pisar uma pedra e torcer um pé, cuida de não ferir-te a parte principal de ti próprio e a que te conduz. Se em cada ação da nossa vida observássemos esse preceito, estaríamos sempre certos de nos não enganar.

279

Não te chames filósofo em nenhuma ocasião, nem exibas perante os ignorantes belas máximas, mas faze tudo quanto essas máximas prescrevem. Por exemplo, num festim, não digas como se deve comer, mas come segundo se deve e lembra-te de que, em tudo e por tudo, Sócrates evitava qualquer ostentação e fausto; os jovens suplicavam-lhe os recomendasse a um filósofo, e ele o fazia, sofrendo com inteira paciência o pouco que dele faziam.

280

Page 32: Máximas de epicteto

As nossas austeridades e os nossos exercícios físicos não devem ser nem extraordinários nem incríveis; de outro modo, seremos bateleiros e não filósofos.

281

Não ouças a leitura de obras de certas pessoas; mas se, uma ou outra vez, a ouvires, conserva nela a gravidade, a atenção e a doçura, sem mesclá-las a nenhuma mostra de pesar ou de tédio.

282

Por que são os ignorantes mais fortes que vós nas disputas e, por fim, vos reduzem ao silêncio? - Porque estão profundamente persuadidos das suas falsas máximas, e vós apenas debilmente da verdade das vossas. Estas não partem do coração; nascem apenas nos lábios; por isso é que são fracas e mortiças. Expõem ao público desprezo essa mísera virtude que não cessais de alardear, e fundem-se como cera ao sol. Afastai-vos, pois, do sol, enquanto tiverdes opiniões de cera.

283

Se quisermos ser verdadeiros filósofos, tratemos antes de fazer que a nossa vontade se ajuste e acomode aos fatos consumados, para estarmos sempre contentes com o que suceder e o que não suceder. Assim, teremos a grande vantagem de jamais deixar de obter o que desejarmos e jamais cair no que motiva os nossos temores. Passaremos a vida com o próximo sem temor nem perturbação, e conservaremos todos os nossos laços naturais, cumprindo perfeitamente o nosso dever de pais, de filhos, de irmãos, de cidadãos, de esposos, de vizinhos, de associados, de magistrados e de súbditos.

284

Não queiras passar por sábio, e se chegares a adquirir fama de tal, no conceito de alguns, desconfia de ti próprio. Sabe que não é fácil conservar a tua vontade segundo a natureza, conservando as coisas exteriores, necessariamente terás de descuidar uma coisa ou outra.

285

Acabas de ralhar com os teus criados, de semear em tua casa a desordem e de perturbar e escandalizar os vizinhos, e depois vens, como homem prudente, ouvir um filósofo e pensar acerca dos deveres do homem e da natureza das virtudes. Todos esses preceitos te são inúteis, porque, se não vens ouvi-los com a disposição necessária para tanto, regressas como vieste.

286

Que vida é a tua? Depois de haveres dormido bem, levantas-te à hora que queres, bocejas, distrais-te e lavas o rosto. Em seguida, ou te apossas de um péssimo livro, para matar o tempo, ou escreves uma frioleira, para que te admirem. Sais, então, e vais fazer visitas, passear e divertir-te. Voltas, tomas um banho, comes e deita-te. Não revelarei os mistérios das trevas, que são fáceis de adivinhar. Com esses costumes de epicurista e folgazão luxurioso, falas como Zeno e Sócrates. Meu caro, muda de costumes ou de linguagem. Quem usurpa o título de cidadão romano é severamente punido, e os que usurpam o de filósofo ficarão impunes? Não é possível, pois isso contraria a imutável lei dos deuses, que estabelece a proporcionalidade entre crime e pena.

287

A escolha das amizades não é indiferente. Se com freqüência privas com um vicioso, a não ser que sejas muito forte, é mais fácil temer que te corrompa que esperar que o corrijas. Pois que há tanto perigo no comércio com os ignorantes, é preciso nele agir com muita prudência e sabedoria.

288

Tens febre e te queixas, porque dizes que não podes estudar. Para que estudas, então? Não é para chegares a ser sofrido, constante, firme? Procura ser assim também na febre, e não saberás pouco. A febre é uma parte da vida, como o passeio, as viagens, e é ainda mais útil, porque põe à prova o prudente e lhe dá a ver o progresso que nele se verificou.

289

Se puderes, não proves o prazer do amor antes do casamento, e se o provares, que seja ao menos segundo a lei; mas não sejas severo com os que te não imitem, não os repreenda com rancor nem tampouco te vanglories, a cada instante, da tua continência.

290

Page 33: Máximas de epicteto

Não desanimes, e imita os mestres de exercícios, que, quando um discípulo cai ao chão, mandam se levante e lute de novo. Dize coisa semelhante ao teu espírito. Nada é mais dócil e flexível que o espírito do homem: basta-lhe querer, mas se fores uma vez fraco, estarás perdido, pois te não levantarás nunca mais na vida.

291

Todas as coisas apresentam dois aspectos: um que as torna fáceis de suportar, e outro muito difíceis. Se teu irmão te faz injustiça, não consideres a injustiça que te faz, porque não poderás suportá-la; considera isso sob outro ponto de vista, isto é, sob o aspecto que te apresenta um irmão, um homem que tenha sido criado contigo, e tal consideração te tornará a injúria suportável.

292

Queres saber se dois homens são amigos? Não perguntes se são irmãos, se foram educados juntos, se tiveram os mesmos mestres e preceptores; pergunta apenas em que fazem consistir a sua intimidade. Se nas coisas que não dependem de nós, guarda-te de afirmar que são amigos; não o são, nem tampouco fiéis, constantes e livres; mas se fundam a intimidade nas coisas que dependem de nós e em sãos juízos, não te preocupe saber se são pai e filho, ou irmãos, nem se se conhecem há muito tempo, e afirma, sem temor, que são amigos, porque, é possível não haver amizade onde há felicidade e comunicação de tudo quanto é belo e honesto?

293

Não existe no mundo coisa a que qualquer animal esteja tão fortemente ligado como à própria utilidade; tudo quanto o priva do que lhe é útil, quer seja pai, irmão, filho, amigo, tudo lhe é insuportável, porque ama apenas a sua utilidade, que lhe serve de pai, de irmão, de filho, de amigo, de pátria e até de Deus.

294

Quase sempre se medem os deveres pelos diferentes laços de união. Trata-se de teu pai? Deves cuidar dele, obedecer-lhe em tudo e sofrer com paciência as suas injúrias e os seus maus tratos. Mas é um mau pai. E então? A natureza ligou-te necessariamente a um bom pai? Não, mas ligou-te a um pai. Teu irmão é injusto contigo? Conserva a despeito disso o caráter de irmão, e não penses no que faz, senão no que deves fazer, e no estado em que chegará a encontrar-se a tua liberdade, se fizeres o que a natureza ordena que faças, por que outro alguém te não ofenderá nem ferirá, se não quiseres, e não serás ferido nem ofendido senão quando julgares sê-lo. Por tal meio, estarás sempre satisfeito com o teu vizinho, o teu concidadão, o teu superior, se te habituares a ter presentes, constantemente, esses laços de união.

295

Os homens ergueram templos e altares a Triptolemo, por ter descoberto um alimento menos selvagem e grosseiro que o que antes dele se usava. Quem dentre nós ergue um altar no coração e abençoa os que encontraram a verdade e de nossa alma arrojaram a ignorância e o erro?

296

O que perturba os homens não são as coisas, mas as opiniões que delas tem. Por exemplo, a morte não é um mal; pelo menos foi essa a opinião de Sócrates. A idéia que da morte se tem é que dela faz um mal. Quando estamos cabisbaixos, perturbados ou tristes, não acusemos ninguém, a não ser a nós próprios, isto é, às nossas opiniões.

297

Acerca de cada um dos objetos que se te apresentem, não te esqueças de pensar, reconcentrando o espírito, e de indagar que virtude possuis para fazer bom uso desse objeto. Se encontrares uma formosa mulher, acharás em ti uma virtude: a continência; se for uma dor, um trabalho, acharás o valor; se forem injúrias, afrontas, acharás a resignação e a paciência. Se de tal maneira te habituares a exibir perante cada acidente a virtude que a natureza te deu para combatê-lo, serás sempre vencedor.

298

Afirmas que são incompatíveis a confiança e a precaução. É um erro. Faze recair a precaução sobre todas as coisas que dependem de ti e a confiança sobre as que de ti não dependem. Serás, assim, confiado e precavido, porque, evitando com prudência os verdadeiros males, não temerás os falsos com que, talvez, sejas ameaçado.

299

Page 34: Máximas de epicteto

- Quero sentar-me no anfiteatro, no banco dos senadores. - Asseguro-te que farás um mau papel e te sentirás incomodado. - Não poderei ver comodamente os jogos em outra parte? - Não os vejas; que necessidade tens de ver os jogos? Agora, se o que te obriga a ir é a ânsia de te sentares nesse banco, espera que todos saiam. Quando o espetáculo tiver terminado, sentar-te-ás no banco desejado, e nele estarás à vontade.

300

É impossível que eu não cometa erros; mas é muito possível que, continuamente, cuide de os não cometer. E essa atenção continuada muito contribuirá para lhes diminuir o número.

301

Quando vires um homem curioso e diligente em coisas que dele não dependem, podes ter a certeza de que é falador e jamais saberá guardar um segredo; não haverá necessidade de aproximar-lhe pez fervente nem roda, para que fale. O olhar de uma mulher, a menor complacência de um cortesão, a esperança de uma dignidade, de um cargo, a perspectiva de um legado e mil coisas semelhantes lhe arrancarão, sem trabalho, o teu segredo.

302

Queixas-te da solidão. A que chamas estar sozinho? Estar separado do comércio dos homens e privado do seu auxílio? Reflete que, bastas vezes, não estamos menos sozinhos em Roma, e no meio dos parentes, dos amigos, dos vizinhos e de um bando de escravos. O que rompe a solidão não é a vida do homem, mas a sua fidelidade e virtude. Deus está contente consigo próprio, e em si acha tudo; procura parecer-te a ele, visto que isto está em teu poder. Fala contigo próprio; quantas coisas não tens que dizer-te e perguntar-te! Para que precisas dos outros? Estás privado de todo auxílio; não tens pais, nem irmãos, nem amigos? Tens, em troca, um pai imortal que não deixa de cuidar de ti, e de prestar todos os auxílios necessários.

303

Assim como a menor distração de um piloto pode fazer perecer um barco, a menor negligência da nossa parte, a menor falta de atenção, pode fazer-nos perder todo o progresso realizado no caminho da sabedoria. Vigiemos, pois; o que temos de conservar é mais precioso que um barco carregado de bens. É o pudor, é a fidelidade, a constância, a submissão e os mandamentos dos deuses, a isenção de dor, de medo, numa palavra, a verdadeira liberdade.

304

Nada temas, e não haverá para ti homem terrível nem formidável, assim como não há cavalo terrível para outro cavalo, nem abelha para outra abelha. Não vês que os teus desejos e temores são a guarda que os tiranos mantêm dentro de ti, como numa fortaleza, para escravizar-te? Expulsa essa guarda, recobra a posse do teu forte, e serás livre.

305

- Vil filósofo! diz-me um grão senhor que se preza de livre e independente; - ousas chamar-me escravo, a mim, cujos antepassados foram livres, a mim, que sou senador, que fui cônsul e que sou favorito do príncipe? - Grande senador, provai-me que os vossos antepassados não sofreram a mesma servidão que vós. Mas concedo-o. Foram generosos, e vós sois concupiscente. Foram frugais, e vós sois glutão. - Que tem que ver isso com a liberdade? - Muito, porque não chamareis livre ao que faz o contrário do que quer. - Mas eu faço tudo quanto quero, e ninguém pode forçar-me a vontade, a não ser o Imperador, que é meu senhor, que é senhor de tudo. - Grande cônsul, acabamos de ouvir dos vossos lábios a confissão de que há um senhor que vos pode forçar a vontade. Se é senhor de todo o mundo, isso vos proporciona o triste consolo de ser escravo numa grande casa e no meio de milhões de escravos.

306

A proteção de um Príncipe, e ainda a de um grande senhor, basta para fazer-nos viver tranqüilamente e a coberto de qualquer alarme. Consideramos os deuses protetores, curadores, pais, e, assim mesmo, não bastam para nos dissiparem os pesares, as inquietações e os temores.

307

Tudo quanto sucede no mundo louva a Providência. Para o compreender, basta ser varão inteligente e reconhecido.

308

Page 35: Máximas de epicteto

Se a Divindade, que fez as cores, não tivesse criado olhos que pudessem apreciá-las, de que serviriam elas? E se houvesse criado as cores e os olhos, sem criar a luz, que utilidade teriam umas e outros? Quem fez, pois, essas três coisas, umas para as outras? Quem é o autor dessa maravilhosa aliança? A Divindade. Existe, pois, uma Providência.

309

Que fazem os homens? Tremem pelo que temem ou choram pelo que sofrem. Essas inquietações e essas lágrimas geram a impiedade.

310

A Divindade deu-te armas com que resistir a todos os sucessos, por horríveis que sejam. Deu-te a grandeza de alma, a força, a paciência, a constância. Serve-te delas; se o não fazes, confessa que o não sabes fazer, apesar de te haverem sido entregues.

311

Somos tão ingratos que, acerca das mesmas maravilhas que a Providência realizou em nosso favor, longe de lhe agradecer, a acusamos, e dela nos queixamos. Não obstante, se tivéssemos um coração sensível e reconhecido, por pouco que o fosse, a menor obra da Natureza bastaria para fazer-nos sentir a Providência e o cuidado que nos dispensa.

312

Em que empregam o tempo os meninos quando estão sozinhos? Brincam, amassam barro e areia e fazem castelos e palácios, que logo destroem. Assim, nunca lhes falta distração. O que eles fazem loucamente, efeito da sua infância, não o farás tu, racionalmente, e por efeito da sabedoria? Por toda parte dispomos de areia e barro. Em nós próprios temos, portanto, muito que destruir. Logo, se estamos sozinhos, não nos queixemos.

313

Quando vês alguém cheio de dor e vertendo amargas lágrimas pela morte ou pela partida do filho, ou pela perda de um bem, cuida de que te não seduza a imaginação, persuadindo-te de que tal homem padece verdadeiros males em virtude das coisas exteriores, e faze em ti próprio a distinção de que o que o aflige não é o acidente que lhe sobreveio, senão a opinião que dele tem formada. Se preciso, não recuses chorar com ele e partilhar da sua dor; mas não leves a compaixão ao extremo de te afligires demasiadamente.

314

Por uma liberdade que é falsa, expõem-se os homens aos maiores perigos: atiram-se ao mar, precipitam-se das mais elevadas torres. Tem-se visto cidades inteiras morrer. E tu, por uma liberdade verdadeira, segura, não ousarás enfrentar nenhum trabalho?

315

Há pequenos escravos e grandes escravos. Os pequenos são aqueles que se fazem escravos por coisas à toa, por dinheiro, por pequenos serviços. Grandes são os que se fazem escravos pelo consulado, por governos de província. Diante desses, vês os que levam as achas e os feixes, que são escravos de escravos.

316

Não queres pertencer ao número dos escravos? Rompe os grilhões, liberta-te, não abrigues despeito nem temor. Aristides, Epaminondas e Licurgo não foram chamados, respectivamente, Justo, Libertador e Deus, pelas riquezas, nem pelos escravos, senão por haverem dado a liberdade à Grécia.

317

Estamos quase todos na vida como os escravos fugitivos nos espetáculos; esses escravos sentem enorme prazer ao ver a pompa dos jogos, admiram os atores de uma tragédia, mas vivem constantemente inquietos, olham para cá e para lá; se ouvem nomear o amo, enchem-se de medo e tentam a fuga. Somos como eles: admiramos as maravilhas da Natureza, cujo espetáculo nos encanta, mas estamos sempre alarmados, e, quando se nomeia o nosso amo, estamos perdidos. Quem é o nosso amo? Não é homem, porque o homem não pode ser amo do homem; é a morte, a vida, o prazer, a dor, a pobreza, a riqueza. Se o próprio César vier a mim sem tal cortejo, permanecerei sereno e firme, mas se vir com os seus satélites, gritando e ameaçando, hei de temê-

Page 36: Máximas de epicteto

lo. Não sou o escravo fugitivo que se encontrou com o dono? Se o não temo, estarei plenamente livre, pois é sinal de que não tenho outro amo senão a mim próprio.

318

Um tirano me diz: - Sou amo, tudo posso. Ah! Que podes? Podes dar-me um claro entendimento? Podes tirar-me a liberdade? Que podes, então? Num barco, não dependes, acaso, do piloto? No teu carro, não dependes do cocheiro? - Todo o mundo me adula e me faz a côrte. - Mas essa côrte te é feita como homem? Demonstra-me que assim és considerado, que todos querem parecer-te contigo, ser teus discípulos, como de Sócrates. - Mas posso mandar que te seja cortado o pescoço. - Dizes bem; havia-me esquecido de que é preciso fazer-te a côrte, como a fazemos aos deuses nocivos, e oferecer-te sacrifícios, como à febre. Ela não tem, em Roma, um altar? Tu o mereces mais que ela, porque és pior. Seja como for, ainda que os teus satélites e toda essa tua pompa espantem e perturbem a via pública, nada do que é exterior conseguirá perturbar-me. Podes ameaçar-me, mas sou livre. - Tu livre? Como? - A própria Divindade me libertou. Pensas que deixará que seu filho caia em teu poder? És senhor do meu cadáver; toma-o, se queres, mas a tua cólera não me atinge o espírito.

319

Quem pode impedir-te de seguir a verdade conhecida, e forçar-te a aprovar o que é falso? Tens um livre arbítrio, do qual ninguém pode despojar-te. Se a tua liberdade pudesse ser forçada, a Divindade não teria por ti o cuidado de um bom pai e o que por ti tem na verdade.

320

- E há uma Providência? dizia um epicurista; sinto no nariz um grãozinho de pó que me incomoda incessantemente. Vil escravo! Para que tens as mãos? Não é para que possas assoar-te? - Mas, não seria melhor se não houvesse grãos de pó? - E não seria melhor que te assoasses do que acusar a Providência?

321

Se julgas que a ventura consiste em residir em Roma ou em Atenas, estás perdido, porque, uma vez que delas estejas ausente, sofrerás, e quando regressares experimentarás uma alegria que te será funesta. Desconfia destas exclamações: Roma é uma bela cidade! Não há outra Atenas! Só há uma ventura, e é mais bela que todas as cidades. Em Roma e Atenas é preciso adular e fazer a côrte a muita gente. Não deverias estar contente por poder trocar pela ventura tantas sensaborias?

322

Os homens desculpam os erros que cometem, como tem sucedido a mim próprio. Tendo-me Rufo repreendido por um erro, - E então, respondi-lhe, queimei, por acaso, o Capitólio? - Vil escravo, replicou-me, haver queimado o Capitólio é haver errado tanto quanto podias nessa ocasião!

323

Tens febre, mas se a tens, como deves, tens tudo o que podes ter melhor com ela. Que é ter a febre como se deve? Não queixar-se dos deuses nem dos homens, não alarmar-se com a idéia do que pode acontecer, esperar valorosamente a morte, não regozijar-se excessivamente quando o médico diz que há melhora, e não afligir-se quando diz que se está pior. Pois, que é estar pior? Aproximar-se do termo e do instante em que a alma se há de separar do corpo. Chamas a essa separação um mal? Ainda que a morte não sobrevenha hoje, deixará, por acaso, de vir amanhã? E contigo terminará o mundo? Permanece, pois, tranqüilo tanto na febre como na saúde.

324

Há noções comuns em que convêm todos os homens. As disputas, as sedições, as guerras, de que procedem? Da aplicação dessas noções comuns a cada caso particular. A justiça e a santidade são preferíveis a todas as coisas; ninguém duvida de tal. Mas, é justo? É santo? Eis aqui o motivo de controvérsia. Arrojemos para longe de nós a ignorância e aprendamos a aplicar essas noções a cada caso particular; não haverá mais disputas nem guerras. Aquiles e Agamenon estarão de acordo.

325

Se tens por hábito levar uma vida frugal e tratar com dureza o corpo, não te rejubiles por isso, e se bebes apenas água não digas, por qualquer motivo, que apenas água bebes. Se queres exercitar-te na paciência e na tolerância para contigo e não para com os outros, não abraces as estátuas, mas na sede mais ardente toma água fresca na boca, atira-a para longe, e não digas nada a ninguém.

326

Page 37: Máximas de epicteto

Veio um homem consultar-me acerca do propósito que nutria de entrar na irmandade dos sacerdotes de Augusto, em Nicópolis. Eis, disse-lhe eu, um gosto bem inútil. - Mas o meu nome se perpetuará, pois será inscrito nos registros. - Inscreve-o numa pedra e durará muito mais. Além do mais, quem te conhecerá, fora dos muros de Nicópolis? - Levarei uma coroa de ouro. - Se é uma ambição, coroa por coroa, leva uma de rosas; pesar-te-á menos e te assentará melhor.

327

Um homem te confiou o seu segredo, e crês que é honesto, justo e político confiar-lhe também o teu; és um tonto, um parvo. Lembra-te do que viste fazer com freqüência. Um soldado, trajado de labrego, vai sentar-se perto de um cidadão, e após alguns preâmbulos, começa a falar mal de César. O cidadão, cativado por tal franqueza, e julgando ter o segredo do soldado por prenda de fidelidade, abre-lhe o coração, queixa-se do Príncipe, e o soldado, revelando-se o que é realmente, o prende. Eis o que sucede todos os dias. Aquele que te confiou o teu segredo, freqüentemente só tem a máscara e o traje de homem honrado. Aliás, isso não é confiança, é intemperança de língua: o que te diz ao ouvido, di-lo ao primeiro que passa. É um tonel aberto, e não guardará o teu segredo, como não guardou o dele.

328

Quando afirmas que te corrigirás amanhã, é como se dissesses que hoje queres ser imprudente, luxurioso, covarde, iracundo, invejoso, interessado e pérfido. - Mas amanhã serei outro homem. Por que não hoje? Começa, hoje, por preparar-te para amanhã; de outro modo, ficarás sempre no mesmo estado.

329

- A saúde é um bem, a enfermidade é um mal. Erro. Usar bem a saúde é um bem, usá-la mal é um mal; usar bem a enfermidade é um bem; usá-la mal é um mal. De tudo se tira o bem, até da própria morte. Meneceu, filho de Creonte, não atingiu um grande bem, quando se sacrificou pela pátria? Comprovou a piedade, a magnanimidade, a fidelidade, o valor. Se tivesse tido apego à vida, tudo houvera perdido, e demonstrado os vícios contrários: ingratidão, impiedade, pusilanimidade, infidelidade, covardia. Para serdes livres, abri os olhos à verdade.

330

Se bem considerares o modo de pensar do verdadeiro filósofo e as luzes do seu entendimento, encontrá-los-ás bem esclarecido. Argos, com todos os seus olhos, te parecerá, ao seu lado, um cego.

331

Examino os homens, o que dizem, o que fazem, não para criticá-los nem para rir-me deles, senão para perguntar-me: cometo os mesmos erros? Quando me corrigirei? Há pouco, eu procedia da mesma maneira. E se não peco do mesmo modo é por mercê dos deuses.

332

Diz Epicuro que as crianças não devem ser alimentadas nem educadas, pois não há nada mais contrário ao verdadeiro bem que, para ele, consiste no prazer. Pobre Epicuro! Quer que sejamos mais desnaturados que as feras, as quais nunca abandonam os filhos? A caridade dos pais com os filhos é tão natural, que, estou certo, se teu pai e tua mãe houvessem sabido, por um oráculo, que um dia sustentarias tão insensata afirmação, nem por isso houveram deixado de educar-te.

333

Ocupas no mundo um lugar eminente e te convertes em perseguidor e tirano do próximo. Esqueces-te de quem és e a quem mandas? Mandas a teus irmãos. - Comprei o meu cargo, as minhas prerrogativas, os meus direitos. Infeliz; todos os teus pensamentos são de lama e areia, só dás atenção às leis humanas, e, na tua soberba, te esqueces das divinas.

334

Tens pena dos cegos, dos coxos. Por que a não tens dos maus? São-no, por sua desdita, assim como são coxos e cegos aqueles.

335

Lembra-te de que não é, de modo nenhum, uma necessidade ir com freqüência aos teatros e aos jogos públicos, e se algumas vezes vais, não favoreças nenhum partido e conserva o teu favor e interesse para ti próprio, isto é, contenta-te com o que suceder e satisfaze-te com ser a vitória do vencedor, porque, por tal meio, jamais te verás envergonhado nem contrariado. Guarda-te,

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também, de prorromper em aclamações ou gargalhadas, e de fazer exagerados movimentos, e quando te retirares, não fales longamente de tudo quanto viste, que isso te não reformará os costumes nem tampouco te fará mais honrado; essas dissertações sempre dão uma pobre idéia do que a elas se entrega, pois indicam que somente o espetáculo é que lhe cativa a atenção.

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Se alguém se banha antes da hora devida, não digas que faz mal em banhar-se, senão que faz mal em banhar-se antes do tempo. Se alguém bebe muito vinho, não digas que faz mal em beber, senão que bebe demasiadamente; pois, como podes saber se faz mal, sem antes saberes o que deve fazer? Procede com parcimônia ao julgar qualquer coisa: é difícil que, ao fazê-lo, não erres noutra.

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Se um filósofo desasseado e horrível, como o criminoso que sai de uma prisão, me diz belas máximas, como poderá atrair-me? Como poderá fazer-me amar uma filosofia que leva um varão a tal estado? Não conseguirei dominar-me e prestar-lhe atenção, e, por nada deste mundo, dele me aproximarei. Cuidemos, pois, do asseio e da decência. Digo o mesmo dos discípulos. Por mim, prefiro que um jovem, amante da filosofia, venha ouvir-me bem asseado e vestido decentemente, a que venha sujo, com os cabelos engordurados e mal penteados, pois disso deduzo que possui uma idéia do belo e pende para o formal e honesto. Cuida da beleza que conhece, e pode esperar-se que cuidará igualmente da que lhe derem a conhecer, da beleza interior de que é preciso saber usar e a cujo lado é apenas fealdade a beleza do corpo. Mas ao varão que aparece sujo, hediondo, coberto de gordura e imundície, mal penteados os cabelos e a barba a lhe cair até a cintura, que posso dizer-lhe para lhe dar a conhecer a beleza da qual não tem idéia? É um porco, e preferirá sempre o atoleiro à mais bela fonte.

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Um tocador de alaúde, mal empunha o instrumento, examina as cordas desafinadas e, sem trabalho, as afina. Para viver bem no comércio dos homens, deve o sábio possuir a arte de fazer com eles o que faz o músico com as cordas: examinar os que discordam, fazê-los concordar e entre eles estabelecer a harmonia. Foi o que fez Sócrates.

339

Não há ciência que não seja desprezada pelos ignorantes. Será a filosofia a única exceção a tal regra? Logrará fugir às suas censuras e aos seus juízos errôneos?

340

Se resisto a uma mulher formosa, disposta a conceder-me um favor, a mim próprio digo: "Muito bem, Epicteto; isso vale mais que a refutação do mais subtil sofisma." Se resisto aos seus elogios e lhe repilo as carícias, posso gabar-me de tal vitória muito mais que de triunfar dos mais difíceis silogismos. Mas, como resistir a tão poderosa tentação? Querendo comprazer a mim próprio e ser agradável aos olhos dos deuses; querendo, enfim, conservar a pureza do corpo e da alma.

341

Meu amigo, és homem ou mulher? Se és homem, mostra-te tal, e não nos apresente um monstro. Que pretendia dizer Sócrates, quando rogava a Alcibíades que se fizesse mais belo? Aconselhava-o a descuidar da beleza do corpo para trabalhar apenas em proveito da beleza da alma. - Devo, pois, ser sujo e desasseado? - De modo nenhum, mas é preciso que o teu asseio seja varonil e digno de homem.

342

Consiste o caráter do ignorante em nada esperar de si próprio, e sim dos outros. O do filósofo consiste em esperar de si próprio todo o seu mal e todo o seu bem.

343

Não é freqüente ver realizado tudo quanto promete a qualidade de homem. É um animal mortal, dotado de razão, e por ela é que se diferencia dos outros animais. Quando se afasta da razão, oculta-se o homem e surge o animal.

344

Que faz um homem que persegue a mulher do próximo? Pisa o pudor, a fidelidade, infringe as leis da amizade, da sociedade, todas as mais santas leis; não pode ser considerado amigo, nem vizinho,

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nem cidadão. Nem serve, tampouco, para escravo. É como barco aberto, que só serve para mergulhar.

345

Enquanto as mulheres são jovens, não cessam os maridos de lhes elogiar a beleza e chamar-lhes queridas e formosas. Vendo as mulheres que os maridos as consideram apenas pela beleza física, nos adornos é que concentram todas as esperanças. Por conseguinte, nada é mais útil e necessário que o esforço em lhes demonstrar que serão honradas e respeitadas pela prudência, pelo pudor e pela modéstia.

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A primeira parte, e a mais necessária, da filosofia é a que trata da prática dos preceitos, como o de que se não deve mentir; a segunda é a que apresenta as demonstrações do porque se não há de mentir, e a terceira a que comprova tais demonstrações, o motivo por que são demonstrações e o que constitui nelas a verdade e a certeza, explicando o que é demonstração, conseqüência, oposição, verdade, falsidade. Esta terceira parte é necessária à segunda; a segunda à primeira, e a primeira é a mais necessária, e aquela na qual nos devemos deter e fixar. Mas alteramos essa ordem, e nos detemos inteiramente na terceira; todo o nosso trabalho, todo o nosso esforço é para ela, para a demonstração teórica, e, em troca, descuidamos inteiramente a primeira, que é a realização e a prática. Resulta, assim, que mentimos; mas, em compensação, estamos prontos, a todo instante, para demonstrar que se não deve mentir.

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Por que te chamas estóico? Assume o nome que convém aos teus atos, e não te adornes do que te não convém e nada mais faz que desonrar-te. Por toda parte se me antolham homens que enaltecem as máximas do estoicismo, mas não vejo estóicos. Mostra-me um estóico, um apenas. Um estóico, isto é, um homem que na enfermidade se ache ditoso, que ditoso se ache no perigo, e ditoso também no meio do desprezo e da calúnia. Se não podes mostrar-me esse estóico acabado e perfeito, mostra-me um que comece a sê-lo. Mostra-me um homem sempre em conformidade com a vontade divina, que jamais se queixe dos deuses, nem dos homens, que nunca veja frustrados os seus desejos, que não seja lastimado por ninguém, nem saiba o que é inveja, cólera, soberba; que, com um corpo mortal, sustente um secreto comércio com os deuses e que anseie por despojar-se da veste mortal e a eles unir-se em espírito.

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Nem as vitórias dos jogos olímpicos, nem as que se alcançam nas batalhas, tornam o homem feliz. As túnicas que o tornam ditoso são as que logra contra si próprio. São combates as tentações e provas. Foste vencido uma, duas, muitas vezes; combate ainda. Se, por fim, chegares a vencer, serás ditoso pelo resto da vida, como se sempre houvesses vencido.

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Quando a imaginação tentar escravizar-te com uma idéia luxuriosa, não te deixes arrastar, sem dizer-lhe: Espera que examine o que me apresentas. Não lhe permitas passar adiante e forjar imagens mais sedutoras, pois, se a deixares, estarás perdido e ela te aprisionará. Em vez dessas pinturas horríveis, obriga-a a te apresentar imagens mais ditosas, mais belas, mais nobres. É o meio de não ser vencido.

350

Por que não julgam os homens a filosofia como julgam as demais artes? Um obreiro termina o seu trabalho de modo imperfeito, e somente a ele é que se atribui a culpa; diz-se que é um mau obreiro, mas que a sua arte não cai no descrédito. Em troca, um filósofo comete um erro e todos se guardam de dizer: "Este não é filósofo", mas dizem: "Vede o que são os filósofos; a filosofia para nada serve." De que procede tal injustiça? De, por pouco que o seja, ser qualquer arte mais conhecida pelos homens do que a filosofia, e de os não cegarem as paixões, tratando-se de artes que os lisonjeiam e lhes são manifestamente úteis, enquanto a filosofia os combate e fere nos seus erros e vícios.

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Basta, para ser músico, comprar uma partitura, um violino e um arco? Basta, para ser aristocrata, ter um brasão e uma mesa? Pois tampouco, basta, para ser filósofo, uma grande barba, uma túnica e um bordão. O hábito é conveniente à arte, mas o nome quem o dá é a arte e não o hábito.

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Assim como ordena a medicina mudança de ares aos que padecem de enfermidades crônicas, prescreve a filosofia a mesma coisa aos que possuem vícios inveterados, só fortificáveis pelos lugares em que soem viver.

353

Quando sofreres uma tentação, não adies para o dia seguinte combatê-la; o dia seguinte virá, e o mesmo te sucederá. Assim, de amanhã em amanhã, resultará, não somente seres vencido, como também caíres numa insensibilidade que te impedirá perceber que pecas, e em ti experimentarás a verdade do verso de Hesíodo: Infeliz de quem dorme no amanhã!

FIM