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1 MEMÓRIA E A DIMENSÃO POLÍTICA DA IDENTIDADE NA COMUNIDADE CANELA - ESTADO DO TOCANTINS (2000 - 2008) “Ser do Canela é como você chegar a um local com uma roupa de trabalho, grosseiro, e todo mundo estar de terno” João da Cruz - presidente da AMOC Essa tese é um esforço de compreensão da dinâmica recente de construção de comunidades identitárias no Brasil, através do estudo do deslocamento de um povoado, o povoado de Canela, originalmente ribeirinho, em razão da construção da hidrelétrica de Lajeado em 2001. Tal povoado, reassentado em novo contexto urbano, artificialmente criado – a cidade de Palmas –, reinventa-se, não mais como povoado, mas como comunidade identitária, cujo fundamento encontrar-se-ia no tripé: tradição, memória e reparação. O enfoque principal de minha análise são as narrativas identitárias da comunidade Canela 1 , objeto desta pesquisa. Através de entrevistas e fontes escritas analiso como os membros da comunidade constroem suas estratégias de sobrevivência 1 Temos conhecimento da existência de uma comunidade indígena chamada de Ramkokamekekra-Canela no estado do Maranhão, mas até o momento não encontramos registros de comprovação de que exista uma relação de parentesco entre esta comunidade e a do Canela aqui considerada.

MEMÓRIA E A DIMENSÃO POLÍTICA DA IDENTIDADE NA … · típicas em casos de fronteira como no estado do Pará, mais precisamente em Marabá e Tucuruí, em uma chave na qual a vitimização

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MEMÓRIA E A DIMENSÃO POLÍTICA DA IDENTIDADE NA COMUNIDADE CANELA - ESTADO DO TOCANTINS (2000 - 2008)

“Ser do Canela é como você chegar a um local

com uma roupa de trabalho, grosseiro,

e todo mundo estar de terno”

João da Cruz - presidente da AMOC

Essa tese é um esforço de compreensão da dinâmica recente de construção de

comunidades identitárias no Brasil, através do estudo do deslocamento de um povoado,

o povoado de Canela, originalmente ribeirinho, em razão da construção da hidrelétrica

de Lajeado em 2001. Tal povoado, reassentado em novo contexto urbano,

artificialmente criado – a cidade de Palmas –, reinventa-se, não mais como povoado,

mas como comunidade identitária, cujo fundamento encontrar-se-ia no tripé: tradição,

memória e reparação.

O enfoque principal de minha análise são as narrativas identitárias da

comunidade Canela1, objeto desta pesquisa. Através de entrevistas e fontes escritas

analiso como os membros da comunidade constroem suas estratégias de sobrevivência

1 Temos conhecimento da existência de uma comunidade indígena chamada de Ramkokamekekra-Canela no estado do Maranhão, mas até o momento não encontramos registros de comprovação de que exista uma relação de parentesco entre esta comunidade e a do Canela aqui considerada.

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que promovem coesão social e reprodução de aspectos simbólicos que ajudam a

organizar a percepção tanto sobre suas relações dentro e fora da comunidade, quanto

sobre o novo mundo no qual seus membros estão inseridos.

A construção da Usina Hidrelétrica Luis Eduardo Magalhães, inaugurada em 5

de outubro 2001, é o evento fundamental que motivou esse estudo, uma vez que

demarcou um importante ponto de inflexão na vida da comunidade Canela. Antes, a

existência no espaço ribeirinho, às margens do rio Tocantins; depois, a existência no

espaço urbano, na cidade de Palmas.

A análise adotada nesta pesquisa se enquadra na perspectiva da história do

tempo presente, pois “trata-se de um estudo sobre uma história inacabada, ou seja, uma

história em constante movimento, refletindo as comoções que se desenrolam diante de

nós e sendo, portanto, objeto de olhares renovados” (BEDARIDÀ, 1996, p. 229).

Enquadra-se também na metodologia da “história oral”, por se tratar de uma

metodologia que nos permite perceber através das narrativas dos membros da

comunidade, a produção retórica gestada ao longo do processo de mudança para

Palmas, bem como em suas práticas cotidianas, sobre as quais se assentam os valores

identitários, baseados em tradição, memória e reparação, que dão sustentação ao

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“grupo”, como grupo identitário, frente às novas oportunidades políticas, sociais e

culturais que se apresentam para a comunidade.2

Antes de iniciar a análise da comunidade Canela em suas formas contingentes de

expressão identitária, chamo a atenção para o campo de estudos sobre comunidades

ribeirinhas em situação de reassentamento, tais como comunidades caboclas, indígenas

e quilombolas, cuja ênfase, de modo geral, recai sobre o problema dos impactos

ambientais sofridos por essas comunidades. A historiografia sobre trajetórias de

populações ribeirinhas em razão da construção de hidrelétricas, especialmente no

interior do País, é quase inexistente, especialmente por tratar-se de temas cujas

problematizações os colocam, não raro, na categoria de história do tempo presente. Não

é incomum que os estudos sobre esse tema, mesmo desenvolvidos por historiadores

como Temis Gomes Parente, Odair Giraldin, Noeci Carvalho Messias, Juciene Ricarte

Apolinário3, por exemplo, acabem ganhando um tom mais sociológico ou

2 Ver ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, e ALBERTI, Verena.. Ouvir contar – Textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, e também, PINSKY, Carla Bassanezi. (org.). Fontes Históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. 3 PARENTE, Temis Gomes & MAGALHÃES, Hilda G. Dutra. (Orgs.). Linguagens plurais – cultura e meio ambiente. Bauru-SP.: EDUSC, 2008. GIRALDIN, Odair (Org.). A (trans)formação histórica do Tocantins. Goiânia: Editora da UFG, 2004. MESSIAS, Noeci Carvalho. Patrimônio cultural: entre o tradicional e a modernidade com a chegada da hidrelétrica de Lajeado, Porto Nacional-TO., 2004– Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2004. Dissertação de Mestrado. MESSIAS, Noeci Carvalho. Religiosidade e Devoção: As festas do Divino e do Rosário em Monte do Carmo e em Natividade – TO. UFG, Goiânia, 2010. Tese de Doutorado. APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e outros povos indígenas nas Fronteiras do Sertão. Políticas indígena e indigenista no norte da capitania de Goiás, atual Estado do Tocantins, século XVIII. Goiânia: Kelps, 2006.

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antropológico, por se preocuparem mais com as condições presentes de sobrevivência

dessas populações do que propriamente com o resgate de possíveis regimes de

historicidades. Mesmo a presente pesquisa deparou-se com enormes dificuldades para

garantir uma moldura mais histórica ao tema. A falta de documentos e as imprecisões

das narrativas empurravam a pesquisa para problematizações mais sociológicas. Assim,

podemos observar, em um mapeamento dos estudos sobre o tema das populações

deslocadas, a evidente escassez de trabalhos ocupados com a pesquisa histórica.

Diversos estudos tratam tanto a questão da identidade, quanto a da

desterritorialização, como fatores fundamentais para a compreensão desses processos

que, de várias maneiras, afeta a vida individual e comunitária dessas populações.

Contudo, em sua maioria, privilegiam os impactos ambientais sofridos pelas

comunidades deslocadas, enfatizando a destruição da natureza, o desmatamento, a

necessidade de um desenvolvimento sustentável e as implicações econômicas sofridas

por essas populações que são, em geral, retratadas como povos sem força política para

enfrentar os grandes interesses capitalistas, mas que, ao mesmo tempo, constroem

estratégias de sobrevivência em universo de relações sociais precárias e de enorme

pressão econômica. Em sua tese de doutorado, Burian (2006), argumenta que os

processos de licenciamento ambiental, como conseqüência das pressões dos

movimentos sociais e das agências multilaterais de financiamento para a absorção da

temática socioambiental no nível institucional, têm desempenhado papel importante

5

para que as questões socioambientais sejam devidamente incorporadas ao setor elétrico

brasileiro. A intenção do autor é levantar os aspectos que permeiam a relação do setor

elétrico e o meio ambiente, demonstrando como as incertezas da era pós-moderna

também se refletem nos mecanismos de licenciamento ambiental.

Outro trabalho que segue essa linha ambientalista é o de Leal da Paz (2006), que

ao tratar da relação entre hidrelétrica e povos indígenas na Amazônia, trata a

complexidade dos grandes impactos que as usinas causam no meio ambiente físico, mas

principalmente, trata das grandes mudanças no meio sócio-econômico, destacando as

decisões políticas pela eficiência econômico-energética. No seu estudo, a autora buscou

analisar de que modo é possível estabelecer ações que levem a um desenvolvimento

sustentável considerando as questões conflituosas no processo que envolve usinas

hidrelétricas e terras indígenas na Amazônia.

“Hidrelétricas e povos indígenas” é um livro organizado por Silvio Coelho dos

Santos e Aneliese Nacke (2003), que traz vários textos que corroboram a questão dos

impactos ambientais de norte a sul do Brasil demonstrando o quanto esses “projetos

desenvolvimentistas” remontam ao velho processo de invasão de terras no país. Já “Os

impactos ambientais urbanos”, livro organizado por Antonio Guerra e Cunha (2009),

retrata, mais precisamente, o crescimento desordenado e a concentração da população

nos centros urbanos, trazendo exemplos de cidades brasileiras como Rio de Janeiro,

Teresópolis, Florianópolis, Sorriso, Açailândia e São Paulo. Esse trabalho é aqui

importante por mostrar que essa não é uma questão presente apenas no interior do país e

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que não se resume à floresta amazônica ou aos grandes rios, ou seja, a forma como nos

aglomeramos e nos comportamentos nas cidades também produz impacto e destruição

ao meio ambiente. A literatura que lida com o impacto ambiental das hidrelétricas,

como vimos, apresenta narrativas cujo viés ideológico, não raro, se insinuam.

Em uma outra perspectiva, temos alguns trabalhos que, ao tratar essas

populações ribeirinhas que experimentam formas de deslocamento territoriais, lidam

com a questão da identidade e da memória, abordagens mais próximas às que eu

proponho aqui. Musolino (2006), em sua tese de doutorado enfatiza o movimento

migratório e a questão da identidade étnica do grupo indígena Polikur no estado do

Amapá, tendo em vista que nos limites da fronteira com a Guiana Francesa, eles a um

só tempo assumem as nacionalidades francesa e brasileira, sem abandonar a identidade

étnica. Costa (2002), em artigo intitulado, “Hidroelétricas de grande escala em

ecossistemas amazônicos: a Volta do Grande Xingu”; destaca a ausência de

preocupações com os grupos sociais impactados pela efetivação dos projetos

hidrelétricos; aponta ainda para os impactos sociais e as suas conseqüências nessas

comunidades, tais como a exclusão social, falta de indenizações e degradação social

típicas em casos de fronteira como no estado do Pará, mais precisamente em Marabá e

Tucuruí, em uma chave na qual a vitimização e a despotencialização desses povos são

especialmente enfatizadas.

Outra tese importante, que difere das demais acima citadas, até certo ponto pela

temática, mas mais pela região estudada, é a de Luis Antonio Pasqueti (2007),

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intitulada: “Terra ocupada: identidades reconstruídas – 1984/2004”. Trata-se de um

estudo de caso na região norte do estado do Rio Grande do Sul. Nela encontramos uma

análise sobre o “Movimento dos Sem Terra” que identifica os códigos sociais

compartilhados coletivamente, as relações de cooperação e conflito que ocorrem tanto

no acampamento, assentamento, como no próprio Movimento. São analisados os

valores, símbolos e significados partilhados e disputados por estes trabalhadores na luta

pela terra, resultando em uma constatação de que existem múltiplas identidades como

uma obra em aberto em constante processo de reconstrução.

No que se refere à questão da desterritorialização e sua relação com impactos

ambientais encontramos na dissertação de mestrado de Kênia Gonçalves Itacamaraby

(2006), um importante ponto de vista sobre justiça ambiental que elege os

procedimentos de deslocamento compulsório de populações tradicionais resultantes de

barragens para fins de geração de energia elétrica destacando a evidente desigualdade de

poder que acaba por reproduzir a invisibilidade do “diferente” e, portanto a exclusão

sociocultural. A dissertação de mestrado de Noeci Carvalho Messias (2004) discute as

mudanças trazidas pela construção da hidrelétrica de Lajeado em Porto Nacional -

Tocantins, contexto que também trabalho. Sua preocupação, contudo, é mostrar o

processo de mudanças no patrimônio cultural da cidade decorrente desse “projeto de

desenvolvimento”, destacando a relação entre modernidade e tradição no contexto

social portuense.

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O cenário de estudos acima destacado é, na verdade, uma demonstração de como

vem sendo tratado o impacto da construção de hidrelétricas no país de modo geral, e na

Amazônia, em particular. Esses estudos são importantes contribuições para o

desvelamento de processos de desterritorialização de pequenas populações em diversas

regiões no Brasil, mas, em geral, apresentam cenários cuja ênfase encontra-se na

pressão econômica, na opressão social e na fragilidade política. A pesquisa que

desenvolvi busca dialogar criticamente com esses estudos. Trata-se de destacar

situações semelhantes, todavia, através de abordagem na qual o acento encontra-se na

historicidade da imaginação identitária de populações ribeirinhas em suas

reconfigurações através de deslocamento territorial. A presente pesquisa teve como

alvo, a identificação e problematização de processos nos quais os atores ribeirinhos não

são apenas meros objetos, ou melhor, joguetes, de interesses globais e regionais de

poderosas pressões econômicas. Trata-se aqui de reorientar o foco para as formas

estratégicas, não necessariamente coerentes, de invenção de desenhos identitários, de

rearticulação de poderes, de reconfiguração de rituais de “sobrevivência” cultural em

contexto político no qual as identidades vêm se transformando em moeda de negociação

política. Por tratar da construção da identidade a partir da transferência de uma

comunidade para outro espaço, tendo em vista os impactos sofridos por ela devido à

construção de uma Usina Hidrelétrica, os conceitos de território e espaço nos são

indispensáveis.

Percebemos território como um espaço que abriga identidade ou mesmo como

um espaço de identificação. Na perspectiva de Medeiros (2009, p.217-218), o

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sentimento é a sua base e a forma espacial importa muito pouco, pois esta pode ser

variável. Trata-se nesse caso de identidades itinerantes ou em permanente diáspora, cuja

territorialidade pode ser mais virtual do que real. O “território”, nesse caso pode mesmo

ser imaginário e até mesmo sonhado. É a partir deste imaginário que a sua construção

tem inicio. O espaço e o território não podem ser dissociados, pois enquanto o primeiro

se faz necessário para demarcar a existência do segundo, este último por sua vez, é a

condição para que o espaço se humanize. O território é um espaço político, um jogo

político, um lugar de poder. Negar o território é risco de crise. O território também pode

ser um lugar de ritos, expressando valores e confrontando crenças.

Para Saquet (2007, p. 27), o território é um compartimento do espaço como fruto

de sua diversificação e organização e tem duas funções principais: servir de abrigo,

como forma de segurança, e servir como trampolim para oportunidades, daí a sua

relação direta com o poder e a dominação. Neste sentido o território assume significados

distintos para diferentes sociedades ou grupos sociais dominantes.

No Brasil, Rogério Haesbaert dispõe de dois estudos importantes que tratam de

questões relacionadas a território e identidade. O primeiro, intitulado

Desterritorialização e identidade - a rede “gaúcha” no nordeste de 1997, no qual

discute a nordestinidade e o gauchismo como formas de entender as relações do

conceito de identidade e de territórios. Enquanto o segundo, “O mito da

desterritorialização”, aponta várias concepções de território em diferentes áreas do

conhecimento como a da geografia, da política, da economia, da antropologia, da

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sociologia e a área da psicologia. A desterritorialização, de acordo com o autor, está

ligada à fragilidade das fronteiras, especialmente das fronteiras estatais – o território,

sendo aí, sobretudo um território político.

Segundo Haesbaert (2006, p. 35), desterritorialização também pode estar ligada

à hibridização cultural que impede o reconhecimento de identidades claramente

definidas. O território aqui é, antes de tudo, um território simbólico, ou um espaço de

referência para a construção de identidades. Entendemos que a concepção de território

como uma noção simbólico-cultural, mais subjetiva, que diz respeito à apropriação e

valorização simbólica, e a noção de desterritorialização como negociação política, se

enquadram na nossa proposta de analisar a comunidade Canela, situada anteriormente

no espaço agora ocupado pelo lago da hidrelétrica, através das transformações sofridas

com a transferência para o espaço urbano da cidade de Palmas, que promove a res-

significação dos valores sócio-culturais, que em tese seriam naturalizados pelos seus

membros, em outro espaço.

Portanto, este estudo visa analisar a construção da identidade Canela, tendo em

vista que nesta comunidade, como a pesquisa pôde atestar, não se elaborava uma

“identidade” bem delineada antes da construção de Palmas, tampouco antes da

construção da usina hidrelétrica. Daí a importância de tal evento se constituir num

marco fundamental por promover a um só tempo o processo de desterritorialização da

comunidade e de construção de suas fronteiras identitárias, ou seja, por promover a

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consciência de pertencimento e existência enquanto comunidade, dos ribeirinhos do

Canela.

Por outro lado, esse fenômeno que identifico no povoado Canela, de “invenção

identitária” não é exatamente uma expressão do conceito de fricção interétnica

desenvolvido por Roberto Cardoso de Oliveira (1976). Este nos é bem vindo por tratar

de um aspecto relevante para o momento histórico atual em que se encontra os atores

sociais do Canela frente aos demais agentes já na cidade de Palmas. A fricção

interétnica significa a existência de uma tensão entre grupos de diferentes culturas numa

relação marcada pela dominação e sujeição, um caráter contrastivo e relacional que

Barth (1969) já analisava ao definir grupo étnico como uma “unidade portadora de

cultura” que é o resultado da partilha de uma cultura comum frente às outras

organizações culturais, levada a efeito pela autoatribuição e atribuição por outros.

Reconheço a importância de se considerar a relação com o outro na

compreensão do processo de contato entre culturas. Entretanto, as noções de identidade,

cultura e comunidade não se constituem, na presente análise, em unidade fechada,

estática. Seus portadores, ao inventar a identidade Canela, o fizeram mais como

estratégia do que propriamente por consenso quanto aos sentimentos de pertença.

Avanço um pouco mais nessa questão da formação de identidade quando utilizo

Bauman (2003), para reforçar uma noção mais ambivalente de identidade. A literatura

sociológica e antropológica contemporânea de Zygmunt Bauman, Stuart Hall e Norbert

Elias mais se aproximam dos conceitos de identidade dinâmica, fluida, ambivalente, em

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permanente processo de mudança e transformação, que considero fundamentais em

minha análise.

Para Bauman, (2003, p. 7), as palavras tem significado: algumas delas, porém,

guardam sensações: a palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa. O

que quer que comunidade signifique, é bom ter uma comunidade, estar numa

comunidade”, ou seja, uma comunidade pode ser vista como um lugar que une as

pessoas. A identidade, por sua vez, junto com a autonomia e a autoafirmação, é uma

peça fundamental que contribui para a manutenção dos laços de afetividade e projetos

de resistência. Identidade não pode ser vista como algo estático, pelo contrário, uma

identidade é sempre um processo em curso, uma reconstrução social, onde os projetos

se relacionam como indivíduos ou grupos frente ao outro, diferente. Não existe

identidade sem diferença, sem uma perspectiva de alteridade4.

Elias5, ao estudar as relações “estabelecidos-outsiders” numa pequena

comunidade denominada Winston Parva, na Inglaterra, tinha por objeto de estudo o

núcleo de um bairro considerado como zona de delinqüência, mas deslocou o seu

interesse para as diferenças de caráter desses bairros e para as relações entre eles,

realizando então, uma reflexão sobre estigma social e, consequentemente, sobre o

preconceito que envolvia moradores antigos e os recém chegados, tendo em vista serem

os outsiders vistos pelo grupo estabelecido como indignos de confiança, indisciplinados

4 Nesse sentido, ver também: Stuart Hall, Kathryn Woodward, Muniz Sodré, Boaventura de Souza Santos, entre outros. 5 ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2000 (p. 23)

13

e desordeiros. Essa constatação nos permite perceber a importância das relações de

poder entre diferentes grupos sociais e a manipulação da identidade por esses quando

necessário. Diz ele: “um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está

bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”. Ao

enfatizar o aspecto da manipulação de identidade, estou tentando reforçar a identidade

como ação política, tendo em vista que ela se afirma enquanto resultado de um

processo, situada em um dado contexto, e em função de um sistema de relações sociais,

fundado num jogo de determinados interesses.

Entendo que para compreendermos a comunidade Canela devemos levar em

consideração o seu contexto cultural, social, político, histórico e geográfico. Neste

sentido a questão da identidade é colocada frente à conjuntura que se forma ao longo da

criação do estado do Tocantins e, mais precisamente, da capital Palmas, onde, desde a

sua fundação, já se previa a construção de uma usina hidrelétrica e, por conseguinte, a

formação de um lago que traria uma mudança radical nas vidas dos habitantes das

comunidades ali localizadas. Levando em consideração esse amplo contexto, a questão

da identidade deve ser compreendida de uma perspectiva relacional e contrastiva, com

uma dimensão política sem a qual é impossível entendê-la. E por mais que se diga que a

identidade é uma construção, ela não é de todo aleatória, está fundada em determinados

elementos materiais que não podem ser negados6.

6 SCHWARCZ, M. Lilia e QUEIROZ, Ramos S. (Orgs.), Raça e diversidade. São Paulo : Ed. USP, 1996.

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Quando pensamos na identidade Canela, imediatamente a identidade cabocla

emerge como aquela que melhor retrata essa população. A figura do caboclo se

diferencia da do índio, do branco e do negro. O caboclo pode ser considerado um

mestiço. Há vários enfoques para definir o caboclo. Um deles afirma que o caboclo não

deve ser considerado apenas pelos traços físicos, como a cor da pele. Segundo Silva

(2007, p. 279), em seu livro sobre a obra do antropólogo Eduardo Galvão, deve-se levar

em conta, por um lado, os fatores constituintes étnicos, e, por outro, as condicionantes

de ordem econômica da sociedade nacional em sua conformação regional. Ou seja, por

um lado o caboclo é produto da miscigenação do índio – enquanto ser genérico – com o

branco de origem européia. Neste caso o caboclo é uma expressão particular de

mestiçagem, é o mameluco. Seria um ser “biológico” hibrido. Por outro lado, é um ser

forjado pelas influências sociais e culturais, que se exercem sobre o homem ao longo do

continuum cidade-aldeia. Neste caso o que caracteriza o caboclo não é o caráter

genético-biológico, o tipo físico, mas sim, a cultura – cultura cabocla -, produto da

“amalgamação”.

Em termos de características físicas, diferentemente do sertanejo nordestino, por

exemplo, o caboclo amazônico teria a pele amorenada, cabelos pretos e lisos, olhos

rasgados, tipo baixo e troncudo, que, em sua subjetividade, não se considera índio,

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considera-se católico, e portanto, teríamos na origem da cultura cabocla, o encontro das

culturas indígenas e européia.

Silva (2007, p. 293-295), faz ainda uma alusão à cidade e à aldeia mostrando

como Galvão identifica o desaparecimento do índio domesticado dando lugar a um

único grupo local segmentado em: “gente de primeira”, comerciantes, funcionários de

categoria, “famílias de tradição” e a “gente de segunda”, caboclos, roceiros ou

seringueiros. Portanto, o caboclo amazônico com a cultura de segunda ordem – em

termos histórico-sequencial -, em seus componentes indígenas e não-indígenas, é um

dos seres que constroem, com sua participação pessoal e direta, a identidade do

brasileiro. Ele, como brasileiro7, é um ente também constituidor, em seu complexo

psicossocial e cultural, do processo de modelação da identidade deste povo. O caboclo

tem consciência de sua condição sócio-cultural, o que vale dizer que ele sabe que

pertence a essa categoria sociológica – o caboclo -, é tido como tal pelo homem urbano,

e o índio sabe que ele – o caboclo – não é índio. O ser caboclo implica em ser

objetivamente sentido porque é subjetivamente construído.

É interessante observar que a mesma expressão “caboclo”, segundo este autor, é

evocada com um sentido extremamente afetivo e carregado de simpatia, nas relações

informais entre pessoas, inter-relações que se estabelecem, preferencialmente, no

interior de cada segmento de classe social, porém, podendo também ter lugar entre

pessoas inseridas em classes distintas. Conclui ele que o ser caboclo amazônico é uma

7 Grifos do autor

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configuração sociológica específica, que pode ser analisada sob diferentes ângulos

teóricos articulados com a observação das situações concretas na sociedade.

A comunidade Canela, nesses termos, pode ser considerada um núcleo caboclo8

conforme chamava Darcy Ribeiro em seu livro O povo brasileiro (2006). Darcy Ribeiro

(2006, p.288-299) afirma que

Os índios no curso de um processo de transfiguração étnica, se converteram em índios genéricos, sem língua nem cultura próprias, e sem identidade cultural especifica. A eles se juntaram mais tarde, grandes massas de mestiços, gestados por brancos em mulheres indígenas, mas também não sendo índios nem chegando a ser europeus, e falando o tupi, se dissolveram na condição de caboclos.

O resgate de uma memória identitária no Canela nos é importante neste estudo,

tendo em vista que essa comunidade, ao se defrontar com a proposta de realocação

territorial, vem buscando, de maneira dinâmica, elementos estruturais que dêem suporte

para a manutenção de seus valores, de sua memória, tradição e história. Essa estratégia,

pode-se dizer, possui uma dimensão política que favorece a um só tempo, a

permanência, a existência e a sobrevivência da comunidade.

8 Grifo meu

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A escolha do tema

Desde o ano de 2000, a comunidade Canela encontra-se localizada na zona

urbana do município de Palmas, capital do Estado do Tocantins, mais precisamente na

quadra 508 Norte, antiga ARNE9 64 – Plano Urbanístico. As primeiras famílias a

deixarem o povoado foram as que lá chegaram, após a construção de Palmas, e foram

definidas como ocupantes; pessoas que não tinham benfeitorias ou que moravam de

favor. Essas famílias foram para os Aurenys10 e Taquaralto11 (setor Santa Bárbara). Os

moradores mais antigos e aqueles que construíram benfeitorias como casas e roçados se

deslocaram para o plano diretor de Palmas. Os terrenos, para continuarem suas

atividades agrícolas estão localizados a 30km de Palmas, sentido Porto Nacional. Na

cidade, a vida dos habitantes do povoado Canela, como acontece com outros

reassentamentos, mudou bastante, apesar de terem ocupado novas casas e a quadra

contar com uma infraestrutura básica numa tentativa evidente de reproduzir o que

existia no lugar de origem. Alguns moradores, todavia, já venderam suas casas e

9 Área Residencial Noroeste. 10 Área residencial de Palmas, fora do Plano Urbanístico. 11 Distrito de Palmas.

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buscam empregos comuns na cidade, sem qualificação, o que ocasiona vários problemas

de ordem emocional, social e financeira.

No ano de 2003, fui convidado a participar da quinta campanha do Projeto

“Monitoramento e Avaliação do Programa de Remanejamento e Relocação das

Comunidades Afetadas pela Construção da Usina Hidrelétrica (UHE) Luís Eduardo

Magalhães”, trabalho realizado por uma equipe de pesquisadores e acadêmicos do

CEULP/Ulbra12, contratados pela Investco, empresa construtora da usina. Os dados

dessa pesquisa foram coletados no período de 15 a 19 de fevereiro daquele ano e, dessa

forma, tomei conhecimento da existência da comunidade Canela, fato que despertou a

minha curiosidade sobre as tradições daquela população e os impactos causados pelas

transformações com a mudança territorial para o espaço urbano. Posteriormente, em

parceria com o professor João Nunes da Silva13, começamos uma coleta de dados na

comunidade no intuito de produzirmos um material que pudesse originar um

documentário ou mesmo um projeto para nossas atividades de pesquisa na universidade.

Foi através de dona Lourdes que comecei meu trabalho de pesquisa. Por ser ela

uma liderança detentora da “memória” e “de tudo” que acontece na comunidade, meu

contato com os demais moradores seria por ela facilitado. Não foi difícil encontrar,

junto aos moradores do lugar, quem quisesse falar sobre a comunidade. O fato da

recente transferência do povoado Canela para o espaço urbano, em vista da construção

da hidrelétrica, creio, mobilizava nos membros da “comunidade” o desejo de falar sobre 12 Centro Universitário Luterano de Palmas/Universidade Luterana do Brasil 13 Sociólogo e Professor da Universidade do Tocantins - UNITINS.

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suas origens e suas tradições. O transplante territorial não podia significar, naquele

momento relativamente inicial, um transplante identitário ou simbólico. Fato que

diferencia Canela de comunidades indígenas locais, que, por despertarem tanto a

curiosidade das pessoas e serem constantemente procurados, têm dificultado o trabalho

de pesquisadores e jornalistas, que chegam a pagar por entrevistas, chegando a pagar

por elas14.

Apesar de dona Lourdes ser uma informante importante para nossa coleta de

dados e para a pesquisa, outras pessoas da comunidade foram contatadas. O plano de

pesquisa foi organizado levando em consideração alguns critérios: primeiramente, as

pessoas que se destacam na comunidade por exercerem algum tipo de liderança ou

influência, a exemplo do líder da associação de moradores, dos moradores mais idosos,

do padre, dos organizadores da Festa ao Divino. Em seguida, procuramos os

representantes da Investco empresa responsável pela construção da usina. Entre seus

representantes, uma Assistente social e uma Agrônoma que acompanharam todo o

processo de negociação entre os moradores da comunidade e a empresa. Depois

buscamos um diálogo com os moradores que não eram proprietários dos lotes no

Canela, mas que participaram das discussões e atualmente ocupam um espaço diferente

dos demais, em outra área da cidade de Palmas. Depois procuramos o representante do

Movimento dos Atingidos pela Barragem (MAB) e, por último, as pessoas de fora da

14 Vale salientar que é essa não é uma prática da maioria dos membros dessas comunidades, mas percebemos que está se tornando cada vez mais comum esse tipo de comentário entre as pessoas que os visitam.

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comunidade que se dispusessem a colaborar. As entrevistas foram todas gravadas em

fita cassete, totalizando sete fitas que depois foram transcritas. Normalmente busquei

ambiente e horário que pudessem, assim, garantir uma melhor qualidade e fidedignidade

aos depoimentos, fazendo com que as pessoas entrevistadas lembrassem ao máximo da

vida no Canela quando ainda habitavam as margens do rio. Acompanhei a Festa ao

Divino na comunidade desde a sua retomada em 2005, observando a sua organização e

o envolvimento da comunidade com a festa nos dias de hoje.

Outro aspecto importante sobre esses dados foi o material que coletei junto a

Investco: mapas, os PBAs15 e o Projeto de Reassentamento que foram confeccionados

pela empresa. Utilizo também de farto material eletrônico em VHS doado pela família

Batista e posteriormente transformado em DVD por mim, sobre muitos eventos

realizados na comunidade, tais como a Festa ao Divino, missas, festas na escola,

entrevistas com moradores etc. Adquiri também, junto ao Jornal do Tocantins, jornal de

maior circulação no estado, diversas matérias jornalísticas sobre a construção da usina e

sobre a comunidade antes, durante e depois do reassentamento, período que compreende

os anos de 1997 até 2001. O mesmo acontecendo com o Jornal Primeira Página, no qual

busquei matérias que se referem ao período que compreende os anos de 1997 até 2002.

Recorri também ao filme “Narradores de Javé” uma produção de Eliane Café

(2000), como referência importante de um processo similar. Por se tratar de uma obra

sobre uma cidade no interior do estado da Bahia que foi inundada pelas águas de uma

15 Programa Básico Ambiental

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barragem e os moradores resolveram se unir para escreverem um livro sobre a sua

história. Nas várias narrativas, é demonstrada a importância do lugar, na tentativa de

impedir a construção da usina. O filme aborda essa questão de maneira cômica e trágica

ao mesmo tempo, colocando as histórias dos moradores sobre a origem do povoado e as

dificuldades para coletar dados que servissem de registro e documentação sobre o lugar

e, por fim, a saída para outro espaço, semelhante ao que aconteceu com a comunidade

Canela.

O presente estudo, de certa forma, significa uma continuidade da minha

dissertação de mestrado16 que trata de uma comunidade quilombola, no sertão do estado

da Paraíba, na qual busquei analisar a identidade de sua população, levando em

consideração a migração parcial dos seus membros para a área urbana do município de

Santa Luzia. Nela, questionei a manutenção da identidade a partir das mudanças que

poderiam ocorrer na convivência com a população da cidade. No entanto, vale salientar

que a realidade dessa comunidade quilombola em muito se diferencia do contexto

histórico e social da comunidade Canela, tanto pelas características regionais como

pelos mecanismos de organização para a sobrevivência.

Podemos ver que esta não é uma temática que diz respeito apenas a uma questão

específica de um estado ou região do país. Atualmente, existem no Brasil outras

16 SANTOS, José Vandilo. Negros do Talhado – estudo sobre a identidade étnica de uma comunidade rural. Campina Grande: UFPB, 1998. Dissertação de mestrado.

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construções de grandes usinas hidrelétricas como, por exemplo, a usina sobre o rio

Madeira em Porto Velho, capital do estado de Rondônia na região Norte, e na cidade de

Estreito, estado do Maranhão, região Nordeste. Portanto, pretendo aprofundar a

compreensão de uma questão local, remetendo ao seu aspecto global, ou seja, aspectos

que envolvem questões como identidade e territorialidade, buscando demonstrar que o

local não está isolado de processos mais amplos, de alcance global, que afetam, de

diversas maneiras, populações deslocadas, desterritorializadas, ou em diáspora. O

objetivo aqui é compreender como o estudo da comunidade Canela, permite-nos

dialogar com outras trajetórias identitárias e comunitárias que ressignificam suas

culturas conforme o impacto maior ou menor que resulta do contato com comunidades

econômica e administrativamente mais fortes e assimilativas.