Melodrama Egipicio

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    cadernos pagu (21) 2003: pp.75-102.

    Melodrama Egpcio:uma tecnologia do sujeito moderno?*

    Lila Abu-Lughod**

    ResumoConsidero bastante evidente que os textos melodramticos podematuar sobre os espectadores de vrios modos. No podemossimplesmente analisar as mensagens explcitas da trama e dospersonagens, assim como no devemos nos limitar ao estudo darecepo. O que pretendo explorar neste ensaio, entretanto, como a representao da emoo dos personagens no melodramaegpcio pode fornecer um modelo para um novo tipo de sujeitoindividualizado.A anlise considera os objetivos dos produtores eescritores dos seriados televisivos, assim como a convivncia deuma empregada domstica com estes contedos.

    Palavras-chave:Gnero, Subjetividade, Melodrama, Recepo,Egito.

    * Publicado originalmente em GINSBURG, Faye; ABU-LUGHOD, Lila e LARKIN,Brain. (eds.) Media Worlds: Anthropology on New Terrain. Berkeley, Universityof California press, 2002, pp.115-133. Este artigo uma adaptao de Modernsubjects: Egyptian melodrama and post-colonial difference. In: MITCHELL,Timothy. (ed.) Questions of Modernity. The Regents of the University ofMinnesota, 2000. Agradeo a Talal Asad, Nick Dirks, Faye Ginsburg, TimMitchell, Samira Mohammad, Gyan Prakash, Dwight Reynolds, Reem Saad,Omnia Shakry, Susan Slyomovics, Ted Swedenburg e Lisa Widen por diversascontribuies. O trabalho de campo no Egito teve o apoio da American Research

    Center no Egito, ACLS/SSRC Near and Middle East Committee, NationalEndowment for the Humanities e New York University. O Comit Editorial dosCadernos Paguagradece a autorizao da autora e da editora para traduzir esteartigo (Traduo: Heloisa Buarque de Almeida; Reviso: Plnio Dentzien).** Universidade de Columbia.

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    Egyptian MelodramaTechnology of the Modern Subject?

    AbstractI think it is abundantly clear thar melodramatic texts can work on viewers in multiple ways. One cannot simply analyze the overtmessages of plot and character, just as one should not limit oneselfto the study of reception. What I want explore in this essay,however, is how the representation of characters emotions inEgyptian melodrama might provide a model for a new kind ofindividuated subject. The analyses is based on the objectives ofTVseries writers and producers, and on a domestic servant livedexperience interacting with such content.

    Key Words:Gender, Subjectivity, Melodrama, Reception,Egypt.

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    Melodrama e modernidadeO melodrama j foi objeto de muitos estudos no campo da

    teoria literria e daquela sobre mdia. A pedra de toque o livrode Peter Brooks The Melodramatic Imagination , quedemonstra a importncia do melodrama como gnero literrio eteatral associado aos levantes da Revoluo Francesa e ao incioexplosivo da crise da modernidade. Brooks1 defende de modopersuasivo uma definio e uma interpretao particulares sobre aimaginao melodramtica como se tratasse da revelao deuma ordem moral no cotidiano de uma era ps-sagrada. Aindamais instigante sua afirmao de que o melodrama o fatocentral da sensibilidade moderna.

    Brooks analisa o teatro e as novelas literrias na Europa dosculo XIX. No sculo XX, o melodrama est mais fortementeassociado aos formatos da mdia de massa, como rdio, cinema eteleviso. No Egito, assim como em outros contextos ps-coloniais, formas culturais como o melodrama televisivo, exibidopelas indstrias nacionais de televiso, so consideradas pelos

    agentes estatais e produtores profissionais de classe mdiacomo instrumentos eficazes de desenvolvimento social,consolidao nacional e modernizao.2 Isso levanta a questode quais sensibilidades modernas so ressaltadas pelomelodrama televisivo no Egito contemporneo, onde aqueles queproduzem o melodrama vem a si mesmos como agentes quebuscam promover cidados e sujeitos modernos. A questo

    1 BROOKS Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James,Melodrama, and the Mode of Excess. New Haven, Yale University Press, 1976pp.15, 21.2 ABU-LUGHOD, L. The Objects of Soap Opera. pp.190-210; DAS, Veena. SoapOpera: What Kind of Object is it? pp.169-189. In: MILLER, Daniel. (ed.) Worlds Apart: Modernity through the Prism of the Local. London, Routledge, 1995;KARTHIGASU, Ranggasamy. Television as a Tool for Nation-Building in the ThirdWorl. In: DRUMMOND, P. e PATERSON, R. (eds.)Television and Its Audience.London, British Film Institute, 1988.

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    particularmente intrigante, dado que os produtores de televisotrabalham com uma linguagem secular num contexto social noqual as prticas e a identidade religiosa so importantes paragrande parte de seus espectadores.

    Ainda h muita confuso ou pelo menos uma enormegama de possibilidades em torno do uso do termo melodramanos atuais estudos literrios, de cinema e de televiso3, e existemat motivos para questionar se o termo realmente designaum nico gnero.4 Todavia, til manter o termo melodramano caso dos seriados de televiso egpcios para nos lembrarmosde algumas caractersticas comuns. Estes seriados, advindos dastradies modernistas da literatura cinema e rdio tratammajoritariamente do cotidiano e se voltam para pessoas comuns.Seus personagens no so os universalmente conhecidos herisda poesia pica ou das lendas folclricas, mas representaes docidado comum. Como as telenovelas latino-americanas ediferentemente da soap opera britnica, australiana ou norte-americana, os seriados egpcios so finitos e geralmente duram de15 a 30 episdios. Portanto, enquanto melodrama, chegam a uma

    resoluo, o que Robert Allen considera crucial para a clarezaideolgica.5 As sries egpcias so normalmente mais diretas emsuas lies morais e mais emotivas do que os dramas da televisoeuro-americana contempornea, o que as torna duplamentemerecedoras do rtulo de melodrama.6

    3 cf. GLEDHILL, Christine. (ed.) Melodrama: Stage, Picture, Screen. London,British Film Institute, 1994.4 cf. MERRITT, Russell. Melodrama: Postmortem for a Phantom Genre. WideAngle5 (3), 1983.5 ALLEN, Robert. (ed.) To be continued... Soap Operas Around the World.London, Routledge, 1995, p.21.6 Lopez nota que as telenovelas mexicanas so mais lacrimosas em suaestereotipia. LOPEZ, Ana, Our Welcomed Guests: Telenovelas in Latin Amrica.In: ALLEN, R. (ed.) To be Continued... Op. cit., p.261. Evidentemente, as sriesegpcias so menos sofisticadas, glamourosas e sexualizadas do que as brasileiras,mas mesmo assim elas tm algo em comum: no Egito, como no Brasil, os autores

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    Neste ensaio, exploro a possibilidade de que o retrato decerto tipo de emotividade pode ser uma maneira pela qual assries egpcias buscam criar uma sensibilidade moderna. Noentanto, exploro tambm a diferena que existe quando umasensibilidade moderna est sendo construda numa sociedadena qual noes de desenvolvimento nacional ainda so parte deum legado poltico muito forte, no qual a intensa insero dosindivduos no parentesco e na famlia permanece um ideal, e ondea secularizao s foi construda como essencial modernidadede modo ambivalente.7

    As sries de televiso no Egito lidam com projetosmodernistas em dois nveis: intencionalmente, atravs dadisseminao em suas histrias de mensagens moraistransformadas pelas ideologias polticas locais e nacionais,buscando, assim, definir os termos do debate social e poltico;mas, de modo mais sutil, tambm atravs da popularizao deuma configurao distintiva de narrativa, emoo e subjetividade.8 desta segunda maneira, enquanto gnero com determinadasconvenes, que se pode compreender diretamente o melodrama

    televisivo no Egito como uma tecnologia para a produo denovos tipos de pessoa.9 Ao encenar as interioridades (atravs dagrande intensidade das emoes), estes melodramas constroem epromovem a individualidade de pessoas comuns. Pode-se

    de televiso so srios e progressistas. GUILLERMOPRIETO, Alma. Letter from Brail:Obsessed in Rio. New Yorker, n 16, agosto de 1993.7 Para uma argumentao de que a secularizao, e a noo de religio que elaimplica, um conceito que se desenvolveu como parte da histria docristianismo no ocidente, cf. ASAD, Talal. Genealogies of Religion. Baltimore.Johns Hopkins University Press, 1993.8 Sobre as ideologias, cf. ABU-LUGHOD, L. Finding a Place for Islam. PublicCulture5 (3), 1993, pp.493-513 e The Objects of Soap Opera. Op. cit.9 FOUCAULT, Michel. Technologies of the Self. In: GUTMAN, M. and HUTTON, P.(eds.) Technologies of the Self. Amherst, University of Massachusetts Press; 1988,pp.16-49; e About the Beginning of the Hermeneutics of the Self. Political Theory21 (2), 1993, pp.198-227.

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    observar como isso funciona nas histrias de vida de umaempregada domstica no Cairo.

    Entretanto, tambm quero demonstrar que esta tecnologiase coloca em contextos sociais e polticos locais que diferem muitodo contexto da produo e recepo das soap operasna Europaou nos Estados Unidos, especialmente quanto aos projetosdeclarados de promover a formao de cidados nacionais numasociedade em que o parentesco mantm sua centralidade e ondeh outras formas de comunidade e moralidade principalmente areligiosa.10 A crescente relevncia da identidade religiosa e asprticas de autocontrole promovidas nas mesquitas colocam omelodrama televisivo, ainda que popular, num campo mais amploao lado de outras tecnologias modernas da construo de si,algumas na mesma direo, outras no. Estas tendncias sugeremque devemos ter cuidado ao contar qualquer histria unilinearsobre modernidade, melodrama e individualismo.

    A emoo melodramtica

    De acordo com as ideologias da mdia de naes ps-coloniais, o drama televisivo considerado pela maioria de seusprodutores no Egito no apenas como entretenimento, mas comomeio de moldar a comunidade nacional. Os espectadores comunsde televiso e os crticos reconhecem, em diferentes graus, asideologias que informam esses melodramas e reagem a elas ouse identificam ou so hostis, dependendo de suas situaes evises polticas.11 No entanto, os espectadores podem ser menos

    10 Para uma anlise que associa formas modernas de subjetividade o indivduocomo consumidor e como cidado a formas culturais da mdia de massa. Cf.MILLER, Toby. The Well-Tempered Self. Balimore, Johns Hopkins UniversityPress, 1993.11 ABU-LUGHOD, L. Finding a Place for Islam. Op. cit.; The Objects of SoapOpera. Op. cit.; The Interpretation of Culture(s) after Television. Representations59, 1997, pp.109-34; e Television and the Virtues of Education: Upper EgyptianEncounters with State culture. In: HOPKINS, Nicholas and WESTERGAARD, Kirsten.

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    conscientes e, portanto, menos capazes de resistir de um outroaspecto dos melodramas televisionados: a colocao de forteemoo no mundo cotidiano interpessoal. Esta uma convenodo gnero que atravessa os contedos, cuja fonte o prpriognero (do modo como foi desenvolvido e adaptado ao longo detrinta anos no Egito), mas que reforada pelas suposies tpicasda classe mdia escolarizada a respeito da personalidade daquelesque produzem televiso. Este aspecto do melodrama pode ser atmesmo mais importante para os projetos de modernidade do queas mensagens polticas conscientes das sries, devido ao modopelo qual encena, e talvez constitui, o indivduo.

    Este no o lugar para retomar o debate mais amplo sobrea recepo e os efeitos da mdia, um dos problemas maisdelicados na etnografia da mdia. Considero que bastanteevidente que os textos melodramticos podem atuar sobre osespectadores de vrios modos. No podemos simplesmenteanalisar as mensagens explcitas da trama e dos personagens,assim como no devemos nos limitar ao estudo da recepo,como este livro demonstra.* O que pretendo explorar neste ensaio,

    entretanto, como a representao da emoo dos personagensno melodrama egpcio pode fornecer um modelo para um novotipo de sujeito individualizado.12

    Directions of Change in Rural Egypt. Cairo, American University in Cairo Press,1998, pp.147-65.* No livro no qual este artigo se insere originalmente, Media Worlds, destaca-se anecessidade de entender tanto a produo como a recepo conjuntamente parauma boa etnografia da mdia [NT].12 Ang afirma que o melodrama pode ser caracterizado por sua estrutura desentimento trgica e uma sensao de que os personagens so vtimas dasforas que esto alm do seu controle temas preferidos de muitos dramastelevisivos egpcios que tratam das atribulaes de boas famlias diante dosproblemas criados pela carncia habitacional, por uma burocracia kafkiana, oupelas foras da corrupo e os dramas mais atraentes so os que expem umagama de emoes. ANG, Ien.Melodramatic Identifications: television fiction andwomens fantasy. In: BROWN, Mary Ellen. (ed.) Television and Womens Culture the politics of the popular. London, SAGE, 1990.

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    Ao associar sentimentos fortes vida cotidiana, osmelodramas conformam personagens comuns cuja personalidade definida pelo que aparenta ser uma rica vida interior e umaintensa individualidade. Esse foco, num mundo domsticointerpessoal altamente carregado de emoes, que nos EstadosUnidos e na Europa considerado como parte do mundo dasmulheres, levou os estudos de mdia feministas a tomar to a srioa soap opera.13 Ainda assim, a importncia do sentimento naesfera de relaes interpessoais passou quase despercebida, talvezporque parea algo bvio em nossa sociedade, onde h uma forteconexo ideolgica entre mulheres e emoo.14 Modleski15 seaproxima daquilo que eu gostaria de considerar com maisdetalhes. Em sua anlise sobre a relao entre programas diurnos

    13 As crticas feministas fizeram pela soap operao que Brooks havia feito para omelodrama literrio: foraram uma reavaliao do gnero que era desvalorizadopor ser visto como uma bobagem, assim como desenvolveram uma reflexosobre o prazer feminino atravs de uma anlise sria. A literatura feminista sobresoap opera extensa e de qualidade. Alguns textos centrais so ALLEN, R. (ed.)To be continued... Op. cit.; ANG, Ien: Watching Dallas Soap Opera and the

    Melodramatic Imagination, London, Routledge, 1985 e MelodramaticIdentifications... Op. cit.; BRUNSDON, Charlotte. The Role of Soap Opera in theDevelopment of Feminist Television Sscholarship. In: ALLEN, R. (ed.) To beContinued... Op. cit., pp.49-55; FEUER, Jane. Melodrama, Serial Form andTelevision Today. Screen25, 1984, pp.4-16; GERAGHTY, Christine. Women andSoap Opera: A Study of Prime-Time Soaps. Inglaterra, Cambridge, Polity Press,1991; JOYRICH, Lynne. All That Television Allows: TV Melodrama,Postmodernism, and Consumer Culture. In: SPIEGEL, Lynn e MANN, Denise.(eds.) Private Screenings. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1992;MODLESKI, Tania: Loving with a Vengeance Mass-Produced Fantasies forWomen. NY, Methuen, 1982; MULVEY, Laura. Melodrama in and out of theHome. In: MCCABE, Colin. (ed.) High Theory/Low Culture. Manchester,Manchester University Press, 1986; MUMFORD, Laura Stempel. Love and Ideologyin the Afternoon, Bloomignton, Indiana University Press, 1995;SEITER, Ellen et

    alii. (eds.) Remote Control: Television, Audiences, and Cultural Power. London,Routledge, 1989.14LUTZ, Catherine. Emotion, Thought, and Estrangement: Emotions as a CulturalCategory. Cultural Anthropology1 (4), 1986.15 MODLESKI, Tania: Loving with a Vengeance... Op. cit.

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    da televiso e o trabalho das mulheres, ela afirma que asestruturas da narrativa e os closes, to usados nas soap operas,exercitam nas espectadoras a capacidade de entender sentimentosntimos. Suas experincias como espectadoras reproduzem assimseu trabalho emocional na famlia antecipando as necessidadese os desejos dos outros.

    Estas idias sobre emoes e pessoa podem ser associadas hiptese de Raymond Williams de que a indita exposio aodrama que a televiso proporcionou promoveu umadramatizao da conscincia. Com isso, ele quer dizer que ateleviso nos levou a ver nossa prpria vida cotidiana como umdrama. Ainda que eu seja reticente quanto a alguns aspectos destaanlise, lembrando a impossibilidade metodolgica de ter acesso conscincia das pessoas e um desconforto com os pressupostoshumanistas de uma vida interior no problematizada que tal termosupe, considero que o grande insightde Williams foi sugerir quealgo novo acontece com a subjetividade dos espectadores comoresultado de assistir aos dramas televisivos: no Egito, podemoschamar isto de melodramatizao da conscincia.

    Em outras palavras, a questo que a crescente hegemoniacultural do melodrama televisivo (na linha das sries do rdio e docinema) pode estar engendrando novos modos de subjetividade enovos discursos sobre a pessoa, e que podemos consider-losmodernos pela sua nfase no indivduo. As caractersticasprincipais do sujeito ocidental moderno autnomo, diferenciadodo seu entorno social, que age por si s, que se expressaverbalmente foram delineadas na literatura filosfica e histrica.Foucault nos ofereceu as teorias mais interessantes sobre odesenvolvimento das tecnologias do sujeito (burgus) moderno esuas associaes com as novas formas do poder.16 Na introduoao segundo volume da Histria da Sexualidade, ele sugere que o

    16 cf. tambm CHAKRABARTI, Dipesh. Witness to Suffering: Domestic Cruelty andthe Birth of the Modern Ssubject in Bengal. In: MITCHELL,T. ed. Questions ofmodernity. Op. cit.,pp.49-86.

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    discurso sobre a sexualidade foi fundamental para odesenvolvimento do sujeito moderno, um indivduo que sepercebe como sujeito de sua prpria sexualidade. Em trabalhosposteriores17 especulou sobre as relaes entre a confisso nocristianismo e as formas modernas das hermenuticas do si. Apsicologizao, reforada por todo o discurso da psicanlise comsua vvida colocao do eu no centro do drama narrado dadinmica familiar, um eu com um mundo interior rico econflituoso, tambm instrumental na construo dos sujeitosmodernos. E o discurso dos sentimentos e da emoo a prpriamatria do melodrama essencial ao universo psicolgico.18

    O interessante no argumento de Modleski, de que a soapopera atua no processo de ensinar s mulheres o trabalhointerpessoal, so seus pressupostos quanto aos indivduos e semoes. Ela supe mulheres que vivem em famlias burguesasmodernas e que tm um vocabulrio de sentimentos conectadoaos gestos e expressivo dos sentimentos ntimos e das verdadespessoais dos outros. Esse conjunto de pressupostos sobre aemoo e a noo de pessoa deve ser entendido como especfico

    de uma situao histrica e cultural. Como destaca Cvetkovich, acultura de massa e popular do sculo XIX teve um papelimportante na construo do discurso do afeto, fundamental paraestabelecer a hegemonia de classe mdia de uma diviso degnero entre as esferas pblica e privada e a atribuio smulheres das tarefas afetivas do lar.19

    O corolrio no teorizado do discurso do afeto, entretanto, o discurso do indivduo, o sujeito desses sentimentos que enfatizado na intensidade da emoo no melodrama egpcio. As

    17 FOUCAULT, M. Technologies of the Self. Op. cit.; About the Beginning of theHermeneutics... Op. cit.

    18 ABU-LUGHOD, L. Shifting Politics of Bedouin Love Poetry. In: LUTZ, C. andABU-LUGHOD, L. (eds.) Language and the Politics of Emotion. New York,Cambridge University Press, 1990, pp.24-25.19 CVETKOVICH, Ann. Mixed Feelings: Feminism, Mass Culture and VictorianSensationalism. New Brunswick, N.J., Rutgers University Press, 1992, p.6.

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    sries so produzidas no apenas para as mulheres, mas tambmpara os homens. E ainda que considerem os homens e as classesmais altas, no geral, como menos emotivos do que as mulheres eas classes mais baixas, todos os personagens so mais emotivosdo que seria considerado apropriado para um indivduo burguseuropeu ou norte-americano.

    Em parte, a encenao extremada de indivduosmelodramticos pode parecer necessria para aqueles que tm oobjetivo de modernizar uma sociedade baseada na famlia e narede de parentesco, cujas formas sociais, at bem pouco tempo (emesmo atualmente em algumas regies), parecem funcionar emoutra direo e com diferentes construes de pessoa. Portanto,primeiro pretendo contrastar as estruturas de sentimentomelodramticas com aquelas de outras formas da cultura popularrabe que podem ter fornecido previamente material para aconstruo e a conceituao de pessoa. Um dos objetivos revelar a particularidade das relaes entre modernidade emelodrama na formao da subjetividade. Ademais, queromostrar que o melodrama no Egito, assim como as estruturas do

    mundo social e econmico no qual as pessoas se encontram,difere de modo crucial de seus equivalentes ocidentais. Na partefinal do ensaio, volto-me para a sensibilidade e a histria de vidade uma mulher extraordinariamente envolvida com o mundo dassries de rdio e de televiso, com o objetivo de sugerir comopodemos traar a influncia de distintos formatos melodramticosnarrativos e afetivos sobre as construes da subjetividade pessoalno Egito. Tambm demonstro, no entanto, como outros aspectosda modernidade egpcia especialmente as prticas doressurgimento islmico alimentam ou sabotam o trabalho domelodrama televisivo.

    Subjetividades distintasQuaisquer que sejam suas referncias a ou suas razes em

    outras formas de expresso cultural, o melodrama televisivo

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    egpcio distinto em sua estrutura e sentimento. As sries socriadas por pessoas que conhecem a literatura, o teatro e o cinemamodernos egpcio, rabe e europeu e que se interessam pelostemas do modernismo.20 Ainda que ocasionalmente se inspiremno que consideram ser as tradies folclricas para dar uma corlocal ou gerar alguma identificao regional, ou para invocar algoautntico (como protagonistas simples que recitam provrbios),os produtores do melodrama, advindos do meio urbano e declasse mdia, diferenciam sem ambigidades seu trabalho dosprodutos da cultura tradicional egpcia ou rabe que eram, at aintroduo da mdia de massa, os formatos populares e familiaress pessoas sem escolaridade e das reas rurais. Existe umadiferena impressionante entre os estilos emocionais e osimaginrios criados pela poesia e pelas narrativas tradicionais epor aquelas da televiso.

    Esta diferena pode ser observada de modo muito evidentenas adaptaes dos formatos folclricos televiso. Isto aconteceuem 1997 com a dramatizao seriada durante o ms do Ramadando pico de Abu Zayd al-Hilali, considerado por muitos como a

    mais magnfica narrativa potica oral rabe. O pico, que na suatotalidade soma milhares de versos, acompanha as aventuras pelonorte da frica de Bani Hilal, uma tribo beduna expulsa de suasterras na Pennsula Arbica pela seca. Como descrito porSlyomovics para o Alto Egito e por Reynolds para o Baixo Egito21,ela recitada profissionalmente por poetas socialmente marginais,com talentos verbais surpreendentes, sem falar em suas memriasprodigiosas.

    O drama televisivo compartilhou com as verses impressas(provveis fontes do roteirista) um desenvolvimento cronolgico e

    20 ARMBRUST, Walter. Mass Culture and Modernism in Egypt. Cambridge,

    England, Cambridge University Press, 1996.21 SLYOMOVICS, Susan. The Merchant of Art. Berkeley, University of CaliforniaPress, 1986; REYNOLDS, Dwight. Heroic Poets, Poetic Heroes: The Ethnographyof Performance in an Arabic Oral Epic Tradition. N.Y., Ithaca, Cornell UniversityPress, 1995.

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    uma decrescente ateno ao jogo lingstico ou mesmo ao prprio jogo verbal.22 Transformou mais ainda o pico ao torn-lo ummelodrama sobre as relaes pessoais e os desejos e paixesindividuais, muitas das quais centradas no ambiente domstico. Amelhor ilustrao dessa transformao e portanto dasconvenes do gnero do melodrama seriado a forma pelaqual a srie dramatizou o nascimento do heri Abu Zayd, o filhode Rizq da tribo beduna de Hilali, e Khadra Sharifa, a filha deSharif de Meca, um descendente do profeta. O prprionascimento consistiu na primeira semana da srie televisiva,aquela considerada a mais crucial, pois este o perodo em que preciso conquistar os espectadores. A srie mostra que Khadra eraestril h muitos anos. Ainda que estivessem felizes um com ooutro, marido e mulher estavam muito tristes pela falta de umfilho. Finalmente, Khadra levada a uma nascente para suplicar.Ela v um grande pssaro preto espantando outros pssaros e rezapedindo um filho to forte e feroz como este pssaro. Na versorecitada para Slyomovics por um poeta do Alto Egito, a gravidez eo nascimento so descritos rapidamente, sendo um pouco mais

    elaborada a cena de amor depois da visita de Khadra nascente.23 Na verso gravada por Reynolds (no prelo), anarrativa mais elaborada e dramtica, mas o foco est nasreaes dos outros criana negra e na raiva e nas acusaes deRizq. Nenhuma verso lida com a emoo dos protagonistas antesdo nascimento.

    No episdio televisivo do nascimento, na verso do AltoEgito em apenas seis versos, vemos Khadra entrando em trabalhode parto, o pai ansioso do lado de fora da porta esperando onascimento, uma busca desesperada pelas ruas atrs da parteira

    22 ID. The Death-Son of Amir Khafaji: Puns in an Oral and Printed Episode of

    Sirat Bani Hilal. Journal of Arabic Literature, n 18, 1987.23 ID. The Epic of the Bani Hilal: The Birth of Abu Zayd I (Southern Egypt). In:JOHNSON, William; HALE,Thomas A. e BELCHER, Stephen. (eds.) Oral Epics from Africa: Vibrant Voices from a Vast Continent. Bloomington, Indiana UniversityPress, 1997.

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    (chamada a trs lugares ao mesmo tempo), mais sofrimento notrabalho de parto, o marido que reza, e depois, quando ouve quea criana nasceu, ajoelha-se com lgrimas nos olhos e levanta seusbraos aos cus agradecendo a Deus. Ento vemos discusses ameia voz no quarto de Khadra entre a parteira e a ajudante, aprimeira recusando-se a dar a notcia ao pai. O que houve deerrado? A parteira aponta e diz: veja. Eles levantamcuidadosamente a manta do beb. Em close, com uma msicadramtica, vemos um beb negro. A me dorme, beatificada.Quando ela senta e confrontada com essa situao, segura obeb amorosamente, dizendo inocentemente: este menino nosso filho, meu e de Rizq. Claro ou escuro uma ddiva de Deusque devemos aceitar. Ento, ela tambm fica alarmada. Elapercebe que os outros esto preocupados porque ela ser acusadade adultrio.

    No se trata de dizer que o drama televisivo emocional e opico recitado no o . O pico tambm descreve sentimentos,dentro de frmulas convencionais apropriadas. Num trechoanterior, por exemplo, Rizq e sua esposa Khadra choram de dor

    diante de sua incapacidade de ter filhos. Mas o drama da televisoenfatiza as relaes entre os personagens e a mudana deemoes de um conjunto de personagens que sempre olham parao infinito enquanto a msica evoca seus sentimentos interiores. Aoinvs de frases padro sobre as lgrimas e sua plenitude,que poderiam ser analisadas como uma fenomenologia daemoo, o drama televisivo tenta produzir mimeticamenteos estados interiores das pessoas que sentem estas emoesatravs de closes em expresses faciais e da atuaomelodramtica. Ademais, a srie traz os heris mticos para a terrae os torna pessoas comuns de acordo com o processo deindividualizao descendente que Foucault descreveu comocaracterstico dos regimes disciplinares modernos.24 O que

    24 As disciplinas marcam o momento em que se d o que podemos chamar deinverso do eixo poltico da individualizao. Em certas sociedades... pode-sedizer que a individualizao maior onde a soberania exercida e nos escales

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    reforado pela esmagadora presena visual dos mundos interiorese dos espaos domsticos (que tambm o caso, certamente, dassoap operas cujos oramentos raramente permitem os gastos deuma cena em locao externa).25

    Por outro lado, e como todas as tradies folclricas, oobjetivo central do pico oral no o desenvolvimento da vidainterior dos personagens. Como as lendas folclricas em todo oEgito, a maior parte do pico consiste no que os personagensfizeram e disseram e inclui pouca linguagem da emoo ou dosgestos e msica que a substituem no melodrama. Isso no significadizer que no se encontra nas tradies culturais a elaborao dosentimento. O gnero potico ao invs do narrativo o lugar ondeisso deve ser buscado. Mesmo assim considero que h umadiferena fundamental na localizao das emoes no melodramae na poesia. Por exemplo, os ghinnaawasou pequenas canesdos bedunos Awlad Ali sobre as quais escrevi so expressescurtas do sentimento.26 Ainda que as pessoas as recitem comoparte das histrias para expressar o sentimento de personagensespecficos, ou, por outro lado, entre os ntimos, para expressar

    mais altos do poder. Quanto mais se tem poder ou privilgio, tanto mais se marcado como um indivduo por rituais, relatos escritos ou representaes visuais. O nome e a genealogia que situam o indivduo num grupo deparentesco, a performance dos feitos que demonstram a fora superior e que soimortalizadas nos relatos literrios... so todos procedimentos de umindividualizao ascendente. Num regime disciplinar, por outro lado, aindividualizao descendente: ao passo que o poder se torna mais annimo emais funcional, aqueles sobre os quais exercido tendem a ser mais fortementeindividualizados. FOUCAULT, Michel. Discipline and Punish. New York, RandomHouse, 1978, pp.192-193.25 Seria possvel argumentar que a interioridade das cenas domsticas na soapoperaso metforas da vida interior das pessoas em torno das quais a trama sedesenvolve. Elsaesser, no seu clssico artigo sobre o melodrama no cinema, de

    fato sugeriu que o espao do lar relaciona-se ao espao interno da interioridadehumana, das emoes e do inconsciente. ApudMULVEY, Laura. Melodrama inand out of the Home. Op. cit., p.95.26 ABU-LUGHOD, Lila. Veiled Sentiments: Honor and Poetry in a Bedouin society.Berkeley, University of California Press, 1986.

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    seus prprios sentimentos sobre alguns eventos da vida, elasconsistem em frmulas convencionais. So assim, em certosentido, despersonalizadas. So repetidas e apropriadas por outraspessoas e assim tornam-se tambm descorporificadas. Ademais,muito da apreciao desses poemas como o pico de Hilali vem da poesia de sua linguagem.

    A lamentao ritual dos mortos no Egito, assim como emoutras partes do mundo rabe e mediterrneo, consiste noutraarte potica altamente desenvolvida que essencialmenteemotiva. No entanto, como Wickett demonstrou quanto ao AltoEgito, os lamentos so textos rituais proferidos numa arenaemocional27 e portanto, eu diria, diferem de modo significativodo melodrama por serem limitados em seu contexto e sentimento.So especficos ao contexto ritualizado do funeral. Inversamente, omelodrama cobre uma ampla gama de emoes que soconectadas aos indivduos e inseridas no mundo cotidiano,comum e domstico.

    Ao ressaltar estes contrastes, no quero afirmar a existnciade uma distino rgida entre modernidade e tradio, como se a

    arte folclrica habitasse (e definisse) o passado tradicional e omelodrama valesse para o momento contemporneo. H todo otipo de inter-referncias e transformaes, especialmente quandoas formas tradicionais adentram o mundo da mdia de massacontempornea com o melodrama. Antes, considero que osmelodramas televisivos oferecem construes do mundo eimagens de pessoas que so distintas, particularmente numcontexto definido por formas tradicionais e modos de vidatradicionais dos quais os autores e diretores modernistas buscamse distanciar. Sua especificidade consiste na emotividade domundo cotidiano, que por sua vez age no sentido de destacar aimportncia do sujeito individual o locuse a fonte de todos estessentimentos exacerbados.

    27 WICKETT, Elizabeth. For Our Destinies: The Funerary Lament of UpperEgypt. Ph.D. diss., University of Pensylvania, 1993, p.166.

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    Herona de seu melodramaPara ilustrar como o melodrama televisivo pode informar

    vidas individuais, quero refletir sobre a pessoa que conheci noEgito que parecia estar mais intensamente envolvida com omelodrama do rdio e da televiso: uma empregada domsticasolteira do Cairo que chamo aqui de Amira.28 Meu trabalho decampo sobre recepo de televiso se deu com empregadasdomsticas no Cairo e com mulheres numa aldeia no Alto Egito,ambos grupos socialmente marginalizados. Muitas empregadasdomsticas tinham uma situao difcil semelhante de Amira,mas, como as mulheres da aldeia ocupadas com suas famlias,tinham menos envolvimento com a televiso. Amira, no entanto,ouvia o rdio enquanto cozinhava para seus patres. Quandopodia, interrompia o trabalho para assistir srie do meio-dia nateleviso. Sempre acompanhava as noturnas quando chegava emcasa. Tinha bastante informao sobre atores e atrizes, e assistiano apenas maioria das sries, mas tambm maioria dosfilmes populares egpcios exibidos pela televiso. Inteligente e

    articulada, ela lembrava da maioria das tramas e as resumiafacilmente. Raramente assistia aos programas estrangeirosimportados.

    Solteira e sem filhos, ela era mais livre para seguir osprogramas da TV e mais dependente deles para ter companhia eenvolvimento social e emocional do que a maioria das mulheresque conheci no Egito. Ela era um tanto isolada socialmente, pois vivia sozinha. Sua me e irmos viviam no interior. Seusprincipais contatos no Cairo eram sua irm solteira, com quem,porm, tinha constantes conflitos, e uma amiga solteira que

    28 Desde 1990 venho realizando meu trabalho de campo no Egito em duaslocalidades: no Cairo, onde entrevistei os produtores de televiso e tenhopesquisado junto a empregadas domsticas enquanto espectadoras de televiso;e numa aldeia no Alto Egito. Quanto s reaes televiso no meio rural, cf.ABU-LUGHOD, L. The Interpretation of Culture(s) after Television. Op. cit.; eTelevision and the Virtues of Education... Op. cit.

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    tambm viera de rea rural para o Cairo para trabalhar comoempregada domstica. Com ambas costumava assistir televiso.

    Amira era mais sentimental e mais inconstante do que amaioria das mulheres que conheci. Estava sempre emocionadacom as sries que acompanhava. Quando assistamos televiso juntas, suas explicaes para personagens especficos eramcarregadas de valores morais e emocionais. Seu sentimentalismose estendia para outras reas. Em 1990, quando vimos pelateleviso um clipe que mostrava pessoas chorando depois de umterremoto no Ir, isso a fez lembrar como havia chorado por umahora depois que o time de futebol egpcio perdera um jogo naCopa do Mundo. Ela tinha ficado acordada at altas horas damadrugada para ver o jogo. Ficou triste porque eles lutaramtanto e ficaram to cansados, mas Deus no os recompensou.Ela chorou quando perderam o jogo e depois novamente ao veros jogadores que choravam. Doeu muito. O estilo emocional de Amira ia alm do mundo da televiso. Ela estava sempreenvolvida em conflitos e discusses com sua irm, seus patres,seus vizinhos.

    Ainda que eu no possa afirmar uma ligao causal diretaentre seu envolvimento com as sries e sua emotividade, suspeitoque exista tal relao. Entretanto, h outras associaes maisbvias entre o melodrama televisivo e a maneira pela qual ela seconstri enquanto sujeito. Esta ligao se d atravs da forma pelaqual ela se v como sujeito de sua prpria histria de vida.Considero surpreendente que de todas as mulheres cujas histriasde vida eu ouvi, era na voz de Amira que a histria assumiaclaramente a forma do melodrama. Ela via o mundo de um modomaniquesta, com pessoas boas e gentis que a ajudavam e eramgenerosas, e pessoas egostas, ms ou cruis, que a faziam sofrer.

    Era possvel notar essa lgica pelo modo como contava ahistria de sua vinda para o Cairo na busca de uma vida melhor. Amira veio de uma famlia pobre e trabalhou na construo,carregando areia e terra em troca de pagamento por dia detrabalho. Ela queria vir para o Cairo, pois via suas irms, que aqui

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    trabalhavam, voltarem para casa bem vestidas e usando jias deouro. Aos 19 anos, finalmente migrou. Mas ficou apenas um msno novo emprego. A famlia a maltratava. Acordavam-na s seisda manh, no lhe davam comida, mantinham os alimentostrancados, e pagavam apenas 6 libras egpcias por ms(aproximadamente 9 dlares naquela poca). Ela chorou muito efinalmente convenceu sua irm a dizer a seus patres que elatinha que voltar para casa para cuidar de um parente doente. Achou outro emprego, e depois outro. A cada vez, encontravauma desculpa para voltar para sua aldeia. Finalmente encontroutrabalho como cozinheira numa famlia boa e ali permaneceu poroito anos. Os temas se repetem: explorada e maltratada, a vtimainocente escapa at que o destino a faz encontrar pessoas boas.

    Todos os elementos do drama se cristalizam quando falasobre seu curto casamento. Na poca de uma de nossasconversas, aos 37 anos, ela declarou que estava velha demais parater esperana de se casar. Quem vai querer casar comigo?Porm, antes, em 1985, algum quis, quando ela tinhaaproximadamente 30 anos. A fluidez com a qual ela contou a

    histria fez parecer que se tratava de uma narrativa bem ensaiada.Quando um encanador que a viu no trabalho perguntou sobre apossibilidade de se casarem, ela disse-lhe para conversar com seucunhado. Ficaram noivos por quatro meses, mas ela nunca ia alugar algum com ele. Quando ela sugeria um passeio, elerecusava. Ela afirma que porque ele no queria que eladescobrisse como ele era ou nada sobre ele.

    Quando se casaram, ele comeou a bater nela. Ele queriaque ela lhe desse seu salrio. Ela recusava, dizendo que tinha quepagar um emprstimo e planejava ficar em casa. Amira explicavaque um homem deve sustentar sua esposa. Ele a trancava emcasa. Ela s queria se livrar dele e ento procurou seu cunhado que considerava ser o responsvel pela situao, pois deveria tertirado mais informaes sobre aquele homem para que elepagasse as mil libras egpcias (aproximadamente 700 dlares) paraconseguir o divrcio. Na verdade, descobriu que ele era um

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    delinqente de um bairro pobre. Amira tem certeza que ele queriamat-la para ficar com seu apartamento. No final, o casamentodurou 29 dias.

    Acrescentou com amargura que os homens egpcios noprestam. Muitos homens a pediram em casamento homens dasruas, que ela conhece onde trabalha. Mas todos eles querem seudinheiro, e quando descobrem que ela tem um apartamento emveis percebem que s tero que contribuir com coisas simplescomo dote. Seu marido, por exemplo, comprou os mveis dasala, mas ela j tinha o apartamento e os mveis do quarto.(Com o dficit habitacional, o preo exorbitante para as chavesque precisa ser pago para se conseguir alugar uma unidade,e os custos de mobiliar o apartamento, considerado deresponsabilidade do noivo, para muitos homens jovens muitodifcil se casar.)

    Devemos nos perguntar, como fizeram Ruth Behar e LaurelKendall29, sobre as qualidades narrativas de uma histria de vida.Se a histria de vida da informante mexicana de Behar eraformada pelo modelo cristo de sofrimento e redeno, a de

    Amira se conforma melhor ao modelo do melodrama. Como osdramas televisionados, os temas de sua histria so dinheiro, como vilo tentando roubar-lhe o que ganhava, e segredo, quanto verdade de seu sinistro marido ter sido descoberta tarde demais. Aherona melodramtica, inocente e boa, enganada e vitimada.Buscando uma vida melhor, simbolizada pelas boas roupas e oouro de suas irms, ela deixa sua aldeia e seu lar para acabarenfrentando excesso de trabalho, mau pagamento e fome numacasa em que a comida ficava trancada a chave. Buscando amor ecompanhia, ou respeitabilidade o que quer que seja que umcasamento deveria significar ela enganada.

    29 BEHAR, Ruth. Rage and Redemption: Reading the Life Story of MexicanMarketing Woman. Feminist Studies16, 1990, pp.223-58; KENDALL, Laurel. TheLife and Hard Times of Korean Shaman. Honolulu, University of Hawaii Press,1988.

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    O que considero mais significativo sobre sua forma decontar sua histria de vida, entretanto, que atravs dela Amira seconstri como sujeito, como a herona melodramtica de suaprpria vida. Talvez inspirada parcialmente pelo seu amor pelosmelodramas televisivos, foi estimulada a encarar-se como sujeitodas emoes que a tomaram, e assim v-se ainda mais como umindivduo. Esta perspectiva sobre si prpria a coloca numa posiomelhor para se tornar uma cidad moderna, que consiste num dosobjetivos dos produtores dos melodramas. Para Amira, estaposio reforada pelas estruturas de sua vida: seu status demigrante, separada da famlia, contando com sua prpria fora detrabalho para sobreviver, seu apartamento privado com suascontas de gua e luz e a sujeio lei e aos impostos como umindivduo.

    Diferenas ps-coloniaisEntretanto, a histria e a vida de Amira apresentam certos

    aspectos que as tornam mais complexas para que sejam

    consideradas como uma narrativa direta sobre o processo de setornar um sujeito individual moderno, como poderamos pensarde acordo com a lgica ocidental que nos familiar. Em primeirolugar, sua histria trgica marcada por ausncias e falhas crticas. A mais especfica a falha do cunhado em assumir seriamentesuas responsabilidades familiares de proteg-la de um casamentoruim. De modo geral, ela sugere que sua vulnerabilidade causada pela ausncia de uma famlia forte que possa sustent-lae evitar que tenha que trabalhar como empregada. Seu vazioadvm de sua incapacidade de casar e ter uma famlia sua, comofaz a maioria das mulheres. Em todas as histrias de vida deempregadas domsticas que gravei, a ruptura do ideal da insero

    da mulher na famlia e no casamento sempre explica suacolocao num trabalho pesado e no respeitvel, motivopelo qual, em certo sentido, no sejam consideradas pessoascompletas. A histria de Amira, ainda que seja contada

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    A prtica religiosa organiza a agenda de Amira, informa seusentido de si, e d cor ao seu entendimento do mundo tantoquanto o trabalho e as sries da televiso. Desde o florescimentodo islamismo em meados dos anos 80, tornou-se muito maisaceita a presena de mulheres orando e assistindo a aulasreligiosas nas mesquitas. As mesmas caractersticas estruturais quetornam Amira mais dependente da televiso e mais livre paraacompanhar seus programas o fato de morar sozinha, no sercasada e no ter filhos lhe permite tambm mais tempo pararezar regularmente, freqentar a mesquita s sextas-feiras e, s vezes, tambm aps o trabalho, participar nas oraes especiaisdo Ramadan, o ms de devoo especial e de jejum, assim comoassistir muito televiso. Portanto, no surpreendente que elause o higab, o modesto leno de cabea que se tornou uma modacomo sinal de devoo religiosa e respeitabilidade de classe mdianas aldeias e cidades. A participao regular de Amira nas aulasda mesquita intensificou sua identidade muulmana e deu sentidoao uso desta pea do vesturio. Como resultado destaidentificao e da prtica religiosa, Amira se insere numa

    comunidade, mas no naquela em que os cidados se relacionamenquanto indivduos, como supem os roteiristas de televiso.31Todavia, muitas das atitudes religiosas de Amira so

    voltadas para si mesma, e podem ser consideradas como seestivessem na mesma tendncia do processo individualizante einteriorizante do melodrama televisivo (ainda que muitasautoridades religiosas preguem contra a televiso). Isso especialmente marcante na disciplina de jejuar, que ela faz commuita seriedade. Amira jejua todos os dias do Ramadan, como amaioria dos muulmanos egpcios, compensando os dias da

    Ann (eds.) Tensions of Empire. Berkeley, University of California Press, 1997,

    pp.373-405.31 ABU-LUGHOD, L. Finding a Place for Islam. Op. cit.; The Objects of SoapOpera. Op. cit.; Dramatic Reversals. In: STORK, Joe and BEININ, Joey. (eds.)Political Islam. Berkeley, University of California Press, 1996, pp.269-82; eTelevision and the Virtues of Education... Op. cit.

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    ao discurso sobre Deus assim como o faz o pico apresentadooralmente, que recitado por e para pessoas que tm areligiosidade muulmana como parte importante da identidade.Todavia, h uma diferena marcante na forma que a religiosidadeassume na verso televisionada e no pico oral recitado porpoetas tradicionais. Este ponto remete ao fato de que a religiotelevisiva, assim como a de Amira, talvez seja parte de uma novaindividualizao da religio.

    No pico recitado no Egito, o poder de Deus um temaconstante. Todos os grandes feitos e acontecimentos miraculosos,como o nascimento do heri Abu Zayd, so atribudos a Deus. Ospoetas sempre iniciam seus cantos com um poema de louvor aoProfeta. Esta poesia de glorificao introduz os temas dossegmentos que sero recitados, mas tambm tem o efeito retricode louvar o prprio poeta ao associar suas habilidades com ostatus do Profeta, cujas palavras divinas so miraculosas, assimcomo louvar a audincia por ser parte da comunidademuulmana.33

    As sries de televiso tambm representam os poderes

    miraculosos de Deus: em efeitos especiais computadorizadoscomo o pssaro cuja fora Khadra suplica para seu filho. Todavia,no geral, a religio figura como a origem da atitude emocional dospersonagens sua splica, seu espanto e sua gratido. Isso notvel quando Rizq, o pai do heri, espera ansiosamenteenquanto sua esposa est em trabalho de parto. H um corte parauma cena dele ao lado de seu cavalo olhando para o sol (talvez onascer do sol de um dia), suas mos em posio de prece. Devolta casa, suas mos esto unidas, e ele pede a Deus que suaesposa fique bem. Quando ouve a notcia de que tem um filho, elerepete vrias vezes, mil louvores, graas ao Senhor. Ele olhapara diversas partes da sala, com os braos aos cus, agradece ao

    33SLYOMOVICS, S. Forthcoming. Praise of God, Praise of Self, Praise of the IslamicPeople: Arab Epic Narrative in Performance. In: ABU-HAIDAR, Jareer e ABU-HAIDAR, Farida. (eds.) Classical and Popular Medieval Arabic Literature: AMarriage of Convenience. London, Curzon Press [no prelo].

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    generoso Deus por ter lhe dado um filho depois de tantos anos, epor encerrar seu sofrimento e permitir que ele encare os outroshomens, sabendo que seu nome ter continuidade. Cai ento de joelhos, dando graas a Deus novamente. Depois sua esposa dizque aceita o filho como uma ddiva divina. Nestas cenas, a fpessoal, e no o poder de Deus, exaltada. A devoo torna-seuma caracterstica individual.

    Contextos sociais e inflexes nacionaisH alguns anos, enquanto eu estava no meio de minha

    pesquisa sobre televiso no Egito, apareceu numa revista femininapopular um artigo de Muna Hilmi, filha de Nawal El-Saadawi,uma escritora egpcia feminista conhecida no ocidente. Elaelogiava a soap operadiurna The Bold and the Beautiful, que eraento exibida na televiso (e amplamente condenada pelaintelligentsiaegpcia). Ela contrastava esta narrativa com as sriesegpcias que criticava por sua ateno exagerada a problemassociais e polticos. Ela enaltecia a soap operaamericana por seu

    feminismo (representava personagens femininas fortes queestavam determinadas a atingir seus objetivos nas suas carreiras esuas vidas), mas principalmente por sua explorao sutil da psiquehumana.

    O que tentei demonstrar aqui, todavia, que a emotividadee a domesticidade, que caracterizam os melodramas egpcios convenes do gnero desenvolvidas por profissionais cultos (queno diferem de Muna Hilmi) no contexto dos gneros egpcios ede suas circunstncias sociais , podem ser parte de um esforopara construir indivduos com intensa vida interior e encorajar odesenvolvimento das psiques humanas que ela exalta. Mas huma diferena. As psiques humanas numa soap operaamericana,

    como The Bold and the Beautiful, no apresentam nenhumcontexto poltico bvio, um aspecto que inicialmente a tornouinofensiva aos olhos dos censores egpcios. Inversamente, osprodutores que trabalham num meio controlado pelo governo,

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    imbudos da ideologia do desenvolvimento nacional e do legadodos ideais socialistas rabes, insistem em posicionar seuspersonagens dentro do nexo social e moral nacional. Devido crescente hegemonia de uma identidade religiosa assertiva numasociedade em que as pessoas nunca aceitaram o princpio de quea prtica e a moralidade religiosa no fossem parte da vidamoderna cotidiana algo que Muna Hilmi e a classe que elarepresenta provavelmente no aprovam , os vetores damodernidade se cruzam. O melodrama, e em certa medida o quedefendo como um novo foco no eu da prtica religiosa, podepromover novos tipos de subjetividades individualizadas, que umadefensora sofisticada da secularizao moderna como Hilmiest buscando. Todavia, este novo foco no eu, complicado porprocessos semelhantes associados s prticas religiosascontemporneas, contrabalanado por laos de parentescoduradouros e por uma poltica de identidade religiosa, muitoatraente e moderna, que afasta os sujeitos do individualismo e osatrai na direo de comunidades com suas prprias autoridades edisciplinas.

    A mdia de massa tornou o gnero melodramtico parte da vida cotidiana da maioria dos egpcios. Este desenvolvimentopode ter levado a uma melodramatizao da conscincia, pararetomar minha adaptao da expresso de Raymond Williams, aooferecer modelos de subjetividade e de narrativa do eu atravs depersonagens cujas vidas cotidianas so marcadas pelaemotividade. Esta melodramatizao pode de fato estar associadaao que Brooks denominou sensibilidades modernas, quereforam sujeitos individuados apropriados cidadania e talvez aoconsumismo.

    Entretanto, evidente que h inflexes nacionais de gnerosnarrativos comuns e que os contextos sociais de recepo afetamprofundamente, e podem at destruir, o impacto dos projetos dateleviso. No Egito, as sries esto mais associadas ao contextopoltico e mais preocupadas com questes sociais do que aquelasatualmente produzidas em alguns outros pases. Elas tambm so

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    bem variadas em suas mensagens polticas e posio moral,dependendo de seus autores e diretores. Por isso preciso refletircalmamente antes de generalizar concluses sobre o melodrama,baseadas em estudos sobre as novelas francesas ou as soap operasamericanas diurnas.

    Mais importante para uma compreenso situada da mdia a forma pela qual o contexto social especfico do Egito nos anos90 conforma a recepo. A televiso estatal e aqueles que aproduzem podem tentar refletir certas transformaes sociais paraganhar popularidade, assim como tentaram durante anos, deacordo com as ideologias do desenvolvimento, moldar asaudincias e traz-las a uma modernidade nacional. Todavia, nopodem controlar as experincias que as pessoas buscam fora domomento de assistir televiso ou no mundo social cotidiano emque levam suas vidas. No campo cada vez mais popular da prticareligiosa, parte da individualizao promovida pelo melodrama(evidente tanto em sries seculares como naquelas com temasreligiosos) pode ser reforada pelas prticas atuais de cultivomoral do eu. Mas assim como os laos de parentesco, que

    continuam importantes nos novos contextos, as identidadesreligiosas nesta era supostamente ps-sagrada levam osindivduos comunidade, enfatizando seus laos com os outros ecom Deus, e no a distino do eu. So estas experincias queconstituem com certeza outra dimenso da sensibilidademoderna no Egito, cortando aquelas do melodrama televisivo.