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Mercedes Lachmann

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Área de emergência[1]Dádiva da arte Luiz Guilherme Vergara É das ruas do entorno da Praça Paris que os transeuntes, passantes desavisados de carro e ônibus, as famílias do entorno,como também os moradores de rua e os pedestres locais notam esta verdadeira aparição, barco fantasma, chamado “Bençãode Deus”. São diferentes olhares, estranhamentos e afetos de acordo com suas velocidades, hábitos e distancias. Mas, comcerteza, esta intervenção artística encarna a “vontade de potência” definida por Nietzsche[2], atualizada para esse cenáriocomo catalisadora de um transbordamento especial entre o real e a ficção da história enterrada da cidade. Mas quem sabeseja também uma re-territorialização crítica e sublime de uma dádiva da arte para a cidade e para a artista por trazer à tonauma memória líquida coletiva soterrada pela ordem (dis)funcional da vida urbana moderna do esquecimento? Se por umlado esta instalação ambiental se alinha ao sentido de “área de emergência” que Raquel Tardin propõe para as experiênciasvisuais urbanas ou naturais. Por outro, resgatando a conceituação de Deleuze-Guattari para “causalidades reversas”[3], identifica-se a apropriação e deslocamento do barco para a Praça Paris com uma potente reversão mutua entre efeitos ecausas, fundando este acontecimento solidário da arte na paisagem. Mercedes subverte a proposição de Tardin para as“áreas de emergência visual”, cujas referências positivas seriam orientadas pela presença (e não ausência) “de amplaslâminas de água que definem uma paisagem.” “das principais referências topográficas e hidrográficas dos espaços livres com focos visuais que caracterizam a estruturafísica do lugar e que podem ser percebidos a partir do movimento pelas vias.”(Tardin) Se Tardin propõe uma visão sistêmica que se ordena a partir de fenômenos topográficos e hidrográficos, dando aberturaspara os ritmos de usos e práticas dos espaços urbanizados ou da vida pública. Mercedes rompe critica e poeticamente estaordem natural – cultural das práticas dos espaços públicos, provocando uma estranha “abertura visual” a partir da PraçaParis, pelo des-aterramento plástico e simbólico da memória do mar. O barco – Benção de Deus – ao mesmo tempo que éresgatado de seu destino de abandono-esquecimento no fundo do mar, é também deslocado para o campo de potência deenunciação metafórica (transporte) da arte. Na paisagem urbana – a carcaça de um velho barco emerge visualmente jácoberto pela outra vida (sub)marinha – que então retorna para a navegação artística como utopia de um sonho diurno. Odeslocamento deste barco-escultura contemporânea inaugura uma outra área e temporalidade de emergências imagináriasafetadas e catalisadoras de memórias líquidas soterradas ou do aterramento do mar que antes ali regia e atrapalhava osritmos e caminhos do entorno da Glória. Tempo Zero : Arqueologia de um sonho diurno Como abordar ou entrar a bordo de uma obra-intervenção ambiental enquanto um acontecimento único formado porimprevisíveis casualidades de encontros envolventes, por onde se processam reconfigurações e transformações de sentidospúblicos e privados da existência? Assim, este ensaio se desenvolve como uma escrita em espiral reconhecendo as inúmerascamadas em desdobras deste processo de criação e des-criação de ser, linguagem e mundo que giram entorno doacontecimento e intervenção da Mercedes Lachmann na Glória. Embora temporária este instalação encarna literalmente oconceito de afetos em trânsito numa “área de emergência”, violência, e esquecimentos do Rio de Janeiro. Uma primeira“eclosão de imaginários” nasce imediatamente da resposta intuitiva ou latente na artista diante do convite para a I Mostra RIOde Esculturas Monumentais - na Praça Paris. “Logo pensei no mar! Queria trabalhar com o mar, sabia que aquela região tinha sido banhada pelas águas da Baía deGuanabara....e pensei: quero trazer de volta, resgatar a presença dessa água que foi aterrada. Ao andar pela Praça Parisminha imaginação e curiosidade fervilhavam, quanta coisa havia abaixo daquela terra...” lembra Mercedes. Neste depoimento percebe-se um tempo zero inaugural de uma fenomenologia da imaginação onde a enunciação revela oque ainda não é consciente da plena fruição de territórios de devires entre a artista e o mundo, sua cidade, a praça e a simesma. É justamente na percepção de uma área livre pública para a obra em processo da Mercedes que emerge a vontadede potência de agir como se o mundo interno ao que é visível fosse indissociável do horizonte de invenção e antecipação doreal-futuro. Desta primeira causalidade do acontecimento do ser-artista no mundo, amplia-se o conceito de “área deemergência” para uma tomada de si como território existencial de uma arqueologia de um sonho diurno – autopoiética. Aartista assume a rota crítica do des-terramento do mar como desejo e destino de uma cartógrafa sensível de uma navegaçãonoturna sob o aterro do esquecimento, do que foi, e o que é hoje a Praça Paris. Mas, simultaneamente, em reversíveiscausalidades e casualidades, também emerge de profundos aterramentos existenciais, o que foi e o vir a ser do estado daarte para a artista. A paisagem da ausência do mar se desdobra em potência intrínseca de transbordamento da matériapoética e imaginária do mundo. Tempo 1: Rota de Descobrimentos – des-terramentos de memórias liquidasReversibilidade Causal – Causalidades/Casualidades Reversas: antecipação de futuros / atualidade do passado – presenteliquido “Imaginei uma proa de um barco despontando daquele oceano encoberto, uma proa que apontasse para o céu, em ummovimento ascendente. Então parti para construir essa proa, esse barco e, para isso, fui investigar o bambu. Primeiramenteporque o bambu é uma fibra vegetal, como o sisal que venho utilizando nos meus trabalhos. Depois porque é leve, de fácilacesso e custo razoável.”

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Como desterrar, trazer à tona, a área livre de águas da baía de Guanabara para a Praça Paris? (...) até que um amigo velejador veio me visitar e ao ver meus estudos em bambu fez a pergunta fatal: Mercedes ao invés deconstruir um barco, por que você não pega um já pronto? (...) decidi buscar um barco. Porém esse barco não poderia ser novo, teria que trazer sua história com o mar, vir dasprofundezas, tal qual o mar que eu estava buscando. Todo aquele mar que havia na Gloria antes de 1926. Desde o seu processo inicial de um convite para expor na Praça Paris até o chegar – aterrissar – da Benção de Deus – aartista percorreu uma odisséia – rota de decisões, “intuições palpáveis” (Bakhtin, 1999) e revelações que conjugamsubversões de ordens entre o dentro e o fora do mundo e de si, quando ambos se transbordam como áreas entrelaçadas deemergências. Mas, para tanto, a artista se entrega ao mergulho liminal e desorientante entre as linhas de sentido de causas eefeitos. A origem e destino das idéias e ações, dos encontros e a sua fenomenologia da imaginação, estariam também sendoconduzidos por reversibilidades causais, entrelaçamentos entre causalidade – casualidade. O processo de criação ao qualMercedes embarcou se torna um fluxo contínuo de eventos que culminam como área de acontecimento único – daemergência de futuros imediato sobre o presente; a intuição palpável do presente no passado e vice-verso. Reverte-setambém o sentido de mar como passado e o aterro como presente. O barco – dádiva da arte - sobre o aterro torna a ausênciado mar como paisagem imaginária-concreta! A paisagem da Glória é devolvida ao mar que não existe mais – afastado –soterrado. Tempo 2: Manifesto contemporâneo para uma memória liquida soterradaArte como território líquido de conectividades livres O barco, Benção de Deus, ou dádiva da arte pode ser visto como um emergente manifesto artístico, um grito silencioso que aartista Mercedes desenterrou da memória afogada pela acomodação e estabelecimento da vida e vias de passagem do bairroGlória. O Barco, a “barca do sol”, os Homeros e heróis das batalhas navais, o Almirante Barroso, parecem todos tambémpertencerem as conectividades livres deste tempo suspenso do acontecimento único da dádiva da arte. Neste eclosão dofenômeno artístico, cabe também trazer a tese de Tardin para uma visão sistêmica de conectividade ampliada sobre as áreaslivre. O imaginário simbólico e poético desta obra sobrevoa uma terceira margem do tempo do Rio comovido pela vontade depotência da arte. Ao ser de uma outra ordem da razão tanto a Benção de Deus e a Dádiva da Arte operam sinergiasimanentes e transcendentes das fronteiras híbridas dos movimentos e práticas artísticas contemporâneos, como arqueologiase cartografias da memória e matéria do mundo. Sua presença como reaparecimento do oceano no aterro transporta asmúltiplas temporalidades do simbólico, poético e espiritual que navegam no mar, mas que também atrapalhavam a passageme trânsitos, com as ressacas e tempestades que atingiam a mureta da Glória – muralhas de contenção urbana das forças danatureza. Hoje o barco está diante da mureta como um manifesto de ordem pública da arte - lembra do que resta,curiosamente, como última barreira reminiscente da memória liquida do sensível soterrado da cidade. Vontade de potência – odisséia para Homeros contemporâneos A Benção de Deus – é literalmente uma presença demasiada estranha à primeira vista. Mas como intervenção artísticaalcança pelo estranhamento sua potência como acontecimento desequilibrante da ordem e dos ritmos dos praticantes eusuários dos espaços daquele entorno. Sem dúvida sua proa apontada para o céu realiza o desejo e visão da artista detransformar o deslocamento deste barco como eclosão de memórias profundas daquele lugar que um dia foi mar. Hoje,Mercedes provoca a todos a desacelerar suas visões e passagens para contemplar este velho barco cercado de cidade – sejapor trás das grades da praça ou ruas da Glória e aterro, deslocando o centro da paisagem / mundo para girar em torno dapotência e geografia do acontecimento único da arte. Esta silenciosa presença se contrapõe ao primado da velocidade quepromoveu o próprio aterramento do mar da enseada da Glória. Como o avesso do retorno de Ulisses, os resíduos desta nautrazem a memória líquida da odisséia da cidade maravilhosa de volta aos Homeros, esquecidos e cegos contemporâneos. Esta impactante intervenção ambiental resgata o sentido de dádiva da arte – tanto para a artista no despertar de horizontespara sua carreira, enquanto potência e destino de doar virtudes, quanto para a cidade ao desaterrar futuros coletivos atravésde imaginários compartilhados. Embora “área de emergência” seja o título escolhido pela artista, inúmeros outros nomes foram pensados pela Mercedes. Oque emerge como acontecimento único é uma desdobra de causalidades de dimensões fortemente fenomênicas eexistenciais: Erupções / Transbordamentos / Fábulas Marítimas / Retorno / Volta / Emerção / Escavações / Descobrimentos /Á tona / Trazer á tona / Emergentes / Emergência / Ressurgência / Vestígios / Paisagem submersa / Lugar de emergência /Presente reminiscente / Despertar / Mar como paisagem / memória de um esquecimento / Área de emergência. Ao percorrer mais detidamente a arqueologia desta odisséia da Mercedes, o sentido de emergência habita cada um dessestítulos. O que vêm à tona é causa ou casualidade como parte da captura da artista por correntes de forças imanentes etranscendentes adormecidas no subsolo do aterro visível, do mar soterrado pela história da cidade. Identifica-se nestaelasticidade do tempo o entrelaçamento de múltiplas camadas de eventos ao que Bakhtin[4] propõe como “acontecimentoúnico do ser no mundo”. A área de emergência se desdobra para a artista como uma abertura de si para uma arqueologiaesquecida que é também da cidade. É necessário reconhecer o tempo e oportunidade para mergulhar em uma odisséia deexperiências de transbordamentos e eclosão de uma paisagem submersa de sentidos da ausência e esquecimentos. A memória líquida transportada pelo barco conduz também a artista, Ulisses contemporâneo – ainda mulher, não Penelope, através de uma corrente de casualidades revestidas por seus efeitos. Assim o barco transporta = metáfora do mar para acidade. Mercedes cumpre um destino-dádiva de resgate não apenas daquele entre muitos barcos perdidos no fundo da Baíade Guanabara, mas também do lugar de emergências de futuros, dando forma para uma experiência cartográfica de ser elinguagem no mundo como acontecimento artístico. Este acontecimento-obra, barco renascido - reinventa a paisagemnegada do mar dando realidade encarnada ao imaginário da artista sobre a história da Glória. Esta dádiva da arte age simultaneamente por eclosão e construção como vontade de potencia para Nietzsche. Seu tempo-espaço, como tal, é sempre inaugural – irracional – não ainda consciente, indissociável dos fluxos opostos de convergênciae emergência entre futuro no presente, e passado sobre o presente. É desta vontade que o mundo invisível peloesquecimento – pelo aterramento da cidade que invadiu o mar, emerge dos vestígios de uma “intuição palpável” (Bakhtin,1999) que traz à tona para si e para a sociedade um gesto de dádiva-presente reminiscente. O acontecimento único de serno mundo criador eclode como reversibilidade causal entre existência e arte – da paisagem da ausência do mar para apresença transbordante da gestação artística. “O mundo visto de dentro, o mundo determinado por seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e nadamais” – Nietzsche[5]. Nesta reversibilidade fenomenológica do acontecimento mútuo do ser e da arte amplia-se o que Raquel Tardin define como"áreas de emergência visual". “(…) Referem-se aos elementos singulares que compõem os espaços livres, especificamente orelevo e a hidrografia, e que podem ser percebidos desde os percursos pelas vias.”(p.144). Pois Mercedes explora apaisagem da ausência do mar não como um espaço dado ao que é visível, mas pelo esquecimento, pelos elementos des-criados, soterrados, cuja emergência passa da memória para a potência de futuro do passado. Nesta arqueologia doesquecimento urbano a área de emergência ativada pela Mercedes se desdobra em campo da fenomenologia daimaginação. O barco – salva-vidas – transporta em seu estado de desaparecimento a eclosão positiva e palpável de uma

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memória liquida compartilhada. Mercedes inaugura também com esta intervenção pública de escala monumental uma carreira regida pela vontade depotência de romper regras e padrões limitadores do “exercício experimental de liberdade” (Mario Pedrosa). Vontade depotência seria o melhor atributo para entender o lugar da artista como geradora de dádivas que conduzem as causas ecasualidade do acontecimento único de emergências simbólicas de memórias do mar da Glória. Nesta obra Mercedes já secoloca aberta para o século XXI, transbordando o campo ampliado de passagens de paradigmas da escultura – arte pública –modernista para a contemporânea. Suas afinidades eletivas, conscientes e não ainda conscientes, que navegam no Barco –Benção de Deus - remetem a artistas que atuam como arqueólogos – viajantes de uma razão nomádica – de Homeroscontemporâneos, desterrando por intuições palpáveis as relações entre lugar, esquecimento e imaginários sitiados. Na medida em que seu barco-acontecimento na Glória invoca a presença / ausência do mar, em meio a movimentada vida dacidade do Rio de Janeiro, a artista encarna a matéria e memória do mundo, arquitetura e paisagem de múltiplas forçasexistenciais. É desta fenomenologia da imaginação que Mercedes atualiza para si o campo ampliado da escultura comoacontecimento do ser no mundo. Inaugura áreas de emergência visual pela arte, o que remete a land art de Robert Smithsonque instaurou em uma remota região de Utah uma escultura simbólica e mítica, Spiral Jetty (Great Salt Lake, Utah, 1970),tornando matéria e memória visual uma cosmologia de povos locais esquecidos da razão ocidental. Da mesma forma, TácitaDean viaja por diferentes partes do mundo, recuperando um sentido e aura de história e memória de distintos lugares etempo, produzindo uma poética especial da matéria luz (lúcida) transtemporal de seus filmes, desenhos e instalações. Mercedes Lachmann, com toda a coragem de quem está “se” inaugurando como Odisséia, o acontecimento único no mundoda arte, entrelaça como sua a história esquecida desta cidade. Nesta navegação simbólica abre como eclosão artística eexistencial a memória do mar aterrado do Rio, indissociável da emergência e urgência da “vontade de potência” da dádiva daarte no tempo presente. [1] O título proposto para essa instalação é inspirado no conceito de "áreas de emergência visual" de Raquel Tardin.Tardin, Raquel. Espaços Livres: Sistema e Projeto Territorial. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2008 [2] NIETZSCHE, F. W.. Assim falava Zaratustra. Tradução de Ciro Mioranza. 2. ed. São Paulo: Escala, [s.d]. p. 106-109.Coleção grandes obras do pensamento.Ver também. Nietzsche, F. Vontade de Potência. Tradução de Mário D. Ferreira Santos. Rio de Janeiro: Ediouro. [s.d.].

[3] DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. A thousand plateaus: capitalism and schizophrenia. Minnesota: the University ofMinnesota Press, 2005. [4] BAKHTIN,M.M. Toward a Philosophy of the Act. Texas: The University of Texas Press, 1999. [5] NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §36.

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