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1 Medicina Tradicional Chinesa – Idéias e Conceitos Lilian M. Jacques Área Interdisciplinar de História da Ciência e da Técnica e Epistemologia COPPE/UFRJ E-mail: [email protected] Trabalhos publicados em anais de evento JACQUES, L. M. Medicina Tradicional Chinesa - idéias e Conceitos In: 8. Seminário Nacional da Ciência e da Tecnologia, 2001, Rio de Janeiro. Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia - Caderno de Resumos. , 2001. Resumo Este artigo aborda o campo da Medicina Tradicional Chinesa identificando a origem e as características das idéias metafísicas que o inspiram. O momento da sistematização com a compilação das idéias fundamentais nos cânones. Sua constituição enquanto sistema médico com doutrina médica, morfologia, fisiologia, etiologia, semiologia, diagnose e terapêutica. Introdução Este trabalho examina os conceitos, as doutrinas filosóficas, as teorias e o modelo do sistema médico conhecido como Medicina Tradicional Chinesa cujo convívio com a Medicina Ocidental Contemporânea se intensificou de forma marcante em todo o mundo a partir de meados do século XX. Duas visões distintas da Medicina Tradicional Chinesa no que se refere à situação desse campo de conhecimento no contexto da História e Filosofia da Ciência são apresentadas: as idéias de Joseph Needham que refletem o positivismo normal na historiografia técnica dos anos 50 e a visão histórica e sistemática de Paul Unschuld. A análise da cosmovisão e do modelo teórico da Medicina Tradicional Chinesa inspira-se na proposta epistemológica de Rom Harré de explicitar as assunções empíricas e metafísicas presentes de forma subliminal nas descrições e explicações científicas com o propósito de identificar a linhagem de filiação dos conceitos utilizados para formular os problemas. São abordados aspectos das doutrinas médicas, morfologia e fisiologia humana, do sistema de diagnose e a da terapêutica, que em conjunto definem a Medicina Tradicional Chinesa como um sistema médico O sistema de Canais e Pontos de Acupuntura é compreendido como um sistema de representação sobre o qual se pode operar por meio dos estímulos exercidos por agulhas ou digitopressão nos pontos de acupuntura para induzir a secreção de substâncias químicas e influenciar a estabilidade de certos circuitos neurais com base na plasticidade neural. 1. Breve Histórico da Medicina Tradicional Chinesa Todo sistema médico possui um objetivo comum que consiste em buscar restabelecer a saúde das pessoas ou pelo menos minimizar os efeitos das doenças sobre elas. Para que esse objetivo seja alcançado é necessário o desempenho de uma atividade, o ato ou a arte de tratar doentes, por um agente treinado específicamente para o desempenho dessa função historicamente prestigiosa. O treinamento

Medicina Tradicional Chinesa

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Ideias e conceitos

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Medicina Tradicional Chinesa – Idéias e Conceitos Lilian M. Jacques

Área Interdisciplinar de História da Ciência e da Técnica e Epistemologia COPPE/UFRJ

E-mail: [email protected]

Trabalhos publicados em anais de evento JACQUES, L. M. Medicina Tradicional Chinesa - idéias e Conceitos In: 8. Seminário Nacional da Ciência e da Tecnologia, 2001, Rio de Janeiro. Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia - Caderno de Resumos. , 2001.

Resumo Este artigo aborda o campo da Medicina Tradicional Chinesa identificando a origem e as características das idéias metafísicas que o inspiram. O momento da sistematização com a compilação das idéias fundamentais nos cânones. Sua constituição enquanto sistema médico com doutrina médica, morfologia, fisiologia, etiologia, semiologia, diagnose e terapêutica.

Introdução Este trabalho examina os conceitos, as doutrinas filosóficas, as teorias e o modelo do sistema médico conhecido como Medicina Tradicional Chinesa cujo convívio com a Medicina Ocidental Contemporânea se intensificou de forma marcante em todo o mundo a partir de meados do século XX. Duas visões distintas da Medicina Tradicional Chinesa no que se refere à situação desse campo de conhecimento no contexto da História e Filosofia da Ciência são apresentadas: as idéias de Joseph Needham que refletem o positivismo normal na historiografia técnica dos anos 50 e a visão histórica e sistemática de Paul Unschuld. A análise da cosmovisão e do modelo teórico da Medicina Tradicional Chinesa inspira-se na proposta epistemológica de Rom Harré de explicitar as assunções empíricas e metafísicas presentes de forma subliminal nas descrições e explicações científicas com o propósito de identificar a linhagem de filiação dos conceitos utilizados para formular os problemas. São abordados aspectos das doutrinas médicas, morfologia e fisiologia humana, do sistema de diagnose e a da terapêutica, que em conjunto definem a Medicina Tradicional Chinesa como um sistema médico O sistema de Canais e Pontos de Acupuntura é compreendido como um sistema de representação sobre o qual se pode operar por meio dos estímulos exercidos por agulhas ou digitopressão nos pontos de acupuntura para induzir a secreção de substâncias químicas e influenciar a estabilidade de certos circuitos neurais com base na plasticidade neural. 1. Breve Histórico da Medicina Tradicional Chinesa

Todo sistema médico possui um objetivo comum que consiste em buscar restabelecer a saúde das pessoas ou pelo menos minimizar os efeitos das doenças sobre elas. Para que esse objetivo seja alcançado é necessário o desempenho de uma atividade, o ato ou a arte de tratar doentes, por um agente treinado específicamente para o desempenho dessa função historicamente prestigiosa. O treinamento

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desse agente pressupõe a existência de um conhecimento ou ciência das causas do adoecer e dos recursos para tratamento. Esse conhecimento desenvolve-se dentro de um contexto social histórico e específico, ancorado num sistema metafísico que influencia a direção na qual os conceitos são construídos, articulados e disponibilizados para orientar operações de ordem terapêutica no que se refere à arte de curar e aos instrumentos usados para curar. O sistema médico que chamamos de Medicina Tradicional Chinesa refere-se à medicina praticada ainda hoje na China dentro do contexto institucional. O caráter sofisticado e cumulativo dessa tradição surpreendeu os estudiosos ocidentais cuja história da medicina ignorava ou desqualificava como “práticas populares” a experiência de civilizações não européias . Seus recursos terapêuticos mais comuns, acupuntura e massagem terapêutica, penetraram a cultura ocidental de maneira marcante depois da Segunda Guerra Mundial. Sómente nos Estados Unidos estima-se que ao final do ano de 2001, as escolas que oferecem programas de treinamento de 2 a 3 anos em Medicina Tradicional Chinesa estejam formando 2000 profissionais por ano. No Brasil existem vários institutos privados de ensino de um ou mais ramos da medicina chinesa , sobretudo no Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Há um grande número de profissionais acupunturistas e uma disputa política entre médicos, fisioterapeutas e outros profissionais de saúde pelo direito de usar o método na prática clínica. O sistema de saúde pública começa absorver profissionais de acupuntura e massagem terapêutica em algums hospitais e postos de saúde. Contudo trabalhos desenvolvidos em instituições de pesquisa são poucos. O Instituto de Medicina Social da UERJ e a Fundação Oswaldo Cruz são exemplos de instituições que abordam esse campo. A origem da Medicina Tradicional Chinesa remonta a períodos muito antigos mas um momento importante ocorre entre 481a .c. e 221a . c., no período conhecido como “Chou tardio” ou “Estados Guerreiros“, época da dissolução do feudalismo chinês que cederá lugar à unificação do Império sob uma autoridade central. Evoluem parcialmente nesse período os conceitos da “filosofia natural chinesa”1 que irão influenciar toda a ciência chinesa: “a doutrina do Yin/Yang” , a “ Teoria das Cinco Fases, a idéia de “Qi”, o Taoísmo e o Confucionismo. Os “Estados Guerreiros” chegam ao fim com a unificação da China sob Shi-Huang-di ( 221 a . c. – 206 a . c.) que implementa um agressivo programa de reformas no sentido de eliminar quaisquer vestígios da velha ordem feudal. Os senhores de terra foram expropriados e sua posição assumida por oficiais de altas patentes que poderiam ser substituidos a qualquer momento pelo governo central. A homogeneização cultural foi imposta com padronização da escrita, dos pesos e medidas e até mesmo das bitolas dos veículos que utilizavam as estradas públicas. Todos os escritos históricos exceto os de medicina foram queimados e as críticas proibidas. A morte de Shih Huang-ti apenas onze anos após fundar a primeira dinastia imperial da China reacende a oposição dos circulos feudais, ocorrem revoltas de trabalhadores e escravos, até que a fundação a dinastia Han em 202 a.c. inaugura o grande desenvolvimento da civilização chinesa. A vida social e religiosa deixa de ser controlada pelos nobres e uma classe de pessoas educadas passa a viver independente de riqueza ou favores. A abertura da “Estrada da Seda” facilita intercâmbios comerciais e culturais. A dinastia Han (206 a . c. 220 d. c.) marca o período da sistematização da medicina chinesa. Os principais documentos do período Han são os achados arqueológicos de Ma Wang-dui (168 a.c.), quatorze manuscritos sobre os primórdios da medicina chinesa descobertos na década de 70 em escavações de túmulos antigos na província de Hunan. O Tratado de Medicina Interna do Imperador

1 Aceitamos o uso da expressão “filosofia natural chinesa“ por Unschuld devido ao caráter eminentemente qualitativo da ciência chinesa semelhante ao caráter qualitativo da ciência aristotélica . É importante frisar no entanto que a visão chinesa é diferente da Grécia Clássica como ficará evidente neste trabalho.

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Amarelo, “Huang Di Nei Jing”, e o “Nan Jing” , o Clássico das Questões Difíceis, compilados na passagem do séc II a. c. para I a. c. . O “Nei Jing” é o cânone da Medicina Chinesa e representa o ponto onde as idéias fundamentais sobre adoecimento e tratamento alcançam a maturidade nesse sistema. A medicina torna-se um campo distinto da atividade humana. É escrito na forma de diálogo entre Huang Di, o lendário imperador amarelo e seu ministro Qi Bo. Consiste em duas partes: Su Wen ou “Questões fundamentais” que elucida aspectos da teoria médica e Ling Shu ou “Eixo Espiritual, que é um manual de acupuntura. Nessa época praticava-se a dissecção na China e as estruturas internas eram conhecidas, não obstante o livro descreve o trajeto dos 12 canais principais de acupuntura que não constituem estruturas anatômicas no sentido das que conhecemos. O “Nan Jing” integra pela primeira vez todos os aspectos da saúde nas doutrinas do Yin/Yang e das Cinco Fases que examinaremos nas próximas seções deste trabalho. Nesse tratado o sistema de canais de acupuntura já apresenta os doze canais principais, o vaso da concepção Ren Mai e vaso governador Du Mai. A escolha dos pontos de acupuntura faz-se baseada na idéia da circulação de Qi, categoria da filosofia natural chinesa que nós ocidentais traduzimos como energia. Um aspecto importante da semiologia chinesa , o estudo dos pulsos , conhecido como “pulsologia chinesa” também é abordado. Na Medicina Tradicional Chinesa tal como é compreendida hoje, o conceito de saúde está vinculado ao conceito de equilíbrio energético. Por equilíbrio energético entende-se o equilíbrio entre Yin e Yang no organismo que é garantido pelo livre circular do Qi. O organismo é concebido como uma unidade que compreende os níveis físico, psíquico, emocional e espiritual, em relação dinâmica com o meio ambiente. Quando ocorre uma desorganização ou bloqueio do fluxo de Qi no organismo as proporções entre Yin e Yang se alteram, o equilíbrio energético é rompido e aparece a doença. As causas desse desquilíbrio podem ser internas ou externas. As causas internas estão relacionadas com o padrão psico-emocional da pessoa, com a deficiência da essência ou Qi ancestral, a energia herdada dos pais, e com desequilíbrios anteriores que tenham enfraquecido os “Zang – Fu”, órgãos e vísceras. As causas externas referem-se a fatores climáticos, alimentação, atividade física e intelectual em deficiência ou excesso e a entidades da medicina ocidental como bactérias e vírus que certamente não estavam presentes no sistema clássico. Para restabelecer a saúde é necessário restaurar o equilíbrio entre Yin e Yang no organismo regulando o fluxo de Qi nos canais de energia . Essa é a função da Medicina Tradicional Chinesa que utiliza vários métodos de tratamento, selecionados de acordo com as características da doença : Acupuntura, Fitoterapia, Dietética, Massagem e Exercícios. 2. Duas Visões sobre a Ciência na China A primeira visão nos é legada por Joseph Needham, bioquímico, embriologista e historiador da ciência. O autor interessou-se pelas tradições científicas do extremo oriente, sobretudo da China, no final dos anos 30 e deu partida a um projeto monumental que incluia no início 7 volumes sobre Ciência e Civilização na China, mas que desdobrou-se em 22 volumes além da criação de um instituto de referência para a pesquisa da ciência do leste asiático em Cambridge, Inglaterra. Para a realização dos volumes individuais Needham reuniu colaboradores com talentos especiais e conhecimentos científicos e técnicos detalhados, na maior parte estudiosos e especialistas chineses, porém sua própria visão sobre a história da ciência é comunicada de modo inequívoco em toda a obra : “Ao longo dessa série de volumes assume-se que exista apenas uma Ciência da Natureza, abordada mais ou menos de perto, construída mais ou menos com sucesso e continuidade , por vários grupos da humanidade de tempos em tempos. Isso significa que é possível estabelecer uma continuidade absoluta entre o início da astronomia e da medicina na Babilônia , o avançar do conhecimento natural na China medieval, Índia, Islam e no mundo clássico Ocidental , até a ruptura do

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Renascimento europeu tardio quando, como tem sido dito, o mais eficiente método para descobrir foi ele próprio descoberto”.2 O autor teoriza sobre as causas que teriam impedido a civilização chinesa de experimentar o equivalente à Revolução Científica do séc XVII, posto que do séc I a.c. até o séc XV d.c. o desenvolvimento nas ciências, tecnologia e medicina na China foi muito superior ao da Europa Ocidental e certos sistemas de idéias como o Taoismo e o Neo-Confucionismo pareciam mais congruentes com a ciência moderna do que qualquer sistema europeu, incluindo a teologia cristã. Além disso invenções e descobertas fundamentais para a transformação do mundo medieval no mundo moderno, tais como o papel , a imprensa, a pólvora e a bússola, apenas para mencionar as mais conhecidas, são originárias da China. Contudo a Revolução Científica não acontece na China e sim na Europa Ocidental no séc XVII . A explicação segundo Needham reside num paradoxo: o feudalismo militar aristocrático europeu parecia mais forte do que sistema feudal chinês de caráter fundamentalmente burocrático mas na realidade era mais fraco porque menos racional; das suas entranhas emerge a burguesia mercantil gerando as condições para a transformação do modo de produção feudal em modo de produção capitalista que acompanhado pela Reforma Protestante completa o “pacote” que viabiliza a Revolução Científica na Europa ocidental . Dessa forma, a não transformação da sociedade chinesa a despeito de sua produção de múltiplas descobertas e invenções, deveu-se a um “equilíbrio homeostático”3 atribuído à racionalidade intrínseca no jogo de forças sociais, que a tornava impermeável à influência das inovações que ela própria introduzia, garantindo assim a continuidade de um modo de operar que converteu-se num entrave ao desenvolvimento científico. A sociedade européia do séc XV e XVI ao contrário da chinesa apresentava uma inestabilidade intrínseca que a tornou vulnerável à penetração da nova visão de mundo esboçada por Copernico, desenvolvida por Kepler e Galileu e completada por Newton. A imagem de mundo medieval que decorria da Escolástica , síntese da filosofia natural aristotélica com o cristianismo foi então substituída na Europa . O método científico inaugurado mostrou-se eficiente na produção de um conhecimento expresso num idioma universal, a linguagem quantitativa precisa da matemática que o liberou do “selo étnico” 4 das sociedades que o precederam. A segunda visão é a de Paul Unschuld, uma das principais autoridades mundiais em História da Medicina Chinesa com inúmeros trabalhos de referência publicados, membro do Instituto de Estudos Avançados em Berlim e diretor do Instituto para a História da Medicina da Universidade de Munique. O autor critica a visão de Needham e Lu Gwei-djen’s baseada na verdade inquestionável do conhecimento científico moderno, que privilegia os aspectos da medicina chinesa importantes para os médicos praticantes ocidentais ou os que representam uma forma embrionária do pensamento médico da atualidade. Acredita que esses autores negligenciam pensamentos e fatos históricos da medicina chinesa que são irreconciliáveis com o que eles consideram científico, protocientífico ou racional. Unschuld também chama atenção para a limitação da abordagem da “medicina como um sistema cultural“ presente na antropologia médica atual. Considera o conceito “sistema cultural” vago quando aplicado a civilizações complexas, com grande diversidade intracultural como a civilização chinesa, onde nos últimos 2000 encontra-se anos uma variedade de sistemas terapêuticos baseados em

2 Joseph Needham, Lu Gwei-Djen. Science and Civilization in China . Vol 5 , part 2, section 33. Cambridge University Press , Great Britain, 1974, p. xxi. 3 Joseph Needham. La gran titulación - Ciência y sociedad em Oriente y Occidente . Alianza Editorial, p. 216. 4 Expressão utilizada por Needham no prefácio do livro de Robert Temple, The Genius of China – 3,000 years of science, discovery and invention.

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diferentes conceitos, que em parte se sobrepõem e em parte são antagônicos mas que são igualmente representativos da cultura chinesa. Na sua investigação, Unschuld pretende tratar não apenas das origens e do desenvolvimento dos diversos conceitos de sistema de saúde na China ao longo do tempo, dentro do contexto socioeconômico e socioideológico, mas também da pluralidade e das mudanças desses conceitos. Sugere uma abordagem histórica e sistemática, baseada nas fontes mais antigas disponíveis, já que elas são abundantes na China, datando de 1500 a. c. até os dias de hoje. Nesse período de 3500 anos o autor identifica sete sistemas conceituais maiores no âmbito da Medicina Chinesa sem que tenham ocorrido numa sucessão linear simples : terapia oracular, medicina demoníaca, cura religiosa, terapia pragmática com uso de drogas, medicina Budista, medicina da correspondência sistemática e a medicina ocidental. O sistema que Unschuld identifica como Medicina da Correspondência Sistemática é o que nos interessa e que chamamos de Medicina Tradicional Chinesa. 3. Cosmovisão e Idéias Metafísicas da Medicina Tradicional Chinesa A cosmovisão dos chineses que repercute na Medicina Tradicional Chinesa baseia-se numa metafísica cujas categorias centrais, Tao e Yin/Yang, são diferentes daquelas que orientaram a formação do pensamento ocidental moderno. Os pensadores chineses não tentaram formular leis para entender o Universo, nem tampouco veneraram deuses, no entanto seu pensamento demonstrou um alto poder civilizatório como atestam os costumes, artes, caligrafia , medicina e sabedoria. Marcel Granet elucida essas categorias centrais: “As idéias conjuntas de Ordem, Totalidade e Eficácia dominam o pensamento dos chineses. Eles não se preocupam em distinguir reinos da Natureza . Toda realidade é total em si . Tudo no Universo é como o Universo. A matéria e o espírito não aparecem como dois mundos opostos . Não se confere ao homem um lugar à parte ... a não ser na medida em que , possuindo uma posição na sociedade , são dignos de colaborar na manutenção da ordem social, fundamento e modelo da ordem universal. ... Essas idéias coadunam-se com uma representação do Mundo que se caracteriza não pelo antropocentrismo , mas pela predominância da noção de autoridade social. A ordenação do Universo é efeito de uma Virtude principesca, que as artes e a ciência devem ser empregadas para prover. Uma regulamentação protocolar é válida para o pensamento e para a vida; o reino da etiqueta é universal. Tudo lhe está submetido na ordem física e na ordem moral, que os chineses se recusam a distinguir de modo contrastante como uma ordem determinística e ordem de liberdade. Eles não concebem a idéia de Lei. Tanto para as coisas quanto para os homens, propõem apenas Modelos.” 5 A idéia de Totalidade é referida pela palavra Tao que significa caminho, via central, eixo . O Tao não é concebido como um princípio primordial mas como uma categoria concreta que dirige as articulações de todos os processos exercendo um poder regulador. No entanto não é considerado uma força ou substância, não é em si mesmo uma causa primária , não é um criador. É apenas uma sublimação da Eficácia e da Ordem que ordena as ações e torna o mundo inteligível. O Tao é constituído por dois aspectos polares, complementares, alternantes e intercambiantes, o Yin e o Yang . Porém não é a soma deles e sim o regulador de sua alternância cíclica. Granet diz sobre esses aspectos fundamentais do pensamento chinês: “O Yin e o Yang não podem ser definidos nem como puras entidades lógicas, nem como simples princípios cosmogônicos. Não são nem substâncias, nem forças, nem gêneros. São tudo isso, indistintamente, para o pensamento comum, e nenhum técnico jamais os considera sob um dessses aspectos , à exclusão dos outros. ... Totalmente dominado pela idéia de eficácia , o pensamento chinês move-se num mundo de símbolos feito de correspondências e oposições. Quando se quer agir ou compreender, basta pô-lo em funcionamento.”6

5 Marcel Granet , O Pensamento Chinês , 1a. ed. , Rio de Janeiro, Contraponto, 1997, p. 211. 6 Granet,op. cit. , p. 99.

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Yin refere-se ao “ lado da montanha que está na sombra” e yang ao “ lado da montanha que está no sol”. Entretanto como esclarece Granet, os termos yin e yang não retém um significado específico como forças ou substâncias , servindo apenas como emblemas para caracterizar duas linhas de correspondência onde os atributos de cada elemento determinam sua natureza Yin ou Yang indicando a linha a que pertencem. Na linha de correspondência Yin estão arrolados os fenômenos mais materiais, mais densos, mais profundos, mais frios, mais inertes, mais escuros. Na linha Yang os fenômenos mais imateriais, mais voláteis, mais quentes, mais claros e com mais movimento. (fig1e fig 2 )

Céu – símbolo do Yang Terra – símbolo do Yin

Fig 1 “Tai Qi, princípio Yin & Yang efetor do Tao” (Requena: 100)

Fig 2: “Símbolos do Yin & Yang” (Requena: 100)

O conhecido modelo Tai Qi (fig 1) representa a interação rítmica do Yin e do Yang em interpenetração mútua segundo uma dinâmica onde os padrões cíclicos constituem ao mesmo tempo princípios de de ordenação e transformação de todas as relações. A noção de mutação confere movimento ao modelo. Os chineses ao analisar a mutação, verificam que ela própria é invariável. Sendo onipresente e absoluta , a mutação é imutável. Ante a sua universalidade não se pode falar de algo ou alguém que muda mas deve-se compreender os modos e estágios da mutação para fluir de acordo com as circunstâncias, evitando o atrito e escapando ao desgaste. Essas idéias metafísicas oriundas da sabedoria chinesa parecem encampar os três indivíduos referidos por Harré no cap. 4 do livro As Filosofias da Ciência : o indivíduo Parmenideano , permanente e imutável; o efêmero indivíduo Heracliteano e o indivíduo Aristotélico cuja permanência ainda que provisória outorga-lhe potencial para mudança sem que perca a identidade. A emergência e ascensão dessas idéias na filosofia natural chinesa marca um dos períodos mais decisivos da história intelectual da China. Paul Unschuld chama de “paradigma da correspondência sistemática” o pensamento de tipo indutivo associado à noção da correspondência sistemática entre todos os fenômenos, que encontra-se na base da literatura teórico-médica da China como sugere a doutrina do Yin/Yang e a “Teoria das Cinco Fases”, a segunda doutrina da filosofia natural chinesa que influenciou profundamente a medicina da correspondência sistemática. O conceito de “correspondência sistemática” baseia-se no princípio de que fenômenos do mundo visível e invisível guardam uma relação de dependência mútua por meio de sua associação com certas linhas de correspondência. Unschuld define o “ paradigma das correspondências” como a combinação

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de dois conjuntos de conceitos cuja relação conceitual estreita justifica uma denominação comum. A manipulação de um elemento numa linha específica de correspondência pode influenciar outros elementos na mesma linha. Para Unschuld dois paradigmas básicos forneceram o “núcleo duro”7 para todos os sistemas terapêuticos da medicina chinesa. O primeiro é “ o paradigma da relação de causa e efeito entre fenômenos correspondentes” que implica em que qualquer mudança num determinado fenômeno é passível de afetar outros fenômenos correspondentes que compartilhem o mesmo princípio subjacente. O segundo é o “paradigma da relação de causa e efeito entre fenômenos não correspondentes” que sob condições específicas exercem influências mútuas. Na Medicina Tradicional Chinesa a causalidade por meio da correspondência sistemática traduz-se na correspondência pelo Yin/Yang e na correspondência pelas Cinco Fases. Na teoria das Cinco Fases, atribuída a Tsou Yen ( + - 350 a.c. – 270 a.c ), os fenômenos naturais e conceitos abstratos não aparecem arrolados em duas mas sim em cinco linhas de correspondência. Os termos usados como emblemas não são abstratos como YinYang porém sim cinco fenômenos naturais tangíveis : madeira, fogo, terra, metal e água. As traduções para o português costumam usar o termo elemento ou movimento para designar cada fase. O termo elemento deve ser evitado pois não reflete a noção dinâmica do termo chinês que designa as Cinco Fases - wu-hsing. Tampouco deve-se considerar essa teoria semelhante à teoria dos quatro elementos dos gregos. No “paradigma da relação de causa e efeito entre fenômenos não correspondentes” a causalidade é dada pela influência de fenômenos naturais, alimentos e bebidas, influências materiais sutis , parasitas, vírus e bactérias. Outra idéia da metafísica chinesa muito importante para a medicina chinesa é o conceito de Qi. Essa idéia muito antiga aparece expressa por meio de um ideograma que representa vapores ascendendo da cozedura do arroz para formar nuvens acima. Seu significado tem sido reinterpretado ao longo do tempo como força vital, energia vital, energia sutil, energia, pneuma . A idéia de Qi como um todo indiferenciado precursor de tudo na natureza, tanto de seres animados como inanimados, influenciou os autores da medicina chinesa para quem todos os fenômenos compartilham qualidades e relações baseados na sua origem comum no Qi. Todas as coisas refletem o Qi e têm ressonância com o Qi ainda que não estejam conectadas no tempo ou no espaço. O corpo humano para os chineses reflete não apenas o cosmo e a natureza mas também as interações pessoais e sociais. O Qi nos organismos vivos têm dois aspectos primários: a nutrição energética do corpo e da mente e sua atuação em todas as atividades funcionais do corpo. Na literatura médica os aspectos secundários do Qi são definidos como: Qi prénatal e Qi pósnatal . O primeiro abarca as qualidades essenciais de constituição física, vitalidade e inteligência, herdada da união das essencias dos pais no momento da fertilização. Acredita-se que esse Qi fique armazenado no sistema energético relacionado com o rim (e glândulas suprarenais), e que seu montante seja finito, devendo ser cultivado com práticas saudáveis para que a vida seja longa. O Qi pósnatal é o Qi essencial obtido pelos nutrientes e pelo ar que se respira. Quanto mais se absorve esse Qi menos se depleta o Qi prénatal. Para isso é necessário que a alimentação e o ar sejam de boa qualidade e que as funções respiratória e digestiva sejam otimizadas. Quando o Qi prénatal e o pósnatal combinam no corpo formam a essencia ou Jing que desempenha um papel importante nas funções fisiológicas relacionadas com o processo de crescimento, desenvolvimento e amadurecimento. Esses três tipos de Qi determinam os fundamentos dos seres

7 A categoria ‘núcleo duro” traduzida de “hard core” demonstra a adesão de Paul Unschuld ao pensamento de Imre Lakatos in “The Metodology of Scientific Research Programmes” .

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humanos e sua relação com o mundo. Entretanto a função operativa do Qi é executada por outros tipos de Qi que derivam dos primeiros: Qi original, Qi dos alimentos, Qi nutritivo e Qi defensivo. 4. Doutrina Médica Madel Luz em “Racionalidades Médicas, Estudo Comparativo da Medicina Ocidental Moderna, da Medicina Tradicional Chinesa, Medicina Ayurvédica e Homeopatia” constrói a categoria “racionalidade médica” a partir da identificação nos diferentes sistemas médicos de “dimensões” fundamentais: cosmologia, doutrina médica, morfologia, fisiologia ou dinâmica vital, sistema diagnóstico, sistema terapêutico. O estudo define como doutrina médica a formulação de certas concepções teóricas sobre as origens e as causas do adoecer do homem. Na Medicina Tradicional Chinesa a doutrina médica está expressa nas teorias do Yin/Yang e das Cinco Fases, utilizadas para orientar as estratégias terapêuticas que visam equilibrar o organismo eliminando as causas do adoecer. Todas as estruturas e funções orgânicas e todos os sinais e sintomas que apontam para disfunções orgânicas, podem ser analisados e interpretados segundo a ótica da interação dos dois princípios Yin/Yang como demonstram os quadros abaixo. ESTRUTURAS E FUNÇÕES ORGÂNICASESTRUTURAS E FUNÇÕES ORGÂNICAS YIN & YANG Estrutura função feminino masculino óvulo espermatozóide corpo cabeça frente (tórax, abdômen) dorso interior (órgãos) exterior (pele, músculos) zang (órgãos) fu (vísceras ocas) abaixo da cintura acima da cintura região antero-medial região póstero-lateral sangue Qi Qi nutritivo (ying qi) Qi defensivo (wei qi) conservação transformação armazenamento: sangue líquidos essência

circulação: sangue líquidos qi

MANIFESTAÇÕES CLÍNICASMANIFESTAÇÕES CLÍNICAS YIN & YANG Sinais Sintomas Doença crônica doença aguda início gradual inicio rápido alteração lenta do quadro alteração rápida do quadro frio calor sonolência, apatia agitação, insônia deita-se encolhido deita-se esticado face pálida rubor facial voz fraca -falar pouco voz alta - falar muito respiração lenta e superficial dispnéia

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ausência de sede sede urina profusa e pálida urina escassa e escura diarréia constipação língua pálida - saburra branca língua vermelha - saburra branca pulso vazio pulso cheio

A teoria das Cinco Fases é a outra doutrina que atravessou os tempos, à semelhança do Yin/Yang, e até hoje desempenha papel importante na Medicina Tradicional Chinesa praticada em todo o mundo. Sua importância advém do padrão de relacionamento que as fases estabelecem entre si no processo de transformação contínuo dos fenômenos naturais que, no organismo humano determina a manutenção ou a ruptura do equilíbrio, produzindo a saúde ou a doença. O terapêuta deve identificar os desequilíbrios no ciclo das cinco fases para orientar a sua intervenção no sentido de restaurar as leis do sistema. A primeira das leis do sistema das cinco fases diz respeito ao equilíbrio entre o Yin e o Yang dentro de cada fase. As funções do órgão, da víscera e de seus respectivos canais de energia numa determinada fase, devem coexistir em equilíbrio dinâmico. Quando uma fase apresenta desequilíbrio haverá repercussão em todo o sistema, já que as leis que se seguem demonstram a interdependência entre as fases. A lei da geração de energia ou lei mãe-filho, trata da ordem de transformação das fases segundo sua sucessão normal na natureza, por exemplo: primavera-verão-canícula-outono-inverno–primavera... De acordo com essa lei cada fase gera energia para reforçar a fase seguinte. De forma simbólica a relação entre os elementos que representam cada fase pode ser lida como : a madeira é mãe do fogo pois fornece a matéria prima para a ocorrência dele; o fogo é mãe da terra, formada pelas cinzas. A terra engendra os metais que no processo de contração eliminam a água, que irriga a madeira, favorecendo a germinação de um novo ciclo. AAS CINCO FASES NA NATUREZAS CINCO FASES NA NATUREZA MADEIRA FOGOFOGO TERRA METAL ÁGUA

EstaçãoEstação primavera verão canícula outono inverno

OrientaçãoOrientação leste sul centro oeste norte

SaborSabor ácido amargo doce picante salgado

CorCor verde vermelho amarelo branco preto

Fat. Fat. AmbientalAmbiental

vento calor umidade seca frio

ProcessoProcesso germinar crescer transformar contrair eliminar CINCO FASES E O CORPO HUMANOCINCO FASES E O CORPO HUMANO MADEIRA FOGO TERRA METAL ÁGUA

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Órgãos Órgãos (Zang)(Zang)

Fígado coração baço/pâncreas Pulmão rins

Vísceras Vísceras (Fu)(Fu)

vesícula biliar intestino delgado

estômago intestino grosso

bexigabexiga

SentidosSentidos Olhos língua boca Nariz ouvido

TecidosTecidos Tendão vasos músculos pele e pelospele e pelos ossosossos EmoçãoEmoção Ira alegria preocupação Tristeza medo

AtAt itudeitude Planejamento comunicação reflexão ordenação vontade

Canais Canais de de energiaenergia

F/VB C/ID CS/TA BP /E P/IG R/B

A fim de evitar que se forme uma espiral energética excessiva e descontrolada, cada fase ao mesmo tempo que fornece energia para o desenvolvimento da fase seguinte, controla a formação da terceira fase, obedecendo à lei da dominância ou controle, também conhecida como a lei avô-neto. Assim uma fase ao gerar seu filho, controla seu neto. Simbólicamente temos que a madeira gera o fogo mas controla a terra, extraindo energia do solo; o fogo gera a terra e controla o metal, fundindo-o; a terra gera o metal mas controla a água contendo-a; o metal gera a água mas controla a madeira cortando-a e por fim a água gera a madeira mas controla o fogo apagando-o. No terreno da saúde e das doenças, as relações patológicas se instalam quando ocorrem desequilíbrios no ciclo da dominância. Uma fase com excesso de energia pode exercer uma superdominância, enfraquecendo a fase dominada, em lugar de apenas controlá-la. Por exemplo, quando a energia do fígado está em excesso pode depletar a energia do baço/pâncreas. Nesse caso temos a madeira agredindo a terra, causando alterações digestivas. Ao contrário, pode ocorrer a contradominância, quando a fase dominada fica tão excessiva que agride seu controlador. Um excesso de energia no coração pode voltar-se contra o rim. Temos então o fogo contradominando a água com o aparecimento da hipertensão arterial. A terapêutica da Medicina Tradicional Chinesa oferece recursos para a regulação energética do ciclo das cinco fases, uma vez que o diagnóstico do desequilíbrio tenha sido alcançado. A identificação das fases acometidas e dos padrões de acometimento pode ser facilitada por meio do agrupamento e classificação dos sinais e sintomas do paciente de acordo com as cinco fases. É importante ressaltar, no entanto, que o diagnóstico e tratamento pelas cinco fases não é o método exclusivo utilizado pelos praticantes de Medicina Tradicional Chinesa. Na Medicina Ocidental Contemporânea segundo Kenneth Rochel de Camargo Jr. A doutrina médica está implícita e não claramente enunciada. Pode ser deduzida da forma consensual do exercício da prática médica e de representações coerentes com a visão mecanicista que alicerça o saber médico tais como: “as doenças são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para pessoa; as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas que são manifestações de lesões, que devem ser buscadas no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta” 8 .

8 Kenneth Rochel de Camargo Jr. Racionalidades Médicas: A Medicina Ocidental Contemporânea. Instituto de Medicina Social, Uerj, 1996, p 13, 24 ,25.

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Kenneth sugere que apesar da inexistência no contexto do saber médico de uma conceituação geral do que seja uma doença, é possível identificar elementos dessa categria em três níveis: explicativo, morfológico e semiológico. O primeiro refere-se à caracterização de doenças como processo com uma causa e uma história, campo da fisiopatologia, onde o saber médico mais se aproxima das ciências duras. Há aqui uma idéia de mecanismo causal produzindo um fenômeno. O segundo nível refere-se à descrição das lesões patognomônicas com auxílio dos exames complementares obtidos por meio da “parafernália laboratorial”. O terceiro nível é o da clínica onde as doenças são vistas como “constelações de sinais e sintomas formando gestalts semiológicas “. Os dois últimos níveis vão em direções contrárias: o da generalização e classificação que aproxima a clínica da epidemiologia e o da individualização no caso das gestalts semiológicas. O nível explicativo da fisiopatologia está presente na Medicina Tradicional Chinesa porém com linguagem própria e o que Kenneth chama de gestalt semiológica é exatamente o contexto que um praticante hábil de Medicina Tradicional Chinesa deve penetrar para propor a terapêutica. RELAÇÕES DE EQUILÍBRIO ENTRE AS FASESRELAÇÕES DE EQUILÍBRIO ENTRE AS FASES

Fig 3 Ciclo da geração

Fig 4 Ciclo do controle

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RELAÇÕES PATOLÓGICAS ENTRE AS FASESRELAÇÕES PATOLÓGICAS ENTRE AS FASES

Fig 5 Superdominância

Fig 6 Contradominância

5. Etiologia em Medicina Tradicional Chinesa A causa mais geral da doença em Medicina Tradicional Chinesa é tida como a ruptura do equilíbrio entre o Yin e Yang que ocorre em conseqüência de uma perda de capacidade do “Qi - antipatogênico” de proteger o organismo, ou devido à penetração de fatores patogênicos ultrapassando as possibilidades de defesa orgânica. As causas mais específicas podem ser internas, externas, ou relacionadas com a energia ancestral e hábitos de vida. As causas internas relacionam-se com emoções intensas e persistentes ou hipersensibilidade a determinados agentes que prejudicam os órgãos e vísceras, Zang Fu, seletivamente. Fala-se em sete fatores emocionais considerados como fatores endógenos desencadeadores da alteração no equilíbrio Yin/ Yang do organismo: a fúria que faz o Qi ascender e afeta o fígado. A euforia que faz o Qi fluir lentamente e afeta o coração. A melancolia que dissolve o Qi e afeta o pulmão. A preocupação e excesso de abstração que paralisam o Qi e afetam o baço. O medo que faz o Qi descender e afeta o rim. O choque que dispersa o Qi afetando o rim e o coração. As causas externas envolvem as variações climáticas para além da capacidade de adaptação do organismo. Os fatores patogênicos penetram no organismo através da pele, nariz e boca e podem atuar isoladamente ou em associação com outros fatores, por exemplo, vento-frio ou calor-umidade. Os fatores climáticos denotam tanto causa como padrão patológico. Por exemplo, a doença pode ser causada por um fator patogênico externo como o vento, que pode provocar paralisia facial periférica ou pode ser produzida por causas internas e apresentar um padrão de vento, como a paralisia facial central, considerada vento interno. Os seis fatores climáticos são: vento , calor de verão , umidade, secura , frio e fogo. O vento, fator yang, típico da primavera, ataca a porção superior do corpo provocando dores de cabeça, obstrução nasal, irritabilidade, dores migrantes, sintomas que aparecem e desaparecem como artrite, urticárias, espasmos, tremores, paralisia facial. O calor de verão, fator yang, consome yin, tem direção ascendente e perturba a mente, provoca transpiração, sede, respiração ofegante, cansaço, urina concentrada, febre

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alta, inquietação, pele avermelhada, delírio, coma. Costuma associar-se à umidade causando tontura, cabeça pesada, sensação de sufoco no peito, náusea, falta de apetite, diarréia e lentidão. A umidade é um fator etiológico típico da canícula, época das chuvas, aumenta a viscosidade dos líquidos provocando estagnação. Manifesta-se como indolência, sensação de distensão na cabeça, tonturas, cansaço geral, opressão do epigástrio, náusea, vômito, viscosidade e sabor adocicado na boca, abcessos, úlceras gotosas, leucorréia de natureza purulenta com odor, urina turva, doenças prolongadas, artrite reumatóide, encefalite, epidemias. A secura, fator patogênico do outono, consome os líquidos, principalmente yin do pulmão, afeta a pele provocando ressecamento, rugas e rachaduras, provoca ainda secura na boca e nariz e garganta, irritabilidade e tosse seca. O frio, fator yin, ocorre no inverno, consome Qi e yang. Caracteriza-se por contração e estagnação, retardamento da circulação de Qi e sangue, que pode manifestar-se como entorpecimento das extremidades, arrepios, calafrios, membros frios, palidez, diarréia com alimentos não digeridos nas fezes, urina límpida com aumento de volume. O fogo, fator yang, danifica o yin, perturba a mente, incita o vento, provoca distúrbio no sangue e esgota o yin do fígado. Manifesta-se como febre alta, coma, delírio, convulsão, rigidez no pescoço, hemorragia, hematêmese, epistaxe, erupções e infecção na pele, edema, calor, dor, furúnculos e úlcera. Além das emoções e dos fatores climáticos, as doenças podem ser produzidas por fatores patogênicos variados como a compleição debilitada herdada dos pais ou decorrente de intercorrências na concepção e no nascimento. Esse fator pode ser modificado dentro de certos limites pelo cultivo do Qi por meio de dieta, exercícios e tratamento adequado. A dieta irregular é outro fator patogênico. Alimentos crus e frios afetam baço-pâncreas e estômago provocando regurgitação ácida, dor epigástrica e abdominal, borborinho e diarréia. Bebidas alcoólicas, gorduras, alimentos aromatizados produzem umidade-calor ou fleugma-calor no baço-pâncreas. Pouca ingestão de alimentos produz insuficiência de QI e sangue. Excesso de alimentos enfraquece o baço e o estômago produzindo acúmulo de muco. O excesso ou a falta de atividades físicas, as lesões traumáticas e o excesso de atividade mental e sexual estão incluídos no rol dos fatores patogênicos variados. A estagnação de sangue e fleuma constituem também fatores patogênicos importantes. 6. Morfologia Humana Na Medicina Tradicional Chinesa os Zang Fu são as unidades morfológicas fundamentais. O termo Zang Fu pode ser traduzido como órgãos e vísceras mas na verdade expande o significado que atribuímos aos órgãos e vísceras na Medicina Ocidental. Constituem-se em entidades “morfo-psíquico-fisiológicas” no organismo humano. Zang são os órgãos maciços, de natureza Yin, responsáveis pela produção e armazenamento das substâncias vitais. O fígado, coração, baço-pancreas, pulmão, rim e pericárdio são os Zang. Fu são as vísceras ocas, de natureza Yang, responsáveis por digerir os alimentos, absorver substâncias e nutrientes, distribuir e excretar excessos. Vesícula biliar, intestino delgado, estômago, intestino grosso e bexiga são Fu. O triplo aquecedor não é uma víscera mas uma função considerada Fu. Os Zang Fu interagem em pares que se associam aos canais de energia acoplados e às 5 Fases (ver quadro na seção 3) . O cérebro e o útero são órgãos extraordinários pois apresentam características tanto de Zang quanto de Fu. O canal de energia associado ao sistema nervoso e consequentemente ao cérebro é o Du Mai ou vaso governador, e ao útero o Ren Mai ou vaso concepção. Esses canais são considerados vasos maravilhosos devido à importância de suas funções. Os Canais ou “Meridianos” e os “Pontos de Acupuntura” constituem as estruturas morfológicas mais curiosas e interessantes da Medicina Tradicional Chinesa. Embora não possam ser dissecados enquanto enquanto tal, têm sido descritos detalhadamente pela tradição chinesa desde a dinastia Han

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(206 a.c.- 220d.c.), e utilizados com sucesso na clínica médica, em profilaxia, gestão de doenças crônicas e degenerativas, e também no tratamento de algumas doenças agudas. A possibilidade de se fazer analgesia por acupuntura aponta para a existência de um mecanismo de ação sobre circuitos neurais e endócrinos induzindo a síntese de substâncias químicas que influenciam o desempenho de tais circuitos. A analgesia por acupuntura tem motivado a pesquisa do sistema de canais e pontos de acupuntura pelos cientistas ocidentais e orientais da atualidade na busca de esclarecimento sobre o mecanismo de ação, contudo esse não é seu campo de aplicação mais importante. Os canais e colaterais constituem uma rede que conecta todas as partes do organismo transportando Qi, Xue ( sangue) e Jing Ye ( líquidos orgânicos ) para todos os órgãos, vísceras e tecidos. Desses canais, doze são considerados canais principais. Localizam-se no tecido subcutâneo e descrevem um percurso longitudinal em relação à linha média do corpo. São bilaterais, simétricos e relacionam-se com os Zang Fu por meio de canais secundários. Aparecem acoplados em pares, são designados pelo nome do órgão ou função que representam e estão associados às Cinco Fases. Cada par é formado por um canal Yin e um canal Yang. Os canais Yin referem-se aos órgãos (zang) e os canais Yang às vísceras ocas (fu): Fígado/Vesícula Biliar (F/VB), fase madeira; Coração/Intestino Delgado (C/ID) e Circulação Sexualidade/Triplo Aquecedor (CS/TR), fase fogo; Baço Pâncreas/ Estômago (BP/E), fase terra; Pulmão/Intestino Grosso (P/IG), fase metal e Rim/Bexiga (R/B), fase água. A fase fogo está associada a dois pares de canais, o par C/ID é chamado de fogo príncipe e o par CS/TR, fogo ministro. Este último tem a função de proteger o coração e se relaciona com todos os Zang Fu para manter o equilíbrio do organismo. O CS está associado ao pericárdio e o TR embora não esteja vinculado diretamente a uma estrutura anatômica, guarda uma relação com a atividade das glândulas endócrinas na manutenção do equilíbrio interno. Considerando a posição anatômica chinesa, com as mãos para o alto e as palmas voltadas para a frente, o trajeto dos canais Yin ascende dos pés para o tórax pela face medial dos membros inferiores e abdome (R, F, BP), e do tórax para as mãos pela face anterior dos membros superiores e mãos (C, CS, P). A energia dos canais Yin desemboca nos canais Yang, nas extremidades dos dedos da mão. Os canais Yang então, a partir das extremidades digitais, dirigem-se pelo dorso das mãos e dorso dos membros superiores, para a cabeça (ID, TR, IG), daí descendem até as extremidades digitais dos pés (B, VB, E), onde desaguam sua energia nos canais Yin.

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Fig 6 “Os três canais Yin e a polarização da parte anterior do corpo. Em branco o que é

mais Yin e em preto o que é mais Yang”. (Requena:109)

Fig 7 “ Os três canais Yang e a polarização da parte posterior do corpo. Em branco o que é mais Yang

e em preto o que é menos Yang” . (Requena:108)

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Cada um dos três canais Yin das pernas se associa a um dos Yin dos braços para formar três grandes canais Yin ligando a parte inferior e superior do corpo. O mesmo ocorre com os canais Yang dos braços que se ligam aos Yang das pernas relacionando o alto do corpo às partes inferiores, por meio de três grandes canais Yang. Esses seis grandes canais correspondem a seis níveis energéticos de acordo com a profundidade que a energia adquire. Os canais Yin, localizam-se ântero-medialmente, relacionando-se com a linha média anterior. Do nível mais profundo para o mais superficial temos: Shao Yin (R e C), Jue Yin (F e CS) e Tai Yin (BP e P). Os canais Yang são mais superficiais que os canais Yin e localizam-se póstero-lateralmente, com exceção do canal do E que desce pela região ântero-lateral do corpo. Do nível Yang mais profundo para o mais superficial temos: Yang Ming (E e IG), Shao Yang (VB e TA) e Tai Yang (B e ID). Os níveis energéticos não consistem em unidades isoladas, formam um sistema fechado de circulação de energia onde cada nível Yin se relaciona com um nível Yang e transfere energia para o nível seguinte, incessantemente do Yin para o Yang e do Yang para o Yin. Ao longo dos canais principais, em locais anatômicos precisamente delimitados de mais ou menos 1mm, situam-se os pontos de acupuntura, através dos quais o canal se comunica com o meio externo. A regulação do fluxo energético nos canais pode ser feita a partir do exterior por meio de estímulos adequados nos canais e pontos. Dentro da tradição chinesa cada ponto de acupuntura recebe um nome. Existem 361 pontos nos doze canais principais e alguns pontos extras, fora dos canais. Como cada canal é simétrico e bilateral, na verdade estamos falando de 722 pontos nos canais principais. Numa série de experimentos recentes, os pontos de acupuntura foram examinados por dissecção para a verificação de sua correspondência direta com nervos , vasos sanguíneos e linfáticos: em 324 pontos examinados 304 eram supridos por um nervo cutâneo superficial; 155 por um nervo cutâneo profundo; 137 pontos eram supridos por ambos. Somente um ponto não era inervado. Num outro experimento 309 pontos foram examinados, verificou-se que 24 deles encontram-se diretamente sobre ramos arteriais; 262 encontram-se a meio centímetro de ramos arteriais ou venosos. Poucos pontos, no entanto, apresentaram relação com um mesmo vaso linfático. 7. Fisiologia ou Dinâmica Vital Na Medicina Tradicional Chinesa a fisiologia ou dinâmica vital envolve as Substâncias Vitais, os Zang Fu (órgãos e vísceras) e os Canais e Colaterais (jing-luo) que definimos na seção sobre morfologia . As substâncias vitais compreendem o Qi, energia vital, de natureza Yang, que circula pelos canais de energia. Xue, o sangue, de natureza Yin, cuja função é nutrir e umedecer os tecidos. Jing Ye, os líquidos orgânicos que umedecem os tecidos e os zang fu e contribuem para a formação do sangue. À medida em que circulam pelo corpo os líquidos orgânicos vão perdendo suas propriedades até transformarem-se num líquido túrbido que deve ser eliminado sob forma de urina e secreções. Considera-se ainda Jing, essência, energia ancestral, que o ser apresenta como potencialidade ao nascer e Shen, espírito ou consciência, sintetizado pelo coração a partir das essências imateriais de todos os órgãos. Cada Zang Fu apresenta uma série de funções complexas que foge ao escopo deste trabalho descrever . Os canais de energia veiculam o Qi em seus diversos aspectos e os pontos de acupuntura possuem um papel individual e característico na fisiologia humana influenciando o estado geral do Qi e dos Zang Fu de maneira bem específica. As propriedades dos pontos de acupuntura que recebem nomes diferentes, cujo simbolismo remete à sua função, determinam a sua seleção para o tratamento de diversas alterações da saúde por acupuntura ou massagem terapêutica. 8. Sistema diagnóstico

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O adoecimento é visto como um processo dinâmico em Medicina Tradicional Chinesa. A doença sofre transformações progressivas em relação a seu momento inicial. Diagnosticar significa então identificar as características presentes do adoecimento a fim de prevenir sua futura evolucão. O dignóstico será alcançado a partir de vários procedimentos. O exame deve ser o mais abrangente possível. Todas as características têm significado. O estado das relações entre Yin/Yang e das Cinco fases pode ser avaliado pela observação do aspecto das unhas, pele, cabelo, olhos, orelhas, nariz, lábios, dentes e garganta; o volume e o timbre da voz, a postura do corpo e os gestos, o cheiro do corpo e o hálito. O exame dos pulsos ou “a pulsologia” chinesa é um método de verificação de qualidades básicas do Qi e da relação entre os sistemas ZangFu/Canais por meio do estudo de três posições contíguas na artéria radial proximas às pregas do punho, de ambos os lados. Cada posição corresponde a um par acoplado de canais de energia e as características do pulsar da artéria radial sob a polpa dos dedos do terapeuta em cada posição, fornece informações sobre a natureza, local e extensão do adoecimento. Outro recurso importante na semiologia chinesa é o exame da língua quanto à sua forma, movimento, cor e revestimento. Esse exame revela o interior do paciente ou seja os Zang/Fu. Procede-se então o diagnóstico segundo os oito princípios, “Ba Gang”, para determinar a natureza, a intensidade, a localização e a profundidade da doença. Os oito princípios organizam-se em quatro pares: Interno/Externo, indica a profundidade e gravidade do adoecimento. Frio/Quente, relaciona-se à maneira como o paciente percebe a doença. Vazio/Plenitude, avalia o enfraquecimento da essencia em relação à virulência do Qi patogênico. Yin/Yang trata da reunião das síndromes em que o Yin/Yang estão em desarmonia. Existe literatura técnica abundante sobre o dignóstico segundo a Medicina Tradicional Chinesa. Na Medicina Ocidental a diagnose envolve várias técnicas denominadas em conjunto de semiologia que compreendem a anamnese e o exame físico. Este último subdivide-se em: inspeção, palpação, percussão e ausculta. São muito importantes os exames complementares que dependem de intrumentos tecnológicos. Passa-se então à leitura do quadro clínico apresentado pelo paciente e localiza-se a doença na grade conceitual das doenças conhecidas. Kenneth Rochel de Camargo comenta a esse respeito que muitas vêzes as hipóteses dignósticas influenciam a coleta de dados, o que reforça a tese de Harré sobre a não existência de “fatos puros”. Vale a pena chamar atenção para a valorização do diagnóstico em relação à terapêutica pela corporação médica na prática médica ocidental, atitude que encontra-se no centro da crise de relacionamento médico/paciente presente na Medicina Ocidental Contemporânea e que desempenha um papel no crescimento da procura por tratamentos alternativos por parte da população à medida em que se desenvolve o conceito de qualidade de vida. 9. Sistema terapêutico A profilaxia e o tratamento em Medicina Tradiciona Chinesa enfatizam a expulsão do Qi patogênico, os fatores externos causadores de doenças, e proteção ao fator antipatogênico, Wei Qi ou Qi defensivo, análogo ao conceito de sistema imunológico. Os procedimentos terapêuticos devem favorecer a circulação de Qi, sangue e líquidos orgânicos e a eliminação do Qi túrbido. Atuar sobre os Canais de Energia e sobre os Zang Fu otimizando seu funcionamento. Facilitar o equilíbrio psíquico e emocional atuando sobre o Shen e tonificar Jing, a essência, mantendo todo o organismo num padrão energético adequado. Apesar da grande ênfase dada à acupuntura no ocidente, os recursos terapêuticos da Medicina Tradicional Chinesa são vários: acupuntura, fitoterapia, dietética, massagem terapêutica e exercícios terapêuticos. À semelhança das especialidades na Medicina Ocidental há também uma tendência nesse sentido na Medicina Tradicional Chinesa em relação à terapêutica. A acupuntura e massagem terapêutica são mais indicadas para as doenças que se encontram nos níveis dos canais de energia

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enquanto que a fitoterapia e dietética estão indicadas para o tratamento das doenças que já atingiram os Zang Fu. Na Medicina Ocidental a terapêutica considerada efetiva consiste no uso de medicamentos e nas cirurgias. As dietas e exercícios embora constem dos manuais não tem o mesmo status das primeiras e são pouco indicadas. Persiste a tendência que valoriza mais o diagnóstico do que o tratamento. 10 . Conclusão Como todas as idéias podem ser abordadas numa escala que vai do pragmatismo ao dogmatismo, o caminho do meio da filosofia taoísta parece uma via qualificada, ao lado da ciência que pergunta e duvida sempre, exigindo explicações e testes, fazendo críticas e impondo reformulações, com consciência do provisório e do paradoxo sem com isso se angustiar. No que concerne a metafísica chinesa, a idéia de Qi tem suscitado analogias com o atomismo: Yin/Yang, Positivo/Negativo, Próton/Elétron. Com a Relatividade Geral: todas as coisas refletem o Qi e têm ressonância com o Qi ainda que não estejam conectadas no tempo e no espaço. Ou com a mecânica quântica : aspecto Yin do Qi como partícula , aspecto Yang como onda. Mas também tem suscitado analogia com místicas medievais, paracelsianas , do tipo como em cima, embaixo, à semelhança de microcosmo/macrocosmo dos astrólogos e alquimistas. Ou se presta a analogias qualitativas como as da filosofia natural: todos os fenômenos compartilham qualidades e relações baseados na sua origem comum no Qi, o Qi se diferencia em formas. No entanto os chineses não possuiam o horror ao vácuo dos aristotélicos pois se referiam ao Tao como o grande Vazio, embora o Qi tudo permeasse: O caminho é o Vazio E seu uso jamais o esgota É imensuravelmente profundo e amplo, Como a raiz dos dez mil seres 9 Ou O grande quadrado não tem ângulos O grande recipiente conclui-se tarde O grande som carece de ruído A grande imagem não tem forma 10 Mas como lidar com categorias tão abrangentes que parecem desejar encampar todos os paradoxos sem assumir o nome de Deus? Os campos da Filosofia Chinesa , da Relatividade Geral e da Mecânica Quântica são tão vastos que proferir veredictos sobre as analogias propostas por alguns autores é tarefa de alto risco. Um caminho mais seguro é ater-se à visão da Filosofia da Ciência que aceita diferentes maneiras de conhecer e construir objetos científicos. Nesse sentido o modelo conhecido como “Sistema de Canais e Pontos” ou “Sistema de Meridianos” da Medicina Tradicional Chinesa constitui um objeto científico promissor. A idéia de que tal sistema tenha sido descoberto empiricamente por meio de dissecção de prisioneiros vivos como sugere certo tipo de literatura sobre o assunto parece tão pouco plausível como a que considera o sistema revelado por sábios-heróis num período mítico. No entanto como um sistema de representação, o sistema de Canais e Pontos de Acupuntura pode ser operado e ensinado ao corpo por meio dos estímulos exercidos por agulhas ou massagem nos 9 Parte do Poema 4 do Tao Te Ching de Lao tsé traduzido por Wu Jyh Cherng 10 Parte do Poema 41 do Tao Te Ching de Lao tsé traduzido por Wu Jyh Cherng.

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pontos de acupuntura. Seus fundamentos neurofisiológicos podem ser estabelecidos com base na plasticidade neural que faculta à experiência sensorial influenciar a modificação de fluxos cerebrais, estimulando ou inibindo a secreção de substâncias químicas específicas. As alterações de fluxo cerebral têm sido verificas por meio de experimentos com acupuntura e as modernas técnicas de imagens funcionais do cérebro Resta no entanto esclarecer em que bases a tradição preconiza o uso de diferentes conjuntos de pontos para os diferentes tratamentos. Uma exploração desse objeto por meio de uma abordagem multidisciplinar com base nas ciências naturais, nas teorias de sistemas e de linguagem, e na neurociência computacional, sem perder de vista a tradição filosófica e o contexto histórico do aparecimento e desenvolvimento do sistema , deve trazer frutos tanto para o campo da Medicina Tradicional Chinesa como para o campo da História e Filosofia da Ciência e da Técnica. Bibliografia Bensoussan, A. The Vital Meridian – A Modern Exploration of Acupuncture. London : Churchill Livingstone, 1991. Birch, S., Felt, R.L. Understanding Acupuncture. London: Churchill Livingstone, 1999. Camargo, K. R. Racionalidades Médicas: A Medicina Ocidental Contemporânea. Série Estudos em Saúde Coletiva no.65.Instituto de Medicina Social , Uerj, 1993, pp. 6 –7 Carvalho, L. A . V. Modeling the thalamocortical loop. International Journal of Biomedical Computing 35 (1994) 267-296. Chauí, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática .1994. Chonghuo, Tian (assessor médico). Tratado de Medicina Chinesa. São Paulo: Roca, 1993. Connelly, Dianne M. Traditional Acupuncture , The Law of the Five Elements. Columbia: Traditional Acupuncture Institute. 1979. Granet, M. La Pensée chinoise. Paris: Albin Michel. 1968. Harré, R. The Philosophies of Science – An Introductory Survey. 2ed. Oxford: Oxford University Press. 1989. _______ One Thousand Years of Philosophy. Great Britain: Blackwell Publishers. 2000. Holland, A . Voices of Qi – An Introdutory Guide to Traditional Chinese Medicine. Seattle: NorthWest Institute of Acupuncture & Oriental Medicine. 1997. Instituto de Acupuntura da Academia de Medicina Tradicional Chinesa. Fundamentos Essenciais da Acupuntura Chinesa. São Paulo: Ícone Editora Ltda, 1995. Jacques, L. M.Tui Na: proposições fundamentais. Instituto de Acupuntura do Rio de Janeiro-IARJ, 1999.

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