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MÍDIA E CULTURA: ANÁLISE DE UM EPISÓDIO DE PÂNICO MORAL SOBRE O
CASAMENTO GAY NA FOLHA DE SÃO PAULO
Chayana Guimarães
Universidade Luterana do Brasil
Luiz Felipe Zago
Universidade Luterana do Brasil
Este trabalho refere-se a um recorte de dissertação de Mestrado, que visa analisar as
representações da união civil entre casais não heterossexuais nas páginas digitalizadas do
jornal Folha de São Paulo, entre os anos de 2011 e 2013.
Em meio às pesquisas, em 11/09/2014, o Centro de Tradições Gaúchas (CTG)
Sentinelas do Planalto, da cidade de Santana do Livramento/RS, amanheceu incendiado, pois
ali aconteceria a celebração de uma união não heterossexual. O anúncio do evento causou
grande tensão em algumas alas tradicionalistas da sociedade santanense, ocasionando esta
violenta reação à celebração da união – algo reverberado na mídia regional e nacional.
Esclarecemos que CTG’s são instâncias bastante comuns no estado, que objetivam cultivar,
resgatar e reinventar certas tradições associando-as e construindo-as como próprias à cultura
gaúcha.
Apoiados na noção de representação de Stuart Hall (1997), de heternormatividade em
Guacira Louro (2004) e Luís Sacchi (2009), e nas análises acerca do de pânico moral em
torno da união civil entre pessoas do mesmo sexo, segundo Richard Misckolci (2005),
objetivamos indicar quais aspectos foram abordados nas páginas digitalizadas do jornal Folha
de São Paulo sobre o caso do incêndio no CTG supracitado. O estudo focaliza os direitos
sexuais como Direitos Humanos, sendo esse um argumento central neste estudo, por
considerar práticas culturais como integrantes ora da promoção, ora do confisco de tais
direitos a determinados grupos de sujeitos. Empregar-se-ão aportes da análise cultural e da
análise de discurso para proceder à discussão das reportagens veiculadas pelo jornal acerca
deste acontecimento.
O caso do incêndio
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Na madrugada de 11 de setembro de 2014, o Centro de Tradições Gaúchas (CTG)
Sentinelas do Planalto, situado na cidade de Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, foi
misteriosamente incendiado. Dali dois dias aconteceria uma cerimônia coletiva de casamento
de 28 casais. Dentre esses, um era formado por duas pessoas do mesmo sexo. O anúncio deste
evento causou bastante desconforto na ala mais conservadora da sociedade, principalmente
naqueles mais tradicionalistas frequentadores ou adeptos das tradições dos CTG’s.
Estes centros funcionam como sociedades civis, sem fins lucrativos, que buscam
cultivar e propagar as tradições e folclores da cultura gaúcha. Seus participantes são
denominados pelo senso comum de “tradicionalistas”, e se reúnem nestes centros para
preservar o que compreendem ser os valores gaúchos, “resgatando-as”, quando entendem
necessário. Esses centros representam a masculinidade de forma bastante conservadora,
sempre remontando à ética e à estética dos homens que lutaram na Revolução Farroupilha,
motivo de orgulho desta tradição. Predominantemente masculinos, os CTG’s contemplam a
força de luta, representada pelos facões frequentemente utilizados nas “pilchas” (vestimentas
tradicionais). Nesta tradição, os papéis dos homens e das mulheres estão bem definidos, e
remontam também à ideia estruturante do heterossexismo, que aloca os homens na dureza
viril e as mulheres na sensibilidade familiar e maternal.
No entanto, após o episódio do incêndio em Santana do Livramento, questionou-se
até que ponto esta celebração figura apenas como folclore e manutenção de valores históricos.
Isto é: até que ponto o exercício desta tradição choca-se com a realidade atual, em que muitos
outros costumes diferentes dos ali celebrados, reivindicam novos valores que embasam novos
direitos. O incêndio no CTG que abrigaria uma cerimônia de casamento entre duas pessoas do
mesmo sexo mostrou que há forte tensão entre os valores tradicionais e as novas
configurações de condutas que são fato na contemporaneidade. As manifestações de repúdio
ao evento originaram-se de tradicionalistas conservadores, mas muitos valores ali celebrados
são cultivados também por grande parte do púbico gaúcho. Esta tensão de valores está
representada no incêndio do CTG santanense.
Direitos Humanos e Heteronormatividade
A compreensão dos direitos sexuais na perspectiva dos Direitos Humanos é recente e
se apresenta no direito internacional há pouco mais de 20 anos. O processo teve início através
das lutas das feministas e seu desdobramento alcançou as questões homossexuais emergentes.
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Em meados dos anos de 1960, com a “revolução cultural”, foi-se fazendo visível a opressão à
dignidade e à autonomia da vontade de sujeitos não heterossexuais que não possuíam voz nem
representação junto às sociedades. Essas opressões se apresentavam de diversas maneiras,
desde manifestações de preconceito não criminalizadas pelos códigos penais, até o veto ao
acesso do exercício da conjugalidade, em todas as suas formas. Iniciou-se, então, a luta pela
garantia universal de Direitos Humanos básicos, incluindo igualdade aos sujeitos não
heterossexuais.
Essa compreensão é importante porque, como afirma Roger Raupp Rios (2011, p.
75), os princípios fundamentais que embasam os Direitos Humanos “são hábeis a proteger
indivíduos e relações consideradas minoritários em face de padrões sexuais dominantes”.
Esses princípios (quais sejam, a liberdade, a privacidade, e a igualdade e respeito à dignidade
humana) são ferramentas universais de defesa contra os efeitos excludentes da chamada
“heteronormatividade”, que alicerça toda uma racionalidade polarizada e determinista sobre a
sexualidade nos últimos tempos. Derivado do heterossexismo, “uma concepção de mundo que
hierarquiza e subordina todas as manifestações da sexualidade a partir da ideia de
‘superioridade’ e de ‘normalidade’ da heterossexualidade” (RIOS, 2011, p. 76), a
heteronormatividade tem sido utilizado para nomear o invisível regramento baseado na
conduta heterossexual como “norma”, e todos os seus diferentes como “desviantes”. A
palavra “heteronormatividade”, portanto, aponta para a ideia de que as relações
sexuais/afetivas entre indivíduos devem se dar entre sexos diferentes. Logo, entende-se que,
se o considerado “normal” é a conduta heterossexual, todos aqueles que não se comportarem
desta forma serão considerados seres “anormais”. Portanto, não heterossexuais, dentro desta
racionalidade, são considerados e tratados como indivíduos desviantes, que merecem, na
melhor das hipóteses, ser “consertados”, “trazidos para a normalidade”. Ou, na pior das
situações, excluídos e violentados.
Como sinalizou Santos (2011, p. 47), a heteronormatividade pode ser considerada
uma espécie de “episteme”, na medida em que seus princípios atravessam não apenas sujeitos,
mas instituições e culturas, afetando, desta forma, também os heterossexuais. Através desta
“episteme”, de acordo com Louro (2009, p. 88), relações sexuais entre pessoas do mesmo
sexo ganham nova conotação. Estas práticas deixam de ser entendidas como “um pecado
eventual, um acidente, erro ou falta que qualquer um poderia cometer, pelo menos
potencialmente” (idem) e passam a ser vistas como reveladoras de uma verdade oculta do
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sujeito. O não heterossexual se constitui, então, em um “sujeito de outra espécie”, deixa de ser
um sujeito qualquer que caiu em pecado. A classificação de um (heterossexual) se dá sobre a
diferença do outro (não heterossexual). A definição de “um carrega a negação do seu oposto”
(LOURO, 2009, p. 88). Nomeados o sujeito e prática desviantes (homossexual e a
homossexualidade), torna-se fundamental nomear também o que lhes é servido como
parâmetro, o que lhes complementa e lhes faz existir. Afinal, antes da classificação do que era
“anormal”, o normal existia de forma inconteste, ou seja, não era percebido, apenas seguido e
propagado “naturalmente”. A ideia do que é “normal” para a sexualidade tornou-se
naturalizada, tornado-se onipresente, “evidente por si mesmo” (LOURO, 2009, p. 88), e suas
forças e meios de ação funcionam sem ser percebidos, invisibilizados. Entende-se o
heterossexual como regra e o homossexual como subordinado.
De acordo com os-as teóricos-as contemporâneos, essa racionalidade tem existido de
forma ubíqua nas sociedades ocidentais, “marcando saberes, instituições, práticas e valores”
(LOURO, 2009, p. 89), servindo como protótipo único na construção de sujeitos. Tal
classificação acabou funcionando como “oposição fundamental, decisiva e definidora de
práticas e sujeitos” (LOURO, 2009, p. 88), na medida em que estabeleceu regras às quais a
sexualidade dos indivíduos, portanto, os sujeitos, deveriam se encaixar. Restam, portanto,
duas opções disponíveis: ou encaixa-se no aceitável, ou enquadra-se naquele que demanda
correção. Toda e qualquer outra forma de sexualidade ou identidade de gênero é ignorada e
direcionada a uma dessas classificações. Nesse sentido, conforme Louro, o “alinhamento sexo
– gênero – sexualidade dá sustentação ao processo de heteronormatividade”, ou seja, à
produção e repetição obrigatória da norma heterossexual (LOURO, 2009, p. 90). Supõe-se,
então, que “todas as pessoas são ou deveriam ser heterossexuais” (LOURO, 2009, p. 90). E
uma das formas de perceber esta ação é notando a organização das instituições que se
alicerçam formal e materialmente na ideia binária da heteronormatividade. Apenas sujeitos
heterossexuais são quem “estão plenamente qualificados para usufruir dos sistemas ou de seus
serviços e para receber os benefícios do Estado” (LOURO, 2009, p. 92). Logo, nesta
percepção, “o binômio heterossexualidade/homossexualidade é critério distintivo para o
reconhecimento da dignidade dos sujeitos e para a distribuição dos benefícios sociais,
políticos e econômicos”, o que acaba por ferir diretamente os princípios de Direitos Humanos
(RIOS, 2009, p. 63). De acordo com Rios (idem), esses grupos subordinados, devido à própria
condição, podem sofrer “restrição e até supressão completa e arbitrária de direitos e
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oportunidades, seja por razões jurídico-formais, força física bruta, efeitos simbólicos das
representações sociais”. Essas limitações produzem principalmente a negação da humanidade
desses sujeitos, considerados inaptos a receber direitos destinados a todos os seres humanos.
Dentre esses efeitos, está o exemplo da negação da união civil entre pessoas do
mesmo sexo. Ao ter o direito de união e conjugalidade civis negados, esses sujeitos se veem
impedidos de decidir pelos rumos de suas próprias vidas, como todos os demais que podem
escolher com quem dividirão sua intimidade e planos para o futuro. Como veremos a seguir, o
veto a este direito (que resulta em diversas outras negações) é questão de Direitos Humanos a
serem revistos para esses grupos.
Primeiramente, nega-se a dignidade a um indivíduo não heterossexual quando se
determina a ele com que deve exercer a conjugalidade. De acordo com Rios (RIOS, 2011, p.
90), respeitar a dignidade significa respeitar a autonomia individual, protegendo o sujeito de
“projetos de terceiros”, evitando que estes sirvam de meios (ferramentas) para aspirações
heterônomas. Já o princípio universal da privacidade, princípio invocado pelo direito
internacional dos Direitos Humanos para a construção da primeira decisão importante a favor
dos direitos sexuais como Direitos Humanos, é obviamente ferido na negação da
conjugalidade não heterossexual. Segundo Rios, negar o direito de escolha com quem se
exercerá a privacidade prejudica profundamente a construção e desenvolvimento da
subjetividade dos sujeitos, pois o autor entende que esta está “associada de modo intenso e
indissociável com a vida que se constrói em comum” (RIOS, 2011, p. 92). O princípio da
liberdade diz respeito à oportunidade de condução da própria “vida conforme os objetivos, os
estilos de vida e os valores eleitos pelo sujeito” (RIOS, 2011, p. 91), sendo violado cada vez
em que um sujeito não heterossexual vê-se proibido de decidir sobre a forma e com quais
pessoas conduzirá sua trajetória de vida. E por fim, o princípio universal da igualdade,
manifesta-se precipuamente pelo direito de não ser discriminado (idem). Preza pelo
tratamento igualitário a todos os indivíduos, sem distinção por qualquer característica
específica, ainda que por orientação sexual. Protege, é claro, indivíduos das consequências
excludentes da heteronormatividade, desde atos de violência física às normas jurídicas
segregadoras e, portanto, discriminatórias. No entanto, poucas são as constituições e
legislações que consideram a discriminação por orientação sexual discriminação protegida
pelos direitos universais, já que em seu texto menciona-se apenas o termo “sexo”. Há fortes
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discussões sobre este tema, que, resumidas, referem-se ao entendimento do termo como
orientação sexual ou, apenas, como diferenciador do homem e da mulher.
Pânico moral
O conceito de pânico moral surgiu através de investigações sobre as relações de
poder que proporcionavam a alocação de uma parte da população como inferior à outra
(Miskolci, 2005). Daí originou-se a compreensão de que as diferenças são construídas
socialmente, advindas da repartição assimétrica do poder. Articulando esta ideia com a teoria
de Becker (1963) sobre empreendedores morais, estudos diversos começaram a se aproximar
do que Stanley Cohen denominou de pânico moral (apud Misckolci, 2007). Cohen partiu de
um estudo que realizava sobre o temor social que provocavam as gangues no fim dos anos 60.
Desta perspectiva, surgiram novos estudos que visavam analisar a “resistência coletiva às
pressões por mudanças comportamentais que colocam em xeque dogmas morais e crenças
sociais arraigadas” (idem, p. 31).
Pânico moral é o um estado de temor produzido por um ou mais grupos de interesse
constituintes de uma sociedade com a intenção de evitar uma possível transformação nos
valores hegemônicos. Este estado de temor é provocado quando um acontecimento ou
conjunto de pessoas possam vir a desestabilizar certa ordem social vigente. Os grupos de
interesse, segundo Misckolci (idem), englobam quaisquer grupos que agem de forma a
produzir o pânico moral, sempre com o objetivo de conservar uma dada ordem social. Podem
ser “associações profissionais, departamentos de polícia, os grupos religiosos e organizações e
na mídia” (idem, p. 115), sendo esta última, como aponta o autor, “veículo de discussão e
‘defesa’ dos limites morais da sociedade” (Idem, p. 31). Segundo Misckolci, a imprensa,
especialmente a que ele chama de “marrom”, tende a invocar valores mais tradicionais,
“privilegiar abordagens moralizantes”, em suas manifestações sobre fenômenos sociais
considerados, diferentes (Ibidem, p. 31). Misckolci (2007) entende que é comum
determinados grupos buscarem valores sociais antigos, considerados utopicamente como
corretos, para enfrentar a novidade de um fenômeno social.
Pequenas diferenças acabam por ser consideradas “desvios” e potencialmente
nocivas aos interesses de determinado/s grupo/s de interesse (Idem). Produz-se o pânico moral
através da apresentação da diferença de forma estereotipada; quando este se consolida, um
número substancial de pessoas passa a acreditar que ali de fato existe um perigo e reage
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fortemente. Formas de enfrentamento, então, são tomadas pelos “empreendedores morais”,
em forma de prevenção e regulação legal da diferença em questão. Segundo Misckolci (2007,
p. 114), a estrutura simbólica do pânico moral acontece na “substituição”:
(...) grupos de interesse ou empreendedores morais chamam a atenção para um
assunto, porque ele representa, na verdade, outra questão. Um exemplo é a
descriminalização da homossexualidade, que obrigou àqueles que gostariam de
denunciá-la como imoral a encontrar outras formas, dentre as quais se destaca o
ressurgimento do temor da pedofilia.
Conforme o autor, “todo pânico moral esconde algo diverso e, ao invés de aceitar um
temor social como dado, o pesquisador precisa desvelar o que reside por trás do medo”
(idem). Portanto, a identificação do agente causador do pânico, segundo Misckolci, é
fundamental para sua análise. É preciso saber a quem beneficiará os resultados daquele temor
lançado. Assim, é possível entender quais valores sociais estão em disputa naquele momento,
ou seja, o que, na verdade, está sendo preservado. Utilizar-se do conceito de pânico moral
como análise sociológica permite que os “contornos morais da sociedade” sejam explicitados
(idem, p. 112). Afinal, trata-se de um processo em que ocorre a disputa pela significação
referente às formas de comportamento e estilos de vida, através de um mecanismo de controle
social.
O incêndio como ato de pânico moral
O incêndio ao CTG foi a forma encontrada por determinado grupo de interesse (ou
empreendedores morais) para chamar a atenção sobre o “perigo” do rompimento em relação à
heternormatividade provocado pela celebração de um casamento gay em uma instituição que
contempla valores conservadores. Através desse episódio verifica-se o anseio de desfazer, ou
de tornar inexistentes, relações que ameacem a norma heterossexual. O temor foi estimulado
através de um ato criminoso que demonstra a forte reação a tais tensionamentos na estrutura
social.
Na publicação da Folha de São Paulo do dia 12 de setembro de 2014, caderno
Cotidiano, o incêndio ao CTG é noticiado:
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Figura 1: reprodução de matéria que anuncia o incêndio ao CTG Sentinelas do Planalto.
A matéria é acompanhada pela imagem do CTG parcialmente destruído. Na imagem
aparecem as cinzas em que o espaço se transformou após não ceder às ameaças de incêndio
que o CTG já vinha recebendo por telefonemas. Na matéria consta a declaração do presidente
da associação tradicionalista gaúcha e conselheiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho
(MTG), Raul Rodrigues, que expressa o posicionamento heteronormativo dos princípios que
regem as instituições tradicionalistas gaúchas. Afirmando que o casamento entre pessoas não
heterossexuais está fora de suas realidades, tendo em vista o movimento pela “manutenção da
família tradicional” no qual se engajam essas instituições, Rodrigues demonstra o temor dos
tradicionalistas frente ao que ele mesmo denominou de “alteração” das normas sexuais
hegemônicas. Se o casamento entre pessoas do mesmo sexo está “fora da realidade”, deve ser
combatido – neste caso, literalmente queimado.
Em contrapartida a tais declarações, a Folha de São Paulo trouxe na mesma matéria
declarações do patrão do CTG em questão, Gibert Gisler, que invocou princípios dos Direitos
Humanos para justificar seu apoio à união entre pessoas do mesmo sexo: igualdade, liberdade
e, consequentemente, humanidade. Gisler ressalta que tais princípios estão contidos no artigo
9º da Carta de Princípios do MTG, demonstrando que o veto ao direito de união das pessoas
não heterossexuais é considerado, em sua opinião, violação dos Direitos Humanos.
Interessante sublinhar que o documento que rege os princípios tradicionalistas gaúchos bem
se relacionam com a Declaração Universal de Direitos Humanos e seus princípios. No
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entanto, tal qual como ocorre na legislação brasileira, nem sempre estes princípios são
entendidos como de direito aos não heterossexuais, na prática. Tal diferenciação acaba por
ocorrer em razão da orientação sexual, configurando discriminação, o que é proibido pela
Constituição Brasileira. Apesar de tal proibição, a interpretação do texto legal para a prática
exclui a orientação sexual da compreensão desta como “diferença”, contribuindo para o
entendimento de “desvio”. Sendo a conduta não heterossexual considerada desvio, tanto o
entendimento do documento do MTG quanto da legislação tende a tentar abolir ou consertar a
conduta não heterossexual, excluindo pessoas não hetereossexuais do escopo da
aplicabilidade dos Direitos Humanos, neste caso, frente à proteção de suas liberdades e
privacidades.
Já, no dia 15 de setembro de 2014, caderno Cotidiano, a FSP publicou a realização
do casamento que aconteceria no CTG, que acabou ocorrendo no próprio fórum da cidade:
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Figura 2: reprodução de matéria do jornal Folha de São Paulo que noticia a realização do casamento entre duas
mulheres em Santana do Livramento/RS.
Vencidos pelo incêndio, os casais celebraram os casamentos no fórum da cidade,
pois nenhum outro CTG aceitou realizar as cerimônias das quais participaria um casal de
pessoas do mesmo sexo. O tradicionalismo gaúcho parece alinhar-se com a igreja, que
também exclui pessoas não heterossexuais da possibilidade de realizar o ritual do casamento
religioso mesmo que fora do espaço da instituição. Apesar de excluídas do direito de realizar
a cerimônia de casamento no CTG, as duas mulheres casaram-se dentre os demais
tradicionalistas que, em meio a pilchas, charretes e a bandeira do estado gaúcho, defendiam o
direito das noivas não heterossexuais.
Podemos supor que há uma forte produção de pânico moral oriunda da posição de
muitos tradicionalistas em relação ao direito de duas pessoas não heterossexuais constituírem
uma família. E isso é perceptível na descrição do evento pela matéria analisada que, ao
mesmo tempo em que demonstra o arrefecimento da tensão entre tradição conservadora e a
comunidade LGBT (através da reunião das bandeiras do estado gaúcho e da bandeira arco-
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íris), também elenca o temor provocado pelo incêndio. A matéria ressalta o “medo” declarado
por um dos casais, que temia ato de manifestação agressivo no dia da cerimônia, e ainda
destaca a tensão que permeava o evento através da presença de 100 militares uniformizados
que haviam sido escalados para resguardar a segurança do local.
A imagem da publicação celebra a união civil entre as duas mulheres, que
comemoram sua união sob olhar de uma tradicionalista pilchada, expressando a aproximação
da tradição com o pluralismo e a diversidade. Ainda, a imagem suscita uma questão: enquanto
que uma das noivas está, literalmente, vestida de noiva (vestido branco, véu e grinalda), a
outra usa terno e gravata, trajes relacionados historicamente às masculinidades. Ao mesmo
tempo em que provocam a estrutura heterornormativa, casando-se, não estariam as duas
mulheres de certo reiterando o discurso da heterossexualidade compulsória? Tal conduta pode
ser considerada uma normalização frente à regra heterossexual hegemônica, o que suspende
por ora o pânico moral produzido frente a uma possível falência da “família tradicional”
heteronormativa.
Considerações finais
O episódio de Santana do Livramento pode ser visto como uma séria metáfora política
da situação social em que se encontram os não heterossexuais nos dias de hoje,
especificamente na questão dos Direitos Humanos. É preciso trazê-los para estas discussões,
pois a garantia dos Direitos a todos os seres humanos não tem exceções. Reagir radicalmente
contra a celebração da união civil entre pessoas não heterossexuais, como foi o caso no CTG
Sentinelas do Planalto, reforça o aspecto excludente da operação heterornormativa e seus
efeitos políticos.
O pânico moral é produzido em resposta ao risco de falência de uma dada ordem
social, neste caso a norma heterossexual. Essa norma heterossexual estrutura, legitima e
constitui uma matriz de inteligibilidade para os sujeitos a tal ponto que a ela se vincula o
acesso e o exercício de determinados direitos básicos dos indivíduos, previstos em lei. A
prática do incêndio no CTG Sentinelas do Planalto pode ser interpretada como um elemento
do pânico moral produzido pelo desafio à norma heterossexual representado pela cerimônia
de casamento entre duas mulheres. Pôs-se fogo em um Centro de Tradições Gaúchas,
eminente espaço de conservação e exercício da norma heterossexual das “famílias
tradicionais”, que, não obstante, sediaria o rito simbólico de união de duas pessoas do mesmo
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sexo. O ato de incêndio é ambíguo: ao mesmo tempo em que pode ser entendido como
elemento do pânico moral em face ao desafio da norma heterossexual, também pode ser
entendido como “atear fogo à tradição”, reduzida às cinzas em face das novas configurações
políticas contemporâneas relacionadas aos direitos sexuais. Da mesma forma, a própria
cerimônia do casamento mostra-se ambígua: duas mulheres celebrando sua união pode, em
certa medida, representar um deslocamento da norma heterossexual; entretanto, no rito da
cerimônia, uma veste terno e gravata enquanto a outra usa véu e grinalda, re-produzindo a
norma que supostamente desafiam. Tais ambiguidades apontam para uma inferência talvez
mais perturbadora: a de que a matriz de inteligibilidade operada pela heteronormatividade seja
mais insidiosa e onipresente do que creem alguns e algumas (Butler, 2012).
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