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Meru A MONTANHA SAGRADA Milta Torriani

Meru a Montanha Sagrada

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Rami, em um passeio de férias, percebe na cidade uma montanha fascinante que emite uma estranha luz azulada somente visível por ela. Assim, começa a enigmática trajetória da personagem para desvendar o mistério da montanha e, ao mesmo tempo, realizar o caminho, através da iniciação, para o seu autoconhecimento.

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MeruA MONTANHA SAGRADA

Milta Torriani

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MeruA MONTANHA SAGRADA

Milta Torriani

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SumárioPrefácio........................................................................................................................... 4

I - O despertar................................................................................................................ 5

II - Decisão de mudança...............................................................................................10

III - Seguindo um guardião............................................................................................16

IV - Uma vida diferente.................................................................................................21

V - Quem é Meru?.........................................................................................................24

VI - Valorização do momento........................................................................................27

VII - O orgulho mostra o inferno....................................................................................29

VIII - A humildade mostra o caminho............................................................................35

IX - As experiências são individuais..............................................................................38

X - A iniciação, o começo..............................................................................................41

XI - O templo da sombra escura...................................................................................44

XII - Aprendendo a elevar a vibração............................................................................51

XIII - A purificação pelos elementos..............................................................................54

XIV - O segundo nascimento.........................................................................................56

XV - Vivenciando a liberdade........................................................................................59

XVI - Mestre de si mesmo.............................................................................................63

XVII - Compreensão das atitudes humanas..................................................................66

XVIII - A Luz está no coração de todo ser......................................................................70

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Prefácio

De um sonho que tive escrevi estes textos. O sonho consistia de uma montanha, emforma piramidal, onde milhares de pessoas iam subindo e contornando-a. A cada volta, onúmero de pessoas diminuía, até atingir o topo que era iluminado com raios azulados.

A partir desse sonho e através de viagens feitas em algumas cavernas de São Paulo eMinas Gerais, surgiu a ideia de escrever um livro.

Meu objetivo principal é, além de estar adquirindo entendimento próprio, o de passar amensagem iniciática, de modo simples e fácil de ser entendida, sem necessidade degrandes estudos esotéricos tradicionais e sem requerer que o leitor pertença a algumaescola de iniciação para entendê-la.

Não tenho a intenção de me opor a nenhuma religião nem, tampouco, dar fórmulaspara se atingir o autoconhecimento, apenas transmito, através da narração, o “despertar”da personagem para uma realidade, sem apegos, e de sua realização para um bemmaior, em benefício da humanidade e de todo o planeta.

Considero que nada se faz sozinho, pois, não existe nenhuma ideia genial, nenhumautor de obras, mesmo as mais notáveis, que sejam consideradas propriedades pessoais,porque todo pensamento é preexistente no plano espiritual, havendo sempre asinfluências benéficas, apoios e ajudas, em todos os sentidos, pois, sem isso, nada serealiza. Meus agradecimentos a estas energias elevadas e a todos que me inspiraram eauxiliaram para que este trabalho se tornasse possível.

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I - O despertar

“A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo”.(Hermann Hesse)

Da janela do meu quarto via a chuva caindo forte e grossa. As copas das árvores eram

balançadas de um lado para o outro. Fiquei por alguns instantes observando aquele

vendaval todo, parecia infindável. Mas, numa rajada de vento mais forte, os pingos

tornaram-se mais fracos e um clarão no céu começou a surgir. O ar ficou agradável e

tudo se acalmou. A paisagem ficou tão bonita que resolvi dar uma volta pela praça central.

O céu já estava limpo e o sol fazia subir o vapor do chão molhado pela chuva que

acabara de cair. Alguns pássaros que estavam perto de mim beliscavam alguma coisa

caída no chão. Levantaram voo quando dei um passo em direção a eles. Acompanhei-os

e percebi que se juntavam a um bando enorme indo em direção a uma montanha, a mais

próxima e uma das mais altas daquela cidade. Era uma montanha interessante, pois, no

cume, via-se uma rocha pontiaguda e facetada, como se fosse esculpida por mãos

humanas.

Enquanto eu observava aquela rocha, que lembrava uma pirâmide, uma luz muito forte

começou a brilhar naquela direção, por detrás dela. Olhei mais atentamente e vi que era

de cor azul intenso. Fiquei extasiada com a visão, nunca tinha visto nada semelhante.

Um senhor vinha caminhando pela calçada, cabisbaixo, envolvido em suas

preocupações, parou assustado diante de mim quando o segurei pelo braço e exclamei:

– Olha, senhor, que maravilha! – apontando para a luz. Ele olhou receoso para onde

apontei, olhou para mim e balançou a cabeça em negação e continuou andando.

– Ei, o senhor não vê aquela luz? – perguntei desesperada, sem entender o porquê do

desinteresse daquela pessoa.

– Luz, minha jovem, que luz? – e ainda tentou olhar mais uma vez para o alto.

– Lá em cima da pedra, no alto da montanha...

– Não vejo nada menina, você está querendo zombar de mim? – disse já quase

nervoso – Tenho mais o que fazer! Ora essa! Luz o quê! – saiu resmungando e pisando

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acelerado.

Pensei comigo: “deve enxergar pouco esse homem... como não ver um brilho tão forte

como aquele?”

Mais à frente, um menino brincava com barquinhos de papel numa poça de água

deixada pela chuva.

– Ei menino! – chamei – Você está vendo aquela luz brilhando no alto da montanha?

Ela é bonita, não é? – ele olhou na direção que indiquei, franziu o nariz e respondeu

sossegadamente:

– Não! Só vejo a pedra lá em cima! E continuou preocupado em navegar seus

barquinhos na água suja.

– Não é possível! – balbuciei, estranhando o fato. Por que somente eu via? Estaria

ficando louca?

A luz brilhou ainda por mais alguns minutos e depois desapareceu. Eu nada

compreendia daquilo. Não era o sol, com certeza, pois este brilhava amarelo e bem

distante da montanha. Dei algumas voltas ainda, pela praça, pensando. Por que somente

eu tinha visto aquela luz? Estaria vendo discos voadores? Mesmo isso não seria possível,

porque a luz não se deslocava, apareceu e sumiu, sempre no mesmo ponto.

As pessoas continuavam circulando pelas ruas, apressadamente, estavam

preocupadas com seus afazeres, tudo aparentava normalidade para elas. Num banco,

sentada sozinha, estava uma senhora, aparentando idade avançada. Atirava, distraída,

milho para as pombas na calçada. Fiquei olhando de certa distância e percebi,

intuitivamente, que era uma pessoa bondosa, pois sorria e conversava com os pássaros

enquanto atirava o milho. Parecia estar feliz naquela atitude e seu semblante transmitia

uma sensação de paz. Existem pessoas que, mesmo sem nunca termos visto, parecem

nossas amigas de longa data. Senti vontade de conversar com ela. Sentei-me ao seu lado

e comecei a puxar conversa.

– Boa tarde, senhora! As pombas parecem famintas, não é?

– Estão sim. – respondeu sem me olhar e continuou – Um dia, não trouxe o milho e

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elas não me perdoaram. Voaram por cima de mim, desesperadas, enquanto não arranjei

alguma coisa para atirar-lhes, não me deram sossego.

– Faz muito tempo que a senhora vive nesta cidade?

– Nasci aqui. Vi muita coisa triste e também muita coisa bonita. Estou tranquila agora,

mas, na sua idade, sofri muito.

Notei que ela se trajava de modo muito estranho. Usava uma capa escura, pesada, e

não estava frio; botas de borracha, como se tivesse preparada para uma forte chuva ou

para atravessar algum lugar alagado.

– A senhora tem parentes aqui ou vive sozinha?

– Ah! Diziam que eu estava ficando louca. Fui abandonada pela minha mãe de criação

e expulsa de casa. Então, resolvi viver na mata, longe da cidade. Agora, às vezes, desço

aqui na praça, brinco com os animais e ninguém me aborrece mais.

– Viver na mata e por que louca? – fiquei curiosa em saber como se poderia viver

longe da sociedade.

– É uma longa história, mas não quero relembrar coisas tristes, já faz parte do

passado. Minha vida agora é só de alegrias, porque o presente é fruto do passado. A

pessoa quando é feliz e tranquila, sabe que são os resultados de suas próprias ações que

recaem sobre ela e considera aqueles que lhe causaram sofrimento e lhe magoaram,

como sendo seus amigos. Não revida e nem deseja o mal para eles, somente pratica o

bem aos que lhe feriram.

– Desculpe insistir, mas, por que a maltrataram assim?

– Tudo por causa da luz azul que sempre via e ainda continuo vendo no alto da

montanha.

Naquele momento senti um arrepio percorrendo meu corpo. Gelei. Meus olhos

arregalaram-se e, estremecida, perguntei:

– A senhora também viu? – fiquei um tanto aliviada por ter encontrado, finalmente,

alguém que tinha visto aquela luz.

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– Só algumas pessoas veem. São as que possuem uma sensibilidade especial – Você

viu, não é?

Balancei a cabeça afirmativamente, meio receosa. Não estava conseguindo entender

mais nada. Comecei a achar que tudo aquilo fazia parte de um sonho, não parecia ser

real. O que de fato estaria acontecendo comigo? Respirei fundo para me recompor e

arrisquei perguntar:

– A senhora sabe então o que aquela luz significa?

– Ah, menina! Eu persegui aquela luz durante muito tempo na minha vida – disse com

um sorriso de felicidade estampado no canto dos lábios e com o olhar procurando algo

oculto no céu – Se você estiver interessada, venha até minha cabana e lhe contarei tudo

o que sei sobre a luz azul.

– Mas onde a senhora mora? É muito longe? – eu estava ansiosa e não queria perder

o fio da meada, já que tinha começado, agora era a curiosidade em saber onde tudo

aquilo iria me levar. Não poderia perder aquela oportunidade.

– Não moro muito longe daqui. Só duas horas a pé pela trilha na mata – disse

calmamente.

– Trilha na mata? Mas já é tarde, o sol está quase se pondo, vai escurecer antes da

senhora chegar!

– Não tenho medo do escuro, porque vejo luz em tudo, aliás, a luz e a sombra não

podem estar juntas no mesmo tempo e lugar. O medo só aparece quando existe apego e

egoísmo. Passei por tantas situações que já não temo mais nada.

Fiquei um tempo pensando... Ela parecia ser uma pessoa muito estranha e, ao mesmo

tempo, conhecia algum segredo sobre aquela luz, seria, então, esse o momento para

desvendar tal mistério que estava me deixando tão intrigada.

Mas, poderia ser também uma cilada. E se ela realmente estivesse fora de seu juízo

normal, como falavam. Mas, o que eu poderia temer? As pessoas dali eram muito

pacatas. Os nossos olhos físicos não podem ver o abstrato como o amor, a virtude ou a

maldade, mas, pelas palavras, ações e comportamento, podemos inferir se a pessoa

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possui amor ou maldade em seu coração. E observando bem suas atitudes, concluí que

ela não me faria mal algum, ainda mais sendo uma senhora. Não parecia maligna, pelo

contrário, era dócil e tranquila.

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II - Decisão de mudança.

“Da sombra para a luz, e do inferior para o superior.”(René Guénon)

Muitas situações estranhas já haviam acontecido em minha vida. Aliás, não era à toa

que estava naquela cidade. Acredito sempre que as coisas não podem ser estáticas como

aparentam ser, pois tudo vibra tudo está em contínuo movimento. Há uma essência, que

parece estar oculta aos nossos olhos físicos, porém, são percebidas pela nossa alma. As

pessoas, geralmente, pensam que estão separadas da natureza, do universo, mas, há

uma força sutil que vibra internamente e, como uma rede, unifica toda a matéria. Assim,

por exemplo, quando um passarinho canta perto de mim, por um período prolongado, não

é simplesmente um canto qualquer, mas uma mensagem, ele está querendo me transmitir

alguma coisa que eu devo decifrar. E se algum lugar me atrai, me emociona, é porque,

nesse lugar, deve haver uma mensagem a ser decodificada. É o morador interno, sem

forma, a essência de tudo que nos revela a realidade e a harmonia na natureza.

Essa cidade foi assim. Conheci de passagem, numas férias, e alguma coisa me

cativou tanto que resolvi voltar e ficar por mais algum tempo, ou até entender o que

estava me atraindo tanto nela. Aparentemente, era uma cidade simples, sem nenhum

atrativo especial. Porém, naquela montanha nas proximidades, existia alguma coisa muito

enigmática que não estava conseguindo entender. No meu subconsciente, eu sabia que

ali ocultava um mundo ainda desconhecido esperando para ser desvendado. Talvez fosse

esse o momento exato para ser revelado. Nada acontece por acaso, tudo tem um motivo

e, consequentemente, um efeito que une numa sincronicidade todos os fios da rede do

universo.

– Vou com a senhora sim! – respondi decididamente – A senhora me aguarde aqui um

pouco, por favor! Num instante pego minhas coisas. Serei rápida, prometo.

Saí a passos rápidos. Peguei minha mochila e retornei à praça. Creio não ter levado

mais de vinte minutos. Cheguei ofegante. Olhei ao redor e fiquei interrogativa. Onde

estaria aquela senhora? Procurei nas ruas vizinhas à praça e nada! A praça estava

deserta. Tive a sensação de estar tendo visões novamente. Sentei-me no mesmo banco e

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aguardei por muito tempo. Ninguém apareceu!

Olhei na direção da montanha. O sol já havia desaparecido e tudo começava a ser

mergulhado numa sombra. Achei melhor voltar à pensão e esperar o dia seguinte, talvez

aquela senhora retornasse para alimentar os pombos da praça. Devia, pelo menos, ter

perguntado o nome dela - pensei aborrecida.

***

Nessa noite tive sonhos agitados: naves espaciais desciam sobre a montanha com

luzes coloridas piscando sem parar. Vi uma multidão de pessoas que se dirigiam ao topo

da montanha e, conforme iam subindo, a quantidade diminuía até que, apenas, uma

pessoa alcançou o cume iluminado. A voz daquela senhora me chamava para segui-la:

“venha comigo, dizia ela, eu levo você até o topo da montanha!” Parecia estar falando

bem perto de mim. Acordei assustada. Abri a janela, pois tive a impressão que ela estava

ali, do lado de fora, me chamando. Olhei à minha esquerda e um clarão começava a

surgir no céu, estava amanhecendo. Do lado oposto, a montanha ainda estava envolta na

escuridão da noite. O silêncio era quase total, só se ouvia algum grilinho no canteiro de

flores, sob o parapeito da janela. Permaneci, ainda, olhando pela janela, por algum

momento, tentando entender estes acontecimentos recentes e tão estranhos. Estaria eu

imaginando tudo aquilo? O que haveria naquela montanha de tão interessante que me

atraía tanto? Seria eu quem deveria desvendar todo esse mistério? Não iria encontrar as

respostas se não me arriscasse nessa aventura. Então, só me restava mesmo ir até lá e

resolver esse enigma. Mas. Não era para isso que já tinha me decidido a ficar por mais

tempo nessa cidade?

Deveria ser cinco horas da manhã e o dia já começava a clarear. Decidida a seguir em

frente no meu intento, me vesti com roupas grossas, apesar do calor. Lembrei-me do traje

daquela senhora que usava uma capa escura e botas de borracha semelhante aos trajes

para chuva. Bem, eu estava necessitando somente de um par de botas para enfrentar a

mata cerrada que ali existia.

Esperei os lojistas abrirem as portas. Fiquei sentada na calçada observando os

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pássaros que vinham ciscar o chão. Uma corruíra se aproximou, cantou batendo as

asinhas e logo voou para o alto de uma árvore. Tenho a impressão que os pássaros

sempre tentam nos dizer alguma coisa, é só sabermos interpretá-los. Pensei comigo: Ah!

Não vou ficar aqui na praça esperando encontrar aquela senhora! Minha ansiedade era

tanta que não me permitia esperar sem ter a certeza de que ela, realmente, voltaria ali.

Entrei finalmente numa loja de artigos para caça e pesca:

– Bom dia! Estou precisando de um par de botas. – olhei numa prateleira e havia uma

coleção de botas de borracha, semelhantes às daquela senhora.

– Fique à vontade! – disse o vendedor – A senhorita vai pescar?

– Ah! Não. Quero dizer. Não propriamente para pescar. Vou para uma escalada.

Preciso também de um cantil e de uma lanterna.

– Escalada? – interrogou com ar de espanto.

– Sim, vou escalar a montanha. Pretendo chegar até o topo onde está a pedra em

forma de pirâmide.

Quando olhei para o rosto do vendedor não entendi o porquê do espanto, pois estava

boquiaberto e com os olhos arregalados. Eu não queria ainda falar, para ele, sobre aquela

senhora que encontrei na praça, porque minha real intenção era chegar ao local onde ela

dizia morar e, então, me esclarecer sobre aquela luminosidade.

– A senhorita não me parece tão maluca para chegar a esse ponto! – disse com ar

embravecido.

– Não entendo! – respondi – Há algum problema lá?

Achei nebulosa a atitude daquele vendedor. Tentei tirar mais informações, pois,

parecia saber muita coisa sobre aquela montanha.

– Mas é uma loucura! Pelo o que sei ninguém conseguiu chegar ao cume, ainda mais

usando botas de borracha e sem equipamentos especiais! Isso é pura maluquice! É

suicídio, para ser mais claro! Os que tentaram subir a montanha dizem que a mata é

cerrada demais, existem muitos animais ferozes na região e, para completar, há uma

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grande cratera que dificulta a escalada até o topo. Eu aconselho à senhorita mudar de

ideia imediatamente!

– Ah, não deve ser tão terrível assim, pois conheci uma senhora, aqui na praça, que

disse viver naquela mata. Ela transita por aí tranquilamente e não disse nada sobre os

perigos enfrentados na montanha – arrisquei tentando arrancar provas da veracidade da

existência dela, pois, ainda achava, às vezes, que tinha imaginado ou sonhado com

aquela senhora.

– Hum! É a velha Meru! É uma maluca! – disse com certo desprezo.

– Então o senhor a conhece? E é Meru o nome dela? – as coisas começavam a ser

clareadas. Fiquei contente em saber que ela era real mesmo, de certa forma, estava mais

tranquila, pois tinha certeza agora que eu não tinha delirado todo esse tempo.

– Conheço sim! Ela é filha de mãe solteira! A mãe faleceu no momento do parto. Sem

ter parentes na cidade, Meru foi criada pela parteira que lhe trouxe à vida. Um dia, quando

já era jovem, ficou parada no meio da rua gritando que tinha uma luz azul brilhando atrás

da rocha, no alto da montanha. Ninguém via luz nenhuma, então acharam que ela estava

ficando maluca. Ela falava sozinha e dizia que se chamava Meru que era o nome da

montanha. O nome dela não era esse não! Depois que ela ficou doente da cabeça, todos

a chamaram de Meru.

– Alguém mais daqui já viu essa luz, além dela?

– Não! De maluca, só ela! Um dia ela fugiu. – continuou o vendedor – Ninguém sabia

onde estava. Desapareceu. Todos achavam que tinha morrido. Depois de muito tempo,

quando ninguém mais se lembrava dela, surgiu aqui na praça, jogando milho para os

pássaros e falando coisas ininteligíveis. Muitas vezes, ela fica horas seguidas, sentada no

banco da praça, conversando com os cachorros e pássaros. Dizem que ela mora

embrenhada na mata, porque sempre se dirige para aquela direção. Mas ninguém quis,

até hoje, saber se é verdade. Acho mesmo que ela vive em um daqueles barracos dos

catadores do lixão, porque dizem que a montanha é enfeitiçada, e, de lá, ninguém sai

vivo.

– Por que dizem ser enfeitiçada? - fiquei curiosa com a declaração do vendedor.

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– Dizem, os mais antigos da cidade que, há muito tempo atrás, existiu uma tribo

indígena habitando aquela montanha, praticavam magias e eram feiticeiros. Por castigo,

em poucos segundos, foram todos dizimados por um forte raio que clareou todo o cume.

A notícia que se espalhou, pela redondeza, era de que a montanha estava enfeitiçada e

que, quem tentasse subir até aquela rocha, fatalmente morreria pelo raio. Foi então que

quando a Meru falava que estava vendo uma luz, lá no alto, todos achavam que era o

feitiço atacando a pobre menina.

– Ninguém se interessou em saber como ela vivia lá?

– Não! Nem queriam chegar perto dela porque diziam estar enfeitiçada também, por

isso enlouqueceu.

– Acho que estão exagerando, não é bem assim. Ela me parece ser uma pessoa muito

boa, dedicada aos animais e, conversando com ela, não percebi nada de anormal,

achei-a até muito consciente e amável.

– A senhorita é nova aqui, não conhece bem as pessoas, principalmente a Meru. Você

deve se afastar dela, aceite meu conselho, e nem pense em penetrar nessa mata se

realmente ama a sua vida - disse em tom enérgico.

Fiquei aterrorizada com a história do vendedor. Não sabia o que dizer. Estava confusa.

Paguei o que devia, agradeci pela informação e saí apressada da loja. Por um instante

resolvi acatar o conselho dele e desistir de tudo. Pegar meus pertences e partir para

alguma praia qualquer. Talvez conseguisse esquecer toda essa história confusa e cheia

de mistério.

Estava aborrecida, sem saber mais no que pensar e indecisa qual seria o passo

seguinte que daria. Comecei a andar sem rumo, dobrei uma esquina, atravessei a rua.

Deitado na calçada estava um cachorro abandonado, quando me viu, levantou-se e

começou a abanar a cauda alegremente, como se me conhecesse de longa data. Passei

a mão sobre sua cabeça e ele lambeu meus dedos. Continuei andando, achei que ele só

me confundiu com seu verdadeiro dono e ficaria por ali mesmo. Mas, me enganei. O cão

não parava de me seguir e quando eu parava de repente e o olhava, ele começava a

abanar a cauda novamente.

– Ah! Então você quer me dizer alguma coisa ou está com fome?

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O cão, para minha surpresa, deu dois latidos e ergueu as patas dianteiras, querendo

talvez chamar minha atenção.

– Está bem, não entendi nada do que você quis me dizer. Tenho aqui um pedaço de

pão, talvez seja isso que você quer. Pode comer amiguinho!

Ele estava mesmo faminto. O pão acabou e ele não me abandonou mais. Para todo

lugar que fosse lá estava meu novo companheiro.

Concluí que a cidade não teria mais nada a me oferecer, somente aquela montanha

me atraía de verdade. Quando fixava meus olhos nela, sentia uma energia diferente

percorrendo minhas veias. Parecia haver alguém ou alguma coisa que me chamava. Era

inexplicável! E essa energia me puxava. Meus pés pareciam querer seguir naquela

direção, sem necessidade do controle do cérebro, como se fosse guiada por alguma força

estranha.

Fiquei tão distante pensando tudo isso, que somente voltei à realidade, quando senti

meu amigo lambendo minha mão.

– Você é muito simpático, sabia? Quer ser meu companheiro de aventuras? - passei a

mão na cabeça e alisei o pelo dele. Ele aceitava meu carinho e parecia sorrir com o olhar.

– Está gostando, não está? Seremos amigos inseparáveis, está bem? Ah! Mas você tem

que receber um nome. Como poderei chamá-lo? Ah! De Tói, está bem? Vamos testar: –

Tói, Tói, Tói! Ei, você nem se mexeu? Não gostou? Mas vai ficar com esse nome mesmo,

logo se acostumará.

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III - Seguindo um guardião.

“O discernimento não deve vir através da visão, mas através da vibraçãoenergética que esta emana.” (Anônimo)

– Tói, - falei com o cão, como se estivesse me entendendo - quando a essência que é

nossa alma nos chama e nos puxa para uma realidade que desconhecemos, não

devemos temer. Você não tem medo da mata e nem dos animais que vivem por lá, não é?

Estamos buscando a verdade e somente ela poderá nos guiar por ser soberana. Através

do discernimento, a mente estará distante do mundo sensório. O conhecimento é uma

coisa, mas, a experiência é outra. Somente passando pela experiência, conseguiremos

descobrir a verdade sobre a montanha. Está decidido! Vamos procurar a Sra. Meru! –

Serei mais uma “anormal” na sociedade!

Saímos da praça, eu e Tói, em direção à montanha, duas horas de caminhada

disse-me a Meru. Seguimos por uma rua de terra, onde restavam ainda algumas poucas

casas. O fim da rua era um vasto campo, onde a prefeitura jogava o lixo da cidade.

Atravessamos por entre os montes fétidos, cheio de urubus por toda parte. Mas, o que

mais me impressionou foi ver pessoas que se misturavam aos urubus, sobre aqueles

montes, vasculhando o lixo. Eram homens, mulheres e crianças, enfrentando aquela

situação degradante de sujeira e miséria. Senti-me impotente e lamentei por saber que

tinha parte da culpa da existência daquela miséria. Sabemos muito bem que quando se

interfere em determinado ambiente, altera todo o ecossistema daquela localidade.

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– Por que será que não faziam um aterro? - falei com o Tói que estava cheirando tudo

que encontrava. Era a saúde das pessoas e dos animais que estava em risco. Parece que

ninguém se importava com aquilo e por isso não tomavam providências. Assim, poluíam o

solo, os rios e nascentes, sem respeitarem a si próprios e a natureza, pois tudo o que fere

a Terra, fere os filhos da Terra. Eu entendo que tudo está inter-relacionado, não existindo

um fenômeno isolado, assim como os átomos fazem parte de tudo o que existe, o

homem, também, não é um observador separado do resto do universo, mas é parte

integrante do mesmo. É o ser humano provocando suas próprias catástrofes, tanto as

individuais quanto as coletivas e se atrasando na evolução.

Passado o mau cheiro do lixão, estávamos agora atravessando o pântano. Percebi

que realmente era perigoso, como tinha alertado aquele vendedor. Teria que agir com

precaução para atravessá-lo sem nenhum risco. Mas, felizmente, eu estava muito bem

acompanhada. Tói, com seu instinto privilegiado, se saía muito bem e eu precisava

observar e calcular direitinho cada passo para não cair na armadilha.

O pântano era formado por uma camada de líquem verdinho, mais parecia um

gramado. Observando mais de perto se via as bolhas dos gases que se soltavam por

entre os musgos. Algum arbusto ou arvorezinha serviam para que eu me equilibrasse no

estreito e escorregadio caminho de solo, mais argiloso, que não havia sido alagado.

Pensei imediatamente no perigo se, naquele momento, caísse uma chuva muito forte

seria impossível atravessar e continuar pela trilha e fatalmente eu estaria mergulhada

naquele lodaçal. E a existência daquele pântano era devido ao acúmulo de lixo que foi

jogado ali, durante muito tempo, não permitindo que as águas tivessem vazão e

permanecendo sempre empoçadas. O descaso e a ignorância humana provocavam a

degradação daquele ambiente.

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Enquanto caminhava ia imaginando como a natureza se diferenciava em cada trecho

que passava. Alguns se exaltavam em beleza pela exuberância das matas e flores, outros

eram tão fétidos e horripilantes. Assemelhavam-se às almas humanas – pensei – há

corações que são escuros e pantanosos, onde somente espécies venenosas e grosseiras

que carregam o ódio, a inveja, o orgulho, a violência, a corrupção, encontram nesse meio

o abrigo conveniente. E outras, felizmente, tão cheias de amor e beleza, que nos ensinam

e nos oferecem a esperança de uma humanidade mais fraterna e melhor para o futuro. E

é nesse universo de contrastes, entre escuridão e luz, que a consciência humana é

modelada.

As cobras eram muitas: verdes, amarelas, marrons, pretas ou mescladas com todas

estas cores, ziguezagueando pelo caminho. Tói não se intimidava. Libélulas voavam

frenéticas, moscas zuniam. Começamos a subir. Olhei para o céu e o sol estava alto, já

havia caminhado por uma hora, mais ou menos. Avistei, logo mais acima, uma pedra

grande, de granito, que continha uns desenhos pintados em branco. Pensei logo ser

pinturas indígenas que disseram ter existido na região. Fiquei ansiosa para verificar

aqueles sinais mais de perto. Reuni minhas forças e subi ainda mais para chegar até ela.

Finalmente cheguei! Tói estava ofegante. Aproveitei para descansar um pouco e poder

apreciar a paisagem visível daquela altura. Bem ao longe, consegui ver as casas mais

altas da cidade. Mas, o lixo... Era degradante! Pensei – talvez seja esse o caminho de

todo ser humano: sair da animalidade, eliminar os nossos lixos internos, atravessar

nossos pensamentos pantanosos, cheios de atitudes peçonhentas, sair da escuridão da

ignorância, para atingir, através do discernimento, os altos cumes da iluminação. É, nós

somos muito especiais para estarmos vivendo e adquirindo consciência neste Planeta e

nada é por acaso!

Tói cheirou minha mão com seu focinho molhado, me fazendo retomar a atenção –

Cansado em amigão? Bem, vamos decifrar estes desenhos... Ah! Que engraçado! Um sol

sorridente com braço apontando para a direita. Abaixo, o mesmo solzinho apontava para

a esquerda, mas com uma diferença, estava com semblante triste – muito brincalhão

quem fez isso, não acha Tói? Estariam pretendendo ajudar ou confundir quem aqui

chegasse? Pois, justamente, o caminho da esquerda é o que levaria ao topo da

montanha, o solzinho aparenta tristeza, deixando explícito para não segui-lo, enquanto,

para o sentido oposto, parecia convidativo. Lembrei-me de que o vendedor havia falado

que ninguém ainda tinha conseguido escalar o cume devido aos perigos que o cercavam.

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– Está vendo Tói? É melhor seguirmos pelo sol alegre, não acha? – ele já estava

cheirando o chão do caminho e abanando a cauda. Latiu para mim, como se me dissesse:

é este mesmo, estamos certos!

A mata estava mais densa, pensei em fazer sinais nas árvores para poder voltar

depois, caso não encontrasse a casa da Meru, mas a trilha estava tão bem demarcada

que seria desnecessário deixar qualquer sinal. Percebi que os cipós, que poderiam

atrapalhar a passagem, estavam podados. Tói cheirou um tronco de árvore e seguiu

certeiro como se já conhecesse muito bem aquele caminho. Será que ele estava sendo

meu guia e guardião, não por coincidência, mas por alguma ajuda oculta que talvez

estivesse me orientando?

A subida não estava muito acentuada, mas exigia certo esforço. O calor era intenso,

apesar de estar caminhando pela sombra. Ouvia-se, por entre as árvores, os cantos dos

pássaros e das cigarras, mas nenhum som de animal que amedrontasse. Logo adiante,

percebi um clarão na mata. A trilha deixava a montanha maior e continuava, sem

depressão alguma, para uma montanha mais baixa, sem muita mata apenas um capinzal.

Percebi que quem tinha traçado este caminho não pretendia mesmo chegar ao topo da

montanha mais alta. Olhei para trás e lá estava a rocha, majestosa, com formato de

pirâmide, muito mais alta do local onde eu estava. Era a outra face dela que podia ser

vista agora e daquele lado não se conseguia mais ver a cidade.

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Page 20: Meru a Montanha Sagrada

Tói cheirou o ar e saiu correndo e latindo. Sumiu no meio do capinzal. Tive que,

apesar do cansaço, apertar o passo e quase correr para não me perder dele. Tói estava

muito convicto daquela direção e nada iria detê-lo. Confiei totalmente no instinto do cão e

me tranquilizei.

Parei de repente! – Ah! Então era isso? Vi uma fumacinha saindo da chaminé de uma

choupana, muito simples, coberta de sapé – Finalmente encontrei! Só poderia ser a casa

de Meru!

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Page 21: Meru a Montanha Sagrada

IV - Uma vida diferente.

“Crê naqueles que buscam a verdade; duvida dos que a encontram.”(André Gide)

Tói latia e pulava, alegremente, na entrada da choupana, fazendo muita festa. Meru

surgiu na porta para nos saudar.

– Ah! Então já se conheciam? – Olá Meru! É aqui que você vive?

– Eu sabia que você viria! – recebeu-nos com largo sorriso – Este cãozinho aqui é

meu velho companheiro. Ele me conhece há muito tempo. Você é muito corajosa, menina,

não é qualquer pessoa que enfrenta estas matas sem experiência em trilhas. E ainda

correu o perigo de seguir em direção ao poço. Você fez bem de confiar em nosso

amiguinho, pois lhe guiou certinho até aqui. Vê-se que se entenderam muito bem. Como

você se chama?

– Rami. Eu teria vindo com a senhora ontem, mas não a encontrei na praça.

Ela me olhou fixamente nos olhos e disse:

– Quando alguém lhe mostra o caminho e lhe diz o que deve fazer, as coisas ficam

muito fáceis, porém sem valor. Mas, se você descobre sozinha, aí sim, adquire confiança

em si mesma e força de vontade para continuar. Dá mais valor ao que descobriu. Só

podemos ajudar as pessoas a descobrir e encontrar o que já possuem em si mesmas.

Dentro de cada ser já existe tudo o que tem para aprender.

– Você tem razão Meru. Desculpe-me, mas posso tratá-la por você? – ela consentiu

com a cabeça e sorriu, então continuei. Conheço cada centímetro do caminho até aqui.

Tive de passar pelas dificuldades e os perigos, enfrentar o medo e os desafios, mas,

sobretudo acreditar em mim mesma que a encontraria. É verdade, devo admitir, que o cão

foi um ótimo guia, facilitando muito o caminho, mas também tive de confiar nele e

acreditar que me traria até você.

– Só a força de vontade faz com que a pessoa se desprenda do lodo e pise em terra

firme, para depois ganhar asas e poder voar. Mas... Vamos entrar você deve estar

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Page 22: Meru a Montanha Sagrada

cansada. Venha comer alguma coisa comigo!

Dentro da choupana havia um fogão a lenha, muito simples, pedras grandes no chão,

servindo de banco. Ela serviu, num prato de barro queimado, um caldo com abóbora e

folhas de taioba e algumas outras coisas que não descobri na hora. Depois me deu milho

cozido, bananas e mamão; suco de maracujá, sem açúcar e uvas rosadas. Fiquei

admirada.

– Quanta coisa, Meru! Que fartura você tem aqui! Está uma delícia!

– Fico contente que tenha gostado. A natureza nunca nos deixa na mão. É só tratá-la

com carinho. É a nossa Mãe. A vida é tão simples, mas as pessoas, que vivem na cidade,

são muito complicadas. Necessitam de tantas coisas para se satisfazerem e nunca estão

felizes.

– Você planta tudo isso? – perguntei admirada.

– Sim, aqui a terra é muito fértil e nasce com facilidade. Venha aqui comigo! Sei que

está cansada, mas é perto.

Demos a volta por trás da choupana e descemos o terreno. Havia um milharal, até

grande demais para somente uma pessoa. Pés de abóbora corriam pelo chão. Do outro

lado couves, taiobas, carás, chuchus, mandiocas e muitas outras coisas nasciam ali. Num

cercadinho as galinhas ciscavam o chão. Descendo um pouco mais, estavam as árvores

frutíferas: abacateiros, mamoeiros, laranjeiras e uma parreira enorme carregada de uvas.

– Que maravilha, Meru! Você mora num paraíso!

Ouvi um som de água caindo, muita água.

– É cachoeira? – era tudo que podia desejar. Sempre gostei desse ambiente livre, sem

comércio, sem proprietário. Pura liberdade!

– Sim, é uma linda cachoeira com água límpida e fresquinha.

– Podemos ir até lá? – não resisti.

Descemos por uma escadinha de pedra, entre as árvores, e fiquei boquiaberta com o

que vi: uma linda cachoeira, onde a água jorrava do alto de um rochedo, formando uma

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Page 23: Meru a Montanha Sagrada

piscina natural onde a água era tão límpida que se podia ver os cascalhos reluzindo no

fundo, para depois correr sobre grandes pedras roladas. Não resisti! Tirei as botas e pisei

naquelas pedras. A água passava rápida e geladinha sobre meus pés.

– Que delícia! Lavei os pés, braços, rosto. Tói também entrou na água e lambia por

cima, tomando grandes goladas.

– Vamos subir? Amanhã poderemos voltar se você quiser. Logo estará escurecendo.

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Page 24: Meru a Montanha Sagrada

V - Quem é Meru?

“O sábio não se liga a nenhuma crença, porque está acima de todas elas”.(René Guénon)

Eu estava deslumbrada com aquele lugar. Transmitia-me muita serenidade e paz. Era

como ter encontrado meu verdadeiro lar. Ali era impossível se aborrecer. Senti um

agradecimento imenso por ter tido a oportunidade de estar naquele ambiente e não

consegui disfarçar este sentimento da Meru.

– Foi muito bom ter conhecido você e poder estar aqui desfrutando dessa

tranquilidade. Sou uma pessoa de sorte!

– Não é sorte Rami! Você simplesmente seguiu o desejo de seu coração! Entrou em

ressonância com a natureza e se identificou com ela. Todos os seres, consciente ou

inconscientemente, sabem que um dia terão de voltar para ela. São poucas as pessoas

que atingem esse sentimento de unidade. A maioria tenta preencher o sentimento de

vazio com coisas vãs. As ideias ficam atoladas com objetos artificiais e inúteis, não

conseguindo encontrar a felicidade. Céu ou inferno só dependem de sua escolha, sua

postura emocional.

– É muito bonito e bom o que você falou. Suas palavras são cheias de sabedoria,

Meru. Mas, desculpe-me perguntar: seu nome antes, não era esse. Por que você resolveu

se chamar Meru e o que ele significa?

– Meru, é uma palavra que em sânscrito, para os persas e hindus, quer dizer a “região

da bem-aventurança” ou “montanha dos deuses”. É uma região energética onde algumas

individualidades são preparadas para a formação de uma nova humanidade.

– Então você se identificou energeticamente com a montanha, por isso se deu este

nome?

– Minha mãe faleceu logo que nasci. Ela não tinha nenhum parente na cidade. Fui

adotada por uma parteira, que me deu instrução e uma vida simples. Cresci olhando para

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Page 25: Meru a Montanha Sagrada

essa montanha e vi, muitas vezes, a luz azulada brilhando no cume. Ninguém acreditava

em mim, porque não conseguiam vê-la. Achavam que eu havia enlouquecido. Fui

maltratada e expulsa de casa, pensavam que eu estava enfeitiçada. Larguei tudo e vim

para junto de minha verdadeira mãe Natureza e daqui não quis mais sair.

– Lá na cidade, ouvi mesmo algumas pessoas dizerem que esta montanha é

enfeitiçada e que você também estava. Por que dizem isso?

– As pessoas vivem de aparências e mentiras, julgam e condenam baseadas em suas

cegueiras. Criam mitos, adoram seus ídolos e acumulam riquezas, acreditando que estão

protegidas. Espalham que esta montanha é enfeitiçada, porém, a verdade é que não

querem ver a miséria do povoado, que se formou no caminho, sendo que foram elas

mesmas que a criaram. Dominadas pela arrogância, preferem se esconder em suas

mansões, disfarçadas em suas vestes luxuosas, perdendo tempo com prazeres bestiais.

Falam isso para espalhar o medo. Somente o egoísmo e o apego produzem o medo. São

energias do mal que não querem evoluir e preferem viver dos prazeres dos sentidos que,

muito cedo, darão origem às tristezas.

– Eu ainda não consegui entender por que somente algumas pessoas veem essa luz,

no caso eu e você. O que ela representa?

– Quando um indivíduo torna-se mais sensível às vibrações de luz, através do

refinamento e discernimento de suas ações, deixa o medo de lado e passa a penetrar,

gradativamente, nos mistérios da iluminação, tornando-se um ser diferente dos demais e

pouco compreendido pelo comum das inteligências.

A explicação dada por Meru era ainda muito confusa para mim e parecia enigmática.

Eu, apenas, percebia uma forte atração pelo lugar, havia sim essa energia no ar e no

chão, mas estava engatinhando ainda e não conseguia entender muita coisa. Ela sabia

disso e tentava me auxiliar.

– A luz que foi vista fora de você é o reflexo de sua própria luz interna. Quando a

consciência desperta, a escuridão desaparece! – Ela concluiu.

– Você já esteve, algum dia, na rocha onde a luz aparece?

– Ah! A pedra! – Meru ficou pensando e olhando para o chão, depois respondeu: – Há

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Page 26: Meru a Montanha Sagrada

uma cratera enorme entre a rocha e o caminho que daria acesso a ela. Do outro lado, é

um imenso paredão de pedra. O acesso até ela é muito difícil e perigoso. Aqui vive um

rapaz, experiente em escaladas que quase morreu tentando alcançá-la. Mas, somente

aquele que entrar em ressonância e vibrar, na mesma intensidade, com o “coração” da

montanha, conseguirá, passando pelo seu interior, atingir o alto do rochedo sem encontrar

perigo algum.

Observando a profundidade da fala de Meru, percebi o porquê das pessoas dizerem

que ela era maluca e dizia coisas ininteligíveis. Ela aparentava ter sessenta anos ou mais

e, impressionava-me, a disposição que tinha para plantar e caminhar em elevações que

seriam difíceis para uma pessoa com a idade dela. Mas, concluí que ela era culta, muito

consciente, resumindo, era uma mestra no caminho para o autoconhecimento e eu tinha

encontrado alguém com quem aprender.

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Page 27: Meru a Montanha Sagrada

VI - Valorização do momento.

“A base da vida é a liberdade, o resultado é a evolução e o propósito da vida é afelicidade; a necessidade de sentir-se bem.” (Anônimo)

Estávamos conversando e me preocupei com a noite que se aproximava. A choupana

era pequena e não queria dar trabalho àquela amável mulher. Fiquei pensando como vivia

sozinha, uma senhora de idade avançada, sem nada temer? Não contive a curiosidade e

indaguei:

– Meru, você não sente solidão vivendo longe do convívio social?

– A solidão é mais aparente do que real, porque a necessidade de fazer o bem atrai a

ajuda misteriosa de espíritos leais que aspiram a Verdade. O medo e a solidão se

originam das emanações negativas do coração dos homens. É a nossa alma que permite

a existência desses males, nos convertendo naquilo que pensamos. Devemos, então,

transmutar a sombra em luz para que a solidão deixe de existir.

Enquanto refletia na importância das palavras ditas, alguém chegou de repente na

entrada da choupana e chamou:

– Meru, você está precisando de alguma coisa?

Fiquei surpresa, pois achei que ela vivia sozinha ali e era a voz de um homem...

Pensei: teria marido ou filho talvez. Lembrei-me dela ter dito que ali vivia um rapaz que

quase tinha morrido tentando escalar a montanha, seria esse o rapaz?

– Entre Agnos, venha conhecer nossa amiguinha que chegou hoje, fascinada pela

magia da montanha!

Um jovem rapaz, de pele amorenada pelo sol, cabelos compridos, estancou na

entrada e ficou me olhando admirado.

– Essa é a Rami! - disse Meru, demonstrando grande alegria em seu semblante - Não

fique aí parado e venha cumprimentá-la! Afinal, não é sempre que recebemos visitas por

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Page 28: Meru a Montanha Sagrada

aqui. Devemos elogiar a coragem e a ousadia desta jovem por ter se aventurado sozinha

nestas matas. A pessoa que devota sua vida para atingir o conhecimento de seu próprio

ser, é porque possui virtudes sagradas e sua conduta e contatos, serão também

sagrados.

O rapaz era um pouco tímido e estava encabulado em me ver ali.

– Obrigada pelos elogios Meru! Como vai Agnos? – cumprimentei o rapaz, tentando

analisar e entender sobre mais esse enigma.

– Estou bem! – respondeu desajeitado – Você é corajosa mesmo e teve muita

proteção para chegar até aqui. Fico contente por ter conseguido! Mas...Vim apenas saber

se Meru precisa de alguma coisa. Já estou indo para minha cabana.

– Ele tem me ajudado muito aqui: corta lenha, cuida dos animais, planta e colhe

quando preciso e parece gostar do que faz. Não estou precisando de nada agora, Agnos,

mas, amanhã, bem cedinho, quero você aqui para tomar o café junto conosco, está bem?

Ele sorriu encabulado e confirmou o convite.

– Você mora longe daqui? – perguntei percebendo que ele era de pouca conversa.

– Não, não, trezentos metros, mais ou menos, é pertinho. – Então, boa noite para

vocês, durmam bem! – disse meio desajeitado.

– Boa noite, Agnos! Amanhã quero conhecer mais sobre a montanha.

Não quis perguntar sobre o rapaz, deixaria para o dia seguinte. Já era suficiente tudo o

que tinha ocorrido para um só dia. Meru ajeitou algumas mantas no chão sobre um

colchão de palhas secas de milho, perto do fogão, e disse que eu poderia dormir ali.

– Sinto muito Rami pela falta de conforto, mas é o que tenho.

– Não se preocupe, está muito bom! Você é muito agradável e me sinto bem assim.

Boa noite, Meru, até amanhã!

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Page 29: Meru a Montanha Sagrada

VII - O orgulho mostra o inferno.

“Transformando a nossa energia interna, limpamos a energia no ambiente em quevivemos” (Serge Kahili King)

Dormi pesadamente, não senti diferença alguma entre um colchão de espumas e

aquele feito de palhas secas. Quando abri os olhos, o dia já havia clareado. Fiquei

ouvindo o canto dos pássaros, eram muitos. O perfume suave da mata penetrava no

ambiente, deixando-o leve e agradável. Ouvi os passos da Meru saindo para o quintal e

conversando baixinho com alguém...

Fingi que ainda dormia e tentei decifrar o que ela falava.. Só poderia ser o Agnos que

lhe perguntava:

– Como ela chegou até aqui? Você que a trouxe?

– Não, ela veio pela própria vontade. Eu apenas a convidei, pois soube que era “filha

da montanha” também.

– Como soube disso, sem conhecê-la? – perguntou sem conseguir entender a

situação.

– Ela se aproximou de mim na praça dizendo ter visto uma luz azulada, lá no alto da

rocha. Tudo está em sintonia, em sincronia, no universo, não existindo nada que esteja

isolado. A vontade divina dirige o escolhido a seu destino de elevação.

– Gostaria de um dia entender também o enigma dessa montanha e saber o que ela

contém lá dentro. – ele disse em tom meditativo.

– Não se preocupe, Agnos! Rami irá conhecer o “coração” da montanha porque está

sendo orientada para isso e você aguardará seu mestre, com paciência e alegria, que lhe

dirigirá os passos com sabedoria no momento adequado.

– Então, ela ficará morando aqui?

Ouvi Meru sorrindo baixinho. O que sabia ela de mim para dizer estas coisas? Seria

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Page 30: Meru a Montanha Sagrada

ela uma profetiza?

Agnos se aproximou de mim e ficou me olhando. Abri os olhos como se estivesse

acordando naquele instante.

– Bom dia Rami! Como passou a noite? Trouxe isso para você.

Ele estava com um ramalhete de flores do campo e me ofereceu um pouco ruborizado.

– São lindas! Você é muito gentil, obrigada!

Meru sorria satisfeita.

– São lindas e perfumadas! Agnos tem bom coração e vai levá-la para conhecer

muitos lugares daqui, mas, primeiro vamos comer alguma coisa.

Depois de ter saboreado as deliciosas frutas que Agnos trazia todas as manhãs para

Meru, saímos. Eu estava ansiosa para conhecer mais sobre a montanha e Agnos seria a

pessoa certa para me dar as informações que desejava. Meru não quis ir conosco,

dizendo ter alguns afazeres na horta.

Seguimos pelo lado de trás da choupana, por uma trilha que dava acesso à face

oposta da grande montanha. Deste lado, viam-se pedras enormes. Fomos subindo por

elas até atingirmos uma grande plataforma, onde se podia ver uma vasta planície se

estendendo ao longe.

– Que vista maravilhosa! – exclamei extasiada – Você já veio aqui muitas vezes?

– Venho sempre. É um bom lugar para meditação e para valorizar nossa existência.

– Você é filho da Meru? – perguntei, pois nada sabia sobre eles.

– Não, mas a tenho como minha verdadeira mãe. – respondeu achando graça da

minha pergunta.

– Então como você veio morar nessa montanha? Meru já vivia aqui? Como a

conheceu? – eu estava muito curiosa a respeito de tudo e estava querendo saber tudo

rapidamente.

– Calma! – estranhou Agnos – Vou responder uma pergunta de cada vez... Eu sempre

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Page 31: Meru a Montanha Sagrada

gostei de escalar montanhas, rochedos, fazer trilhas. De enfrentar os perigos que

surgem... No mapa, localizei esta que possui uma altura razoável para ser escalada e que

não fica tão distante da cidade. Resolvi vir aqui num feriado prolongado. Chegando aqui,

perguntei aos moradores como faria para chegar até a rocha em forma de pirâmide. Eles

quiseram saber qual era a minha intenção de ir até lá. Então, me desaconselharam

dizendo ser muito perigosa de escalar e que ninguém ainda havia conseguido chegar ao

topo. Demonstravam certa repugnância pelo local.

– Exatamente o que disseram para mim! Eles temem essa montanha e querem ver

todos afastados dela como se fosse uma praga que cairia sobre eles...

– Ao invés de sentir medo, - continuou ele - pelo contrário, fiquei incentivado a

enfrentá-la. Ninguém se arriscava a ser meu guia. Resolvi escalar sozinho, aliás, sempre

fui sozinho em minhas aventuras.

Percebi que Agnos estava mais solto para conversar à medida que ia descrevendo

suas experiências, ficava mais entusiasmado como se as tivesse vivenciando

novamente...

– Atravessei por trilha estreita margeando o pântano, cheio de víboras que você já

deve conhecer, cheguei a uma grande pedra com figuras desenhadas nela. Achei que era

brincadeira de alguém, pois havia dois sóis: um sorrindo, apontando para a direita e outro,

triste, apontando para a esquerda.

– Você chegou na mesma pedra, o mesmo ponto de decisão em que eu também tive

de passar... E qual você seguiu? O que era alegre, naturalmente!

– Não, porque eu queria muito chegar naquela rocha estranha e o caminho mais

próximo era o da esquerda, o que o solzinho triste apontava, aliás, estava ali para isso e,

também, porque não acreditei nas mensagens contidas nos desenhos.

– Então você conseguiu atingi-la? Conta-me como é lá! Estou muito curiosa em saber.

– Não, não consegui. O que falaram para mim era realmente verdade. Ninguém

conseguiria chegar até o topo por aquele caminho. Há uma enorme cratera dificultando o

acesso.

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Page 32: Meru a Montanha Sagrada

– Meru disse mesmo que era impossível por esse caminho...

– Você teve a ajuda de um cão como seu guia que já conhecia Meru, pois talvez

tivesse arriscado sua vida, como arrisquei a minha.

– O que me favoreceu mesmo foi querer, primeiro, encontrar Meru e saber se ela vivia

aqui para me explicar sobre a enigmática luz e, depois saber como chegar até lá, pois não

conheço nada desse lugar, por isso me dirigi, intuitivamente e acreditando também no

instinto do cão, para o lado oposto. – Mas, então, o que aconteceu depois?

– Estava escurecendo rapidamente. O sol já havia desaparecido atrás da montanha.

Pensei ter chegado como havia calculado, numa parte mais plana onde iria acampar.

Pendurei a mochila num galho e com um facão, comecei a limpar a área para montar a

barraca. De repente, senti faltar o chão sob meus pés. Eu estava muito próximo do poço e

não percebi. O solo cedeu com o meu peso e fui tragado pela cratera...

Eu estava horrorizada com a descrição dele e não sabia nem o que imaginar, pois teria

acontecido o mesmo comigo se não fosse o Tói e o desejo de encontrar Meru...

– E então? – continua.

Ele ficou em silêncio e pensativo por alguns segundos... depois continuou, mas

percebi que se emocionava ao relatar e não gostava de relembrar desse infortúnio.

– Quando senti que estava escorregando, tentei segurar em algum arbusto na borda,

mas nada, fui me esfolando pela parede do buraco até que meus pés encontraram um

apoio. Não conseguia pensar em nada naquela hora. Só achei que meu fim estava bem

próximo. Fiquei imóvel. Ouvi muito profundo, as pedras que rolaram comigo baterem na

água. A escuridão era total. Tentei, vagarosamente, afastar um dos pés para testar a

extensão da pedra que me apoiava. Percebi que era muito estreita e era melhor não me

mexer. Fui, com a mão, apalpando a parede, havia pequenas cavidades, onde procurei

apoiar meus dedos. Minhas pernas doíam muito, pois tinha me ferido na queda. Só então

percebi que estava sem o equipamento que trouxera.

– É mesmo! Você tinha deixado a mochila com o equipamento pendurado na árvore

para poder limpar a área... – estava desesperada ouvindo, como se tivesse acontecido

comigo.

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Page 33: Meru a Montanha Sagrada

– Tentei gritar por socorro, mas quem me ouviria? Senti que não iria resistir por muito

tempo naquela posição e ainda machucado. Cheguei a acreditar que minha existência

estava mesmo no final. Ficaria ali, sem me mexer, até a pedra se soltar e me atirar no

abismo. Eu que tinha experiência e todo um equipamento para escalar paredões, estava

ali, totalmente invalidado, sem uma corda sequer!

– Você deve ter sofrido muito.

– Foi horrível mesmo. Depois comecei a transpirar demais. O suor corria pelo meu

rosto e era obrigado a beber daquela água salgada. As pernas e os braços estavam

dormentes. Nesse momento, senti dó de mim mesmo e chorei. Pensei em tudo que havia

feito até então. Seria um castigo? Nunca havia feito mal a ninguém, não merecia aquilo!

Veio a febre. Comecei a tremer de frio. Não estava aguentando mais. Tentei mudar os

pés, lentamente, e me virar. Fui agachando, bem devagarzinho, até conseguir sentar na

pedra. Agora era esperar que ela se soltasse. Mas não... Parecia estar firme o que me

deu certo alívio. Notei que um forte vento frio soprava perto de mim. Tateei a parede e

senti que aquele vento vinha de uma cavidade. Estava bem perto dela, talvez fosse uma

galeria, não tive certeza e era melhor não querer saber.

– Você sentiu medo em algum momento?

– O medo me dominava por inteiro. Já tinha perdido a noção de tempo e até mesmo

quem eu era. Senti pequenos insetos caminhando pelos meus braços e pescoço. Não

movi um dedo sequer para espantá-los, poderiam ser algum escorpião ou aranha. Devo

ter adormecido, pois perdi os sentidos por algum tempo. Quando abri os olhos

novamente, já ouvia algum pio de pássaro bem distante, depois outros mais próximos e

logo, uma sinfonia de todo lado e de todo tipo. Aquilo soou como ajuda da natureza a meu

favor. Então gritei bem alto, no meu desespero: pássaros tirem-me daqui! O que eu queria

realmente gritar era para que a Divindade me socorresse. Mas o orgulho ainda me

impedia de ver minha pequenez...

– Você deve ter ficado desesperado! Não era pra menos.

O dia clareava finalmente. Consegui ver, por entre as ramagens, um pedaço do céu

contrastando com o inferno em que estava. Senti, naquele momento, toda a inferioridade

do ser humano, diante da grandiosidade da Natureza. Foi, só então, que entendi a

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ignorância de quem acha que o dinheiro compra tudo. Estamos fascinados pela matéria e

pela tecnologia que prometem tornarem-nos felizes e poderosos. Mas, a grande verdade

é que há o Ser Divino como base de tudo. Sem Ele, nada existe!

– Você acredita, então, que o que aconteceu lhe serviu como aprendizado?

– Sem dúvida! Sempre me achei muito inteligente, auto-suficiente, capaz de enfrentar

qualquer dificuldade. E não conseguia, naquele momento, me salvar? Não enxergava a

verdade que estava encoberta pelo meu orgulho. Dentro daquele poço, adquiri mais

consciência do que em qualquer outro lugar que já havia vivenciado, ou por qualquer

investigação livresca até aquele momento. Porém, não acredito que haja castigos para os

homens, apenas ele convive com suas próprias obras e se corrige, entre acertos e erros,

isto é, colhe o que plantou.

– É por isso que resolveu viver de modo mais simples junto à Natureza?

– Exatamente! Dizem que quem não ganha consciência através da inteligência, ganha

através da dor. Eu sempre achei que venceria qualquer montanha, julgando poder

dominar qualquer situação. Enfim, o homem sempre dominaria e venceria a Natureza.

Quanta ignorância! Nesse instante entendi o quanto era fraco, sem poder algum, nem

para sair de um poço. Foi realmente uma grande lição!

– Às vezes, grandes lições estão a nossa disposição todos os dias, porém, nem

sempre podemos vê-las. É preciso estar atentos quando elas surgem para poder

aproveitá-las, caso contrário, terão sido apenas acontecimentos, nada mais.

– É verdade, há várias opções de escolha em nossas vidas. As oportunidades para o

entendimento batem à nossa porta a todo o momento. Se escolhermos não abrir, elas

retornam, e retornam, às vezes, violentamente, até as enxergarmos. Ninguém escapa!

Todos terão de atingir a Unidade!

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VIII - A humildade mostra o caminho.

“Cada mudança de consciência que vivenciamos, vibra em toda a rede de vida emuda a consciência coletiva do planeta.” (Serge Kahili King)

Estava começando a entender como certas situações difíceis podem nos remeter a

uma interiorização, nos levando ao autoconhecimento.

– Gostaria que me explicasse uma coisa: como conseguiu sair daquele poço?

Eu estava sem esperança de sair vivo dali. Meus sonhos de um grande futuro tinham

rolado para dentro do precipício. Estava realmente despido de toda arrogância e de todo

egoísmo que possuía. Esvaziei minha mente de desejos e ambições, me senti um saco

de ossos, sem valor nenhum. De repente, ouvi um barulho de mata sendo cortada. Fiquei

atento ao barulho. Estaria delirando? O barulho agora estava mais próximo. Poderia ser

algum animal feroz que tinha me farejado, pensei. Perdi logo o receio, pois pior do que me

encontrava era impossível ficar. E, além disso, nenhum animal arriscaria descer ali para

me atacar. Tive ímpeto de gritar por socorro. E gritei o mais forte que pude. Minha voz,

emitida dentro do poço, foi redobrada pelo eco. Olhei para o alto e ouvi o som de arbustos

sendo arrastados... – Ajude-me! - Aqui embaixo! - gritei. Não conseguia distinguir o vulto

que tentava me achar, mas logo ouvi uma voz feminina ao longe dizendo que tivesse

paciência e que voltaria para ajudar.

– Que alívio você deve ter sentindo naquele momento...

– Não foi fácil esperar. Os segundos pareciam infinitos. Bem, pelo menos, alguém já

sabia que eu estava lá dentro. Logo ouvi um barulho novamente, era a mesma voz que

dizia: pegue esta corda que você mesmo trouxe, tente se afirmar com ela, pois você deve

muito bem saber como usá-la. Ela tinha encontrado, na mochila, meus equipamentos de

escalar e parecia saber exatamente o ponto onde eu estava. Fiz o que me mandava, pois

queria ficar livre daquele inferno o mais rápido possível. Respondi-lhe que já estava

pronto, mas não conseguia me levantar dali. Ela pediu-me que fizesse o máximo esforço

possível e tudo ficaria bem. Logo senti que estava sendo puxado, aos solavancos. Meus

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membros doíam demais, mas mesmo assim tentei me apoiar nas fendas das rochas por

onde ia esbarrando.

– Você teve maus momentos, mas compensou. Era Meru? Acredita em milagres

agora?

– Ah! Jamais poderia imaginar que uma senhora com certa idade, pudesse entender

de encordoamentos e, além de tudo, me salvar. Estava tão atordoado que mal conseguia

raciocinar. Não sei nem se cheguei a pensar em milagres, no momento, mas agora, posso

lhe assegurar que mistérios existem e não sabemos explicá-los.

– Meru é mesmo especial, ela é tão enigmática quanto a montanha e por isso as duas

são tão iluminadas.

– Ela me salvou. Chorei muito nos braços dela. Ela me acalmava enquanto ia fazendo

uma maca de galhos trançados e amarrados com cipó, com uma habilidade que nunca

tinha visto, depois me arrastou até sua casa, dizendo que iria cuidar dos meus ferimentos.

Perguntou-me se queria avisar alguém da cidade para pegar-me. Meus ferimentos não

eram tão graves, ela disse que em poucos dias estaria curado.

– E você não precisou de cuidados médicos?

– Meru fazia uma espécie de pasta de ervas. Eram cicatrizantes e anti-inflamatórias.

Em menos de duas semanas não havia mais ferimento algum.

– Que felicidade ter Meru naquele momento, como se fosse mandada por algum Ser

Divino! Mas... E os seus pais, não sentiram sua falta?

– Depois de ter escapado dessa, prometi para mim mesmo que voltaria para morar na

montanha, até o fim de meus dias. Não deixaria Meru, que é a mãe que me salvou e me

deu a vida novamente e a montanha, que é minha mestra que me ensina a viver.

– Seus pais souberam dessa sua decisão?

– Quando estava podendo andar, fui à casa de meu pai e minha madrasta, pois não

morava mais com eles, e dei meu novo endereço. Fechei a conta bancária, pedi demissão

de onde trabalhava, comprei alguns utensílios de cozinha e ferramentas de plantio. E aqui

estou há três anos... E você, Rami, pensa em ir embora depois de ter conhecido Meru?

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Page 37: Meru a Montanha Sagrada

– Tenho poucos dias de férias e algo de muito estranho acontece nesse lugar. Ainda

não decifrei bem esta montanha... Talvez tenha de fazer como você fez, isto é, largar tudo

e procurar onde mais se identifique consigo mesmo. Moro sozinha, estudo e trabalho

para me manter. Não gosto do que faço e vivo irrequieta, sempre buscando alguma coisa

que possa preencher um vazio que sinto, muitas vezes, é um desânimo de existir... enfim,

procuro a felicidade.

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Page 38: Meru a Montanha Sagrada

IX - As experiências são individuais.

“Os escolhidos são aqueles que preparam a terra e jogam as sementes e nãoesperam os outros fazerem.” (Ana L. Marins)

As reflexões surgiam em minha mente e, instantaneamente, eram remetidas aos

acontecimentos. Pouco a pouco, iam formando um quadro mais amplo. A descrição que

Agnos acabara de fazer era esclarecedora para mim: ele tinha passado por uma

experiência de transmutação de consciência, ou ainda, por um renascimento. Dizem que

são vários os caminhos para se atingir a mesma finalidade, porém, cada indivíduo tem

uma senda própria e única, diferente dos demais.

Tudo que um ser sofre, assim como tudo o que faz, constitui uma modificação de si

mesmo. Não pode haver nada que seja puramente acidental. Mas, ainda havia muita

dúvida em minha mente e muito mistério em tudo aquilo para ser desvendado. Minha

curiosidade não me dava descanso, era algo intrigante que não iria parar tão cedo...

– Depois que você se restabeleceu, não quis tentar subir, na rocha, por outro lado,

talvez?

– Não! Jurei para mim mesmo, que nunca mais pegaria nos equipamentos para

escalar qualquer montanha, mesmo a menor delas. Um dia, fiquei observando o paredão

que se opõe ao precipício. Deve ter mais ou menos trinta metros de altitude, nem é tão

perigoso... Lá no alto, quase no topo dele, há uma fissura, parecendo mais uma

cavidade... Talvez desse para subir facilmente por ali... Mas não quero...

– Ouvi Meru dizer que há um “coração” dentro da montanha... O que ela quis dizer

com isso? Você sabe alguma coisa a respeito?

– Meru é misteriosa e deve saber muitas coisas e não nos conta. Talvez ainda não

seja hora de dizer. O mestre só aparece quando o discípulo está pronto... Ela é um

espírito leal que aspira a Verdade, ao bem de seus semelhantes e a eliminação dos males

que os homens sofrem pela própria culpa.

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Page 39: Meru a Montanha Sagrada

– Você viu também a luz que aparece no alto dessa rocha?

Agnos ficou me olhando com admiração, pois já sabia que eu tinha ido até ali atraída

também pela luz.

– Vi sim! – disse mais descontraído – melhor dizendo, eu a senti muitas vezes desde

que moro aqui. É magnífica! Divina! Parece estar sempre a nos proteger. Eu e Meru

oferecemos nosso agradecimento, a cada manhã que ela surge.

Fiquei pensativa em ouvir aquilo e quis saber se realmente ele tinha visto...

– Por que a sentiu, o que significa isso?

– Meru me disse que há pessoas que a veem e outras, simplesmente, a sentem

energeticamente. Porém, todo pensamento que se eleva sobre a mesquinhez das

preocupações egoístas, tende a se relacionar com essa fonte de iluminação.

– Mas... Não são todas as pessoas que conseguem vê-la? Ainda não entendi por quê.

– Acredito que algumas pessoas sejam mais sensíveis que outras. Acho ainda que

exista, dentro da rocha, alguma irradiação, como se fosse o aura da montanha. Penso

também que esta rocha é “transmissora” de energia e que pertence ao elo de uma “rede”,

cujo ponto de partida está fora, além da humanidade.

– Como? Além da humanidade? – agora que não estava entendendo nada mesmo...

– Estou dizendo que esta montanha deve estar vinculada a uma influência espiritual,

por isso ela é sagrada.

– Meru é que lhe fala isso?

– Sim ela diz que está vinculada a essa influência e, quando isso acontece, há uma

realização interna que não se perde jamais. Precisamos voltar, Meru poderá ficar

preocupada.

– Vamos voltar! Mas, ainda quero chegar ao mais alto dessa montanha... Há alguma

coisa lá que me intriga e me atrai. Você também não sente o mesmo?

– Sim, era o meu objetivo. Mas aconteceu aquele acidente. Meru me diz sempre que

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Page 40: Meru a Montanha Sagrada

devo esperar pacientemente, um dia meu mestre interno me dirá como realizar esta

caminhada. Será através da humildade e não pela arrogância.

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Page 41: Meru a Montanha Sagrada

X - A iniciação, o começo.

“Fazer é uma função do corpo, ser é uma função da alma. Não há nada a fazeralém de ser.” (Anônimo)

Passei a refletir sobre energias recebidas e enviadas. E percebi que deveria ser mais

responsável pela energia que enviava ao mundo. Saber transmutar a energia dos

pensamentos, emoções, atitudes, torna-se uma prática espiritual que traz harmonia e

acelera a evolução.

Nossa mente afeta tudo o que está em volta e, assim, estamos refazendo o mundo a

cada instante. Pensar é afetar! Se mudarmos nossos pensamentos, mudaremos o mundo.

A mente pacífica envia energia de vida através da intenção. A mente destrutiva faz o

contrário. Para ocorrer uma transmutação, o pensamento precisa estar altamente

motivado e com um alvo bem definido. Era isso afinal: alvo bem definido!

Meru nos aguardava em frente da porta. Tói veio ao nosso encontro, todo feliz.

– Olá meu amigão! Com saudades? - passei a mão no pelo dele.

Agnos se adiantou em relatar à Meru sobre nosso passeio:

– Fomos do outro lado da montanha, mostrei para Rami que não há como chegar até

o cume, o paredão é muito íngreme e exige habilidade para escalá-lo.

– Você vai chegar lá Rami, não se preocupe tanto. O seu caminho individual é esse e

é o caminho de todo ser humano. Descobrir o interior da montanha é atingir seu próprio

interior. O mais alto grau é a iluminação. Só a obtém de forma individual.

– Estou com um objetivo bem definido: quero descobrir meu próprio ser, quem

realmente sou, através do coração da montanha...

– O caminho para a luz é um caminho de confronto com a sombra. O universo é de

contrastes de forças opostas, as da escuridão e da luz. São elas que modelam a

consciência humana.

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Page 42: Meru a Montanha Sagrada

– Tudo isso Meru, parece muito complicado, mas entendo que somente a vivência

poderá me esclarecer. É um caminho individual e estou decidida a enfrentá-lo. Saciarei a

sede de minha alma. Quero encontrar a verdade!

– O anseio profundo e persistente de conhecer e experimentar a verdade, leva à

libertação de si mesma. Não se deve apenas ouvir ou ler os ensinamentos. O que se

ouviu ou leu deve ser analisado e gravado na mente para, mais tarde, ser experimentado

e expressado em pensamentos, palavras e ações. Só assim os ensinamentos poderão

fluir através de você. A verdade surge da rejeição e neutralização aos opostos, por ser

ela o puro Amor. Não se pode confundir desejos e paixões com Amor, porque a Verdade e

o Amor não possuem opostos.

– Como é essa entrada para o interior?

– A passagem é estreita e escura e o inferno surge para amedrontar. Primeiro você

passará pela obscuridade ou “descida ao inferno”, ou seja, seres elementais de planos

mais densos ou mesmo do Astral, estarão atormentando sua mente para lhe tirar a

atenção, neste estágio você enfrentará o medo. Encontrará a seguir a purificação pelos

“elementos” da Natureza: terra, água, fogo e ar. Se conseguir penetrar o seu interior,

deverá conceder generosamente aos outros o conhecimento, a habilidade e o

discernimento que adquiriu. Para promover o melhor interesse da humanidade, deverá

cultivar o sagrado impulso de servir aos outros e a atitude de compartilhar. Somente

assim poderá ajudar aos que estão aptos para esse mesmo caminho.

Perguntei no sentido físico, pois queria muito saber onde era a entrada para a caverna

e Meru me entendeu, mas respondeu no sentido oculto também.

Meru falava em tom sacerdotal. Estava séria e compenetrada, parecia estar ouvindo

alguma voz interna que ela somente reproduzia. Fiquei estarrecida, pois nunca tinha

ouvido coisa igual. Num instante, tive a impressão de estar em outro plano, muito mais

sutil. E o que tinha acontecido com o mundo profano? Então ela continuou...

– Você Rami, aspira ao verdadeiro conhecimento dos mistérios. Passará por

experiências de iniciação. A meta de todo indivíduo é a transformação interna, onde a

pessoa se esforça para desenvolver seu caráter e ampliar seus deveres, libertando-se de

apegos influenciados pelo seu ego. Há, portanto, na iniciação, um vínculo com a

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Page 43: Meru a Montanha Sagrada

sabedoria tradicional, supra-racional e não humana.

– O que significa iniciação, que você fala?

– Iniciação, deriva do latim “initium” que significa “entrada”, isto é, a entrada em uma

nova existência onde serão desenvolvidas possibilidades de uma ordem diferente

daquelas que estão limitadas à vida do homem comum. É a transmissão inicial de uma

influência espiritual. A iniciação é feita na pirâmide que caracteriza a jornada do indivíduo

desde a base do quaternário inferior até o cume da tríade superior, onde se confundem o

ser e a divindade.

– Então fui atraída a essa montanha para receber a iniciação?

– A montanha é símbolo do triângulo e por isso é considerada sagrada. Sua alma

escolheu e entrou em ressonância com ela. E ainda por efeito de seu trabalho pessoal de

autoconhecimento, onde desenvolveu uma mentalidade completamente diferente da

mentalidade profana. Porém, toda iniciação é dirigida por divindades que levam o

escolhido a seu destino de elevação e este será considerado “o eleito”.

– Então é difícil atingir este novo estado de conhecimento dos mistérios? – não estava

ainda claramente explicado, para mim, era estranho e ao mesmo tempo, muito atraente.

– Para passar do exterior para o interior, terá que transferir seu centro de consciência

do cérebro para o coração. Se usar o cérebro, isto é, tentar entender racionalmente,

surgirá o medo e a queda ao inferno ou plano inferior será fatal. Mas, por outro lado, se

usar o coração, isto é, os sentimentos mais puros, encontrará o caminho de acesso para

a luz. Mas, purifique o seu coração antes de ver a luz; toma cuidado, pois se você não for

límpida e transparente como o cristal, olhará tudo através do véu de seu ego. Transmute

toda energia negativa em energia de amor e luz. Quando se está iluminada pela própria

luz espiritual, já estará protegida contra a negatividade a sua volta.

– Você é muito enigmática Meru, disse Agnos, assim parece mais difícil chegar até lá!

– As coisas mais belas aparentam dificuldade em serem atingidas, mas estão tão perto

de nós e são tão simples que não a vemos. A felicidade só será conseguida quando o

indivíduo superar a ignorância. Estamos acostumados a complicar nossas vidas... E com

toda essa explanação o dia se foi... Agora comam alguma coisa e vamos descansar!

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Page 44: Meru a Montanha Sagrada

XI - O templo da sombra escura.

“Liberdade significa libertar-se da vinculação com seu ser inferior.” (Serge K. King)

Mal amanheceu Agnos nos chamou trazendo as frutas e legumes, como de costume.

Meru, com seu largo sorriso, agradeceu e pediu que entrasse para a refeição matinal.

– Bom dia para vocês! Adoro ver seu rosto sempre alegre e sorrindo, Meru.

– Devemos cultivar o riso. Se nosso caminho espiritual não conduzir à alegria, então

devemos mudá-lo. Sem paz e alegria, a palavra verdade torna-se um conceito vazio.

– Bom dia Agnos! – antes mesmo de começarmos a refeição, determinei o que faria

durante o dia - Hoje gostaria de testar seus equipamentos de escalar.

– Para quê? – perguntou desconfiado.

– Estou decidida! Quero conhecer o precipício!

Agnos mudou o semblante: de alegre passou a preocupado. Eu sabia, muito bem, que

ele não queria mais voltar naquele local. Porém, dentro de mim, algo me puxava para lá.

E, ainda, as palavras da Meru, descrevendo o caminho iniciático, não me deixavam mais

dúvidas que era mesmo, naquela cratera, que estaria o início.

– Não! Não quero voltar lá! Seria como encontrar o inferno novamente!

– Mas, foi lá que você passou pela provação e entendeu a humildade, não foi?

– Ainda não me sinto atraído e não tenho vontade de rever aquele poço. Aquele lugar

me causa muito medo ainda...

– Está bem Agnos, não poço força-lo a fazer o que não pode, porém, o caminho é

individual, como afirmou Meru. Então devo ir sozinha!

– Ninguém pode dar mais do que tem, nem receber mais do que pode. A capacidade

assimilativa de cada alma determina sua situação no universo. Fique tranquila! Seu

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Page 45: Meru a Montanha Sagrada

coração lhe ensinará o caminho certo. Não se preocupe! O ser humano tem três

instrumentos principais para a sua elevação: a mente, a inteligência e os sentidos.

Quando a mente se deixa escravizar pelos sentidos, a pessoa se deixa prender e

subjugar. Quando a mente é regulada pelo intelecto, pode se tornar ciente de sua

realidade. É por isso que a mente é considerada capaz de causar tanto a escravidão

quanto a liberação. É ela que se deixa amarrar aos desejos sensoriais e, também, se

desamarrar, mas se a pureza a dominar, então, alcançará a plenitude.

– Está bem! Vou acompanhar você até lá. É muito perigoso e não é bom ir sozinha.

Você não acha o mesmo Meru?

Agnos estava silencioso e pensativo. Ao mesmo tempo que estava contrariado, no

íntimo, ele parecia estar querendo provar alguma coisa para si próprio... Não era só para

me acompanhar que ele tinha resolvido ir... Havia nele, talvez, a mesma inquietação que

existia em mim... Reunimos cordas, lanterna, cantil com água, algumas frutas e pão.

Despedimos de Meru e saímos. Tói nos acompanhou fielmente, indo a nossa frente, como

se soubesse, antecipadamente, de nosso objetivo. Meru acenava da porta, parecia estar

cumprindo um dever, ou seja, fazer com que outros atingissem também a bondade, a

compaixão e o amor por todos os seres viventes.

Depois de pouco mais de meia hora de caminhada, resolvi puxar conversa.

– Quer parar um pouco para descansar? Você está muito quieto, o que está

acontecendo?

– Meru fala umas coisas pra gente ficar pensando... Vamos continuar andando...Não

estou cansado, você está?

– Não... O que ela falou que te fez ficar pensando?

– São três anos de convívio com ela... sempre conversamos sobre diversos assuntos,

muito profundos também... mas, alguns dias antes de sua chegada, ela tem me falado de

grandes mudanças...

– Que tipo de mudanças? Ela disse alguma?

– Ela não explica detalhadamente e fala muito no sentido figurado... É difícil

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Page 46: Meru a Montanha Sagrada

interpretá-la...

– Mas o que você pressente de tudo o que ela fala?

– Não sei lhe dizer... às vezes tenho a impressão de ser alguma coisa agradável,

outras porém me parecem ser muito tristes...

Andamos mais um pouco e avistei aquela pedra grande com os desenhos indicando

os caminhos. Senti um arrepio, pois me lembrava da descrição da queda de Agnos e todo

seu sofrimento. Ele seguia quieto, tentava disfarçar sua angústia por estar indo

contrariado àquele lugar novamente. Parou de repente e me disse:

– Olha Rami, temos de seguir com muita calma e vagarosamente, porque o terreno

aqui costuma ceder, estamos muito próximos da cratera.

O suor escorria pelo seu rosto e o seu desejo naquele instante, pensei, era de sair

correndo dali o mais rápido possível. Não por medo, mas por horror ao lugar. De longe,

Agnos apontou para a cratera.

– Veja, chegamos! Não dá para continuar. É uma descida e o caminho termina no

precipício.

– Que armadilha! Por isso você caiu...

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Page 47: Meru a Montanha Sagrada

– É horrível! Veja como a boca da cratera é toda coberta pela vegetação que se

entrelaça, deixando-a camuflada... Uma verdadeira armadilha... Não se aproxime! Não

saia de onde você está! Nem tente se mexer! Não acha melhor irmos embora agora

mesmo?

– Calma Agnos, você está muito nervoso! Não se preocupe tanto.

– Olha, aqui é muito perigoso, não percebeu? Vamos voltar agora!

Ele estava desesperado. Eu compreendia sua ansiedade e não era pra menos. O

lugar era horripilante e punha medo, mas eu queria enfrentá-lo assim mesmo.

– Veja estes arbustos estão cortados! Parece corte recente, não acha? Alguém estaria

vindo aqui?

– Só pode ter sido a Meru. Não existe mais ninguém por aqui além de nós. Este é um

lugar temido e nenhum estranho ousaria vir aqui...

– Então ela vem sempre podar o mato? Mas, com que finalidade? Ela nunca comentou

com você sobre esse lugar?

– Alguma coisa ela vem fazer aqui, senão não teria me salvado daquele buraco. Mas,

aqui ela não desce, tenho certeza, pois precisaria da ajuda de alguém para sair. É

impraticável essa possibilidade. Talvez, ela queira evitar acidentes com pessoas ou

animais por isso deixa o caminho visível, só isso.

Não me convenceu! – pensei - Meru é muito reservada e enigmática. Só fala o que é

necessário. Mas, algo como sabedoria tradicional e seres “não humanos”, ou ainda, de

transmissão iniciática de influência “espiritual”. Isso me pareceu hermético demais para

que eu entendesse... Em nenhum momento me repreendeu ou disse para não enfrentar

esse abismo... Se fosse realmente muito perigoso ou impossível, ela seria a primeira a

não me deixar vir... Acredito que haja mesmo algo a ser desvendado nesta montanha e só

poderá ser realizado por mim... Portanto...

– Agnos, pegue as cordas e a amarre àquela árvore! Vou descer e olhar para o fundo

desse buraco!

– Você está louca? Não entende de escalada, nem saberia lidar com os

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Page 48: Meru a Montanha Sagrada

equipamentos. É melhor desistir dessa ideia!

– Não vim aqui para passear, Agnos, tenho um objetivo muito firme e não desistirei

dele tão cedo. Portanto, faça o que lhe pedi, por favor!

Agnos amarrava o cordoamento no tronco, dando muitas voltas e nós, fazia de modo

desesperado e nervoso demonstrando preocupação com minha atitude.

– Segura a corda com coragem! Vou descer de barriga, escorregando, até chegar à

boca do poço, certo?

– Você está maluca? Não faça isso! – ele estava desesperado e não acreditava em

minha ousadia.

Fui escorregando, com a lanterna na mão, e cheguei à boca. Empurrei o mato da

borda e tentei enfiar a cabeça para ver alguma coisa. Joguei o foco de luz na proximidade

da parede. Penetrava pouca luminosidade do sol, escorreguei mais um pouco ficando

com meio corpo dentro da cratera. Era enorme, parecendo mais a garganta de um

monstro.

– Vi a pedra! O som ecoou dentro do buraco.

Era a pedra que serviu de plataforma quando Agnos caiu, não era uma pedra tão

pequena como pensou por isso ele tinha conseguido sentar-se nela. Senti um vento muito

frio subindo lá de dentro, lembrei-me da cavidade com vento que Agnos percebeu existir.

Isso me dava certeza de uma entrada para o interior da montanha.

– Pode me puxar! – gritei.

Fui puxada de supetão e logo estava em segurança.

– Você está bem? – perguntou com voz trêmula. Estava muito assustado.

– É claro que estou, mas você... acho que não está bem.

– Prefiro ir embora. Agora você já viu o que é isso aí. Então podemos sair daqui.

– Que pressa! Vi a plataforma que lhe salvou. Ela é larga e parece ser resistente. Senti

mesmo o vento que você descreveu, talvez seja da cavidade que percebeu haver lá.

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Page 49: Meru a Montanha Sagrada

Então, agora vou colocar o capacete e sentar-me na cadeirinha do encordoamento e

você, com toda sua experiência em escaladas, vai prendê-la com segurança, está certo?

– Nada disso! Não vou amarrar nada! Vamos sair daqui imediatamente! Você viu a

profundidade disso? Se uma pessoa cair aí, não sai nunca mais.

– Não há perigo assim como imagina. A plataforma não está muito profunda. Está a

dois metros, mais ou menos, da superfície. E para você que sempre confiou em seus

equipamentos, saberá muito bem me dar segurança. Qualquer problema é só me puxar e

pronto!

– Não me convenceu! Já olhou e chega!

– Está bem! Então farei tudo sozinha! Dê-me as cordas, mosquetões, mochila,

lanterna e... vou descer e ponto final!

Agnos ficou furioso comigo, mas uma decisão muito forte se apoderou de mim, era

impossível recuar. Não havia medo do perigo, nem do fracasso. Era uma determinação.

Era já outra força que me impulsionava. Eu não saberia explicar o que me encorajava

tanto. Seria essa a mesma força que transmutava a matéria?

– Vai, então! – disse furiosamente - Eu amarro as cordas. Mas não terei culpa alguma

se você se machucar ou, pior, se arrebentar lá embaixo. Você não quer me ouvir.

– Está combinado! – achei engraçado o modo dele e dei muita risada, mas ele

continuou sisudo – Estou descendo, se eu der um puxão na corda, será o sinal para me

tirar, certo?

Fui descendo devagar e logo senti a plataforma de pedra sob meus pés. Apoiei-me

nela com cuidado para sentir se estava firme mesmo. O vento batia frio em minhas

pernas. Focalizei a lanterna e clareei a parede. Havia mesmo uma cavidade estreita por

onde saía aquele vento. Pensei se há vento, então há ligação com alguma outra cavidade

exterior da montanha. Olhei para baixo da pedra onde pisava e não consegui ver nada.

Era uma escuridão total. Deveria ser muito profundo mesmo.

– Agnos vou entrar na cavidade, é provável que tenha saída do outro lado – gritei, mas

minha voz ecoava e não tinha certeza se ele tinha me ouvido.

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Page 50: Meru a Montanha Sagrada

– Saia daí Rami! Vou puxá-la, está bem?

Senti que Agnos estava puxando a corda, tentando me tirar dali. Rapidamente,

desfiz-me de parte da corda que se soltou e entrei pela cavidade, sem muito esforço. Não

tenho certeza se ouvi muito bem, mas pareceu-me que Agnos me chamava desesperado

ao longe...

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Page 51: Meru a Montanha Sagrada

XII - Aprendendo a elevar a vibração.

“Cada ser que desperta é uma luz acesa na escuridão terrena a iluminar os queainda jazem na frieza das trevas.” (Amit Goswami)

Entrei na cavidade agachada. Clareando com a lanterna percebi que se estreitava

ainda mais. Deitei-me e me arrastei, sempre iluminando as proximidades. O vento

soprava sem parar. A escuridão era de por medo em qualquer pessoa. Lembrei das

palavras de Meru me alertando para não dar atenção às tagarelices da mente, que só

ocultavam as soluções, causando confusão e fazendo com que surgisse o medo. Era para

transmutar a negatividade em energia de amor.

Não poderia existir ali nenhum animal ou planta devido à escuridão, procurei não

imaginar encontrar nenhum deles. O chão, as paredes e o teto eram de pedra; eu estava

mesmo penetrando no interior da montanha. Sempre clareando com a lanterna, percebi

que a galeria começava a se alargar. Consegui chegar numa câmara e já estava mais

espaçosa. Fiquei em pé. A galeria seguia agora com degraus feitos na própria pedra,

comecei a subir. Outra câmara maior surgiu. Fiquei deslumbrada! Era toda desenhada,

nas paredes e no teto. Era uma maravilha! Numa parede lateral, havia toda uma

simbologia que não tinha nada de tradição indígena ou africana; eram círculos em torno

de um sol central lembrando o nosso sistema solar, porém com um detalhe: um planeta

de órbita diferente, vindo em direção ao sistema. Ao lado, era um desenho representando

a constelação de Órion. Eu já tinha lido sobre esta constelação em um livro esotérico em

que mostrava as quatro estrelas maiores (Betelgeuse, Bellatrix, Rigel e Saiph), formando

um quadrado, representando o mundo físico; e as “três Marias” no cinturão de Órion

(Mintaka, Alnilan e Alnitaka), representando o mundo trino, superior. Noutro lado via-se

uma circunferência com muitos raios e um ponto central. Em minha mente ressoou, como

se uma voz estivesse me sussurrando: “contemple a Verdade que está em tudo, mas o

olho da ignorância não a descobre, não a percebe semelhante a um homem cego que

não vê a luz sensível.”

Num canto, no chão, estavam alguns objetos de argila. Peguei um prato e observei de

perto. Era igualzinho aos pratos que Meru utilizava! Não quis tirar nenhuma conclusão de

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Page 52: Meru a Montanha Sagrada

imediato, para não desviar minha atenção do caminho e, assim, continuar usando

somente o coração.

Avistei outro corredor com mais degraus. Percebi que teria de subir muito ainda. O

vento passava assoviando por entre os corredores. Continuei andando pela galeria, ora

em pé, ora agachada. Num patamar lateral, com um metro e meio de altura, mais ou

menos, vi que havia outro salão, bem mais amplo. Dei um impulso com o corpo e

consegui atingi-lo. Clareei ao redor e observei algo diferente, aproximei a luz e fiquei

horrorizada com o que vi: era uma ossada humana encravada em uma cavidade na

rocha. Pensei... aqui seria um ótimo lugar para pesquisas arqueológicas... Ao redor, nas

paredes, mais e mais desenhos estampados. Teria mais ossadas espalhadas? Não fiquei

ali para saber. Desci novamente para o corredor que estava antes. Minha intenção era

chegar, o mais rápido possível, ao topo e atingir a saída daquela montanha. Estava

exausta de tantas subidas. Não tinha ideia de quanto tempo eu estava ali dentro, havia

perdido totalmente a noção desse tempo. A fome começou a dar sinais, mas não queria

parar agora.

Reuni minhas forças e continuei agora em ritmo bem mais lento, pois minhas energias

se esgotavam. Parei de repente e fiquei ouvindo... Já não era mais o assovio do vento,

era como pedras rolando, um verdadeiro estrondo. O barulho aumentava, parecendo

rochas se desmoronando, ou transbordamento de algum rio vindo abaixo. O vento veio

forte e quase me derrubou. O que estaria quebrando o imenso silêncio que reinava ali?

Não esperei para saber o que era, pois o raciocínio não deveria ser usado naquele

momento, para não sofrer algum perigo fatal. Era somente a intuição que me

dirigia...Voltei rapidamente galeria abaixo e, num pulo, subi novamente na câmara de

onde tinha saído há pouco. Corri para o fundo, apavorada, sem saber o que estaria

acontecendo. O barulho foi ficando ensurdecedor e, em poucos segundos, desceu uma

avalanche de águas, pedras e tudo o que encontrasse pelo caminho. Não sabia no que

pensar, naquele momento. A água estava penetrando no salão. Olhei para o alto nas

paredes, procurando um lugar mais alto para me refugiar. A água subia rapidamente.

Clareei o paredão e percebi uma fenda horizontal que consegui alcançar com as mãos.

Fui encaixando os pés nas fendas menores e entrei nela. Tirei a mochila das costas e

permaneci deitada, pois o espaço não permitia outra posição. Com as mãos, senti a água

quase me atingindo. Entendi porque aquele esqueleto estava enfiado naquele buraco da

parede. Teria aquela pessoa morrido afogada?

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Page 53: Meru a Montanha Sagrada

Não sinta medo! Não tente entender o que está acontecendo! Era impossível não

pensar no pior naquele momento. Eu morreria ali afogada também ou seria levada pela

correnteza até o abismo? Nós criamos as prisões que nos escravizam. Atingir as estrelas

ou mergulhar no mais profundo inferno é unicamente obra nossa. Nenhum ato humano é

livre de consequências, nenhum pensamento de baixa vibração é neutro de reações e

nenhuma palavra proferida atravessa o espaço sem atingir seu alvo. O poder modelador

da mente conduz para o cume ou para o inferno, de acordo com a vontade de cada um. A

mente pode levar a pessoa à servidão, em desejos e desapontamentos, mas também,

pode levar à liberdade ao desapego e à ausência de desejos. O pensamento estabelece

as correntes vibratórias que organizam a própria alma. O estado de tensão é uma reação

interna às condições do ambiente. Os pensamentos, emoções, reações e o próprio corpo

físico, afetam o modo como sentimos o ambiente e se mudarmos, estes pensamentos,

estaremos alterando tudo ao redor.

Fechei os olhos e procurei manter a calma, deixei a mente tranquila, como se

estivesse deitado ali somente para descansar um pouco... senti a água atingindo meu

corpo e não me lembro de mais nada. Perdi os sentidos.

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Page 54: Meru a Montanha Sagrada

XIII - A purificação pelos elementos.

“Não espere ocioso olhando para o céu e nem tampouco na terra pelossalvadores, porque os salvadores somos nós próprios com nossa escolha para obem.” (Ana L. Marins)

Acordei sobressaltada. Não sabia mais o que estava acontecendo. Lembrei-me da

água subindo e me molhando. Mas, e o barulho ensurdecedor? O que teria acontecido?

Abaixei minha mão para sentir o nível da água. Estranho... Não a senti. Tudo era silêncio.

A lanterna estava segura sobre meu peito. Clareei ao meu redor e tentei sair dali. O chão

estava seco, não havia mais água alguma e minhas roupas, completamente secas. Não é

possível! Eu teria adormecido e sonhado tudo aquilo? O esqueleto continuava no mesmo

local. Mas, para onde aquela água tinha ido?

Minhas pernas estavam trêmulas e o ar muito quente. Senti ondas de vapor que

brotavam do chão, num canto escuro. Aproximei o foco da lanterna e me afastei

horrorizada. Era um sumidouro, com abertura de um metro de diâmetro. Brotava dele

rolos de vapor quente. Entendi para onde a água tinha ido. Mas por que era quente? Só

me lembrei quando Meru disse que passaria pela “purificação” através dos elementos

naturais. Verifiquei os objetos dentro da minha mochila, e também estavam secos.

Aproveitei para comer alguma coisa que havia levado. Arrumei a cadeirinha e a prendi no

encordoamento restante que trouxera. Tomei muita água. Enquanto fazia isso, veio-me

um sentimento de solidão e abandono. A falta de noção de tempo deixou-me num estado

de completa desolação. O vazio e a angústia tomavam conta de meus pensamentos e,

quanto mais eu dava atenção a este estado, mais ele aumentava. Veio-me à memória

situações de tristeza, de pessoas que me magoaram. De calúnias e mentiras sem causas.

Julgamentos e condenações feitas por mentes doentias e habituadas a conflitos e

maledicências. Mas, como por encanto, senti a energia a meu favor, ressoando em meus

ouvidos e me fortalecendo, dizendo... Mantenha a calma! Não reprima nada e permaneça

atenta! Aceite a realidade das coisas como são e não como você gostaria que fossem.

Não dê atenção à tagarelice mental que só multiplica os problemas e oculta as soluções,

causando confusão, pois se baseia nas faltas e falhas dos outros, cobrindo a mente com

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Page 55: Meru a Montanha Sagrada

espessa escuridão. É um mal que cresce rapidamente, destrói a paz e traz intranquilidade

ao indivíduo. Todo sofrimento humano nasce da ignorância e do orgulho da própria

pessoa. E de todo mal extraia somente o bem. Nesse momento, perdoei a todos que me

causaram sofrimento, pois iguais a mim, eles não sabiam o que estavam fazendo. E

assim, transmutei toda energia negativa, que estava me atacando, em energia de

bondade e amor para todos os seres.

Agora me sentia em condições de enfrentar o restante do trajeto, sem grandes

empecilhos. Parece que o pior havia passado. Se existia mesmo uma influência espiritual

e não humana por trás de tudo isso, agora estava comprovado. Eu senti, por várias vezes,

uma energia me ajudando. Então como poderia explicar ter sido resguardada daquela

avalanche? E ainda de estar suportando esta travessia, totalmente desconhecida por

mim, pelo interior de uma montanha enorme, cheia de perigos, solitariamente? Era melhor

não tentar entender isso agora. Só tinha certeza que essa influência espiritual estava

dentro de mim e eu a experiencializava.

Eu estava cansada e as pernas, às vezes, não queriam obedecer. Saltei para a galeria

novamente, não ouvi barulho algum. O vento já não soprava tão forte e frio como antes.

Caminhei subindo uma rampa, vagarosamente, pois estava escorregadia, terminava

numa sala, mais ou menos ampla, e não vi a continuação da galeria. Clareei todo o

compartimento. Não era possível! Onde estaria a saída? Estava muito escuro. A galeria

teria terminado ali? Então, de onde teria vindo todo o aguaceiro? A lanterna começou a

falhar. Algumas pedras se amontoavam encostadas à parede. Olhei detalhadamente de

perto. Dava para subir por elas, mas o teto era todo fechado, sem abertura alguma. Não

conseguia enxergar muito bem, pois a lanterna estava quase apagando. Com muita

dificuldade escalei algumas pedras. Ah! Ali estava a continuação do caminho, escondida

atrás do monte de pedras, muito estreita. Foi um alívio. Desci com cuidado e penetrei

nele, quase me arrastando.

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Page 56: Meru a Montanha Sagrada

XIV - O segundo nascimento.

“Toda transmutação da consciência, se compara a uma morte e um nascimento,pois a morte está em relação ao estado antecedente e o nascimento ao estadoconsequente.” (René Guénon)

A cavidade era muito baixa e ficou complicado passar por ela, pois, além da escuridão

tinha que subir de cócoras. Minhas pernas tremiam pelo esforço. Às vezes, parava um

pouco para recuperar o fôlego. A lanterna se apagou de uma vez. Mas não perdi a

esperança. A saída deveria estar próxima. Tinha caminhado tanto... Meu capacete ia

sendo lixado pelo teto de pedra. O que me mantinha com esperança era o vento que

soprava no meu rosto. De repente, mais no alto, vi um pedaço de rocha branca. Branca?

Seria o reflexo da luz do sol? Senti o coração batendo mais rápido ainda, pelo

entusiasmo. Cheguei com muito esforço até ela e, finalmente, já podia ficar em pé. Ah!

Era mesmo uma pequena fresta de sol que penetrava ali.

Continuei subindo, agora estava conseguindo ver melhor. A cavidade seguia a direita e

tornou-se ampla. Era um salão enorme e côncavo que se abria para o espaço. Meus

olhos demoraram um pouco para se acostumarem com a claridade externa. O sol brilhava

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Page 57: Meru a Montanha Sagrada

ainda, mas já quase ao entardecer. A visão que tive, daquela altura, era magnífica.

Impossível de descrever. Olhei para baixo e quase não acreditei que teria subido tanto.

Deite-me no chão, não consegui mais ficar em pé. Um peso imenso nas pálpebras não

me permitiram ver mais nada.

Acordei num sobressalto. Azul! Ela veio me saudar! Onde estaria agora? Tinha perdido

a noção de espaço e tempo. Fiquei observando ao redor. Estarei sonhando? Quando me

deitei aqui o sol ainda brilhava. Sentia a cabeça girando, o corpo enfraquecido, mas aos

poucos fui recompondo os fatos e a memória.

A luz deixava tudo azulado e parecia sair das rochas onde estava. Senti uma

tranquilidade indescritível. O silêncio reinava naquela altura. Toda a natureza ao redor,

parecia reverenciá-la. Ergui meus braços para o alto e agradeci por ter chegado viva ali.

Tinha finalmente atingido meu objetivo! Atravessei pelo interior daquela montanha e sabia,

agora, porque ela era sagrada. Senti que estava renascendo naquele momento. O que eu

era tinha ficado lá dentro, estava morto junto àquele esqueleto. Eu não era mais a mesma

pessoa. Recebi, no coração da montanha, todo o ensinamento, através de uma essência

incomunicável, pois se realizou interiormente. Recebi ainda a purificação, para ser

conduzida a um estado de simplificação, para renascer numa realização espiritual mais

elevada. A luz azulada continuava ali me banhando e me trazendo à consciência o meu

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Page 58: Meru a Montanha Sagrada

novo estado. Uma energia relaxante percorria do topo da minha cabeça até as pontas dos

pés. Fiquei envolvida naquela luminosidade, como se estivesse recebendo um abraço

amoroso da mãe natureza. Agora podia entender um pouco mais sobre essa energia. Era

um portal que se abria para outra dimensão, fora do tempo e espaço da Terra e onde

ocorrem os efeitos eletromagnéticos naturais mais poderosos do planeta. Aí se localiza

um dos chakras2 da Terra e onde passa a corrente telúrica. Veio à minha mente, de um

relance, tudo o que Meru havia me falado. O sentido de suas palavras agora se clareava

e era inteligível. Entendi todo o processo iniciático a que havia passado que me permitiu

atingir maior frequência de vibração. Gradualmente, senti aumentar a quantidade de

energia vital que estava sendo distribuída em todo meu sistema nervoso.

Cada homem é único com seus pensamentos, com sua capacidade de pensar

individualmente e a realidade é um grande sistema onde todas as coisas têm consciência

e estão interligadas. Porém, temos de estar sintonizados com essa realidade para

entendermos o porquê de nossa existência.

Ouvi, ao longe, os pios das aves. A luminosidade azulada ainda pairava sobre a

montanha, mas, via-se o dourado do sol iluminando a copa das árvores, lá embaixo. Era

um espetáculo visto e sentido do alto. Experimentei as sensações de amor e bondade a

todos os seres do universo. Os sentimentos inferiores não existiam mais em meu coração.

Meu ser estava em festa. Leve e sereno.

O dia começava novamente. Percebi que tinha passado a noite naquela altura e nem

senti, tamanho era o cansaço. Estava, justamente, na cavidade onde eu e Agnos

tínhamos avistado lá de baixo. O paredão granítico era mesmo íngreme e muito alto.

Prestando mais atenção, entendi o porquê da enxurrada ter ido para dentro da caverna.

Esta cavidade era côncava e formava uma bacia, então quando chovia muito forte, a água

escoava através das fendas da rocha e enchia a cavidade, fazendo com que grande

quantidade de água fosse despejada para dentro da montanha, onde ia empurrando tudo

o que encontrava pela frente, como se estivesse fazendo uma grande limpeza em seu

interior, para depois despejar na imensa cratera.

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Page 59: Meru a Montanha Sagrada

XV - Vivenciando a liberdade.

“Mais importante do que a Terra mudar é cada um mudar pelo próprio esforço.”(Anônimo)

Agora era pensar na descida. Pensando bem, não dava vontade de deixar aquele

lugar. Era lindo demais. O esforço que tinha feito realmente valeu. Jamais imaginaria ser

capaz de fazer o que fiz. Se contasse para alguém na cidade, não me acreditariam. E

como aprendi nestes dias! Mudei meu modo de ver e de pensar. Nada seria o mesmo de

agora em diante. Não existem regras definidas para se atingir o autoconhecimento. Basta

estar preparado espiritualmente, trabalhando a consciência para ser despertada a

qualquer momento, esteja onde estiver. Tudo é vibração; luz, calor, som, eletricidade,

magnetismo, tudo se resume em ondas de maior ou menor amplitude, o mesmo ocorre

com o pensamento e a vontade, a imaginação e a vida.

O sol já clareava tudo, a luz azulada, foi pouco a pouco cedendo a luminosidade para

o sol, porém no paredão que teria de descer, estava ainda na sombra, por isso seria

melhor fazer isso agora, antes do sol chegar deste lado.

Tirei as cordas da mochila e deixei preparadas para descer. Verifiquei as emendas, os

mosquetões e a cadeirinha. O capacete não havia saído da cabeça, desde que comecei a

caminhada. Agora era procurar um lugar seguro para prender a corda. Observei nas

paredes e vi uma rocha trincada e pontiaguda. Parecia ideal para encaixá-la. Olhei para o

alto e ainda faltavam alguns bons metros para quem quisesse chegar ao topo da

montanha. Mas terminava quase em ponta, sendo impossível ir até lá. O ponto final para

um humano comum me parecia ser este mesmo em que eu estava. O restante da

pirâmide talvez seria para o “olho de Deus”, o olho que tudo vê.

Preparei-me para a descida, verifiquei os encaixes e pareciam em ordem. Dei um

adeus à montanha e agradeci pela estadia, pela orientação e, sobretudo, pelo encontro

comigo mesma que ela me havia proporcionado.

Aprendi que deveria reverenciar cada caverna que entrasse, porque ali residia o

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Page 60: Meru a Montanha Sagrada

coração da montanha e ele ressoava em comunhão com o meu coração. Senti o quanto

ela era sagrada e como havia me transformado em tão pouco tempo. Percebi também,

impressionada, como se fosse mágica, que meu cansaço havia desaparecido, nem fome,

nem sede eu sentia. Aquela luz era energética e tinha muito em comum com a energia

vital de meu corpo.

Saí, enfim, da cavidade, vagarosamente, minha intenção era realmente ficar

definitivamente ali, mesmo sem recurso algum. Seria o caso daquele esqueleto que

estava naquela fenda? O que teria ficado fazendo ali, sozinho, quando ainda tinha vida?

Aproveitei para descer o mais lentamente que pude, a paisagem era exuberante.

Senti-me voando como os pássaros nas alturas. As andorinhas esvoaçavam sobre minha

cabeça, pois seus ninhos ficavam nas fendas do rochedo. A sensação é de que eu

pertencia ao mesmo bando. Olhei as copas das árvores ao longe, como se fossem um

tapete.

Cheguei facilmente à base. O restante seria ir pulando pelas pedras até chegar à

plataforma, onde Agnos já havia me mostrado antes. Não recolhi o encordoamento, assim

talvez Agnos se sentisse animado em se aventurar naquele paredão.

De repente, mas que surpresa! Tói veio ao meu encontro latindo e abanando a cauda,

fazendo muita festa.

– Meu amigão! Que saudades! Parecia que ele não me via há tanto tempo. Em

seguida, apareceu Agnos, com respiração ofegante pelo esforço da caminhada.

Abraçou-me, quase chorando.

– Depois de tanto tempo, ainda bem que você conseguiu e está viva! Sorriu aliviado.

– Depois de tanto tempo? O que você quer dizer com isso? Fiquei apenas algumas

horas lá dentro talvez um dia. Não sei.

Eu não tinha ainda parado para pensar no tempo que levara para atravessar a

caverna, mas não achava que tinha sido muito.

– Algumas horas? Você ficou durante três dias lá dentro! Achei que tivesse em apuros

ou, não gosto nem de pensar, tivesse morrido. Fiquei muito preocupado por isso.

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Page 61: Meru a Montanha Sagrada

– Não acredito! Você está dizendo isso só para me impressionar?

– Não! É a verdade e estou muito feliz de ver que está bem fisicamente, sem nenhum

arranhão. Meru está ansiosa para lhe ver. Não ficava um instante sem falar de você.

Sempre com alegria e confiante que voltaria bem e “renascida”, como diz Meru.

Fiquei por alguns instantes tentando me lembrar das sensações do tempo e por que

não o senti passando e, ainda, por que era diferente do tempo aqui de fora?

– E como você sabia que eu desceria hoje pelo paredão?

– Eu pensei, para falar a verdade, que você só iria olhar a entrada e depois voltaria

para a superfície. Naquele dia fiquei muito preocupado, lhe chamei várias vezes e não me

ouvia mais. Fiquei lá esperando você me chamar... escureceu, então voltei desesperado

para contar à Meru que não tive culpa e que você não quis me dar atenção...Estava

realmente nervoso, Meru me acalmou dizendo que você estava bem e sairia somente

depois de três dias.

– E como ela sabia disso?

– Ela não fala como, mas sabemos que ela é muito intuitiva e que também tem contato

com seres invisíveis.

– Quem são eles? Você já a viu falando com eles?

– Já, frequentemente. Ela conversa por longo período, mas a gente não entende o que

ela fala.

– Por que não entende?

– Um dia perguntei o que ela falava e com quem, ela disse que eu entenderia também

se soubesse ouvir. Mas, não entendi o que ela quis dizer com isso.

– E foi ela que pediu para você vir me encontrar aqui?

– Sim, primeiro foi ela, mas, hoje pela manhã, Tói ficou irrequieto, não parava de me

seguir. Resmungava baixinho para me chamar a atenção e quando eu perguntava o que

ele queria, ficava olhando na direção da montanha, como a dizer que você já estava

descendo. Ele só se acalmou quando o chamei para me acompanhar, vindo para cá.

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Page 62: Meru a Montanha Sagrada

– Os animais são mesmo interessantes, têm seus sentidos mais aguçados do que os

nossos, não é mesmo? Bem, vamos caminhar?

– Vamos sim, você deve estar com muita fome, depois de tanta aventura. Quero que

me conte, detalhadamente, tudo o que aconteceu nesse tempo todo.

– Certo, mas primeiro quero tomar um prolongado banho na cachoeira. Vamos Tói?

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Page 63: Meru a Montanha Sagrada

XVI - Mestre de si mesmo.

“Quando se está ciente da grandeza que possui, acontece o milagre darenovação.” (Anônimo)

Meru nos aguardava perto da choupana. Ela tinha muito a me perguntar. Seu

semblante era de paz e ternura. Dizem que os sentimentos são os ornamentos do ser

humano, em sua fisionomia ele deixa transparecer todo o potencial energético que possui.

Na presença de Meru a sensação era de serenidade e de alegria de viver. Fomos

saudados com alegria. Um abraço forte e demorado.

– Estava confiante em você, mas senti sua falta esses dias. Deve ter vivenciado coisas

surpreendentes e renovadoras. Venham se alimentar!

Enquanto descansávamos narrei todos os passos dados no interior da montanha, as

dificuldades e os perigos enfrentados. Agnos ficava tenso e horrorizado e Meru ouvia com

atenção, parecia conhecer cada detalhe do interior. Perguntei-lhe então sobre aquele

esqueleto lá dentro.

– Por que somente um? Não era uma tribo indígena que habitava esta montanha?

– Não eram indígenas e nem foram dizimados com um raio, como falam lá na cidade,

eram místicos com grau elevado de sabedoria esotérica. Aquele esqueleto é da outra

Meru, minha antecessora e transmissora da sabedoria oculta. Os que receberam a

iniciação através dela se dispersaram para levar o ensinamento para outras pessoas, que

já estavam preparadas. Ela já vivia sozinha quando cheguei aqui para ser sua discípula.

Os iniciados de maior adiantamento sempre vivem afastados da multidão, porque eles,

não apenas precisam de isolamento para seu trabalho, mas também porque sua

influência produz uma reação psíquica violenta em profanos.

– Então você veio viver aqui sabendo que era habitada por essa mística?

– Sim. Toda pessoa que está alerta sabe de seu potencial, sabe também que deve

abastecer-se no mundo sutil para poder evoluir e conhecer melhor o mundo físico.

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Page 64: Meru a Montanha Sagrada

– Vi ainda muitas figuras geométricas. Continuei descrevendo para entender o máximo

do que tinha visto lá dentro. Havia também sistemas solares e constelações desenhados

nas paredes dos salões. O que significam?

– São os símbolos, utilizados para despertar diretamente as faculdades intuitivas

naqueles que meditam sobre eles. Nos símbolos reside o verdadeiro segredo que é

inviolável por sua natureza e se preserva por si mesmo.

Agnos ouvia, mas parecia intrigado com alguma coisa. Ficou certo tempo olhando para

o vazio e quis saber:

– Meru, só há esse caminho através do inferno para se atingir o mundo sutil ou a

sabedoria?

Ela não se conteve e riu muito com o jeito de Agnos falar.

– As trevas, ou o inferno, representam sempre no simbolismo tradicional, o estado das

potencialidades não desenvolvidas que constituem o “caos”, e representam ainda o

mundo profano, até o momento em que o iniciado recebe a “luz”. Assim, o ser passa das

trevas à luz. A humanidade foi dotada da liberdade de escolher entre seguir o bem e a

verdade ou render-se à tentação da vaidade e ilusões materiais do falso ego: numa

encontrará o mundo sutil e a sabedoria; noutra encontrará o inferno. Porém, cada

indivíduo possui um caminho único e próprio, diferente dos demais. Se estiver em paz e

em equilíbrio com seus sentimentos conseguirá transpor, tranquilamente, as barreiras

próprias de seu caminho.

– Como aconteceu com Rami?

– Isso mesmo! O prazer de viver está em vivenciar a todo instante tudo o que faz, isto

é, sentir com o coração e transbordar de alegria com o sentimento de amor distribuído e

do dever cumprido. Não preciso relatar as sensações que tive, em atravessar pelo interior

da montanha e de ter encontrado a mim mesma, enquanto percorria seus corredores

sombrios.

– Não poderemos expressar jamais nossa experiência interna ou de qualquer pessoa

que seja, porque é estritamente incomunicável por sua própria natureza.

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Page 65: Meru a Montanha Sagrada

Ficamos conversando por horas, sem perceber o tempo passando. Quando

vivenciamos e presentificamos nossas ações, psicologicamente, o tempo deixa de existir.

Verifiquei, com isso, que minhas férias estavam encerradas. Teria que me decidir em

largar tudo e permanecer ali definitivamente ou voltar para seguir meus compromissos

anteriores. Meu bom senso me disse para voltar, assumir o que tinha deixado para trás e,

aos poucos, decidir o que fazer em seguida. Disse para Meru que teria de voltar,

contrariada, para minha cidade e resolver meus compromissos.

Eles entenderam e reforçaram minha atitude, era mesmo o mais justo e razoável a

fazer. Teria que ser honesta e verdadeira. Era esse meu objetivo maior.

– Se sua vida na cidade não estiver de acordo com suas qualidades atingidas na

montanha, então será necessário que ajuste suas ações e intenções para que fiquem

adequadas à sua vida atual. A verdadeira felicidade é de caráter espiritual e não pode ser

obtida através dos prazeres dos sentidos.

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Page 66: Meru a Montanha Sagrada

XVII - Compreensão das atitudes humanas.

“Não busque no exterior, mas volte-se para si próprio, pois a verdade reside nointerior do homem.” (Anônimo)

Bem cedinho despedi-me de Agnos e de Meru, com lágrimas nos olhos, e prometi

voltar tão logo resolvesse meus estudos e meu trabalho. Teria que me desfazer também

de uma propriedade.

Peguei meus pertences e agradeci por tanto aprendizado em tão pouco tempo. Tói,

abanando a cauda, se antecipou e começou o trajeto de volta à cidade. Meru disse que

ele era assim mesmo, não precisaria me preocupar, pois ele ia e voltava sempre, estava

acostumado. E seria bom para eu ter um guia novamente no retorno. Eu voltaria logo e

definitivamente, já havia me decidido.

Comecei a caminhada em passos largos e rápidos. Acenei para os dois que ficaram

cada vez mais distantes. Sentia-me pesada por ter de deixá-los, não era o meu desejo

naquele momento, mas eram os compromissos que me impediam de realizar-me

espiritualmente. Compreendia agora, muito claramente, porque as pessoas sentem-se tão

vazias e infelizes e, para preencher seus vazios na alma, atolam-se no acúmulo de

propriedades e dívidas. Não estão nunca satisfeitas. O tédio e a infelicidade são cada vez

maiores.

Saí da luminosidade e estava penetrando novamente nas sombras, mas agora era

bem diferente: havia o entendimento adquirido lá no alto. Esse tesouro ninguém me tirava

mais! Entendi que não há necessidade de ansiar por acúmulo de riquezas, porque são

sombras e perecem com o tempo. Deve-se deixar o sol, a luminosidade nos liderar, pois

as sombras, que são as ilusões, serão projetadas para trás e seguirão as nossas

pegadas. Se, ao contrário, perseguirmos as sombras e nos deixarmos ser guiados por

elas, estaremos sempre escravizados. Com estes pensamentos cheguei à pedra dos sóis,

onde bifurcavam os caminhos, quase nem percebi a caminhada. Tói deitou-se para

descansar, já apresentava certo cansaço.

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Page 67: Meru a Montanha Sagrada

Continuamos descendo. Agora vinha o pântano e depois o lixão da cidade. Senti-me

como Dante viajando no inferno. Os urubus esvoaçando sobre os montes de lixo.

Aproximei-me de um garoto, todo esfarrapado, pegando papelão e garrafa pet. Todos me

olhavam com ar de assustados, tentando decifrar o que uma pessoa da cidade iria fazer

em um lugar como aquele. Não era comum alguém que não fosse catador aparecer por

ali. Chamou-me a atenção a quantidade de crianças no meio daquela sujeira, quando

deveriam estar na escola. Senti vergonha de fazer parte de uma sociedade que permite,

ainda, essa situação. O estado animalesco do homem ainda é predominante e não foi

vencido. Ódio, inveja, cobiça e desejo por ostentação pomposa por comparação e

competição com outros, estão viciando não só o homem comum, como também os líderes

políticos e religiosos.

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Page 68: Meru a Montanha Sagrada

Aproximei-me de um dos garotos:

– Olá! Como se chama? Tentei puxar conversa com ele.

– É Tonico! - respondeu passando a mão na cabeça de Tói que lhe cheirava as mãos.

– Onde você mora, Tonico?

– Moro aqui perto, ali naquele barraco. Apontou em direção a uma fila de barracos

feitos de restos de madeira, com poças de água podre por perto.

– E por que você está aqui?

– Pego garrafa e papelão pra vender e comprar comida. Respondeu tocando as

moscas que nos importunavam.

– Você gosta do que faz? É evidente que eu já sabia a resposta. Ele abaixou a cabeça

e não me respondeu. Peguei em suas mãozinhas sujas e lhe disse que tivesse paciência

e logo sua vida iria mudar e me despedi dele.

A bondade e os ensinamentos espirituais deveriam florescer nas mentes das crianças,

jovens e adultos de todos os lugares do planeta. As pessoas pronunciam, continuamente,

as palavras: verdade, não-violência, retidão e Amor, mas é tudo isso que o homem não se

esforça e nem tem vontade de possuir.

Ah! Como seria bom se o ser humano mudasse sua atitude! Se soubesse existir

simplesmente sem diminuir quem quer que seja, crescer sem apequenar o outro ter seu

próprio lugar sem ocupar o do outro. Se procurasse penetrar no interior de si mesmo,

encontraria ali a verdade que lhe foi depositada, entenderia sobre a solidariedade, a

igualdade entre os povos e o amor entre irmãos. O planeta ficaria lindo e respirável. Não

faltaria nada a ninguém.

Agora eu sei por que a maioria das pessoas não vê a luz. Elas têm medo da fome, do

frio e, principalmente da morte. O medo só traz o fracasso e a destruição. Elas preferem

ser dominadas pelas sombras.

Infelizmente há pessoas que sofrem por seu próprio medo da vida. Se, pelo menos,

entendessem que são elas mesmas que criam suas realidades, através do que pensam,

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Page 69: Meru a Montanha Sagrada

dizem e fazem, pensariam melhor antes de agir e não causariam tantos danos ao planeta.

Todo sofrimento são ofensas dos homens à natureza, nasce da ignorância e do

orgulho da própria criatura humana, porque o amor não foi capaz de despertar sua

consciência adormecida. Sendo a Terra um planeta de provações, os homens deveriam,

ao passar pelo sofrimento, meditar sobre o acontecido, para tirar lições construtivas para

a vida, corrigir erros e redefinir seu comportamento perante o próximo.

A solução não está em um novo sistema político e social, nem, tampouco, em novas

religiões. A solução está na mente e no coração da humanidade! Só assim o mundo

poderá obter paz e contentamento!

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XVIII - A Luz está no coração de todo ser.

“O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no campo, o qual certohomem, tendo-o achado o escondeu. E, transbordante de alegria, vai, vende tudo oque tem e compra aquele campo.” (Mateus 14:44)

Cheguei, enfim, à pousada que estava ainda reservada. Peguei meus objetos. Quanta

coisa considerada inútil para uma vida simples nas montanhas! Mas eu voltaria para viver

e continuar descobrindo a verdadeira vida com Meru. Meu trabalho, agora, seria agir de

acordo com o que havia entendido, com consciência da finalidade da minha existência,

pois a pessoa se converte naquilo que pensa. E a vida se incumbe de colocar cada um

em seu devido lugar. A vida havia me colocado naquela cidade para entender e não

fechar os olhos diante de uma situação que muito me indignou. Meu lugar agora era agir e

tentar solucionar o problema do lixo e dos catadores. Saber por que não era resolvido.

Como conseguiam ignorar tamanha diferença social? Pecuaristas, grandes comerciantes,

políticos, enfim, os ricos da cidade, simplesmente fechavam os olhos e não queriam ver.

Cegos e insensíveis com as pessoas que engoliam a miséria juntamente com o mau

cheiro, criados por eles!

Sem perder mais tempo, dirigi-me à prefeitura. Se for para mudar alguma coisa, teria

que começar agindo. Entrei com decisão e pedi à secretária que marcasse uma audiência

urgente com o prefeito, pois eu estava ali como turista e queria propor um plano para

desenvolvimento turístico, onde geraria riquezas para a cidade. Em lugarejos pequenos,

tem-se a impressão que as coisas se resolvem com mais facilidade, é claro que precisa

ênfase e determinação no que se propõe a fazer.

Para minha surpresa, logo fui atendida, como em passe de mágica. Seria a palavra

chave “gerar riquezas” que teria agilizado o expediente? Provavelmente...

Expus meu objetivo de abrir uma pousada naquela cidade, devido à topografia

favorável para escaladas e trilhas para as cachoeiras. Minha intenção era de atrair turistas

e, para isso, a prefeitura teria que, primeiro resolver o problema de aterro do lixo,

segundo, construir casas populares para os catadores e, terceiro, dar emprego digno a

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Page 71: Meru a Montanha Sagrada

estes catadores para que sejam considerados cidadãos.

O prefeito me ouviu com respeito. Disse que estas eram propostas de sua campanha

e que já estava planejado para dar inicio às obras ainda naquele ano. Saí do gabinete não

acreditando muito, mas, energeticamente pressenti que não se tratava de pessoa maligna

ou corrupta. Era para se esperar.

Saí mais aliviada daquela cidade, pois me incomodava ver tanta gente passando fome

e necessidades, vivendo em barracos e na sujeira, como se fossem animais, sendo que

eram nossos semelhantes, pertencentes ao mesmo planeta. Andando alguns quilômetros,

o contraste com carros importados, casas luxuosas, enfeitadas com jardins e portões

suntuosos; mercados abarrotados de alimentos, lojas de artigos finos. Isto, sem falar das

grandes cidades e dos desperdícios dos inconsequentes seres humanos.

Porém, comparei o caminho de todas as pessoas em geral, a uma circunferência,

onde os raios são as vias ou sendas que conduzem, infalivelmente, ao centro, ou ao

ponto. As vias que conduzem ao centro são várias e comum a todos, mas a meta é Una,

porque não há mais que um centro e uma só Verdade. Assim, há vários caminhos para se

atingir esse centro, mas há pessoas que bloqueiam o próprio caminho e de seu próximo,

não permitindo a igualdade econômica, gerando miséria e dificultando a aceleração

evolucional.

Os homens louvam a espiritualidade, a glorificam, porém não querem sair da esfera

dos prazeres materiais. Então, desejam que a espiritualidade os proteja e os salve, mas

também querem continuar com suas ganâncias, vícios e desejos desprezíveis.

Confundem desejos, vaidades e paixões com o Amor. Os primeiros são originários da

carne e do corpo emocional e são finitos, enquanto que, o verdadeiro Amor, vem do

espírito e da alma e é infinito. Portanto, a ganância, as injustiças, o ódio, o ciúme, a posse

exclusiva de uma pessoa contra a vontade, o domínio sobre os indivíduos, são atentados

contra o verdadeiro Amor que é espiritual e não carnal.

Deve-se possuir bondade, compaixão e amor por todos os seres viventes, para não se

tornar uma pessoa grosseira. Cultivar a grandeza de sentimentos, pois qualquer insulto,

ofensa e negligência contra qualquer criatura, estará insultando, ofendendo e

negligenciando o Criador.

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Page 72: Meru a Montanha Sagrada

A individualidade é, portanto, o instrumento verdadeiro do ser, é a ferramenta que abre

as portas, para o interior de si próprio e, o resultado a alcançar, está além dos limites

dessa individualidade. Este é o ponto de partida e condição impossível de ser eliminado

para se atingir o sagrado.

Deixei muitas coisas que, antes achava imprescindíveis, de lado. O foco de meus

interesses tinha sofrido uma mudança radical. Percebi que vários supérfluos que me

foram impostos como necessidades, não passavam de desejos. Procurei, então, o modo

mais simples possível de viver e entendi que precisamos de pouquíssimas coisas. Passei

a adquirir e observar uma alimentação mais natural possível, sem os agrotóxicos tão

prejudiciais a saúde e, sobretudo, sem desperdícios de alimentos.

Ao mesmo tempo em que agia, estando sempre muito atenta no que comprava e no

que comia, fui também transmitindo, mas sem a pretenciosidade, nem imposição, esta

alteração de hábitos para outras pessoas que se interessavam nesse modo de ser.

Resolvi que faria, muito em breve, um relato de tudo o que tinha acontecido na

montanha, pois me alegra poder oferecer algo que possa, talvez, auxiliar o próximo na

hora que mais necessite. Compreendo que as palavras são carregadas com poder tanto

para transtornar o equilíbrio e chocar com tristezas, drenando a coragem do indivíduo,

como também, comunicar algo feliz e alegre, com propósitos puros e produtivos, que só

promovem a força espiritual do ser. Pretendo, portanto, despertar a curiosidade de quem

quiser se aventurar, também, em realizar uma viagem para conhecer Meru e a montanha

mística e sagrada.

Eu encerraria meus compromissos onde morava e sem muita demora, voltaria para

viver na montanha. Comecei a contagem regressiva. Estava ansiosa e já me preparava:

era hora de rever Meru e meus queridos amigos Agnos e Tói.

FIM

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