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Mercado Como Órdem Social Em Smith, Walras e Hayek

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  • Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    O mercado como ordem social

    em Adam Smith, Walras e Hayek

    1

    Angela Ganem

    2

    Resumo

    O objetivo do artigo apresentar criticamente as teorias do mercado de Adam Smith, Leon Walras e

    F. A. Hayek, sublinhando o que se considera terem em comum, ou seja, a ideia de mercado como

    expresso da ordem social capitalista. Entende-se que esta concepo do mercado como ordem social

    aparece originariamente na histria do pensamento econmico e na histria das ideias atravs da

    soluo de Adam Smith frente aos filsofos do contrato e avana, analiticamente, um sculo aps, na

    tentativa de demonstrao lgico-matemtica da Teoria do Equilbrio Geral em Walras para adquirir

    a souplesse terica necessria a sua sobrevivncia, no sculo XX, na teoria de Hayek, em que a

    histria realizaria o autodesenvolvimento da ordem do mercado. O texto percorre as filiaes

    filosficas e as implicaes metodolgicas das teorias do mercado desses grandes autores, mostrando

    as formas diferenciadas que elas assumem: ordem natural para Smith, ordem racional para Walras e

    ordem espontnea para Hayek.

    Palavras-chave: Teorias do mercado; Ordem social; A. Smith, 1723-1790; L. Walras, 1834-1910;

    F. Hayek, 1899-1992.

    Abstract

    The market as a social order in Adam Smith , Walras and Hayek

    The objective of the article is to critically present the liberal theories of Adam Smith, Leon Walras

    and F. A. Hayek, underlining what they have in common, that is, the idea of market as a general

    theory of society and the construction of scientific attributes that make possible the understanding of

    the supremacy of market order against other forms of social organization. It is assumed that this

    conception of market as social order appears originally in the history of economical thought and in

    the history of ideas through Adam Smiths solution against contract philosophers and that it

    advances analytically, a century later, in the attempt of logic-mathematic demonstration in Walras, to

    acquire the necessary theoretical souplesse for its survival, in the XX century, in the Darwinian

    adventures of the Austrian school libertarians, specially Hayek, for whom history would realize the

    self-development of the market. The text will traverse the philosophical filiations and the

    methodological implications of the marketing theories of those great authors showing the

    differentiated forms they assume: natural order for Smith, rational order for Walras and spontaneous

    order for Hayek.

    Keywords: Market theories; Social order; A. Smith, 1723-1790; L. Walras, 1834-1910; F. Hayek,

    1899-1992.

    JEL B40.

    (1) Trabalho recebido em 13 de agosto de 2010 e aprovado em 10 de novembro de 2010.

    (2) Professora visitante do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ),

    Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected]. Este trabalho faz parte da pesquisa intitulada: As

    teorias do mercado em Smith, Walras e Hayek: uma abordagem histrico-filosfica. Valho-me dos resultados

    parciais do estudo das teorias desses trs autores para construir, neste trabalho, a unidade e as diferenas

    existentes entre elas. Agradeo os pertinentes comentrios dos pareceristas desta Revista.

  • Angela Ganem

    144 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    Introduo

    O objetivo do artigo apresentar criticamente as teorias do mercado de

    Adam Smith, Leon Walras e F. A. Hayek, sublinhando o que se considera terem

    em comum, ou seja, a ideia de mercado como expresso da ordem social

    capitalista. Entende-se que esta concepo do mercado como ordem social aparece

    originariamente na histria do pensamento econmico e na histria das ideias

    atravs da soluo de Adam Smith frente aos filsofos do contrato, e avana,

    analiticamente, um sculo aps, na tentativa de demonstrao lgico-matemtica

    da Teoria do Equilbrio Geral, em Walras, para adquirir a souplesse terica

    necessria a sua sobrevivncia, no sculo XX, com a teoria de Hayek, em que a

    histria realizaria o autodesenvolvimento da ordem do mercado. O texto percorre

    as filiaes filosficas e as implicaes metodolgicas das teorias do mercado

    desses grandes autores, mostrando as formas diferenciadas que elas assumem:

    ordem natural para Smith, ordem racional para Walras e ordem espontnea para

    Hayek.

    Na dcada de 1990, assistimos a um debate que envolveu vrios campos

    das cincias sociais: a questo sobre o fim da Histria. Seu eixo central, embora

    com variantes filosficas, residia na ideia da inexorabilidade do mercado, um

    processo sem sujeito que culminaria na democracia liberal, a face poltica da

    vitria da lgica do mercado e da globalizao. No campo doutrinrio, discursos

    apologticos elegeram entusiasticamente o mercado como passado, presente e

    devir das sociedades contemporneas. Uma nova teoria do mercado, menos

    matemtica e mais afinada a seu tempo foi um dos grandes pilares deste discurso:

    a teoria do mercado espontneo de F. A. Hayek. O capitalismo humano de

    Hayek glorificava a autorregulao do mercado, colocando-se, de uma s feita,

    como o herdeiro legtimo de Smith e como crtico exemplar do que denominou o

    racional construtivismo dos modelos matemticos neoclssicos.

    Hoje, o discurso muda frente fora da crise financeira que se abriu no

    mundo globalizado. Em tempos de crticas ao neoliberalismo, at economistas do

    interior do programa neoclssico de pesquisa vm a pblico posicionar-se contra o

    fundamentalismo do mercado e sua utpica capacidade de autorregulao. Alm

    do debate acerca da teoria mais plausvel para explicar a inteligibilidade do

    mercado, volta-se velha ideia de regular o mercado, ponto nevrlgico da crtica

    que Hayek fez no apenas ao keynesianismo, mas, sobretudo, aos seus pares

    neoclssicos, que, na sua avaliao, cometeram erros de concepo, abrindo

    possibilidades tericas e polticas de correo das falhas do mercado pelo Estado.

    Em que pese o maniquesmo instaurado pelos defensores do mercado

    frente ao Estado, tem ficado cada vez mais difcil no reconhecer terica e

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    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 145

    politicamente a fora incontestvel do seu papel na constituio e na sobrevivncia

    da ordem capitalista. Mas, enquanto as circunstncias histricas mostram a

    importncia crucial do Estado, sobrevivem, no campo das ideias e na tentativa de

    influenciar as polticas econmicas e sociais, as teorias do mercado autorregulvel.

    Este trabalho tem como eixo as teorias de Smith, Walras e Hayek

    identificadas como exemplares no entendimento da lgica do mercado como teoria

    da sociedade capitalista. Neste quadro referencial, mostram-se as razes pelas

    quais elas foram eleitas como as mais significativas frente s inmeras teorias do

    mercado existentes, sublinhando-se os elementos que as unem conceitualmente

    bem como os aspectos peculiares que as diferenciam entre si.

    A perspectiva histrico-filosfica, o que significa que se articulam as

    teorias e seus mtodos histria, processo no apenas aberto s injunes dos

    fatos econmicos, mas tambm comprometido com o movimento do pensamento e

    o jogo conflituoso das ideias Neste sentido, a compreenso da histria do

    pensamento a de que ela tecida por releituras, rupturas e tenses que se movem

    a cada momento em dois planos, o da histria das ideias e o da histria do prprio

    capitalismo. No plano do pensamento, dialogam com a economia, a histria das

    ideias, a histria da cincia e os grandes sistemas filosficos.

    Finalmente, faz-se necessrio sublinhar que no se proceder a uma leitura

    que defende uma trajetria evolutiva da histria das teorias do mercado em que

    Walras superaria Smith ou que Hayek representaria o estgio atual da teoria e a

    sua forma mais acabada. Rejeita-se essa perspectiva positivista da leitura da

    histria e prope-se revisitar as formas peculiares que cada uma assume,

    respeitando o seu movimento interno e a sua insero na histria. o que se

    realiza nas prximas sesses, seguido das consideraes finais, nas quais so

    estabelecidas as pontes de ligao entre elas e os pontos que as separam.

    1 Adam Smith e o mercado natural como explicao para a ordem social

    emergente

    A economia poltica nasce com a implantao do capitalismo e como fruto

    da modernidade, e tem em Adam Smith seu marco fundador. Ele a inaugura com

    uma interpretao sistematizada da ordem social capitalista, observando-a tanto

    pela tica da produo, da acumulao e do excedente como pela forma mercado.

    A tica da produo, da acumulao e do excedente econmico analisada

    no quadro histrico-social est ligada ao caminho aberto, no sculo XVII, por

    William Petty e desenvolvido por Adam Smith e pelos fisiocratas no sculo XVIII.

    J a leitura pela tica do mercado remete Smith diretamente histria das ideias e

    a sua importante contribuio na construo do iderio liberal. A soluo da mo

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    invisvel, em que interesses privados ao invs de se chocarem produzem bem-estar

    social, se contrape e supera as formulaes do contrato social para a explicao

    da emergncia da ordem social liberal nascente. E nesse sentido peculiar que

    considerada, por inmeros autores, como a palavra final da modernidade.

    Comunga-se com a ideia de que Adam Smith est entre os grandes

    pensadores da modernidade, entre aqueles que aceitaram um dos maiores desafios

    tericos da humanidade que explicar a emergncia e a regulao da ordem social

    sem recorrer explicao divina. Em verdade, trata-se da questo inauguradora do

    movimento antropocntrico da Revoluo Cientfica Moderna, da qual

    participaram inmeros autores no intento de descobrir mtodos capazes de

    explicar a ordem fsica e a ordem social emergente. A soluo smithiana vai

    fornecer, trs sculos aps a ruptura dos modernos frente sntese aristotlica,

    uma resposta convincente e afinada nova ordem capitalista. O processo de

    construo do indivduo e do individualismo, fortes componentes do iderio

    liberal, encontrou um adequado arcabouo terico na soluo smithiana da mo

    invisvel

    3

    . E no por outra razo que a teoria do mercado de Smith se torna

    inquestionavelmente a matriz terica da ordem social liberal, e a economia, dentro

    desta perspectiva, passa a ser entendida como o terreno sobre o qual a harmonia

    social pode ser pensada. A explicao smithiana, assentada nica e

    exclusivamente na impondervel e complexa ao dos indivduos, traz

    naturalmente, como resultante, a ordem social do mercado. Uma ordem natural,

    posto que regida por leis naturais e que tem como ponto de partida a natureza

    humana, ou o homem como ele realmente , herana do realismo inaugurado na

    modernidade por Maquiavel

    4

    .

    Adam Smith, ao oferecer a soluo do mercado como explicao para a

    emergncia da ordem social, define o projeto da economia como cincia, ao

    mesmo tempo que dialoga com a questo filosfica central dos modernos: como

    entender a emergncia da ordem social sem recorrer explicao divina? Expulsos

    os anjos do cu, ao homem, resta-lhe fornecer tanto uma explicao para a ordem

    fsica como uma forma de inteligibilidade para a ordem social.

    (3) Esse processo de construo do iderio liberal que culmina em Smith e no nascimento da economia

    pode ser estudado sob diversos ngulos e por inmeros autores. Destacam-se: Dumont (1977); Hirshman (1977);

    Rosanvallon (1979); Vidonne (1986); Bianchi (1987); Dupuy (1992); Defalvard (1995); Redman (1997) e Zanine

    (1997), citados em Ganem (2000).

    (4) Maquiavel (1469-1527) a primeira tentativa, no campo da poltica, de ruptura com a explicao

    divina, apresentando uma teoria poltica ditada pela prxis de aconselhar o prncipe na difcil tarefa de governar.

    O radicalismo de seu realismo poltico se apresenta na idia de que os povos constituem seus prprios destinos e

    numa noo de interesse associada a ragione de stato, que rompe com a noo de avareza e se associa a um modo

    esclarecido de governar. Ver Ganem (2000).

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    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 147

    Smith pensa a sociedade como um moderno, isto , como autoinstintuinte,

    e a encara como desencantada (nos termos weberianos). Com isso, constri uma

    soluo em que a sociedade no ser mais fundada sobre uma exterioridade, mas

    sobre ela mesma. Neste objetivo, Adam Smith torna-se um dos mais geniais

    representantes da modernidade: ele transforma a economia em centro explicativo

    da sociedade atravs da universalidade do desejo de ganho dos homens. Sua

    soluo afirma que os interesses privados, ao invs de se chocarem, produzindo a

    guerra, so agraciados por uma mo invisvel que os orienta para o bem-estar

    coletivo. Uma soluo aparentemente simples, mas que se tornou em uma das

    metforas centrais da economia e contribuiu decisivamente para definir um dos

    caminhos tericos da disciplina

    5

    .

    Dentro do campo das ideias, formas embrionrias da noo de mo

    invisvel aparecem inicialmente, por exemplo, na ironia da Fbula das Abelhas, de

    Mandevillle, em que vcios privados geram benefcios pblicos

    6

    , e em

    Montesquieu, um dos autores pilares do topos liberal. Neste ltimo, uma noo de

    mo invisvel aparece na teoria do doux commerce, na noo de equilbrio e na

    possibilidade de paz e civilidade como resultados da troca comercial entre as

    naes. Afinal, a troca acalma e suaviza as paixes, dir Montesquieu, que

    entende o ganhar dinheiro no comrcio como uma paixo inocente e calma, e que

    possui a previsibilidade e a constncia necessrias para se constituir em princpio

    explicativo do comportamento humano, aspecto dessa sociedade, brilhantemente

    destacado por Albert Hirshman (Hirshman, 1977). Essa teoria que compe o

    iderio liberal se situa nas antpodas da leitura que Marx faz, um sculo aps,

    sobre o perodo de acumulao primitiva do capital: um processo essencialmente

    violento e anticivilizatrio de relao desigual entre as naes.

    Adam Smith herda de Locke a concepo do direito de propriedade como

    uma extenso do direito vida, garantindo os bens acumulados no estado de

    (5) Pelo menos dois caminhos se abrem na HPE, ps-Smith: de um lado, nos desdobramentos da teoria

    do valor-trabalho expresso no enfoque da produo, distribuio e acumulao de capital dos clssicos e de Marx

    a tradio da Economia Poltica, e de outro, na leitura neoclssica, que revisita Smith exclusivamente pela tica

    do mercado a tradio da Economics, ou da Economia Positiva.

    (6) Mandeville (1670-1733), em The Fable of the Bees, publicado em 1714, veicula idias

    marcadamente modernas, ao mesmo tempo em que ironiza a sociedade liberal nascente. O paradoxo social,

    apresentado na idia de que benefcios pblicos resultam de aes viciosas, explora a noo de mo invisvel,

    articulando a paixo privada do vcio ao resultado coletivo do benefcio pblico e encarna exemplarmente a

    filosofia utilitarista, no sentido de que o que se busca a maior felicidade para o maior nmero possvel de

    pessoas. (...) Dentro dessa linha, consultar Ely Halvy, no seu livro de 1903, j considerado um clssico da

    histria das idias, La formation du radicalisme philosophique, em que o autor reala uma linha de continuidade

    entre Mandeville e Smith atravs da noo de mo invisvel: Smith retoma a doutrina de Mandeville expondo-a

    sob uma forma no mais paradoxal e literria, mas racional e cientfica (Halvy, 1994, citado em Ganem, 2000).

  • Angela Ganem

    148 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    natureza e oferecendo o arcabouo jurdico institucional necessrio e

    indispensvel para que ele pudesse erigir uma teoria do mercado livre de qualquer

    injuno de um pacto produzido pelo Estado. No limite, Locke vai fornecer um

    elemento crucial que faltava ao constructo smithiano: a precondio ao direito da

    possibilidade da emergncia natural da ordem social.

    Por outro lado, se, para Smith, Hobbes apresentou uma construo terica

    7

    que o desafiava, David Hume, seu contemporneo e colega, alunos que foram do

    mestre Hutcheson, contribuiu para a fundao da universalidade de uma paixo

    peculiar da sociedade nascente: o desejo de ganho ou o desejo de acumular

    dinheiro, ou mais precisamente, o desejo de melhorar a sua prpria condio.

    Hume substitui a benevolncia ou altrusmo de seu mestre pelo conceito de

    simpatia, adentrando na arena incmoda da aprovao moral, atravs da ideia de

    que os espritos dos homens so espelhos uns para os outros, elementos de

    intersubjetividade que sero tratados de forma mais complexa e acabada por Adam

    Smith na Teoria dos Sentimentos Morais (Smith, 1996 [1759]); (Smith, 1998

    [1795]).

    Com a introduo do elemento moral, tem-se duas perspectivas para a

    compreenso da ordem do mercado que significam leituras divergentes sobre a

    obra do autor. Elas envolvem, alm da explicao da ordem social, a questo sobre

    natureza do nascimento da economia. Nessas leituras esto em jogo duas

    compreenses opostas sobre esse nascimento. As leituras sobre a relao existente

    ou no entre a Teoria dos Sentimentos Morais (TSM) e a Riqueza das Naes

    (RN) geraram uma importante controvrsia no mbito da histria do pensamento

    econmico, conhecida como o problema Adam Smith, ou das Adam Smith

    Problem, nome dado pela Escola Histrica Alem para a disputa de duas teses

    sobre a leitura da obra de Smith.

    A primeira tese define uma ruptura entre a Teoria dos Sentimentos Morais

    (TSM) e a Riqueza das Naes (RN), e a segunda advoga uma leitura unitria da

    obra. Em uma primeira leitura, a moral totalmente descartada da fundao da

    economia, o interesse redunda em self interest, um princpio explicativo minimal

    para uma cincia que guarda como espelho a fsica newtoniana. A partir dessa

    leitura da obra do autor, Adam Smith filsofo da Teoria dos Sentimentos Morais

    (7) Ao apresentar sua soluo, Adam Smith est tambm se contrapondo soluo do contrato de

    Hobbes. Embora tenha sido Maquiavel quem descobriu o continente ao qual Hobbes edifica a sua doutrina, ser

    atravs de uma axiomtica rigorosa que ele demonstra, de uma s feita, o surgimento da sociedade, da poltica e

    do direito, frutos do pacto social. Uma soluo inequvoca para o medo da morte, do extermnio dos homens entre

    si na sua luta competitiva pelo desejo de glria. Ver (Ganem, 2000).

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    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 149

    superaria a inconvenincia dos julgamentos morais, recortando a ao dos

    homens e definindo-se como um economista pragmtico

    8

    .

    Para esta interpretao da obra, o sujeito smithiano ser visto como um

    preldio do homem econmico racional e toda teoria de Adam Smith estaria

    representada na Riqueza, considerada como um esboo literrio da explicao

    acabada dos neoclssicos, um sculo depois. Neste sentido, Walras, atravs do

    modelo cannico, retoma a soluo smithiana e a traduz em seus prprios termos:

    um tratamento terico rigoroso expresso na soluo lgico-matemtica da

    explicao da ordem social. Esta primeira leitura, considerada triunfante, advoga a

    garantia de uma mo invisvel que orquestra desejos individuais, encapsula os

    valores e a moral, e se traduz na frmula perfeita definidora do mercado. O

    mercado, como dir Hahn, dois sculos mais tarde, repetindo a ideia smithiana da

    mo invisvel como ordem social, impe a ordem no caos potencial

    (Hahn,1986).

    Uma segunda leitura, com a qual aqui se identifica, tem como argumento

    central a ideia de que tanto a economia como o comportamento do sujeito

    smithiano no esto livres de injunes morais, o que refora a natureza filosfica

    do autor, manifesta na obra Teoria dos sentimentos morais

    9

    . Atravs desta leitura

    da ordem social, a economia nasce sob a paternidade de um filsofo moral, o que

    significa que no possvel compreender a obra nem o autor, sem aceitar a sua

    unidade. Para os defensores desta leitura, o correto seria iluminar a Riqueza com

    (8) So muitos os autores que se identificam com essa perspectiva que isola as duas obras e as trata

    separadamente: 1) esta perspectiva nasce na Escola Histrica Alem, na qual o prprio Smith acusado de no

    ter deixado claro a dupla de instintos egosticos e sociais; 2) alguns autores levantam a influncia que Smith

    sofreu do mtodo dedutivo geomtrico (quando da sua passagem pela Frana), que isola elementos, criando

    universos separados, o egosmo, de um lado, e a simpatia, de outro; 3) Jacob Viner, em 1927, defende o

    argumento de que Smith abandona a metafsica da TSM para dar lugar ao realismo da economia na RN; 4) a tese

    dos dois domnios retomada por dois monstros iconoclastas: Louis Dumont e Albert Hirshman e 5) finalmente,

    a tese que perpassa o tempo inaugurada pela leitura neoclssica canonizada: o sujeito smithiano um preldio

    do HER. Para a apresentao das duas correntes, consultar Raphael D. D. e Macfie (1976) e Bertrand (1992).

    Para uma defesa da unidade da obra, consultar Viner (1971).

    (9) A segunda leitura que preza a unidade da obra tem os seus defensores distribudos no tempo: 1) em

    1890, ocorre a primeira reao leitura reducionista da obra do autor. Ela foi feita por seus bigrafos, que

    recuperaram os testemunhos do autor. No Prefcio sexta edio da TSM (e depois de um grande sucesso da

    RN), Smith afirma que a TSM a sua obra mais importante; 2) em 1923, Glen Morrow trabalha com a ideia de

    que tanto o egosmo como a simpatia tm um mesmo operador moral; 3) Robert Heilbroner, em 1982, l o

    homem prudente da TSM como o homem interessado da Riqueza; 4) D. Marshall v o teatro como forma de

    compreenso da inteligibilidade da ordem social manifesta na TSM; 5) em 1992, Jean Pierre Dupuy rompe com a

    ideia de benevolncia e liga o interesse ao amor-prprio. No Brasil, Ana Maria Bianchi foi a primeira autora a

    tratar dessa polmica questo. Consultar: Bianchi (1982), Heilbroner (1982), Dupuy (1992), Bertrand (1992),

    Raphael, D. D. e Macfie (1976), e Ganem (2000). Tambm na tentativa de articular as duas obras, consultar

    Ganem (2002) e Cerqueira (2004).

  • Angela Ganem

    150 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    os escritos filosficos da Teoria para entender a relao entre as duas obras. Na

    explicao da ordem social, a TSM funciona como obra to importante quanto a

    RN, no sendo, portanto, a ela redutvel. Alm disso, a noo de interesse privado

    no se esgota no self-interest e carrega consigo a moralidade subjacente noo

    de amor-prprio. O amor-prprio, eixo do interesse, uma paixo que retira sua

    substncia do reconhecimento do outro. Ao necessitar visceralmente da aprovao

    do outro, o sujeito smithiano reafirma ontologicamente a sua substancial

    incompletude. Como um ser incompleto, ele se aproxima muito mais da ideia de

    um homo mimeticus, ou ainda, de uma racionalidade complexa em que o indivduo

    age, tomando como referncia o julgamento do outro. Dupuy chama essa relao

    do sujeito com ele mesmo atravs do social em Smith de uma boucle auto-

    referencielle (Dupuy, 1992) De outro lado, para Smith, a mo invisvel mais que

    um operador tcnico, ela um operador social e sua ideia de mercado como uma

    teoria da sociedade se traduz na explicao da emergncia da ordem social liberal.

    Finalmente, para esta leitura, o nascimento da economia em Adam Smith

    no se faz rompendo com a moralidade. Isto significa que ele deixou clara a tenso

    e a situao paradoxal para seus herdeiros: a autonomia da economia s poder ser

    realizada com redues. No sculo seguinte, os neoclssicos levantam as fronteiras

    disciplinares necessrias para recortar o campo da economia, expulsando, do seu

    domnio, a moral e os valores. Neste objetivo assptico de autonomizar a

    disciplina, os neoclssicos lanam as bases, na histria do pensamento econmico,

    de uma economia que se pretende positiva, ideologicamente neutra e anloga

    mecnica clssica (Ganem, 1996).

    2 A ordem racional do mercado de Walras e a tentativa de transformar a

    economia num teorema

    Todavia, se na origem explicativa da ordem liberal sobrevivem polmicas

    sobre o sujeito smithiano e sobre a natureza do fenmeno econmico, as

    exigncias de positividade e cientificidade requeridas ao longo dos sculos XVIII

    e XIX no deixam mais dvidas sobre o caminho de axiomatizao a ser seguido

    por uma cincia carente de provas e enfeitiada pelo espelho da fsica. Para uma

    cincia que elege como seus os critrios newtonianos de cientificidade e que se

    define como anloga mecnica clssica (Walras, 1952 [1874]), s lhe resta

    assumir o desejo incontido de tornar-se um dia hard science, expulsando

    definitivamente de seus domnios a moral, os valores e o Estado. Em primeiro

    lugar, guarda-se a ambio smithiana do mercado como teoria geral da sociedade.

    Em seguida, procede-se passagem epistemolgica de uma ordem explicada a

    partir de uma herana empirista e comungada a um projeto baconiano-

    praxeolgico de cincia rumo a uma cincia que se definir, nos seus

  • O mercado como ordem social em Adam Smith, Walras e Hayek

    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 151

    fundamentos, como essencialmente racionalista e apriorista. Neste quadro, a

    matemtica, a formalizao e a modelizao passam a ser os critrios soberanos e

    definidores de cientificidade.

    Walras mantm a ambio smithiana do mercado como uma teoria da

    sociedade e procede s redues necessrias demonstrao. O sujeito smithiano,

    movido pelo autointeresse, cortado por paixes, d lugar ao homem econmico

    racional herdado de Mill, cujo clculo maximizador traz como resultado a ordem

    racional. O fundamento microeconmico dessa ordem um ser abstrato,

    atomizado e movido pelo clculo, e que, atravs de um mecanismo de ajuste

    automtico, produz o equilbrio, uma noo (precisa) fsica que substitui a noo

    (vaga) de bem-estar smithiana.

    Neste sentido, o elemento central da contribuio de Adam Smith, a mo

    invisvel, passa de operador social a operador tcnico, e sua funo

    compatibilizar a oferta e a demanda. Nesse quadro terico, a economia elimina, de

    seu espao disciplinar, o Estado, a moral ou qualquer outra injuno valorativa. Se

    Adam Smith legou histria do pensamento econmico a ideia da economia como

    fundamento da sociedade e a do mercado como viabilizador da ordem social

    liberal, Walras inaugura o esforo demonstrativo necessrio a uma cincia que

    elege, como seus, os critrios newtonianos de cientificidade e se volta para a busca

    de resultados da aplicao do esprit gometrique dos modernos ao seu campo

    disciplinar (Ganem, 1996).

    Em finais do sculo XIX, no bastava afirmar que os interesses individuais

    produziam algo que se traduzia na noo coletiva de bem-estar. Para a teoria

    marginalista, alm do instrumento do clculo diferencial ser aplicado aos desejos e

    s decises econmicas, fazia-se necessrio demonstrar lgico-matematicamente a

    ordem racional do mercado. E ser este desafio que Walras enfrentar dentro da

    perspectiva de transformar a cincia econmica em um teorema. A partir de uma

    abordagem axiomtica, ideal, e de hipteses irreais e parmetros altamente

    restritivos, pretender demonstrar que o equilbrio do mercado existe, estvel e

    timo e, de uma certa forma, revelar o desejo de construir aprioristicamente os

    fundamentos rigorosos de uma cincia que se pretende exata. No toa que a

    ambio walrasiana est no hard core da teoria neoclssica, sendo considerada,

    por Schumpeter, como um marco terico da cincia econmica.

    A mudana nos rumos da economia foi de tal ordem que considerada,

    por muitos autores, como uma mudana de paradigma, nos termos de Thomas

    Khun, pois se tratava de um afastamento das questes da distribuio da renda e

    dos problemas do desenvolvimento, prprios dos clssicos, para se concentrar,

    preponderantemente, nas questes do mercado. Em primeiro plano estava o estudo

  • Angela Ganem

    152 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    do mercado, elemento central e meio de coordenao das atividades, e no mais a

    produo, a acumulao e a distribuio. As relaes funcionais e a busca pela

    determinao dos preos em regime de concorrncia perfeita passam a ser as

    questes centrais da economia, tratada dentro da academia como uma cincia

    positiva. Fascinado pelos resultados da fsica e da mecnica, Walras entendeu a

    economia como anloga fsico-matemtica, ideologicamente neutra,

    fundamentalmente voltada para a determinao dos preos num regime de

    concorrncia pura (Walras, 1952, [1874]).

    redefinio do campo e do mtodo, somou-se uma preciso quantitativa

    maior expressa na tcnica marginalista, o instrumental que definiu o padro de

    rigor da revoluo metodolgica ocorrida na economia no final do sculo XIX.

    Chamada de Revoluo Marginalista, caracterizou-se por centrar os estudos nas

    variaes efetuadas nas margens ou, em outros termos, no clculo diferencial.

    Tambm foi entendida como uma teoria da maximizao porque a melhor posio,

    ou a posio tima das variveis, expressava o ponto mximo da funo. Mas o

    termo que se tornou hegemnico foi o da teoria neoclssica, termo utilizado pela

    primeira vez por Veblen, em 1910, que definia, com propriedade, uma nova escola

    de pensamento econmico inaugurada em fins do sculo XIX. A concepo do

    valor, centrada na utilidade, e da riqueza, definida pela escassez, traduziam uma

    profunda mudana nos rumos da economia, rompendo com a perspectiva dos

    clssicos (Smith e Ricardo) e com a de Marx, que tinha no trabalho (e na sua

    explorao pelo capital) a origem do valor. No era, entretanto, apenas na ideia do

    valor-utilidade que a concepo de Walras se opunha dos clssicos. Havia uma

    inteno clara em estudar a riqueza do ponto de vista de uma cincia pura, distante

    dos valores e, sobretudo, entendendo-a na troca: uma economia voltada para a

    teoria da alocao dos recursos escassos em fins alternativos

    10

    .

    Mas o que aqui importa particularmente destacar a construo da linha

    de continuidade entre o desgnio lgico-matemtico da Teoria do Equilbrio Geral

    de Walras e a soluo da ordem smithiana. Walras costura uma das pontes mais

    importantes da teoria econmica e inaugura a economia positiva no flego de uma

    microeconomia geral cujo objetivo era demonstrar lgico-matematicamente a

    ordem do mercado autorregulvel. Essa continuidade constatada, sobretudo, por

    (10) Em suas palavras: Lconomie politique est essentiellement la thorie de la dtermination des prix

    sous un rgime hypothtique de libre concurrence absolue. Lensemble de toutes choses matrielles ou

    immatrielles qui sont susceptibles davoir un prix parce quellles sont rares, cest dire la fois utiles et

    limites en quantit forme la richesse sociale. Cest pourquoi lconomie politique pure est aussi la thorie de la

    richesse social (Walras, 1951 [1874]).

  • O mercado como ordem social em Adam Smith, Walras e Hayek

    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 153

    seus fiis seguidores, os neo-walrasianos contemporneos, que entendem a

    soluo smithiana como um esboo do modelo cannico walrasiano

    11

    .

    Para se perceber claramente esta linha de continuidade construda pelos

    neoclssicos na reduo aos seus prprios termos da obra de Smith, pode-se

    recorrer ao j clssico Analyses General Competitive de Arrow e Hahn, em que,

    para os autores, Smith forneceu a contribuio mais importante ao pensamento

    econmico no entendimento geral dos processos sociais. Esses autores tratam a

    soluo smithiana da explicao da emergncia da ordem social do mercado como

    um preldio da Teoria do Equilbrio Geral (TEG). Eles reafirmam a viso

    canonizada pelos neoclssicos de que a soluo smithiana, embora matriz, foi

    limitada porque literria e que, portanto, mereceria um fino acabamento

    lgico-demonstrativo. Em seus termos: Adam Smith foi o criador da teoria do

    equilbrio geral, ainda que se possa colocar em dvida a coerncia e a consistncia

    do seu trabalho (Arrow; Hahn, 1971, p. 14).

    J F. Hahn afirma, com muita propriedade, os objetivos da TEG: a TEG

    uma resposta abstrata a uma importante questo abstrata: uma economia

    descentralizada contando somente com os preos pode gerar a ordem? A resposta

    da TEG clara e definitiva: ns podemos descrever uma tal economia e suas

    propriedades. E esta teoria faz mais do que mostrar a possibilidade da ordem numa

    economia descentralizada. Ela mostra que o equilbrio possui a seguinte

    propriedade: no existe nenhuma outra alocao de bens melhor que a do

    equilbrio. E em seguida, a TEG descreve uma situao onde o interesse

    privado, egosta, simplesmente governado pelos preos pode se harmonizar com

    uma economia coerente e ordenada. Os preos de equilbrio impem a ordem num

    caos potencial (Hahn, 1986).

    Este caminho, inaugurado por Walras, ser retomado na dcada de 1950 e

    ter como grande marco terico os desdobramentos matemticos de Arrow e

    Debreu, expressos na demonstrao da existncia do equilbrio e na enunciao

    dos teoremas do bem-estar (Arrow; Hahn, 1971). Mas, se por um lado, a

    demonstrao da existncia e da otimicidade pode ser considerada um sucesso

    incontestvel (se nos abstrairmos das dificuldades dos efeitos das externalidades

    (11) Ver, a propsito, a crtica superficial e equivocada que Marcos Lisboa (Lisboa, 1999) fez autora,

    afirmando que esse argumento de linha de continuidade um recurso retrico-ideolgico. Como visto, trata-se de

    um ponto de vista terico em que detectada uma linha de continuidade construda por Walras, vis--vis a Smith.

    Walras rel Smith nos seus prprios termos e tenta, a partir da, demonstrar matematicamente a ordem racional do

    mercado (mais tarde, esta ambio peremptoriamente assumida pelos seus principais seguidores, os neo-

    walrasianos). Consultar Ganem (1996).

  • Angela Ganem

    154 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    no caso da ordem tima)

    12

    ,

    13

    dando um novo lan ao desgnio demonstrativo dos

    neoclssicos, por outro lado, a questo da estabilidade algo que tem se mostrado

    inalcanvel

    13

    .

    14

    Ela denuncia as dificuldades tericas de se dar conta da

    complexidade e expe a tenso existente entre o coerente (lgico-matemtico) e o

    complexo (o processo de obteno da estabilidade) no mbito da teoria

    neoclssica.

    Em verdade, o projeto racional construtivista dos neoclssicos revela que

    somente no plano da axiomtica se poderia evocar o mito fundador de um mundo

    ordenado segundo leis inequvocas e a partir de uma racionalidade onisciente que

    pleiteia que todo objeto pode ser pensado e todo problema pode ser resolvido a

    partir de um bom uso da razo (Descartes, 1959 [1641]).

    Se para os seus tericos a resposta da TEG clara e definitiva (Hahn,

    1986) e que foram encontradas as boas regras para a direo do esprito

    (Descartes, 1985 [1623]), aqui a pretenso de demonstrar a superioridade se

    explica pela busca de um mito racional

    14

    15

    em que o modelizador constri uma

    idealidade como a TEG walrasiana, em que leis gerais definiriam uma pretensa

    ordem racional do mercado

    15

    .

    16

    .

    (12) No plano estritamente lgico-eficiente do discurso da TEG, a presena dos efeitos externos impede

    a obteno de uma ordem tima. A resposta da teoria a esta impossibilidade a internalizao dos efeitos, mesmo

    sabendo das dificuldades tericas de tal empreendimento (Arrow; Hahn, 1971; Guerrien, 1989) e da fissura que a

    sua presena abre na defesa incondicional do mercado como uma estrutura racional otimizante, exigindo a

    participao do Estado para corrigir disfunes. Em outros termos, o mercado no asseguraria infalivelmente a

    conjuno entre eficincia e equidade. Mesmo tentando o timo de segundo rang, o que se observa o drama

    epistemolgico dos neoclssicos, que, por fora de precisar as condies que permitiam mo-invisvel funcionar

    plenamente, subordinaram esta mo-invisvel mo visvel do Estado (Lagueux,1989; Ganem, 1995).

    (13) Para a prova da estabilidade, o teorema de Sonnenschein, Mantel e Debreu definidor do impasse.

    O teorema constata a impossibilidade de generalizao da hiptese de substituibilidade bruta. Ou seja, num

    contexto de equilbrio geral, as anlises de oferta e de demanda tornam-se cada vez mais complexas, e a

    convergncia cada vez mais problemtica (Guerrien, 1989). Arrow e Hahn registram a impossibilidade de se

    fundar, microeconomicamente, um modelo geral estvel: ns podemos falar de um aspecto tristemente

    anedtico de nosso empreendimento: possvel analisar caso a caso, mas no se consegue estabelecer nenhum

    princpio geral (Arrow; Hahn, 1971, p. 321).

    (14) A noo de mito racional pode parecer, primeira vista, uma heresia, mas no o . Embora o mito

    primitivo seja da ordem da integrao do homem com a cosmologia e a guerra fraticida entre o mito e a razo na

    histria das ideias gregas tenham feito da razo a vencedora (a destruio da mitologia pela autoridade das

    estruturas matemticas pitagricas), ele renascer servindo razo, emagrecido de seus contedos enriquecedores

    originrios. Ele renasce num reencontro trgico-assptico com a onipotente razo na modernidade (Gusdorf,

    1984; Illiade, 1963; Ganem, 1996).

    (15) Os esforos inteis expressos nas tentativas de conciliar maximizao e equilbrio e de ambos

    com exigncia de realismo revelam mais do que desconfortos metodolgicos susceptveis de serem superados

    com a complexidade crescente dos clculos e mostram a mais cruel das idiossincrasias dos neoclssicos: seu

    desejo asctico de construir aprioristicamente os fundamentos rigorosos de uma cincia pura, para uma cincia

    que de natureza social. A iluso que os arrasta para o terreno do mito a mesma que alimenta a idia metafsica

    de uma cincia que se pretende pairar neutra, objetiva e eternamente sobre a moral, a incerteza, o tempo histrico,

    enfim sobre as contingncias de um mundo que teima no ser aprisionado pelos ditames da 1gica formal

    (Ganem, 1996).

  • O mercado como ordem social em Adam Smith, Walras e Hayek

    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 155

    Em ltima anlise, esta utopia racionalista de que o conhecimento e a

    direo do mundo se faro a partir de uma possibilidade lgica remete a TEG ao

    mito da razo em que o mercado pode ser demonstrado e, atravs da engenharia

    social, construdo. E ser exatamente atravs deste filo filosfico j trilhado por

    inmeros crticos razo construtivista que Hayek articular, num s

    pensamento, a crtica filosfica razo cartesiana e uma defesa terica

    contempornea do mercado.

    3 Hayek e a ordem espontnea: da teoria apologia do mercado

    A teoria do mercado de Hayek suscita o enfrentamento de mltiplos

    desafios, pois trata-se de uma teoria que, assentada numa cosmoviso da

    sociedade, encerra contribuies metodolgicas atuais, alm de crticas

    consistentes formulao matemtica da teoria neoclssica. Para alm dessa

    questo, trata-se de uma articulao viva entre a teoria e o projeto poltico

    ideolgico da doutrina ultraliberal do mercado como ordem social.

    Hayek segue Walras e Smith e produz uma teoria do mercado que se

    traduz numa teoria da sociedade. Alm disso, extrapola todos os limites da

    economia ou de qualquer disciplina sctricto sensu para se colocar no plano da

    filosofia social e da teoria da histria. Em que pese a fora de seus argumentos

    tericos, estes esto intimamente ligados a uma perspectiva ideolgica do

    mercado. E esta delicada relao que se procura mostrar, sem no antes

    sublinhar que o autor construiu uma teoria do mercado atual, palatvel e muito

    mais sedutora que os pesados modelos matemticos dos neoclssicos e que, por

    conta disso, se pode constatar ainda hoje a influncia que sua teoria exerce em

    alguns meios acadmicos e na divulgao para a sociedade em geral na ideia do

    mercado como soluo para os impasses vividos pela ordem social do capitalismo.

    Acredita-se que no trato desta constatao que reside a importncia de sua

    contribuio para as teorias do mercado e a dimenso dos esforos requeridos para

    contest-la.

    Hayek, como sabido, foi o mentor do colquio de Mont Pelrin, Sua,

    em 1947, que contava, entre os seus trinta e sete ilustres participantes, Karl

    Popper, Lionel Robbins, Milton Friedman, Machlup, Franz Knigth, Von Mises,

    Michael Polanyi e Maurice Allais. A Sociedade de Mont Pelrin, a qual presidiu

    durante 14 anos, tinha como objetivo enfrentar a crise moral, intelectual e

    econmica da Europa do ps-guerra atravs de um projeto poltico-econmico

    cujo fundamento era a liberdade de um povo no contexto das sociedades abertas

    ou das great societies. Os inimigos dessa sociedade aberta eram os regimes

    totalitrios do fascismo e do stalinismo. Entretanto, a sua crtica, como a de

  • Angela Ganem

    156 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    Popper

    16

    ,

    17

    se concentrou no stalinismo, pois o objetivo ideolgico de ambos era

    atingir a construo de uma nova forma de organizao da sociedade que no

    fosse a regida pelo mercado capitalista. Para Hayek, o melhor exemplo do

    caminho da servido o caminho traado pelo plano ou desgnio de uma classe

    operria, uma razo onipotente que entende a sociedade como uma mquina

    racional ou uma ordem fabricada e que constri, pela deliberao de seus sujeitos

    sociais, um devir socialista (Hayek, 2002, [1944]).

    Por outro lado, atravs de sua crtica filosfica ao racionalismo cartesiano

    ou onipotncia da razo, tambm atinge a modelizao e a matematizao da

    teoria neoclssica. Na crtica ao modelizador ou racionalidade neoclssica, ataca

    a ordem racional do mercado de Walras e a entende como uma compatibilidade ex

    ante de agentes autointeressados e dotados de uma razo onipotente.

    Nesse sentido, Hayek critica, de uma s feita, a desmesura da razo dos

    agentes neoclssicos assim como a da razo da classe operria e de seus aliados.

    Ambas, afirma ele, so formas manifestas do racional construtivismo

    17

    18

    e cometem

    o mesmo erro: no respeitam a ordem natural e espontnea do mercado. E, para

    ambas formas do racional construtivismo, avisa: Ns no inventamos nosso

    sistema econmico. Ns no somos suficientemente inteligentes para isso. E

    ainda: O erro do racional-construtivismo a iluso de que os fatos esto

    presentes no esprito de um indivduo e que ele pode edificar a partir desse

    conhecimento cristalino dos dados reais uma ordem desejvel (Hayek, 1973)

    18

    .

    19

    A crtica filosfica ao racional construtivismo levou-o, paradoxalmente, a

    uma abertura de novos horizontes para o velho projeto liberal de mercado. Atravs

    das contribuies metodolgicas e epistemolgicas que o aproximam tanto de

    Popper (atravs de sua trajetria de erros e acertos) como da heterodoxia (com o

    (16) Karl Popper escreve, nessa mesma poca, uma crtica ao marxismo. Ambos foram duros em relao

    ideia de um fim da histria associada ao que chamaram de proftico mundo socialista. Guardadas as diferenas

    de mtodo, a Misria do historicismo, de 1944, e A sociedade aberta e seus inimigos, de 1945, ambos de Popper,

    e o Caminho da servido, de Hayek, publicado originalmente em 1946, tm o mesmo alvo: desmontar

    cientificamente o argumento da possibilidade de uma leitura da histria e derrubar a viso proftica do socialismo

    decorrente de supostas leis imanentes. (Ganem, 2009).

    (17) Para o racionalismo cartesiano existe um mtodo nico de carter universal, ta mathema, mtodo

    matemtico perfeito e totalmente dominado pela inteligncia. Ele define as regras para a direo do esprito, que

    so as regras matemticas da evidncia, da enumerao, da diviso e da sntese. A dvida refuta o que sombrio,

    nebuloso ou do domnio da opinio para se alcanar as primeiras verdades claras, evidentes e axiomticas. A

    partir destas premissas apodticas, axiomticas, a verdade lgica alcanada por deduo (Descartes, 1959

    [1641]); 1985 [1623]). J o conceito de construtivismo significa construir a partir da razo ou como fruto da

    razo, ou ainda como resultado do plano. Neste sentido, a sociedade, a moral, as leis, a linguagem, o mercado

    seriam construdas pela razo sem levar em conta a tradio e a cultura (Ganem, 2005).

    (18) Hayek, em todos os seus mais importantes trabalhos (1937, 1952, 1967, 1973, 1988), identifica

    com maestria o cerne dos principais pontos do mtodo cartesiano, retirando da uma conseqncia direta desse

    mtodo: a ao racional aquela inteiramente conhecida e demonstrvel pela razo e as realizaes dos homens

    so produtos de seu raciocnio (Ganem, 2005).

  • O mercado como ordem social em Adam Smith, Walras e Hayek

    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 157

    uso de regras, instituies, processo e evoluo), Hayek nos apresenta uma teoria

    articulada em vrios planos em que esto intimamente ligadas a economia, a

    sociedade, a cultura e a filosofia.

    Hayek parte de um indivduo ignorante, em um mundo complexo e

    inalcanvel pelo conhecimento na sua totalidade. Esse indivduo seguidor de

    regras, parte de um processo de experimentaes, tateia e, entre erros e acertos,

    produz espontaneamente, isto , sem nenhuma inteno ou desgnio, a ordem

    social. Regras, instituies, complexidade do fenmeno social, racionalidade

    limitada, estes e muitos outros elementos, so o seu menu conceitual que fornece

    souplesse terica a sua obra, liberada das restries do processo de matematizao

    dos neoclssicos.

    Para o autor, a ordem racional produzida pela racionalidade onipotente ou

    pelo desgnio das classes operrias tem como suposto uma razo que v o mundo

    como passvel de ser captado por um conhecimento perfeito. Diferentemente desta

    perspectiva, Hayek toma, como ponto de partida terico, um indivduo ignorante

    frente a um mundo complexo cuja razo limitada incapaz de desvelar a

    totalidade. Um mundo que jamais ser conhecido totalmente e que, dele, o homem

    s dispe de um incompleto e fragmentado conhecimento. Neste momento, fica

    clara a identificao de sua teoria com o racionalismo crtico popperiano, com

    suas proposies constantemente renovadas e sua humilde correo de erros,

    elementos que sustentam a sua tese da provisoriedade do conhecimento.

    Entretanto, este homem ignorante tem conscincia de suas limitaes e as

    contorna atravs de um processo de experimentao que, para Hayek,

    simultaneamente a porta de entrada da liberdade: somos livres e ignorantes,

    abertos para o imprevisvel e para o no determinado (Hayek, 1983). Neste

    processo de experimentao, os homens examinam os fatos e se adaptam, tendo

    em vista os seus prprios fins. Eles selecionam as regras de comportamento que

    oferecem solues para problemas recorrentes. Intersubjetivamente ou em grupos,

    no se exige, segundo o autor, consenso quanto aos fins, mas somente quanto aos

    meios capazes de servir a uma grande variedade de propsitos. As regras

    selecionadas, produtos da experincia de geraes, so sobretudo gerais porque

    no podem atender a fins particulares e, sim, respeitar o princpio de aumentar a

    oportunidade de todos. Neste processo, o papel do Estado garantir o fundamento

    lgico de uma sociedade livre, ou seja, assegurar os direitos negativos do cidado.

    (Hayek, 1937; 1973).

    A ordem resultante uma ordem espontnea, filha dileta da catalaxia, uma

    estrutura transcendental ou uma categoria inacessvel razo que se preserva, para

    ele, no mito da mo invisvel. A origem katallatein significa trocar, mas o jogo da

    catalaxia, para Hayek, mais do que a troca: o jogo da concorrncia, por

  • Angela Ganem

    158 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    excelncia, a nica forma de se gerar riqueza. Na sua teoria da evoluo

    cultural

    19

    20

    ocorre um processo de aprendizagem social em que se entende que,

    quanto mais a sociedade se torna complexa, mais acertadas e espontneas so as

    regras, regras, essas, que reafirmam o jogo cataltico do mercado. Nessa teoria,

    Hayek afirma que seu objetivo explicar como funciona o processo sem tentar

    explicar seus resultados ou predizer o seu curso. Razo e cultura, para ele, se

    desenvolvem concomitantemente. Criticando o que chama de discurso proftico de

    Marx, ele dir: A sociedade no deve ser dirigida para um fim escatolgico

    (Hayek, 1973; 1988)

    Entretanto, nesta altura de sua construo terica, verifica-se um paradoxo

    no seu raciocnio, muito bem detectado pelo filsofo francs Luc Ferry: o

    hiperliberalismo de Hayek um hiper-racionalismo porque ele pressupe como

    Hegel que na histria tudo se desenvolve racionalmente e que mesmo as

    iniciativas aparentemente mais irracionais participam da auto-realizao de uma

    razo: a do mercado (...). fora de preservar os direitos e a liberdade dos efeitos

    nefastos do intervencionismo, o liberalismo hayekiano confia tudo histria ou ao

    autodesenvolvimento do mercado (Ferry,1984).

    Lendo essa assertiva pelo conceito nuclear de regras, contata-se que as

    regras da concorrncia, sero para Hayek, as de maior xito. Isto significa que

    todas as iniciativas dos homens se direcionam para a escolha de regras que

    participam necessariamente da auto-realizao do mercado. Entende-se que a

    eleio necessria das regras da concorrncia se d porque mercado para Hayek

    um mtodo. Um mtodo to indispensvel como a matemtica o foi para

    Descartes. Em que pese suas crticas ao racionalismo, Hayek se coloca num plano

    ultrarracional de leitura da histria e acaba por reeditar o mito da mo invisvel

    como um processo impessoal e inexorvel do mercado. Esta ideia do mercado

    como passado, presente e devir ou como fim da histria fornece, segundo opinio

    aqui destacada, os elementos necessrios passagem da teoria apologia na

    defesa do mercado como a melhor forma de organizao para as sociedades

    contemporneas.

    (19) Hayek, em sua Teoria da Evoluo Cultural, retoma a tradio de Mandeville, Hume e Smith, e

    desenvolve a ideia de uma evoluo cultural anterior ao conceito biolgico de evoluo. Ele mostra que essa

    tradio criou a atmosfera do pensamento evolucionista no estudo da sociedade muito antes de Darwin. O

    enfoque evolucionista dos filsofos morais escoceses indica que os produtos da civilizao so o resultado de um

    processo de regularidades. Eles no so guiados por uma previso, mas so os frutos do resultado no intencional

    de ensaios e erros. Um processo que no resultado da criao consciente das instituies pela razo, mas um

    processo em que cultura e razo se desenvolvem concomitantemente; famosa a sua assertiva de que o homem

    no adotou novas normas de conduta porque inteligente. Tornou-se inteligente ao se sujeitar a novas normas de

    conduta (Ganem, 2005).

  • O mercado como ordem social em Adam Smith, Walras e Hayek

    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 159

    Consideraes finais: unidade na diferena

    Partimos da ideia de que os trs autores, Smith, Walras e Hayek,

    distribudos no tempo e no espao da Histria do Pensamento Econmico, tm,

    como elo terico, o mercado autorregulvel para a explicao da ordem social

    capitalista. A razo que constri a unidade entre os trs aparentemente trivial,

    mas muito pouco explorada. Trata-se da compreenso do objeto mercado para

    alm dos limites do mecanismo de oferta e demanda, situando-o no plano de uma

    ordem social ou de uma teoria da sociedade, ou ainda na forma de organizao da

    sociedade capitalista. A singularidade e genialidade desses autores, como visto,

    constatam-se nas marcas indelveis que deixaram na histria das ideias, na histria

    do pensamento econmico e na influncia nas polticas econmico-sociais

    implementadas pelos pases capitalistas.

    Em Smith, constatou-se que a economia nasce como uma teoria do

    mercado, uma explicao cientfica para a emergncia da ordem liberal. Smith

    apresenta a frmula ou a lgica do mercado liberal em seu estado mais puro,

    espontneo e natural, como ele afirma: os interesses privados, ao invs de se

    chocarem produzindo a guerra, so agraciados por uma mo invisvel que os

    orienta para o bem-estar coletivo. Esta soluo de Smith alou a economia ao

    debate das ideias da modernidade como tambm definiu um dos projetos tericos

    da disciplina, inserindo-o no projeto liberal. Nesta explicao, Adam Smith

    construiu um profundo dilogo com os modernos e definiu os fundamentos da

    economia imbricados com a filosofia moral dos sculos XVII e XVIII. A soluo

    do mercado de Smith para a ordem social supera a noo do contrato como lgica

    para os fenmenos coletivos. Sua explicao do mercado no se limita a um

    estudo do local de trocas, e a economia termina por invadir todo o terreno da

    sociedade. Esta ordem social explicada a partir do indivduo o homem como ele

    realmente com as suas paixes, sem intencionalidades e/ou desgnios gera,

    dentro dessa perspectiva, o bem-estar coletivo

    J o segundo momento, datado de fins do sculo XIX, est inserido no

    quadro da revoluo marginalista e de uma mudana de paradigma na economia

    em que Walras um dos seus mais ilustres representantes. Seu objetivo de

    demonstrar lgico-matematicamente a ordem social do mercado significa que ele

    guarda a ambio de Smith do mercado como uma teoria da sociedade ao mesmo

    tempo em que enfrenta questes epistemolgicas em torno da natureza da

    economia, suas possibilidades demonstrativas e as redues necessrias para tal.

    Walras, atravs da releitura que faz de Smith, costura uma das mais importantes

    pontes da teoria econmica, inaugurando, neste processo, a economia positiva.

    Uma continuidade constatada por seus herdeiros neo-walrasianos contemporneos,

    que entendem a soluo smithiana como um esboo do modelo cannico

    walrasiano.

  • Angela Ganem

    160 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    O terceiro momento do pensamento liberal marcado por uma crtica que

    parte do interior terico da tica do mercado. O protagonista Hayek. Sua crtica

    atinge aspectos epistemolgicos e normativos do modelo walrasiano em trs

    planos: uma crtica ambio daquele que confecciona o modelo, uma crtica

    racionalidade onipotente dos indivduos e, finalmente, uma crtica interveno

    do planejador ou do governo que pretende corrigir as falhas do mercado. Para

    Hayek, uma das melhores expresses da modernidade a ambio walrasiana

    demonstrativa do mercado: uma perspectiva que supe, do ponto de vista

    filosfico, que o mundo capaz de ser desvelado pelo uso de um bom mtodo. Ali

    residiria a ideia equivocada de que os fenmenos econmicos e sociais so

    passveis de serem captados por um conhecimento perfeito, no caso, a matemtica.

    O segundo ponto da crtica diz respeito concepo neoclssica ortodoxa do

    comportamento dos indivduos que, dotados de racionalidades onipotentes,

    produzem, por suas escolhas racionais, uma ordem equilibrada, estvel e tima.

    Em oposio a essa onipotncia, Hayek sugere um homem ignorante, seguidor de

    regras e sabedor de suas limitaes frente a um mundo complexo que jamais ser

    totalmente desvelado. Finalmente, sua crtica atinge o racionalismo construtivista

    do planejador que almeja, a partir de reformas sucessivas, corrigir o mercado

    uma contradio em termos para ele, j que toda interveno, por suposto,

    produtora de injustias e ineficcias.

    No que diz respeito histria da implantao do capitalismo, a ordem

    natural do mercado de Adam Smith o resultado de uma leitura testemunhal,

    descritiva e emprica desse fenmeno. A essa perspectiva, alia-se a capacidade

    incontestvel do autor de construir leis naturais que fornecem as condies

    epistemolgicas necessrias para o nascimento da Economia marcado pela ideia

    do mercado como ordem social. O segundo momento, expresso na ordem racional

    de Walras, situa-se na segunda metade do sc. XIX, momento, esse, em que se

    constata o apogeu do laisser-faire como teoria e poltica do capitalismo e do

    mercado. Neste perodo, tem-se a afirmao da economia positiva cientificamente

    espelhada na fsica. Finalmente, o terceiro momento, em fins do sc. XX, aps a

    crise do comunismo e do welfare state, tem em Hayek uma teoria que alimenta as

    possibilidades de se articular o fim da histria com a vitria da globalizao e da

    democracia liberal sob a gide da supremacia do mercado.

    Para alm da unidade terica constatada, registrou-se diferenas nas

    formas que a ordem social do mercado assume para cada um dos autores. Trata-se

    de uma ordem natural para Smith, uma ordem racional para Walras e uma ordem

    espontnea para Hayek. A elas esto associadas perspectivas epistemolgicas e

    filosficas distintas. Smith herdeiro do empirismo anglo-saxnico e da filosofia

    moral gestada ao longo de trs sculos, o que impede uma leitura simplista e

    economicista do autor. J Walras revela uma perspectiva filosfica cartesiana

  • O mercado como ordem social em Adam Smith, Walras e Hayek

    Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012. 161

    aliada ao espelho da fsica, onde, ao racionalismo matemtico de Descartes, se

    pode somar Newton atravs da mecnica clssica. A soluo matemtica de

    Walras aponta para um racionalismo sem limites. A ambio de demonstrar

    matematicamente o mercado como uma ordem equilibrada, estvel e tima a

    expresso mais acabada da onipotncia da razo ou da ideia de transformar a

    economia num poderoso teorema.

    A ordem espontnea de Hayek parte de regras e realiza uma interlocuo

    profcua com o racionalismo popperiano. Entretanto, em que pese a leveza

    inconteste de sua teoria baseada em regras comportamentais frente aos pesados

    modelos matemticos neoclssicos, Hayek recai numa defesa doutrinria do

    mercado como a nica forma possvel de organizao para as sociedades

    contemporneas.

    Finalmente, a leitura caminhou no sentido oposto a uma perspectiva

    cumulativa, evolutiva ou positivista das teorias do mercado em que Walras

    naturalmente superaria Smith, e Hayek se traduziria na sua expresso mais

    acabada. Ao contrrio, sobrevm a convico de que algo rico e especfico da

    teoria de Adam Smith se perde na histria do pensamento econmico ao ser

    submetida releitura empobrecedora que a teoria neoclssica fez na tentativa de

    reduzi-la aos seus prprios termos. Walras e os adeptos da economia positiva

    substituem a nfase na estrutura produtiva, distributiva e de processo da

    acumulao do capitalismo (temas da economia poltica que foram retomados por

    Ricardo e Marx) pela nfase no mercado. Com isso, a leitura neoclssica, alm de

    direcionar os rumos da histria do pensamento econmico, ignorou o dilogo que

    Smith estabeleceu com a histria das ideias e com a possibilidade de uma leitura

    interdisciplinar de sua obra em que a economia no necessariamente romperia com

    a moralidade, a tica e os valores.

    A teoria da ordem racional de Walras, ao mesmo tempo que expressa um

    avano em termos matemticos registrado na aplicao das tcnicas marginalistas

    no exerccio da demonstrao da ordem do mercado racional, elege o mercado

    como foco central e levanta barreiras disciplinares com relao as demais cincias

    sociais. Fortalece a ideia de uma utopia racionalista de que o conhecimento e a

    direo do mundo se faro a partir de uma possibilidade lgica em que o mercado

    pode ser demonstrado e construdo, desrespeitando qualquer herana ou tradio.

    J o terceiro autor, Hayek um dos mais importantes tericos e idelogos

    do neoliberalismo apresenta uma teoria coerente com a sua viso de mundo dos

    idos de 40, quando publicou o Caminho da Servido, cujo objetivo era desmontar

    a possibilidade de leis da histria que pudessem conduzir ao socialismo. Hayek se

    apropria dessa ideia de curso da histria e substitui a utopia do socialismo pela do

    mercado. Como visto, suas leis imanentes (as regras necessrias da concorrncia

  • Angela Ganem

    162 Economia e Sociedade, Campinas, v. 21, n. 1 (44), p. 143-164, abr. 2012.

    capitalista) determinam a ideia de um processo sem sujeito que culminaria na

    democracia liberal, a face poltica da vitria da lgica do mercado. Hayek, ao

    defender o mercado como fim da histria e como melhor forma de organizao

    das sociedades contemporneas, passa, sem mediaes, da teoria para uma defesa

    apologtica do mercado nos tempos atuais. Tempos, esses, marcados pela

    descrena nesse discurso e pela constatao em crculos cada vez maiores da

    academia e da sociedade da importncia visceral do Estado na construo e na

    manuteno da ordem do mercado capitalista.

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