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Memórias melancólicas: a morte do Rei D. Duarte no discurso cronístico de Rui de
Pina (1440 - 1522/1523)
Hugo Rincon Azevedo
Resumo:
Rui de Pina (1440 - 1522/1523) foi o responsável pela escrita das crônicas dos
primeiros monarcas da Dinastia de Avis no século XV, sendo os principais relatos das
mortes dos reis construídos pelo cronista português. Na crônica de D. Duarte, principal
fonte de nosso texto, Pina dedicou os primeiros capítulos para narrar a morte e o
sepultamento de D. João I (1385-1433), e os últimos capítulos para a narrativa do
passamento de D. Duarte (1433-1438), o rei biografado. Nota-se nesses relatos grandes
diferenças nas características e simbolismos nos discursos evocados sobre a morte dos
dois soberanos, enquanto no Mestre de Avis evocou-se o ideal de "boa morte", ao seu
sucessor edificou-se uma memória de um falecimento melancólico. Objetivando
entender a construção do discurso da "morte melancólica" do segundo rei de Avis,
analisamos obras escritas pelo monarca, como outras narrativas sobre a sua vida, que
reforçaram a concepção de melancolia, que viria a ser evocada nos relatos da sua morte.
Portanto, com ênfase na crônica registrada por Rui de Pina, propomos analisar como se
construiu o que entendemos por "memórias melancólicas" nas narrativas da morte do
Rei D. Duarte.
Introdução
Na Crônica de D. Duarte, de Rui de Pina, ao contrário do discurso da "boa
morte" construído sobre o falecimento de D. João I (1385-1433), o cronista registrou o
passamento de D. Duarte (1433 - 1438), sob outras perspectivas: diferente do seu pai, o
monarca morreu em tristeza, abatido pelos erros que cometera e marcado pela
melancolia que o afetou em grande parte da vida, igualmente presente nos seus
momentos finais. A narrativa de Pina é centrada na concepção da História Magistra
Vitae, e seu texto, enquanto reforço da ideia de uma história mestre da vida, busca levar
as más decisões do monarca, ou pecados, na concepção do autor, como a indecisão, a
pusilanimidade e a tibieza, como exemplos a serem evitados para os futuros reis de
Portugal.
Mestre em História (UFG). Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.
Bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]
2
É provável que Rui de Pina, acostumado a narrar sucessos e feitos memoráveis,
creditando-os como aqueles que deveriam unicamente ser registrados em crônica, e
tomando como exemplo as conquistas em África de D. João I e, principalmente,
posteriormente com D. Afonso V (1438 - 1481), não por acaso chamado o Africano,
não poderia deixar de construir sua narrativa em cima do feito, ou do episódico
infortúnio que marcou o reinado de D. Duarte: o desastre de Tânger. Assim, o cronista
ocupa-se desse evento como se nenhum outro acontecimento entre os anos de 1433 e
1438 fosse digno de registro para a memória, e dentro de um conceito laudativo de
crônica, tenta eximir o monarca da sua responsabilidade quanto à autoria da empresa
marroquina, o que empobrece ainda mais a imagem construída do soberano.
Para tentar entender o discurso cronístico sobre a morte de D. Duarte é
interessante retomar alguns aspectos das memórias construídas sobre o seu reinado, que
certamente influenciaram nas narrativas posteriores sobre o seu falecimento. O breve
reinado de D. Duarte foi marcado por políticas centralizadoras na tentativa de dar
prosseguimento ao projeto político de seu pai, baseando-se em uma governabilidade que
visava aumentar os poderes da Coroa frente à nobreza, edificar a memória da dinastia e
manter o projeto expansionista em África.
Portanto, pretendemos analisar como se construiu no discurso cronístico, com
ênfase no registro de Rui de Pina, o que entendemos por "memória melancólica" da
morte, ao aliar-se a narrativa da vida do monarca com as consequências que levaram ao
seu falecimento.
Narrativas de uma vida melancólica
Durante o século XIX e uma boa parte do século XX, a historiografia
portuguesa, baseando-se especialmente na Crônica de D. Duarte, de Rui de Pina1,
construiu uma imagem de um monarca intelectual, letrado, preocupado com questões
1 Rui de Pina (1440 - 1522/23) foi um cronista e diplomata português. Pina ocupou importantes funções
nas cortes dos reis portugueses no final do século XV e início do XVI. Prestou serviços ao reinado de D.
João II (1481 - 1495) e D. Manuel I (1495 - 1521), e por ordenação do segundo, escreveu as crônicas de
vários reis portugueses, como a de D. Duarte, que utilizamos como importante referência em nossa
pesquisa.
3
morais dos seus súditos, mas ao mesmo tempo um "Rei frágil", tomado pela "doença"
da melancolia, que perdeu para os islâmicos a Batalha de Tânger (1437)2 e deixou seu
irmão mais novo, o infante D. Fernando, morrer em cativeiro nas mãos dos infiéis. É
possível que essas análises sejam também frutos de uma excessiva comparação entre as
atuações políticas de pai e filho. Como José Hermano Saraiva chegou a diferenciá-los,
D. João seria um exímio político, enquanto seu filho e sucessor estaria mais para um
filósofo (SARAIVA, 2013).
A atribuição do historiador de que o monarca estaria mais para um "filósofo"
deve-se em parte aos registros duartinos, obras escritas por D. Duarte como o Leal
Conselheiro e o Livro da Ensinança de Bem Cavalgar toda sella, que são constituídas
por textos escritos do momento em que assumiu responsabilidades administrativas do
seu pai, nos primeiros anos da década de 1410, até os seus últimos dias. Nos seus
escritos, D. Duarte discutia questões existenciais, religiosas, manuais de comportamento
não apenas para a nobreza e membros da sua Corte, mas também aos demais súditos do
Reino, além de registrar também a sua relação com seu pai, seus irmãos, e os modelos
administrativos e políticos tomados por ele, em uma clara versão própria dos espelhos
dos príncipes mais relevantes na Baixa Idade Média.
A partir do ano de 1411, D. João foi aos poucos entregando ao filho diversas
responsabilidades administrativas, que já assinava diplomas régios, tendo inclusive
validado cartas régias com o seu próprio selo. Essa associação ao trono dada pelo rei
para o filho provavelmente seria uma reminiscência de práticas da monarquia visigoda
que ainda permeavam entre os reis portugueses, em que "alguns reis tentavam assegurar
a eleição de seus filhos fazendo-os participar do poder real ainda em vida do monarca
reinante" (VENTURA, 2013: 45). Desse modo, o monarca utilizou essa associação ao
trono com o objetivo de familiarizar seu sucessor com as exigências da governabilidade,
e assim, proporcionar uma relação entre o futuro rei e o seu povo.
2 O desastre de Tânger foi um evento que marcou profundamente o período duartino. A tentativa do
monarca de manter as conquistas em África, dando prosseguimento a tomada de Ceuta, foi um fracasso, e
mais que isso, levou um infante, D. Fernando, a morrer em cativeiro nas mãos dos infiéis, fato que trouxe
sérios problemas internos e externos para D. Duarte e o reino português em meados do século XV, ainda
mais levando em consideração a importante política da construção da imagem do reino perante à
cristandade e ao contexto europeu da época.
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Os dois anos anteriores a expedição à Ceuta foram de forte atuação do infante
herdeiro no governo do reino, tendo a princípio atuado mais em atividades de cunho
financeiro (ofícios ligados a fazenda e assuntos fiscais), para mais tarde, a partir de
1418, assumir a responsabilidade no campo da justiça, principalmente na publicação de
diversos regimentos. À medida que os anos foram passando, e principalmente depois da
morte da rainha e da conquista de Ceuta, D. João, já na idade de 60 anos, passou a se
dedicar a outras atividades como a escrita do seu Livro de Montaria, de tal modo que
nos últimos 15 anos de seu reinado quem governou de fato foi D. Duarte.
A responsabilidade de governar e a pouca experiência teriam originado
problemas de saúde no futuro rei, provavelmente oriundos do estresse causado pelo
excesso de trabalho, visto que o infante passava a maior parte do dia dedicado ao seu
ofício, guardando poucas horas do dia para alimentação, orações e o descanso. No Leal
Conselheiro, D. Duarte escreveu sobre o período que esteve tomado pela "doença de
humor menencorico" (LEAL CONSELHEIRO, cap. XIX). Conforme o monarca, na
quaresma de 1413, aos 22 anos de idade, o príncipe se encobria com toda a vontade no
trabalho em que foi designado por seu pai.
A sua rotina consistia em levantar-se muito cedo, depois ouvir missa, indo após
para a Relação, permanecendo por lá até ao meio-dia. Enquanto fazia suas refeições,
também dava audiências. Às duas horas da tarde recebia os membros do conselho e
vedores da fazenda, com os quais permanecia trabalhando até por volta das nove horas
da noite. Em seguida, continuava as tarefas com os oficiais de sua casa até às onze horas
da noite. Com tantos compromissos, não sobrava tempo para o lazer e a "folgança", não
podendo participar de caçadas e visitar o seu pai. Conforme a sua narrativa, o príncipe
assim permaneceu até a Páscoa, e cada vez mais era tomado pela tristeza, que o tirava
qualquer prazer na atividade que exercia (LEAL CONSELHEIRO, cap. XIX). A
situação piorou para o infante herdeiro quando chegaram notícias do avanço da Peste
pelo reino e o medo que sentia do contágio da doença pelo seu pai, o que apossou-se
seus pensamentos com o medo da morte.
Tomado pela melancolia, o futuro monarca recusava os tratamentos sugeridos
pelos físicos, que consistiam em beber vinho quase puro, deitar-se com mulheres e
evitar preocupações. A "cura" para o seu mal viria dois anos depois, como registrou D.
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Duarte, principalmente pelo tempo que passou ao lado da mãe em seus momentos
finais. Em meados de 1415, Dona Filipa adoeceu atingida pela peste e nos instantes
compartilhados com a mãe, o príncipe teria superado o medo do contágio pela doença e
o próprio medo que sentia pela perda da rainha, dando início a um processo de cura que
viria gradualmente nos três anos seguintes. No capítulo posterior de sua obra, D. Duarte
enunciou os remédios para a cura dos males que sofreu, consistindo basicamente em
comer moderadamente, distrair-se com a caça e na conversa com bons e sábios amigos,
afastar-se da peste e dedicar-se a leitura de bons livros de espiritualidade, História,
romances de cavalaria, etc. (LEAL CONSELHEIRO, cap. XX).
Nos primeiros capítulos da Crônica de D. Duarte, entre a narrativa do
sepultamento de D. João I e a Cerimônia de entronização de D. Duarte, Rui de Pina
recorreu a uma característica constante em seus textos, as profecias em torno do reinado
dos reis biografados. Ao contrário do discurso construído na morte de D. João, que
fechava um ciclo de um reinado glorioso, seu filho iniciava o seu governo com a
previsão de um astrólogo de que esse seria marcado por muitas dificuldades e de pouca
duração.
Conforme o cronista, após a cerimônia, o rei recebeu o Mestre Guedelha, um
astrólogo e físico judeu que atuava na sua corte, que o aconselhou a não assumir o trono
naquela manhã, pois o alinhamento dos astros não o favoreceria. O rei agradeceu a
Guedelha, afirmando estar ciente da relevância dos seus serviços prestados, da
Astronomia e das Ciências, mas que primeiramente depositava sua fé em Deus, e que
com sua benção e da Virgem, "com muita devaçam e devida humildade peço a Deos
que me ensine, favoreça, e ajude a governar este seu pôvoo, que me ora quer
encomendar como sentir que seja mais seu serviço" (CHRONICA D'EL REY D.
DUARTE, cap. II: 79).
Talvez em uma tentativa de explicar o porquê da brevidade do reinado de D.
Duarte e do desastre de Tânger, o cronista segue na narrativa com a resposta que o
físico teria dado ao monarca, ao reforçar que o soberano reinaria por poucos anos, e que
esses seriam marcados por grandes dificuldades e árduos trabalhos, como acabaram
sendo, justificou Pina (CHRONICA D'EL REY D. DUARTE, cap. II: 80).
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Em agosto de 1433, aos 42 anos de idade, D. Duarte se tornava rei. Rui de Pina
dedicou o capítulo III da crônica para descrever as características físicas, as virtudes e
os costumes do novo monarca. Para o cronista, quem foi D. Duarte? Na narrativa,
apresentou o monarca como um príncipe perfeito, tanto na paz como na guerra, detentor
de todas as virtudes que se esperava de um nobre cavaleiro, muito humano e amante das
ciências. O soberano seria ainda de grande religiosidade, muito católico e "amigo de
Deus", amante da justiça e abençoado por Deus, sendo dotado de todas as perfeições do
corpo e da alma (CHRONICA D'EL REY D. DUARTE, cap. III: 81). Nota-se na
descrição do cronista a ausência de marcos ou feitos grandiosos que geralmente seguem
as notas introdutórias ou mesmo as que descrevem a personalidade como no caso de D.
João I, que Pina registrou na mesma crônica.
Como já mencionado, sabe-se por meio dos próprios registros do monarca que
D. Duarte tinha medo da peste. As preocupações com a morte e com a "pestilência"
aparecem associadas nos escritos do rei. Assim como faz com outros temas, o sucessor
de D. João formula interpretações e busca entender a doença e a relação com a morte
para além da explicação dos físicos ou mesmo das teorias da Igreja, encarando os seus
medos para tentar vencê-los (VENTURA, 2010: 535). Essa questão foi reforçada ainda
no comportamento do monarca quando foi tomado pelo estado de melancolia após D.
João lhe atribuir importantes tarefas e ofícios e nos momentos ao lado do leito de morte
da mãe. Para tentar vencer o medo da doença e da morte, buscou nas "boas folganças"
ou "divertimentos honestos" a solução ou cura para os males que lhe afligiram. Mas
como um bom amante das ciências, como reforçou Pina, o soberano entendia que a
peste, por se tratar de uma enfermidade endêmica, necessitava também ser tratada por
medicamentos, os quais sempre buscava a produção de novas receitas por meio dos
físicos (muitos desses eram judeus) e botânicos que mantinha em sua corte
(VENTURA, 2010: 535).
Em o Leal Conselheiro, podemos observar que quando se tratava da sua vida, D.
Duarte deu preferência para o segundo modelo de tratamento. O monarca afirmou em
seus escritos que não é prudente para um homem permanecer em locais de perigo de
contágio, onde pessoas morreram por causa da doença. O rei salientou ainda que o
homem deve se servir da razão "lume de entendimento", que entende por dom divino,
7
para definir o que faz bem e o que é prejudicial para a sua saúde. Em agosto de 1438, o
reino português encontrava-se infestado pela epidemia. Seguindo os conselhos dos seus
físicos, D. Duarte se retirou junto à rainha e ao Infante D. Afonso para Tomar, tentando
fugir dos focos da doença, mas por uma ironia do destino, o monarca viria a falecer no
dia 9 de setembro com a mesma doença que lhe levou a mãe e que temeu sofrer por boa
parte de sua vida. É nessa perspectiva que Rui de Pina narrou os momentos finais da
vida do Rei Filósofo nos dois últimos capítulos da Crónica de D. Duarte.
Uma morte melancólica?
No final de agosto de 1438, D. Duarte, ao retirar-se para os Paços da Ribeira,
adoeceu ao contrair uma febre "mortal" que o acompanhou por doze dias, vindo logo a
falecer. Novamente, Pina reforçou as virtudes cristãs do monarca, o arrependimento dos
pecados, a grande devoção e o recebimento de todos os sacramentos. Três questões
chamam a atenção nesse trecho: em primeiro lugar, assim como fez com D. João I, o
cronista afirmou que no momento da morte do rei aconteceu de "grande parte do Sol se
acinzentar", ou seja, um eclipse ou obscurecimento do sol, os astros manifestavam seu
luto pelo passamento do soberano. Em um segundo momento, passa-se a impressão que
a morte do sucessor do Mestre de Avis pegou a todos de surpresa, uma morte
inesperada e prematura. Afinal, falecia aos 46 anos, 30 anos mais jovem que o pai no
seu momento de partida e com um curtíssimo período de reinado, ainda mais quando
comparado ao do seu progenitor. Em terceiro, o luto e a lamentação dos que o cercavam
e que poderiam ser também transmitidos aos membros do reino, que em prantos,
pareciam que com o rei partiriam juntos deste mundo (CHRONICA D'EL REY D.
DUARTE, cap. XLIII: 205).
Vários seriam os rumores das causas do falecimento de D. Duarte, como um
deslocamento do braço, que seguido de uma provável infecção (o que justificaria a
febre), teria tirado a vida do monarca. Outra causa, de maior possibilidade, é que o
soberano foi infectado pela peste. Para o cronista, nenhum desses males físicos teria
roubado a vida do Rei-Filósofo, pois este morreu tomado pela tristeza, sentimento esse
que muito o abatera e não teria conseguido superar a aflição e dor que ainda lhe causava
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a "desaventura do cerco de Tanger", não apenas pelo fracasso da expedição em si, mas
por causa dos erros que teria cometido no planejamento e que foram cruciais para a má
sorte em terras marroquinas (CHRONICA D'EL REY D. DUARTE, cap. XLIII: 205 -
206).
Em seguida o cronista apontou os erros cometidos pelo monarca que lhe
causaram tamanha tristeza que o fariam partir prematuramente deste mundo. D. Duarte
teria acatado as vontades dos infantes em partir para a expedição sem seguir as
recomendações de seu conselho, e mais, teria seguido contra a vontade de seus
conselheiros. Pina ainda reforçou que "a lembrança desta culpa lhe deu tante pena e
tormendo, que seu coraçom com rebates de door, que continoadamente recebia, se
apostemou em tanto graao de que acabou sua vida" (CHRONICA D'EL REY D.
DUARTE, cap. XLIII: 206). O tormento e a culpa que afligiram o coração do rei se
justificaram nas consequências do conflito em Tânger, que o colocaram em "dous
estremos mortaaes", ou entregava Ceuta para os mouros, "pedra" tão preciosa da Coroa,
ou mantinha o território em seu poder, deixando morrer em desespero e desamparo D.
Fernando, o "Ifante seu Irmaaom, que por seu serviço e por salvaçom de seus Vassalos
se oferecéra e posera em tamanho perigo" (CHRONICA D'EL REY D. DUARTE, cap.
XLIII: 206).
Como se sabe, em meio a esse trágico impasse, D. Duarte, seguindo a
recomendação de seu conselho, optou por não acatar as exigências dos islâmicos que
mantinham seu irmão em cativeiro em Tânger, mantendo a posse de Ceuta, que
representava não só a importância de um território do reino no além-mar, como era um
grande símbolo de prestígio do reino perante e para a cristandade, garantir a posse de
uma terra cristã em meio aos infiéis (VENTURA, 2013). Contudo, na crônica, o cenário
da morte melancólica do rei se encerrou como um exemplo e uma lição para que os
futuros príncipes não cometessem os mesmos "pecados" que o rei biografado. Na versão
de Pina, o monarca teria se nutrido de profundo desgosto ao saber que o culpavam
publicamente pelo desastre de Tânger, ainda mais porque a decisão de manter o
território sacrificando a vida do irmão teria sido sem seu consentimento, forçado pelos
"maus" conselhos da Rainha. Assim, a tristeza que o levou a morte, teria sido causada
por sua desobediência e desprezo ao seu conselho, servindo como exemplo claro
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àqueles que regem as "cousas publicas" (CHRONICA D'EL REY D. DUARTE, cap.
XLIII: 206).
No capítulo 154, Rui de Pina encerrou a Crônica de D. Duarte com uma breve
narrativa do discreto sepultamento de D. Duarte e a cerimônia que alçou seu filho D.
Afonso (ainda aos seis anos de idade) como Rei de Portugal. D. Pedro, que partiu de
Coimbra para o lugar em que finava o monarca, foi o responsável pelas cerimônias
fúnebres do irmão. O cronista narrou que o corpo "d'ElREy loguo foi metido em huuma
tumba, e com tochas e cruzes e Religiosos e Clerigos e com outra nobre companhia
levado a sepultar ao Moesteiro da Batalha, onde foy sepultado junto com o Altar Moor"
(CHRONICA D'EL REY D. DUARTE, cap. XLIV: 208). D. Pedro não teria
acompanhado o sepultamento, pois ocupava-se também da cerimônia que alçou seu
sobrinho rei. É interessante observar que Rui de Pina, em outra crônica, a de D. Afonso
V, traria uma narrativa um pouco diferente sobre a trasladação do corpo de D. Duarte
para o Mosteiro da Batalha. Observemos o que registrou o cronista sobre esse momento
E por estas Cerimonias de Saymentos, que aos Reis e Pryncepes,
depois de suas mortes, em suas Reaes sepulturas se fazem, serem tam
geraaes e costumadas em Espanha, e assy nestes Reynos de Portugal,
que pela moor parte todos ham delas notycias [...] nas pompas e
Cerymonyas de suas Exequyas, se guardou e compryo todo o que, ao
Estado de hum tam alto Pryncepe, em tal Auto compria; e nos burees,
e lutos dos corpos de todos, e nas lagrimas geraaes de todollos olhos, e
na comum tristeza de todollos rostos, em todo o Reyno claramente
parecia quanto sem sua vyda ra de todos amado, e a grande perda e
desamparo que, por sua morte e pello perder, todos recebyam
(CHRONICA D'EL REY D. AFONSO V, cap. IX).
Nessa narrativa nota-se uma maior riqueza de informações que na descrição da
cerimônia fúnebre de D. Duarte feita por Rui de Pina na crônica em que biografou esse
monarca. Na descrição, o cronista afirmou que esse rei teve todas as homenagens e ritos
que se devem prestar aos homens de seu estado e condição, além de reforçar o "luto
cósmico" que tomava conta daqueles que seguiam o cortejo, como também de "todo o
Reyno". Conforme José Mattoso (2001: 109), o "chefe" de determinado grupo social,
como no caso o rei, constituí no polo visível da comunidade, assegurando a sua
persistência no tempo, ele é o responsável pela garantia da justiça, da defesa e de todo o
10
processo de governabilidade da sociedade que lhe concedeu a autoridade e lhe entregou
o poder. Dessa forma, a morte do líder de um determinado grupo desde as sociedades
antigas implicava em sérias complicações para o seu povo, que permeavam na
preocupação com a sucessão, no "luto cósmico", na ideia do chefe morto continuar
mesmo após o passamento a proteger os seus subordinados, o temor de que a sua morte
significasse o fim da comunidade. Considerando que o desaparecimento de um simples
indivíduo causa uma perturbação na sociedade, principalmente aos seus familiares, o
mesmo ocorrendo com alguém que exerce autoridade sobre um determinado grupo,
atinge-o de maneira mais profunda, afetando a todos os seus membros (MATTOSO,
2001: 109).
Assim, a narrativa de Rui de Pina evidenciava manifestação do luto cósmico no
reino português após o passamento de D. Duarte, principalmente se considerarmos os
eventos que ocorreram em relação à sucessão do monarca.3 É provável que o problema
sucessório seja também umas das motivações do cronista ao evocar a ideia de luto
coletivo na sua narrativa, como se o monarca deixasse seus súditos desamparados,
abatidos e sem um sucessor pronto para substituí-lo.
A representação melancólica da morte de D. Duarte pode estar representada
também em seu túmulo no Mosteiro da Batalha. O soberano ao longo de seu reinado
tentou manter algumas políticas e práticas de seu pai, mas também buscou garantir uma
autonomia e marcas pessoais de sua governabilidade. Essas atitudes do monarca
também estiveram presentes na escolha de seu monumento fúnebre. O sucessor de D.
João I rompeu com a indicação de seu pai em testamento que os reis de Portugal fossem
sepultados na Capela do Fundador, e mandou construir para si e para esposa um túmulo 3 Após a morte de D. Duarte, devido a pouca idade do seu filho e sucessor D. Afonso, ainda aos seis anos
de idade, sua esposa, a Rainha Dona Leonor, assumiu a regência do reino como o monarca ordenara em
seu testamento. Esse fato desagradou os outros infantes, parte da nobreza e do povo que viam com
desconfiança a governabilidade do reino nas mãos de uma mulher estrangeira. Buscaram no Infante D.
Pedro, Duque de Coimbra, segundo filho de D. João I e irmão de D. Duarte, a autoridade para reinar
Portugal até que D. Afonso atingisse a maioridade. A princípio tentaram-se acordos e a divisão da
regência entre a Rainha e o Duque de Coimbra, mas o segundo acabou por tomar o poder e assumir a
regência. Em 1446, D. Afonso completou 14 anos e assumiu o reinado em Cortes de Lisboa, cabendo ao
tio auxiliá-lo. Devido às disputas internas e pressões de seus tios, D. Henrique, Conde de Ourém, e D.
Afonso, Duque de Bragança, o monarca acabou por dispensar o regente de suas funções em 1448,
fazendo com que D. Pedro se retirasse para o seu ducado. As tensões e conflitos entre o sobrinho e seu tio
foram aumentando com o passar dos meses até desencadearem na guerra civil de 1449, tendo como
desfecho a Batalha de Alfarrobeira, em que o então D. Afonso V com as tropas reais derrotou a armada de
seu tio, que morreu na batalha (MORENO, 2010).
11
conjugal em uma capela individual, que viria a ficar conhecida como "Capelas
Imperfeitas", que não vieram a ser concluídas, devido as mortes quase simultâneas do
monarca e do arquiteto responsável pela obra, o Mestre Huguet, ambos no ano de 1438.
Assim, essas capelas ficaram incompletas ou imperfeitas, como ficariam conhecidas na
história (RAMÔA, SILVA, 2008: 93).
Figura 1: Túmulo com os jacentes dos reis D. Duarte e Dona Leonor de Aragão na Capela
Imperfeita do Mosteiro da Batalha.
Disponível em: < http://www.pbase.com/diasdosreis/image/94592691 >
De acordo com Silva, a figuração dos jacentes é realizada por meio "de uma
imagem que procura fornecer a idealização que cada uma dessas personagens entende
ser, perante os olhos da sociedade, a mais adequada a si própria e ao grupo a que
pertence" (SILVA, 2005: 55-57). A escultura dos monarcas no túmulo régio perpassa a
caracterização social, é uma imagem evocativa de poder e de memória, é assim que a
obra é eternizada.
12
Dessa forma, a arca tumular de D. Duarte possui características similares a de
seus pais. A representação do monarca segue características próximas ao do seu
progenitor, vestido de traje militar, as armas de Portugal, a espada na mão esquerda, a
coroa na cabeça e mão direita segurando a mão da Rainha Dona Leonor. A sua
expressão facial traria um semblante de inexpressividade, passiva frieza e de tristeza,
características que teriam sido registradas sobre o monarca, como fez Rui de Pina em
sua crônica. É muito simbólico os traços envelhecidos do rosto de D. Duarte na
escultura, característica também presente na jacente de D. João I. A diferença é
expressiva no que se quer representar com os sinais de velhice no rosto dos monarcas.
D. João faleceu aos 76 anos, os traços presentes na escultura reforçavam um
envelhecimento natural, semblante de serenidade, com a experiência e maturidade que
aquele rei governara em vida. No caso de D. Duarte, temos outra interpretação.
Falecendo aos 46 anos, a escultura traz uma figura envelhecida pelo sofrimento,
causado pelas tristezas dos últimos acontecimentos da sua vida. Possivelmente a
expressão facial do rei simboliza a melancolia que sofrera em vida e a tristeza com que
partiu desse mundo pelo desastre de Tânger. O jacente de Dona Leonor também se
assemelha a imagem do de Dona Filipa, segurando o livro de oração com a mão
esquerda, veste e túnica única e a coroa na cabeça (RAMOA, SILVA, 2008: 95). Apesar
das características que o torna quase uma réplica da arca tumular do rei fundador da
dinastia de Avis, o monumento, conforme Vergílio Correia, seria uma "imitação pouco
feliz, réplica incaracterística que não depõe a favor da continuidade ou progresso
artístico da escultura da Batalha" (CORREIA, 1949: 126).
A doença da melancolia que o acompanhou durante a sua vida, que foi registrada
por ele em suas obras, e também reforçada por Rui de Pina ao biografar o monarca,
ganharia uma nova perspectiva na morte de D. Duarte. Nos seus últimos dias, a
melancolia se tornava tristeza, um abatimento causado pelas más escolhas que levaram
ao desastre de Tânger. Mais que a aflição que a peste causava ao corpo, os males
físicos, era a tristeza da alma que levaria D. Duarte desse mundo aos 46 anos de idade.
Memórias melancólicas da morte são as narrativas construídas sobre o passamento do
monarca, seja no discurso de Pina ou na escultura no monumento fúnebre da Batalha.
13
Narrativas que cristalizaram a imagem de D. Duarte, memórias de um rei, que conforme
o cronista, viveu e morreu melancólico.
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