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MEMÓRIA E A DIMENSÃO POLÍTICA DA IDENTIDADE NA COMUNIDADE CANELA - ESTADO DO TOCANTINS (2000 - 2008)
“Ser do Canela é como você chegar a um local
com uma roupa de trabalho, grosseiro,
e todo mundo estar de terno”
João da Cruz - presidente da AMOC
Essa tese é um esforço de compreensão da dinâmica recente de construção de
comunidades identitárias no Brasil, através do estudo do deslocamento de um povoado,
o povoado de Canela, originalmente ribeirinho, em razão da construção da hidrelétrica
de Lajeado em 2001. Tal povoado, reassentado em novo contexto urbano,
artificialmente criado – a cidade de Palmas –, reinventa-se, não mais como povoado,
mas como comunidade identitária, cujo fundamento encontrar-se-ia no tripé: tradição,
memória e reparação.
O enfoque principal de minha análise são as narrativas identitárias da
comunidade Canela1, objeto desta pesquisa. Através de entrevistas e fontes escritas
analiso como os membros da comunidade constroem suas estratégias de sobrevivência
1 Temos conhecimento da existência de uma comunidade indígena chamada de Ramkokamekekra-Canela no estado do Maranhão, mas até o momento não encontramos registros de comprovação de que exista uma relação de parentesco entre esta comunidade e a do Canela aqui considerada.
2
que promovem coesão social e reprodução de aspectos simbólicos que ajudam a
organizar a percepção tanto sobre suas relações dentro e fora da comunidade, quanto
sobre o novo mundo no qual seus membros estão inseridos.
A construção da Usina Hidrelétrica Luis Eduardo Magalhães, inaugurada em 5
de outubro 2001, é o evento fundamental que motivou esse estudo, uma vez que
demarcou um importante ponto de inflexão na vida da comunidade Canela. Antes, a
existência no espaço ribeirinho, às margens do rio Tocantins; depois, a existência no
espaço urbano, na cidade de Palmas.
A análise adotada nesta pesquisa se enquadra na perspectiva da história do
tempo presente, pois “trata-se de um estudo sobre uma história inacabada, ou seja, uma
história em constante movimento, refletindo as comoções que se desenrolam diante de
nós e sendo, portanto, objeto de olhares renovados” (BEDARIDÀ, 1996, p. 229).
Enquadra-se também na metodologia da “história oral”, por se tratar de uma
metodologia que nos permite perceber através das narrativas dos membros da
comunidade, a produção retórica gestada ao longo do processo de mudança para
Palmas, bem como em suas práticas cotidianas, sobre as quais se assentam os valores
identitários, baseados em tradição, memória e reparação, que dão sustentação ao
3
“grupo”, como grupo identitário, frente às novas oportunidades políticas, sociais e
culturais que se apresentam para a comunidade.2
Antes de iniciar a análise da comunidade Canela em suas formas contingentes de
expressão identitária, chamo a atenção para o campo de estudos sobre comunidades
ribeirinhas em situação de reassentamento, tais como comunidades caboclas, indígenas
e quilombolas, cuja ênfase, de modo geral, recai sobre o problema dos impactos
ambientais sofridos por essas comunidades. A historiografia sobre trajetórias de
populações ribeirinhas em razão da construção de hidrelétricas, especialmente no
interior do País, é quase inexistente, especialmente por tratar-se de temas cujas
problematizações os colocam, não raro, na categoria de história do tempo presente. Não
é incomum que os estudos sobre esse tema, mesmo desenvolvidos por historiadores
como Temis Gomes Parente, Odair Giraldin, Noeci Carvalho Messias, Juciene Ricarte
Apolinário3, por exemplo, acabem ganhando um tom mais sociológico ou
2 Ver ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, e ALBERTI, Verena.. Ouvir contar – Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, e também, PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. 3 PARENTE, Temis Gomes & MAGALHÃES, Hilda G. Dutra. (Orgs.). Linguagens plurais – cultura e meio ambiente. Bauru-SP.: EDUSC, 2008. GIRALDIN, Odair (Org.). A (trans)formação histórica do Tocantins. Goiânia: Editora da UFG, 2004. MESSIAS, Noeci Carvalho. Patrimônio cultural: entre o tradicional e a modernidade com a chegada da hidrelétrica de Lajeado, Porto Nacional-TO., 2004– Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2004. Dissertação de Mestrado. MESSIAS, Noeci Carvalho. Religiosidade e Devoção: As festas do Divino e do Rosário em Monte do Carmo e em Natividade – TO. UFG, Goiânia, 2010. Tese de Doutorado. APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas Fronteiras do Sertão. Políticas indígena e indigenista no norte da capitania de Goiás, atual Estado do Tocantins, século XVIII. Goiânia: Kelps, 2006.
4
antropológico, por se preocuparem mais com as condições presentes de sobrevivência
dessas populações do que propriamente com o resgate de possíveis regimes de
historicidades. Mesmo a presente pesquisa deparou-se com enormes dificuldades para
garantir uma moldura mais histórica ao tema. A falta de documentos e as imprecisões
das narrativas empurravam a pesquisa para problematizações mais sociológicas. Assim,
podemos observar, em um mapeamento dos estudos sobre o tema das populações
deslocadas, a evidente escassez de trabalhos ocupados com a pesquisa histórica.
Diversos estudos tratam tanto a questão da identidade, quanto a da
desterritorialização, como fatores fundamentais para a compreensão desses processos
que, de várias maneiras, afeta a vida individual e comunitária dessas populações.
Contudo, em sua maioria, privilegiam os impactos ambientais sofridos pelas
comunidades deslocadas, enfatizando a destruição da natureza, o desmatamento, a
necessidade de um desenvolvimento sustentável e as implicações econômicas sofridas
por essas populações que são, em geral, retratadas como povos sem força política para
enfrentar os grandes interesses capitalistas, mas que, ao mesmo tempo, constroem
estratégias de sobrevivência em universo de relações sociais precárias e de enorme
pressão econômica. Em sua tese de doutorado, Burian (2006), argumenta que os
processos de licenciamento ambiental, como conseqüência das pressões dos
movimentos sociais e das agências multilaterais de financiamento para a absorção da
temática socioambiental no nível institucional, têm desempenhado papel importante
5
para que as questões socioambientais sejam devidamente incorporadas ao setor elétrico
brasileiro. A intenção do autor é levantar os aspectos que permeiam a relação do setor
elétrico e o meio ambiente, demonstrando como as incertezas da era pós-moderna
também se refletem nos mecanismos de licenciamento ambiental.
Outro trabalho que segue essa linha ambientalista é o de Leal da Paz (2006), que
ao tratar da relação entre hidrelétrica e povos indígenas na Amazônia, trata a
complexidade dos grandes impactos que as usinas causam no meio ambiente físico, mas
principalmente, trata das grandes mudanças no meio sócio-econômico, destacando as
decisões políticas pela eficiência econômico-energética. No seu estudo, a autora buscou
analisar de que modo é possível estabelecer ações que levem a um desenvolvimento
sustentável considerando as questões conflituosas no processo que envolve usinas
hidrelétricas e terras indígenas na Amazônia.
“Hidrelétricas e povos indígenas” é um livro organizado por Silvio Coelho dos
Santos e Aneliese Nacke (2003), que traz vários textos que corroboram a questão dos
impactos ambientais de norte a sul do Brasil demonstrando o quanto esses “projetos
desenvolvimentistas” remontam ao velho processo de invasão de terras no país. Já “Os
impactos ambientais urbanos”, livro organizado por Antonio Guerra e Cunha (2009),
retrata, mais precisamente, o crescimento desordenado e a concentração da população
nos centros urbanos, trazendo exemplos de cidades brasileiras como Rio de Janeiro,
Teresópolis, Florianópolis, Sorriso, Açailândia e São Paulo. Esse trabalho é aqui
importante por mostrar que essa não é uma questão presente apenas no interior do país e
6
que não se resume à floresta amazônica ou aos grandes rios, ou seja, a forma como nos
aglomeramos e nos comportamentos nas cidades também produz impacto e destruição
ao meio ambiente. A literatura que lida com o impacto ambiental das hidrelétricas,
como vimos, apresenta narrativas cujo viés ideológico, não raro, se insinuam.
Em uma outra perspectiva, temos alguns trabalhos que, ao tratar essas
populações ribeirinhas que experimentam formas de deslocamento territoriais, lidam
com a questão da identidade e da memória, abordagens mais próximas às que eu
proponho aqui. Musolino (2006), em sua tese de doutorado enfatiza o movimento
migratório e a questão da identidade étnica do grupo indígena Polikur no estado do
Amapá, tendo em vista que nos limites da fronteira com a Guiana Francesa, eles a um
só tempo assumem as nacionalidades francesa e brasileira, sem abandonar a identidade
étnica. Costa (2002), em artigo intitulado, “Hidroelétricas de grande escala em
ecossistemas amazônicos: a Volta do Grande Xingu”; destaca a ausência de
preocupações com os grupos sociais impactados pela efetivação dos projetos
hidrelétricos; aponta ainda para os impactos sociais e as suas conseqüências nessas
comunidades, tais como a exclusão social, falta de indenizações e degradação social
típicas em casos de fronteira como no estado do Pará, mais precisamente em Marabá e
Tucuruí, em uma chave na qual a vitimização e a despotencialização desses povos são
especialmente enfatizadas.
Outra tese importante, que difere das demais acima citadas, até certo ponto pela
temática, mas mais pela região estudada, é a de Luis Antonio Pasqueti (2007),
7
intitulada: “Terra ocupada: identidades reconstruídas – 1984/2004”. Trata-se de um
estudo de caso na região norte do estado do Rio Grande do Sul. Nela encontramos uma
análise sobre o “Movimento dos Sem Terra” que identifica os códigos sociais
compartilhados coletivamente, as relações de cooperação e conflito que ocorrem tanto
no acampamento, assentamento, como no próprio Movimento. São analisados os
valores, símbolos e significados partilhados e disputados por estes trabalhadores na luta
pela terra, resultando em uma constatação de que existem múltiplas identidades como
uma obra em aberto em constante processo de reconstrução.
No que se refere à questão da desterritorialização e sua relação com impactos
ambientais encontramos na dissertação de mestrado de Kênia Gonçalves Itacamaraby
(2006), um importante ponto de vista sobre justiça ambiental que elege os
procedimentos de deslocamento compulsório de populações tradicionais resultantes de
barragens para fins de geração de energia elétrica destacando a evidente desigualdade de
poder que acaba por reproduzir a invisibilidade do “diferente” e, portanto a exclusão
sociocultural. A dissertação de mestrado de Noeci Carvalho Messias (2004) discute as
mudanças trazidas pela construção da hidrelétrica de Lajeado em Porto Nacional -
Tocantins, contexto que também trabalho. Sua preocupação, contudo, é mostrar o
processo de mudanças no patrimônio cultural da cidade decorrente desse “projeto de
desenvolvimento”, destacando a relação entre modernidade e tradição no contexto
social portuense.
8
O cenário de estudos acima destacado é, na verdade, uma demonstração de como
vem sendo tratado o impacto da construção de hidrelétricas no país de modo geral, e na
Amazônia, em particular. Esses estudos são importantes contribuições para o
desvelamento de processos de desterritorialização de pequenas populações em diversas
regiões no Brasil, mas, em geral, apresentam cenários cuja ênfase encontra-se na
pressão econômica, na opressão social e na fragilidade política. A pesquisa que
desenvolvi busca dialogar criticamente com esses estudos. Trata-se de destacar
situações semelhantes, todavia, através de abordagem na qual o acento encontra-se na
historicidade da imaginação identitária de populações ribeirinhas em suas
reconfigurações através de deslocamento territorial. A presente pesquisa teve como
alvo, a identificação e problematização de processos nos quais os atores ribeirinhos não
são apenas meros objetos, ou melhor, joguetes, de interesses globais e regionais de
poderosas pressões econômicas. Trata-se aqui de reorientar o foco para as formas
estratégicas, não necessariamente coerentes, de invenção de desenhos identitários, de
rearticulação de poderes, de reconfiguração de rituais de “sobrevivência” cultural em
contexto político no qual as identidades vêm se transformando em moeda de negociação
política. Por tratar da construção da identidade a partir da transferência de uma
comunidade para outro espaço, tendo em vista os impactos sofridos por ela devido à
construção de uma Usina Hidrelétrica, os conceitos de território e espaço nos são
indispensáveis.
Percebemos território como um espaço que abriga identidade ou mesmo como
um espaço de identificação. Na perspectiva de Medeiros (2009, p.217-218), o
9
sentimento é a sua base e a forma espacial importa muito pouco, pois esta pode ser
variável. Trata-se nesse caso de identidades itinerantes ou em permanente diáspora, cuja
territorialidade pode ser mais virtual do que real. O “território”, nesse caso pode mesmo
ser imaginário e até mesmo sonhado. É a partir deste imaginário que a sua construção
tem inicio. O espaço e o território não podem ser dissociados, pois enquanto o primeiro
se faz necessário para demarcar a existência do segundo, este último por sua vez, é a
condição para que o espaço se humanize. O território é um espaço político, um jogo
político, um lugar de poder. Negar o território é risco de crise. O território também pode
ser um lugar de ritos, expressando valores e confrontando crenças.
Para Saquet (2007, p. 27), o território é um compartimento do espaço como fruto
de sua diversificação e organização e tem duas funções principais: servir de abrigo,
como forma de segurança, e servir como trampolim para oportunidades, daí a sua
relação direta com o poder e a dominação. Neste sentido o território assume significados
distintos para diferentes sociedades ou grupos sociais dominantes.
No Brasil, Rogério Haesbaert dispõe de dois estudos importantes que tratam de
questões relacionadas a território e identidade. O primeiro, intitulado
Desterritorialização e identidade - a rede “gaúcha” no nordeste de 1997, no qual
discute a nordestinidade e o gauchismo como formas de entender as relações do
conceito de identidade e de territórios. Enquanto o segundo, “O mito da
desterritorialização”, aponta várias concepções de território em diferentes áreas do
conhecimento como a da geografia, da política, da economia, da antropologia, da
10
sociologia e a área da psicologia. A desterritorialização, de acordo com o autor, está
ligada à fragilidade das fronteiras, especialmente das fronteiras estatais – o território,
sendo aí, sobretudo um território político.
Segundo Haesbaert (2006, p. 35), desterritorialização também pode estar ligada
à hibridização cultural que impede o reconhecimento de identidades claramente
definidas. O território aqui é, antes de tudo, um território simbólico, ou um espaço de
referência para a construção de identidades. Entendemos que a concepção de território
como uma noção simbólico-cultural, mais subjetiva, que diz respeito à apropriação e
valorização simbólica, e a noção de desterritorialização como negociação política, se
enquadram na nossa proposta de analisar a comunidade Canela, situada anteriormente
no espaço agora ocupado pelo lago da hidrelétrica, através das transformações sofridas
com a transferência para o espaço urbano da cidade de Palmas, que promove a res-
significação dos valores sócio-culturais, que em tese seriam naturalizados pelos seus
membros, em outro espaço.
Portanto, este estudo visa analisar a construção da identidade Canela, tendo em
vista que nesta comunidade, como a pesquisa pôde atestar, não se elaborava uma
“identidade” bem delineada antes da construção de Palmas, tampouco antes da
construção da usina hidrelétrica. Daí a importância de tal evento se constituir num
marco fundamental por promover a um só tempo o processo de desterritorialização da
comunidade e de construção de suas fronteiras identitárias, ou seja, por promover a
11
consciência de pertencimento e existência enquanto comunidade, dos ribeirinhos do
Canela.
Por outro lado, esse fenômeno que identifico no povoado Canela, de “invenção
identitária” não é exatamente uma expressão do conceito de fricção interétnica
desenvolvido por Roberto Cardoso de Oliveira (1976). Este nos é bem vindo por tratar
de um aspecto relevante para o momento histórico atual em que se encontra os atores
sociais do Canela frente aos demais agentes já na cidade de Palmas. A fricção
interétnica significa a existência de uma tensão entre grupos de diferentes culturas numa
relação marcada pela dominação e sujeição, um caráter contrastivo e relacional que
Barth (1969) já analisava ao definir grupo étnico como uma “unidade portadora de
cultura” que é o resultado da partilha de uma cultura comum frente às outras
organizações culturais, levada a efeito pela autoatribuição e atribuição por outros.
Reconheço a importância de se considerar a relação com o outro na
compreensão do processo de contato entre culturas. Entretanto, as noções de identidade,
cultura e comunidade não se constituem, na presente análise, em unidade fechada,
estática. Seus portadores, ao inventar a identidade Canela, o fizeram mais como
estratégia do que propriamente por consenso quanto aos sentimentos de pertença.
Avanço um pouco mais nessa questão da formação de identidade quando utilizo
Bauman (2003), para reforçar uma noção mais ambivalente de identidade. A literatura
sociológica e antropológica contemporânea de Zygmunt Bauman, Stuart Hall e Norbert
Elias mais se aproximam dos conceitos de identidade dinâmica, fluida, ambivalente, em
12
permanente processo de mudança e transformação, que considero fundamentais em
minha análise.
Para Bauman, (2003, p. 7), as palavras tem significado: algumas delas, porém,
guardam sensações: a palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa. O
que quer que comunidade signifique, é bom ter uma comunidade, estar numa
comunidade”, ou seja, uma comunidade pode ser vista como um lugar que une as
pessoas. A identidade, por sua vez, junto com a autonomia e a autoafirmação, é uma
peça fundamental que contribui para a manutenção dos laços de afetividade e projetos
de resistência. Identidade não pode ser vista como algo estático, pelo contrário, uma
identidade é sempre um processo em curso, uma reconstrução social, onde os projetos
se relacionam como indivíduos ou grupos frente ao outro, diferente. Não existe
identidade sem diferença, sem uma perspectiva de alteridade4.
Elias5, ao estudar as relações “estabelecidos-outsiders” numa pequena
comunidade denominada Winston Parva, na Inglaterra, tinha por objeto de estudo o
núcleo de um bairro considerado como zona de delinqüência, mas deslocou o seu
interesse para as diferenças de caráter desses bairros e para as relações entre eles,
realizando então, uma reflexão sobre estigma social e, consequentemente, sobre o
preconceito que envolvia moradores antigos e os recém chegados, tendo em vista serem
os outsiders vistos pelo grupo estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados
4 Nesse sentido, ver também: Stuart Hall, Kathryn Woodward, Muniz Sodré, Boaventura de Souza Santos, entre outros. 5 ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2000 (p. 23)
13
e desordeiros. Essa constatação nos permite perceber a importância das relações de
poder entre diferentes grupos sociais e a manipulação da identidade por esses quando
necessário. Diz ele: “um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está
bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”. Ao
enfatizar o aspecto da manipulação de identidade, estou tentando reforçar a identidade
como ação política, tendo em vista que ela se afirma enquanto resultado de um
processo, situada em um dado contexto, e em função de um sistema de relações sociais,
fundado num jogo de determinados interesses.
Entendo que para compreendermos a comunidade Canela devemos levar em
consideração o seu contexto cultural, social, político, histórico e geográfico. Neste
sentido a questão da identidade é colocada frente à conjuntura que se forma ao longo da
criação do estado do Tocantins e, mais precisamente, da capital Palmas, onde, desde a
sua fundação, já se previa a construção de uma usina hidrelétrica e, por conseguinte, a
formação de um lago que traria uma mudança radical nas vidas dos habitantes das
comunidades ali localizadas. Levando em consideração esse amplo contexto, a questão
da identidade deve ser compreendida de uma perspectiva relacional e contrastiva, com
uma dimensão política sem a qual é impossível entendê-la. E por mais que se diga que a
identidade é uma construção, ela não é de todo aleatória, está fundada em determinados
elementos materiais que não podem ser negados6.
6 SCHWARCZ, M. Lilia e QUEIROZ, Ramos S. (Orgs.), Raça e diversidade. São Paulo : Ed. USP, 1996.
14
Quando pensamos na identidade Canela, imediatamente a identidade cabocla
emerge como aquela que melhor retrata essa população. A figura do caboclo se
diferencia da do índio, do branco e do negro. O caboclo pode ser considerado um
mestiço. Há vários enfoques para definir o caboclo. Um deles afirma que o caboclo não
deve ser considerado apenas pelos traços físicos, como a cor da pele. Segundo Silva
(2007, p. 279), em seu livro sobre a obra do antropólogo Eduardo Galvão, deve-se levar
em conta, por um lado, os fatores constituintes étnicos, e, por outro, as condicionantes
de ordem econômica da sociedade nacional em sua conformação regional. Ou seja, por
um lado o caboclo é produto da miscigenação do índio – enquanto ser genérico – com o
branco de origem européia. Neste caso o caboclo é uma expressão particular de
mestiçagem, é o mameluco. Seria um ser “biológico” hibrido. Por outro lado, é um ser
forjado pelas influências sociais e culturais, que se exercem sobre o homem ao longo do
continuum cidade-aldeia. Neste caso o que caracteriza o caboclo não é o caráter
genético-biológico, o tipo físico, mas sim, a cultura – cultura cabocla -, produto da
“amalgamação”.
Em termos de características físicas, diferentemente do sertanejo nordestino, por
exemplo, o caboclo amazônico teria a pele amorenada, cabelos pretos e lisos, olhos
rasgados, tipo baixo e troncudo, que, em sua subjetividade, não se considera índio,
15
considera-se católico, e portanto, teríamos na origem da cultura cabocla, o encontro das
culturas indígenas e européia.
Silva (2007, p. 293-295), faz ainda uma alusão à cidade e à aldeia mostrando
como Galvão identifica o desaparecimento do índio domesticado dando lugar a um
único grupo local segmentado em: “gente de primeira”, comerciantes, funcionários de
categoria, “famílias de tradição” e a “gente de segunda”, caboclos, roceiros ou
seringueiros. Portanto, o caboclo amazônico com a cultura de segunda ordem – em
termos histórico-sequencial -, em seus componentes indígenas e não-indígenas, é um
dos seres que constroem, com sua participação pessoal e direta, a identidade do
brasileiro. Ele, como brasileiro7, é um ente também constituidor, em seu complexo
psicossocial e cultural, do processo de modelação da identidade deste povo. O caboclo
tem consciência de sua condição sócio-cultural, o que vale dizer que ele sabe que
pertence a essa categoria sociológica – o caboclo -, é tido como tal pelo homem urbano,
e o índio sabe que ele – o caboclo – não é índio. O ser caboclo implica em ser
objetivamente sentido porque é subjetivamente construído.
É interessante observar que a mesma expressão “caboclo”, segundo este autor, é
evocada com um sentido extremamente afetivo e carregado de simpatia, nas relações
informais entre pessoas, inter-relações que se estabelecem, preferencialmente, no
interior de cada segmento de classe social, porém, podendo também ter lugar entre
pessoas inseridas em classes distintas. Conclui ele que o ser caboclo amazônico é uma
7 Grifos do autor
16
configuração sociológica específica, que pode ser analisada sob diferentes ângulos
teóricos articulados com a observação das situações concretas na sociedade.
A comunidade Canela, nesses termos, pode ser considerada um núcleo caboclo8
conforme chamava Darcy Ribeiro em seu livro O povo brasileiro (2006). Darcy Ribeiro
(2006, p.288-299) afirma que
Os índios no curso de um processo de transfiguração étnica, se converteram em índios genéricos, sem língua nem cultura próprias, e sem identidade cultural especifica. A eles se juntaram mais tarde, grandes massas de mestiços, gestados por brancos em mulheres indígenas, mas também não sendo índios nem chegando a ser europeus, e falando o tupi, se dissolveram na condição de caboclos.
O resgate de uma memória identitária no Canela nos é importante neste estudo,
tendo em vista que essa comunidade, ao se defrontar com a proposta de realocação
territorial, vem buscando, de maneira dinâmica, elementos estruturais que dêem suporte
para a manutenção de seus valores, de sua memória, tradição e história. Essa estratégia,
pode-se dizer, possui uma dimensão política que favorece a um só tempo, a
permanência, a existência e a sobrevivência da comunidade.
8 Grifo meu
17
A escolha do tema
Desde o ano de 2000, a comunidade Canela encontra-se localizada na zona
urbana do município de Palmas, capital do Estado do Tocantins, mais precisamente na
quadra 508 Norte, antiga ARNE9 64 – Plano Urbanístico. As primeiras famílias a
deixarem o povoado foram as que lá chegaram, após a construção de Palmas, e foram
definidas como ocupantes; pessoas que não tinham benfeitorias ou que moravam de
favor. Essas famílias foram para os Aurenys10 e Taquaralto11 (setor Santa Bárbara). Os
moradores mais antigos e aqueles que construíram benfeitorias como casas e roçados se
deslocaram para o plano diretor de Palmas. Os terrenos, para continuarem suas
atividades agrícolas estão localizados a 30km de Palmas, sentido Porto Nacional. Na
cidade, a vida dos habitantes do povoado Canela, como acontece com outros
reassentamentos, mudou bastante, apesar de terem ocupado novas casas e a quadra
contar com uma infraestrutura básica numa tentativa evidente de reproduzir o que
existia no lugar de origem. Alguns moradores, todavia, já venderam suas casas e
9 Área Residencial Noroeste. 10 Área residencial de Palmas, fora do Plano Urbanístico. 11 Distrito de Palmas.
18
buscam empregos comuns na cidade, sem qualificação, o que ocasiona vários problemas
de ordem emocional, social e financeira.
No ano de 2003, fui convidado a participar da quinta campanha do Projeto
“Monitoramento e Avaliação do Programa de Remanejamento e Relocação das
Comunidades Afetadas pela Construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Luís Eduardo
Magalhães”, trabalho realizado por uma equipe de pesquisadores e acadêmicos do
CEULP/Ulbra12, contratados pela Investco, empresa construtora da usina. Os dados
dessa pesquisa foram coletados no período de 15 a 19 de fevereiro daquele ano e, dessa
forma, tomei conhecimento da existência da comunidade Canela, fato que despertou a
minha curiosidade sobre as tradições daquela população e os impactos causados pelas
transformações com a mudança territorial para o espaço urbano. Posteriormente, em
parceria com o professor João Nunes da Silva13, começamos uma coleta de dados na
comunidade no intuito de produzirmos um material que pudesse originar um
documentário ou mesmo um projeto para nossas atividades de pesquisa na universidade.
Foi através de dona Lourdes que comecei meu trabalho de pesquisa. Por ser ela
uma liderança detentora da “memória” e “de tudo” que acontece na comunidade, meu
contato com os demais moradores seria por ela facilitado. Não foi difícil encontrar,
junto aos moradores do lugar, quem quisesse falar sobre a comunidade. O fato da
recente transferência do povoado Canela para o espaço urbano, em vista da construção
da hidrelétrica, creio, mobilizava nos membros da “comunidade” o desejo de falar sobre 12 Centro Universitário Luterano de Palmas/Universidade Luterana do Brasil 13 Sociólogo e Professor da Universidade do Tocantins - UNITINS.
19
suas origens e suas tradições. O transplante territorial não podia significar, naquele
momento relativamente inicial, um transplante identitário ou simbólico. Fato que
diferencia Canela de comunidades indígenas locais, que, por despertarem tanto a
curiosidade das pessoas e serem constantemente procurados, têm dificultado o trabalho
de pesquisadores e jornalistas, que chegam a pagar por entrevistas, chegando a pagar
por elas14.
Apesar de dona Lourdes ser uma informante importante para nossa coleta de
dados e para a pesquisa, outras pessoas da comunidade foram contatadas. O plano de
pesquisa foi organizado levando em consideração alguns critérios: primeiramente, as
pessoas que se destacam na comunidade por exercerem algum tipo de liderança ou
influência, a exemplo do líder da associação de moradores, dos moradores mais idosos,
do padre, dos organizadores da Festa ao Divino. Em seguida, procuramos os
representantes da Investco empresa responsável pela construção da usina. Entre seus
representantes, uma Assistente social e uma Agrônoma que acompanharam todo o
processo de negociação entre os moradores da comunidade e a empresa. Depois
buscamos um diálogo com os moradores que não eram proprietários dos lotes no
Canela, mas que participaram das discussões e atualmente ocupam um espaço diferente
dos demais, em outra área da cidade de Palmas. Depois procuramos o representante do
Movimento dos Atingidos pela Barragem (MAB) e, por último, as pessoas de fora da
14 Vale salientar que é essa não é uma prática da maioria dos membros dessas comunidades, mas percebemos que está se tornando cada vez mais comum esse tipo de comentário entre as pessoas que os visitam.
20
comunidade que se dispusessem a colaborar. As entrevistas foram todas gravadas em
fita cassete, totalizando sete fitas que depois foram transcritas. Normalmente busquei
ambiente e horário que pudessem, assim, garantir uma melhor qualidade e fidedignidade
aos depoimentos, fazendo com que as pessoas entrevistadas lembrassem ao máximo da
vida no Canela quando ainda habitavam as margens do rio. Acompanhei a Festa ao
Divino na comunidade desde a sua retomada em 2005, observando a sua organização e
o envolvimento da comunidade com a festa nos dias de hoje.
Outro aspecto importante sobre esses dados foi o material que coletei junto a
Investco: mapas, os PBAs15 e o Projeto de Reassentamento que foram confeccionados
pela empresa. Utilizo também de farto material eletrônico em VHS doado pela família
Batista e posteriormente transformado em DVD por mim, sobre muitos eventos
realizados na comunidade, tais como a Festa ao Divino, missas, festas na escola,
entrevistas com moradores etc. Adquiri também, junto ao Jornal do Tocantins, jornal de
maior circulação no estado, diversas matérias jornalísticas sobre a construção da usina e
sobre a comunidade antes, durante e depois do reassentamento, período que compreende
os anos de 1997 até 2001. O mesmo acontecendo com o Jornal Primeira Página, no qual
busquei matérias que se referem ao período que compreende os anos de 1997 até 2002.
Recorri também ao filme “Narradores de Javé” uma produção de Eliane Café
(2000), como referência importante de um processo similar. Por se tratar de uma obra
sobre uma cidade no interior do estado da Bahia que foi inundada pelas águas de uma
15 Programa Básico Ambiental
21
barragem e os moradores resolveram se unir para escreverem um livro sobre a sua
história. Nas várias narrativas, é demonstrada a importância do lugar, na tentativa de
impedir a construção da usina. O filme aborda essa questão de maneira cômica e trágica
ao mesmo tempo, colocando as histórias dos moradores sobre a origem do povoado e as
dificuldades para coletar dados que servissem de registro e documentação sobre o lugar
e, por fim, a saída para outro espaço, semelhante ao que aconteceu com a comunidade
Canela.
O presente estudo, de certa forma, significa uma continuidade da minha
dissertação de mestrado16 que trata de uma comunidade quilombola, no sertão do estado
da Paraíba, na qual busquei analisar a identidade de sua população, levando em
consideração a migração parcial dos seus membros para a área urbana do município de
Santa Luzia. Nela, questionei a manutenção da identidade a partir das mudanças que
poderiam ocorrer na convivência com a população da cidade. No entanto, vale salientar
que a realidade dessa comunidade quilombola em muito se diferencia do contexto
histórico e social da comunidade Canela, tanto pelas características regionais como
pelos mecanismos de organização para a sobrevivência.
Podemos ver que esta não é uma temática que diz respeito apenas a uma questão
específica de um estado ou região do país. Atualmente, existem no Brasil outras
16 SANTOS, José Vandilo. Negros do Talhado – estudo sobre a identidade étnica de uma comunidade rural. Campina Grande: UFPB, 1998. Dissertação de mestrado.
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construções de grandes usinas hidrelétricas como, por exemplo, a usina sobre o rio
Madeira em Porto Velho, capital do estado de Rondônia na região Norte, e na cidade de
Estreito, estado do Maranhão, região Nordeste. Portanto, pretendo aprofundar a
compreensão de uma questão local, remetendo ao seu aspecto global, ou seja, aspectos
que envolvem questões como identidade e territorialidade, buscando demonstrar que o
local não está isolado de processos mais amplos, de alcance global, que afetam, de
diversas maneiras, populações deslocadas, desterritorializadas, ou em diáspora. O
objetivo aqui é compreender como o estudo da comunidade Canela, permite-nos
dialogar com outras trajetórias identitárias e comunitárias que ressignificam suas
culturas conforme o impacto maior ou menor que resulta do contato com comunidades
econômica e administrativamente mais fortes e assimilativas.