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1 MÍDIA E CULTURA: ANÁLISE DE UM EPISÓDIO DE PÂNICO MORAL SOBRE O CASAMENTO GAY NA FOLHA DE SÃO PAULO Chayana Guimarães Universidade Luterana do Brasil Luiz Felipe Zago Universidade Luterana do Brasil Este trabalho refere-se a um recorte de dissertação de Mestrado, que visa analisar as representações da união civil entre casais não heterossexuais nas páginas digitalizadas do jornal Folha de São Paulo, entre os anos de 2011 e 2013. Em meio às pesquisas, em 11/09/2014, o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Sentinelas do Planalto, da cidade de Santana do Livramento/RS, amanheceu incendiado, pois ali aconteceria a celebração de uma união não heterossexual. O anúncio do evento causou grande tensão em algumas alas tradicionalistas da sociedade santanense, ocasionando esta violenta reação à celebração da união algo reverberado na mídia regional e nacional. Esclarecemos que CTG’s são instâncias bastante comuns no estado, que objetivam cultivar, resgatar e reinventar certas tradições associando-as e construindo-as como próprias à cultura gaúcha. Apoiados na noção de representação de Stuart Hall (1997), de heternormatividade em Guacira Louro (2004) e Luís Sacchi (2009), e nas análises acerca do de pânico moral em torno da união civil entre pessoas do mesmo sexo, segundo Richard Misckolci (2005), objetivamos indicar quais aspectos foram abordados nas páginas digitalizadas do jornal Folha de São Paulo sobre o caso do incêndio no CTG supracitado. O estudo focaliza os direitos sexuais como Direitos Humanos, sendo esse um argumento central neste estudo, por considerar práticas culturais como integrantes ora da promoção, ora do confisco de tais direitos a determinados grupos de sujeitos. Empregar-se-ão aportes da análise cultural e da análise de discurso para proceder à discussão das reportagens veiculadas pelo jornal acerca deste acontecimento. O caso do incêndio

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MÍDIA E CULTURA: ANÁLISE DE UM EPISÓDIO DE PÂNICO MORAL SOBRE O

CASAMENTO GAY NA FOLHA DE SÃO PAULO

Chayana Guimarães

Universidade Luterana do Brasil

Luiz Felipe Zago

Universidade Luterana do Brasil

Este trabalho refere-se a um recorte de dissertação de Mestrado, que visa analisar as

representações da união civil entre casais não heterossexuais nas páginas digitalizadas do

jornal Folha de São Paulo, entre os anos de 2011 e 2013.

Em meio às pesquisas, em 11/09/2014, o Centro de Tradições Gaúchas (CTG)

Sentinelas do Planalto, da cidade de Santana do Livramento/RS, amanheceu incendiado, pois

ali aconteceria a celebração de uma união não heterossexual. O anúncio do evento causou

grande tensão em algumas alas tradicionalistas da sociedade santanense, ocasionando esta

violenta reação à celebração da união – algo reverberado na mídia regional e nacional.

Esclarecemos que CTG’s são instâncias bastante comuns no estado, que objetivam cultivar,

resgatar e reinventar certas tradições associando-as e construindo-as como próprias à cultura

gaúcha.

Apoiados na noção de representação de Stuart Hall (1997), de heternormatividade em

Guacira Louro (2004) e Luís Sacchi (2009), e nas análises acerca do de pânico moral em

torno da união civil entre pessoas do mesmo sexo, segundo Richard Misckolci (2005),

objetivamos indicar quais aspectos foram abordados nas páginas digitalizadas do jornal Folha

de São Paulo sobre o caso do incêndio no CTG supracitado. O estudo focaliza os direitos

sexuais como Direitos Humanos, sendo esse um argumento central neste estudo, por

considerar práticas culturais como integrantes ora da promoção, ora do confisco de tais

direitos a determinados grupos de sujeitos. Empregar-se-ão aportes da análise cultural e da

análise de discurso para proceder à discussão das reportagens veiculadas pelo jornal acerca

deste acontecimento.

O caso do incêndio

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Na madrugada de 11 de setembro de 2014, o Centro de Tradições Gaúchas (CTG)

Sentinelas do Planalto, situado na cidade de Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, foi

misteriosamente incendiado. Dali dois dias aconteceria uma cerimônia coletiva de casamento

de 28 casais. Dentre esses, um era formado por duas pessoas do mesmo sexo. O anúncio deste

evento causou bastante desconforto na ala mais conservadora da sociedade, principalmente

naqueles mais tradicionalistas frequentadores ou adeptos das tradições dos CTG’s.

Estes centros funcionam como sociedades civis, sem fins lucrativos, que buscam

cultivar e propagar as tradições e folclores da cultura gaúcha. Seus participantes são

denominados pelo senso comum de “tradicionalistas”, e se reúnem nestes centros para

preservar o que compreendem ser os valores gaúchos, “resgatando-as”, quando entendem

necessário. Esses centros representam a masculinidade de forma bastante conservadora,

sempre remontando à ética e à estética dos homens que lutaram na Revolução Farroupilha,

motivo de orgulho desta tradição. Predominantemente masculinos, os CTG’s contemplam a

força de luta, representada pelos facões frequentemente utilizados nas “pilchas” (vestimentas

tradicionais). Nesta tradição, os papéis dos homens e das mulheres estão bem definidos, e

remontam também à ideia estruturante do heterossexismo, que aloca os homens na dureza

viril e as mulheres na sensibilidade familiar e maternal.

No entanto, após o episódio do incêndio em Santana do Livramento, questionou-se

até que ponto esta celebração figura apenas como folclore e manutenção de valores históricos.

Isto é: até que ponto o exercício desta tradição choca-se com a realidade atual, em que muitos

outros costumes diferentes dos ali celebrados, reivindicam novos valores que embasam novos

direitos. O incêndio no CTG que abrigaria uma cerimônia de casamento entre duas pessoas do

mesmo sexo mostrou que há forte tensão entre os valores tradicionais e as novas

configurações de condutas que são fato na contemporaneidade. As manifestações de repúdio

ao evento originaram-se de tradicionalistas conservadores, mas muitos valores ali celebrados

são cultivados também por grande parte do púbico gaúcho. Esta tensão de valores está

representada no incêndio do CTG santanense.

Direitos Humanos e Heteronormatividade

A compreensão dos direitos sexuais na perspectiva dos Direitos Humanos é recente e

se apresenta no direito internacional há pouco mais de 20 anos. O processo teve início através

das lutas das feministas e seu desdobramento alcançou as questões homossexuais emergentes.

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Em meados dos anos de 1960, com a “revolução cultural”, foi-se fazendo visível a opressão à

dignidade e à autonomia da vontade de sujeitos não heterossexuais que não possuíam voz nem

representação junto às sociedades. Essas opressões se apresentavam de diversas maneiras,

desde manifestações de preconceito não criminalizadas pelos códigos penais, até o veto ao

acesso do exercício da conjugalidade, em todas as suas formas. Iniciou-se, então, a luta pela

garantia universal de Direitos Humanos básicos, incluindo igualdade aos sujeitos não

heterossexuais.

Essa compreensão é importante porque, como afirma Roger Raupp Rios (2011, p.

75), os princípios fundamentais que embasam os Direitos Humanos “são hábeis a proteger

indivíduos e relações consideradas minoritários em face de padrões sexuais dominantes”.

Esses princípios (quais sejam, a liberdade, a privacidade, e a igualdade e respeito à dignidade

humana) são ferramentas universais de defesa contra os efeitos excludentes da chamada

“heteronormatividade”, que alicerça toda uma racionalidade polarizada e determinista sobre a

sexualidade nos últimos tempos. Derivado do heterossexismo, “uma concepção de mundo que

hierarquiza e subordina todas as manifestações da sexualidade a partir da ideia de

‘superioridade’ e de ‘normalidade’ da heterossexualidade” (RIOS, 2011, p. 76), a

heteronormatividade tem sido utilizado para nomear o invisível regramento baseado na

conduta heterossexual como “norma”, e todos os seus diferentes como “desviantes”. A

palavra “heteronormatividade”, portanto, aponta para a ideia de que as relações

sexuais/afetivas entre indivíduos devem se dar entre sexos diferentes. Logo, entende-se que,

se o considerado “normal” é a conduta heterossexual, todos aqueles que não se comportarem

desta forma serão considerados seres “anormais”. Portanto, não heterossexuais, dentro desta

racionalidade, são considerados e tratados como indivíduos desviantes, que merecem, na

melhor das hipóteses, ser “consertados”, “trazidos para a normalidade”. Ou, na pior das

situações, excluídos e violentados.

Como sinalizou Santos (2011, p. 47), a heteronormatividade pode ser considerada

uma espécie de “episteme”, na medida em que seus princípios atravessam não apenas sujeitos,

mas instituições e culturas, afetando, desta forma, também os heterossexuais. Através desta

“episteme”, de acordo com Louro (2009, p. 88), relações sexuais entre pessoas do mesmo

sexo ganham nova conotação. Estas práticas deixam de ser entendidas como “um pecado

eventual, um acidente, erro ou falta que qualquer um poderia cometer, pelo menos

potencialmente” (idem) e passam a ser vistas como reveladoras de uma verdade oculta do

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sujeito. O não heterossexual se constitui, então, em um “sujeito de outra espécie”, deixa de ser

um sujeito qualquer que caiu em pecado. A classificação de um (heterossexual) se dá sobre a

diferença do outro (não heterossexual). A definição de “um carrega a negação do seu oposto”

(LOURO, 2009, p. 88). Nomeados o sujeito e prática desviantes (homossexual e a

homossexualidade), torna-se fundamental nomear também o que lhes é servido como

parâmetro, o que lhes complementa e lhes faz existir. Afinal, antes da classificação do que era

“anormal”, o normal existia de forma inconteste, ou seja, não era percebido, apenas seguido e

propagado “naturalmente”. A ideia do que é “normal” para a sexualidade tornou-se

naturalizada, tornado-se onipresente, “evidente por si mesmo” (LOURO, 2009, p. 88), e suas

forças e meios de ação funcionam sem ser percebidos, invisibilizados. Entende-se o

heterossexual como regra e o homossexual como subordinado.

De acordo com os-as teóricos-as contemporâneos, essa racionalidade tem existido de

forma ubíqua nas sociedades ocidentais, “marcando saberes, instituições, práticas e valores”

(LOURO, 2009, p. 89), servindo como protótipo único na construção de sujeitos. Tal

classificação acabou funcionando como “oposição fundamental, decisiva e definidora de

práticas e sujeitos” (LOURO, 2009, p. 88), na medida em que estabeleceu regras às quais a

sexualidade dos indivíduos, portanto, os sujeitos, deveriam se encaixar. Restam, portanto,

duas opções disponíveis: ou encaixa-se no aceitável, ou enquadra-se naquele que demanda

correção. Toda e qualquer outra forma de sexualidade ou identidade de gênero é ignorada e

direcionada a uma dessas classificações. Nesse sentido, conforme Louro, o “alinhamento sexo

– gênero – sexualidade dá sustentação ao processo de heteronormatividade”, ou seja, à

produção e repetição obrigatória da norma heterossexual (LOURO, 2009, p. 90). Supõe-se,

então, que “todas as pessoas são ou deveriam ser heterossexuais” (LOURO, 2009, p. 90). E

uma das formas de perceber esta ação é notando a organização das instituições que se

alicerçam formal e materialmente na ideia binária da heteronormatividade. Apenas sujeitos

heterossexuais são quem “estão plenamente qualificados para usufruir dos sistemas ou de seus

serviços e para receber os benefícios do Estado” (LOURO, 2009, p. 92). Logo, nesta

percepção, “o binômio heterossexualidade/homossexualidade é critério distintivo para o

reconhecimento da dignidade dos sujeitos e para a distribuição dos benefícios sociais,

políticos e econômicos”, o que acaba por ferir diretamente os princípios de Direitos Humanos

(RIOS, 2009, p. 63). De acordo com Rios (idem), esses grupos subordinados, devido à própria

condição, podem sofrer “restrição e até supressão completa e arbitrária de direitos e

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oportunidades, seja por razões jurídico-formais, força física bruta, efeitos simbólicos das

representações sociais”. Essas limitações produzem principalmente a negação da humanidade

desses sujeitos, considerados inaptos a receber direitos destinados a todos os seres humanos.

Dentre esses efeitos, está o exemplo da negação da união civil entre pessoas do

mesmo sexo. Ao ter o direito de união e conjugalidade civis negados, esses sujeitos se veem

impedidos de decidir pelos rumos de suas próprias vidas, como todos os demais que podem

escolher com quem dividirão sua intimidade e planos para o futuro. Como veremos a seguir, o

veto a este direito (que resulta em diversas outras negações) é questão de Direitos Humanos a

serem revistos para esses grupos.

Primeiramente, nega-se a dignidade a um indivíduo não heterossexual quando se

determina a ele com que deve exercer a conjugalidade. De acordo com Rios (RIOS, 2011, p.

90), respeitar a dignidade significa respeitar a autonomia individual, protegendo o sujeito de

“projetos de terceiros”, evitando que estes sirvam de meios (ferramentas) para aspirações

heterônomas. Já o princípio universal da privacidade, princípio invocado pelo direito

internacional dos Direitos Humanos para a construção da primeira decisão importante a favor

dos direitos sexuais como Direitos Humanos, é obviamente ferido na negação da

conjugalidade não heterossexual. Segundo Rios, negar o direito de escolha com quem se

exercerá a privacidade prejudica profundamente a construção e desenvolvimento da

subjetividade dos sujeitos, pois o autor entende que esta está “associada de modo intenso e

indissociável com a vida que se constrói em comum” (RIOS, 2011, p. 92). O princípio da

liberdade diz respeito à oportunidade de condução da própria “vida conforme os objetivos, os

estilos de vida e os valores eleitos pelo sujeito” (RIOS, 2011, p. 91), sendo violado cada vez

em que um sujeito não heterossexual vê-se proibido de decidir sobre a forma e com quais

pessoas conduzirá sua trajetória de vida. E por fim, o princípio universal da igualdade,

manifesta-se precipuamente pelo direito de não ser discriminado (idem). Preza pelo

tratamento igualitário a todos os indivíduos, sem distinção por qualquer característica

específica, ainda que por orientação sexual. Protege, é claro, indivíduos das consequências

excludentes da heteronormatividade, desde atos de violência física às normas jurídicas

segregadoras e, portanto, discriminatórias. No entanto, poucas são as constituições e

legislações que consideram a discriminação por orientação sexual discriminação protegida

pelos direitos universais, já que em seu texto menciona-se apenas o termo “sexo”. Há fortes

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discussões sobre este tema, que, resumidas, referem-se ao entendimento do termo como

orientação sexual ou, apenas, como diferenciador do homem e da mulher.

Pânico moral

O conceito de pânico moral surgiu através de investigações sobre as relações de

poder que proporcionavam a alocação de uma parte da população como inferior à outra

(Miskolci, 2005). Daí originou-se a compreensão de que as diferenças são construídas

socialmente, advindas da repartição assimétrica do poder. Articulando esta ideia com a teoria

de Becker (1963) sobre empreendedores morais, estudos diversos começaram a se aproximar

do que Stanley Cohen denominou de pânico moral (apud Misckolci, 2007). Cohen partiu de

um estudo que realizava sobre o temor social que provocavam as gangues no fim dos anos 60.

Desta perspectiva, surgiram novos estudos que visavam analisar a “resistência coletiva às

pressões por mudanças comportamentais que colocam em xeque dogmas morais e crenças

sociais arraigadas” (idem, p. 31).

Pânico moral é o um estado de temor produzido por um ou mais grupos de interesse

constituintes de uma sociedade com a intenção de evitar uma possível transformação nos

valores hegemônicos. Este estado de temor é provocado quando um acontecimento ou

conjunto de pessoas possam vir a desestabilizar certa ordem social vigente. Os grupos de

interesse, segundo Misckolci (idem), englobam quaisquer grupos que agem de forma a

produzir o pânico moral, sempre com o objetivo de conservar uma dada ordem social. Podem

ser “associações profissionais, departamentos de polícia, os grupos religiosos e organizações e

na mídia” (idem, p. 115), sendo esta última, como aponta o autor, “veículo de discussão e

‘defesa’ dos limites morais da sociedade” (Idem, p. 31). Segundo Misckolci, a imprensa,

especialmente a que ele chama de “marrom”, tende a invocar valores mais tradicionais,

“privilegiar abordagens moralizantes”, em suas manifestações sobre fenômenos sociais

considerados, diferentes (Ibidem, p. 31). Misckolci (2007) entende que é comum

determinados grupos buscarem valores sociais antigos, considerados utopicamente como

corretos, para enfrentar a novidade de um fenômeno social.

Pequenas diferenças acabam por ser consideradas “desvios” e potencialmente

nocivas aos interesses de determinado/s grupo/s de interesse (Idem). Produz-se o pânico moral

através da apresentação da diferença de forma estereotipada; quando este se consolida, um

número substancial de pessoas passa a acreditar que ali de fato existe um perigo e reage

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fortemente. Formas de enfrentamento, então, são tomadas pelos “empreendedores morais”,

em forma de prevenção e regulação legal da diferença em questão. Segundo Misckolci (2007,

p. 114), a estrutura simbólica do pânico moral acontece na “substituição”:

(...) grupos de interesse ou empreendedores morais chamam a atenção para um

assunto, porque ele representa, na verdade, outra questão. Um exemplo é a

descriminalização da homossexualidade, que obrigou àqueles que gostariam de

denunciá-la como imoral a encontrar outras formas, dentre as quais se destaca o

ressurgimento do temor da pedofilia.

Conforme o autor, “todo pânico moral esconde algo diverso e, ao invés de aceitar um

temor social como dado, o pesquisador precisa desvelar o que reside por trás do medo”

(idem). Portanto, a identificação do agente causador do pânico, segundo Misckolci, é

fundamental para sua análise. É preciso saber a quem beneficiará os resultados daquele temor

lançado. Assim, é possível entender quais valores sociais estão em disputa naquele momento,

ou seja, o que, na verdade, está sendo preservado. Utilizar-se do conceito de pânico moral

como análise sociológica permite que os “contornos morais da sociedade” sejam explicitados

(idem, p. 112). Afinal, trata-se de um processo em que ocorre a disputa pela significação

referente às formas de comportamento e estilos de vida, através de um mecanismo de controle

social.

O incêndio como ato de pânico moral

O incêndio ao CTG foi a forma encontrada por determinado grupo de interesse (ou

empreendedores morais) para chamar a atenção sobre o “perigo” do rompimento em relação à

heternormatividade provocado pela celebração de um casamento gay em uma instituição que

contempla valores conservadores. Através desse episódio verifica-se o anseio de desfazer, ou

de tornar inexistentes, relações que ameacem a norma heterossexual. O temor foi estimulado

através de um ato criminoso que demonstra a forte reação a tais tensionamentos na estrutura

social.

Na publicação da Folha de São Paulo do dia 12 de setembro de 2014, caderno

Cotidiano, o incêndio ao CTG é noticiado:

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Figura 1: reprodução de matéria que anuncia o incêndio ao CTG Sentinelas do Planalto.

A matéria é acompanhada pela imagem do CTG parcialmente destruído. Na imagem

aparecem as cinzas em que o espaço se transformou após não ceder às ameaças de incêndio

que o CTG já vinha recebendo por telefonemas. Na matéria consta a declaração do presidente

da associação tradicionalista gaúcha e conselheiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho

(MTG), Raul Rodrigues, que expressa o posicionamento heteronormativo dos princípios que

regem as instituições tradicionalistas gaúchas. Afirmando que o casamento entre pessoas não

heterossexuais está fora de suas realidades, tendo em vista o movimento pela “manutenção da

família tradicional” no qual se engajam essas instituições, Rodrigues demonstra o temor dos

tradicionalistas frente ao que ele mesmo denominou de “alteração” das normas sexuais

hegemônicas. Se o casamento entre pessoas do mesmo sexo está “fora da realidade”, deve ser

combatido – neste caso, literalmente queimado.

Em contrapartida a tais declarações, a Folha de São Paulo trouxe na mesma matéria

declarações do patrão do CTG em questão, Gibert Gisler, que invocou princípios dos Direitos

Humanos para justificar seu apoio à união entre pessoas do mesmo sexo: igualdade, liberdade

e, consequentemente, humanidade. Gisler ressalta que tais princípios estão contidos no artigo

9º da Carta de Princípios do MTG, demonstrando que o veto ao direito de união das pessoas

não heterossexuais é considerado, em sua opinião, violação dos Direitos Humanos.

Interessante sublinhar que o documento que rege os princípios tradicionalistas gaúchos bem

se relacionam com a Declaração Universal de Direitos Humanos e seus princípios. No

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entanto, tal qual como ocorre na legislação brasileira, nem sempre estes princípios são

entendidos como de direito aos não heterossexuais, na prática. Tal diferenciação acaba por

ocorrer em razão da orientação sexual, configurando discriminação, o que é proibido pela

Constituição Brasileira. Apesar de tal proibição, a interpretação do texto legal para a prática

exclui a orientação sexual da compreensão desta como “diferença”, contribuindo para o

entendimento de “desvio”. Sendo a conduta não heterossexual considerada desvio, tanto o

entendimento do documento do MTG quanto da legislação tende a tentar abolir ou consertar a

conduta não heterossexual, excluindo pessoas não hetereossexuais do escopo da

aplicabilidade dos Direitos Humanos, neste caso, frente à proteção de suas liberdades e

privacidades.

Já, no dia 15 de setembro de 2014, caderno Cotidiano, a FSP publicou a realização

do casamento que aconteceria no CTG, que acabou ocorrendo no próprio fórum da cidade:

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Figura 2: reprodução de matéria do jornal Folha de São Paulo que noticia a realização do casamento entre duas

mulheres em Santana do Livramento/RS.

Vencidos pelo incêndio, os casais celebraram os casamentos no fórum da cidade,

pois nenhum outro CTG aceitou realizar as cerimônias das quais participaria um casal de

pessoas do mesmo sexo. O tradicionalismo gaúcho parece alinhar-se com a igreja, que

também exclui pessoas não heterossexuais da possibilidade de realizar o ritual do casamento

religioso mesmo que fora do espaço da instituição. Apesar de excluídas do direito de realizar

a cerimônia de casamento no CTG, as duas mulheres casaram-se dentre os demais

tradicionalistas que, em meio a pilchas, charretes e a bandeira do estado gaúcho, defendiam o

direito das noivas não heterossexuais.

Podemos supor que há uma forte produção de pânico moral oriunda da posição de

muitos tradicionalistas em relação ao direito de duas pessoas não heterossexuais constituírem

uma família. E isso é perceptível na descrição do evento pela matéria analisada que, ao

mesmo tempo em que demonstra o arrefecimento da tensão entre tradição conservadora e a

comunidade LGBT (através da reunião das bandeiras do estado gaúcho e da bandeira arco-

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íris), também elenca o temor provocado pelo incêndio. A matéria ressalta o “medo” declarado

por um dos casais, que temia ato de manifestação agressivo no dia da cerimônia, e ainda

destaca a tensão que permeava o evento através da presença de 100 militares uniformizados

que haviam sido escalados para resguardar a segurança do local.

A imagem da publicação celebra a união civil entre as duas mulheres, que

comemoram sua união sob olhar de uma tradicionalista pilchada, expressando a aproximação

da tradição com o pluralismo e a diversidade. Ainda, a imagem suscita uma questão: enquanto

que uma das noivas está, literalmente, vestida de noiva (vestido branco, véu e grinalda), a

outra usa terno e gravata, trajes relacionados historicamente às masculinidades. Ao mesmo

tempo em que provocam a estrutura heterornormativa, casando-se, não estariam as duas

mulheres de certo reiterando o discurso da heterossexualidade compulsória? Tal conduta pode

ser considerada uma normalização frente à regra heterossexual hegemônica, o que suspende

por ora o pânico moral produzido frente a uma possível falência da “família tradicional”

heteronormativa.

Considerações finais

O episódio de Santana do Livramento pode ser visto como uma séria metáfora política

da situação social em que se encontram os não heterossexuais nos dias de hoje,

especificamente na questão dos Direitos Humanos. É preciso trazê-los para estas discussões,

pois a garantia dos Direitos a todos os seres humanos não tem exceções. Reagir radicalmente

contra a celebração da união civil entre pessoas não heterossexuais, como foi o caso no CTG

Sentinelas do Planalto, reforça o aspecto excludente da operação heterornormativa e seus

efeitos políticos.

O pânico moral é produzido em resposta ao risco de falência de uma dada ordem

social, neste caso a norma heterossexual. Essa norma heterossexual estrutura, legitima e

constitui uma matriz de inteligibilidade para os sujeitos a tal ponto que a ela se vincula o

acesso e o exercício de determinados direitos básicos dos indivíduos, previstos em lei. A

prática do incêndio no CTG Sentinelas do Planalto pode ser interpretada como um elemento

do pânico moral produzido pelo desafio à norma heterossexual representado pela cerimônia

de casamento entre duas mulheres. Pôs-se fogo em um Centro de Tradições Gaúchas,

eminente espaço de conservação e exercício da norma heterossexual das “famílias

tradicionais”, que, não obstante, sediaria o rito simbólico de união de duas pessoas do mesmo

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sexo. O ato de incêndio é ambíguo: ao mesmo tempo em que pode ser entendido como

elemento do pânico moral em face ao desafio da norma heterossexual, também pode ser

entendido como “atear fogo à tradição”, reduzida às cinzas em face das novas configurações

políticas contemporâneas relacionadas aos direitos sexuais. Da mesma forma, a própria

cerimônia do casamento mostra-se ambígua: duas mulheres celebrando sua união pode, em

certa medida, representar um deslocamento da norma heterossexual; entretanto, no rito da

cerimônia, uma veste terno e gravata enquanto a outra usa véu e grinalda, re-produzindo a

norma que supostamente desafiam. Tais ambiguidades apontam para uma inferência talvez

mais perturbadora: a de que a matriz de inteligibilidade operada pela heteronormatividade seja

mais insidiosa e onipresente do que creem alguns e algumas (Butler, 2012).

REFERÊNCIAS

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Cláudia Penalvo. (Org.). Tá difícil falar sobre sexualidade na escola? 2a. ed. Porto Alegre,

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______. Pedagogias do corpo: representação, identidade e instâncias de produção. In: SILVA,

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