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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Luíza Souto Nogueira Obrigação alimentar decorrente da ascendência genética MESTRADO EM DIREITO São Paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP

Luíza Souto Nogueira �

Obrigação alimentar decorrente da ascendência genética �

MESTRADO EM DIREITO

São Paulo 2016

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Luíza Souto Nogueira �

Obrigação alimentar decorrente da ascendência genética

MESTRADO EM DIREITO �

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como exigência

parcial para obtenção do título de MESTRE

em Direito Civil, sob a orientação do

Professor Doutor Oswaldo Peregrina

Rodrigues.

São Paulo 2016

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Banca Examinadora

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Aos meus pais.

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente aos meus pais, Ana Cristina e Celso, principais

responsáveis pelo início, meio e fim desse mestrado. Sem o seu incentivo talvez não tivesse

me interessado pela área acadêmica logo em seguida à conclusão do curso de graduação.

Obrigada por incentivar tanto, obrigada por insistir na continuidade quando pareceu

impossível, obrigada pelo apoio de sempre. Sem vocês eu não estaria aqui hoje!

Agradeço à Paula, minha irmã, que na convivência do dia a dia sempre

demonstrou seu apoio e confiança na minha capacidade em concluir o mestrado.

Obrigada Leo, pelo amor, apoio e paciência desses últimos anos. Obrigada por

acompanhar de perto a realização desse projeto, por dedicar seu tempo a me ajudar a revisá-lo

e por discutir comigo algumas das ideias aqui expostas.

Obrigada às minhas amadas meninas, de Liceu e de PUC, por estar sempre por

perto, por ouvir, por incentivar e por dividir comigo as angústias dessa jornada.

Agradeço ao Professor Doutor Oswaldo Peregrina Rodrigues pelas aulas na

graduação que despertaram meu interesse pelo Direito Civil e pela área do Direito de Família

e pela possibilidade de, como sua assistente, me permitir descobrir o gosto pela docência.

Obrigada, principalmente, pela orientação dessa dissertação desde antes mesmo de se tornar

oficialmente meu orientador.

Agradeço ao Professor Doutor Francisco José Cahali, “pai registral” desse

trabalho, pelo ingresso no mestrado sob sua orientação e pelas valiosíssimas considerações

dispensadas no exame de qualificação.

Consigno também meu agradecimento ao CNPq, pelo financiamento desse

trabalho, que possibilitou a realização do mestrado em regime de dedicação integral.

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RESUMO

A dissertação intitulada OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DECORRENTE DA

ASCENDÊNCIA GENÉTICA visa responder se é possível responsabilizar o(s) ascendente(s)

genético(s) pela prestação de alimentos ao seu descendente quando este constituiu vínculo

paterno-materno-filial com outra(s) pessoa(s) em razão da adoção consentida ou da

socioafetividade. A partir da análise dos princípios que regem o direito de família buscou-se

estabelecer um norte de interpretação das normas jurídicas quando aplicáveis a essa seara,

uma vez que a tutela jurídica das relações familiares é dotada de uma série de peculiaridades.

Ao abordar o conceito de filiação e de suas modalidades decorrentes da adoção e da

socioafetividade, estabeleceu-se entendimento no sentido de que o vínculo paterno-materno-

filial não decorre necessariamente da consanguinidade, mas do afeto e da vontade em

estabelecê-lo. Perpassando pelos elementos da obrigação alimentar, foi possível compreender

a sua importância para a garantia da dignidade humana daquele que depende do recebimento

dessa prestação. Analisou-se, ainda, o conceito de paternidade alimentar e qual a sua

compreensão pelos operadores do direito que se dedicaram a tratar sobre o tema. E,

finalmente, a partir da realização de uma inter-relação entre a responsabilidade civil e o ato de

entregar à adoção ou de abandonar, foi possível entender que, havendo dano decorrente dessa

conduta, haverá responsabilidade civil do genitor biológico, que poderá ser condenado a

prestar alimentos àquele que gerou, mas não assumiu como filho.

Palavras chave: filiação; alimentos; paternidade alimentar; responsabilidade civil.

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ABSTRACT

The dissertation titled CHILD SUPPORT ORIGINATED ON GENETIC

ASCENDANCY aims to answer whether it is possible to make the genetic ascendant

accountable to provide child support to his descendant when he has constituted a paternal-

maternal-filial bond with another person due to a consensual adoption or an affection

affiliated bond. From the analysis of the principles governing family law it is sought to

establish an interpretation course of the legal norms, applicable to this field, since the legal

protection of family relationships is endowed with a series of peculiarities. In addressing the

concept of filiation and its modalities resulting from both the adoption and the affection

affiliated bond, it has been established the understanding that the paternal-maternal-filial

relationship bond does not result from consanguinity, but from affection and the willingness

to establish it. Going through the elements of the child support obligation, it was possible to

understand its importance on warranting human dignity of whoever depends on receiving this

benefit. It was also considered the concept of child support fatherhood and how it has been

understood by the legal community who took the opportunity to deal on this subject. Finally,

from an interrelation between civil responsibility and the act of delivering for adoption or to

abandon, it has been possible to understand that, in having a damage resulting from such

conduct, there will be civil liability for the biological parent, who may be required to provide

child support to whoever he has generated, but has not taken as a son.

Keywords: affiliation; child support; child support fatherhood; civil responsibility.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10

CAPÍTULO I – HISTÓRICO: RELAÇÃO PATERNO-MATERNO-FILIAL ....................... 13

1. Código Civil de 1916 ..................................................................................................... 13

2. Decreto-lei nº 4.737/42 .................................................................................................. 18

3. Lei nº 883/49 ................................................................................................................. 20

4. Lei nº 6.515/77 .............................................................................................................. 21

5. Constituição Federal de 1988 ........................................................................................ 22

6. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) ............................................... 24

7. Lei nº 8.560/92 .............................................................................................................. 25

8. Código Civil de 2002 ..................................................................................................... 26

CAPÍTULO II – PRINCÍPIOS INFORMADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA ................. 29

1. Princípios ....................................................................................................................... 29

2. Cidadania ....................................................................................................................... 32

3. Dignidade da pessoa humana ........................................................................................ 35

4. Solidariedade ................................................................................................................. 38

5. Igualdade ....................................................................................................................... 40

6. Liberdade ....................................................................................................................... 43

7. Afetividade .................................................................................................................... 45

8. Melhor interesse da criança e do adolescente ................................................................ 47

9. Função social da família ................................................................................................ 49

CAPÍTULO III – FILIAÇÃO SEM VÍNCULO GENÉTICO ................................................. 53

1. Conceito de filiação ....................................................................................................... 53

2. Filiação originada na adoção ......................................................................................... 55

3. Filiação originada na socioafetividade .......................................................................... 58

3.1. Modalidades de filiação com origem socioafetiva ..................................................... 63

3.1.1. Posse do estado de filho .......................................................................................... 66

3.1.2. Adoção à brasileira .................................................................................................. 68

3.2. Efeitos jurídicos da filiação por socioafetividade ...................................................... 70

4. Caráter irrevogável da filiação socioafetiva e da adoção e o direito à investigação da identidade genética ............................................................................................................... 73

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CAPÍTULO IV – A OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS......................................... 80

1. A obrigação alimentar ................................................................................................... 80

2. Alimentos em relação aos filhos menores ..................................................................... 85

3. Alimentos na adoção ..................................................................................................... 88

4. Alimentos na filiação com origem socioafetiva ............................................................ 90

CAPÍTULO V – A PATERNIDADE ALIMENTAR .............................................................. 94

1. A Lei nº 883 de 21 de outubro de 1949 ......................................................................... 94

2. A paternidade alimentar................................................................................................. 96

3. A paternidade alimentar na doutrina e na jurisprudência .............................................. 99

4. França: ação para fins de subsídios ............................................................................. 105

5. Estatuto das famílias (Projeto de Lei nº 470/2013) ..................................................... 107

CAPÍTULO VI – OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DECORRENTE DA ASCENDÊNCIA GENÉTICA ............................................................................................................................ 109

1. A responsabilidade civil decorrente da concepção ...................................................... 110

2. Elementos geradores da responsabilidade civil do ascendente genético ..................... 112

2.1. Conduta ................................................................................................................ 113

2.2. Dano ..................................................................................................................... 114

2.3. Nexo de causalidade ............................................................................................. 116

3. Responsabilidade civil do ascendente genético e sua obrigação de prestar alimentos 117

4. Paralelo com a responsabilidade alimentar dos avós................................................... 120

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 123

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 127

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INTRODUÇÃO

O Direito Família é ramo do Direito Civil que se encontra em constante mutação,

o que ocorre porque as formações familiares não são estanques, nem padronizadas. As

relações humanas não se dão conforme as normas jurídicas, de modo que cabe a estas a

adaptação contínua de modo a acompanhar as mudanças e garantir adequado tratamento

jurídico a elas.

As pessoas, ao longo dos anos, foram se desvencilhando dos limites impostos

pelos comandos legais e pelos preceitos canônicos e passaram a formar, mesmo que à margem

das regras existentes, as composições familiares que elas entendem mais adequadas para

atender aos seus ideais.

Para tentar abarcar as diversas formações familiares que foram aparecendo de

maneira clara em nossa sociedade, tentando minimizar as situações desamparadas de tutela

jurídica, as normas constitucionais e infraconstitucionais que tratam do Direito de Família

sofreram – e continuam a sofrer – constantes mudanças.

Quando da entrada em vigor do Código Civil de 1916 vigiam normas que, dentre

outros temas, estabeleciam o casamento como união perpétua, indissolúvel, que somente

poderia se dar entre homem e mulher, bem como que diferenciavam os filhos em razão da sua

origem, prevendo que somente aqueles tidos como legítimos seriam merecedores de todos os

direitos inerentes à sua condição.

Com isso, muitas pessoas ficavam à margem da tutela jurídica dispensada às

relações familiares, como aquelas que mantinham uniões homoafetivas, aquelas que

desejavam separar-se de seu cônjuge, os filhos havidos fora do casamento etc.

Diante disso, inúmeras leis foram surgindo de maneira a regulamentar as situações

que se formavam mesmo diante da ausência de sua previsão no ordenamento jurídico.

Regularizou-se o desquite e, posteriormente o divórcio, bem como se passou, aos poucos, a

admitir o reconhecimento dos filhos considerados, até então, ilegítimos.

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Entretanto, somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 pôs-se

um fim à diferenciação entre filhos, passando norma constitucional a prever expressamente a

igualdade entre eles independentemente de sua origem.

Ainda, com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com o Código Civil

regulou-se, em âmbito infraconstitucional, a proteção que deve ser dispensada às crianças e

aos adolescentes.

À doutrina e à jurisprudência, por sua vez, coube o papel de enquadrar outras

situações nas normas existentes, de modo a diminuir a quantidade de famílias organizadas

concretamente na sociedade, mas que não detinham proteção jurídica ante a ausência de

previsão legal.

Com isso passou-se a entender que o vínculo de filiação pode também decorrer da

socioafetividade, além da consanguinidade e da adoção. Em qualquer dessas figuras estar-se-á

diante da mesma situação: um vínculo paterno-materno-filial, gerador dos mesmos direitos e

deveres independentemente dos pais possuírem laço genético com seus filhos ou não.

Não restam dúvidas que o cuidado e o sustento dos filhos cabe aos pais, sejam

eles consanguíneos, adotivos ou socioafetivos. Também é pacífico hoje em dia que o vínculo

decorrente do afeto se torna irrevogável, tal qual a adoção, prevalecendo em detrimento do

genético.

Porém, o que se busca responder diante do panorama atual é se há alguma

responsabilidade decorrente da concepção. Ou seja, sabendo-se que ocorre o rompimento do

vínculo de filiação para todos os fins, questiona-se se há, como consequência, a exoneração

do genitor biológico de toda e qualquer responsabilidade em relação àquele ser humano que

gerou, ou se permanece ele imputável pelas condutas que praticou se elas eventualmente

vierem a causar um dano a esse menor.

O norte para responder a essa questão é a teoria da paternidade alimentar,

desenvolvida por Rolf Madaleno, que defende a possibilidade de o menor buscar

complementação dos alimentos que necessita frente ao seu genitor biológico. Isso porque, no

entendimento do autor gaúcho, exonerar essa figura de qualquer responsabilidade, seria uma

premiação à desídia em relação à vida por cujo nascimento foi responsável.

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Tendo em vista os princípios da dignidade da pessoa humana e do melhor

interesse da criança e do adolescente, busca-se saber se será possível, diante de situações

específicas e excepcionais, falar em responsabilidade civil do procriador pelos alimentos.

Ou seja, se é admissível pleitear frente ao ascendente genético o auxílio material

que se faz necessário para a manutenção do infante e, consequentemente, para o seu adequado

desenvolvimento.

O objetivo do presente trabalho, destaque-se, não é defender que se possa pleitear

alimentos do progenitor biológico em qualquer circunstância e com o mero intuito de

aumentar a renda mensal da criança ou do adolescente. O que se pretende aqui, pelo contrário,

é saber se, havendo um dano, terá o ascendente o dever de repará-lo.

Para responder a esse questionamento, o presente trabalho irá abordar as filiações

que não têm origem biológica (adotiva e socioafetiva), os fundamentos da obrigação de

prestar alimentos e os elementos geradores da responsabilidade civil.

O objetivo é analisar se é possível verificar, nas situações de adoção consentida e

de abandono, a presença de uma conduta, de um dano e de nexo de causalidade entre eles,

elementos que, se presentes, serão aptos a gerar a responsabilização civil do ascendente

genético.

E, caso a resposta seja positiva, se cabe responsabilizá-lo pelos alimentos

necessários à manutenção do infante, alimentos esses que serão prestados em caráter

subsidiário e complementar.

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CAPÍTULO I – HISTÓRICO: RELAÇÃO PATERNO-MATERNO-FILIAL

O direito romano, precursor dos ordenamentos jurídicos ocidentais, realizava

distinção entre os filhos em razão de sua natureza. Separava-os, então, em legítimos e

espúrios, estes decorrentes de união ilegítima ou de relação de concubinato1.

Essa linha de tratamento conferido aos filhos foi seguida pelo Brasil quando das

Ordenações Filipinas e da Consolidação das Leis Civis de 1858. E foi mantida pelo Código

Civil de 1916 no momento de sua edição.

Assim, durante anos prevaleceu no Brasil a distinção de tratamento entre os filhos,

sendo vedado a algumas classes deles, inclusive, a possibilidade de reconhecimento do

vínculo de filiação com seu pai, com sua mãe ou com ambos.

Essa situação foi sendo lentamente flexibilizada com a edição de leis esparsas

visando ampliar e igualar os direitos até então conferidos aos filhos havidos fora da relação

matrimonial.

A grande mudança, entretanto, veio somente com a edição da Constituição de

1988, que acabou com as distinções até então existentes, passando a estabelecer a igualdade

entre filhos, independentemente de sua origem.

A ela seguiram-se o Estatuto da Criança e do Adolescente e, finalmente, o Código

Civil de 2002, trazendo nova regulação sobre as relações de filiação em linha de consonância

com os parâmetros constitucionais atuais.

1. Código Civil de 1916

O Código Civil de 1916 foi editado em um momento histórico no qual vigoravam

na sociedade brasileira os ideais machistas e patriarcais de superioridade do homem sobre a

mulher, bem como os preceitos religiosos que repudiavam qualquer relacionamento familiar

estranho ao casamento.

Naquele momento, ainda sob forte influência dos preceitos do Direito Canônico, o

casamento era visto por muitos como uma instituição praticamente divina, que não deveria se

���������������������������������������� �������������������1 VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 8.

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equiparar a qualquer outra espécie de relacionamento. Seu rompimento, ainda, era difícil,

estando a quebra do vínculo conjugal limitada à ocorrência de poucas situações, como a morte

de um dos cônjuges, a nulidade do matrimônio ou o desquite.

E como não poderia ser diferente, também para a filiação foram aplicados os

ideais vigentes à época. Assim, tendo em vista a grande importância conferida ao casamento e

ao ideal de família que se tinha, positivou-se no Brasil uma série de regras diferenciadoras e

discriminatórias para os filhos com base no momento em que foram concebidos e no estado

civil dos seus genitores.

Existiam, portanto, duas categorias de filhos: os legítimos e os ilegítimos. Estes,

por sua vez, podiam ser naturais ou espúrios, sendo que os últimos se subdividiam em

adulterinos e incestuosos.

Legítimos, então, eram os filhos que fossem concebidos na constância de um

casamento válido ou de um casamento putativo, anulável ou nulo em razão da incompetência

da autoridade que o celebrou2. Explica Pontes de Miranda:

Diz-se “legítima” a filiação nos casos seguintes: a) se, no momento da

concepção, os pais se achavam vinculados por matrimônio válido; b) se os

filhos foram concebidos na constância da sociedade conjugal, quando

putativo o matrimônio, proviesse a invalidade de impedimento dirimente

absoluto ou de impedimento dirimente relativo; c) se o casamento, em cuja

vigência foram concebidos os filhos, era apenas anulável (art. 217); d) se os

filhos foram concebidos na constância de casamento nulo por incompetência

de autoridade celebrante, se não foi alegada a nulidade dentro em dois anos

da celebração (art. 208)3.

Ilegítimos, por sua vez, eram aqueles gerados por pessoas não unidas pelo vínculo

do casamento. Nas palavras de Clóvis Bevilaqua: “Filhos ilegítimos são todos aqueles que

procedem de união sexual, a que o direito não presta seu reconhecimento”4.

���������������������������������������� �������������������2 Referida classificação também vigia na Itália, conforme se verifica na lição de Francesco Galgano: “La materia è regolata in modo da favorire l’acquisto dello stato di figlio legittimo. Questo spetta, in linea di principio, a chi sai stato concepito o sai nato in constanza di matrimonio, ossia da genitori tra loro coniugati, non importa che si tratasse di matrimonio valido oppure di matrimonio poi dichiarato nullo”. GALGANO, Francesco. Diritto privato. Padova: CEDAM, 1996. p. 773. 3 MIRANDA, Pontes de. Direito de família: direito parental: direito protectivo. Atualização de Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 79. 4 BEVILAQUA, Clóvis. Direito da família. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 320.

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Os ilegítimos naturais eram aqueles cujos pais, em que pese não serem casados,

podiam sê-lo quando da concepção, vez que ausente quanto a eles qualquer impedimento

matrimonial naquele momento. Leciona Bevilaqua:

Aqueles cujos procriadores estavam em condições de realizar matrimônio

legal entre si, ao tempo da concepção ou do parto, por outros termos, aqueles

que não forem adulterinos, nem incestuosos, tomam a nome de

simplesmente naturais ou naturais em espécie5.

Por outro lado, os ilegítimos espúrios eram a escória dos filhos. Podiam ser eles

incestuosos, ou seja, gerados por pais ligados por um vínculo de parentesco que proibia o

matrimônio entre eles; ou adulterinos, decorrentes de relações sexuais extramatrimoniais, ou

seja, decorrentes de adultério. É a lição de Zeno Veloso:

Ilegítimos são os filhos cujos pais não estão unidos pelo laço do casamento,

distinguindo-se em naturais, se entre os genitores não havia impedimento

matrimonial na época da concepção, e espúrios, se existia impedimento

dirimente absoluto. Por sua vez, os filhos espúrios podiam ser incestuosos e

adulterinos. Incestuosos os filhos de parentes ou afins em grau proibido para

o casamento (o filho havido das relações sexuais entre irmão e irmã, por

exemplo). E adulterinos, os filhos de homem casado ou de mulher casada

com outra pessoa que não o cônjuge, podendo, portanto, a adulterinidade ser

a patre ou a matre6.

Em que pese serem igualmente ilegítimos, os filhos naturais e os espúrios

diferenciavam-se pelo fato de que os primeiros eram passíveis de legitimação. Isto é, havendo

nascimento de criança após relacionamento entre homem e mulher não impedidos de se casar,

caso eles, posteriormente, viessem a contrair matrimônio, o filho ilegítimo do casal passava

por um processo de legitimação, passando a se equiparar aos filhos legítimos. Nessa linha é a

lição de Pontes de Miranda:

���������������������������������������� �������������������5 BEVILAQUA, Clóvis. Direito da família. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 321. 6 VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 12.

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Diz-se legitimada a filiação quando por eficácia que a lei atribui ao

casamento subsequente, se equiparam aos concebidos na vigência do

matrimônio os que antes dele nasceram ou foram concebidos7.

Quanto aos filhos ilegítimos, apesar de não serem equiparados aos legítimos,

admitia-se o seu reconhecimento voluntário pelos pais, que podiam fazê-lo em conjunto ou

separadamente. Esse reconhecimento, entretanto, limitava-se aos ilegítimos naturais, uma vez

que o Código trazia previsão vedando o reconhecimento tanto dos filhos incestuosos como

dos adulterinos, conforme esclarece Zeno Veloso:

Observe-se que, pelo sistema do Código, os filhos ilegítimos que podiam ser

reconhecidos eram apenas os naturais – bem entendido, os simplesmente

naturais, os naturais em espécie (os que nascem de homem e mulher sem

impedimentos para o casamento). Os espúrios não mereceram a atenção nem

a piedade do legislador8.

Assim, os filhos ilegítimos naturais podiam tanto ser voluntariamente

reconhecidos por seus pais biológicos, como podiam ajuizar ação de reconhecimento de

paternidade ou maternidade forçado.

Os espúrios (incestuosos ou adulterinos) não podiam ter seu vínculo de filiação

reconhecido. Admitia-se tão somente a prova do vínculo de paternidade ou maternidade com

o fim de obter a prestação de alimentos.

Essas diferenças em razão da origem e do momento em que foram concebidos os

filhos demonstravam o objetivo da sociedade da época em preservar o ideal de família

formada pela união matrimonial entre homem e mulher, que legitimava a procriação. Nesse

sentido é a lição de Márcio Antonio Boscaro:

Tais normas refletiam o sentimento dominante na sociedade de então, no

sentido de preservar a família fundada no matrimônio e de resguardar esse

instituto contra ameaças externas, cuja expressão máxima seria o

���������������������������������������� �������������������7 MIRANDA, Pontes de. Direito de família: direito parental: direito protectivo. Atualização de Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 80. 8 VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 19.

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reconhecimento de um filho gerado por um dos cônjuges, com terceira

pessoa9.

Vale destacar, que, naquele momento, vigia a regra mater semper certa est,

segundo a qual a maternidade era sempre certa, ao passo que a paternidade era presumida

(presunção pater is est).

A razão para esse entendimento era o fato de que, em razão da gravidez, era fácil

atribuir a criança à mulher que a havia gestado.

Por sua vez, o vínculo de paternidade era atribuído ao homem que estivesse

casado com a mulher, desde que a criança nascesse pelo menos cento e oitenta dias após o

início da convivência conjugal ou nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade

conjugal por morte, desquite, ou anulação. Explica Pontes de Miranda:

A maternidade manifesta-se por sinais físicos inequívocos: a prenhez e o

parto. Daí a máxima: Mater semper certa est. A paternidade é, por sua

natureza, oculta e incerta. Não havendo indícios, nem sendo fácil ao homem,

como não no é, apurar de que pai procede o filho, a sociedade recorre à

presunção. [...] Por isso mesmo, em princípio, a regra Pater is est quem

nuptiae demonstrant não é, de ordinário, suscetível de prova em contrário.

Assim o exigem a honra, a ordem social e a dignidade mesma do

casamento10.

Ao mesmo tempo, a mulher era tratada de maneira desigual em comparação ao

homem, em razão do machismo que prevalecia, devendo ser “honesta” ao passo que os

homens podiam, sem tanta censura, ter relacionamentos com várias mulheres antes do

casamento e, até mesmo na sua vigência, vez que tal comportamento não era socialmente

condenado com o mesmo rigor que o era o adultério cometido pela mulher.

Justamente por isso eram maiores os casos de homens que tinham filhos fora do

casamento, em situação de adultério, do que as mulheres, que se dedicavam quase

integralmente ao lar e à família.

���������������������������������������� �������������������9 BOSCARO, Márcio Antonio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 65. 10 MIRANDA, Pontes de. Direito de família: direito parental: direito protectivo. Atualização de Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 93.

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Além da diferença existente entre filhos legítimos e ilegítimos, também os

adotados não se equiparavam a eles, sendo considerados como uma classe à parte.

Previa o Código Civil de 1916 que os filhos havidos por adoção não entravam na

sucessão hereditária quando o adotante, antes do estabelecimento desse vínculo, tivesse filhos

legítimos, legitimados ou reconhecidos.

E, caso os filhos legítimos fossem concebidos após a adoção, o adotado teria

direito somente à metade da herança que caberia ao legítimo.

Ainda, tendo em vista que a adoção somente gerava vínculo de parentesco entre

adotante e adotado, este não tinha direito de sucessão em relação aos parentes do adotante, ao

contrário do que se dava com os filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos do mesmo.

Percebe-se que o vínculo de adoção não tornava adotante e adotado como pai/mãe

e filho equiparado aos filhos biológicos. Também o adotado não era visto como um irmão dos

filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos do adotante, razão pela qual seus direitos

sucessórios eram diferentes e limitados.

Ou seja, quando da edição do Código Civil de 1916 vigia uma série de

diferenciações entre os filhos biológicos, conforme fossem havidos dentro ou fora do

casamento, ao mesmo tempo em que a eles não se equiparavam os adotivos.

Ocorre, porém, que as normas trazidas pela codificação de 1916 eram

discriminatórias e suprimiam uma série de direitos tão somente em razão de ideais que

permeavam a sociedade da época.

Em razão disso, com o passar dos anos, o quadro de privilégio aos filhos

legítimos em detrimento dos ilegítimos, bem como a diferenciação dada aos adotivos, foi

transmudando para um panorama de equiparação de direitos, até alcançar o tratamento

igualitário vigente em nosso ordenamento atual.

2. Decreto-lei nº 4.737/42

As leis que foram sendo editadas após o Código Civil de 1916 trouxeram, aos

poucos, uma flexibilização no que tange ao rígido tratamento diferenciado até então

dispensado aos filhos havidos fora da união matrimonial.

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O Decreto-lei nº 4.737/42, assim, foi editado com o objetivo de permitir o

reconhecimento de filhos adulterinos, mas condicionando o exercício desse direito ao desquite

do pai ou mãe biológico do menor, conforme disposto em seu artigo 1º, in verbis:

Art. 1º. O filho havido pelo cônjuge fora do matrimônio pode, depois do

desquite, ser reconhecido ou demandar que se declare sua filiação.

À época, o desquite era previsto como uma das formas de dissolução da sociedade

conjugal, prevista no artigo 315 do Código Civil de 1916 ao lado da morte de um dos

cônjuges e da nulidade ou anulação do casamento.

Justamente por não ser o desquite a única maneira então prevista para dissolver a

sociedade formada pelo casamento, referido diploma legal limitava o reconhecimento dos

filhos somente à ocorrência dessa situação, conforme leciona Washington de Barros

Monteiro:

[...] aludido decreto-lei ainda não satisfez, porquanto só possibilitava o

reconhecimento de filho havido fora do casamento depois do desquite do

genitor. Não se referiu ele às outras causas de terminação da sociedade

conjugal, como a morte de um dos cônjuges. De modo que, embora extinto o

vínculo conjugal, lícito não era promover ou pleitear reconhecimento de

filho havido fora do casamento. Assim foi reiteradamente julgado11.

E, em razão da limitação imposta pelo decreto-lei, houve quem defendesse que,

também nas demais hipóteses, seria possível o reconhecimento do filho adulterino. É esse o

ensinamento de Zeno Veloso:

A melhor doutrina propôs uma interpretação extensiva do texto legal, a

hermenêutica ampliativa para o Decreto-lei n. 4.737/42, para que os filhos

havidos fora do matrimônio pudessem ser reconhecidos se a sociedade

conjugal se dissolvesse, em qualquer caso – morte de um dos cônjuges,

anulação do casamento –, e não apenas se adviesse o desquite12.

Percebe-se que, independente da interpretação restritiva ou extensiva do referido

Decreto-lei, o mesmo inovou no ordenamento jurídico da época, derrogando artigo 358 do

���������������������������������������� �������������������11 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v. 2: direito de família. 39. ed., rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 355. 12 VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 44.

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Código Civil de 1916, ao permitir – ainda que de maneira limitada – o reconhecimento dos

filhos adulterinos.

Permaneceu em vigor, entretanto, a vedação ao reconhecimento dos filhos então

tidos como incestuosos e também dos adulterinos enquanto vigente o matrimônio do seu pai

ou mãe biológico.

3. Lei nº 883/49

Em 21 de outubro de 1949 foi editada a Lei nº 883, revogando o então vigente

Decreto-lei nº 4.737/42 e pondo fim à discussão sobre a possibilidade de reconhecimento dos

filhos adulterinos somente após o desquite ou, também, após a dissolução da sociedade

conjugal por qualquer de suas outras formas.

Referida lei, em seu artigo 1º, previa expressamente a possibilidade de

reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento uma vez dissolvida a sociedade

conjugal. Ampliou-se, portanto, a limitação trazida pelo revogado Decreto-lei. Vejamos:

Art. 1º Dissolvida a sociedade conjugal, será permitido a qualquer dos

cônjuges o reconhecimento do filho havido fora do matrimônio e, ao filho a

ação para que se lhe declare a filiação.

Nota-se, então, uma clara ampliação da possibilidade de reconhecimento dos

filhos adulterinos, vez que não havia sentido em se limitá-la à ocorrência do desquite,

diminuindo as restrições existentes até a edição da Lei nº 883/49. Nesse sentido leciona Caio

Mário da Silva Pereira:

Com o advento da Lei nº 883, de 21 de outubro de 1949, passaram a ter

legitimatio, para serem reconhecidos, todos os filhos havidos fora do

casamento, tal como preconizáramos sob o império do Decreto-lei nº 4.737,

subordinada a atribuição do estado à dissolução da sociedade conjugal, seja

pelo desquite, seja pela morte de um dos cônjuges, seja pela anulação do

matrimônio13.

A evolução no tratamento conferido aos filhos havidos fora do casamento,

entretanto, limitou-se à facilitação do seu reconhecimento. Isso porque, ao mesmo tempo em

���������������������������������������� �������������������13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de paternidade e seus efeitos. Rio de Janeiro: Forense, 1977. p. 44.

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que ampliava tal possibilidade, a mesma lei trazia dispositivo inferiorizando tais filhos em

comparação com os legítimos ao dispor que o filho havido fora do casamento só tinha direito

à metade da herança que cabia ao filho legítimo ou legitimado.

Percebe-se que, em que pese a possibilidade de reconhecimento, ainda não

objetivava o legislador proceder a uma equiparação no que tange aos direitos e deveres dos

filhos, mantendo-se a diferenciação entre legítimos e ilegítimos.

4. Lei nº 6.515/77

A Lei nº 6.515/77, a despeito de ter sido editada com o principal objetivo de

regular a dissolução da sociedade conjugal pelo divórcio, também acabou por inovar no

âmbito do reconhecimento do vínculo de filiação.

Em seu artigo 51, incluiu no artigo 1º da Lei nº 883/49 a possibilidade de

reconhecimento do filho havido fora do casamento, por qualquer dos cônjuges, ainda na sua

vigência, o que podia ser feito por testamento cerrado, irrevogável nessa parte.

Também, alterou a redação do artigo 2º da Lei nº 883/49 prevendo que “qualquer

que seja a natureza da filiação, o direito à herança será reconhecido em igualdade de

condições”. Acabou, portanto, com a discriminação até então vigente entre filhos adulterinos

e filhos legítimos ou legitimados no que tange à herança, garantindo a todos os mesmos

direitos sucessórios, em igualdade de condições. Explica Zeno Veloso:

É fácil perceber que foi um passo corajoso e notável. A partir de então, ficou

banida toda e qualquer discriminação entre filhos legítimos, naturais e

adulterinos quanto à herança paterna. Os filhos passaram a ter o mesmo e

igual direito à herança do genitor. Nada mais racionável e justo14.

Percebe-se que, além de incluir no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade da

dissolução voluntária do vínculo conjugal por meio do instituto do divórcio, a Lei nº 6.515/77

deu mais alguns passos em direção ao fim da diferenciação entre filhos em razão da sua

origem, ampliando seus direitos no que tange à sucessão legítima.

���������������������������������������� �������������������14 VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 76.

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5. Constituição Federal de 1988

O advento da Constituição Federal de 1988 deu início ao chamado processo de

constitucionalização do Direito Civil, que se caracterizou pela necessidade de se confrontar os

institutos de Direito Privado com os novos princípios constitucionais, dentre os quais se

destaca a dignidade da pessoa humana.

Esse processo, por óbvio, convergiu para a constitucionalização dos institutos de

Direito de Família, até então vistos sob uma ótica patriarcal e conservadora. Aniquilaram-se

antigos preceitos, o que permitiu o surgimento de um novo paradigma para o conceito de

família, conforme leciona Paulo Lôbo:

O modelo igualitário da família constitucionalizada contemporânea se

contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a

solidariedade, o respeito à dignidade das pessoas que a integram são os

fundamentos dessa imensa mudança paradigmática que inspiraram o marco

regulatório estampado nos arts. 226 a 230 da Constituição de 198815.

Essa mudança de paradigmas repercutiu também no âmbito da filiação. A Carta

Magna de 1988 pôs fim à diferenciação entre filiação legítima e ilegítima, bem como a

qualquer distinção de tratamento entre os componentes do núcleo familiar, estabelecendo:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,

ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,

à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,

além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão. [...]

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão

os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações

discriminatórias relativas à filiação.

Percebe-se, portanto, que a Carta de 1988 não recepcionou as normas então

vigentes, que estabeleciam diferenciações e discriminações em relação aos filhos e às

formações familiares. Passaram todos os filhos a merecer tratamento igualitário, tenham eles

���������������������������������������� �������������������15 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 33.

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sido concebidos dentro do casamento, em relação extraconjugal, por pessoas solteiras ou sido

adotados16.

Nesse momento, a família deixou de ser vista como uma instituição social

dominada pelo marido na qual não havia espaço para qualquer vínculo estabelecido à margem

dos padrões estabelecidos pela lei.

Passou-se a olhar para os membros da comunidade familiar com vistas a garantir a

cada um deles a plena realização da sua dignidade e de seus projetos pessoais. Para isso fez-se

necessário acabar com as diferenciações entre filhos e limitações antes estabelecidas ao seu

relacionamento com seus pais.

Nesse sentido é a lição de Zeno Veloso:

A Constituição de 1988 fez uma reforma profunda, alterou substancialmente

o direito de família em nosso País. A família organizada em uma estrutura

autoritária, sob a chefia do pater, com uma hierarquia bem definida, é coisa

do passado. Nem se pode mais, para distinguir, diminuir ou discriminar,

fazer diferença entre as famílias formalmente constituídas e as famílias que

decorrem das uniões estáveis. Os filhos não se classificam mais, libertaram-

se os carimbos e etiquetas, instituindo-se um estatuto unitário e igualitário da

filiação. Dominam, agora, os princípios da liberdade e da igualdade.

Igualdade entre os cônjuges, igualdade entre os companheiros, igualdade

entre os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção17.

E foi a partir da previsão da igualdade entre os filhos, independentemente de sua

origem, que teve início a sua regulamentação por leis infraconstitucionais, culminando,

inclusive, na adoção da disposição constitucional pelo Código Civil de 2002.

Consagrou-se, nas palavras de Zeno Veloso, o entendimento de que “não existem

mais filhos legítimos e filhos ilegítimos, mas filhos, puramente, unicamente, sem aquela

adjetivação difamante, execrável e vergonhosa de outrora”18.

���������������������������������������� �������������������16 Nesse sentido explica Washington de Barros Monteiro: “A Constituição de 1988 (art. 226, §6º) proibiu, entre nós, quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, atribuindo os mesmos direitos aos filhos oriundos ou não de casamento”. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v. 2: direito de família. 39. ed., rev. e atual. por Regina Beatriz Tavares da Silva. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 356. 17 VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 7. 18 Idem. p. 87.

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A partir desse momento deixaram de ser admitidas as limitações antes impostas ao

livre reconhecimento dos filhos. Sendo todos eles iguais, não há que se impedir o

reconhecimento de nenhum deles, independentemente do momento em que foram concebidos

e se isso se deu dentro ou fora de um relacionamento matrimonial.

A Constituição de 1988 também abriu a possibilidade do estabelecimento de

novas formas familiares, seja em relação às pessoas que se unem com o fim de constituir

família, seja em relação aos filhos.

6. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90)

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi editado com o objetivo de conferir

tratamento prioritário às pessoas que se encontram em peculiar situação de desenvolvimento,

protegendo-as de qualquer interferência capaz de prejudicar sua plena formação e a realização

de sua dignidade.

Para tanto, em repetição ao dispositivo constitucional supramencionado, em seu

artigo 20 o Estatuto estabeleceu a igualdade entre os filhos e vedou quaisquer discriminações

em relação à filiação, inclusive no que concerne aos adotados.

Ainda, passou a prever que o direito ao reconhecimento de filiação é

personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado sem qualquer restrição.

Nesse sentido leciona Márcio Antonio Boscaro:

E com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei

8.069/90), igualmente sob a égide de nossa vigente Magna Carta, permitiu-se

a plena possibilidade de reconhecimento para qualquer filho havido fora do

casamento, não importando, para tanto, qual seja a origem da filiação.

Também se previu nessa lei que o reconhecimento do estado de filiação é

direito personalíssimo, indisponível e imprescindível, que pode ser

exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição,

resguardado o segredo de justiça19.

O Estatuto da Criança e do Adolescente deixou claro não estar mais em vigor em

nosso ordenamento jurídico a ideia do Código Civil de 1916 que vedava o reconhecimento

dos filhos incestuosos e adulterinos, uma vez que tal discriminação não é mais aceita.

���������������������������������������� �������������������19 BOSCARO, Márcio Antonio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 69

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Para efetivar o ideal de proteção integral à criança e ao adolescente, garantindo a

efetivação de todos os seus direitos, imperioso garantir-lhes tratamento igualitário e digno em

relação aos seus pais, independentemente de limitações legais patriarcais que marginalizavam

toda uma classe de pessoas que, em razão da natureza humana, não nasciam no seio de um

casamento legalmente celebrado.

Assim, as previsões a respeito da filiação introduzidas em nosso ordenamento

pelo Estatuto da Criança e do Adolescente se prestaram para corroborar com o ideal de

democratização das relações familiares trazido pela Constituição de 1988.

7. Lei nº 8.560/92

Pouco tempo após a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente, foi

publicada a Lei nº 8.560/92, com o objetivo de regulamentar o procedimento de investigação

de paternidade dos filhos havidos fora do casamento.

Referida lei se fez necessária porque, apesar de, à época, já vigorarem os preceitos

que impunham a igualdade e o livre reconhecimento dos filhos independente de qualquer

restrição, a lei civil ainda não havia sido modificada para se adequar à nova realidade.

Revogaram-se, então, expressamente, os artigos 332, 337 e 347 do Código Civil de 1916, bem

como os demais dispositivos contrários às novas disposições legais.

Nesse sentido explica Márcio Antonio Boscaro:

Visando a proteger os interesses de prole não-matrimonial e a tornar efetivo

o princípio constitucional da paternidade responsável, foi editada a Lei

8.560/92, que buscou alargar as possibilidades de reconhecimento da

paternidade20.

O artigo 1º da referida lei trouxe a possibilidade de reconhecimento espontâneo

dos filhos havidos fora do casamento pelas seguintes formas: (i) no registro de nascimento;

(ii) por escritura pública ou escrito particular, a ser arquivado em cartório; (iii) por

testamento, ainda que incidentalmente manifestado; e (iv) por manifestação expressa e direta

perante o juiz, ainda que o reconhecimento não tenha sido o objeto único e principal do ato

que o contém.

���������������������������������������� �������������������20 BOSCARO, Márcio Antonio. Direito de filiação. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 69.

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Ainda, objetivando evitar a perpetuação de quaisquer discriminações com relação

aos filhos havidos fora do casamento, referida lei proibiu a legitimação do filho na ata do

casamento, vez que não era mais possível distinguir os filhos em legítimos e naturais passíveis

de legitimação; bem como vedou que nas certidões de nascimento constasse qualquer

referência à concepção ter decorrido de relacionamento extraconjugal.

Também inovou em nosso ordenamento ao prever a possibilidade de investigação

oficiosa de paternidade, procedimento criado para averiguar a paternidade daquele em cuja

certidão de nascimento constasse tão somente o nome da mãe. Sendo a paternidade

confirmada, proceder-se-á à averbação do registro; caso contrário, ou diante do silêncio por

mais de trinta dias, terá o Ministério Público legitimidade para intentar ação de investigação

de paternidade.

Percebe-se, assim, que o objetivo da referida lei foi facilitar o procedimento de

reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, seja ele feito voluntariamente pelo pai

ou pela mãe biológicos ou buscado pelo filho.

8. Código Civil de 2002

O paradigma patriarcal e hierarquizado de família, trazido pelo Código Civil de

1916, passou a ser deixado de lado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, mas

somente anos depois, com a edição do Código Civil de 2002, a codificação privada encampou

os novos ideais aplicáveis ao Direito de Família.

Assim, à semelhança da Carta Magna e do Estatuto da Criança e do Adolescente,

o atual Código Civil traz expressamente a previsão acerca da igualdade entre os filhos,

incluindo os adotivos. Vejamos:

Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por

adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer

designações discriminatórias relativas à filiação.

Além disso, não há mais qualquer limitação ao reconhecimento do vínculo de

filiação, seja pelo pai, seja pela mãe, podendo ser feito a qualquer tempo, independentemente

da situação na qual o filho foi concebido.

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Ainda, o Código Civil de 2002 abriu espaço para o reconhecimento da filiação

socioafetiva com a redação do seu artigo 1.593, in verbis:

Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de

consanguinidade ou outra origem.

Percebe-se, assim, que, em consonância com os ideais da Constituição de 1988, o

Código Civil de 2002 confere relevo não apenas aos laços biológicos, mas também àqueles

que decorrem tão somente do afeto, abrindo margem para que, pela afetividade, surja um

vínculo de parentesco e, até mesmo, de filiação.

Com isso, a filiação deixa de ser dotada da antiga concepção de ser somente o

laço que vincula pais e filhos biológicos para abranger todas as relações nas quais se forma

um verdadeiro vínculo paterno-materno-filial. Leciona Maria Helena Diniz:

Filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de

parentesco consanguíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e

aqueles que lhe deram a vida, podendo, ainda (CC, arts. 1.593 a 1.597 e

1.618 e s.), ser uma relação socioafetiva entre pai adotivo e institucional e

filho adotado ou advindo de inseminação artificial heteróloga21.

E é esse o momento histórico atual, em que muitas disposições legais têm sido

alvo de críticas e intenções de mudanças, justamente com vistas a se distanciar cada vez mais

dos ideais patriarcais ainda arraigados em nossa sociedade e a se aproximar do respeito às

múltiplas formações afetivas, conferindo tratamento igualitário a todas as formas de família e

protegendo com a mesma intensidade todos aqueles que figurarem na posição de filho,

independentemente do modo como passaram a ocupá-la no seio de sua família.

Aos poucos se tem aceitado com mais facilidade a diversa gama de formações

familiares que surgem na sociedade22, tendo em vista que o ser humano, em busca de sua

���������������������������������������� �������������������21 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 5: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 499-500. 22 Interessante a explicação sobre a noção atual de família trazida por Belmiro Pedro Welter: “A família do terceiro milênio é formada pelo casamento, união estável e pela comunidade formada por qualquer dos pais e o filho, denominada família nuclear, pós-nuclear, unilinear, monoparental, eudemonista ou socioafetiva. É observada a igualdade entre casamento e união estável, no predomínio dos interesses afetivos em detrimento do patrimonial, não havendo mais hierarquia de seus membros, mas, sim, o interesse de seus membros na felicidade recíproca (arts. 226 a 230 da CF), já que, “sem amor, não há família”. Atualmente, existe somente uma história a ser contada sobre a família: a democrática, com vida familiar individual e solidariedade social, “igualdade emocional e sexual; direitos e responsabilidades mútuos nos relacionamentos; co-paternidade; contratos vitalícios de paternidade; autoridade negociada sobre os filhos; obrigações dos filhos para com os pais; a família

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plena realização pessoal, se une a outros não de acordo com os ditames legais, mas com o

afeto que nutre por determinadas pessoas.

Não se pode querer acreditar que as normas positivadas são capazes de abarcar

todas as possibilidades de formações familiares que podem surgir. Ao contrário, em razão da

dinâmica das relações sociais, é preciso lidar diariamente com novas questões que colocam

em cheque entendimentos até então consolidados.

Isso porque o Direito é uma ciência que está em constante evolução, vez que

objetiva regulamentar a vida em sociedade, a qual não é estática. Os costumes se alteram com

o passar dos tempos e com a evolução da humanidade, dando margem ao surgimento de novas

modalidades de relacionamentos.

Esse movimento constante, a despeito de existir em todos os ramos do Direito, é

muito visível no campo do Direito de Família, o qual, cada vez mais, se distancia de conceitos

pré-estabelecidos e dos limites das normas legais, vez que estes não são suficientes para

amparar a diversidade de relações familiares que os indivíduos constituem dia após dia.

���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������

socialmente integrada”, demonstrando, assim, que “nenhum outro ramo do Direito vem recebendo tantos influxos nem passando por tantas mutações”. WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 147.

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CAPÍTULO II – PRINCÍPIOS INFORMADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA

Os princípios, ao mesmo tempo em que funcionam de base para o

desenvolvimento do ordenamento jurídico, também atuam como parâmetro interpretativo do

sistema.

Ao se analisar as relações familiares sob a ótica principiológica é possível buscar

a flexibilização das normas positivadas de modo a alcançar a concretização dos ideais trazidos

pelos princípios aplicáveis ao Direito de Família.

Esse recurso se faz necessário porque, diante da diversidade de formações

familiares que surgem a cada dia, é preciso encontrar um modo de protegê-las e tutelá-las sob

a ótica do ordenamento vigente, o que exige um constante diálogo entre as normas e os

princípios23.

1. Princípios

Os princípios, estejam eles positivados ou não, nada mais são do que proposições

genéricas que informam a aplicação do direito aos casos concretos.

Atualmente não se pode negar que tais proposições não funcionam meramente

como recomendações ao aplicador do Direito, vez que atuam com verdadeira força normativa,

podendo ter aplicação direta.

O vocábulo princípio traz em si a ideia de início, de começo, conforme leciona

Roque Carrazza:

Etimologicamente, o termo “princípio” (do latim principium, principii)

encerra a ideia de começo, origem, base. Em linguagem leiga é, de fato, o

ponto de partida e o fundamento (causa) de um processo qualquer. [...] Por

igual modo, em qualquer Ciência, princípio é o começo, alicerce, ponto de

���������������������������������������� �������������������23 Nesse sentido explica Rodrigo da Cunha Pereira: “[...] o papel dos princípios é, também, informar todo o sistema, de modo a viabilizar o alcance da dignidade humana em todas as relações jurídicas, ultrapassando, dessa forma, a concepção estritamente positivista, que prega um sistema de regras neutro. Não mais se aceita um Direito adstrito a concepções meramente formais, enclausurado em uma moldura positivista. É necessário ultrapassar esta barreira e visualizar que só é possível a construção de um Direito vivo e em consonância com a realidade se tivermos em mente um Direito principiológico”. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 18.

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partida. Pressupõe, sempre, a figura de um patamar privilegiado, que torna

mais fácil a compreensão ou a demonstração de algo. Nesta medida, é, ainda,

a pedra angular de qualquer sistema24.

Percebe-se a partir de tal definição que os princípios informam o sistema do qual

fazem parte. Assim, no âmbito do Direito, temos os princípios que vinculam o aplicador do

Direito no momento de interpretação e aplicação das normas jurídicas, conforme continua

Roque Carrazza:

Princípio jurídico é um enunciado lógico, implícito ou explícito, que, por sua

grande generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes

do Direito e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e

a aplicação das normas jurídicas que com ele se conectam25.

Em razão da posição que ocupam, Celso Antôno Bandeira de Mello conceitua os

princípios como o “mandamento nuclear de um sistema”26, uma vez que funcionam como

base para a compreensão dos objetivos do sistema jurídico.

Princípios jurídicos, portanto, são os regramentos básicos que incidem sobre os

institutos existentes em nosso ordenamento. Atuam como orientadores no processo

legislativo, bem como elementos de interpretação no momento da aplicação do Direito.

São, conforme destaca Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel, “diretrizes com

força normativa, destinadas à solução de controvérsias submetidas a juízo, cumprindo funções

de interpretação, integração e aplicação do direito positivo”27.

Não se confundem com as regras em razão de dois critérios de diferenciação: a

generalidade e a determinabilidade dos casos de aplicação. Isto é, os princípios são normas

dotadas de alto grau de generalidade, que prescrevem condutas dentro das possibilidades

fáticas e jurídicas do caso concreto (mandamento prima facie); enquanto as regras prescrevem

comandos que devem ser cumpridos. É o que explica Guilherme Calmon Nogueira da Gama: ���������������������������������������� �������������������24 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 42. 25 Idem. p. 44-45. 26 Confira-se a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “Princípio é, pois, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para exata compreensão e inteligência delas, exatamente porque define a lógica e a racionalidade do sistema normativo, conferindo-lhe a tônica que lhe dá sentido harmônico”. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 53. 27 GURGEL, Fernanda Pessanha do Amaral. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, São Paulo, 2008.

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Enquanto a regra aponta suporte fático hipotético mais determinado e

fechado, o princípio indica suporte fático hipotético necessariamente

indeterminado e aberto. A regra é aplicada pela técnica da subsunção, ou

seja, com a concretização na realidade dos fatos da hipótese de incidência

(ou suporte fático hipotético), o aplicador reconhece a incidência da regra. O

princípio, por sua vez, depende da mediação concretizadora do intérprete,

orientado pela observância da equidade, ou a ‘justiça do caso concreto’28.

Os princípios, portanto, trazem valores que devem ser observados pela sociedade

e pelo ordenamento jurídico dentro das possibilidades existentes, constituindo verdadeiros

“mandamentos de otimização”, ou seja, mandamentos prima facie, conforme ensina Robert

Alexy:

Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são

caracterizados por poderem ser satisfeitos e graus variados e pelo fato de que

a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades

fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das

possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes29.

Enquanto as regras são normas que devem ser ou não cumpridas observando-se a

correspondência entre a sua previsão e o caso concreto, conforme continua Alexy:

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se

uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem

mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito

daquilo que é fática e juridicamente possível30.

Percebe-se, portanto, que princípios e regras são espécies do gênero norma, vez

que ambos, nos limites de suas possibilidades, direcionam-se ao estabelecimento daquilo que

deve ser.

E, em razão da relevância dos princípios como norte de interpretação e aplicação

do Direito, é de se reconhecer a sua importância no âmbito do Direito de Família.

���������������������������������������� �������������������28 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família : guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. p. 64. 29 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 90. 30 Idem. p. 91.

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Ao se recorrer aos princípios, permite-se a harmonização das normas de família

positivadas com os valores inseridos em nosso ordenamento pela Constituição de 1988.

2. Cidadania

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, elenca a cidadania como um

dos fundamentos da República Federativa do Brasil31.

Juntamente com a dignidade da pessoa humana, ela é necessária para a

concretização dos ideais do Estado Democrático de Direito, conforme explica Flávia

Piovesan:

Dentre os fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito

brasileiro, destacam-se a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I

e II). Vê-se aqui o encontro do princípio do Estado Democrático de Direito e

dos direitos fundamentais, fazendo-se claro que os direitos fundamentais são

um elemento básico para a realização do princípio democrático, tendo em

vista que exercem uma função democratizadora32.

Ocorre que o termo cidadania possui diversas acepções. Dalmo Dallari realiza a

distinção conceitual entre cidadania e cidadania ativa, entendendo a primeira como

relacionada à titularidade de direitos e deveres e a segunda, ao exercício de direitos políticos.

Vejamos:

A aquisição da cidadania depende sempre das condições fixadas pelo próprio

Estado, podendo ocorrer com o simples fato do nascimento em determinadas

circunstâncias, bem como pelo atendimento de certos pressupostos que o

Estado estabelece. A condição de cidadão implica direitos e deveres que

acompanham o indivíduo mesmo quando se ache fora do território do

Estado. A cidadania ativa, por sua vez, pressupõe a condição de cidadão,

mas exige que, além disso, o indivíduo atenda a outros requisitos exigidos

pelo Estado. Se o cidadão ativo deixar de atender a alguns desses requisitos,

���������������������������������������� �������������������31 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. 32 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 88.

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poderá perder ou ter reduzidos os atributos da cidadania ativa, segundo o

próprio Estado dispuser, sem, no entanto, perder a cidadania33.

Percebe-se que, uma das conotações da palavra cidadania – e a mais

frequentemente utilizada – é a que a relaciona ao exercício dos direitos políticos, ou seja, aos

direitos de votar e ser votado, permitindo ao cidadão a participação no Estado Democrático de

Direito. É a lição de Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano:

Os direitos políticos, ou de cidadania, resumem o conjunto de direito que

regulam a forma de intervenção popular no governo. Em outras palavras, são

aqueles formados pelo conjunto de preceitos constitucionais que

proporcionam ao cidadão sua participação na vida pública do País,

realizando, em última análise, o disposto no parágrafo único do art. 1º da

Constituição Federal, que prescreve que “todo poder emana do povo, que o

exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta

Constituição”34.

Entretanto, ao presente trabalho interessa ver a cidadania como o direito de

titularizar direitos e de ver tais direitos devidamente tutelados pelo ordenamento jurídico,

conforme leciona Oswaldo Peregrina Rodrigues:

Assim sendo, como fundamento da República Federativa do Brasil, com o

escopo de garantir eficácia jurídica ao Estado Social, Democrático e de

Direitos, entendo que “cidadania”, acolhendo a expressão de Hannah Arendt,

“o direito a ter direitos”, ou seja, o direito a ser titular de direitos, e, por

conseguinte, a garantia e proteção de todos os seus direitos, como também

de seu livre e adequado exercício35.

A cidadania elencada pela Constituição Federal como fundamento da República

Federativa do Brasil, que deve ser observada pelo ordenamento e pelos aplicadores do direito

como princípio informador das relações jurídicas é aquela em sua noção ampla, relacionada à

titularidade de direitos e deveres. É o que explica Richard Pae Kim:

���������������������������������������� �������������������33 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 105. 34 ARAUJO, Luiz Alberto David; SERRANO, Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Verbatim, 2014. p. 303. 35 RODRIGUES, Oswaldo Peregrina. Cidadania é direito. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu. Disponível em: <http://www.usjt.br/revistadireito/>. n. 2. 2014. Acesso em 02.06.2015.

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A noção ampla de cidadania implica na qualidade da pessoa de ser titular e

de ver reconhecidos os seus direitos humanos, que não são mais localizados,

mas que são e devem ser universais, razão pela qual se sustentou ser

necessário o reconhecimento, em especial no Brasil, de que temos uma

“cidadania universal”, que inclusive deve ser reconhecida aos nacionais ou

não36.

A sua concepção no sentido de o direito de todo indivíduo a ter direitos está

diretamente relacionada com a noção de dignidade da pessoa humana, que será explicada a

seguir. Somente olhando para os indivíduos como titulares de direitos e como merecedores de

tratamento digno, será possível concretizar os ideais elencados pela Carta Magna. Nessa linha

de raciocínio explicam Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano:

A expressão cidadania, aqui indicada como fundamento da República,

parece não se resumir à posse de direitos políticos, mas, em acepção diversa,

parece galgar significado mais abrangente, nucleado na ideia, expressa por

Hannah Arendt, do direito a ter direitos. Segue-se, nesse passo, que a ideia

de cidadania vem intimamente entrelaçada com a de dignidade da pessoa

humana37.

A cidadania, em sua acepção ampla, portanto, deve funcionar como princípio

informador de todas as relações jurídicas, inclusive as de Direito de Família. É o ensinamento

de Rodrigo da Cunha Pereira:

Cidadania pressupõe não exclusão. Isto deve significar a legitimação e a

inclusão no laço social de todas as formas de família, respeito a todos os

vínculos afetivos e a todas as diferenças. Portanto, o princípio da dignidade

humana significa para o Direito de Família a consideração e o respeito à

autonomia dos sujeitos e à sua liberdade38.

Os indivíduos são cidadãos, devendo ter seus direitos e deveres garantidos não

somente quando se relacionam com outras pessoas, mas também quando se encontram no seio

���������������������������������������� �������������������36 KIM, Richard Pae. O conteúdo jurídico de cidadania na Constituição Federal do Brasil. In: MORAES, Alexandre; KIM, Richard Pae (Coord.) Cidadania. O novo conceito jurídico e a sua relação com os direitos fundamentais individuais e coletivos. São Paulo: Atlas, 2013. p. 38. 37 ARAUJO, Luiz Alberto David; SERRANO, Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional. São Paulo: Editora Verbatim, 2014. p. 143. 38 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 100.

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de sua família. Sendo assim, não cabe realizar distinções e exclusões conforme as variadas

formações familiares existentes.

Isso porque o direito a titularizar e exercer direitos deve ser o ponto de partida

tanto do legislador como do aplicador do direito no momento de interpretar as situações

concretas, pois somente tendo em conta esse fundamento será possível respeitar as

necessidades de cada indivíduo de modo a concretizar a realização de sua dignidade humana.

3. Dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade humana, assim como o da cidadania, também está

elencado no artigo 1º da Constituição Federal.

É, como se sabe, o princípio maior, a norma hipotética fundamental da

Constituição brasileira, vez que, conforme explica Kelsen, “representa o fundamento da

validade de todas as normas pertencentes a essa ordem normativa”39.

Ou seja, todas as normas do ordenamento jurídico brasileiro encontram seu

fundamento de validade no princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual ela deve

sempre ser observada. Leciona Flávia Piovesan:

[...] o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e

informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de

valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema

constitucional40.

Seu significado, entretanto, é de difícil obtenção, visto o elevado grau de

abstração trazido pela expressão “dignidade”, que deve se estender a todos os âmbitos da vida

humana e varia conforme as peculiaridades de cada indivíduo.

Entretanto, a despeito da árdua tarefa de se encontrar uma definição para tal

princípio, leciona Ingo Sarlet:

[...] temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e

distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo

���������������������������������������� �������������������39 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 217. 40 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 89.

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respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,

neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que

assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e

desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas

para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa

e co-responsável nos destino da própria existência e da vida em comunhão

como os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres

que integram a rede da vida41.

Percebe-se, então, que se deve entender por dignidade o ideal de respeito e

proteção a todos os indivíduos no seio da coletividade, para que cada ser humano possa se

autodeterminar e desenvolver da maneira mais adequada possível às suas individualidades.

Explica Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

A noção de dignidade da pessoa humana envolve o núcleo existencial que é

essencialmente comum a todos os seres humanos como pertencentes ao

gênero humano, impondo, no que tange à dimensão pessoal da dignidade,

um dever geral de respeito, de proteção e de intocabilidade, não sendo

admissível qualquer comportamento que “coisifique” a pessoa humana42.

Justamente por estar voltada à plena realização da pessoa, a dignidade também

deve ser preservada no âmbito familiar, vez que é a família a micro sociedade na qual a

pessoa encontra seus primeiros desafios e da qual ela sai para se colocar no mundo. Devem os

membros da família, portanto, prezar pela garantia de uma existência digna de todos eles,

individual e coletivamente. Nessa toada é o ensinamento de Maria Berenice Dias:

A dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para

florescer. A ordem constitucional dá-lhe especial proteção

independentemente de sua origem. A multiplicação das entidades familiares

preserva e desenvolve as qualidades mais relevantes entre os familiares – o

afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o projeto de

vida comum –, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada

���������������������������������������� �������������������41 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. p. 73. 42 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família : guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. p. 70.

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partícipe com base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e

humanistas43.

A família, portanto, aparece como um instrumento de realização do ser humano.

As pessoas buscam se unir para dar origem a uma relação familiar para nela se desenvolver,

autodeterminar e encontrar suporte para concretização de seus ideais. É o ensinamento de

Paulo Lôbo:

A família, tutelada pela Constituição, está funcionalizada ao

desenvolvimento da dignidade das pessoas humanas que a integram. A

entidade familiar não é tutelada para si, senão como instrumento de

realização existencial de seus membros44.

E, tendo em vista que os princípios assumem função orientadora e interpretativa,

deve-se observar a relevância da garantia da dignidade humana no âmbito do Direito de

Família, pois, a concretização da dignidade nessa seara depende, também, do tratamento

jurídico conferido às famílias. Nessa linha explica Rodrigo da Cunha Pereira:

Uma sociedade justa e democrática começa e termina com a consideração da

liberdade e da autonomia privada. Isto significa também que a exclusão de

determinadas relações de família do laço social é um desrespeito aos Direitos

Humanos, ou melhor, é uma afronta à dignidade da pessoa humana. O

Direito de Família só estará de acordo e em consonância com a dignidade e

com os Direitos Humanos a partir do momento em que essas relações

interprivadas não estiverem mais à margem, fora do laço social45.

Tal princípio é um dos pilares que, a partir da Constituição Federal de 1988, vem

permitindo a flexibilização dos conceitos jurídicos para tutelar as diversas formações

familiares que se surgem em nossa sociedade. Nesse sentido são as palavras de Rodrigo da

Cunha Pereira:

Seguindo a tendência personalista do Direito Civil, o Direito de Família

assumiu como seu núcleo axiológico a pessoa humana como seu cerne a

dignidade humana. Isso significa que todos os institutos jurídicos deverão ser

���������������������������������������� �������������������43 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 66. 44 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 62. 45 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 100.

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interpretados à luz desse princípio, funcionalizando a família à plenitude da

realização da dignidade e da personalidade de cada um de seus membros. A

família perdeu, assim, o seu papel primordial de instituição, ou seja, o objeto

perdeu sua primazia para o sujeito. Seu verdadeiro sentido apenas se perfaz

se vinculada, de forma indelével, à concretização da dignidade das pessoas

que a compõe, independentemente do modelo que assumiu, dada sua

realidade plural na contemporaneidade. Se não por outras razões, essa soa

suficientemente forte para justificar o tema central do V Congresso: Família

e Dignidade Humana46.

Em busca do ideal de plena realização da dignidade humana tem-se levado em

conta como nunca antes os sentimentos e desejos das pessoas que se unem com o ideal de

formar uma família.

Em razão disso, nosso ordenamento jurídico tem caminhado de maneira a admitir

situações antes inimagináveis, tais como a união homoafetiva e a chamada multiparentalidade.

E é exatamente pelo fato de estar ligada às ideias de respeito e autodeterminação

pessoal, que a dignidade não pode trazer um conceito fechado para ser imposto de maneira

igual a todos.

Pelo contrário, para que se possa considerar como respeitada, deve-se entender

que os seres humanos são diferentes entre si em vários aspectos, principalmente nos

sentimentos e planejamentos, razão pela qual tamanha a variedade de formações familiares

que é possível encontrar na sociedade.

4. Solidariedade

A solidariedade também aparece na Constituição Federal, que em seu artigo 3º

dispõe:

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o

desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e

reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos,

sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas

de discriminação.

���������������������������������������� �������������������46 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Boletim do IBDFAM, Belo Horizonte, IBDFAM, jul./ago. 2005, p. 10.

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Entende-se, com base no preceito constitucional, que a sociedade solidária é

aquela na qual todos cuidam para a realização do bem comum, na qual há uma divisão entre

seus membros da responsabilidade pelo bem de todos e pela minimização das desigualdades.

Explica Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

Nega-se, através da solidariedade, a filosofia do individualismo jurídico que

tanto marcou o Estado Liberal e a sociedade civil nele inserida. Atualmente,

objetiva-se alcançar um ponto de equilíbrio entre os interesses individuais e

os interesses sociais e coletivos: busca-se o equilíbrio entre os espaços

privados e públicos com a necessária interação entre as pessoas47.

A família, como se sabe, é uma esfera da sociedade, razão pela qual também nela

deve se verificar a concretização de tal princípio. Deve haver entre os membros da família,

portanto, assistência recíproca para suprir as necessidades individuais e coletivas.

A entidade familiar é responsável pela prestação de auxílio mútuo entre seus

membros, de modo que todos devem se responsáveis pela busca do que é bom para todos ao

mesmo tempo em que devem atender ao que é bom para cada membro individualmente

considerado.

Tal auxílio, vale destacar, não se limita ao material. Devem os indivíduos que

compõem a família se responsabilizar pelo apoio afetivo e psicológico de que podem

necessitar, zelando para que todos os componentes daquele núcleo estejam amparados em

relação a todas as suas necessidades e para que, como grupo, a família esteja apta a realizar os

fins para os quais foi constituída.

Nesse sentido é a lição de Rolf Madaleno:

A solidariedade é princípio e oxigênio de todas as relações familiares e

afetivas, porque esses vínculos só podem se sustentar e se desenvolver em

ambiente recíproco de compreensão e cooperação, ajudando-se mutuamente

sempre que se fizer necessário48.

O exercício da solidariedade, ademais, encontra peculiaridades conforme o papel

de cada pessoa da família. Explica Paulo Lôbo:

���������������������������������������� �������������������47 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família : guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. p. 74. 48 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 93.

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A solidariedade do núcleo familiar deve entender-se como solidariedade

recíproca dos cônjuges e companheiros, principalmente quanto à assistência

moral e material. A solidariedade em relação aos filhos responde à exigência

da pessoa de ser cuidada até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida,

instruída e educada para sua plena formação social49.

Percebe-se, portanto, que, assim como ocorre com o princípio da dignidade da

pessoa humana, a solidariedade também atua como vetor de interpretação das famílias atuais.

A ampliação do alcance das normas civis relativas ao Direito de Família é

consequência, também, do dever de se prezar pela solidariedade entre seus membros, mesmo

que não formem eles uma família ainda entendida como padrão pela sociedade brasileira.

Com base nela é possível, por exemplo, reconhecer que nas relações socioafetivas

também pode surgir o dever de prestar alimentos, tendo em vista que o auxílio material é

responsabilidade que surge sempre que algum dos membros da família não tenha condições

de prover o próprio sustento.

5. Igualdade

A Carta Magna de 1988, em seu artigo 5º, traz para o nosso ordenamento jurídico

o princípio da igualdade, dispondo:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,

garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a

inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à

propriedade [...].

Referido preceito constitucional, que inicia o título dos direitos e garantias

fundamentais da Constituição, visa garantir a todos os cidadãos um tratamento igualitário por

parte da lei, vedando o estabelecimento de discriminações indevidas. Explica Celso Antônio

Bandeira de Mello:

A Lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento

regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os

cidadãos. Este é o conteúdo político-ideológico absorvido pelo princípio da

���������������������������������������� �������������������49 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 64.

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isonomia e juridicizado pelos textos constitucionais em geral, ou de todo

modo assimilado pelos sistemas normativos vigentes50.

Entretanto, não se pode pretender estabelecer que todos os cidadãos sejam

realmente iguais. Pelo contrário, em razão de suas peculiaridades, as pessoas apresentam uma

série de diferenças que devem ser respeitadas.

Tratar igualmente, de maneira estrita, a todos, acabará por, indiretamente, implicar

uma diferenciação, vez que, conforme a situação regulada, ela privilegiará alguns em

detrimento de outros, pois não têm todos os sujeitos as mesmas características.

Exatamente por isso, se estará diante de um tratamento igualitário quando,

observada a medida das diferenças existentes, sejam tratados de maneira igual aqueles que são

iguais e de maneira desigual aqueles que são desiguais. Somente assim será possível atingir

um patamar em que todos se encontrarão em posição equivalente.

Ou seja, para que exista uma real igualdade, é preciso que haja um equilíbrio nas

condições e nas oportunidades, o que somente se garante quando se atenta para as diferenças

existentes entre os indivíduos.

O princípio em questão, entretanto, não se limita a pautar a conduta do legislador.

Pelo contrário, deve ser observado também no âmbito das relações privadas e no que tange ao

Direito de Família.

A princípio os membros da unidade familiar devem ser tratados como iguais. Mas,

assim como na seara legislativa, havendo diferenças entre eles, elas deverão ser levadas em

conta para evitar que se concretize uma desigualdade. É a lição de Guilherme Calmon

Nogueira da Gama:

O cerne da questão é atentar para que as diferenças não legitimem

tratamento jurídico desigual ou assimétrico no que diz respeito à base

comum dos direitos ou deveres, ou afetem o núcleo intangível da dignidade

de cada integrante da família51.

���������������������������������������� �������������������50 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 10. 51 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família : guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. p. 73.

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Ainda, o princípio da igualdade, no tocante à sua aplicação ao Direito de Família,

encontra previsão constitucional expressa no artigo 226, §5º, da Constituição Federal, que

estabelece a igualdade entre homem e mulher no âmbito da sociedade conjugal. Previsão essa

que também aparece no Código Civil de 2002.

A inserção desse princípio pela Carta de 1988, inclusive, representou o objetivo

de acabar com a concepção patriarcal de família, vigente até a sua promulgação.

Estabeleceu-se o ideal de igualdade e de solidariedade entre os cônjuges,

acabando com a ideia antigamente consagrada em nosso ordenamento de que o homem

figurava como parte principal e dotada de autoridade no casamento, ao passo que a mulher

nada mais era do que uma figura a ele acessória e dependente, que não possuía autonomia

para escolher os rumos da família. Nessa toada se posiciona Guilherme Calmon Nogueira da

Gama:

Se, no passado, a legitimidade da família constituía instituto demarcador das

fronteiras entre o lícito e o ilícito no campo das declarações familiares e

definia a titularidade (ou não) de situações jurídicas ativas, atualmente o

princípio da igualdade material atua em direção exatamente oposta,

derrubando toda uma série de dogmas de discriminação e de exclusão52.

Ressalte-se, ainda, que, em que pese a lei fazer referência à aplicação da igualdade

no âmbito do casamento, não há dúvidas que também na união estável e na união homoafetiva

não poderá ser feita qualquer distinção entre os companheiros.

Ademais, o princípio da igualdade encontra previsão constitucional expressa no

tocante às relações decorrentes da filiação:

Art. 227, §6º. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por

adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer

designações discriminatórias relativas à filiação.

Percebe-se, portanto, que o princípio da igualdade vem expresso no texto legal de

modo a consagrar o ideal de igualdade entre filhos, independentemente de sua origem.

Explica Pablo Stolze:

���������������������������������������� �������������������52 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família : guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. p. 73.

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Não há mais espaço, portanto, para a vetusta distinção entre filiação legítima

e ilegítima, característica do sistema anterior, que privilegiava a todo custo a

“estabilidade no casamento” em detrimento da dimensão existencial de cada

ser humano integrante do núcleo familiar53.

Assim, foi a inserção do princípio da igualdade na interpretação do Direito de

Família que permitiu evoluir do não tão remoto passado em que somente eram filhos aqueles

havidos na constância do casamento, para a realidade atual na qual são igualmente filhos

aqueles nascidos dentro ou fora do casamento, bem como aqueles adotados ou reconhecidos

em razão do vínculo de socioafetividade.

6. Liberdade

O princípio da liberdade reflete a autonomia privada no âmbito das famílias,

traduzindo as possibilidades de escolhas exercidas pelos componentes de cada núcleo

familiar, desde a sua união, passando pela sua administração e, eventualmente, pela sua

dissolução. Explica Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

O princípio da liberdade, intimamente associado ao princípio do pluralismo

democrático, no âmbito das relações familiares, se associa à autonomia

privada no segmento da liberdade de escolha de constituição, de manutenção

e de extinção da entidade familiar, sem que haja qualquer tipo de imposição

externa das pessoas dos familiares54.

Sendo a autonomia privada vista como o poder de autodeterminação dos

indivíduos, como o poder que eles têm de tomar decisões que envolvam sua própria esfera

jurídica, ela aparece no âmbito das relações familiares sob a feição do princípio da liberdade.

Tal princípio aparece concretizado no artigo 1.513 do Código Civil, que

estabelece: “É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão

de vida instituída pela família”.

���������������������������������������� �������������������53 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume 6: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 83. 54 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família : guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. p. 75.

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Depreende-se do referido dispositivo legal que há um espaço de livre atuação dos

indivíduos no âmbito do Direito de Família, no qual nem o Estado nem outras pessoas

poderão interferir.

Tem-se que, assim como para firmar negócios jurídicos, os indivíduos são livres

para realizar uma série de escolhas no âmbito familiar. Podem escolher por formar ou não

uma família, a maneira como irão administrá-la, se terão filhos e quantos, bem como tomar

uma série de outras decisões que não cabe ao ordenamento jurídico impor.

Nesse sentido explica Paulo Lôbo:

O princípio da liberdade diz respeito ao livre poder de escolha ou autonomia

de constituição, realização e extinção de entidade familiar, sem imposição ou

restrições externas de parentes, da sociedade ou do legislador; à livre

aquisição de administração do patrimônio familiar; ao livre planejamento

familiar; à livre definição dos modelos educacionais, dos valores culturais e

religiosos; à livre formação dos filhos, desde que respeitadas suas dignidades

como pessoas humanas; à liberdade de agir, assentada no respeito à

integridade física, mental e moral55.

Percebe-se que essa liberdade se relaciona intimamente com os princípios até aqui

estudados, uma vez que, apesar de serem livres para tomar uma série de decisões, os membros

da família não podem fazê-lo em desrespeito às necessidades dos outros, devendo sempre

visar o bem de todos e a realização plena da dignidade de cada um.

Ao mesmo tempo em que vigora o princípio da liberdade, portanto, os princípios

da dignidade da pessoa humana, da solidariedade e da igualdade atuam como balizadores das

condutas dos membros da família.

Isso porque, em que pese o reconhecimento da liberdade, ela não pode ser

exercida em detrimento de interesses de um ou alguns de seus membros, vez que com relação

a todos deve ser adotado um comportamento solidário e de zelo pelas suas necessidades.

���������������������������������������� �������������������55 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 69.

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7. Afetividade

O princípio da afetividade, em que pese não encontrar previsão expressa no

ordenamento jurídico pátrio, tem tomado cada vez mais relevância no momento de se

observar e interpretar as famílias atuais.

O sentimento de afeto é o que dá origem ao surgimento de uma nova família, pois

é ele que leva duas pessoas a se unirem com o objetivo de formar uma relação familiar, seja

por meio do casamento, da união estável ou da união homoafetiva. O ponto em comum entre

as diversas espécies de união é o afeto.

Também é o afeto que liga os pais aos filhos. Uma vez que a consanguinidade não

é capaz de fazer com quem uma pessoa ame a outra, somente o vínculo de afeto entre elas é

que as leva a querer conviver e se apoiar mutuamente. Nesse sentido é a lição de Rolf

Madaleno:

A afetividade deve estar presente nos vínculos de filiação e de parentesco,

variando tão somente na sua intensidade e nas especificidades do caso

concreto. Necessariamente os vínculos consanguíneos não se sobrepõem aos

liames afetivos, podendo até ser afirmada a prevalência desses sobre aqueles.

O afeto decorre da liberdade que todo indivíduo deve ter de afeiçoar-se um a

outro, decorre das relações de convivência do casal entre si e destes para

com seus filhos, entre os parentes, como está presente em outras categorias

familiares, não sendo o casamento a única entidade familiar56.

Justamente em razão da primazia do afeto sobre o vínculo biológico é que, ao

mesmo tempo em que é reconhecido como legítimo o parentesco socioafetivo, tem a

jurisprudência pátria entendido pela possibilidade de indenização do pai ou mãe pelo

abandono afetivo de seu filho57.

���������������������������������������� �������������������56 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 99. 57 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial 2009/0193701-9. Ministra Nancy Andrighi. Terceira Turma. DJe 10/05/2012. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por

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Percebe-se, portanto, que somente com a valorização do afeto em detrimento de

cânones e normas é que será possível zelar pela plena realização da dignidade humana no seio

do Direito de Família. Nessa linha de raciocínio explica Rodrigo da Cunha Pereira:

[...] a família só faz sentido para o Direito a partir do momento em que ela é

veículo funcionalizador à promoção da dignidade de seus membros. Em

face, portanto, da mudança epistemológica ocorrida no bojo da família, a

ordem jurídica assimilou tal transformação, passando a considerar o afeto

como um valor jurídico de suma relevância para o Direito de Família. Seus

reflexos crescentes vêm permeando todo o Direito, como é exemplo a

valorização dos laços de afetividade e da convivência familiar oriundas da

filiação, em detrimento, por vezes, dos vínculos de consanguinidade. Além

disso, todos os filhos receberam o mesmo tratamento constitucional,

independente da sua origem e se são biológicos ou não58.

O respeito às diversas formações familiares despido de preconceitos permite

verificar que não é somente o casamento entre homem e mulher no qual nascem filhos

biológicos que constitui uma família. Ao contrário, qualquer união, seja ela homoafetiva,

decorrente de famílias reconstituídas, com filhos biológicos ou socioafetivos, deve ser

reconhecida como família desde que demonstre o claro intento de sê-lo.

Conforme leciona Eduardo de Oliveira Leite,

[...] a verdadeira filiação – esta a mais moderna tendência do direito

internacional – só pode vingar no terreno da afetividade, da intensidade das

relações que unem pais e filhos, independentemente da origem biológico-

genética59.

E, ao reconhecer essas variadas formações como família, deverão ser elas

respeitadas como já o era a família idealizada pela noção patriarcal, profundamente ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������

abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido. 58 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 183. 59 LEITE, Eduardo de Oliveira. Temas de direito de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994. p. 121.

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influenciada pelo Direito Canônico. Somente assim os princípios aqui estudados poderão ser

concretizados e realizar os seus ideais.

8. Melhor interesse da criança e do adolescente

Os artigos 227 da Constituição Federal e 4º do Estatuto da Criança e do

Adolescente preveem, em redação quase idêntica, a absoluta prioridade do adolescente e do

jovem, no que concerne à efetivação de seus direitos, como sendo dever concorrentemente

imposto à família, à sociedade e ao Estado.

Ou seja, tendo em vista o respeito à peculiar condição de pessoa em

desenvolvimento, a criança e o adolescente merecem atenção especial da família, de modo a

garantir seu adequado desenvolvimento.

O princípio do melhor interesse visa, portanto, assegurar um tratamento voltado à

satisfação das necessidades inerentes à condição de criança e adolescente, que não podem ser

deixadas de lado, sob pena de provocarem prejuízo na formação desse ser humano. Nesse

sentido explica Paulo Lôbo:

O princípio do melhor interesse significa que a criança – incluído o

adolescente, segundo a Convenção Internacional dos Direitos da Criança –

deve ter seus interesses tratados com prioridade, pelo Estado, pela sociedade

e pela família, tanto na elaboração quanto na aplicação dos direitos que lhe

digam respeito, notadamente nas relações familiares, como pessoa em

desenvolvimento e dotada de dignidade60.

É com base no melhor interesse da criança e do adolescente que devem ser

analisadas as diversas situações que surgem hoje em dia no âmbito do Direito de Família.

Explica Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

O princípio em questão exige ser plenamente implantado e observado na

ordem jurídica nacional não apenas como princípio geral, mas como critério

de interpretação e de aplicação da norma jurídica nas questões relacionadas à

criança e ao adolescente – a exemplo do que se verifica no direito inglês e no

direito norte-americano, com a diferença de que ele deve ser apreendido em

���������������������������������������� �������������������60 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 75.

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todos os vínculos jurídicos relacionados à criança e ao adolescente, inclusive

no seu cotidiano, o que envolve as relações paterno-materno-filiais61.

Referido princípio está em consonância com o que estabelece a Convenção

Internacional dos Direitos da Criança, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 99.710, de 21 de

novembro de 1990, que em seu artigo 3 estabelece:

Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições

públicas ou privadas de bem estar social, tribunais, autoridades

administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o

interesse maior da criança.

Assim, no seio da família criança e adolescente não são mais relegados a uma

condição inferior, como já o foram outrora. Pelo contrário, devem ser tratados com atenção

especial à peculiaridade de estarem em desenvolvimento, tanto físico como psicológico, o que

exige maior proteção e cuidado com relação a eles62.

Referida prioridade deve ser observada não só pelos membros da família, mas

também pelo legislador e pelo operador do direito, vez que compete a todos buscar atender,

prioritariamente, as necessidades das crianças e dos adolescentes. É a lição de Rodrigo da

Cunha Pereira:

A consequência do reconhecimento de tais dispositivos como fonte de

princípios é que eles informarão a interpretação de todo o ordenamento

jurídico pátrio, além de serem fonte de orientação das decisões judiciais a

serem tomadas, em que envolvam crianças e adolescentes, sem olvidar a

atividade legislativa, que também deve tê-los como seu norte

hermenêutico63.

���������������������������������������� �������������������61 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família : guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08 : família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008. p. 81-82. 62 Confira-se a lição de Giselle Câmara Groeninga: “O Princípio do Superior Interesse da Criança e do Adolescente pauta-se pelo reconhecimento de sua vulnerabilidade, de sua condição física e psíquica de desamparo, que rege a finalidade da família, de cuidar daqueles que são mais vulneráveis”. GROENINGA, Giselle Câmara. Direito à convivência entre pais e filhos: análise interdisciplinar com vistas à eficácia e sensibilização de suas relações no poder judiciário. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2011. p. 224. 63 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

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Como exemplo de aplicação desse princípio, percebe-se que o tratamento

conferido ao filho socioafetivo, em equiparação ao biológico e ao adotivo, decorre da

necessidade de garantir que ele cresça de maneira adequada e vendo respeitados seus direitos.

9. Função social da família

Os institutos jurídicos surgem no ordenamento com vistas à realização de uma

função específica. Cada um deles é voltado para a concretização de finalidade determinada,

que deve ser respeitada pelos indivíduos e pelos operadores do Direito.

Daí se dizer que cada instituto possui uma função social que lhe é inerente e que

deve ser respeitada e buscada por todos aqueles que fizerem uso dele.

Nessa toada, o artigo 5º da Constituição Federal consagra, em seu inciso XXIII a

função social da propriedade. E, continua, estabelecendo que a propriedade urbana cumprirá

sua função social quando atender ao plano diretor da cidade (artigo 182, § 2º) ao passo que a

rural, quando atender aos requisitos elencados no artigo 186.

Por sua vez, o Código Civil, em seu artigo 421, determina que “a liberdade de

contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

Percebe-se que a função social, tanto no âmbito da propriedade como no

contratual funciona como limitação à livre atuação dos sujeitos, visto que devem prezar pela

realização dos objetivos de cada instituto.

O ideal por trás da função social é de impedir que as partes façam uso dos

institutos jurídicos de modo que prejudiquem terceiros ou a coletividade, vez que nenhum

direito pode ser exercido de maneira absoluta.

E, assim como ocorre no âmbito da propriedade e dos contratos, o princípio da

função social também se aplica ao Direito de Família. Nesse sentido explicam Guilherme

Calmon Nogueira da Gama e Leandro dos Santos Guerra:

Não é diferente com o direito de família. Os institutos desse segmento do

direito civil são criados e devem observar uma determinada finalidade, sob

pena de perderem a sua razão de ser. Assim, deve-se buscar, nos princípios

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constitucionais, o que almejou o constituinte para a família, de forma a bem

entender sua normatização64.

Na mesma linha de raciocínio é a lição de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

Nessa nova arquitetura jurídica, dúvida inexiste de que todo e qualquer

instituto, necessariamente, tem de cumprir uma função, uma determinada

finalidade, a qual precisa ser observada na sua aplicação, sob pena de

desvirtuá-lo da orientação geral do sistema jurídico, criado a partir das

opções valorativas constitucionais. E, naturalmente, não pode ser diferente

com o Direito das Famílias. A aplicação da norma familiarista tem de estar

sintonizada com o tom garantista e solidário da Constituição Federal,

garantindo a funcionalidade de seus institutos. É o que se pode chamar de

função social da família65.

A questão que se coloca é saber qual é a função social da família e quando se pode

considerar que ela está sendo desrespeitada.

Pois bem, conforme o que foi visto até aqui, a família deve ser entendida como

um núcleo de realização de interesses e necessidades individuais e coletivos. Seus membros

devem adotar uma postura solidária entre si, de modo a garantir a realização da dignidade

humana de cada um, o tratamento igualitário entre eles e a existência de auxílio moral e

material conforme suas as peculiaridades. Conforme leciona Pietro Perlingieri:

A família é valor constitucionalmente garantido nos limites de sua

conformação aos valores que caracterizam as relações civis, especialmente a

dignidade humana: ainda que diversas possam ser as suas modalidades de

organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela

pertencem66.

Pode-se entender, assim, que a função social da família se concretiza na medida

em que se garante aos seus indivíduos um núcleo de realização individual, de

���������������������������������������� �������������������64 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; GUERRA, Leandro dos Santos. Função Social da Família. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 8, n. 39, Dez./Jan., 2007. P. 154-170. p. 163. 65 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 156. 66 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 972.

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desenvolvimento pleno e de suporte. Nessa linha de raciocínio é a lição de Guilherme Calmon

Nogueira da Gama e Leandro dos Santos Guerra:

Assim, impõe-se, atualmente, um novo testamento jurídico da família,

tratamento esse que atenda aos anseios constitucionais sobre a comunidade

familiar, a qual deve ser protegida na medida em que atenda a sua função

social, ou seja, na medida em que seja capaz de proporcionar um lugar

privilegiado para a boa vivência e dignificação de seus membros67.

A função social da família, quando vista sob a ótica da doutrina e da

jurisprudência, é um dos princípios que tem levado a aceitar a modificação dos conceitos

históricos sobre família, casamento e filiação.

Isso porque, conforme explica Venceslau Tavares Costa Filho, a realização da

função social implica na realização dos interesses sociais:

A função social apresenta-se justamente como uma ‘limitação interna,

positiva, condicionando o exercício e o próprio direito’, de modo que o

interesse individual é revestido de licitude à medida que realiza, também, os

interesses sociais68.

Conforme se percebe, a função social atua em conjunto com os demais princípios

do Direito de Família, contribuindo para a plena realização da dignidade humana dos sujeitos

que dela fazem parte.

Sendo assim, pode-se perceber que tal princípio estará sendo desrespeitado

quando o núcleo familiar for palco de consagração de desigualdades e de privação do pleno

exercício dos direitos inerentes a cada componente.

Em atenção ao que destaca Pietro Perlingieri, o que importa é que a família

cumpra sua função social de propiciar o desenvolvimento de seus indivíduos, independente da

forma que essa família adota, não havendo que se falar em superioridade de uma modalidade

em relação a outra. Vejamos:

���������������������������������������� �������������������67 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; GUERRA, Leandro dos Santos. Função Social da Família. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 8, n. 39, Dez./Jan., 2007. P. 154-170. p. 164. 68 FILHO, Venceslau Tavares Costa. Função social da autoridade parental: algumas considerações. In: Revista Síntese de Direito de Família. v. 13, n. 67, ago./set., 2011. p. 9-18. p. 15.

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Cada forma familiar tem uma própria relevância jurídica, dentro da comum

função desserviço ao desenvolvimento da pessoa; não se pode, portanto,

afirmar uma abstrata superioridade do modelo de família nuclear em relação

às outras69.

Exigir-se, nos dias atuais, que a família siga os moldes aventados pelo Código

Civil de 1916, conferindo papel principal ao marido, discriminando a mulher e segregando

eventuais filhos que não tenham sido gerados na constância do matrimônio, ataca

frontalmente a função que se exige que a família exerça na sociedade atual.

���������������������������������������� �������������������69 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 973-974.

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CAPÍTULO III – FILIAÇÃO SEM VÍNCULO GENÉTICO

O ordenamento jurídico atual confere tratamento igualitário a todos os filhos,

independentemente de quem sejam seus pais e do momento em que foram concebidos. Ainda,

equipara aos filhos biológicos aqueles que advêm da adoção.

Também existe a possibilidade de formação do vínculo de parentesco em razão do

mero afeto existente entre duas pessoas. Afeto esse que pode levar, inclusive, ao

estabelecimento de uma verdadeira relação de filiação.

Para o desenvolvimento do presente trabalho, mister se faz analisar os vínculos de

filiação decorrentes da adoção e da socioafetividade, de modo a compreender que, apesar da

origem, são tratados igualmente àquele que decorre da consanguinidade.

1. Conceito de filiação

Antes de se passar ao estudo dos vínculos de filiação com origem na adoção e na

socioafetividade, imperioso compreender o seu significado.

Paulo Lôbo traz o seguinte conceito:

Filiação é conceito relacional; e a relação de parentesco que se estabelece

entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da outra (pai ou mãe).

O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa relação de parentesco,

atribuída a alguém, compreendendo um complexo de direitos e deveres

reciprocamente considerados. O filho é titular do estado de filiação, da

mesma forma que o pai e a mãe são titulares dos estados de paternidade e de

maternidade, em relação a ele70.

Na mesma toada, explica Carlos Roberto Gonçalves:

Em sentido estrito, filiação é a relação jurídica que liga o filho a seus pais. É

considerada filiação propriamente dita quando visualizada pelo lado do filho.

���������������������������������������� �������������������70 LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 507-508.

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Encarada em sentido inverso, ou seja, pelo lado dos genitores em relação ao

filho, o vínculo de denomina paternidade ou maternidade71.

Percebe-se, então, que por filiação deve-se entender o vínculo que se estabelece

entre os filhos e seus pais, dando origem a uma relação jurídica da qual deriva um plexo de

direitos e deveres que perduram durante toda a vida desses sujeitos.

Não se exige, ademais, a presença de um laço de consanguinidade para que reste

caracterizado o vínculo de filiação, razão pela qual, deve ser tratado como tal tanto o que

decorre da ascendência genética, como o resultante da adoção e da socioafetividade.

Explica-se. Pai e mãe, que se ligam ao filho estabelecendo com ele a relação

paterno-materno-filial não são exclusivamente os responsáveis pela carga genética dessa

pessoa, mas sim aqueles que agem como tal.

Exatamente por isso é possível entender que a filiação pode ter naturezas diversas,

mas será sempre merecedora da mesma tutela jurídica. Nesse sentido, aponta-se que o vínculo

de filiação pode ser jurídico, biológico ou socioafetivo.

A filiação jurídica é a que decorre das normas trazidas pelo Código Civil. Nas

palavras de Jorge Fujita, “é o vínculo paterno-materno-filial reconhecido pela norma

jurídica”72.

Nessa classificação se enquadram as filiações decorrentes da presunção pater is

est e da adoção, vez que para ambas a lei determina o estabelecimento do vínculo paterno-

materno-filial.

Biológica, por sua vez, é a filiação que decorre do vínculo de consanguinidade

entre duas pessoas, podendo tanto surgir por meio da fecundação natural, como pela ajuda dos

métodos de fecundação assistida.

Finalmente, diz-se socioafetiva a filiação que deriva da “relação entre pai e filho,

ou entre mãe e filho, ou entre pais e filho, em que inexista um vínculo de sangue entre eles,

���������������������������������������� �������������������71 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 320. 72 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. In: BARBOSA, Águida Arruda (Coord.). Direito de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 202.

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havendo, porém, o afeto como elemento aglutinador, tal como uma sólida argamassa a uni-los

em suas relações, quer de ordem pessoal, quer de ordem patrimonial”73.

Para o presente trabalho, entretanto, somente interessa o estudo das duas espécies

de filiação que surgem em razão da vontade exarada por uma ou duas pessoas no sentido de

tornarem-se pais: a decorrente da adoção e a da socioafetividade.

A delimitação temática se justifica porque tanto na adoção como na

socioafetividade existem duas figuras distintas em relação à criança ou ao adolescente: seus

pais e seus ascendentes genéticos.

Isto é, em que pese os pais serem aquelas pessoas que acolheram o infante em

razão da adoção ou do vínculo socioafetivo, terá ele, em outros indivíduos, a figura dos

genitores biológicos.

E o objetivo do presente trabalho é buscar responder se é possível responsabilizar

o ascendente genético por eventuais alimentos que seu descendente venha a necessitar quando

ele se encontra inserido em núcleo familiar decorrente das filiações adotiva ou socioafetiva.

2. Filiação originada na adoção

A adoção, regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é modalidade de

colocação da criança ou do adolescente em família substituta que tem como objetivo atribuir

ao adotado a condição de filho dos pais adotivos, rompendo os vínculos existentes com os

pais e parentes biológicos, ressalvando-se, apenas, a manutenção dos laços para fins de

impedimentos matrimoniais.

Também se caracteriza quando um dos cônjuges adota o filho do outro, situação

na qual são mantidos os vínculos de parentesco em relação ao pai ou mãe biológico e surgem

novos vínculos em relação ao adotante e sua família. Essa situação é denominada de adoção

unilateral, ao passo que a que se dá por duas pessoas (pai e mãe) é chamada de bilateral.

Ao conceituar o instituto da adoção Silvio Rodrigues leciona que se trata do “ato

do adotante pelo qual traz ele, para sua família e na condição de filho, pessoa que lhe é

estranha”74.

���������������������������������������� �������������������73 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. In: BARBOSA, Águida Arruda (Coord.). Direito de família. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 203.

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Por sua vez, Hugo Nigro Mazzilli explica que “a adoção, por qualquer de suas

atuais formas é ficção jurídica que estabelece entre adotante e adotado uma relação de

paternidade e filiação”75.

Percebe-se que, por meio da adoção, terceira pessoa acaba por assumir todos os

encargos que surgem para os pais após o nascimento dos filhos. Ou seja, aqueles que optam

por adotar tornam-se pais da criança ou adolescente, substituindo seu ascendente biológico

para todos os fins de direito.

Em atualização à obra de Pontes de Miranda, Rosa Maria de Andrade Nery

leciona:

A adoção pressupõe a existência de alguém que carece de amparo, material e

moral, de um lado, amparo que se presta com o devotamento de quem

substitui os pais na afeição da criança ou do adolescente; de outro, de pessoa

digna que assuma um encargo que não pôde ou já não pode ser exercido por

quem gerou a criança, como teria sido o ideal76.

Conforme se depreende do artigo 45, caput e parágrafo 1º77, do Estatuto da

Criança e do Adolescente, a adoção pode ocorrer em razão de três circunstâncias: (i) a

vontade dos pais ou do representante legal do adotando, que se manifesta através do

consentimento; (ii) o desconhecimento dos pais biológicos; e (iii) a destituição do poder

familiar.

Ainda, referido Estatuto prevê que, sendo o adotando maior de 12 anos de idade,

será necessário que ele manifeste sua concordância.

Tem-se, portanto, que, não sendo o caso de pais desconhecidos ou destituídos do

poder familiar, sempre será exigido o seu consentimento para proceder à adoção. Referido

���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������74 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito de família: volume 6. Atualizado por Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 340. 75 MAZZILLI, Hugo Nigro. Notas sobre a adoção. In: Doutrinas Essenciais Família e Sucessões. vol. 4, p. 821 – 837, Ago/2011, DTR\1990\203. 76 MIRANDA, Pontes de. Direito de família. Direito parental. Direito protectivo. Atualizado por Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 251. 77 Art. 45. A adoção depende do consentimento dos pais ou do representante legal do adotando. § 1º. O consentimento será dispensado em relação à criança ou adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do pátrio poder familiar. § 2º. Em se tratando de adotando maior de doze anos de idade, será também necessário o seu consentimento.

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consentimento, percebe-se, nada mais é do que a manifestação expressa da vontade de

entregar seu filho para que outrem o crie, abrindo mão do laço de parentesco existente78.

Conforme leciona Silvio Rodrigues, “essa concordância equivale à renúncia

voluntária do poder familiar”79, já que os pais naturais optam por não exercer os direitos e

deveres decorrentes da filiação, abrindo mão desse vínculo em favor de terceiros que desejam

tornarem-se pais do infante.

Portanto, a partir da entrega do filho biológico aos pais adotivos, a estes cabem o

poder familiar e todas as responsabilidades decorrentes do vínculo de filiação que se

estabelece pelo procedimento da adoção.

Tendo em vista a transferência do poder familiar dos ascendentes genéticos para

os pais adotivos, a adoção gera efeitos pessoais e patrimoniais.

Na seara dos efeitos pessoais verifica-se a criação de verdadeiro vínculo de

filiação entre adotante e adotado, bem como laço de parentesco em relação a este e a família

do adotante80. Ou seja, o filho adotivo ocupa a mesma posição na família que ocuparia se nela

tivesse nascido.

Ainda, ficam rompidos todos os vínculos antes existentes em relação à família

natural, conforme destaca Galdino Augusto Coelho Bordallo:

Em virtude de, com a adoção, estabelecer-se o vínculo jurídico de filiação

socioafetiva com a família substituta, fica rompido automaticamente aquele

com a família natural, passando o filho adotivo a se integrar à família

���������������������������������������� �������������������78 Nesse sentido, confira-se a lição de Galdino Augusto Bordallo: “Com a adoção é rompido o vínculo de parentesco com a família biológica como consequência lógica da criação de um novo vínculo: do adotivo com a família substituta. Por tal motivo, a lei exige que os pais biológicos consintam na adoção, como se verifica pela regra constante do art. 45, caput, do ECA, já que possuem legítimo interesse em realizar oposição a que seu filho ingresse em uma família substituta”. BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 306. 79 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito de família: volume 6. Atualizado por Francisco José Cahali. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 346. 80 É a explicação de Galdino Augusto Coelho Bordallo: “Os efeitos pessoais dizem respeito à relação de parentesco entre adotando, adotante e a família deste. Pelo fato de o adotado passar a integrar família substituta, seu relacionamento jurídico não se dará apenas com o adotante, mas com toda a família deste” BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 321.

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substituta sem qualquer distinção, mínima que seja, em relação aos filhos

biológicos já existentes ou a existir81.

Ressalvam-se, entretanto, os impedimentos matrimoniais, para efeito dos quais o

vínculo biológico não desaparece.

No âmbito patrimonial, os direitos e deveres do filho adotivo são os mesmos que a

lei confere aos filhos biológicos. Em razão da transferência do poder familiar aos pais

adotivos, a eles incumbe a administração e o usufruto dos bens do adotado menor, o dever de

sustento do filho adotado, bem como o dever de prestar-lhes alimentos.

Também surgem para o adotado os direitos sucessórios que decorrem de sua

posição de descendente, cabendo-lhe suceder seus pais adotivos e seus parentes, quando for o

caso.

Verifica-se, assim, que por meio da adoção formam-se laços civis de parentesco

que se equiparam aos biológicos para todos os efeitos, sendo os filhos adotivos simplesmente

filhos daqueles que optaram por acolhê-lo e em relação a ele agir como pais.

3. Filiação originada na socioafetividade

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226 estabelece que a família é uma

forma de organização social que pode decorrer do casamento civil (artigo 226, §§1º e 2º), da

união estável entre homem e mulher (artigo 226, §3º) ou da comunidade formada por

qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental – artigo 226, §4º).

Porém, tem-se entendido, e com razão, que o dispositivo em comento elenca tão

somente um rol exemplificativo, vez que são admitidas outras formações familiares, como a

família anaparental (família sem pais – STJ, REsp 57.606/MG), a família homoafetiva (ADPF

132/RJ e ADI 4.277/DF) e a família mosaico ou pluriparental, decorrente de vários

casamentos, uniões estáveis ou relacionamentos afetivos.

Percebe-se, assim, uma tendência de aceitação pelo Direito de diferentes figuras

familiares, calcadas no afeto, na liberdade e na igualdade existente entre os seus membros,

���������������������������������������� �������������������81 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 321.

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consequência da paulatina substituição dos modelos rígidos e paternalistas – durante muitos

anos vigentes em nosso ordenamento jurídico – pelo ideal da família eudemonista82.

Além da aceitação de novas formações familiares, que não somente aquelas

decorrentes do casamento civil, o processo de constitucionalização do Direito de Família

implicou também na mudança do tratamento conferido aos filhos.

No que concerne à filiação, percebe-se que a Carta Magna, pautada no princípio

da igualdade, pôs fim à discriminação entre filhos que um dia vigorou em nosso país,

conforme se depreende do artigo 227, §6º:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,

ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde,

à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,

além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,

exploração, violência, crueldade e opressão.

[…]

§ 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção,

terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações

discriminatórias relativas à filiação.

A partir da previsão constitucional é possível perceber que todos os filhos são

iguais, independentemente de terem eles sido havidos na constância do casamento ou fora

dele. Essa igualdade, inclusive, se estende aos filhos adotivos, àqueles havidos por

inseminação artificial heteróloga e àqueles decorrentes da parentalidade socioafetiva.

No que tange à parentalidade originada na socioafetividade, em que pese não estar

prevista de forma expressa em nossa legislação, é pacífico o entendimento de que ela encontra

proteção em nossa Constituição Federal, mais especificamente no parágrafo 6º do supracitado

artigo 227.

���������������������������������������� �������������������82 Nesse sentido confira-se a lição de Giselle Câmara Groeninga: “A família, atualmente, se define como eudemonista, em que cada um busca sua realização e bem estar, pautadas as relações pela igualdade e pelo respeito às diferenças, e pelos valores da ética do cuidado e da solidariedade”. GROENINGA, Giselle Câmara. Culpa cabe na religião e na mente, mas não no Direito de Família. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-15/processo-familiar-culpa-cabe-religiao-mente-nao-direito-familia>. Acesso em 19.11.2015.

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Ademais, o artigo 1.593 do Código Civil, ao prever que “o parentesco é natural ou

civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”, deixa margem à interpretação

de que as relações de parentesco podem advir do afeto, vez que este nada mais é do que “outra

origem” em relação à consanguínea.

É essa a linha interpretativa adotada por Sílvio Venosa:

Nesse campo, quanto à outra origem do parentesco, deve ser levada em

conta também a filiação socioafetiva. Embora não tenha sido mencionada

expressamente no Código, trata-se de fenômeno importante no campo da

família e que vem cada vez mais ganhando espaço na sociedade83.

Entendimento nesse sentido, inclusive, é revelado no Enunciado nº. 103, da I

Jornada de Direito Civil84 que dispõe:

O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil

além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há

também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas

de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não

contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva,

fundada na posse do estado de filho.

O termo socioafetividade remonta às relações de afeto que surgem no meio social.

Ou seja, é socioafetiva a relação que se estabelece em razão do convívio social e com base na

afetividade existente entre os seus personagens. É a lição de Paulo Lôbo:

O termo socioafetividade conquistou as mentes dos juristas brasileiros,

justamente porque propicia enlaçar o fenômeno social com o fenômeno

normativo. De um lado há o fato social e de outro o fato jurídico, no qual o

primeiro se converteu após a incidência da norma jurídica. A norma é o

princípio jurídico da afetividade. As relações familiares e de parentesco são

socioafetivas, porque congrega o fato social (socio) e a incidência do

princípio normativo (afetividade)85.

���������������������������������������� �������������������83 VENOSA, Sílvio de Salvo. Código civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p.1450. 84 Disponível em: <http://www.jf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-

jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em 11.04.2015.

85 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 29.

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Percebe-se, assim, que o vínculo socioafetivo pode se desenvolver tanto em

relação a pais e filhos biológicos como em relação a dois indivíduos que, a princípio, não

possuem qualquer parentesco.

Isso porque o afeto não surge necessariamente durante a gestação de uma criança

e se desenvolve durante seu crescimento. Muitas são as situações nas quais o genitor – pai ou

mãe – do infante não elabora um sentimento de carinho e amor pelo filho biológico, vez que

se trata de sentimentos que não se pode impor a ninguém nutrir.

No que tange à diferença entre vínculo biológico e afeto, é a lição de Christiano

Cassettari:

As parentalidade socioafetiva e biológica são diferentes, pois ambas têm

uma origem diferente de parentesco. Enquanto a socioafetiva tem origem no

afeto, a biológica se origina no vínculo sanguíneo. Assim sendo, não

podemos esquecer que é plenamente possível a existência de uma

parentalidade biológica sem afeto entre pais e filhos, e não é por isso que

uma irá prevalecer sobre a outra, pelo contrário elas devem coexistir em

razão de serem distintas86.

Ao mesmo tempo, em muitos casos, adultos que não possuem qualquer vínculo de

consanguinidade desenvolvem profundo sentimento de afeto pela criança com a qual

convivem e passam a trata-la como filho.

A filiação calcada na socioafetividade, portanto, se caracteriza por ser aquela que

não decorre do vínculo de consanguinidade entre pais e filhos, mas sim do relacionamento de

cuidado e afeto entre eles desenvolvido. Nesse sentido é a lição de Jorge Fujita:

A filiação vem a ser formada com o afeto que vincula pais e filhos,

independentemente ou não da sua origem biológica. Pai e mãe se distinguem

de genitor e genitora. Isso porque pai e mãe são os que, efetivamente, criam,

educam, sustentam e amam, ao passo que genitor e genitora são aqueles que

apenas geram. Indubitavelmente, existem genitores que são pais, mas há

outros que não o são87.

���������������������������������������� �������������������86 CASSETTARI, Christiano. Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2013. p. 204. 87 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 108.

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Uma das principais razões que fundamentam o reconhecimento da modalidade

afetiva de filiação se verifica na diferença existente entre as figuras de pai e genitor.

Considera-se pai (ou mãe), aquela pessoa que cria, que dá afeto,

independentemente da existência de algum vínculo biológico com o menor. Ao passo que

genitor é aquela pessoa responsável tão somente pela concepção da criança, pela transferência

de material genético para sua formação. Nessa toada é a lição de Cristiano Chaves e Nelson

Rosenvad:

O pai afetivo é aquele que ocupa, na vida do filho, o lugar do pai (a função).

É uma espécie de adoção de fato. É aquele que ao dar abrigo, carinho,

educação, amor...ao filho, expõe o foro íntimo da filiação, apresentando-se

em todos os momentos, inclusive naqueles em que se toma a lição de casa ou

verifica o boletim escolar. Enfim, é o pai das emoções, dos sentimentos e é o

filho do olhar embevecido que reflete aqueles sentimentos que sobre ele se

projetam88.

O reconhecimento de que o vínculo de afeto estabelecido entre pais e filhos é forte

o suficiente para gerar entre eles o surgimento da filiação, baseado na ideia de que ser pai não

é gerar, mas cuidar, não é recente. Tal questão já era discutida à luz do Código Civil de 1916,

quando João Baptista Villela passou a estudar o que chamou de “desbiologização da

paternidade”:

Se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição

cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição

que associa a paternidade antes com o serviço que com a procriação. Ou

seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na

circunstância de amar e servir89.

Percebe-se, portanto, que “a filiação afetiva é aquela na qual o amor e o carinho

recíprocos entre membros suplantam qualquer grau genético, biológico ou social”90.

���������������������������������������� �������������������88 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Bahia: Juspodivm, 2013. p. 691. 89 VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. v. 27. n. 21. p. 9-489. Maio 1979. Disponível em: <http://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1156/1089>. Acesso em 06.04.2015. p. 407-408. 90 VENOSA, Sílvio de Salvo. Código civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p.1455.

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Assim, tendo em vista que vigora atualmente o ideal da família eudemonista,

calcada na solidariedade e afetividade entre seus membros e voltada à realização da dignidade

de cada indivíduo e à busca da felicidade, tem-se admitido na doutrina e na jurisprudência o

reconhecimento da socioafetividade como vínculo de filiação.

Ou seja, com o fenômeno da constitucionalização do Direito Civil tem-se

entendido que o vínculo de socioafetividade é importante e deve ser reconhecido como válido

dentre as modalidades familiares atualmente aceitas.

Não deve haver diferenças entre filhos, tenham eles origem biológica ou

socioafetiva, sendo ambos merecedores de tutela jurídica e de igualdade de tratamento, vez

que serão sempre filhos.

3.1. Modalidades de filiação com origem socioafetiva

O vínculo de afeto que dá origem à filiação socioafetiva surge em diversas

organizações familiares. A riqueza das relações humanas tem mostrado que são inúmeras as

possibilidades de agrupamentos com o fim de constituir família.

Assim, aos poucos, a sociedade tem passado a aceitar que o ideal de casamento

entre homem e mulher com vistas a durar até a sua extinção pela morte de um dos cônjuges

não se presta para todas as pessoas.

Justamente por isso nosso ordenamento jurídico já evoluiu de modo a admitir o

divórcio e a equiparar a união estável ao casamento.

A jurisprudência já firmou entendimento de que é possível o casamento entre

pessoas do mesmo sexo91 e tal situação, antes existente à margem da sociedade, tem se

tornado cada vez mais frequente, estando amparada, inclusive, pela Resolução do Conselho

Nacional de Justiça nº 175 de 201392.

���������������������������������������� �������������������91 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.1833.78/RS, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/10/2011. “Direito de família. Casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (homoafetivo). Interpretação dos arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565 do código civil de 2002. Inexistência de vedação expressa a que se habilitem para o casamento pessoas do mesmo sexo. Vedação Implícita constitucionalmente inaceitável. Orientação principiológica conferida pelo STF no julgamento da ADPF n. 132/RJ e da adi n. 4.277/DF”. 92 Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Art. 2º A recusa prevista no artigo 1º implicará a imediata comunicação ao respectivo juiz corregedor para as providências cabíveis. CNJ, Resolução

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Percebe-se, portanto, que com base no afeto, podem surgir diversas formações

familiares. Existem famílias reconstituídas após o divórcio, na qual convivem filhos de outros

relacionamentos com os novos companheiros de seus pais. Também há aquelas nas quais o

pai ou a mãe biológica não reconheceram o filho, mas o companheiro o fez. Igualmente, são

comuns relações homoafetivas nas quais o filho de um é tratado pelo outro como se filho seu

fosse.

E é nessa variedade de famílias que se verifica o desenvolvimento da filiação por

socioafetividade. E são duas as situações específicas que se enquadram dentro dessa

modalidade de filiação, quais sejam: a posse do estado de filho e a adoção à brasileira.

Em ambas, conforme se verá, o vínculo de afeto é o elemento basilar da relação

paterno-materno-filial que se desenvolve. Isto é, é tão somente com base no conjunto de

sentimentos que o adulto nutre pelo menor que surge entre eles o vínculo de filiação.

Aqui não serão estudadas as técnicas de reprodução assistida. A escolha se dá pelo

fato de que elas não se confundem com a filiação puramente socioafetiva, vez que nelas o

vínculo paterno-materno-filial decorre da intenção das partes na sua formação. Ou seja, há

uma escolha prévia à concepção no sentido de gerar um filho com ajuda da tecnologia.

A reprodução assistida é técnica desenvolvida na medicina na qual é possível a

inseminação artificial homóloga e heteróloga. Na segunda, em que pese o material genético

vir de doador desconhecido, o vínculo da afetividade surge após a opção pela adoção do

procedimento médico, não se confundindo com as espécies de socioafetividade a seguir

estudadas.

Ou seja, enquanto a inseminação artificial homóloga é uma técnica de reprodução

assistida que faz uso do material genético daqueles que serão pai e mãe da criança, na

heteróloga recorre-se ao material genético de terceiro, como meio de suprir alguma

impossibilidade de gerar do homem ou da mulher ou, eventualmente, de ambos.

Percebe-se que, no método da inseminação artificial heteróloga, o vínculo de

filiação com a criança gerada decorre da vontade manifestada quando da aceitação em se

submeter o casal à técnica de reprodução artificial.

���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������

175 de 14 de maio de 2013. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolu%C3%A7%C3%A3o_n_175.pdf>. Acesso em 09.12.2015.

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O Código Civil de 2002, inclusive, prevê que, havendo consentimento, os filhos

decorrentes de tal técnica reprodutiva serão considerados como havidos na constância do

casamento. In verbis:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

[...]V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia

autorização do marido.

Ademais, a pessoa que consente em realizar a doação de seu material genético não

estabelecerá qualquer vínculo de filiação com a criança que venha a nascer da técnica de

reprodução assistida. É o ensinamento de Guilherme Calmon Nogueira da Gama:

O primeiro efeito, de natureza negativa, na realidade, consiste na constatação

de que entre doadores e a pessoa concebida em decorrência de técnica de

procriação assistida heteróloga não se estabelecem vínculos de parentesco.

Trata-se, portanto, de exceção à regra consoante a qual todas as pessoas têm,

ao menos originalmente, pai e mãe jurídicos com origem na

consanguinidade93.

É fácil perceber, então, que tanto na adoção como na reprodução assistida, o

vínculo de filiação decorre de uma manifestação de vontade daqueles que desejam tornarem-

se pais. E, em ambos os casos, a criança será filho destes que exararam tal vontade, não

havendo qualquer vínculo com os pais biológicos (adoção) ou com o doador do material

genético (reprodução assistida).

A diferença, ademais, já foi tratada no Enunciado 111 da I Jornada de Direito

Civil:

A adoção e a reprodução assistida heteróloga atribuem a condição de filho

ao adotado e à criança resultante de técnica conceptiva heteróloga; porém,

enquanto na adoção haverá o desligamento dos vínculos entre o adotado e

seus parentes consanguíneos, na reprodução assistida heteróloga sequer será

���������������������������������������� �������������������93 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 882.

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estabelecido o vínculo de parentesco entre a criança e o doador do material

fecundante94.

Percebe-se que nessas duas modalidades o que torna a criança filha dos seus pais

não é somente o afeto, mas a opção exarada por eles no sentido de adotar ou de proceder à

reprodução assistida.

Ou seja, aqui existe uma opção prévia ao surgimento do amor e do afeto em

relação à criança: a de tornar-se pai e mãe.

No vínculo de filiação que decorre puramente da socioafetividade, por sua vez, o

desejo de se tornar pai ou mãe da criança é posterior ao aparecimento do sentimento de afeto e

cuidado por ela.

Isto é, aquele que se torna pai ou mãe socioafetivo sabe que o faz em relação a

filho biológico de outrem.

3.1.1. Posse do estado de filho

A posse do estado de filho dá origem à filiação socioafetiva por decorrer do

comportamento adotado por duas pessoas como se fossem pai e/ou mãe e filho. Assim, tanto

no seio da família como para toda a sociedade essas pessoas serão reconhecidas como pai e/ou

mãe e filho.

Conforme explica Orlando Gomes, “a posse do estado de filho constitui-se por um

conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho do casal que o cria e o

educa”95.

Trata-se de relação de filiação que se verifica pela existência de afeto e de

tratamento do menor pelo homem, pela mulher, ou por ambos, como se fosse seu filho. Nesse

sentido é a lição de Jorge Fujita:

A filiação socioafetiva decorrente da posse do estado de filho é aquela em

que se verifica uma relação paterno-filial, ou materno-filial, ou paterno-

materno-filial, em que se destacam o tratamento existente entre os pais e o

���������������������������������������� �������������������94 Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em 24.06.2015. 95 GOMES, Orlando. Direito de Família. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 324.

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filho, de caráter afetivo, amoroso e duradouro, e a reputação ou fama na

qualidade de filho perante terceiros96.

É, portanto, uma situação fática que revela comportamento no sentido de ser pai

ou mãe daquele que biologicamente não é filho.

Entretanto, para que se reconheça a posse do estado de filho tem a doutrina

apresentado requisitos que devem estar presentes na relação, quais sejam: o tratamento de

filho, o uso do nome da família e a reputação de filho.

Ou seja, por tratar-se de fato social, o reconhecimento do vínculo exige que o

relacionamento aparente ser de filiação, de modo que alguém estranho à relação consiga

apontar a criança como sendo filho daqueles que se comportam como seus pais. Explica

Maria Berenice Dias:

Para o reconhecimento da posse do estado de filho, a doutrina atenta a três

aspectos: (a) tractatus – quando o filho é tratado como tal, criado, educado e

apresentado como filho pelo pai e pela mãe; (b) nominatio – usa o nome da

família e assim se apresenta; e (c) reputatio – é conhecido pela opinião

pública como pertencente à família de seus pais. Trata-se de conferir à

aparência os efeitos de verossimilhança que o direito considera satisfatória97.

Tais requisitos foram desenvolvidos pelos estudiosos do Direito com o objetivo de

distinguir situações de auxílio psicológico ou econômico daquelas que se caracterizam como

verdadeira filiação socioafetiva.

Isso porque somente será reconhecida a filiação decorrente do vínculo de

socioafetividade se, além de manifestações de afeto, houver vontade daquele que se comporta

como pai ou mãe de ser reconhecido como tal pelo menor e pela sociedade.

O ordenamento jurídico brasileiro ainda não se adaptou às novas realidades, de

modo que a posse do estado de filho ainda não encontra amparo legal. Porém, doutrina e

jurisprudência têm entendido pela necessidade de seu reconhecimento, vez que revela o ideal

de filiação calcada no afeto. Nesse sentido explica Rolf Madaleno:

���������������������������������������� �������������������96 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 78-79. 97 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 381.

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Não obstante a codificação em vigor não reconheça a filiação socioafetiva,

inquestionavelmente a jurisprudência dos pretórios brasileiros vem paulatina

e reiteradamente prestigiando a prevalência da chamada posse do estado de

filho, representando em essência o substrato fático da verdadeira e única

filiação, sustentada no amor e no desejo de ser pai ou de ser mãe, em suma,

de estabelecer espontaneamente os vínculos da cristalina relação filial98.

Prestigia-se com isso o elo constituído entre pessoas com base afeto que, como se

sabe, é mais duradouro e verdadeiro do que aquele que decorre tão somente de laços de

consanguinidade.

3.1.2. Adoção à brasileira

Além da posse do estado de filho, a filiação socioafetiva também se caracteriza

quando presente a chamada adoção à brasileira. Trata-se de situação na qual o casal ou apenas

um dos cônjuges registra criança de outrem como se filha sua fosse e passa a cuidar dela

prestando-lhe todos os cuidados inerentes à condição de pai ou mãe.

Assim, ao invés de proceder à adoção legal, obedecendo a seus trâmites e

aguardando seus prazos, muitos acabam por efetuar o registro de criança em seu nome, como

se entre eles houvesse vínculo biológico. Explica Galdino Bordallo:

Muitas pessoas assim procedem por motivos os mais diversos, dos quais

podemos enumerar: não desejarem que o fato seja exposto em um processo,

achado que assim agindo a criança nunca saberá que foi adotada; receio que

a criança lhes seja tomada ao proporem a ação, considerando a existência do

cadastro que deve ser respeitado; medo de não lhes ser concedida a adoção.

Preferem assumir o risco e praticar ato que o ordenamento jurídico tipifica

como crime99.

Trata-se, entretanto, de situação que encontra tipificação no Código Penal, vez

que se subsume ao tipo previsto no artigo 242, que trata do crime de parto suposto. In verbis:

Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de

outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando

direito inerente ao estado civil. ���������������������������������������� �������������������98 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 487. 99 BORDALLO, Galdino Augusto Coelho. Adoção. In: MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 334.

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Ou seja, na adoção à brasileira o surgimento do vínculo de filiação passa pela

prática de uma conduta criminosa, qual seja a de registrar como seu o filho de outrem,

conforme explica Jorge Fujita:

Adoção à brasileira é a que consiste no reconhecimento registral de

determinada pessoa como sendo filho de outros que não se traduzem como

seus pais biológicos, sem obedecer aos trâmites legais, caracterizando um

procedimento irregular, tipificador de crime de parto suposto, constante no

art. 242, do Código Penal100.

Ocorre que o vínculo que se desenvolve entre a criança que foi registrada como se

fosse filha legítima do pai, da mãe ou de ambos, não tem respaldo na veracidade do registro,

mas sim no relacionamento afetivo existente entre eles. É o que explica Maria Berenice Dias:

A chamada “adoção à brasileira” também constitui vínculo de filiação

socioafetiva. Ainda que registrar filho alheio como próprio configure delito

contra o estado de filiação (CP 242), nem por isso deixa de produzir efeitos,

não podendo gerar irresponsabilidades ou impunidades. Como foi o

envolvimento afetivo que gerou a posse do estado de filho, o rompimento da

convivência não apaga o vínculo de filiação que não pode ser

desconstituído101.

Mesmo em se tratando de situação fundada em comportamento ilegal, ela se

consolida e merece tutela jurídica em atenção ao melhor interesse da criança, o que se

justifica pelo fato de que o registro falso de nascimento gera para o infante a situação de posse

do estado de filho.

Ademais, em que pese a filiação decorrer da prática de crime, a interpretação que

o Superior Tribunal de Justiça tem feito é no sentido de prevalecer o melhor interesse da

criança. Assim, salvo nos casos em que haja maus-tratos ou risco à integridade física e

psicológica do menor, o ideal para ele é permanecer no seio de sua família. Vejamos:

HABEAS CORPUS. BUSCA E APREENSÃO DE MENOR.

DETERMINAÇÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. POSSÍVEL

PRÁTICA DE "ADOÇÃO À BRASILEIRA". CONVÍVIO COM A

���������������������������������������� �������������������100 FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. São Paulo: Atlas, 2011. p. 79. 101 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 382.

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FAMÍLIA REGISTRAL. MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. ORDEM

CONCEDIDA. 1. A despeito da possibilidade de ter ocorrido fraude no

registro de nascimento, não é do melhor interesse da criança o acolhimento

institucional ou familiar temporário, salvo diante de evidente risco à sua

integridade física ou psíquica, circunstância que não se faz presente no caso

dos autos. Precedentes. 2. Ordem concedida102.

Percebe-se, assim, que a modalidade de filiação que decorre da chamada adoção à

brasileira, a despeito de revelar a prática de um crime penalmente tipificado, não pode ser

tratada como se fosse somente mais um ilícito penal em nossa sociedade.

Mesmo existindo a previsão de um procedimento de adoção e não sendo legal o

ato de registrar como seu o filho de outra pessoa, uma vez realizado tal ato e concretizado o

vínculo de filiação, seria mais danoso para a família que se formou o rompimento dos laços

para a aplicação da sanção penal cabível do que a sua manutenção.

A “adoção à brasileira” gera vínculo de filiação igual ao que decorre da posse do

estado de filho e, portanto, a ela se equipara, constituindo, ambas, modalidades puras de

filiação originada na socioafetividade.

3.2. Efeitos jurídicos da filiação por socioafetividade

O vínculo estabelecido entre pais e filhos socioafetivos, além de estar

constitucionalmente protegido, tem implicâncias jurídicas, uma vez que equiparado ao

vínculo que surge em razão da adoção.

Assim, seja pela posse do estado de filho, seja pela adoção à brasileira, surgem

para aquele que desenvolveu laços de filiação para com o menor todos os direitos e deveres

inerentes à condição de pai ou mãe.

Ou seja, assim como aos pais biológicos, aos pais socioafetivos compete o

exercício do poder familiar conforme as diretrizes do artigo 1.634 do Código Civil, com

redação dada pela Lei nº 13.058 de 2014.

���������������������������������������� �������������������102 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. HC 291103 / SP HABEAS CORPUS 2014/0064809-9, Terceira Turma, Relator Ministro Sidnei Beneti, DJe 29/08/2014. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201400648099&dt_publicacao=29/08/2014>. Acesso em 12.04.2015.

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Independentemente da origem do vínculo, ambos são pais e possuem os mesmos

direitos e deveres em relação aos seus filhos, sob o risco de implicar em uma desigualdade

entre filhos biológicos e afetivos. Objetiva-se, assim como nas relações de consanguinidade,

preservar o melhor interesse do menor e concretizar o pleno desenvolvimento de sua

dignidade no seio familiar.

Nesse sentido é a lição de Maria Berenice Dias:

O reconhecimento da paternidade ou da maternidade socioafetiva produz

todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são inerentes. O vínculo de

filiação socioafetiva, que se legitima no interesse do filho, gera o parentesco

socioafetivo para todos os fins de direito, nos limites da lei civil. Se menor,

com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do

adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa

humana, que não admite um parentesco restrito ou de “segunda classe”. O

princípio da solidariedade se aplica a ambos os casos103.

O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já firmou posicionamento no sentido de

que à filiação socioafetiva se aplicam, por analogia, as regras impostas à filiação biológica.

Tendo em vista que ambas originam o mesmo vínculo entre pais e filhos, não há razão para

proceder a qualquer diferenciação entre elas. Vejamos:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FAMÍLIA.

RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE E MATERNIDADE

SOCIOAFETIVA. POSSIBILIDADE. DEMONSTRAÇÃO. 1. A

paternidade ou maternidade socioafetiva é concepção jurisprudencial e

doutrinária recente, ainda não abraçada, expressamente, pela legislação

vigente, mas a qual se aplica, de forma analógica, no que forem

pertinentes, as regras orientadoras da filiação biológica. 2. A norma

princípio estabelecida no art. 27, in fine, do ECA afasta as restrições à busca

do reconhecimento de filiação e, quando conjugada com a possibilidade de

filiação socioafetiva, acaba por reorientar, de forma ampliativa, os restritivos

comandos legais hoje existentes, para assegurar ao que procura o

reconhecimento de vínculo de filiação socioafetivo, trânsito desimpedido de

sua pretensão. 3. Nessa senda, não se pode olvidar que a construção de uma

���������������������������������������� �������������������103 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 383.

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relação socioafetiva, na qual se encontre caracterizada, de maneira indelével,

a posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de pleitear, em juízo,

o reconhecimento desse vínculo, mesmo por meio de ação de investigação

de paternidade, a priori, restrita ao reconhecimento forçado de vínculo

biológico. 4. Não demonstrada a chamada posse do estado de filho, torna-se

inviável a pretensão. 5. Recurso não provido104.

Percebe-se, portanto, que os pais socioafetivos devem ser equiparados aos

biológicos e adotivos em relação a todos os direitos e obrigações que são inerentes à condição

de pai e mãe. Igualmente, os filhos afetivos são dotados dos mesmos direitos e deveres que os

filhos biológicos e adotivos.

Tendo em vista que a filiação socioafetiva produz os mesmos efeitos que a

biológica, Christiano Cassettari conclui:

Que são efeitos do reconhecimento da parentalidade socioafetiva o direito

aos alimentos, a guarda e visita dos filhos menores, de participar da

sucessão, de modificar o nome e receber novos avós no registro civil, de

exercer o poder familiar, de receber benefícios previdenciários, de ser

inelegível, dentre outros105.

Ou seja, independentemente da origem do vínculo ser genética, legal ou social,

haverá sempre um vínculo de filiação. O pai será pai e o filho será filho, recebendo o mesmo

tratamento jurídico.

Assim, verifica-se que, em caso de separação dos pais, aquele que não ficar com a

guarda do filho socioafetivo terá com relação a ele direito de visitas e de tê-lo em sua

companhia, bem como de fiscalização de sua manutenção e educação, conforme estabelece o

artigo 1.589 do Código Civil.

Também, aplica-se à filiação socioafetiva, assim como à consanguínea e à

adotiva, o comando trazido pelo artigo 229 da Constituição Federal, in verbis:

���������������������������������������� �������������������104 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, REsp 1189663/RS Recurso Especial 2010/0067046-9, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 15/09/2011. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201000670469&dt_publicacao=15/09/2011>. Acesso em 06.04.2015. 105 CASSETTARI, Christiano. Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2013. p. 225.

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Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e

os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice,

carência ou enfermidade.

Igualmente, a filiação socioafetiva também produz efeitos no que tange aos

direitos sucessórios. Não podendo ser feita qualquer distinção entre filhos biológicos, adotivos

e socioafetivos, mister se faz concluir que estes também são sucessores legítimos dos pais.

Assim, na ordem de vocação hereditária os filhos socioafetivos enquadram-se dentre os

descendentes.

Percebe-se, portanto, que o reconhecimento da modalidade socioafetiva de

filiação tem como objetivo sua equiparação à biológica para todos os fins de direito.

Assim, aquele que de livre e espontânea vontade opta por tratar como seu o filho

de outra pessoa, ou por registrar seu nascimento procedendo à adoção à brasileira, estará

dando início à mesma série de direitos e deveres que surgem quando duas pessoas concebem

um filho.

4. Caráter irrevogável da filiação socioafetiva e da adoção e o direito à investigação

da identidade genética

Conforme já restou demonstrado, a filiação originada na adoção decorre da

manifestação da vontade do adotante em tornar-se pai ou mãe do menor, perpassando pelo

procedimento legal necessário. Por sua vez, o surgimento da filiação baseada na

socioafetividade decorre de um ato volitivo do pai, da mãe ou de ambos com relação ao

menor que será acolhido como se filho fosse e passará a receber de seus pais socioafetivos

todos os cuidados inerentes à função de pai ou mãe.

A irrevogabilidade da adoção decorre da previsão legal contida no parágrafo 1º do

artigo 39 do Estatuto da Criança e do Adolescente106. Assim, uma vez perfeita a adoção, o

adotado será filho do adotante, tendo todos os direitos e deveres que teria caso a filiação

tivesse origem biológica, não podendo referido vínculo ser desfeito.

Nessa toada é a lição de Maria Helena Diniz:

���������������������������������������� �������������������106 Art. 39. A adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta Lei. § 1o A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei. § 2o É vedada a adoção por procuração (Grifo nosso).

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A adoção é, portanto, um vínculo de parentesco civil, em linha reta,

estabelecendo entre adotante, ou adotantes, e o adotado, um liame leal de

paternidade e filiação civil. Tal posição de filho será definitiva ou

irrevogável, para todos os efeitos legais, uma vez que desliga o adotado de

qualquer vínculo com os pais de sangue, salvo os impedimentos para o

casamento (CF, art. 227, §§ 5º e 6º), criando verdadeiros laços de parentesco

entre o adotado e a família do adotante107.

No que tange à filiação originada na socioafetividade, justamente por decorrer da

vontade livre e consciente de exercer com relação ao infante situação que gere a posse do

estado de filho, tem-se entendido, corretamente, pela impossibilidade de sua revogação. Nesse

sentido destaca-se trecho retirado de acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça:

O termo de nascimento fundado numa paternidade socioafetiva, sob

autêntica posse de estado de filho, com proteção em recentes reformas do

direito contemporâneo, por denotar uma verdadeira filiação registral –

portanto, jurídica –, conquanto respaldada pela livre e consciente intenção do

reconhecimento voluntário, não se mostra capaz de afetar o ato de registro da

filiação, dar ensejo a sua revogação, por força do que dispõem os arts. 1.609

e 1.610 do Código Civil108.

Percebe-se, pois, que a constituição de filiação socioafetiva tem sido equiparada

ao livre reconhecimento de filhos, sendo, portanto, irrevogável.

Isso porque aquele que passa a tratar como seu filho de outrem sabe que o infante

é filho de outra pessoa, mas, em que pese tal conhecimento, nutre por ele sentimento de afeto

tamanho que acaba por comportar-se como pai ou mãe, estabelecendo verdadeira relação de

filiação.

Tem-se, portanto, que, uma vez configurada a relação de filiação, seja pela

adoção, seja pela socioafetividade, as mudanças nas circunstâncias fáticas atinentes à vida do

���������������������������������������� �������������������107 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 5: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 572. 108 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 709608 / MS Recurso Especial 2004/0174616-7, Rel. Min. João Otavio de Noronha. Quarta Turma. DJe 23/11/2009. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=200401746167&dt_publicacao=23/11/2009>. Acesso em 17.04.2015.

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pai/mãe ou do filho não podem importar em uma mudança no caráter de filiação entre eles

existente.

Explica-se. A filiação socioafetiva é reconhecida pela doutrina e pela

jurisprudência em prestígio a uma série de princípios que informam o Direito de Família,

especialmente a dignidade da pessoa humana, a afetividade, a igualdade entre filhos e o

melhor interesse do menor. Exatamente por isso, uma vez estabelecida, não pode ser tal

filiação passível de desaparecer conforme as nuances da vida.

Leciona Roberto Paulino de Albuquerque Júnior:

Constitui-se, pois, para todos os efeitos, uma relação plena de filiação, a

qual, para adequada proteção da pessoa pelo ordenamento, não pode se

sujeitar a incertezas ou a instabilidades emocionais dos sujeitos

envolvidos109.

Nesse sentido, inclusive, é o Enunciado 339 da IV Jornada de Direito Civil: “A

paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do

melhor interesse do filho”110.

O mesmo ocorre com a adoção, que, ademais, encontra previsão legal no Estatuto

da Criança e do Adolescente como meio de formação de vínculo de parentesco civil.

É possível e, inclusive, muito comum, que o casal que optou por adotar ou por

exercer a parentalidade em razão de afeto pelo menor, não tenha uma união perpétua e venha

a se separar. Nesse caso, não se admite que aquele que adotou ou passou a tratar o filho do

outro como seu, configurando a posse do estado de filho, decida revogar tal situação.

Também não se admite o arrependimento ao perceber que, em razão do vínculo de

filiação, o menor será sujeito de direitos sucessórios em relação aos pais (adotivos ou

socioafetivos).

���������������������������������������� �������������������109 JÚNIOR, Roberto Paulino de Albuquerque. A filiação socioafetiva no direito brasileiro e a impossibilidade de sua desconstituição posterior. In: Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 8, n. 39, Dez./Jan., 2007. p. 72. 110 Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em 24.06.2015.

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Assim como a relação de filiação decorrente do vínculo biológico não sofre

alterações em razão das mudanças na vida de pais e filhos, o mesmo se dá com a filiação

socioafetiva e com a adoção. Caso contrário não haveria sentido em equipará-las.

Ocorre, entretanto, que os filhos adotivos e socioafetivos, se quiserem, têm direito

a buscar saber sua origem genética.

No que tange aos adotivos, referido direito encontra previsão no artigo 48, caput,

do Estatuto da Criança e do Adolescente. In verbis:

Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como

de obter acesso irrestrito ao processo no qual a meida foi aplicada e seus

eventuais incidentes, após completar 18 anos.

Para os filhos socioafetivos, por sua vez, o mesmo direito vem sendo reconhecido

pela jurisprudência, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

FAMÍLIA. FILIAÇÃO. CIVIL E PROCESSO CIVIL. RECURSO

ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.

VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA.

IDENTIDADE GENÉTICA. ANCESTRALIDADE. ARTIGOS

ANALISADOS: ARTS. 326 DO CPC E ART. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL.

1. Ação de investigação de paternidade ajuizada em 25.04.2002. Recurso

especial concluso ao Gabinete em 16/03/2012. 2. Discussão relativa à

possibilidade do vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o

reconhecimento da paternidade biológica. 3. Inexiste ofensa ao art. 535 do

CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e precisa

sobre a questão posta nos autos. 4. A maternidade/paternidade socioafetiva

tem seu reconhecimento jurídico decorrente da relação jurídica de afeto,

marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais

criam uma criança por escolha própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e

cuidados inerentes à relação pai-filho. 5. A prevalência da

paternidade/maternidade socioafetiva frente à biológica tem como principal

fundamento interesse do próprio menor, ou seja, visa garantir direitos aos

filhos face às pretensões negatórias de paternidade, quando é inequívoco (i)

o conhecimento da verdade biológica pelos pais que assim o declararam no

registro de nascimento e (ii) a existência de uma relação de afeto, cuidado,

assistência moral, patrimonial e respeito, construída ao longo dos anos. 6. Se

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é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com

outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma

verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável

que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de

impedir sua pretensão. 7. O reconhecimento do estado de filiação constitui

direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser

exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus

herdeiros. 8. Ainda que haja a consequência patrimonial advinda do

reconhecimento do vínculo jurídico de parentesco, ela não pode ser invocada

como argumento para negar o direito do recorrido à sua ancestralidade.

Afinal, todo o embasamento relativo à possibilidade de investigação da

paternidade, na hipótese, está no valor supremo da dignidade da pessoa

humana e no direito do recorrido à sua identidade genética. 9. Recurso

especial desprovido111.

O direito ao reconhecimento da identidade encontra respaldo constitucional, vez

que se enquadra dentro dos direitos reconhecidos à vida, à informação e à privacidade.

Ou seja, deve-se permitir que, aquele que cresceu vinculado ao seu pai ou mãe em

razão da adoção ou da socioafetividade, possa perquirir quem é seu ascendente biológico tão

somente com vistas a saber sua origem, sua história e, com isso, encontrar sua identidade.

Conforme leciona Paulo Lôbo, “o objeto da tutela do direito ao conhecimento da

origem genética é assegurar o direito da personalidade”112, razão pela qual não se confunde

com a ação de investigação de paternidade.

Não se faz necessário desconstituir o vínculo de filiação existente para reconhecer

a ascendência genética, vez que esta será buscada tão somente como feixe do exercício do

direito de conhecimento da identidade pessoal. Explica Guilherme Calmon Nogueira da

Gama:

Em outros termos: o direito à identidade pessoal deve abranger a

historicidade pessoal e, aí inserida a vertente biológica da identidade, sem

que seja reconhecido qualquer vínculo parental entre as duas pessoas que,

���������������������������������������� �������������������111 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1401719/MG Recurso Especial 2012/0022035-1, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 15/10/2013. 112 LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 524.

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biologicamente, são genitor e gerado, mas que juridicamente não tiveram

qualquer vínculo de parentesco113.

Ao contrário do que se dá na ação de investigação de paternidade ou de

maternidade, em que o objetivo é reconhecer o vínculo de filiação biológica e, com isso, fazer

jus ao conjunto de direitos pessoais e patrimoniais que dele decorrem, na investigação da

origem biológica o objetivo é tão somente conhecer sua identidade genética, sem a criação de

qualquer vínculo com o ascendente. Explicam Cristiano Chaves de Farias e Nelson

Rosenvald:

[...] através da investigação de origem genética, uma pessoa que já titulariza

uma relação paterno-filial (ou seja, já tem genitor), estabelecida a partir de

hipóteses não biológicas (por exemplo, através de adoção ou de filiação

socioafetiva), pretende obter o reconhecimento de sua origem ancestral, em

relação ao seu genitor biológico. Aqui, não se persegue a formação de uma

relação filiatória (não se quer alterar a relação paterno-filial). O autor da

ação não pretende requerer alimentos ou a herança do réu, seu ancestral.

Apenas pretende ver declarada sua ascendência genética. Aqui, funda-se o

pedido no exercício de um direito da personalidade (totalmente desatrelado

de uma relação de família) e a pretensão é, por igual, imprescritível, e o

direito em disputa, inalienável114.

Conhecer a verdadeira origem biológica, para algumas pessoas, pode ser tão

importante ao ponto que, suprimir tal possibilidade, implicaria em uma violação à sua

dignidade. Ainda, tal conhecimento se faz importante quando se objetiva evitar a eventual

ocorrência de impedimentos matrimoniais ou de doenças genéticas que, conhecidas, podem

ser tratadas de maneira mais eficaz e adequada.

Ademais, se o direito à investigação da origem genética é admitido expressamente

em lei com relação aos filhos adotados, não há porque negá-lo àqueles cuja filiação decorre da

socioafetividade.

���������������������������������������� �������������������113 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2013. p. 907. 114 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Bahia: Juspodivm, 2013. p. 717.

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Trata-se de direito da personalidade inerente à condição de filho adotado ou

socioafetivo.

Assim, para estabelecer um equilíbrio entre a importância do vínculo de filiação

calcado na adoção ou na socioafetividade, que, inclusive, é irrevogável, e o direito de

conhecimento da origem genética, deve-se admitir tal descoberta sem implicar o surgimento

de qualquer laço de parentesco.

Isso porque, caso a vontade seja desconstituir a filiação socioafetiva para

substituí-la pela biológica, bastará ao interessado ajuizar ação judicial formulando tal

pretensão.

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CAPÍTULO IV – A OBRIGAÇÃO DE PRESTAR ALIMENTOS

Para se perquirir se é possível, ou não, reconhecer legalmente a coexistência do

vínculo de filiação com origem na socioafetividade ou na adoção com a busca de auxílio

material frente ao ascendente genético, mister se faz analisar os fundamentos da obrigação de

prestar alimentos.

Ao estudar os elementos que embasam a obrigação dos pais de prestar alimentos a

seus filhos, será possível verificar se o auxílio material somente pode ser pleiteado frente aos

pais (sejam eles biológicos, adotivos ou socioafetivos) ou se, diante de situações em que se

verifique a entrega ou o abandono dos descendentes biológicos, poderá o ascendente genético

ser chamado a prestar pensão alimentícia àquele que, em que pese ter sido por ele gerado, é

filho de outra pessoa.

Explica-se. Busca-se, a partir da compreensão sobre o tema da obrigação

alimentar, verificar se os alimentos, havendo necessidade do filho e impossibilidade dos pais

(cujo vínculo se originou na adoção ou na socioafetividade), poderão ser pleiteados do

genitor, ou seja, daquele que forneceu material genético para a existência do infante, mas que

em relação a ele não possui qualquer vínculo de filiação.

1. A obrigação alimentar

O Código Civil de 2002 estabelece em seus artigos 1.694 e 1.695 a existência de

obrigação alimentar entre parentes quando um deles não tem condições de prover o próprio

sustento e o outro tem condição de fornecê-los.

A existência de tal obrigação no âmbito das relações familiares está diretamente

relacionada aos princípios da solidariedade e da dignidade humana, uma vez que se impõe

àquele que tem condições o auxílio no sustento e no atendimento das necessidades daquele

que não pode fazê-lo sozinho, garantindo a este uma existência digna. Nessa linha de

pensamento explicam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

[...] a fixação dos alimentos deve obediência a uma perspectiva solidária

(CF, art. 3º), norteada pela cooperação, pela isonomia e pela justiça social –

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como modos de consubstanciar a imprescindível dignidade humana (CF, art.

1º, III)115.

Tendo em conta referida obrigação, por alimentos deve-se entender o conjunto de

coisas que se fazem necessárias para atender às necessidades vitais de um indivíduo. Ou seja,

a colaboração visa auxiliar o sustento, a aquisição de bens materiais, como vestuário, o

pagamento de custos com educação, dentre outras necessidades116.

Nessa toada, explica Yussef Said Cahali que a expressão alimentos denota as

prestações pagas pelo seu devedor com o intuito de satisfazer as necessidades do credor.

Vejamos:

Alimentos são, pois, as prestações devidas, feitas para que aquele que as

recebe possa subsistir, isto é, manter sua existência, realizar o direito à vida,

tanto física (sustento do corpo) como intelectual e moral (cultivo e educação

do espírito, do ser racional)117.

Na mesma linha de raciocínio explicam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald que

as prestações devidas objetivam a manutenção de uma vida de acordo com padrões de

dignidade da pessoa humana:

[...] em concepção jurídica alimentos podem ser conceituados como tudo o

que se afigurar necessário para a manutenção de uma pessoa humana,

compreendidos os mais diferentes valores necessários para uma vida

digna118.

Tais alimentos podem ser naturais (necessários) ou civis (côngruos). Serão

naturais quando se limitarem àquilo que for estritamente necessário para a subsistência de

quem os recebe; e civis, quando incluírem, além do essencial para a subsistência, o auxílio a

outras necessidades do alimentando. Nesse sentido diferencia Yussef Said Cahali:

���������������������������������������� �������������������115 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 782. 116 Confira-se a lição de Francesco Galgano: “Il diritto agli alimenti è limitato al necessário per la vita, avuto riguardo ala posizione sociale della persona: si riferisce, perciò, alle necessità del vitto, dell’abitazione, del vestiário, dele cure sanitarie (ma, se si trata di minori, si riferisce anche alle spese per l’educazione e per l’instruzione)”. GALGANO, Francesco. Diritto privato. Padova: CEDAM, 1996. p. 773. 117 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 16. 118 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 784.

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Quando se pretende identificar como alimentos aquilo que é estritamente

necessário para a mantença da vida de uma pessoa, compreendendo tão

somente a alimentação, a cura, o vestuário, a habitação, nos limites assim do

necessarium vitae, diz-se que são alimentos naturais; todavia, se abrangentes

de outras necessidades, intelectuais e morais, inclusive recreação do

beneficiário, compreendendo assim o necessarium personae e fixados

segundo a qualidade do alimentando e os deveres da pessoa obrigada, diz-se

que são alimentos civis119.

Percebe-se, então, que a obrigação alimentar entre parentes pode ter tanto o viés

de garantir o mínimo para a vida do alimentando, como o de colaborar com a satisfação de

todas as suas necessidades além da mera subsistência, o que será feito levando em conta as

peculiaridades do alimentando.

Ainda, a despeito da previsão legal acerca da existência dessa obrigação alimentar

entre parentes, a mesma só surge e só pode ser exigida quando aquele que pleiteia os

alimentos não tem condições de arcar, por si próprio, com os custos de sua manutenção. Ou

seja, quando não consegue, com o fruto dos seus esforços, prover o próprio sustento120.

Ademais, não basta que exista alguém em condições de hipossuficiência

econômica para garantir sua própria manutenção; exige-se, outrossim, que aquele de quem se

pleiteia o auxílio alimentar tenha efetiva condição de fazê-lo sem colocar em prejuízo o

atendimento de suas necessidades individuais e daqueles que dele dependem. Explica Yussef

Said Cahali:

A teor do art. 1.695 do CC/2002, para que exista obrigação alimentar é

necessário que a pessoa de quem se reclamam os alimentos possa fornecê-los

sem privação do necessário ao seu sustento; se o devedor, assim, não dispõe

senão do indispensável à própria mantença, mostra-se injusto obrigá-lo a

privações acrescidas tão só para socorrer ao necessitado121.

���������������������������������������� �������������������119 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 1.538. 120 Nesse sentido confira-se o ensinamento de Pontes de Miranda: “Todo indivíduo deve alimentar-se por si mesmo, com o produto do seu trabalho e rendimento; e somente recai em seus pais, ou parentes, a obrigação de prestar os alimentos legítimos, quando o alimentando não tem bens, nem pode prover, por seu trabalho, à própria mantença, isto é, não pode adquirir para sí víveres (cibaria), roupa (vestitus), casa (habitatio), ou não pode fazer despesas com remédios e médicos (valetudinis impendia)”. MIRANDA, Pontes de. Direito de família. Direito parental. Direito protectivo. Atualizado por Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 294. 121 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 500.

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Percebe-se que, sendo os alimentos tudo aquilo que se faz necessário para a

manutenção da pessoa com vistas a lhe assegurar uma vida digna, só se permite obrigar a

prestá-los aquela pessoa que, ao fazê-lo, não estará colocando em risco a própria subsistência

e, consequentemente, sua dignidade.

A fixação do quantum devido a título de prestação alimentar passa, portanto, pelo

binômio necessidade-possibilidade, mas também deve observar o critério da

proporcionalidade, vez que a mera existência do binômio não é suficiente para estabelecer

exatamente quanto é necessário para garantir as necessidades do alimentando, tendo em vista

que devem ser levadas em conta todas as circunstâncias de sua vida e da do devedor

alimentar.

Objetiva-se que, em razão da solidariedade que se impõe no âmbito das relações

familiares, funcionem os parentes não somente como suporte afetivo, mas também como

ajudantes no que tange aos recursos materiais que se fazem necessários para a manutenção de

cada indivíduo. Explica Yussef Said Cahali:

[...] surgida originariamente como um dever ético, a obrigação de assistência

e socorro resultante do vínculo familiar aparece, no direito romano, como

expressão da aequitas, da caritas sanguinis (Dig. XXV, Lib. III, fr. 5. § 2),

da pietas ratio, da ratione naturali; ou como officium pietatis, mais

propriamente como uma obrigação jurídica a traduzir o fundamento moral

do instituto, calcado na solidariedade que nasce da comunhão de sangue, de

nome, de afetos122.

O fundamento da obrigação de prestar alimentos, portanto, decorre do dever de

mútuo auxílio entre os membros da família, calcado na solidariedade imposta aos membros

dessa micro sociedade, conforme explica Arnaldo Rizzardo:

Funda-se o dever de prestar alimentos na solidariedade humana e econômica

que deve imperar entre os membros da família ou os parentes. Há um dever

legal de mútuo auxílio familiar, transformado em norma, ou mandamento

jurídico123.

���������������������������������������� �������������������122 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 31. 123 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 655.

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O dever de prestar alimentos, percebe-se, tem como finalidade evitar que

membros de uma mesma família vivam em situação de tamanha desigualdade econômica que

um indivíduo não consiga prover o mínimo vital para si próprio ao passo que o outro o faça

em situação de abundância.

Assim, existindo situação em que um dos membros da família não tem condições

de garantir sua própria subsistência ao passo que a outro lhe sobram recursos, terá ele o dever

de prestar auxílio na medida de suas possibilidades e das necessidades do outro.

Referido auxílio, destaca-se, deveria decorrer de um ato voluntário, vez que se

trata de membros de uma mesma família. Porém, na maioria das vezes, a prestação material

somente é conseguida após ser imposta judicialmente.

Tendo em vista as razões que impõem a prestação de alimentos no âmbito das

relações familiares, apresentam eles uma série de características que lhe são próprias e

inerentes à qualidade de auxílio destinado à manutenção da vida humana.

O direito à prestação de alimentos é pessoal e intransferível, uma vez que objetiva

garantir tão somente as necessidades do alimentando, não sendo possível sua cessão ou

transferência a terceiros.

Referido direito também apresenta a característica de ser irrenunciável e

imprescritível. Isto é, mesmo se não exercido, pois ausente a sua necessidade, será possível

pleitear alimentos caso sobrevenha mudança na situação econômica que os faça

imprescindíveis à manutenção da vida do seu beneficiário.

Ainda, apesar de serem, na maioria das vezes, representados por uma quantia em

pecúnia, os alimentos não podem ser restituídos àquele que o pagou, ou seja, são irrepetíveis.

Assim, uma vez pagos os alimentos, não será cabível qualquer alegação no sentido de reaver a

quantia já entregue, vez que ela foi destinada à subsistência de quem a recebeu.

Nessa mesma toada, os alimentos também não podem ser compensados com outra

obrigação. Isso se dá justamente pelo objetivo para o qual são prestados: a manutenção da

vida do alimentando. Assim, mesmo que o beneficiário contraia dívida de outra natureza com

o devedor, não poderá este negar a prestação devida sob o argumento de que está procedendo

a uma compensação entre supostos crédito e débito.

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Também em razão do fundamento da prestação alimentar, não pode ser ela

penhorada nem objeto de transação, vez que isso prejudicaria a mantença do seu beneficiário

em condições dignas que satisfaçam suas necessidades.

A sua prestação, inclusive, é periódica e variável. Ou seja, quem deve alimentos

tem uma obrigação contínua, estabelecida de acordo com critérios de razoabilidade, sendo,

normalmente mensal. E o seu valor pode variar conforme as condições econômicas do

devedor e do credor no momento do pagamento.

Percebe-se, portanto, que a existência da obrigação de prestar alimentos entre os

membros da família visa à manutenção adequada e ao atendimento das necessidades de cada

um, podendo ser exigida em maior ou menor quantidade a depender das peculiaridades de

cada caso. Ainda, tendo em vista que o objetivo é assegurar a sobrevivência digna da pessoa,

recai sobre os alimentos uma série de limitações visando evitar que eles se tornem objeto de

negociações e deixem de atender a sua finalidade precípua, qual seja, a garantia da dignidade

de cada membro da família.

2. Alimentos em relação aos filhos menores

No que tange aos filhos menores, o ordenamento pátrio impõe aos pais, dentre

outras incumbências, o dever de zelar pelo seu sustento. Isso porque, a criança e o

adolescente, por serem pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, não estão prontos

para trabalhar e gerar recursos para sua manutenção, sendo esta responsabilidade dos seus

pais.

Nesse sentido, Yussef Said Cahali explica que a obrigação de prestar alimentos

decorre da carência ínsita à criança e ao adolescente, que não tem condições de prover a sua

própria subsistência, senão vejamos:

Desde o momento da concepção, o ser humano – por sua estrutura e natureza

– é um ser carente por excelência; ainda no colo materno, ou já fora dele, a

sua incapacidade ingênita de produzir os meios necessários à sua

manutenção faz com que se lhe reconheça, por um princípio natural jamais

questionado, o superior direito de ser nutrido pelos responsáveis por sua

geração. Subsiste essa responsabilidade – também em termos incontroversos

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– durante todo o período de desenvolvimento físico e mental do ser

gerado124.

O artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente impõe à família e à sociedade

o dever de “[...] assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida,

à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à

dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”125 à criança e ao

adolescente.

A efetivação desses direitos, por óbvio, passa pelo dever de sustento e de

prestação de todo o auxílio material necessário – e possível – ao desenvolvimento da criança e

do adolescente de acordo com os parâmetros de uma vida digna.

Referida obrigação, portanto, não se destina a garantir aos filhos menores somente

o necessário para sua subsistência, mas sim tudo aquilo que for preciso para “[...] lhes facultar

o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de

dignidade”126.

Exatamente por isso é dever do pai e da mãe, em conjunto ou separadamente, a

prestação de auxílio alimentar aos filhos menores, conforme leciona Yussef Said Cahali:

Incumbe aos genitores – a cada qual e a ambos conjuntamente – sustentar os

filhos, provendo-lhes a subsistência material e moral, fornecendo-lhes

alimentação, vestuário, abrigo, medicamentos, educação, enfim, tudo aquilo

que se faça necessário à sua manutenção e sobrevivência127.

O dever de prover o sustento dos filhos menores, inclusive, subsiste mesmo diante

da existência de recursos por parte do infante, tendo em vista que se trata de obrigação mais

ampla do que aquela existente entre parentes: é uma consequência do vínculo de filiação.

Nesse sentido é a lição de Yussef Said Cahali:

���������������������������������������� �������������������124 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 29. 125 Artigo 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. 126 Estatuto da Criança e do Adolescente, Artigo 3º. 127 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 329.

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Quanto aos filhos, sendo menores e submetidos ao poder familiar, não há um

direito autônomo de alimentos, mas sim uma obrigação genérica e mais

ampla de assistência paterna, representada pelo dever de criar e sustentar a

prole. O titular do poder familiar, ainda que não tenha o usufruto dos bens do

filho, é obrigado a sustentá-lo, mesmo sem auxílio das rendas do menor e

ainda que tais rendas suportem os encargos da alimentação: a obrigação

subsiste enquanto menores os filhos, independentemente do estado de

necessidade deles, como na hipótese, perfeitamente possível, de disporem

eles de bens (por herança ou doação)128.

Na mesma linha explicam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que a

obrigação alimentar dos pais em relação aos seus filhos menores independe da existência de

recursos da criança ou adolescente, senão vejamos:

O exercício do poder familiar impõe aos genitores (valendo aqui lembrar que

na pós-modernidade estão desatrelados os conceitos de pai e genitor) a

manutenção integral de sua prole, estruturando-se, assim, uma obrigação

alimentícia independentemente dos recursos do filho menor. Assim sendo,

mesmo que o menor possua rendimentos e patrimônio (fruto, e.g., do

recebimento de heranças ou doações), os pais continuam obrigados a

contribuir com os alimentos, permanecendo intacto o seu patrimônio (que

deverá ser resguardado para o seu próprio futuro), exceto se os genitores não

tiverem condições de prestar o pensionamento129.

Percebe-se que, ao decidir ter um filho, o indivíduo opta por adquirir em relação

ao menor que virá a nascer, uma série de direitos e deveres inerentes à condição de pai ou

mãe. Não podem os pais decidir que terão filhos, mas que não serão responsáveis pelo auxílio

material que eles necessitarem, pois trata-se de imperativo legal consequente do vínculo

paterno-materno-filial.

Dentre tais deveres está o de sustento dos filhos enquanto menores e incapazes de

provê-lo por si sós, pois, as crianças e os adolescentes, não devem trabalhar, mas brincar e

estudar para assim se desenvolver e tornar adultos, momento no qual passarão a ter a

obrigação de promover os recursos necessários para a própria subsistência.

���������������������������������������� �������������������128 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 331. 129 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 825.

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Trata-se, como já foi dito, de obrigação derivada da solidariedade que deve existir

entre os membros da família, especialmente entre pais e filhos, conforme destaca Yussef Said

Cahali:

A obrigação de prestar alimentos fundada no jus sanguinis repousa sobre o

vínculo de solidariedade humana que une os membros do agrupamento

familiar e sobre a comunidade de interesses, impondo aos que pertencem ao

mesmo grupo o dever recíproco de socorro130.

Assim, enquanto tiver o filho sob sua guarda e convívio, o pai e/ou a mãe terá a

obrigação de garantir todos os recursos necessários para atender às suas necessidades.

E, havendo eventual rompimento do vínculo conjugal, ou mudança da guarda para

o outro genitor, aquele que não tiver o filho sob sua guarda direta, deverá continuar prestando-

lhe auxílio material, sob a forma de pensão alimentícia, com vistas a garantir o padrão de vida

antes existente e o atendimento de todas as necessidades dele.

3. Alimentos na adoção

Na vigência do Código Civil de 1916 a adoção não extinguia os direitos e deveres

decorrentes do parentesco natural, sendo transferido para os pais adotivos somente o poder

familiar em relação ao adotado. Assim, havendo necessidade somada à impossibilidade dos

pais adotivos, podia o infante buscar alimentos em face dos seus pais biológicos. Sobre o tema

explica Arnaldo Rizzardo:

Ora, como filho adotivo, não perdeu o autor o direito a alimentos e socorro,

quando necessário e impossível de obtenção junto ao pai adotivo. Porém, no

conflito entre os dois pais, sua obediência será para o adotivo, visto que ele

detém o pátrio poder, por exemplo. Assim, ao ceder o pátrio-poder, sobre o

filho, entregando-o aos pais adotivos, por adoção simples, não se livrou o pai

legítimo dele, como de uma carga incômoda, visto que jungidos, ambos, pelo

vínculo comum da natureza131.

Atualmente, entretanto, conforme estabelece o artigo 41 do Estatuto da Criança e

do Adolescente e, em consonância com a previsão constitucional, os adotados equiparam-se

���������������������������������������� �������������������130 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 450. 131 RIZZARDO, Arnaldo. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 479.

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aos filhos biológicos, possuindo os mesmos direitos e deveres, sendo vedada qualquer

diferenciação entre eles.

Assim, não havendo qualquer possibilidade de diferenciação entre filhos

biológicos e adotados, o dever de prestar alimentos a eles é conclusão lógica que se impõe.

Nesse sentido explica Yussef Said Cahali:

A obrigação do adotante de prestar alimentos ao adotado revela-se

induvidosa: com a transferência do poder familiar, compete-lhe o dever de

sustento do filho, e não ao pai de sangue, que no direito anterior era tido

apenas como subsidiariamente responsável”132.

Trata-se de obrigação equiparada à que decorre do vínculo de consanguinidade,

justamente em razão do fato de a adoção atribuir a condição de filho ao adotado.

Por essa razão, assim como aos pais adotivos incumbe o dever de sustento do

filho adotado enquanto ele for incapaz, no caso de separação ou divórcio, a esse filho será

devida a prestação de alimentos.

Destaca-se, ainda, que caso um dos cônjuges adote o filho do outro, tal situação

será irrevogável, não havendo que se falar em fim da obrigação de auxílio material no caso de

dissolução da sociedade conjugal, conforme ressalta Yussef Said Cahali:

Integrando-se o adotivo na condição de filho, se o marido adotou filho da

mulher com quem se casou, a separação posterior do casal não faz cessar

para ele a obrigação alimentícia devida ao adotado133.

Não há dúvidas, portanto, de que a obrigação alimentar recíproca entre pais e

filhos não se limita somente àqueles ligados pelo vínculo biológico, mas se estende aos

adotivos, vez que equiparados ao primeiro. Explica Rolf Madaleno:

Esse direito alimentar toma feição de dever de alimentos dos pais adotantes

para com os filhos adotivos, enquanto presente o poder familiar, e se

transmuda em obrigação de alimentos quando os filhos, mesmo adotivos,

���������������������������������������� �������������������132 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 482. 133 Idem. p. 484.

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atingem a maioridade cronológica e sua capacidade civil, e dessa forma

ficam fora do poder familiar134.

Nota-se que, sendo a adoção somente uma modalidade de formação do vínculo de

filiação, a ela são aplicáveis todas as regras relativas à prestação de alimentos que incidem

sobre as relações formadas por consanguinidade.

É essa a previsão contida no artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente. In

verbis:

Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos

direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo

com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.

Percebe-se que no ordenamento jurídico atual a previsão legal é no sentido de que,

havendo necessidade de alimentos, eles deverão ser buscados frente aos pais adotivos, tendo

em vista que a adoção rompe o poder familiar e as obrigações dos ascendentes genéticos.

4. Alimentos na filiação com origem socioafetiva

Já foi esclarecido no presente trabalho que o vínculo de filiação decorrente da

socioafetividade equipara-se ao biológico para todos os fins de direito. Assim, pais e filhos

socioafetivos possuem uns em relação aos outros os mesmos direitos e deveres existentes

entre aqueles ligados pela consanguinidade ou pela adoção.

Em razão disso, também o direito a alimentos é devido entre pais e filhos

socioafetivos, não havendo porque se entender de maneira diversa. Nesse sentido se

posicionam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

Como não poderia ser diferente, a filiação socioafetiva impõe, dentre os seus

inúmeros efeitos, a possibilidade, por igual, de geração de obrigação

alimentar entre os parentes socioafetivos135.

Na jurisprudência pátria, inclusive, já é possível encontrar entendimento nessa

linha, senão vejamos:

���������������������������������������� �������������������134 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 672. 135 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 838.

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APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE.

PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DO REGISTRO E DE EXONERAÇÃO DA

VERBA ALIMENTAR. AUSÊNCIA DE PROVA DO ALEGADO VÍCIO

DE CONSENTIMENTO. PATERNIDADE

SOCIOAFETIVA CONFIGURADA. PRECEDENTES. 1) Inexistindo

demonstração do vício de consentimento quando do reconhecimento da

paternidade por meio de registro do nascimento da menina, não há falar em

anulação, tampouco retificação registral. 2) Caso concreto em que a

instrução processual cabalmente demonstrou que o autor estabeleceu com a

infante paternidade socioafetiva, acordando, em sede judicial, a

regulamentação de visitas e alimentos. 3) Evidenciado o vínculo afetivo

formado durante a criação da menor, deve o demandante arcar com

todos os deveres oriundos da paternidade, no que se inclui o de prestar

alimentos. Apelação desprovida, por maioria136.

Direito de família. Investigação de paternidade c/c alimentos. Autor adotado,

em tenra idade, pela representante legal dele na demanda, a qual manteve

longa união estável com o requerido. Laços afetivos paterno-filial

consolidados durante mais de 13 (treze) anos. Existência de acordo

extrajudicial fixando a obrigação de pagamento

de alimentos. Paternidade socioafetiva reconhecida. Alimentos devidos.

Recurso desprovido137.

Percebe-se que, uma vez concretizada a relação calcada na socioafetividade,

aquele que assume a condição de pai ou mãe socioafetivo e passa a arcar com os custos do

sustento do filho, se coloca em posição de igualdade em relação ao pai ou mãe biológicos no

que tange aos direitos e deveres para com a criança ou adolescente.

Assim, tendo em vista a necessidade de auxílio por parte dos menores para o seu

sustento, os pais afetivos têm o dever de prestar tudo o quanto for necessário e possível,

garantindo um desenvolvimento adequado e digno para aqueles que decidiram criar como se

filhos biológicos fossem138.

���������������������������������������� �������������������136 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70042363432. Oitava Câmara Cível. Relator Ricardo Moreira Lins Pastl. Julgado em 09/06/2011. 137 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação nº 2010.039965-4. Quarta Câmara de Direito Civil. Relator Eládio Torret Rocha. Julgado em 30.09.2010.138 Confira-se a lição de Christiano Cassettari: “[...] verifica-se que o dever de prestar alimentos, havendo o binômio necessidade e possibilidade, é recíproco entre pais e filhos socioafetivos, da mesma forma como ocorre

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Exatamente por isso, não se veda que busquem os filhos socioafetivos alimentos

naqueles que são seus pais em razão do afeto e não da consanguinidade. Nesse sentido leciona

Maria Berenice Dias:

[...] Não basta procurar a lei que preveja a obrigação alimentar e nem

condicionar a imposição do encargo à presença de uma situação que retrate

paradigmas pré- estabelecidos. Ao magistrado cabe identificar a presença de

um vínculo de afetividade. Dispensável, a certidão de casamento ou o

registro de nascimento. A formalização dos relacionamentos é desnecessária

para o estabelecimento dos vínculos afetivos e, via de consequência, para o

reconhecimento de direitos e imposição de obrigações recíprocas139.

Ainda, tendo em vista o tratamento atualmente dispensado ao vínculo de

socioafetividade, que tem sido equiparado ao biológico em razão da importância que assume

para os envolvidos, o dever alimentar não se restringe aos filhos menores, sendo recíproco

entre pais e filhos socioafetivos em qualquer fase da vida, desde que se façam necessários.

Esse entendimento, apesar de não encontrar respaldo na legislação

infraconstitucional, está de acordo com os ditames da Constituição Federal. Isso porque, além

da afetividade, também são princípios que regem as relações familiares a dignidade da pessoa

humana e a solidariedade. Sendo assim, por óbvio, pai e/ou mãe socioafetivos têm o dever de

prestar ao menor toda a assistência que ele venha a necessitar, inclusive alimentos.

Ademais, referido dever se coaduna com o princípio do melhor interesse da

criança e do adolescente, visto que terá o infante necessidades que não poderá suprir por si

próprio, razão pela qual o dever de prestar tal assistência recairá sobre aqueles que, em razão

do afeto, tornaram-se seu pais.

Na mesma toada impõe-se aos filhos socioafetivos o dever de, podendo e sendo

necessário, ajudar os seus pais se um dia eles não tiverem mais condições de, com seus

próprios recursos, garantir uma manutenção digna para si.

���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������

com a parentalidade biológica, haja vista que essa regra deriva do art. 229 da Constituição Federal”. CASSETTARI, Christiano. Efeitos jurídicos da parentalidade socioafetiva. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 2013. p. 138. 139 DIAS, Maria Berenice. Alimentos, sexo e afeto. Disponível em: <http://mariaberenice.com.br/uploads/17_-_alimentos%2C_sexo_e_afeto.pdf>. Acesso em 24.06.2015. p. 18.

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Percebe-se, que, assim como ocorre com o vínculo decorrente da adoção, o

socioafetivo também tem sido equiparado ao biológico para fins de direitos e deveres

impostos a pais e filhos.

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CAPÍTULO V – A PATERNIDADE ALIMENTAR

Hoje a lei não veda o amparo integral aos filhos, pelo contrário, prevê

expressamente que todos eles são iguais (Constituição Federal, art. 227, §6º) e fazem jus aos

mesmos direitos. Porém, a norma não tem o poder de forçar que pais e mães tenham afeto

pelos seres humanos que geram, razão pela qual nem todos acabam por ser realmente pais ou

mães de seus filhos biológicos.

Justamente por isso a adoção e a socioafetividade são duas fontes de formação do

vínculo de filiação muito comuns na atualidade.

Ocorre que os laços de filiação originados na socioafetividade e na adoção não

excluem o direito da criança de buscar saber sua origem genética, bem como quem são seus

parentes consanguíneos.

E é diante dessa possibilidade que surge o questionamento sobre a possibilidade

de o menor buscar conhecer sua origem genética somente para receber auxílio financeiro. Ou

seja, se é possível, diante da falta de condições financeiras dos pais (socioafetivos ou

adotivos), a fixação da obrigação alimentar para o ascendente genético.

Trata-se de situação na qual o reconhecimento do vínculo biológico se daria tão

somente com o objetivo de responsabilizar o genitor pela prestação de auxílio alimentar ao

menor cujos pais não têm condições de prestá-lo.

1. A Lei nº 883 de 21 de outubro de 1949

A ideia do reconhecimento de paternidade com fins meramente alimentares

remonta à já revogada Lei nº 883 de 21 de outubro de 1949, que dispunha sobre o

reconhecimento dos filhos ilegítimos.

Referida lei trazia expressamente a possibilidade de o filho havido fora do

casamento acionar o pai biológico para ter reconhecido o direito à prestação de alimentos,

mas tão somente este, sem qualquer reconhecimento de paternidade140, já que, na época, o

���������������������������������������� �������������������140 Nesse sentido explica Rolf Madaleno: “Tratava-se, portanto, de uma prévia ação de investigação de paternidade, com mera finalidade alimentar, sem que o vínculo biológico de filiação fosse oficialmente declarado e sem que gerasse efeitos no registro de nascimento do filho considerado adulterino, que só tinha o

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reconhecimento do vínculo de filiação em relação aos filhos havidos fora do casamento só

poderia ocorrer após a dissolução da sociedade conjugal.

Previa, assim, o artigo 4º da referida Lei:

Para efeito da prestação de alimentos, o filho ilegítimo poderá acionar o pai

em segredo, de justiça, ressalvado ao interessado o direito à certidão de

todos os termos dos respectivos processos.

Admitia-se, portanto, que o filho havido fora do casamento ajuizasse ação visando

o recebimento de alimentos de seu genitor. Para tanto, investigava-se a paternidade de

maneira incidental, objetivando tão somente saber se seria devida a condenação ao pagamento

de pensão alimentícia.

Essa previsão legal demonstra que, à época, em que pese a proteção existente

sobre a instituição família, que condenava os filhos que não fossem havidos no seio de uma

união matrimonial a uma posição relegada, com pouquíssima tutela jurídica, reconhecia-se a

responsabilidade do pai biológico pelo sustento daquele que colocou no mundo, mesmo que

em contrariedade às normas legais e morais outrora vigentes.

Comentando referido comando legal, Silvio Rodrigues explica que tal

possibilidade se dava pelo fato de que, à época, somente se admitia o reconhecimento de

paternidade após a dissolução da sociedade conjugal à qual estava vinculada o adúltero, de

modo que esperar tal momento para poder pleitear os direitos alimentares decorrentes da

filiação poderia acabar por impossibilitar que os alimentos fossem prestados no momento em

que surgisse a sua necessidade. Vejamos:

[...] tanto o reconhecimento voluntário de filho adulterino, como o forçado,

só são permitidos após a dissolução da sociedade conjugal. De sorte que, se a

lei condicionasse o direito à prestação alimentícia ao fato de primeiramente

se dissolver a sociedade conjugal do progenitor, poderia o tempo tornar

inócua a sua liberalidade, visto que, quando o adulterino os pudesse exigir, já

tais alimentos lhe seriam inúteis. Daí a razão pela qual o legislador,

sabiamente e para efeito da prestação de alimentos, autorizou o filho

adulterino a acionar o pai, mesmo antes da dissolução de sua sociedade

���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������������������������� ���������������������

direito de receber uma pensão alimentícia de seu pai, que ficava legalmente protegido pelo casamento civil de seu deslize conjugal”. MADALENO, Rolf. Repensando o direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 159.

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conjugal, uma vez que o faça em segredo de justiça. Assim, sem ferir a

sensibilidade do cônjuge de seu progenitor e sem ameaçar a estabilidade de

seu lar, apura-se a filiação para efeito de obter alimentos para o

necessitado141.

Percebe-se, assim, que apesar da limitação ao reconhecimento do então chamado

filho ilegítimo, já havia uma preocupação com a necessidade de alimentos que o menor

poderia ter, razão pela qual o auxílio poderia ser pleiteado antes mesmo de ser o

reconhecimento da paternidade possível, ou seja, enquanto vigente a sociedade conjugal fora

da qual referida criança foi havida.

Com o tempo a legislação pátria evoluiu de modo a acompanhar a sociedade,

passando a reconhecer a igualdade entre os filhos, seja qual for a sua origem (dentro ou fora

do casamento), bem como a possibilidade de reconhecimento do vínculo de paternidade a

qualquer tempo.

A Lei nº 883/1949 foi revogada e com ela a previsão de reconhecimento

incidental do vínculo de filiação tão somente para fins alimentares.

O que não mudou, entretanto, foi o comportamento de membros da sociedade. Ou

seja, ainda hoje existem pais e mães que têm seus filhos em relações extraconjugais e não os

reconhecem, pais que, mesmo gerando a criança enquanto vigente uma relação de afeto, a

abandonam após o seu nascimento, deixando de prestar-lhe apoio moral e material, bem como

aqueles que, não tendo a intenção de manter qualquer relação com seu filho, acabam por

entrega-lo à adoção.

2. A paternidade alimentar

A ideia do reconhecimento de paternidade para fins meramente alimentares foi

desenvolvida por Rolf Madaleno. Para o autor, nas situações em que o pai ou mãe

socioafetivo não tiver plenas condições de prestar apoio material ao filho, deve-se admitir que

este busque em seu genitor referido amparo, de modo a manter com ele mera relação

assistencial. Leciona:

Em tempos de verdade afetiva e de supremacia dos interesses da prole, que

não pode ser discriminada e que tampouco admite romper o registro civil da

���������������������������������������� �������������������141 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito de família: volume 6. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 317.

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sua filiação social já consolidada, não transparece nada contraditório

estabelecer nos dias de hoje a paternidade meramente alimentar. Nela, o pai

biológico pode ser convocado a prestar sustento integral a seu filho de

sangue, sem que a obrigação material importe em qualquer possibilidade de

retorno à sua família natural, mas que apenas garanta o provincial efeito

material de assegurar ao filho rejeitado a vida digna, como nas gerações

passadas, em que ele só podia pedir alimentos do seu pai que era casado e o

rejeitara142.

A ideia nomeada de paternidade alimentar é a de se prezar pela plena realização

da dignidade humana do menor, mediante os recursos materiais que se fizerem necessários

para tanto. Ou seja, com vistas a não prejudicar o adequado desenvolvimento do infante,

admite Madaleno a possibilidade de recorrer ao ascendente biológico somente com vistas a

obter dele os alimentos necessários que o pai ou mãe socioafetivo não pode prover.

Assim, a criança continuará fazendo parte de sua família (cujo vínculo se originou

na socioafetividade), mas terá assistência material de seu ascendente genético. Tal assistência,

entretanto, será limitada aos recursos que forem necessários para sua manutenção, não se

estendendo para nenhum outro fim de direito, vez que mantem-se o vínculo de filiação

existente.

Conforme explica Madaleno, eximir genitor biológico de qualquer

responsabilidade com relação ao menor que gerou, tão somente em razão da existência de um

vínculo de filiação com terceiro seria premiar esse genitor pelo abandono em relação ao

menor143.

É sabido que não se pode obrigar ninguém a nutrir afeto pela criança que gera,

mas essa impossibilidade não deve implicar em uma total ausência de responsabilidades.

Sendo assim, diante de uma situação na qual o pai ou mãe cujo vínculo se

originou na socioafetividade não possui suficientes recursos financeiros para conferir o

���������������������������������������� �������������������142 MADALENO, Rolf. Paternidade Alimentar. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM, v. 8, n. 37, Ago./Set., 2006, p. 133-149. p. 148. 143 “Este genitor do ocaso e da falta de afeto pode não ser compelido a conviver e gostar de seu filho que abandona, por total descaso, por sua frieza e desumana rejeição, mas, em contrapartida, não pode ser igualmente compensado com a dispensa da sua responsabilidade pelo vínculo de sua procriação, apenas porque outro assume, por afeto, a sua primitiva função parental”. MADALENO, Rolf. Paternidade Alimentar. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM, v. 8, n. 37, Ago./Set., 2006, p. 133-149. p. 146.

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sustento adequado do seu filho, ao passo que o procriador se encontra em situação

economicamente mais confortável, entende Madaleno que se deve admitir a possibilidade de o

menor buscar complementação dos alimentos necessários em face de seu genitor. Vejamos:

Daí ser de todo defensável a possibilidade de serem reivindicados alimentos

do progenitor biológico, diante da impossibilidade econômico-financeira, ou

seja, diante da menor capacidade alimentar do genitor socioafetivo, que não

está em condições de cumprir satisfatoriamente com a real necessidade

alimentar do filho que acolheu por afeição, situação em que o pai

socioafetivo tem amor, mas não tem dinheiro144.

A ideia de vanguarda desenvolvida pelo jurista gaúcho se sustenta no conceito de

que a plena realização da dignidade humana do menor depende tanto do apoio moral como do

apoio material que lhe é oferecido durante o seu desenvolvimento.

E, no caso de este infante estar inserto no seio de uma família originada na

socioafetividade que lhe dedica todo o cuidado e carinho possíveis, mas sem adequados

recursos financeiros, sua dignidade não estaria plena, vez que os alimentos que lhe são

necessários poderiam ser providos pelo seu genitor.

Ademais, nem sempre que os recursos materiais se fazem necessários para o

adequado desenvolvimento do infante, há interesse em reconhecer a paternidade biológica

para afastar a socioafetiva.

Isso porque, conforme já mencionado neste trabalho, o vínculo de filiação decorre

muito mais da socioafetividade existente entre pais e filhos do que da ligação sanguínea que

existe entre eles.

Assim, não se pode entender que em todos os casos em que a família socioafetiva

careça de recursos materiais haverá interesse em se reconhecer o laço biológico de filiação

para todos os fins de direito, pois, tal reconhecimento não vem acompanhado de um vínculo

de afeto, vez que esse já existe e foi formado com os pais socioafetivos.

A ação visando alimentos, atualmente, perpassa necessariamente pelo

reconhecimento de paternidade. Consequentemente, a filiação socioafetiva existente é

���������������������������������������� �������������������144 MADALENO, Rolf. Paternidade Alimentar. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: IBDFAM, v. 8, n. 37, Ago./Set., 2006, p. 133-149. p. 147.

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desconstituída em favor da biológica para que, uma vez reconhecida, possa ser o pai ou mãe

responsabilizado a prestar sustento ao seu filho.

E é exatamente isso que se quer evitar com a ideia da paternidade alimentar. Nela

não haveria o reconhecimento de paternidade para todos os fins de direito, mas somente para

fins alimentares, mantendo-se o vínculo de filiação existente (originado na socioafetividade).

Trata-se, ao mesmo tempo, de responsabilizar o genitor pelas necessidades

materiais que seu filho pode ter e de privilegiar o vínculo de socioafetividade em detrimento

do biológico.

A princípio, responsabilizar o ascendente biológico pela colaboração com as

necessidades materiais do menor que gerou, de modo a garantir-lhe adequado

desenvolvimento, ao invés de privá-lo dos recursos necessários ao seu desenvolvimento tão

somente em razão da existência de um vínculo de socioafetividade, parece condizente com os

ditames constitucionais e infraconstitucionais relativos à família e à proteção da criança e do

adolescente.

Entretanto, diante da ausência de qualquer normatização a respeito do tema,

coloca-se a questão de saber se seria possível compatibilizar, em relação à mesma pessoa, um

vínculo de filiação (decorrente da socioafetividade ou da adoção) com um vínculo de

assistência material em face do seu ascendente genético.

3. A paternidade alimentar na doutrina e na jurisprudência

Poucos foram os doutrinadores que se posicionaram acerca da teoria da

paternidade alimentar desenvolvida por Rolf Madaleno.

A despeito de se verificar em consonância com os preceitos constitucionais

relativos à proteção da criança e do adolescente e de possibilidade de responsabilização dos

pais pelos danos causados aos filhos, a ideia ainda se mostra de difícil sustentação frente à

rigidez com que são interpretados alguns institutos jurídicos.

Dos poucos estudiosos que se dedicaram a tratar sobre o tema, Pablo Stolze se

manifesta favoravelmente a ele, lecionando:

Trata-se de uma ideia de vanguarda, em que se preserva o sentimento

precioso da paternidade (ou maternidade, claro) socioafetiva, mas também se

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impõe uma responsabilidade ao indivíduo que participou da concepção de

uma criança e, depois, não lhe deu qualquer assistência145.

Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, em que pese não se manifestarem

em contrário à sua aceitação, se posicionam no sentido de que a teoria só seria passível de

aplicação em casos extremos.

Entendem que a possibilidade de buscar alimentos genitor biológico somente em

razão da menor capacidade financeira do pai ou mãe socioafetivos acabaria por diminuir o

prestígio conferido à paternidade socioafetiva, vez que os vínculos biológicos permaneceriam

vivos entre pais e filhos. Vejamos:

A nós, parece que a hipótese pode ser admitida em caráter completamente

extraordinário, com a intenção de impedir que venha a periclitar a dignidade

do filho. Ou seja, não parece possível cobrar alimentos do pai biológico

(rectius, genitor) pelo simples fato de ter uma capacidade contributiva

melhor do que o pai (afetivo). Somente em casos excepcionais, quando

visivelmente o pai não tiver condições de prestar os alimentos e desde que

não possam ser pleiteados de outra pessoa da família socioafetiva (os avós

afetivos, por exemplo) é que entendemos cabível a tese da paternidade

alimentar. Fora disso, não parece razoável, até porque estaria implicando em

enfraquecimento da filiação socioafetiva, não rompendo, em definitivo, os

vínculos genéticos146.

Por sua vez, Maria Berenice Dias entende que entre ascendentes genéticos e pais

deve existir uma concorrência no que tange à responsabilidade de prestar alimentos à criança

ou ao adolescente, vejamos:

A tendência é reconhecer a concorrência da obrigação alimentar do pai

registral, do biológico e do pai afetivo. Daí ser de todo defensável a

possibilidade de serem reivindicados alimentos do genitor biológico, diante

da impossibilidade econômico-financeira, ou seja, diante da menor

capacidade alimentar do genitor socioafetivo, que não está em condições de

cumprir satisfatoriamente com a real necessidade alimentar do filho que

���������������������������������������� �������������������145 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume VI: Direito de família – As famílias em perspectiva constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 634-635. 146 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 697.

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acolheu por afeição, em que o pai socioafetivo tem amor, mas não tem

dinheiro147.

A jurisprudência pátria ainda não teve a oportunidade de se manifestar de maneira

esclarecedora sobre a temática da paternidade alimentar. Por se tratar de teoria nova e ainda

desamparada legalmente, poucos são aqueles que se aventuram a deduzir referida pretensão

em juízo.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, entretanto, já enfrentou questão

atinente ao tema, em julgado do ano de 2007, no qual entendeu que deve prevalecer o vínculo

de filiação socioafetiva em detrimento do biológico, não admitindo a obrigação do genitor a

prestar alimentos a seu descendente que é filho de outrem. Vejamos:

APELAÇÃO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. INVESTIGAÇÃO DE

PATERNIDADE CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGSTRO

CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA E PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

CARACTERIZADAS. ALIMENTOS A SEREM PAGOS PELO PAI

BIOLÓGICO. IMPOSSIBILIDADE. Caracterizadas a adoção à brasileira e a

paternidade socioafetiva, o que impede a anulação do registro de nascimento

do autor, descabe a fixação de pensão alimentícia a ser paga pelo pai

biológico, uma vez que, ao prevalecer a paternidade socioafetiva, ela apaga a

paternidade biológica, não podendo coexistir duas paternidades para a

mesma pessoa. Agravo retido provido à unanimidade. Apelação provida, por

maioria. Recurso adesivo desprovido à unanimidade148.

Referido julgado teve origem em pretensão formulada por menor impúbere com o

objetivo de anular o registro de nascimento no qual constava o nome do pai socioafetivo,

substituindo-o pelo pai biológico e de conseguir deste a prestação dos alimentos necessários à

sua manutenção.

A Juíza de primeira instância, diante das peculiaridades do caso, entendeu não ser

possível a anulação do registro do menor, vez que deveria ser preservado o vínculo da

paternidade socioafetiva em detrimento da biológica. Porém, em razão das provas produzidas

nos autos, declarou o vínculo de ascendência genética entre o menor e seu pai biológico, mas

���������������������������������������� �������������������147 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 583 148 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70017530965, 8ª Câmera Cível, rel. Des. José Ataias Siqueira Trindade, DJ de 28.07.2007.

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sem consequências registrais. E, ainda, decidiu que, por ser o menor adolescente com

deficiência física e mental, o pai biológico deveria ser condenado a lhe prestar alimentos,

mesmo diante do vínculo de filiação com o pai registral, conforme se depreende do excerto da

sentença:

Ora, não vejo como exonerar J. M. do dever de alimentar seu filho genético

porque outro homem, por amor à criança ou à mãe desta, assumiu a

paternidade e criou-se o vínculo da parentalidade socioafetiva. Aliás, o réu

em contestação reconhece que o autor é “incapaz” (deficiente físico),

assumindo que seu filho biológico é um adolescente especial, tem o dever

moral de auxiliá-lo, até por solidariedade, mas principalmente porque foi ele

quem gerou a criança e é responsável pelos seus atos149.

Entretanto, em sede de recurso de apelação, o acórdão proferido por maioria de

votos foi no sentido de reformar a decisão de primeira instância sob o fundamento de que,

prevalecendo a paternidade socioafetiva constituída in casu, não seria cabível a fixação de

alimentos para o pai biológico, uma vez que entendeu o julgador não poderem coexistir duas

paternidades sobre a mesma pessoa.

O acórdão foi relatado pelo Desembargador José Ataias Siqueira Trindade, tendo

se posicionado, quanto à condenação em alimentos do pai biológico, no sentido de ser ela

inviável, tendo em vista que, prevalecendo a filiação existente entre o menor e seu pai

socioafetivo, não subsiste qualquer vínculo em relação ao ascendente genético que permita

sua responsabilização por alimentos. Vejamos:

Em que pese todos os princípios jurídicos e constitucionais sopesados na

sentença, inclusive aquele que diz com o da dignidade da pessoa humana,

utilizados para o fim de estabelecer pensão alimentícia a ser prestada pelo

pai biológico em razão das condições especiais do autor que apresenta

incontestável deficiência física e mental, assiste razão ao réu/apelante.

Uma vez definido na sentença – na esteira do entendimento deste relator,

diga-se -, que a paternidade socioafetiva completamente demonstrada nos

autos se sobrepõe, prevalece, à paternidade biológica, com o fim de impedir

���������������������������������������� �������������������149 AGOSTINI, Margot Cristina. Sentença proferida no processo nº 109/1.03.0002180-0, Comarca de Marau/RS, Juíza Margot Cristina Agostini, 29 de junho de 2006. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.8, n. 37, Ago./Set., 2006. p. 158-159.

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a anulação do registro de nascimento, ou seja, impedir a desconstituição da

filiação que consta no registro de nascimento, com todas as suas

consequências, inclusive patrimonial – ou melhor, a ausência de direito

patrimonial relativamente ao pai biológico -, nenhum direito poderá advir

através da paternidade biológica, nem mesmo o alimentar em situações

excepcionais como a que ora se julga150.

Restou vencido no julgamento o Desembargador Rui Portanova, que entendeu

pela possibilidade de condenar o ascendente genético a prestar alimentos ao menor, devendo,

entretanto, o valor ser reduzido para se adequar às peculiaridades do alimentante. Vejamos:

A decisão da digna julgadora de primeiro grau é absolutamente inédita. É

induvidoso que tal sentença guarda em si excelentes argumentos. Mais do

que isso, contudo, há também uma possibilidade – digo melhor, uma

potencialidade – de, para além da lei, fazer justiça no caso concreto.

Não quero perder a oportunidade de tentar cultivar esta semente, nem que

seja por mais algum tempo. O tempo até o julgamento de eventuais

embargos infringentes. Não quero perder a oportunidade de compartilhar,

com os demais colegas de Quarto Grupo, desta reflexão a respeito de como a

vida pode mexer com nosso sentimento de justiça.

[...]

Seja como for, não posso negar que também me move um sentimento de

participação na criação. No ponto vale a pena notar como também o apelante

deixa um espaço para si, quando, alternativamente, lança em seu apelo a

possibilidade de adequação do valor dos alimentos a suas possibilidades. E

nisso que vai o parcial provimento do seu apelo. Estou reduzindo a verba

alimentar para 10% do salário mínimo151.

O resultado do referido acórdão ensejou a interposição de embargos infringentes,

nos quais novamente foi mantido o entendimento acerca da impossibilidade de condenação do

pai biológico a prestar alimentos quando prevalece o vínculo de paternidade socioafetiva.

Vejamos:

���������������������������������������� �������������������150 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70017530965, 8ª Câmera Cível, rel. Des. José Ataias Siqueira Trindade, DJ de 28.07.2007. 151 Idem.�

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EMBARGOS INFRINGENTES. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.

ANULAÇÃO DE REGISTRO NEGADA. PATERNIDADE

SOCIOAFETIVA RECONHECIDA. DECLARAÇÃO DE PATERNIDADE

BIOLÓGICA AO EFEITO DE ATRIBUIR OBRIGAÇÃO ALIMENTAR

AO INVESTIGANTE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. 1. A instituição de

obrigação de natureza alimentar, no âmbito do Direito de Família, pressupõe

a existência de uma relação jurídica que lhe dê causa - no caso, o dever de

sustento dos pais com a prole ou de um parente em relação a outro (arts.

1.566, 1.634). 2. O prestígio que se há de conferir ao princípio da dignidade

da pessoa humana não faz com que se suprima do ordenamento jurídico

infraconstitucional normas que estabelecem o dever alimentar a partir da

relação de paternidade/filiação. 3. A sentença admitiu a prática de ato hígido

de reconhecimento de paternidade, bem como reconhece a parentalidade

socioafetiva entre o autor e o pai e mantém a paternidade registral. Desse

modo, impossível atribuir seqüelas jurídicas para instituir dever de alimentar

a quem tão-somente mantém identidade genética com o autor. NEGARAM

PROVIMENTO AOS EMBARGOS INFRINGENTES, POR MAIORIA152.

Percebe-se que, apesar do julgamento proferido em primeira instância,

prestigiando o vínculo de filiação (aqui originado na socioafetividade) em detrimento da

ascendência genética, mas entendendo pela impossibilidade de exoneração do pai biológico

de suas responsabilidades diante das peculiaridades do caso (adolescente com deficiência

física e mental), ao final do processo prevaleceu o entendimento no sentido de que uma

pessoa somente pode ter reconhecido um vínculo de paternidade, não havendo como

responsabilizar o ascendente biológico pelos alimentos em razão da existência de um pai

socioafetivo.

Referido julgamento, entretanto, foi o único encontrado até o momento do

depósito do presente trabalho que abordasse a temática referente à condenação do ascendente

genético a prestar alimentos ao menor que gerou, mas com o qual não estabeleceu vínculo de

filiação.

���������������������������������������� �������������������152 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Embargos Infringentes Nº 70021199468, Quarto Grupo de Câmaras Cíveis, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 14/12/2007.

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4. França: ação para fins de subsídios

O Código Civil francês, em seu artigo 342 traz previsão acerca da chamada ação

para fins de subsídios, vejamos:

Tout enfant dont la filiation paternelle n'est pas légalement établie, peut

réclamer des subsides à celui qui a eu des relations avec sa mère pendant la

période légale de la conception. L'action peut être exercée pendant toute la

minorité de l'enfant ; celui-ci peut encore l'exercer dans les dix années qui

suivent sa majorité si elle ne l'a pas été pendant sa minorité. L'action est

recevable même si le père ou la mère était au temps de la conception, engagé

dans les liens du mariage avec une autre personne, ou s'il existait entre eux

un des empêchements à mariage réglés par les articles 161 à 164 du présent

code153.

Referida ação não visa o reconhecimento do vínculo de filiação entre o pai e a

criança, sendo justamente essa característica que a diferencia da ação de reconhecimento de

paternidade.

O objetivo é tão somente a condenação do suposto pai ao pagamento de pensão

alimentícia ao menor, ou seja, trata-se de maneira encontrada pelo direito francês de

responsabilizar aquele que gerou filho, mas não o reconheceu voluntariamente. Nesse sentido

explica Maria Cláudia Brauner:

No Direito francês, a prova da existência de relações sexuais entre a mãe e o

suposto pai, durante o período de concepção, serve para possibilitar que uma

prestação alimentar seja concedida à criança. Esta foi a maneira encontrada

pelo legislador para responsabilizar o homem que não reconheceu o filho e

que não contribui de maneira alguma ao seu sustento154.

���������������������������������������� �������������������153 Código Civil Francês. Disponível em: <http://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=DE4464EEFCAE12E28E5D3D01B04E7046.tpdila19v_1?idSectionTA=LEGISCTA000006136527&cidTexte=LEGITEXT000006070721&dateTexte=20150323>. Acesso em 23.03.2015. Em tradução livre: Toda criança cuja filiação paternal não esteja legalmente estabelecida pode reclamar subsídios daquele que teve relações com sua mãe durante o período legal da concepção. A ação pode ser exercida durante toda a menoridade do infante; podendo ele exercê-la ainda durante os dez anos que seguem à sua maioridade se não o foi durante sua minoridade. A ação é cabível mesmo se o pai ou a mãe estava, ao tempo da concepção, casada com outra pessoa, ou se existia entre eles um dos impedimentos ao matrimônio estabelecidos pelos artigos 161 a 164 do presente código. 154 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Considerações sobre a filiação extramatrimonial em Direito de Família francês e brasileiro. In: Revista de informação legislativa, v. 33, n. 129, p. 299-309, jan./mar. 1996, 01/1996. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/176402>. Acesso em 17.04.2015. p. 306.

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Sendo ajuizada a ação, o valor da pensão alimentícia será fixado tendo em vista as

necessidades da criança e as possibilidades do genitor, o que se depreende do artigo 242-2 do

Código Civil francês, in verbis:

Les subsides se règlent, en forme de pension, d'après les besoins de l'enfant,

les ressources du débiteur, la situation familiale de celui-ci155.

O que diferencia a ação para fins de subsídios da ideia da paternidade alimentar

desenvolvida por Madaleno é o fato de que na primeira pode o menor buscar recursos

materiais em face de quem tenha se relacionado sexualmente com sua mãe no período em que

se deu a sua concepção; enquanto na segunda, a ideia é acionar o pai biológico tão somente

com vistas a condená-lo a prestar alimentos ao infante.

Ou seja, a lei francesa prevê que o auxílio material poderá ser buscado em face da

mera possibilidade de ascendência genética, bastando que se prove a prática de relações

sexuais entre a mãe da criança e o suposto pai durante o período legal da concepção. Nesse

sentido explica Beatrice Marinho Paulo:

Não se trata, aqui, de verificar a paternidade para estabelecer a filiação, mas

sim de proteger a criança, dando-lhe amparo material, por meio dos

subsídios (alimentos) prestados por seu genitor. (Em verdade, no Direito

francês, não é preciso que o réu seja efetivamente o genitor, mas apenas que

tenha a possibilidade de sê-lo. Entende-se que nem mesmo a conduta imoral

da genitora que tenha frequentado sexualmente uma pluralidade de amantes

na época da concepção retira o direito da criança a este amparo financeiro).

Há, portanto, a opção de investigar a paternidade ou requerer apenas

subsídios, baseados na vinculação genética (ou na possibilidade dela)156.

E, em razão de se buscar responsabilizar o provável pai, é possível, inclusive, que

mais de um homem seja condenado a prestar alimentos ao menor, conforme destaca Maria

Cláudia Brauner:

���������������������������������������� �������������������155 Código Civil Francês. Disponível em: <http://www.legifrance.gouv.fr/affichCode.do;jsessionid=DE4464EEFCAE12E28E5D3D01B04E7046.tpdila19v_1?idSectionTA=LEGISCTA000006136527&cidTexte=LEGITEXT000006070721&dateTexte=20150323>. Acesso em 23.03.2015.�156 PAULO, Beatrice Marinho. Novos caminhos da filiação: a responsabilidade de pais e de genitores – questões polêmicas. In: Revista Síntese Direito de Família. v. 13, n. 69, dez./jan. 2012. p. 88.

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No sistema francês, excepcionalmente poderá haver a condenação de dois ou

mais homens a prestar os alimentos à criança. Neste caso, ficando provada a

existência das relações sexuais da mãe com mais de um indivíduo, durante o

período legal de concepção e havendo dificuldade em identificar-se qual o

genitor da criança, o juiz pode condenar dois ou mais homens a prover o

sustento desta157.

Como se percebe, a ação para fins de subsídios assume caráter de ação

indenizatória, vez que visa responsabilizar aquele que assumiu o risco de ser pai.

Nota-se, também, que, em que pese a facilitação de busca de recursos naquele que

gerou, mas não assumiu, a ação francesa ainda se pauta em ideia patriarcal de que a mãe

sempre cuida de seu filho enquanto muitas vezes o pai é quem o abandona.

A ação trata expressamente de responsabilizar aquele que teve relações sexuais

com a mãe da criança, não vislumbrando a possibilidade de o abandono ocorrer na forma

contrária, ou seja, o infante ficar com o pai sendo abandonado moral e materialmente pela

mãe.

5. Estatuto das famílias (Projeto de Lei nº 470/2013158)

O Estatuto das Famílias tem como objetivo criar uma regulamentação unificada e

atualizada acerca do Direito de Família, de modo a substituir as normas atualmente postas no

Código Civil de 2002 por uma normatização própria, em consonância com a realidade atual e

com os princípios constitucionais e infraconstitucionais que têm suprido as lacunas ainda

existentes.

O Projeto do Estatuto das Famílias prevê, em seu artigo 77, parágrafo único, a

possibilidade de responder o ascendente genético por prestação alimentar ao seu descendente

mesmo diante do vínculo de filiação com outra pessoa. Vejamos:

Art. 77. É admissível a qualquer pessoa, cuja filiação seja proveniente de

adoção, filiação socioafetiva, posse de estado ou de inseminação artificial

heteróloga, o conhecimento de seu vínculo genético sem gerar relação de

���������������������������������������� �������������������157 BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. Considerações sobre a filiação extramatrimonial em Direito de Família francês e brasileiro. In: Revista de informação legislativa. v. 33, n. 129, p. 299-309, jan./mar. 1996, 01/1996. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/176402>. Acesso em 17.04.2015. p. 307.�158 BRASIL. Senado Federal. Projeto de lei nº 470/2013. Disponível em: < http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115242>. Acesso em 10/10/2015.

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parentesco. Parágrafo único. O ascendente genético pode responder por

subsídios necessários à manutenção do descendente, salvo em caso de

inseminação artificial heteróloga.

Percebe-se que a ideia trazida pelo referido dispositivo nada mais é do que

normatizar a ideia da paternidade alimentar, uma vez que, além de admitir o simples

reconhecimento da ascendência genética, prevê expressamente a responsabilização do

ascendente pelos alimentos que forem necessários ao seu descendente, sem que com isso se

forme entre eles um vínculo de filiação ou de parentesco.

Caso aprovado referido projeto de lei, não haverá mais que se perquirir sobre a

possibilidade ou não de buscar auxílio material frente ao genitor biológico, vez que a própria

lei regente da matéria estabelecerá expressamente sobre a autorização.

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CAPÍTULO VI – OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DECORRENTE DA ASCENDÊNCIA

GENÉTICA

Até o presente momento já foi visto que o vínculo de filiação não exige a presença

de uma ligação genética, uma vez que se verifica tanto entre pais e filhos biológicos quanto

em relação aos adotados e aos socioafetivos.

Igualmente, já se explicou que, uma vez formado referido vínculo paterno-

materno-filial, surge para os pais uma série de direitos e deveres em relação aos filhos, dentre

os quais se encontra o dever de sustento, que pode ser prestado diretamente ou sob a forma de

pensão alimentícia.

Ocorre que na filiação originada na adoção e na socioafetividade, existem duas

figuras diferentes em relação ao menor: o ascendente genético e o pai (e/ou mãe). Ou seja, em

que pese a existência de uma pessoa responsável pela concepção e pelo nascimento da criança

ou do adolescente, quem assume todas as responsabilidades decorrentes da paternidade é

outro indivíduo (pais adotivos ou socioafetivos).

Questiona-se, então, se, mesmo diante da ausência de vinculo de filiação em

relação ao genitor biológico, será possível buscar auxílio material nele quando houver

necessidade por parte do infante, mas não houver possibilidade de sua prestação adequada no

núcleo familiar a que ele pertence.

Ou seja, busca-se saber se é possível responsabilizar civilmente a pessoa que deu

início à vida do menor nos casos em que ele tem pais, mas esses pais não têm condições de

garantir adequadamente o seu sustento.

Em outras palavras, objetiva-se definir se cabe falar na existência de uma

responsabilidade subsidiária e complementar por parte do ascendente genético em relação aos

alimentos que o seu descendente venha a necessitar, mas não consegue obter em face de seu

núcleo familiar.

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1. A responsabilidade civil decorrente da concepção

A primeira questão a enfrentar é saber se é possível se falar em responsabilidade

civil do ascendente genético pela concepção. Ou seja, se aquele que concebeu e trouxe uma

nova pessoa ao mundo é responsável por essa vida mesmo que não estabeleça em relação a

ela qualquer vínculo de filiação.

Isso porque, conforme já restou demonstrado, o vínculo de filiação não surge,

necessariamente, em razão do nascimento, mas sim do afeto e do tratamento que é dispensado

por um adulto em relação a um menor, tornando-se pai e/ou mãe e filho. Nesse sentido

explica João Baptista Villela a diferença existente entre procriação e paternidade, vejamos:

[...] a paternidade é uma categoria da cultura e realiza-se na linha do afeto e

do serviço; a procriação, ao contrário, é uma expressão da natureza, resulta

de determinismos em que está ausente a liberdade e submete-se, portanto, a

outras regras159.

E é justamente em razão dessa distinção que é possível – e, inclusive, muito

comum – que os pais não sejam aqueles que, após uma relação sexual, geraram uma vida, mas

sim aqueles que, por opção, adotaram ou acolheram um infante e passaram a se relacionar

com ele com todo o afeto e cuidado que se espera das pessoas que ocupam as posições de pai

e mãe.

Porém, podem ocorrer situações nas quais o menor adotado ou acolhido por

socioafetividade tenha necessidades que seus pais não conseguem suprir, por faltar-lhes

recursos materiais adequados.

Pergunta-se, então, se diante de casos em que, em razão da falta de recursos

materiais, a dignidade humana do infante não esteja sendo garantida, seria possível recorrer ao

seu progenitor biológico para obter dele a prestação necessária.

���������������������������������������� �������������������159 VILLELA, João Baptista. Procriação, paternidade & alimentos. In: CAHALI, Francisco José; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Alimentos no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 137-138.

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Explica João Baptista Villela que o ato de procriar gera um ônus, qual seja a

manutenção dessa nova vida que surge, ônus esse que deve ser imputado ao responsável pelo

nascimento160. Vejamos:

[...] o ato da procriação, se praticado em estado de consciência e autonomia,

envolve a responsabilidade do agente, pois nasce do exercício da liberdade e

gera ônus. Pelos ônus deve responder quem os criou agindo livremente161.

Ou seja, a participação na concepção de um ser humano não obriga o genitor a

amar nem a formar um vínculo de filiação, mas será que ele pode ser exonerado de qualquer

responsabilidade somente em razão da ausência desse vínculo?

Parece-nos mais adequado entender que, mesmo não existindo uma relação

paterno-filial ou materno-filial, existe sim uma responsabilidade pelo nascimento, pela

existência dessa pessoa que foi gerada, mas que acabou inserida em outra família em virtude

da adoção ou da socioafetividade.

Nessa linha, inclusive, é a explicação de João Baptista Villela, segundo o qual “as

consequências da procriação submeteram-se, por sua natureza, ao regime jurídico da

responsabilidade civil e não ao da paternidade”162.

Assim, não é pelo fato de a obrigação de sustento dos filhos menores somente se

verificar em relação aos pais que se pode negar a busca de auxílio – ou quiçá de indenização –

frente ao genitor biológico. Em que pese a ausência do vínculo de filiação, não se pode negar

a existência de uma responsabilidade pela geração.

Essa responsabilidade não se funda na relação paterno-materno-filial, no dever de

sustento dos filhos menores, mas sim na participação dessa pessoa na concepção do infante,

conforme destaca Helenira Bachi Coelho:

���������������������������������������� �������������������160 Corroborando esse entendimento complementa Rolf Madaleno: “O filho que ajudou a gerar, com efeito que não causa danos, mas induvidosamente opera custos, como faz ver com invulgar clareza João Baptista Villela, e custos permitem buscar o seu reembolso ou a sua responsabilidade direta, pois não ofende ao Direito compelir o genitor biológico a assegurar a exata paridade dos alimentos que seu ascendente socioafetivo não tem condições de proporcionar”. MADALENO, Rolf. Repensando o direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 169. 161 VILLELA, João Baptista. Procriação, paternidade & alimentos. In: CAHALI, Francisco José; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Alimentos no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 140. 162 Idem. p. 138-139.

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A obrigação de assistência é inerente à relação biológica. Aquele que deu

origem ao filho biologicamente, mesmo que não saiba de sua existência ou

de seu nascimento, possui deveres decorrentes de sua participação na

concepção, e não é suplantado pela assunção destes por terceiro163.

Na mesma toada explica Rodrigo da Cunha Pereira que a ligação biológica entre

duas pessoas pode ser tomada como fonte de responsabilidade civil. Vejamos:

[...] paternidade é uma função exercida, ou, um lugar ocupado por alguém

que não é necessariamente o pai biológico. Neste sentido, o lugar de pai

pode ser ocupado por outra pessoa como o irmão mais velho, o avô, o

namorado etc. Isto não significa que a paternidade biológica não deve mais

ser considerada pelo Direito. Ao contrário, o laço biológico foi e continuará

sendo, no campo jurídico, fonte de responsabilidade civil, especialmente

para fins de alimentos e sucessão hereditária. Na França, por exemplo, o

Código Civil foi alterado neste aspecto para fazer uma distinção da

paternidade para fins de subsídio, e como função para aquele que detém a

“posse de estado de pai” (art. 311-1 do código civil francês)164.

Assim, seja em razão da entrega nos casos de adoção consentida, seja pelo

abandono ou pelo descaso que dá origem à socioafetividade, a conduta do ascendente

biológico é passível de lhe gerar responsabilidade civil165, conforme restará demonstrado a

seguir.

2. Elementos geradores da responsabilidade civil do ascendente genético

Para entender como será possível responsabilizar civilmente os genitores

biológicos pelos danos materiais que o ato de entrega do filho à adoção ou de abandoná-lo

pode gerar, é preciso proceder a uma análise à luz dos elementos necessários para a

caracterização da responsabilidade civil. ���������������������������������������� �������������������163 COELHO, Helenira Bachi. Da reparação civil dos alimentos. Da possibilidade de ressarcimento frente à paternidade biológica. In: MADALENO, Rolf (Coord.). Ações de Direito de Família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 31. 164 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Pai, por que me abandonaste? Disponível em: <http://www.pailegal.net/guarda-compartilhada/149-pai-por-que-me-abandonaste->. Acesso em 09.11.2015. 165 Sobre a ocorrência de danos em decorrência do abandono, confira-se a lição de Sergio Gilberto Porto: “Nessa linha, pertinente ainda observar que os reflexos jurídicos do abandono não se esgotam exclusivamente no dano moral, caracterizado este, como visto, por meio do descaso, desrespeito ao dever de assistência e a privação do direito à convivência familiar natural (art. 227, caput, da CF), mas também resta configurada a hipótese de dano material, representado pelo prejuízo, face ao custo suportado pelo não cumprimento das responsabilidades paternas”. PORTO, Sergio Gilberto. Paternidade biológica e responsabilidade civil: um “diálogo” com a jurisprudência. In: Revista Jurídica (Porto Alegre 1953). v. 416, 2012. p. 73.

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Assim, por meio de uma inter-relação, se verificará com maior clareza porque será

admissível, em algumas situações, chamar o ascendente genético para prestar alimentos ao

seu descendente, mesmo que entre eles não exista um vínculo de filiação.

2.1. Conduta

O artigo 186 do Código Civil dispõe que “aquele que, por ação ou omissão

voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que

exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Percebe-se, portanto, que o dano sofrido por alguém depende, para poder ser

reparado, da existência de uma conduta que o provoque.

Sobre o conceito de conduta leciona Sergio Cavalieri Filho:

Entende-se, pois, por conduta o comportamento humano voluntário que se

exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências

jurídicas. A ação ou omissão é o aspecto físico, objetivo, da conduta, sendo a

vontade o seu aspecto psicológico, ou subjetivo166.

Essa conduta, que pode ser comissiva ou omissiva, é passível de ser verificada

tanto no caso da adoção consentida como no da socioafetividade.

Na primeira hipótese, ao anuir com a adoção de seu filho por outra pessoa,

rompendo com ele todos os laços de filiação, o pai e/ou a mãe biológicos estão entregando

voluntariamente seu descendente para que ele se torne filho de outras pessoas. Trata-se,

portanto, de conduta ativa que consiste na recusa em exercer o poder familiar em relação ao

menor que foi gerado.

Por sua vez, ao abandonar a criança ou o adolescente, ou em razão do descaso

para com ele, também se verifica uma conduta por parte do ascendente genético, conduta essa

que dá margem para a formação de um vínculo de filiação originado na socioafetividade.

Nesse caso pode-se estar diante tanto de uma ação (abandonar) como de uma omissão

(descaso).

Essas condutas, entretanto, não geram, por si só, dano aos infantes que são

inseridos em outro núcleo familiar. Na maioria das vezes, inclusive, só geram benefícios para ���������������������������������������� �������������������166 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2014. p. 38.

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ele, que será criado por quem quer fazê-lo com todo o afeto e cuidado que uma criança

precisa para crescer adequadamente.

Entretanto, em situações excepcionais, é possível que a criança ou o adolescente

adotado ou acolhido socioafetivamente venha a ter, em decorrência disso, menos auxílio

material do que poderia ser prestado pelos seus genitores (ou somente por um deles).

Essa diminuição de recursos, em casos em que eles se façam extremamente

necessários para o adequado desenvolvimento do menor, acabará por causar-lhe

inevitavelmente um dano, vez que lhe será negado o auxílio necessário para garantir o

atendimento às suas peculiares necessidades.

Percebe-se, portanto, que só poderemos falar em responsabilidade civil dos

ascendentes biológicos quando a sua conduta de entregar ou abandonar o infante for capaz de

causar-lhe algum dano.

Não se trata, assim, de regra, mas de exceção que deverá ser observada caso a

caso.

2.2. Dano

O dano é o elemento essencial para a caracterização da responsabilidade civil,

uma vez que somente haverá dever de reparar quando determinada conduta causar um

prejuízo a alguém.

Sobre a definição de dano leciona Sergio Cavalieri Filho:

Correto, portanto, conceituar o dano como sendo lesão a um bem ou

interesse juridicamente tutelado, qualquer que seja a sua natureza, quer se

trate de um bem patrimonial, que ser trate de um bem integrante da

personalidade da vitima, como a sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em

suma, dano é lesão de um bem jurídico, tanto patrimonial como moral, vindo

daí a conhecida divisão do dano em patrimonial e moral167.

Ou seja, será fonte de responsabilidade a conduta de alguém que venha a lesionar

um bem juridicamente tutelado de terceiro.

���������������������������������������� �������������������167 FILHO, Sergio Cavalieri. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2014. p. 93.

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E é exatamente isso que se dá nos casos em que, em razão da entrega do menor à

adoção ou do seu abandono, lhe é negado o auxílio material que ele necessita e que não pode

obter frente a seus pais (adotivos ou socioafetivos).

Essa situação, quando, em razão de peculiaridades atinentes ao infante, prejudicar

o seu adequado desenvolvimento, causa-lhe, inevitavelmente, um dano, violando sua

dignidade.

A delimitação de quando se poderá falar em dano e quando não será possível,

depende da análise da situação fática concreta em face dos princípios que regem as relações

familiares e a proteção da criança e do adolescente.

Seria inconsequente tentar estabelecer de maneira rígida qual situação deveria ser

amparada com base na solução aqui proposta e qual não merece tutela jurídica, uma vez que

somente em face do caso concreto é possível dizer qual o prejuízo efetivamente suportado

pelo menor em razão da carência dos recursos materiais que lhe são necessários.

É o que se verifica, por exemplo, na situação julgada pela juíza Margot Cristina

Agostini168, já mencionada no presente trabalho, na qual o menor acolhido socioafetivamente

pelo companheiro de sua mãe era portador de deficiência física e mental, demandando

cuidados excepcionais.

Nesse caso, sem o auxílio financeiro que pode ser prestado pelo seu ascendente

genético, o infante não terá os recursos necessários para atender adequadamente às suas

necessidades especiais, o que, por ferir diretamente a sua dignidade, causa um dano que deve

ser reparado.

O mesmo se pode verificar na situação em que a criança esteja acometida de

doença grave, dependendo de custoso tratamento médico que não pode ser garantido por seus

pais, mas que poderia sê-lo se for possível obrigar o genitor biológico a prestar-lhe alimentos.

Assim, havendo dano, haverá obrigação de repará-lo.

���������������������������������������� �������������������168 AGOSTINI, Margot Cristina. Sentença proferida no processo nº 109/1.03.0002180-0, Comarca de Marau/RS, Juíza Margot Cristina Agostini, 29 de junho de 2006. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.8, n. 37, Ago./Set., 2006.

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Conforme destaca Paulo Lôbo, no âmbito das relações familiares a

responsabilidade civil rege-se pelas normas que tratam sobre a reparação de danos, senão

vejamos:

A responsabilidade civil por danos, nas relações de família, tem função

residual. Não tem por causa a constituição, o desenvolvimento ou a

dissolução da relação familiar. Seu efeito é indireto e, portanto, regido pelas

regras comuns da reparação dos danos, que ocorreria independentemente

dessa relação169.

Ou seja, caso, mesmo diante da inserção do menor em uma família substituta

(adotiva ou socioafetiva), ele não encontre nesse núcleo familiar os recursos materiais

necessários para suprir as suas necessidades excepcionais, terá o seu ascendente genético,

caso disponha de recursos financeiros suficientes, lhe causado um dano ao negar-lhe a

paternidade, a maternidade ou ambas.

Surge, assim, o dever de reparar esse dano. Reparação essa que se faz devida sob

a forma de auxílio material para a manutenção do infante, ou seja, sob a forma de prestação de

alimentos.

Isso porque, a ausência dos recursos materiais necessários ao adequado

desenvolvimento do menor em razão da condição econômica de seus pais (com vínculo

originado na adoção e na socioafetividade), diante da existência de recursos financeiros por

parte daquele que foi responsável pela sua geração, acaba por implicar em violação à sua

dignidade.

A reparação desse dano, portanto, se dará em forma de pensão alimentícia

enquanto o menor, ou seus pais, não puderem prover adequadamente seu sustento.

2.3. Nexo de causalidade

Para que surja o dever de indenizar alguém, é necessário, ainda, que se verifique

um liame de causalidade entre a conduta e o dano provocado, ou seja, um nexo capaz de ligar

a ação humana ao prejuízo sofrido por outrem. Nesse sentido explica Arnaldo Rizzardo:

���������������������������������������� �������������������169 LÔBO, Paulo. Famílias contemporâneas e as dimensões da responsabilidade. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e responsabilidade: teoria e prática do direito de família. Porto Alegre: Magister/IBDFAM, 2010. p. 21.

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[...] para ensejar e buscar a responsabilidade, é preciso que haja ou se

encontre a existência de um dano, o qual se apresenta antijurídico, ou que

não seja permitido ou tolerado pelo direito, ou constitua espécie que importe

em reparação pela sua mera verificação, e que se impute ou atribua a alguém

que o causou ou ensejou a sua efetivação. Em três palavras resume-se o nexo

causal: o dano, a antijuridicidade e a imputação170.

Ou seja, o dano sofrido por um indivíduo só pode ensejar a responsabilização do

outro quando tiver sido por ele causado em razão de uma conduta comissiva ou omissiva.

No caso do presente trabalho, o nexo de causalidade estará presente quando o

dano (violação à dignidade em razão da carência de recursos materiais para o adequado

desenvolvimento do menor) tiver origem na conduta do ascendente genético com condições

financeiras que optou por entrega-lo à adoção ou por abandoná-lo.

3. Responsabilidade civil do ascendente genético e sua obrigação de prestar

alimentos

Com base no até então exposto neste trabalho, percebe-se que o fundamento para

concordar com a possibilidade da existência da chamada paternidade alimentar é a

responsabilidade civil que decorre da procriação.

Ou seja, havendo dano ao menor em razão da conduta do ascendente genético que

optou por entrega-lo à adoção ou por abandoná-lo, haverá dever de reparar esse dano sob a

forma de pensão alimentícia.

Conforme destacam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, imperiosa a existência

de um ato ilícito, consequência de uma conduta que provoca dano, para proceder à interface

entre as regras da responsabilidade civil e a matéria do direito de família. Vejamos:

Em verdade, destarte, as peculiaridades próprias do vínculo familiar não

admitem a incidência pura e simples das regras da responsabilidade civil,

exigindo uma filtragem, sob pena de desvirtuar a natureza peculiar (e

existencial) da relação do Direito das Famílias. Exatamente por isso, a

aplicação das regras da responsabilidade civil, inclusive a teoria da perda de

uma chance, na seara familiar depende da ocorrência de um ato ilícito,

���������������������������������������� �������������������170 RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 67.

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devidamente comprovado. A simples violação de um dever decorrente de

norma de família (como o dever de afeto) não é idônea, por si só, para a

reparação de um eventual dano171.

Tendo em vista que, para a determinação do dever de prestar alimentos, deve ser

levada em consideração tanto a condição social do alimentante, quanto a do alimentando,

entende-se pela possibilidade de reivindicação de alimentos do progenitor biológico nos casos

em que houver real incapacidade por parte do pai (ou mãe) cujo vínculo de filiação se

originou na adoção ou na socioafetividade.

Ocorre que a possibilidade de o menor buscar a prestação alimentar em seu

genitor biológico somente pode ser admitida diante de casos excepcionais, ou seja, quando se

verificar real lesão à dignidade humana da criança ou do adolescente.

Percebe-se que a mera carência de recursos materiais, além de não constituir causa

de perda do poder familiar172, também não é motivação suficiente para se buscar a prestação

de alimentos responsável pela procriação, pois não se defende no presente trabalho a

possibilidade de aumentar os rendimentos mensais destinados ao infante, mas sim a reparação

de eventual dano que ele venha a sofrer.

Ademais, abrir para todos os casos a possibilidade de complementar os recursos

materiais providos pelos pais frente aos ascendentes biológicos, poderia levar a situações de

enriquecimento ilícito nas quais, mesmo não necessitando dos alimentos, os progenitores

biológicos fossem acessados somente para aumentar os rendimentos mensais da criança ou do

adolescente.

Porém, excluir totalmente a possibilidade de responsabilizar o ascendente

genético pelos alimentos que seus descendentes podem vir a necessitar, somente porque

inseridos em famílias adotivas ou socioafetivas, acabaria por violar, em alguns casos, a

dignidade do infante.

Essa violação ocorreria porque existem situações peculiares nas quais o adequado

desenvolvimento da criança ou do adolescente requer cuidados especiais que os pais não

conseguem prover. ���������������������������������������� �������������������171 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 2013. p. 649-650. 172 Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do� poder familiar.

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Foi essa a linha de raciocínio adotada pela Juíza do Rio Grande do Sul Margot

Cristina Agostini para condenar o ascendente genético ao pagamento de alimentos ao seu

filho biológico ao mesmo tempo em que manteve o vínculo de filiação com o pai

socioafetivo. Vejamos:

[...] tenho que a paternidade consciente abrange também os direitos da

criança e do adolescente revistos no art. 227 da CF, sendo responsabilidade,

também, do pai biológico, J.M., de assegurar ao autor melhores condições de

vida, eis que L., pelas suas condições físicas e mentais, jamais terá condições

de suprir suas necessidades básicas173.

Em situações excepcionais o amor e o auxílio material oferecidos ao filho

(adotivo ou socioafetivo) podem não ser suficientes para atender às suas necessidades. E,

nesses casos, impedir a responsabilização do ascendente genético pelos alimentos devidos

seria ao mesmo tempo uma punição ao menor pela desídia de seu genitor biológico e um

prêmio a este último, que, em razão da entrega ou do abandono, seria exonerado de todas as

responsabilidades em relação ao ser humano que gerou.

Nessa linha de raciocínio é o parecer exarado pelo Subprocurador-Geral da

República Henrique Fagundes Filho no REsp 813.604 – SC para justificar a possibilidade de

responsabilizar o ascendente genético mesmo diante da adoção consolidada. Vejamos:

[...] Imagine-se a satisfação do genitor imoral e insensível ao ser obsequiado

com a adoção de seu rebento renegado, não lhe restando, assim, nenhuma

responsabilidade sobre aquele, quer moral, quer patrimonial. Melhor solução

não haveria a pessoas dessa índole. A irrevogabilidade da adoção e a

extinção dos vínculos com a família biológica, não foram concebidas, por

evidente, para premiar o progenitor irresponsável, ausente, imoral, que

pretende escapar das consequências advindas de seus atos de instinto

fisiológico, tão somente. A intenção da norma é prestigiar as situações

familiares consolidadas. Ora, no caso vertente, a insubsistência dos laços de

parentesco consanguíneos apenas beneficia o genitor desidioso, não protege

a recorrente, muito menos a adotanda, tomando a norma contornos para os

quais não foi concebida, não atingindo os fins sociais para os quais se

destina. Desta feita, ainda que se entenda dever subsistir a adoção da ���������������������������������������� �������������������173 AGOSTINI, Margot Cristina. Sentença proferida no processo nº 109/1.03.0002180-0, Comarca de Marau/RS, Juíza Margot Cristina Agostini, 29 de junho de 2006. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v.8, n. 37, Ago./Set., 2006. p. 162.

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recorrente, não é possível obstar que conheça quem é seu pai biológico,

exigindo dele o cumprimento dos deveres concernentes a esse estado174.

Percebe-se, portanto, que a responsabilização do ascendente genético pelos

alimentos deve ser admitida, mas a título de exceção.

Essa situação excepcional, destaque-se, estará presente sempre que se verificar a

ocorrência de um dano ao menor que foi adotado ou acolhido socioafetivamente.

Ou seja, para identificar quais situações serão merecedoras de imposição da

obrigação alimentar ao genitor biológico, será preciso perpassar pelos elementos da

responsabilidade civil (conduta, dano e nexo de causalidade) para verificar se eles se

encontram presentes.

Havendo conclusão positiva, terá a criança ou o adolescente o direito de pleitear a

responsabilização do seu ascendente genético pelo auxílio material que ele necessita.

Esse direito surge porque aceitar que o procriador não seja responsabilizado em

nenhuma hipótese pelos recursos materiais que o menor venha a necessitar, tão somente em

prestígio à irrevogabilidade da adoção e da filiação com origem socioafetiva, acabaria por

violar não só a dignidade do menor, mas todo o ideal de proteção especial voltado às crianças

e aos adolescentes.

4. Paralelo com a responsabilidade alimentar dos avós

O Código Civil, em seu artigo 1.698, prevê expressamente a possibilidade de

buscar alimentos frente a outros parentes quando os pais não tiverem condições de prestá-los.

In verbis:

Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver

em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer

os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos,

todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada

ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide.

���������������������������������������� �������������������174 FILHO, Henrique Fagundes. Parecer do Subprocurador-Geral da República Henrique Fagundes Filho no REsp 813.604 – SC (2006/0011178-7), Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ: 17/09/2007.

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É com base nesse dispositivo legal que passou a ser aceita a obrigação alimentar

dos avós, que surge diante da impossibilidade dos pais, conforme explica Francisco José

Cahali:

[...] agora por texto expresso no art. 1.698, acolheu-se a orientação já

consolidada na doutrina e na jurisprudência pela qual se pode pleitear

alimentos complementares ao parente de outra classe se o mais próximo não

estiver em condições de suportar totalmente o encargo. Representa a

transformação em artigo do Código daquela usual ocorrência de propositura

de ação contra avós buscando a pensão suplementar pela reduzida

capacidade do genitor175.

Referida obrigação, chamada de avoenga, entretanto, só surge nas situações em

que o pai e a mãe do infante não tiverem possibilidade de arcar com os alimentos que lhe

forem necessários.

Trata-se, portanto, de obrigação que se caracteriza por ser subsidiária e

complementar à obrigação dos pais. Nessa toada explica Rolf Madaleno:

A obrigação alimentar dos avós é de caráter subsidiário ou sucessivo e não

simultâneo com o dever dos pais, de modo que a obrigação dos avós só

nasce e se efetiva quando não exista mais nenhum genitor em condições de

satisfazer o pensionamento176.

Na mesma linha de raciocínio é a lição de Maria Helena Diniz:

[...] quem necessitar de alimentos deverá pedi-los, primeiramente, ao pai ou

à mãe. Na falta destes, por morte ou invalidez, ou não havendo condição de

os genitores suportarem o encargo, tal incumbência passará aos avós

paternos ou maternos. [...] Ter-se-á, portanto, uma responsabilidade

subsidiária, pois somente caberá ação de alimentos contra avó se o pai

estiver ausente, impossibilitado de exercer atividade laborativa ou não tiver

recursos econômicos177.

���������������������������������������� �������������������175 CAHALI, Francisco José. Dos alimentos. In: DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família e o novo Código Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 197. 176 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 961. 177 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 5: direito de família. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 667.

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Situação semelhante ocorre no caso da responsabilidade por alimentos do

ascendente genético. Em que pese não ser ela fundada no vínculo de parentesco, mas na

responsabilidade civil que decorre da concepção, só poderá o menor buscar o auxílio material

que necessita no seu genitor biológico quando não tiverem seus pais (adotivos ou

socioafetivos) condições de prestá-lo.

Assim como ocorre no tocante aos avós178, deverá o infante provar a

impossibilidade dos seus pais de arcar com o dever de alimentos que lhe é imposto em razão

do vínculo de filiação.

Explica-se. Depreende-se do enunciado 342 da IV Jornada de Direito Civil que a

obrigação alimentar avoenga se caracteriza como subsidiária e complementar, surgindo

somente diante da impossibilidade dos pais. Vejamos:

Observadas suas condições pessoais e sociais, os avós somente serão

obrigados a prestar alimentos aos netos em caráter exclusivo, sucessivo,

complementar e não solidário quando os pais destes estiverem

impossibilitados de fazê-lo, caso em que as necessidades básicas dos

alimentandos serão aferidas, prioritariamente, segundo o nível econômico-

financeiro de seus genitores179.

O mesmo se verifica na obrigação alimentar do ascendente biológico. Ele somente

poderá ser convocado a suprir as necessidades alimentares daquele que gerou nos casos em

que seus pais estiverem sem condições econômicas de fazê-lo e houver necessidade por parte

do infante.

���������������������������������������� �������������������178 Confira-se a lição de Rolf Madaleno: “Quando os avós forem convocados para substituírem os progenitores insolventes, os netos devem provar que seus pais não estão em condições de cumprir com o dever alimentar derivado do poder familiar”. MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 964. 179 Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em 17.11.2015.

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CONCLUSÃO

O panorama jurídico atual no que tange à relação paterno-materno-filial é de

igualdade de tratamento aos filhos, independentemente de terem origem biológica, haverem

sido concebidos na constância do casamento, serem adotados ou terem sido acolhidos por

socioafetividade.

Hoje a família é vista como o espaço de realização da dignidade e da felicidade de

seus membros, não havendo lugar para diferenciações jurídicas baseadas somente em

fundamentos conservadores.

Pelo contrário. Cada vez mais formações familiares passam a ser aceitas pelo

direito como merecedoras de tutela jurídica, deixando de lado o entendimento de que somente

é família a união entre homem e mulher com o intuito de procriação.

Justamente por isso, as expressões pai e mãe não se prestam a designar,

necessariamente, aquela pessoa que possui laço genético com o ser humano que concebeu. O

título de pai e/ou de mãe depende muito mais de um ato de vontade no sentido de estabelecer

um vínculo de filiação do que de um acontecimento natural, qual seja a reprodução.

Esse ato de vontade, conforme se verificou no presente trabalho, pode estar

presente não só quando, após o nascimento, os progenitores passam a cuidar do seu

descendente como filho, dispensando-lhe todos os cuidados devidos. Também é possível

perceber referida manifestação de vontade quando uma ou duas pessoas optam por adotar um

infante, ou por acolher como filho uma criança ou um adolescente que foi abandonado pelo

seu ascendente biológico.

Prevalece, assim, o entendimento no sentido de que é pai e/ou mãe aquele que

cria.

Consequência dessa realidade é o surgimento de todos os deveres inerentes ao

vínculo paterno-materno-filial tanto para os pais biológicos com para os adotivos e os

socioafetivos, uma vez que cabe aos pais (independente de como passaram a ocupar essa

posição) o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.

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Não restam dúvidas, portanto, que o dever de prestar alimentos aos filhos menores

surge também quando se está diante da adoção e da filiação originada na socioafetividade,

pois em qualquer das modalidades de filiação estará presente a carência do infante, que é

incapaz de prover a sua própria subsistência e por isso demanda a assistência dos pais.

Ocorre que os alimentos devidos às crianças e aos adolescentes têm por escopo

mais do que garantir-lhes o necessário à subsistência. É esse auxílio material que possibilita o

seu pleno e adequado desenvolvimento (físico, mental, moral, espiritual e social), de modo a

garantir a integral realização de sua dignidade.

E, em algumas situações excepcionais, a assistência financeira é indispensável

para atender a necessidades especiais de alguns infantes, que, em razão de condições pessoais

carecem de maiores cuidados, sejam eles médicos, psicológicos, pedagógicos etc.

Nesses casos, a ausência dos recursos necessários acabará por lesar o menor, que

não terá condições de atender às suas peculiares demandas.

Ocorre que, sendo esse infante filho adotivo ou socioafetivo de seus pais e tendo

seu ascendente genético condições materiais para arcar com os alimentos necessários, não se

admite o argumento de que, em razão da quebra do poder familiar, não há mais que se falar

em obrigação alimentar.

Em que pese não ter o genitor biológico estabelecido vínculo de filiação com seu

descendente, não se pode negar que existe em relação a ele a responsabilidade decorrente da

concepção.

Explica-se. Tendo sido o responsável pela transferência do material genético que

deu origem a essa nova vida, mesmo que não se torne pai ou mãe, será responsável pelos

danos que sua conduta de entregar à adoção ou de abandonar vier a causar.

Apesar de serem atos admitidos pelo direito e que, na grande maioria das vezes só

trazem benefícios para a criança que vem a ser acolhida por pessoas que querem ser seus pais,

é possível que, pela adoção consentida ou pela socioafetividade, deixe o infante de ter acesso

aos recursos materiais de seu ascendente biológico, recursos esses, que, diante de situações

excepcionais, se tornam indispensáveis para garantir seu adequado desenvolvimento.

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Assim, nos casos em que se verificar a impossibilidade de obter alimentos frente

aos seus pais (adotivos ou socioafetivos) e, com isso, estiver sendo violada a dignidade do

menor que requer cuidados especiais, será possível acessar o ascendente genético para obriga-

lo a arcar com os alimentos de maneira subsidiária e complementar.

Essa possibilidade surge porque a situação deve ser analisada também pela ótica

da responsabilidade civil. Ou seja, havendo conduta causadora de um dano e nexo de

causalidade entre elas, haverá o dever de reparação.

E, diante de casos excepcionais, se verifica que a conduta do genitor biológico

(anuir com a adoção de seu filho por outra pessoa ou abandonar a criança ou o adolescente)

quando tiver por consequência a negativa do auxílio material necessário para atender às

peculiares necessidades do infante acabará por causar-lhe um dano (violação à dignidade)

dando ensejo ao dever de reparação, que será atendido mediante a prestação dos alimentos

devidos.

Essa obrigação alimentar, entretanto, à semelhança do que ocorre com os

alimentos prestados pelos avós, será devida em caráter subsidiário e complementar à

obrigação dos pais.

Defende-se no presente trabalho, portanto, a existência de uma obrigação

alimentar do ascendente genético que surge não em razão do vínculo de filiação, mas da

responsabilidade civil decorrente da concepção.

Essa obrigação, ademais, somente aparece em casos específicos nos quais o

infante tem necessidades excepcionais que seus pais não podem atender, mas que podem ser

amparadas com os recursos do genitor biológico.

Depende, portanto, de estarem presentes todos os elementos que dão origem à

responsabilidade civil, quais sejam: conduta, dano e nexo de causalidade entre eles.

Não se trata, assim, de recorrer ao ascendente genético em todos os casos de

adoção ou socioafetividade somente com vistas a aumentar os rendimentos mensais do menor,

mas sim de responsabilizá-lo pelas necessidades que este menor possa vir a ter, em caráter

excepcional, e que não possam ser atendidas pelos seus pais, de modo que a negativa de

acesso ao genitor biológico acabaria por provocar uma lesão à sua dignidade.

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Ou seja, apesar de constituírem verdadeiros vínculos de filiação, a adoção e a

socioafetividade somente se verificam quando a pessoa responsável pela concepção não

assume seu descendente como filho, seja entregando-o, seja abandonando-o. Por elas rompe-

se o laço de filiação genético e cria-se outro.

Porém, o fim do poder familiar que ocorre naturalmente para o genitor biológico

não é motivo suficiente para negar ao infante o direito de acessá-lo quando houver real

necessidade de auxílio material para, em razão de suas peculiaridades, garantir-lhe o

adequado desenvolvimento.

Isso porque, apesar de ser um fato regulado pela biologia, a concepção também se

enquadra como conduta passível de gerar responsabilidade civil.

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