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Isabel 1980 Maria Isabel Quaresma dos Santos nasceu em 6 de Julho de 1970 no distrito de Coimbra, na vila de Tábua. A sua mãe, Idalina Quaresma dos Santos, denotava alguma debilidade mental. O pai de Isabel não era membro da família. Isabel vivia com a mãe no Lugar Da Vacaria, pequena aldeia onde a agricultura e a pecuária constituem as principais actividades económicas. A pequena Isabel habitava um galinheiro onde supostamente a mão a terá colocado apenas algum tempo após o seu nascimento. Aí viveu durante oito anos da sua infância tendo como companhia as galinhas enquanto a mãe ia trabalhar para o campo. Alimentava-a de milho, couves cortadas e uma caneca de café. O caso de Isabel foi divulgado pela comunicação social no início de 1980, quando tinha a idade de 9 anos e tinha vivido cerca de oito anos num galinheiro. A primeira tentativa de tirar Isabel desta situação parece ter surgido do "Movimento Alfa", uma organização de carácter religioso, que foi buscar a criança. Através de um acordo com o Hospital da Tábua, aquela organização religiosa conseguiu o internamento da criança por um curto espaço de tempo, até encontrar uma instituição melhor preparada e adequada para a receber. Como tal instituição não foi encontrada, o Hospital acabou por devolver a criança à sua vida anterior. Entretanto, Maria João de Oliveira Bichão, de 35 anos, que trabalhava como técnica de radiologia no Hospital de Torres Vedras, teve conhecimento, por intermédio das religiosas deste hospital, da situação de Isabel. Toda a sua vida Maria João se havia interessado por crianças e pelos seus problemas e resolveu ajudar Isabel. Decidiu levar a Isabel para sua casa em Torres Vedras, onde ficou durante cerca de 15 dias. Porém, sentindo-se incapaz de recuperar uma criança como esta, Maria João tentou interná-la num hospital, mas apenas conseguiu o interesse de alguns médicos em observarem a Isabel e realizaram-lhe alguns exames. Como não foram assinaladas razões suficientes para o seu internamento, Isabel voltou para as suas condições anteriores. O caso acabou por ser denunciado à polícia, pelos vizinhos. No decorrer deste processo, Isabel foi internada no Colégio Ocupacional Luís Rodrigues, em Lisboa, que entretanto foi fechado pela Segurança Social. Actualmente encontra- se na Casa do Bom Samaritano. Quando Isabel foi encontrada possuía algumas características físicas específicas, tais como: Subdesenvolvimento ósseo; Grande debilidade; Cabeça demasiado pequena para a idade; Face com semelhanças flagrantes com os galináceos (perfil, posição labial, dentição formada como se fosse um bico);

Menina Galinha

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Page 1: Menina Galinha

Isabel1980

Maria Isabel Quaresma dos Santos nasceu em 6 de Julho de 1970  no distrito de Coimbra, na vila de Tábua. A sua mãe, Idalina Quaresma dos Santos, denotava alguma debilidade mental. O pai de Isabel não era membro da família. Isabel vivia com a mãe no Lugar Da Vacaria, pequena aldeia onde a agricultura e a pecuária constituem as principais actividades económicas. A pequena Isabel habitava um galinheiro onde supostamente a mão a terá colocado apenas algum tempo após o seu nascimento. Aí viveu durante oito anos da sua infância tendo como companhia as galinhas  enquanto a mãe ia trabalhar para o campo. Alimentava-a de milho, couves cortadas e uma caneca de café. O caso de Isabel foi divulgado pela comunicação social no início de 1980, quando tinha a idade de 9 anos e tinha vivido cerca de oito anos num galinheiro. A primeira tentativa de tirar Isabel desta situação parece ter surgido do "Movimento Alfa", uma organização de carácter religioso, que foi buscar a criança. Através de um acordo com o Hospital da Tábua, aquela organização religiosa conseguiu o internamento da criança por um curto espaço de tempo, até encontrar uma instituição melhor preparada e adequada para a receber. Como tal instituição não foi encontrada, o Hospital acabou por devolver a criança à sua vida anterior. Entretanto, Maria João de Oliveira Bichão, de 35 anos, que trabalhava como técnica de radiologia no Hospital de Torres Vedras, teve conhecimento, por intermédio das religiosas deste hospital, da situação de Isabel. Toda a sua vida Maria João se havia interessado por crianças e pelos seus problemas e resolveu ajudar Isabel. Decidiu levar a Isabel para sua casa em Torres Vedras, onde ficou durante cerca de 15 dias. Porém, sentindo-se incapaz de recuperar uma criança como esta, Maria João tentou interná-la num hospital, mas apenas conseguiu o interesse de alguns médicos em observarem a Isabel e realizaram-lhe alguns exames. Como não foram assinaladas razões suficientes para o seu internamento, Isabel voltou para as suas condições anteriores. O caso acabou por ser denunciado à polícia, pelos vizinhos. No decorrer deste processo, Isabel foi internada no Colégio Ocupacional Luís Rodrigues, em Lisboa, que entretanto foi fechado pela Segurança Social. Actualmente encontra-se na Casa do Bom Samaritano.

Quando Isabel foi encontrada possuía algumas características físicas específicas, tais como:

Subdesenvolvimento ósseo; Grande debilidade;

Cabeça demasiado pequena para a idade;

Face com semelhanças flagrantes com os galináceos (perfil, posição labial, dentição formada como se fosse um bico);

Olhos grandes (rasgados no sentido descendente);

Posição dos braços muito idêntica às asas das galinhas;

Calos nas palmas das mãos.

Uma catarata no olho direito, certamente originada por uma picada de galinha.

Em termos comportamentais, revelava:

Atitudes extremamente agressivas, destruindo tudo o que tivesse ao seu alcance, O seu comportamento mais usual era mexer os braços como se fossem asas de galinha e guinchar,

Comia os seus próprios cabelos, 

Defecava em qualquer parte e ingeria as próprias fezes. 

1998

Page 2: Menina Galinha

«Para mim, não há deficientes profundos. Há afectos profundos.» Quem o diz é Maria João Oliveira Bichão, hoje com 54 anos, para quem «a Isabel foi a primeira de muitas Isabéis» que acabariam por povoar a sua vida. Natural de Coimbra, técnica de radiologia no Hospital de Torres Vedras, casada com um médico daquela zona, Maria João teve conhecimento do caso num retiro, por intermédio de uma irmã das Servas de Nossa Senhora de Fátima. E bateu-se pela Isabel, chegando a levá-la para sua casa. Desse tempo guarda um «grande amargura» e uma «grande revolta». «Criei muitas inimizades e fui mesmo molestada profissionalmente, devido a essa situação», afirmou ao DN. E recorda a «enfermeira que fechava Isabel, porque queria ir fumar um cigarro», as reclamações que fez por isso e as retaliações que sofreu. Lembra ainda o percurso pelos hospitais de Torres Vedras, Santa Maria e D. Estefânia. Refere a atitude de um médico que se riu da menina, dizendo: «É isto que aqui está.» Fala ainda de diversas instituições, incluindo religiosas, que recusaram a Isabel, queixando-se de que ela rasgava lençóis e provocava distúrbios. Verdade seja dita: em minha casa, nunca fez tal».Esta foi uma primeira fase. «Ninguém aceitou a Isabel», conta Maria João, para adiantar que  «ela teve de regressar à mãe. Aí já não foi para o galinheiro, mas sim para o curral». Maria João tentou falar com a comunicação social, nomeadamente com a televisão: «Ninguém me ouviu.» Foi então que o DN publicou a reportagem e Manuela Eanes, mulher do então Presidente da República, interessou-se pelo caso. Isabel veio para Lisboa e foi internada num colégio. Maria João mandava dinheiro e tentava o contacto: «Mas quando dizia o meu nome, desligavam-me logo o telefone.» O tempo e a vida encarregaram-se de um maior afastamento. Maria João sofreu problemas graves de saúde e, quando procurou  ter notícias de Isabel, só soube que o dinheiro que enviava já não tinha destino e que o colégio aparentemente fechara. «Uma das minhas amarguras é reconhecer que se podia fazer mais e melhor por estas crianças. Há muitas organizações - a explosão da sida e da droga levou a que outras prioridades fossem assumidas - mas poucos olham por estas crianças, menos cuidadas de pai e mãe e abandonadas pela sociedade», declara Maria João. Entretanto, casada e sem filhos, Maria João tem dado apoio a outras crianças necessitadas e adolescentes em risco: «Em nome da Isabel», como salienta. «Tenho muita pena de não ter capacidade para poder fazer uma casa de acolhimento». E fala da sua amargura: «Se há 18 anos eu tivesse tido possibilidade de adivinhar o que ia acontecer e tivesse tido capacidade financeira para tal, nunca teria deixado ir a Isabel.»Retirado de uma notícia do Diário de Notícias, em 14 de Novembro de 1998

Como se encontra Isabel? (em 1998)

 Dezoito anos depois, Isabel não cresceu muito. Já anda sozinha, embora não em zonas de piso irregular ou com degraus. Diminuiu a agressividade e consegue completar jogos de colocação de peças. Tem um fascínio pelo tiquetaque dos relógios. Continua com problemas de estômago que lhe causam grande debilidade pois a obrigam a comer pouco e a ter uma alimentação muito cuidada. Segundo os relatórios do colégio onde esteve durante 15 anos, Isabel era afectiva e simultaneamente agressiva na tentativa de estabelecer relações. Não falava, batia os braços, mordia-se, arrancava cabelos que comia e tinha problemas de cicatrização por arrancar crostas das feridas. Foi internada na Casa do Bom Samaritano, onde, segundo a irmã Maria José, chegou com «uma grande anemia e muitos parasitas, não se controlava e não conseguia estar sentada cinco minutos, apesar de não se equilibrar (...) não possuía qualquer concentração, comia cabelos, papel e maçarocas de milho em grão». Por outro lado, «agarrava-se às pessoas e, se não tinha resposta, beliscava-as, utilizando a agressividade para chamar a atenção. Com a mesma intenção, despia-se da cinta para cima».

Segundo a psicóloga Isabel Costa, da Casa do Bom Samaritano, Isabel teria, em 1998, uma idade mental de dois anos. «Tem um nível de compreensão simples e responde a pequenas ordens, do género de se pedir alguma coisa e ela ir buscar. Mas, se se pedirem duas, ela só traz uma, porque só capta uma ordem de cada vez». Por outro lado, refere que «a jovem não fala mas tem linguagem receptiva, se se lhe falar em termos simples e sem grandes sequências». Isabel Costa salienta ainda a evolução, nos últimos três anos, da sua capacidade de atenção e concentração. «Com a colaboração de alguém, já consegue ter uma actividade durante dez minutos seguidos e, no que respeita a socialização, já sabe estar em grupo, é participativa e tem iniciativa própria por necessidade de contacto físico.» Na Casa do Bom Samaritano, Isabel desenvolve jogos simples e grafismos. Aprendeu a pegar num lápis e a riscar. Separa as cores e encaixa peças, frequentando o atelier psico-educativo. E Isabel Costa acrescenta: «Percebe bem a expressão facial dos outros e sabe, pelo nosso olhar, se estamos contentes ou tristes com as suas atitudes.» Aliás, «com alguma malandrice», até reage aos nossos comportamentos.

Page 3: Menina Galinha

Tudo leva a crer que é feliz.

Texto com base na reportagem sobre a "Menina Galinha - 18 anos depois", publicada no Diário de Notícias, em 14 Novembro de 1998