Ministro Justica Refúgio Político Battisti 13.1.09

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    Referncia: Processo n. 08000.011373/2008-83Procedncia: ConareAssunto: Recurso. Negativa. Condio de Refugiado. Carncia de Pressupostos.Interessado: CESARE BATTISTI

    I. Relatrio

    1. Cuida-se de recurso interposto em favor do nacional italiano

    CESARE BATTISTI, com fulcro no art. 29, da Lei n. 9.474/97, em face da Decisoproferida pelo Comit Nacional para os Refugiados CONARE, que lhe negou oreconhecimento da condio de refugiado ante a carncia das hipteses previstas noart. 1 do mesmo permissivo legal.

    2. Alega o Recorrente, em apertada sntese, que integrouOrganizao poltico-partidria na Itlia durante os chamados anos de chumbo, eque perseguido pelas autoridades daquele pas em razo das opinies polticasdisseminadas poca, as quais fundamentaram, inclusive, pedido de extradio emseu desfavor para que seja submetido ao cumprimento de sentenas proferidas em

    processos que julga eivados de ilegalidade e que resultaram em condenao a prisoperptua por crimes que assegura no ter cometido.

    3. Junta documentos.

    4. o relatrio, passo deciso.

    II. Deciso

    5. O pedido de reconsiderao tempestivo.

    6. Compulsando os documentos constantes dos autos, restouverificado constar processo de extradio passiva executria em trmite perante oSupremo Tribunal Federal, por meio do qual o Governo da Repblica da Itliacolima a entrega do Recorrente para cumprimento de pena perptua decorrente deduas sentenas criminais naquele pas, o qual se encontra suspenso na forma da Leiat final deciso deste processo.

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    7. A lei n. 9.474/97, que define mecanismos para aimplementao do Estatuto dos Refugiados de 1951, dispe em seu art. 1 acerca dascondies em que poder ser reconhecida a condio de refugiado a um cidadoestrangeiro, verbis:

    Art. 1 Ser reconhecido como refugiado todo indivduo que:

    I - devido a fundados temores de perseguio por motivos deraa, religio, nacionalidade, grupo social ou opinies polticasencontre-se fora de seu pas de nacionalidade e no possa ou noqueira acolher-se proteo de tal pas;

    II - no tendo nacionalidade e estando fora do pas onde antes tevesua residncia habitual, no possa ou no queira regressar a ele, emfuno das circunstncias descritas no inciso anterior;

    III - devido a grave e generalizada violao de direitos humanos, obrigado a deixar seu pas de nacionalidade para buscar refgio emoutro pas. (grifei)

    8. Por sua vez, o Estado requerente no ofereceu oposio alegada conotao poltica aventada quanto aos fatos pelos quais seu nacional reclamado. Ao contrrio, consignou expressamente em sentena que, nos diversos

    crimes listados, agiu o Recorrente com a finalidade de subverter a ordem doEstado, afirmando ainda que os panfletos e as aes criminosas de sua lavraobjetivavam subverter as instituies e a fazer com que o proletariado tomasse opoder (grifei).

    9. V-se, portanto, que no caso ora em anlise impe-se umainquietante e crucial questo central: o Recorrente possui fundado temor deperseguio por suas opinies polticas? Teria o Recorrente, ademais, cometidocrimes polticos, ou sofrido perseguio poltica que resultasse na constatao deilcitos criminais por ele no perpetrados?

    10. H que se definir os elementos subjetivo e objetivo do temor aque alude o art. 1, I, da Lei n. 9.474/97, o primeiro relativo ao foro ntimo doRecorrente e o segundo relacionado com as razes concretas que justifiquem aqueletemor.

    11. Para que sejam verificados esses elementos, necessrio, emprimeiro lugar, tomar como referncia o contexto de turbulncia poltica poca dossupostos delitos em que o Recorrente teria incorrido.

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    12. A represso legtima, pelo Estado italiano, militncia deesquerda, que pretendeu, pelas armas, derrubar o regime durante os chamados anosde chumbo das dcadas de 1970 e 1980, traduz-se por fatos pblicos e notrios,sobre os quais no existe qualquer contencioso. de acentuada convulso social omomento histrico no qual o recorrente foi condenado pela Justia italiana, comoautor e co-autor de homicdios ocorridos entre junho de 1978 e abril de 1979.

    13. Durante esse perodo, a sociedade italiana e o Estado de Direitona Itlia foram assediados por um conjunto de movimentos polticos, aes armadas

    e mobilizaes sociais que pretendiam, alguns deles, a instalao de um novo regimepoltico-social. Naesteira do desmantelamento das polticas da era social-democrataento em declnio1, formaram-se organizaes revolucionrias de ao direta queoperavam em zonas cinzentas, na estreita faixa entre a ao poltica insurrecionalde carter armado e a ao marginal do banditismo social.

    14. Como possvel e necessrio nos Estados Democrticos deDireito, o Estado italiano reagiu. E o fez no s aplicando normas jurdicas em vigor poca, mas tambm criando excees, por meio de leis de defesa do Estado, quereduziram prerrogativas de defesa dos acusados de subverso e/ou aes violentas,inclusive com a instituio da delao premiada, da qual se serviu o principaldenunciante do Recorrente.

    15. Nos momentos de extrema tenso social e poltica comum eprevisvel que passem a funcionar, mesmo no Estado de Direito, aparatos ilegaise/ou paralelos do Estado, comandados por pessoas que se erigem condio de justiceiros de fato, como se representassem o bem pblico, o que por vezesconfigura uma forte crise de legalidade: a lei perde (...) o primado poltico nosistema2. Nesses casos, a judicializao da poltica, paradoxalmente, atinge

    1 OUTHWAITE, William; et.al. Dicionrio Pensamento Social do Sculo XX : Rio de Janeiro : Jorge Zahar,1996. p. 59 relata: mais bem-sucedido de desenvolvimento econmico capitalista, nos anos 50 e 60, esteveassociado a uma grande expanso das atividades econmicas do estado, envolvendo em muitos pases aampliao da propriedade pblica e do planejamento econmico, visando mitigar as conseqncias danosas tanto econmicas quanto sociais de uma economia de livre empresa e livre mercado inadequadamenteregulamentada.2 Mas a crise da lei depende tambm de outras razes, mais estreitamente jurdicas. A primeira delas, onascimento das constituies rgidas, das constituies como leis no modificveis. Uma lei superior,portanto, que as leis comuns devem juridicamente respeitar. Decorre da um controle de constitucionalidadesobre o contedo da demais leis, o que explicita ainda mais a garantia da superioridade da constituio. A leiperde, assim, o primado poltico no sistema, a despeito de que se mantm ainda como o ato normativopoliticamente central para o desenvolvimento do ordenamento. E as constituies confiam s leis outros atos

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    garantias democrticas sem que o regime democrtico seja colocado em dvida.Norberto Bobbio reportou-se a esta situao em texto clssico:

    Chamo de criptogoverno o conjunto das aes realizadas porforas polticas eversivas que agem na sombra em articulao com osservios secretos, ou com parte deles, ou pelo menos por eles noobstaculizadas. O primeiro episdio deste gnero na recente histriada Itlia foi inegavelmente o massacre da Praa Fontana. Noobstante o longo processo judicirio em vrias fases e em vriasdirees, o mistrio no foi revelado, a verdade no foi descoberta,as trevas no foram dissipadas. Apesar disto, no nos encontramos

    na esfera do inconhecvel; embora no saibamos quem foi, sabemoscom certeza que algum foi. No fao conjecturas, no avanonenhuma hiptese.3

    16. Situaes de emergncia como a italiana no caso, a luta contraa fria assassina que redundou no assassinato de Aldo Moro motivam umapreocupao candente com o funcionamento dos aparatos repressivos. fundamental, porm, que jamais seja aceita a derrogao dos fundamentos jurdicosque socorrem os direitos humanos.4 No caso italiano, as possibilidades para que osabusos ocorressem estavam dadas pelo prprio ordenamento jurdico forjado nosanos de chumbo:

    A magistratura italiana foi ento dotada de todo um arsenal depoderes de polcia e de leis de exceo: a inveno de novos delitoscomo a associao criminal terrorista e de subverso da ordemconstitucional (artigo 270 bis do Cdigo Penal) veio se somar eredobrar as numerosas infraes j existentes associaosubversiva, quadrilha armada, insurreio armada contra ospoderes do Estado etc. Ora, esta dilatao da qualificao penaldos fatos garantia toda uma estratgia de arrasto judicirio apermitir o encarceramento com base em simples hipteses, e isto

    normativos igualmente primrios: atos do governo, atos dos entes autnomos, atos de competncia reservada,dentre outros. BILANCIA, Francesco. In LEAL, Rogrio Gesta. Administrao Pblica Compartida noBrasil e na Itlia: Reflexes Preliminares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008, p. 75. HABERMAS, Jrgen.Era das Transies. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, esp. p.153 ss., quando o autor discute a questodo Estado Democrtico de Direito.3 BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma defesa das regras do jogo . Rio de Janeiro: Paz e Terra,1989, p. 104.4 Cf. DWORKIN, Ronald, Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 205: Theinstitution of rights is therefore crucial, because it represents the majoritys promise to the minorities that theirdignity and equality will be respected. When the divisions among the groups are most violent, then thisgesture, if law is to work, must be most sincere.

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    para detenes preventivas, permitidas pelo artigo 10 do decreto-leide 15 de setembro de 1979 por uma durao mxima de dez anos eoito meses.5

    17. pblico e incontroverso, igualmente, que os mecanismos defuncionamento da exceo operaram, na Itlia, tambm fora das regras da prpriaexcepcionalidade prevista em lei. Tragicamente, tambm no Estado requerente, noperodo dos fatos pertinentes para a considerao da condio de refugiado,ocorreram aqueles momentos da Histria em que o poder oculto aparece nassombras e nos pores, e ento supera e excede a prpria exceo legal. Nessassituaes, possvel verificar flagrantes ilegitimidades em casos concretos, pois a

    emergncia de um poder escondido tanto mais potente quanto menos se deixaver6.

    18. Isso professado em nome da preservao do Estado contra osinsurgentes, que no menos ilegtima do que as aes sanguinrias dos insurgentescontra a ordem. Tambm me valho da lio de Bobbio:

    Quem decidiu ingressar num grupo terrorista obrigado a cair naclandestinidade, coloca o disfarce e pratica a mesma arte da falsidadetantas vezes descrita como uma das estratagemas do prncipe. Mesmo

    ele respeita escrupulosamente a mxima segundo a qual o poder tanto mais eficaz quanto mais sabe, v e conhece sem se deixar ver.7

    19. Por outro lado, entre os tericos do Direito que no crem nademocracia liberal, Carl Schmitt, afirma: Na necessidade suprema o direitosupremo prova o seu valor [bewhrt sich] e manifesta-se o grau mais elevado da

    5 MUCCHIELLI, Jacques. Article 41-bis et prisons italiennes. In ARTIRES, Philippi, LASCOUMES,Pierre (org.), Gouverner, enfermer la prison, un modle indpassable? Paris: Presses de Sciences Po, 2004,p. 246. Traduo livre de La magistrature italienne sest ainsi dote de tout un arsenal de pouvoirs de policeet de lois dexcepcion: invention de nouveaux dlits telle lassociation criminelle terroriste et de subversionda lordre constitutionnel (article 270 bis du Cde pnal) venant sajouter et redoubler les nombreusesinfractions dj existantes association subversive, bande arme, insurrection arme contre les pouvoirsde ltat, etc. Cette dilatation de la qualification pnale des faits assure alors tout une stratgie de rafle

    judiciaire permettant dincarcrer sur la base de simples hypothses, et ce pour une detention prventive,permise par larticle 10 du dcret-loi du 15 septembre 1979, dune dure maximale de dix ans et huit mois.Na seqncia, o autor apresenta exemplo extremamente semelhante ao que se passou com o Recorrente: Unexemple typique de ces pratiques est linculpation conjointe pour bande arme et pour le port des armescenses appartenir, par une dduction tout particulire, la dite bande ou les inculpations pour concourspsychique ou moral.6 BOBBIO, Norberto; VIROLI, Maurizio,Direitos e deveres na Repblica: os grandes temas da poltica e dacidadania.Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 105.7 BOBBIO, Norberto. Op. cit. (nota 3). p. 105.

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    realizao judicantemente vingativa desse direito. Todo o direito tem a sua origemno direito do povo vida. Toda a lei do Estado, toda a sentena judicial contmapenas tanto direito quanto lhe aflui dessa fonte. O resto no direito, mas umtecido de normas positivas coercitivas, do qual um criminoso hbil zomba8. Ouseja, para Schmitt, as conquistas jurdicas humanistas das luzes no valem, porquedelas o delinqente inteligente pode zombar. Para Bobbio, no entanto, quanto maisexceo, menos Democracia e menos Direito.

    20. Determinadas medidas de exceo adotadas pela Itlia nosanos de chumbo, por sinal, ressoam ainda hoje nas organizaes internacionais

    que lidam com direitos humanos. A condenao a determinados procedimentos epenas motivou, de um lado, relatrios da Anistia Internacional9 e do Comit europeupara a preveno da tortura e das penas ou tratamentos desumanos ou degradantes10e, de outro, a concesso de asilo poltico a ativistas italianos em diversos pases,inclusive no europeus.

    21. Outros evadidos da Itlia por motivos polticos vinculados situao do pas na dcada de 1970 e incio dos anos 1980, mesmo perodo da fugado Recorrente, no foram extraditados para o pas pelo Supremo Tribunal Federal.Note-se, nesse sentido, a Extradio n 694, na qual a condenao italiana, como nocaso do Recorrente, apontava o objetivo do extraditando de

    subverter violentamente a ordem econmico e social do Estadoitaliano, de promover uma insurreio armada e suscitar a guerracivil no territrio do estado, de atentar contra a vida e aincolumidade das pessoas para fins de terrorismo e de everso daordem democrtica.11

    22. A preocupao com os limites do poder de exceo deveocorrer mesmo nos seus momentos mais duros tanto no que se refere s normasde ordem material, como naquelas de ordem processual. Todas as normas, sejam

    8 SCHMITT, Carl. O fhrer protege o Direito. In MACEDO JNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e afundamentao do Direito. So Paulo: Max Limonad, 2001, p. 221.9 Cf. documentos da Anistia Internacional constantes das fls. 88-91 dos autos de solicitao de refgio.10 Cf. CPT/Inf (2007) 26. Rapport au Gouvernement de lItalie relatif la visite effectue en Italie par leComit europen pour la prvention de la torture et des peines ou traitements inhumains ou dgradants (CPT)du 16 au 23 juin 2006. Estrasburgo: Conselho da Europa, 2007, disponvel em.11 O voto condutor da deciso apresenta a constatao lmpida de que houve no caso crime poltico: no hdvida de que se tratava de insubmisso ordem econmica e social do Estado italiano, por razes polticas,inspiradas na militncia do paciente e de seu grupo. Voto do relator, Min. Sidney Sanches, p. 35 (item 21).

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    excepcionais ou no, carregam, no sistema de direito orgnico democracia, opermanente apelo razoabilidade e proporcionalidade12. fundamental,portanto, que aos que desobedecem a lei sejam estendidas todas as garantias daordem jurdica democrtica13.

    23. O Recorrente sentiu diretamente os efeitos da legislao deexceo italiana. As acusaes sobrepostas a que respondeu foram possibilitadaspelos procedimentos e tipos penais singulares desenvolvidos pelo Estado requerente,em grande parte aplicveis por fora do envolvimento do Recorrente no grupoconhecido como PAC (Proletrios Armados para o Comunismo).

    24. Aps fugir da Itlia em 1981, o Recorrente foi condenado pelaJustia do pas, como autor e co-autor de homicdios ocorridos entre junho de 1978 eabril de 1979. Vislumbra o Recorrente, no caso, falta de oportunidades para quedesenvolvesse sua ampla defesa. Nesse sentido, de se notar que as acusaes nobuscam esteio em provas periciais, fundamentando-se precipuamente em umatestemunha de acusao implicada pelos prprios fatos delituosos, qual seja, odelator premiado Pietro Mutti.

    25. Poderia argir-se que as acusaes que pesam sobre oRecorrente dizem respeito violao da lei penal comum, no fosse o fato de quetais acusaes constituem, em alguns casos, a justificativa jurdica do Estadorequerente, sem a qual as chances de entrega do nacional requerido ficaramindubitavelmente prejudicadas14.

    12 A necessidade, a razoabilidade, a proporcionalidade a proibio do excesso e do abuso devem servir deescudo para limitar o absolutismo, como se v na atual legislao ptria sobre a custdia cautelar em casos deextradio (MIRANDA, Jorge; SILVA, Marco Antonio Marques da (coord.), Tratado luso-brasileiro dadignidade humana,So Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 573). A proporcionalidade consiste em uma estruturaformal de relao meio-fim, a razoabilidade traduz uma condio material para aplicao individual da

    justia. Da porque a doutrina alem, em especial, atribui significado normativo autnomo ao dever derazoabilidade. IN: ALBRECHT, apud BARROS, Suzana de Toledo. O principio da proporcionalidade e ocontrole de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Braslia, Jurdica, 1996. p.69.13 DWORKIN, Ronald, Taking rights seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1977, p. 222: Thesimple Draconian propositions, that crime must be punished, and that he who misjudges the law must take theconsequences, have an extraordinary hold on the professional as well as the popular imagination. But the ruleof law is more complex and more intelligent than that and it is important that it survive.14 A esse respeito convm trazer baila que O asilo territorial, que no deve ser confundido com odiplomtico, pode ser definido como a proteo dada por um Estado, em seu territrio, a uma pessoa cuja vidaou liberdade se acha ameaada pelas autoridades de seu pas por estar sendo acusada de haver violado asua lei penal, ou, o que mais freqente, t-lo deixado para se livrar de perseguio poltica . (grifei),SILVA, G.E. do Nascimento e,Manual de Direito Internacional, Editora Saraiva, 15 Edio, 2002, p. 376.

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    26. sintomtico, nesse sentido, que as decises condenatrias, aoarrolar os tipos penais que o Recorrente teria praticado, apontem serem todasintegrantes de

    um s projeto criminoso, instigado publicamente para a prticados crimes de associao subversiva constituda em quadrilhaarmada, de insurreio armada contra os poderes do Estado, deguerra civil e de qualquer maneira, por terem feito propaganda noterritrio nacional para a subverso violenta do sistemaeconmico e social do prprio Pas15 (grifei)

    27. Segundo o Recorrente, a natureza poltica de seus crimes noapenas evidente como confirmada pela maneira de o Estado requerente haverconduzido os processos criminais e os pedidos de extradio. Corroboram essaperspectiva as qualificaes dadas a seus atos pelos processos de condenao emprimeira instncia e o fato de ser preso na Divisione investigazioni generalioperazioni speciali, onde se lotavam os presos polticos dos anos de chumbo.

    28. O Recorrente junta aos autos carta de Francesco Cossiga,influente poltico italiano nos anos 1970, que participou ativamente da elaborao

    das leis de emergncia italianas16

    . Hoje Senador da Repblica italiana, Cossigaatesta que os subversivos de esquerda passaram a ser tratados, na Itlia dos anosde chumbo, como simples terroristas e talvez absolutamente como criminososcomuns. O missivista assevera, contudo, a impropriedade desta classificaoimpingida ao Recorrente:

    Vocs todos, de esquerda e de direita eram revolucionriosimpotentes: em particular vocs subversivos de esquerda queacreditavam com actos de terrorismo, no certamente de poderfazer, mas pelo menos escorvar a revoluo, conforme osensinamentos de Lenin, que condenava em via de princpio o

    terrorismo, mas que justificava ou melhor achava til e legtimos

    15 Primeiro Tribunal do Jri de Apelao de Milo. Sentena 17/90 n 86/89 e 50/85 do Registro Geral, de13/12/1988. Item 49 (antes 50). Expresso idntica sublinhada acima encontra-se no item 114 (antes 123)dos mesmos autos.16 Cossiga, porm, foi ignorado, mesmo quando exerceu a presidncia do Conselho italiano, ao alertar para osperigos da manuteno destas medidas e defender uma anistia ampla para os perseguidos nos anos dechumbo. Cf. MUCCHIELLI, Jacques. Article 41-bis et prisons italiennes. In ARTIRES, Philippi,LASCOUMES, Pierre (org.), Gouverner, enfermer la prison, un modle indpassable? Paris: Presses deSciences Po, 2004, p. 247.

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    dum ponto de vista do marxismo-lenininsmo, os atos de terrorismos se propeduticos a revoluo e capazes de conduzi-la. Oscrimes que a subverso de esquerda e a everso de direitacumpriram, so certamente crimes, mas no certamente crimescomuns, porm crimes polticos.17

    29. A respeito da criminalidade poltica e de sua caracterizao emface dos instrumentos de cooperao internacional, observe-se o ensinamento deFrancisco Rezek, Direito Internacional Pblico, 11 ed., So Paulo: Saraiva, 2008,pp. 214-215:

    Asilo poltico o acolhimento, pelo Estado, de estrangeiroperseguido alhures geralmente, mas no necessariamente, em seuprprio pas patrial por causa de dissidncia poltica, de delitos deopinio, ou por crime que, relacionados com a segurana do Estado,no configuram quebra do direito penal comum. Sabemos que nodomnio da criminalidade comum isto , no quadro dos atoshumanos que parecem reprovveis em toda parte,independentemente da diversidade de regimes polticos os estadosse ajudam mutuamente, e a extradio um dos instrumentos desseesforo cooperativo. Tal regra no vale no caso dacriminalidadepoltica, onde o objetivo da afronta no um bem jurdico

    universalmente reconhecido, mas uma forma de autoridadeassentada sobre ideologia ou metodologia capaz de suscitarconfronto alm dos limites da oposio regular num Estadodemocrtico. (grifei).

    30. No resta a menor dvida, independentemente da avaliao deque os crimes imputados ao recorrente sejam considerados de carter poltico ou no alis inaceitveis, em qualquer hiptese, do ponto de vista do humanismodemocrtico de que fato irrefutvel a participao poltica do Recorrente, oseu envolvimento poltico insurrecional e a pretenso, sua e de seu grupo, deinstituir um poder soberano fora do ordenamento

    18. Ou seja, de constitu-lopela via revolucionria atravs da afronta poltica e militar ao Estado de Direito

    17 Carta vertida para o portugus, constante da fls. 55 dos autos de solicitao de refgio.18 BOBBIO, Norberto et.al, Dicionrio de Poltica, Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2 edio,1986, p. 1185: Na prtica, por um lado, o moderno Estado de direito procurou sempre limitar ao mximo,quando no eliminar, a possibilidade da existncia de algum que decida acerca do Estado de exceo e quepossua poderes excepcionais (a moderna figura do estado de stio uma ditadura confiada, isto , um poderconstitudo), enquanto, por outro lado, historicamente, o Estado de exceo tem sido proclamado por quemno possua habilitao para tanto, e que se tornou soberano somente na medida em que conseguiurestabelecer a unidade e a coeso poltica.

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    italiano, alis, motivos estes que levaram o presidente Mitterrand a acolher orecorrente e vrios militantes da extrema esquerda italianos na mesma situao.

    31. Aspecto muito importante aqui, para examinar a pertinncia deconcesso do refgio, que o Recorrente esteve abrigado em solo francs por razespolticas aceitas por deciso soberana do chefe de Estado daquele pas. Alis, naoportunidade o presidente Franois Mitterrand acolheu os subversivos sob acondio categrica de que fizessem a renncia formal luta armada.

    32. No singelo o fato de que o Recorrente tenha feito expressa

    opo por renunciar aos meios no pacficos de manifestao poltica. HannahArendt alerta que se a mente incapaz de fazer a paz e de induzir a reconciliao,ela se v de imediato empenhada no tipo de combate que lhe prprio 19 e porisso mesmo a autora ressalta a dimenso poltica dos juzos retrospectivos. Entre opassado e o futuro, o homem conta apenas com si mesmo para ceder ou resistir aosimpulsos de amor e dio, fria ou compaixo, impulsos que se confundem quandodestino e motivaes, desejos e princpios so mesclados.

    33. Aps a renncia luta armada, o Recorrente permaneceu naFrana, por um perodo de mais de uma dcada. Constituiu famlia, casando-se etendo duas filhas, vivendo pacificamente como zelador e escritor. O Recorrente, emsuas prprias palavras, teria permanecido na Frana se pudesse, onde inclusiveformulou pedido de naturalizao e gozava de um asilo poltico informal.

    34. A situao do Recorrente foi alterada durante o governo dopresidente Jacques Chirac. O abrigo do recorrente, no territrio francs, foidesconstitudo e ento anulado por razes eminentemente polticas. A mudana deposio do Estado francs, que havia lhe conferido guarida como militantepoltico de extrema esquerda, foi o motor nico de seu deslocamento para oBrasil. A extradio do Recorrente Itlia, que primeiro havia sido negada naFrana por razes polticas, foi posteriormente concedida pelas mesmas razes.

    35. O Brasil, em vista desses acontecimentos polticos (mormente amudana de governo na Frana), passou a ser depositrio de um cidado, de fatoexpulso de um territrio por deciso poltica, que se contraps deciso anterior, aqual havia o reconhecido como perseguido poltico20.

    19 ARENDT, Hannah,Entre o passado e o futuro. 2a ed. So Paulo: Perspectiva, 1972, p. 34.20 VERD, Pablo Lucas,La Constitucin Abierta y sus enemigos, Madrid: Beramar, 1993, p. 91: De todolo expuesto cabe deducir que la apertura impregna a casi todos textos constitucionales democrticos. A mi

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    36. Por motivos polticos o Recorrente envolveu-se emorganizaes ilegais criminalmente perseguidas no Estado requerente. Por motivospolticos foi abrigado na Frana e tambm por motivos polticos, originrios dedeciso poltica do Estado Francs, decidiu, mais tarde, voltar a fugir. Enxergou oRecorrente, ainda, razes polticas para os reiterados pedidos de extradio Itlia-Frana, bem como para a concesso da extradio, que, conforme o Recorrente,estariam vinculadas situao eleitoral francesa. O elemento subjetivo dofundado temor de perseguio necessrio para o reconhecimento da condiode refugiado est, portanto, claramente configurado.

    37. luz do que foi brevemente relatado, percebe-se do contedodas acusaes de violao da ordem jurdica italiana e das movimentaespolticas que ora deram estabilidade, ora movimentao e preocupao aoRecorrente, o elemento subjetivo, baseado em fatos objetivos, do fundadotemor de perseguio, necessrio para o reconhecimento da condio derefugiado.

    38. A ttulo de esclarecimento, aponta-se a qualidade poltica dadeciso sobre o refgio. Segundo Francisco Rezek, Direto Internacional Pblico,So Paulo: Renovar, 2 vol., 15 ed. 2004, verbis:

    A qualificao de tais indivduos como refugiados, isto , pessoasque no so criminosos comuns, ato soberano do Estado queconcede o asilo. Cabe somente a ele a qualificao. com ela queter incio ou no o asilo.

    39. bom que reste claro que o carter humanitrio, que tambm princpio da proteo internacional da pessoa humana, perpassa o refgio,implicando o princpio in dubio pro reo: na dvida, a deciso de reconhecimentodever inclinar-se a favor do solicitante do refgio.

    entender esto significa varias cosas a) La apertura constitucional evidencia que una Constitucin no est solaporque la interdependencia internacional se ha incrementado notablemente, en los ltimos tiempos aunquedebe incrementarse. La recepcin de contenidos internacionales en los documentos fundamentales; lareferencia a los mismos para la interpretacin de los derechos humanos (art. 10,2 C.E.); la incorporacin Delderecho comunitario en los ordenamientos europeos, lo corroboran. Ya no cabe hablar de soledad de laConstitucin, y considerarla como un Universo cerrado y excluyente sino de un pluriverso basado en elpluralismo interno, internacional y comunitario.

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    44. Por conseqncia, h duvida razovel sobre os fatos que,segundo o Recorrente, fundamentam seu temor de perseguio.

    45. Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso parareconhecer acondio de REFUGIADO a CESARE BATTISTI, nos termos doart. 1, inc. I, da Lei n. 9.474/97.

    46. Notifique-se ao CONARE, para cincia do solicitante, aoDepartamento de Polcia Federal e Secretaria Nacional de Justia, para asprovidncias devidas, bem assim ao Egrgio Supremo Tribunal Federal, para as

    providncias cabveis.

    Braslia 13 de janeiro de 2009.

    TARSO GENROMinistro de Estado da Justia