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Memorial Marlon Riveiro

Memorial

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Miolo do livro "Memorial".

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MemorialMarlon Riveiro

In memoriamBruno Tolentino

In vita diAntônio JardimDiego Barreto IvoJoão Guilherme S. PaivaMel Audi

In vita9

“Quando já não há mais o que dizer...”

10Lição de modelagem

11Ao Amaro

12“Porque feito embrulho...”

13Temporã

14“Nas dobras do complexo...”

15Vida

In vita

“Though my words may be jumbledstill I’m telling you just how it feels”

Bernadette (trecho)Paul Simon

Quando já não há mais o que dizer,quando na mesa imóveis não nos vemose os olhos correm soltos sem procura,há algo que nos diz que bem sabemosser a hora em que mais nos entendemos.Porque com tudo já dito pareceque nascemos, e aqui, cumprindo apenasum roteiro de encanto e desencanto,passamos distraídos ao rangerdas roldanas da máquinas do mundo.

9

Lição de modelagempara Mel Audi

IComo se um rosto fulguranteenvolto em fumaça, já não vestígios,entrasse às pressas e sentasseà mesa do sensível que há em tudoao meu redor: como caféque presentifica o escorregadioque desce doce das mãos, céuque escorre seco pela terra, melque brota simples na elegância.

IIEm favor da verdade (muito emboranosso ouvido se canse – nosso excluso –ouvindo essa palavra nas maiúsculas)é que nos desculpamos um ao outro,sem medidas, anseios (somos horaque passa), por ser tanta a nossa escusa(sobrança inevitável, Deus) do mundo.

Senhor, não temos culpa dos irmãos que nos deste.

10

Ao Amaro“Amansamos o vento.Reprimimos as palavrasincansáveis.Sem resultadonos desenhamos no ocasodos intervalosentre os encontroscom os mesmosà espera do que virá, ainda que.”

Ao Nascimento (trecho)Laryssa Naumann

E quando falta o ocaso,antes restasse acaso ou sorte:sobra a penumbra do dia seco, apenasagonia, insone bala perdida.

Tempode intervalos vencendo tempode cantos, apostas e aberturasde palavras.

“Seríamos os mesmos”, disseo silêncio. Tempode intervalos de silêncio,tempo de abertura dos mesmosintervalos. “Seríamos os mesmos”,disse o tempo quando disse Bilac:“Certo perdeste o senso!”

11

Porque feito embrulhotrememos e tremulamos,não estamos para os que beijam e flanamcomo para o que somos.

12

TemporãTeu mundo divide em mim convite e receio:complexidade sem nela meu mundo encaixado,a agonia como de uma mosca na teiade teus pertencimentos,pequena e indefesa,dividida entre o sentimento de ser bem-vindae o desencaixe em teu emaranhado,liberdade sem nela meu mundo atado.

E o teu encanto reside,de forma tão inerente quanto perene,no jogo de abertura e mistério,jogo como o que nos aflige nas palavras,por seres tão grande no desvelamento(observo-te em imagens de encantopelo teu corpo, pela aberturado teu corpo se dáuma linguagem tão fértil quanto abrupta)quanto no velamento, quando do muito(ao me fechar os olhos é que nascetua rosa)de tua essência pouco capto aos sentidos.

13

Nas dobras do complexo, nas vestesdo inacessível, nas cesuras do indizível,procuro tua dicçãodoce, me mostrando a retidão e os saboresda desdobra, do infinito complexodas simplicidades, ora velando,ora desvelando a vida tão dependente do verbo.

14

VidaPara a luz divinaque em linguagem de criançavem vindo de Paulinha e Rodrigo.Dia das mães, 11 de maio de 2008.

“Mas canta, canta agoracomo a fonte borbulha, como a agulhaatravessa o bordado,canta como essa luz pousa ao teu ladoe te penetra e tece a nova aurora,a nova Primavera e a tessiturado ramo que obedece e se oferecepara o mistério e pela criatura”

O anjo anunciador (trecho)Bruno Tolentino

Vens como a alegria que atravessaa matéria, tens nas almas teu ninho,as duas almas que hoje te concebem,se entrelaçam à tua à eternidade.

Como luz envolta pelos que esperamde Deus o último ponto em teu linho,vens afoita pelas mãos que te levemao mundo: quatro mãos à tua vontade.

E trazes completude ao incompleto.Teu ainda guardado e alegre cantotraz, do amor, incompletude ao completo.

Como todos que te esperam, à pazte saúdo: veste o primício mantoe vê que o resto a Primavera faz.

15

Ponte para estribilho

21À flor da estante

23Concerto derradeiro

24Parábola do poema

25Poema nulo

26Ponte para estribilho

Ponte para estribilho

“A palavra sabe doerquando esfria o sangue no rosto,

assim de surpresa, navioatropelando o próprio porto;

sabe degolar a sereia;chamar de gorda a moça feia;

sabe emudecer os aplausosque aconteceram anteontem

depois de décadas de atraso;

sabe matar pelo distritosem deixar marcas do delito.”

AnáforasAlberto da Cunha Melo

À flor da estanteI

Da estante retiro a velha garrafa,líquido guardado pela estética do enfeite.Sou ainda seco, mas o que guardaao corpo insone o breve futuroé gradar em seco pela noite: retiro-ae com ela venho à direção do ouvidodesejar o som do mar; mas obtusoé o internado, velholíquido, e dele me desfaço: tenho-avazia agora ao peito, aos ouvidos, à florde alguns sentidos (outros se omitema doar intensidade). O mar, aos olhosfechados, se faz à visão que escapaao sentido, àquela que sem suporte tão físicose apega fugaz sobre o negro.O mar, aos olhos fechados, se fazà flor dos ouvidos.

21

II

Da estante retiro, que me observa,a fotografia de olhos presos, insones,presa aos limites da amplitudedo quarto e ao nele meu movimento.Ao tato se acovarda, é mansa e solene como erano dia em que se emoldurou, tambémcomo era no dia em que rompeuo cordão de nascença com o instantememorificado; ao tato já não tem os olhosinquisitivos e juízesa que me envergonho nas particularesloucuras, a que evito em diasque desejo à parte da memória. Trago-aao colo num desejo morto de ouvi-laa voz vocal e tenho apenasa que se faz à flor da vigiaque quer meus instantes.

III

Da estante retiroo pincel: ele étal como o papelque o espera: instantee peso.

22

Concerto derradeiro“Há um arbitrário implícitonestas ruas estúpidas:o de que devemos prosseguir.”

Do falsário da irreconhecível pintura (trecho)Diego Barreto Ivo

Meu grande concerto é um planejamento amargo.Em cada desvio, meu caminhar se deitaremoendo os outros desvios e o encargode não se desviar: há um sonho perfeito.

Na avenida principal, que é perfeitamenteinfinita (sendo uma reta ou sendo cíclica),há sempre o temor da falsa harmonia íntegra,do falso movimento uniforme que tende

a zero, do suplício ao fim do beco escuro.Há nas esquinas um convite a Epicuro,um convite a remoer a onírica estrada

que se afasta em onírico desenrolar,viva como o desvio da morte em cada andar,cada sangrenta e obscena fenda nos muros.

23

Parábola do poemaDe modo que as coisas caibam na sutilezado verso pronto-derramado, é necessáriofundir o sentido com a palavra aparente,aguçar os laços que expandem o poema.

De modo que as formas presentes criem beleza,há que se entender beleza como o arbitrárioolhar, o olhar como a forca que cinge a mente,a mente como a beleza do estratagema.

O poema sente frio, pede fogo e mãosque lhe dêem um nome, fibra e leite materno.Cresce, voa e não deixa satisfação

quando não retorna à casa, quando no invernovai embora nu. Do poeta resta, em vão,peito e coração ao filho pródigo abertos.

24

Poema nulomundo mundoa mudamão do soprocontra o nuloescuromenos menosmenos que escuromenos que pouco e puro menos que sono e fundo: menos que impuroescusomais que escusonadacomo vaga? como nua? nada mais que nada nada: mão nenhumae mudo(ou quase)

25

Ponte para estribilhoO som de cada gumeperfura cada poroda carne sem a esperade retorno tão seco.

Como qualquer estrelaempresta ao vaga-lumea luz em que encarceraa fria dor do escuro.

26

Livro de Cecília

33I

34II

35III

36IV

37V

Livro de Cecília

“Blue, here is a shell for you,inside you’ll hear a sigh,

a foggy lullaby:there is your song from me”

Blue (trecho)Joni Mitchell

ITodos tem tanto o pé no chão, Cecília,todos tem tanto amor ao que aqui vêem,tanto apreço ao encontro, que esta ilha,esta redoma cinza onde vislumbras

o imune e fugidio som das águas,é a foz apaixonada e incansávelda voz que te elegia, vai aos abismosdo ser buscar a ti um sentido e vê

ele esvair-se assim antes de ser,antes de a ti chegar, vê que esta ilhaé nosso suspensório, nosso estar

na essência do ilusório, nossa perdada mais nobre matéria do sentidoque cega este falar, cala teus olhos.

33

IIE assim me dás a mão. A mim te enlaçasdevotando a esperança, a mesma e vãesperança que entrego aos teus ouvidos,feita de um desespero mais vazio

que este mundo que tens agora aos olhos.Que vês aqui, Cecília, além dos versosocos em que te busco um ser qualquerde sentido, e por fim acaba o meu

por esvair-se em meio ao oco nada?Vejo através de ti o incognoscívelvazio a que enlaçados entregamos

os dias que passamos assim, frentea frente, sós. Tu cega e eu poeta,nos cerca um grande abismo em quase-voz.

34

IIIpara Gerardo Mello Mourão,sob a leitura de “Os peãs”

E me pedes o mundo de uma formaque é tão pura agonia: não há palavraque diga a ti o lírio nem poesiaque mostre a ti a viva cor dos sinos,

das pálidas camélias, dos teus olhosverdes e desvairados para a vidae para a morte abertos, da tua bocaaberta como um fôlego da alma.

Se ao sentido dar nome já faz pobretudo o que aos olhos vige, quando o chãodesaba de rangido em pedra, vão,

o chão dessa lacuna a preenchernas coisas ao redor, até o não-veré ser vago os olhos que hoje não.

35

IVpara Bruno Tolentino

Não é fácil, Cecília, desejarum chão qualquer aos pés, aos nossos pés,quando já não há mais ao que ligara vida: se a poesia é vago símbolo,

o olhar um vago escuro, o tato um findo,quase findo, nostálgico relancede uma porosidade hostil e lúbrica,se todo o aroma está encerrado em terra

e semente no ausente vaso, enfimdiluído no tempo, e a boca apenasdeseja o inaudível saboreio

de intimações de lágrima delida,que mais queres que haja à flor do dia,senão a velha lição de despedida?

36

VE assim tiras tua mão da minha. A mime ao mundo tu inicias teu desenlace,retiras o teu corpo desse vãorascunho, dessa vã preliminar

existência. Verás agora se há,por fora de tua carne, realmenteo tal sopro maior que eu duvidavahá pouco aos teus sentidos. Não vá triste,

pois não vais por vontade ou não de ir,vais porque o mundo a ti assim desfez-se,sua máquina se em dia algum aberta

fecha-se a entreabrir os véus do agoratão vão mistério, humano enigma. És leve,andorinha, e a vida não foi à toa.

37

Nós, círculos

43I

44II

45III

46IV

47V

Nós, círculos

““Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo”

Ricardo Reis

IEscurecemo-nos ao corredor que vaiiluminando alvos da longínquaviuvez do tempo. Corremos sem entendê-lo,como se desejássemos o fim indesejávele nos consumimos. Em círculo,

vamos de cume a vale, erguendoa selva oscura. O corredor, nós,seguimos às voltas, e não há estarmosperdidos nem achados, não hádiritta via, monte, paraíso, há ilusão, há nós,enegrecidos.

43

IICores no céu de sua cidade em cores:o vermelho não evoca mais o sangue,o cinza da melancolia vai ao risoe o negro onde mergulhado eu me fazia crer

um mundo e ser sem sentidoagora assume roupagem nascente,os ecos estão mais claros.

Soubesse eu que, embora claros,continuariam a ser ecosem seu contínuo de eternidade.

Invadem minha cidade, coresno céu de sua cidadeem cores, levantado de um ausentechão pesado. O peso de sempre seria o caminho,não fossem as cores, roupagem nascente,os ecos mais dispersos.

Soubesse eu que os ecos não sentidosa tempo se resguardam, voltandoa tempo de encontrar-nos incolores.Em seu contínuo não compreendem a palavramorte, reside a sua na que nos espera.

44

IIIEm silêncio louvamos.Fazemo-nos a sóso meio imóvel de um fim impossível.

E corremos a sós,fazendo-nos silêncio,e o nosso fim imóvel, impassível,

nada nos dá à voz,pois tudo quer passar.E giramos, por palavra, a impor,

a querer impor nosso lugar.

45

IVpara Alexei Bueno,sob a leitura de “A via estreita”

Somos cegos à palavra.Perdemo-nos nos limites do som.E a palavra espera estanqueque nós a possamos terem seu contínuo de sentidos.

Fazemo-nos guardiões de tudo,mas nada depende, para além de nós,de nós. Para além da palavrahá o nada, palavra do começo,chama inextinguível, palavra do fim.

Somos muito estreitos para nossa via.

46

VVoltássemos os olhos ao céu,quando já dentre a terra forçadosa inertes nos esquivarmos, veríamos os círculos,os duos, os dolorosos duosque já não o seriam mais, pois entenderíamos,frente ao descanso insensível, o verso uno.

47

Espécie de Coda

53Em memória das cores

54Espécie de Coda

55Em memória de Bruno Tolentino

56Garoa na vidraça

57Em memória do poeta

58Em memória da poesia

Espécie de Coda

“Só conseguimos o perfume da coisa quando a fazemos arder e a deitamos fora”

Gerardo Mello Mourãoem “O valete de espadas”

Em memória das coresI. Passo

A cada passo uma cor, tão distintada anterior como se a cada palmoandado a face da mão fosse alvode uma transfiguração: outra e limpa.

A cada passo por dar, régua e peso:angústia de não ter por entre as mãoscabível o mundo, e em cada dedotê-lo como deveria ser: vão.

II. Lapso

A cada amor uma cor, tão distintada anterior como se a cada vidanão vivida ao ruir ou esquecidadesse, ao se esconder por medo, por finda

uma alquimia, um momento escassoque minguou numa vontade de eterno,que encontrou sua natureza de lapsoe seu calor num de repente inverno.

53

Espécie de Codapara Gerardo Mello Mourão,sob a leitura de “O valete de espadas”

Os homens de mil anoscá estamos,presos na vertical realidadea que ao bater o tempo o coraçãonos impõe. E há em cadaacordar esse estranhonascer, espécie de Coda,que já não mais sabemosdesígnios e deveresdos homens,

nós,os homens de mil anos, afogadosnesse então outro tempo.

54

Em memória de Bruno TolentinoI

Katharina, o mundo há de passar.Quando ao quebrarde tua noite passarem por tias cantigas, Katharina,como leve andorinha voadeixando tudo o que não és:o mundo há de passar.

II

Escrevo esta memória: faço-a mundonão como alguém que em lágrimas transcrevea dor da perda, o amor ao que há poucoainda não era a fuga, nem a levepassagem ao mistério, do habitanteda nossa teia física que findasempre contra a vontade diletante.Não dou minha memória assim à vida,porque esta, enquanto tua, não se deude encontro à minha. Escrevo com a tristeza,com a agonia do abismo de quem leuteus versos descreventes do fugaze como pedra encara a luz cadente,sabendo agora em carne o que ela faz.

55

Garoa na vidraça“Capture-me o fugaz” - vinha dizendo -“capture-me a garoa na vidraçada tarde em que meu vô ia vivendoo que lhe foi viver e lhe foi graça;

eram poucas palavras onde a vozvibrava, ia ficando ali o que passa,ia encontrando ali sua própria foza desaguar memórias e palavras.

Vida passada a limpo frente ao netoque ainda não vira a vida quase nada,rastro entregue aos ouvidos do dileto.

Emburacada estrada que se acabaem abismo sem volta, eterna retavertical que no tempo finda e cala.”

56

Em memória do poetaA verdade que era mundo quebrou-se em nada.As metáforas, nas quais criou mundo de abismo,sumiram em seu próprio escuro: lição dadapelas trevas ao poeta, aos doentios dísticos

em que não soube duelar os seus mais intrínsecoscéus, mais íntimos infernos. Não soube o poetaenxergar criação nos tormentos do ínterim,ver que o mundo não é poesia, é incompleto.

Viu sua vida ruir, pois quis que fosse obra,viu o mundo sumir ao escuro da dobraentre real e dileto, entre amor e mundo.

Não viu sua obra ruir, imerso no friodo denso negro: e a vida, entanto, no fundo,apenas um pseudônimo do vazio.

57

Em memória da poesiaPor onde o cantar das musas, alvoroçarque ao desdobrar-se em falenas preenche os lequesdo imaginário com a munição necessáriaao mirar nas lebres de vidro do invisível?

Por onde o meu mostrar-se aberto a ser veículodo sibilar das tantas cordas dos aedos,das perigosas vozes das águias sereias,por onde esquecem minha mão abandonada?

Deixais-me aqui a encarar um mundo indizívelonde me resto à cega busca das imagens,onde me debruço em sua fonte vazia.

58