Mitos Das Origens

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  • 8/4/2019 Mitos Das Origens

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    Jos Ribeiro Ferreira

    Mitos das OrigensRios e Razes

    JosRibeiroFerreira

    MitosdasOrigens-RioseRazes

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    M O -

    Jos Ribeiro Ferreira

    Mitos das Origensrios e razes

    Coleco

    Fluir Perene - n 1

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    J R F

    A: J R FT:M O -

    E: J R FE: 2 / 2008

    C G: F P

    I:S L, L.

    A. F N, . 83 - L 43000 C

    A: C E C H U C

    P: A P E C (APEC)

    U CF LT.: 239 859 981 | F: 239 836 733

    3000-447 C

    ISBN: 978-989-95751-1-0

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    M G OI 11

    O M DM P 13M H O M 17M O M F G M 35

    C H. O DI 59P H 61D C H 74

    M C O P 95

    B 115

    A T 121

    Q D 29

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    P

    De tiragem curta, este pequeno opsculo destina-

    se a apoiar a cadeira de Mitologia e Mitologia Greco-La-

    tina e nasce da ordenao de anotaes e tpicos que fo-

    ram colhidos para a preparao das aulas e a que depois

    foi dado desenvolvimento. por isso um livro ainda em

    formao, com lacunas, pontos quase s aorados e que

    mereceriam abordagem mais ampla. Futuras edies

    colmataro essas lacunas.

    Mitos das Origens Rios e Razes o primeiro volu-

    me de um projecto que correr com o ttulo genrico de

    Fluir Perene e conter uma coleco de publicaes,reconhecida pelo mesmo nome. Acolher ela no apenas

    trabalhos de investigao, mas tambm de criao, de

    poesia, tradues de obras gregas e latinas, breves ree-

    xes, curtas apreciaes de livros. Basta que apresentem

    ligao, tnue que seja, com a cultura greco-romana aseiva que perene ui ou rio que no pra de correr, que

    nunca o mesmo, mas a todos banha e alimenta. Baga-

    gem que faz parte integrante do ba da nossa mente,

    sem ela olharamos as pessoas e as coisas de outra for-

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    ma. ramos de certeza outros. Nem sei se chegaramos a

    reconhecer-nos.

    A traduo dos passos da Teogonia de Hesodo, salvo

    indicao em contrrio, so de Ana Elias Pinheiro (Lisboa,

    INCM, 2005); a dos textos os dos poemas Atramhasis, Enuma

    elish e Gilgamesh pertence a Jos Nunes Carreira.

    Coimbra, Maro de 2008

    Jos Ribeiro Ferreira

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    I

    Segundo Mircea Eliade (1953), todos os mitos so

    da era da criao. Seriam assim explicaes da origem

    do mundo e da sua formao, a partir de um estado de

    desordem, de mistura ilimitada de elementos, de lodo,

    de noite.

    Temos, pois, narrativas da degradao da huma-

    nidade: de uma Idade de Ouro caminha-se para a actua-

    lidade atravs de crimes, quedas, catstrofes; narrativas

    de diversos perodos do mundo separados por catstro-

    fes, de que o dilvio um exemplo. Desse modo o mito

    pode ser considerado uma narrativa acerca da origem

    do mundo, includa na ordenao dos contos que come-

    am era uma vez.

    Mitos largamente difundidos, aparecem sobretudo

    nas culturas do antigo Oriente: caso do Gnesis do Anti-

    go Testamento, da epopeia babilnia da criao do mun-do, de vrios mitos gregos. So mitos que apresentam

    uma estrutura narrativa simples: gerao e sequncia de

    geraes. Por exemplo, a Teogonia de Hesodo, a partir de

    Caos, Terra e Eros; os mitos rcos com sua cosmogonia;

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    Prometeu que d origem ao homem.

    Antes de prosseguir, algumas observaes:

    Os Gregos preferiam pensar o Caos mais como

    ausncia e escurido a consider-lo amalgama ou massa

    informe e desordenada. Da que o kosmos (ordem) surja

    nesses escuro e ausncia e no na desordem catica que

    comum a outros povos.

    Assim o Mundo nasceria do nada, do que nunca

    tenha nascido e precede os primeiros seres ou elementos

    aparecidos. Em conformidade, deve-se falar em gne-

    se, em vez do termo mais usual criao1.

    As entidades primordiais ainda no elementos

    fsicos so foras geradoras ou tm poder de gerarem.Fazem-no por cissiparidade ou atravs de unio amoro-

    sa ou cpula.

    1 Vide C. Ramnoux, La nuit et les enfants de la Nuit dansla tradition Grecque (Paris, Flamarion, 5 ed.), p. 79.

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    O M

    M

    O mito pelsgico da origem do Mundo e dos deuses

    atribui papel fundamental a Eurnome, uma divindade

    feminina que, etimologicamente, signica a que domina

    em grande extenso (de eurys extenso e nomos lei,

    que se liga ao verbo nemein governar, dominar).

    Em Hesodo (Teogonia 357 e 907-909) Eurnome

    uma ocenide, lha de Oceano e Ttis, portanto da pri-

    meira gerao de divindades, a dos Tits. Terceira espo-

    sa de Zeus, da unio dos dois nascem as trs Crites ou

    Graas, Aglaia, Eufrsine e Talia. Divindade das primei-ras geraes divinas, do seu culto temos apenas notcia

    na Arcdia, onde aparece como divindade das guas

    (cf. Pausnias 8. 41.4-6), e em Figaleia, na Tesslia, onde

    havia um templo cuja imagem de culto tinha gura hu-

    mana da cintura para cima e forma de peixe na parteinferior. Ferecides transmite-nos outra tradio ou

    mesmo o seu autor que d Eurnome como consorte de

    Ofon, o governante dos deuses antes de Cronos, verso

    a que alude tambm Apolnio de Rodes,Argon. 1. 503-

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    506 (cf. texto 1).

    Deusa de Todas as Coisas, brota nua do Caos2. Ao

    vericar que no tinha stio onde pousar os ps, dana

    para separar o cu do mar e, enquanto o fazia, deslocan-

    do-se para sul, apercebe-se do vento que, a cada passo

    seu, se forma atrs de si, como algo de distinto. Rodeia e

    abraa, ondulante, esse vento norte que lhe desliza por

    entre os braos e, de repente materializa-se na sua frente

    na gura de Ofon (com evidente relao com o grego

    ophis serpente) portanto, a Grande Serpente3. Como

    Eurnome danasse cada vez com mais rapidez para

    aquecer-se, provocou em Ofon (o Vento Norte, tambm

    chamado Breas) o desejo de a ela se unir, de modo aque casse pejada4.

    Eurnome, sob a forma de pomba, foi ento incubar

    na superfcie das guas e depositou depois o Ovo Uni-

    versal de que tudo nasce. Sete vezes Ofon se enrola em

    2 - Cf. Orph. Fr. 98, n 29.3 - Ofon uma divindade rca. Cf. Apolnio de

    Rodes,Argon. 1. 503-506; Kern, Orph. Frag. 98, no 29.4 - Esta capacidade reprodutiva do vento aparece

    tambm nas lendas das guas que aparecem prenhas graasao vento que por elas passa, quer se trate das guas do rei delion, Erictnio (Ilada 20. 221-225), quer das guas do vale doTejo (Plnio 4. 35, 8. 67)

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    volta desse Ovo, separa terra, cu e d origem a todas as

    coisas que existem: as estrelas, a lua, a viagem do sol, os

    planetas; as montanhas, os vales e os rios; as plantas, os

    seres vivos e todos os animais; e cria ainda, para sua mo-

    rada, juntamente com Ofon, o Monte Olimpo. E assim

    tudo criao de Eurnome. Mas Ofon vangloria-se de

    ser o autor do Universo. Ento verica-se uma violenta

    luta entre os dois em que a deusa lhe calca a cabea com

    o p e o expulsa do Olimpo, sepultando-o nas profundas

    cavernas da terra5. Subjacente a este confronto estar a

    tradio (rca?) de que Eurnome e Ofon teriam reina-

    do sobre os Tits antes de Cronos e Reia e de que este os

    superou e os expulsou do Olimpo?Pelo menos, segundo esta explicao mtica, numa

    segunda gerao de divindades primitivas, ao destronar

    Urano, Cronos expulsa do Olimpo Eurnome que se refu-

    gia no mar, embora outra verso, talvez rca, rera que

    foram lanados no Trtaro. Dessa sucesso violenta nosinformam osArgonautas de Apolnio de Rodes (cf. texto

    5 - Vide Apolnio de Rodes,Arg. 1. 496-505. Higino,Fab. 197 fala de um ovo que cai no rio Eufrates, trazidopelos peixes para a margem, aquecido pelas pombas, masdele nasce Vnus que superou todos os outros deuses emequidade e rectido.

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    1), ao relatar o canto de Orfeu sobre a estadia de Ofon e

    Eurnome no Olimpo coberto de neves e como, ven-

    cidos pela fora de seus braos, cederam a honra / a Cro-

    nos e a Reia e mergulharam nas ondas do Oceano (1.

    503-508). E foi a que ela e Ttis acolheram Hefestos e o

    acolheram e o ajudaram quando por ser coxo foi exposto

    pela me, como conta a Ilada 18. 397-399:

    Ento teria eu sofrido dores no corao,se Eurnome e Ttis me no tivessem acolhido ao colo,Eurnome, lha do Oceano, rio que ui em sentido contr-rio.

    Ainda no se falou de aparecimento do homem.

    Segundo este mito, o primeiro homem, de nome Pelasgo(nascido da terra), seria natural do solo da Arcdia e

    dele derivaram outros homens, os Pelasgos, a quem en-

    sinou a construir casas (cabanas), a alimentarem-se de

    bolotas, a vestirem-se de peles (Pausnias 8. 1. 4-2.4). Se-

    gundo uma tradio arcdia, seria descendente de Zeus

    e Nobe e pai de Licon, de quem nasceram cinquenta

    lhos de funestas consequncias e que arrastariam o cas-

    tigo das divindades, como veremos.

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    M H M

    Se o mito anterior j atribua s guas papel de re-

    levo, h uma outra explicao mtica que faz derivar o

    Mundo e as divindades da gua ou melhor, de duas

    foras csmicas que os Gregos designavam pelos nomes

    de Oceano e Ttis.

    Nos Poemas Homricos, por seu lado, embora

    pouco haja neles que possa ser interpretado como es-

    pecicamente cosmognico ou cosmolgico, Oceano e

    Ttis no a Nereide que casa com Peleu e me de

    Aquiles (em grego Thtis), mas a Titnide Tethys , lha

    de Gaia e Urano que Hesodo tambm refere na Teogonia

    (244 e 1006) simbolizam tambm aspectos diversos domar. Por exemplo, no Canto XIV da Ilada (vv. 198 sqq.),

    Oceano aparece como a origem de todos os deuses e cria-

    turas e Ttis a me de todos os seus lhos. O passo que

    traduzo a seguir insere-se no famoso episdio do Canto

    14 em que Hera, para seduzir Zeus, vai ter com Afroditee lhe pede o amor e o desejo, alegando, no entanto, que

    pretende congraar Oceano e Ttis (14. 198-204):

    D-me agora o amor e o desejo com que tu a to-

    dos

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    subjugas, tanto os imortais, como os homens mortais. que vou visitar, nos conns da terra fecunda,

    Oceano, gnese dos deuses, e a me Ttis,Que em suas moradas me criaram bem e me estimaram,recebendo-me das mos de Reia, quando Zeus de vozpotenteprecipitou Cronos sob a terra e sob o mar estril.Vou visit-los, para ver se ponho m s suas indecisasquerelas.

    Mais adiante, quando Hera vai ter com Hypnos,

    o Sono, este responde-lhe que adormeceria facilmente

    qualquer deus, inclusive o prprio rio Oceano, que

    a origem de todas as coisas (v. 247), mas no ousaria

    faz-lo com Zeus Crnida, cuja clera ele j provocara

    uma vez, tambm para ajudar Hera; teria ento sofrido

    as consequncias, no fora a proteco da Noite, que do-

    mina deuses e homens; foi ela que o livrou do castigo

    de pai dos deuses, quando este, por respeito, se conteve

    para no fazer nada que desagradasse Noite veloz

    (v. 262).

    A Ilada, no entanto, fala tambm de Oceano como

    origem do mar (thalassa, v. 195), se bem que o verso 195,

    desde Zendoto, tem levantado dvidas que me pare-

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    cem indevidas6. Os versos da Ilada dizem mais precisa-

    mente que do Oceano de fundas correntes todos os rios

    procedem e todo o mar, / todas as fontes e todas as nas-

    centes profundas (vv. 195-197)7. Chamo ainda a ateno

    para o facto de, nos versos citados, Oceano e Ttis habi-

    tarem nos conns da terra fecunda, ou seja, rodearem-

    na, e para a ocorrncia de uma frmula, constituda pelo

    nome do mar e seu epteto: mar estril (v. 203).

    Outro passo da Ilada , talvez mais complexo do

    que o anterior, tem interesse para o nosso objectivo,

    por a aparecer tambm a distino entre o mar como

    extenso lquida de gua e o Oceano e pelo facto de a

    aparecer tambm a noo de que Oceano rodeia a Terra.Rero-me famosa cfrasis do Escudo de Aquiles, no

    Canto 18 do referido poema. Descreve deste modo a pri-

    meira das cinco camadas que constituem o escudo (vv.

    483-489):Forjou l a terra, o cu e o mar,

    o sol infatigvel e a lua na plenitude,e ainda quantos astros coroam o cu,

    as Pliades e as Hades, e a fora de Orion,e a Ursa, conhecida igualmente pelo nome de Carro,

    6 - N. Richardson, The Iliad: A Commentary VI Books21-24 (Cambridge, 1993), p. 69 ad l. 195

    7 - Vide A. Lesky, Thalaa (Vienna, 1947), pp. 81-82.

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    que gira no mesmo lugar e espreita para o Orion,e a nica a quem no coube tomar banho no Oceano8.

    Seguem-se depois as outras quatro que incluem

    cenas de uma cidade em paz e de uma cidade em guer-

    ra; cenas de lavra, de ceifa, de vindima e de pastoreio (ou

    seja as quatro estaes do ano representadas pelas suas

    actividades mais signicativas de cada uma); cenas dedivertimento. E, a envolver todo este conjunto, encon-

    trava-se o grande rio Oceano na cercadura extrema de

    escudo to bem lavrado (18. 607-608).

    Gostaria de chamar a ateno para o facto de aqui

    Oceano ser uma divindade que se distingue do mar(thlassa) e de acentuar a importncia da descrio, j

    que alm de expressar conhecimentos astronmicos

    que omito9 parece dar-nos uma ideia da representa-

    o do mundo no tempo de Homero, pensar que a Terra,

    cuja forma se no especica, plana e rodeada por Oce-8 - Traduo de M. H. Rocha Pereira, Hlade (Porto,

    92003), p. 51.9 - Por exemplo, o cu que cobre a terra e coroado

    de astros; o sol infatigvel e a lua cheia. Nomeia, alm disso,vrias constelaes como as Pliades, as Hades, Oron, aUrsa Maior. Observa que todas elas mergulham no mar, comexcepo da Ursa, a nica a quem no coube tomar banhono Oceano.

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    ano, o rio Oceano. Esta viso de Oceano como deus que

    envolve todo o Universo a mais corrente em Homero.

    Passemos agora a Hesodo, ou melhor sua Teogo-

    nia que ser objecto da ateno mais demorada no pr-

    ximo captulo para sublinhar que a Oceano e Ttis de

    novo a titnide e no a Nereide Ttis fazem parte das

    divindades primitivas, nascidas de Urano (Cu) e Gaia

    (Terra), e aparecem como foras csmicas e elementares,

    fenmenos ou acidentes da natureza que se vo personi-

    cando e tornando deuses.

    Oceano, rio que em si mesmo acaba (Teogonia 242)

    cujo nome primitivo pode ter sido Ogenos, no grego

    e anterior aos Gregos , no uma entidade geogrca,mas uma fora csmica que personica a gua que rode-

    ava o Mundo, sobre a qual utuava a Terra habitada, que

    na poca arcaica grega era pensada como uma espcie

    de grande ilha no meio de um rio que a envolvia por

    inteiro10

    . Era assim a gua primordial de que nasciam10 - Esta concepo aparece logo na Ilada, na bem

    conhecida cfrasis do Escudo de Aquiles (18. 478-608),que nos d uma descrio do mundo conhecido de ento astros, mar; a cidade em paz, com cenas de casamento e

    julgamento; a cidade em guerra, com cenas de combate e decerco a uma cidade; cenas agrcolas, a simbolizar as quatroestaes do ano, como lavra, ceifa, vindima e pastoreio; cenas

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    ou eram alimentados os rios e fontes11. Distinguia-se do

    mar, embora mais tarde venha com ele a identicar-se.

    A titnide Ttis, por seu lado, simboliza a potn-

    cia feminina do Mar, embora s mais tarde com ele apa-

    rea identicada possivelmente pela primeira vez em

    Lcofron,Alexandra 1069. Mas em Hesodo ela que no

    Canto 14 da Ilada a me dos deuses (vv. 200-207) pa-

    rece ser apenas a mulher de Oceano12. Destes dois deu-

    ses primordiais (vv. 337-370) nasceram os inmeros Rios

    turbulentos e que correm ruidosamente (vv. 337 e 366),

    as incontveis fontes e as muitas Ocenides de belos

    tornozelos (v.364): Hesodo, embora especique ape-

    de divertimentos, como danas, recitaes e acrobacias. E, aoterminar a descrio, diz o poeta que, a envolver todas essascenas que simbolizam o Mundo, o deus Hefestos modelouainda a grande fora do rio Oceano / na cercadura extremade escudo to bem lavrado (vv. 607-608). Vide A. Lesky,Thalaa, p. 64.

    11 - Cf, Ilada 21. 195-197. Hesodo, Teogonia 337-345 dos rios como lhos de Oceano e Ttis, os dois smbolos dasguas primordiais, e enumera os principais rios conhecidosento e pela seguinte ordem: Nilo, Alfeu, Erdano, Estrmon,Meandro, Istro, Fsis, Reso, Aquelo, Nessos, Rdio, Hali-cmon, Heptporos, Granico, Esepos, Simoente, Penion,Hermo, Caco, Sangrio, Ldon, Partnio, Eveno, Ardesco,Escamandro.

    12 - Vide M.L.West, Hesiod, Theogony (1966, repr. 1988),ad. l. 136.

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    nas um pequeno nmero, tanto dos primeiros, como das

    segundas, refere expressamente que ascendem a trs mil

    nos seguintes versos (364-370):. So trs mil as Ocenides de belos tornozelosque, em locais diversos, vigiam a terra e as profundezas[marinhas,por igual lhas divinas e luminosas.Outros tantos so tambm os rios que correm ruidosa-mente,

    lhos do Oceano, que nasceram da augusta Ttis.

    A Teogonia quase poderamos armar pratica-

    mente mais no nos d do que genealogias dos deuses,

    de modo que durante largos passos temos apenas sries

    de nomes. Como exemplos mais signicativos rero osCatlogos das Musas (vv.77 sqq.), das Nereidas (vv.240

    sqq.) e das Ocenides (vv. 346 sqq) respectivamente

    as lhas de Nereu e Dris ou Ddiva e de Oceano e Ttis,

    cujos nomes Tm a cada passo ligaes com o mar e com

    actividades martimas13

    . Os dois ltimos catlogos sopraticamente constitudos apenas por uma sucesso de

    cinquenta e quarenta nomes prprios, respectivamente,

    a que uma por outra vez se junta um epteto e pouco

    13 - Vide M. L. West, Hesiod: Theogony (Oxford, 1966,repr. 1988), p. 260.

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    mais14. E atravs deles temos anal uma representao

    mtica das diversas actividades que se realizavam no

    mar, das muitas formas e variados aspectos que toma e

    com que se apresenta.

    No fundo, em Homero e em Hesodo, o rio Ocea-

    no a fonte de toda a gua doce (cf. Ilada 21. 194-197),

    dado que, como observam Kirk-Raven-Schoeld, a gua

    necessria vida que, portanto, deve ou pode derivar

    directa ou indirectamente de Oceano15. A viso mais cor-

    rente em Homero, todavia. a que d Oceano como deus

    que envolve todo o Universo.

    Alis era comum entre os Gregos, desde os maisremotos tempos, a ideia de que os fenmenos atmosf-

    ricos, os acidentes e elementos da natureza eram deu-

    ses. Essa viso est implcita, por exemplo, nos atributos

    que, desde os Poemas Homricos e Hesodo, e depois

    em textos posteriores ou seja, desde os textos lite-rrios mais antigos que possumos , so concedidos

    aos deuses: Zeus o deus dos fenmenos atmosfricos

    14 - Vide B. Snell,A descoberta do esprito, p.67.15 - Os Filsofos Pr-socrticos (trad. Port. Lisboa, 41994),

    pp. 4 sqq.

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    (o senhor do raio, do trovo, mas tambm da chuva); o

    sol era o deus Hlios, mais tarde substitudo por Apolo

    por sincretismo; a lua era a deusa Selene que depois se

    sincretizou tambm com rtemis, primitivamente deusa

    dos espaos exteriores. Dou um exemplo bem explcito

    deste viso mtica do universo, que vou buscar a Mim-

    nermo, um poeta dos ns do sculo VII incios do VI a.

    C. Explica ele deste modo a alternncia dos dias e das

    noites (fr. 12 West):Ao Sol coube em sorte trabalhar todo o dia,sem ter descanso algum,para ele ou para os cavalos, desde que a Aurora de dedos[rseosabandona o Oceano, para subir ao Cu.5 Leva-o atravs das ondas o leito cncavoe encantador, forjado, pelas mos de Hefestos,ornado de ouro, e alado; vai clere, a dormir sobre asguas,desde as Hesprides terra dos Etopes,onde esto o carro veloz e os cavalos,10 at chegar a Aurora, lha da manh.

    Ento sobe para o seu carro o lho de Hiprion16.

    Este texto muito signicativo, porque enumera

    16 - Traduo de M. H. Rocha Pereira, Hlade (Porto,92003), pp. 129. O exemplo de Mimnermo no nico eviden-temente, Cf. e. g. Estescoro, fr. 8 Page.

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    diversas divindades relacionadas com fenmenos natu-

    rais: o Oceano que, como vimos, um rio que bordeja e

    envolve a terra; as Hesprides, ou Ninfas do Poente,

    que habitavam no extremo ocidente, perto da Ilha dos

    Bem-Aventurados, nas margens do Oceano (indicam,

    portanto, um local de felicidade, o Jardim das Hespri-

    des); o Sol aqui ainda Hlios, dado que a sincretiza-

    o com Apolo apenas se verica nos ns do sculo VI

    ou mesmo incios do V a. C. , lho do Tit Hiprion

    e da Titnide Tia, irmo de Selene (a Lua) e de Eos (a

    Aurora de dedos rseos, lha da manh), outra das di-

    vindades referidas no texto. Ora, segundo o poema de

    Mimnermo, o deus Hlios sobe no oriente para o carropuxado por cavalos alados, logo que a manh averme-

    lha (ou seja logo que surge a Aurora de dedos rseos),

    percorre todo o cu durante o dia e, tardinha, chega s

    margens do Oceano. A entra para uma barca dourada (

    essa a impresso de quem observa o sol quando mergu-lha no mar), o leito cncavo que o leva sobre as ondas at

    ao oriente, terra dos Etopes, onde de novo sobe para

    o carro veloz, para refazer mais uma vez todo o referi-

    do percurso. Assim se explica miticamente a alternncia

  • 8/4/2019 Mitos Das Origens

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    M O -

    dos dias e das noites.

    O mito da criao homrico acima referido , no

    fundo, outra verso do mito pelsgico, j que, como Eu-

    rnome, Ttis reinava no mar e Oceano envolvia o Uni-

    verso, como Ofon.

    Esta verso da Ilada embora dira do mito da

    Teogonia de Hesodo, em que Urano e Gaia constituem a

    primeira gerao divina (vv. 337-370), a que me referirei

    mais adiante tem signicativas semelhanas com uma

    cosmogonia rca a que Plato (Crat. 402b) alude e de

    que cita dois versos:

    Oceano de bela corrente foi o primeiro a iniciar os [casa-mentos,ele que desposou Ttis, sua irm pelo lado materno17.

    Em Timeu 40e onde talvez esteja subjacente a

    mesma cosmogonia rca , Plato d Oceano e Ttis

    como lhos de Urano ou Cu e de Gaia ou Terra, maspais dos Tits, de que fazem parte Cronos e Reia um

    par teogonicamente essencial. Difere, portanto, da nar-17 - Estes dois versos, citados de Plato, no devem

    ser anteriores ao sc. V a. C. Vide G.S. Kirk, J. E. Raven e M.Schoeld, Os Folsofos Pr-Socrticos (trad. port. Lisboa, Gul-

    benkian, 41994), p. 10.

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    rao de Hesodo, na Teogonia, onde so coevos e irmos

    dos Tits e no seus pais. tambm o que alis se deduz

    de Ilada 5. 898, onde os Tits so lhos de Urano por-

    tanto, como veremos, em concordncia com a Teogonia

    de Hesodo, em que Oceano e Ttis so Tits como Cro-

    nos e Reia.

    Outra originalidade do episdio do Canto 14 da

    Ilada reside na importncia atribuda Noite, a quem o

    prprio Zeus procura no ofender (vv. 258-262), embora

    seja um caso nico nos Poemas Homricos:E Zeus ter-me-ia lanado do ter ao mar, para longe,se a Noite, dominadora dos deuses e dos homens, no me

    [salvasse.Para ela vim em fuga, e Zeus deteve-se, apesar da clera,pois receava fazer algo que desagradasse Noite veloz.

    Aristteles, naMetafsica (12, 1071b 27 e 14, 1091b

    4), refere que alguns poetas arcaicos fazem da Noite o

    primeiro ser ou o primeiro governante. Esta armao

    do Estagirita concorda anal com o passo da Ilada, aca-

    bado de citar, e com um catlogo ou teogonia reversa da

    Teogonia de Hesodo (vv. 11-20), que, depois de referir os

    principais deuses olmpicos como Zeus, Hera, Atena,

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    Apolo, Posidon, entre outros conclui com os seguin-

    tes versos (17-21) que nomeiam a Noite em ltimo lugar

    e falam da honrade Latona e Jpeto, de Cronos, o de pensamentos maldo-sos,da Aurora e do Sol ingente, da Lua brilhante,da Terra e do grande Oceano, da Noite negrae de toda a raa sagrada dos imortais, que duram sempre.

    E assim esta enumerao reversa (ou seja, dos mais

    recentes para os mais antigos) coloca a Noite em ltima

    lugar portanto como a primeira e mais antiga entidade

    cosmognica.

    possvel que a armao de Aristteles possa ter

    sido motivada pelos passos de Homero e Hesodo, mas

    pode ter em mente tambm versos ou poemas rcos.

    Parece ter havido relatos poticos, talvez compostos nos

    nais do sculo VII ou VI a. C., que incluam poesia r-

    ca e faziam da Noite a origem do mundo18. No entanto,

    nem todas as cosmogonias rcas davam essa importn-

    cia Noite e a colocavam como primeiro estdio19.18 - Vide G.S. Kirk, J. E. Raven e M. Schoeld, Os Fol-

    sofos Pr-Socrticos (trad. port. Lisboa, Gulbenkian, 41994), pp.13-14.

    19 - Vide G.S. Kirk, J. E. Raven e M. Schoeld, Os Fol-sofos Pr-Socrticos (trad. port. Lisboa, Gulbenkian, 41994), pp.

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    Vejamos dois exemplos em que a Noite ocupa lu-

    gar de primazia: a cosmogonia dasAves de Aristfanes

    (vv. 693-702) e a do Papiro de Derveni.

    A primeira, que dos nais do sc. V a. C. (do ano

    414, ou pouco antes), um texto pardico que coloca o

    Caos, a Noite e o negro rebo no incio de tudo20. Dou a

    traduo de Maria Helena da Rocha Pereira, Hlade (Por-

    to, 92003), p. 362-363:Ao princpio era o Caos, a Noite, o negro rebo e o vasto[Trtaro.No existia a Terra, o Ar nem o Cu. No seio ilimitado dorebo,a Noite de negras asas gerou, primeiro que tudo, um ovosem [germe,

    donde, com o volver das estaes, nasceu o almejado Eros,de dorso faiscante com asas douradas, semelhante aostorvelinhos [velozes como o vento.Foi ele que, unindo-se de noite ao Caos alado, no vastoTrtaro,criou a nossa raa e a fez vir luz em primeiro lugar.De incio no existia a raa dos imortais, antes que Erostudo [unisse. medida que se misturavam uns com os outros, nasceu oCu e [o Oceano,a Terra e a raa imorredoura dos deuses bem-aventurados.

    17-21.20 - rebo est relacionado com as trevas subterrneas

    ou obscuridade do mundo subterrneo. Personicado, torna-se descendente do Caos e irmo da Noite

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    A referncia a um ovo, como elemento caracters-

    tico dos relatos rcos tardios, comea a aparecer nos

    nais do sc. V a. C., e talvez um pouco antes21.

    No Papiro de Derveni, cuja teogonia rca no

    pode ter data posterior a c. 500 a. C., o primeiro gover-

    nante, Urano, lho da Noite de quem Zeus tambm

    aprende os segredos do seu reinado (cols. X, vii)22.

    Assim, para os rcos, a Noite de asas de breu,

    cortejada pelo vento, depositou um ovo nas Trevas. Des-

    se ovo nasce Eros (tambm se lhe d o nome de Fanes)

    que d origem ao Universo.

    Segundo R. Janko, talvez as teogonias da Ilada e a

    rca adaptem um mito que fazia das guas primaciais,de quem a Noite seria a me, a origem do mundo23. Tais

    teogonias preguram a ideia de Tales de que a gua a

    fonte de tudo e de que a terra utua na gua24.

    De onde deriva esta lenda da Ilada e por que razo21 - Vide G.S. Kirk, J. E. Raven e M. Schoeld, Os

    Folsofos Pr-Socrticos (trad. port. Lisboa, Fundao CalousteGulbenkian, 41994), p. 22.

    22 - Sobre o Papiro de Derveni vide M. L. West, TheOrphic Poems (1983), pp. 68-115.

    23 - The Iliad. A Commentary IV, books 13-16 (Cambrid-ge, 1992), pp. 180-182.

    24 - J. Rudhardt, Le Thme de l eau primordiale dans lamythologie grecque (Bern, 1971).

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    difere da de Hesodo, que trataremos a seguir? No h

    razo para duvidar que mitos divergentes no tenham

    sido correntes, pelo que a primeira separao, antropo-

    morzada como luta, se vericou entre Cu e Terra, ou

    os aquticos pais de Cu e Terra.

    Os dois mitos so conhecidos no Prximo Oriente

    antes do primeiro milnio.

    Na criao pica babilnica de Enuma Elish 1. 4, os

    pais dos deuses so o primordial Apsu, sua origem, e a

    feminina Tiamat, que os gerou a todos25. A criao per-

    faz uma primeira parte, que pequena em relao ao

    total. No princpio, antes de existir Cu e Terra, havia

    um par aquoso: o masculino Apsu guas subterr-neas ; a feminina Tiamat, mar, que depois se trans-

    forma em massa de guas e monstro marinho feminino.

    Da unio do casal primordial nasceram os deuses. Isto

    corresponde exactamente ao verso 201 do Canto 14 da

    Ilada , visto que Apsu apresenta a mesma entidade deOceano, a gua fresca que rodeia o mundo e a fonte

    25 - J.B.Pritchard (ed.),Ancient Near Eastern Texts relat-ing to the Old Testament (Princeton, 31969), 61.

    Faz-se, na parte nal, uma referncia mais desenvolvi-

    da aoEnuma Elish.

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    profunda de todas as nascentes e rios (Ilada 21.195-197),

    enquanto Tiamat personica o mar salgado. A mistura

    das suas guas geram os deuses, incluindo Anu (o Cu)

    e Ea (a Terra)26.

    Estas narraes ou o que delas subjaz inuen-

    ciaram o Gnesis 1, em que os elementos bsicos so no

    cu e terra, mas escurido e guas profundas que Deus

    separa em guas superiores e guas inferiores, ao criar

    o rmamento. Recordo apenas esse comeo do Gnesis,

    embora o no julgue muito necessrio, j que, penso, to-

    dos os conhecem:No princpio criou Deus o cu e a terra.E a terra estava vasta e vazia, e havia trevas sobre a face

    do abismo: e o Esprito de Deus se movia sobre a face dasguas.E disse Deus: Haja luz. E houve luz.E viu Deus que a luz era boa: e fez Deus separao entre aluz e entre as trevas.E Deus chamou a luz dia luz e as trevas chamou noite: efoi a tarde e a manh, o dia primeiro.

    E disse Deus: Haja um estendimento no meio das guas, efaa separao entre guas e guas.E fez Deus o estendimento, e fez separao entre as guasque esto debaixo do estendimento, e entre as guas queesto sobre estendimento: e foi assim.

    26 - Vide Jos Nunes Carreira, Literaturas da Mesopot-mia (Lisboa, 2002), pp. 111-112.

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    E Deus chamou o estendimento, cu: e foi a tarde e a ma-nh, o dia segundo.

    E disse Deus: Ajuntem-se as guas debaixo do cu em umlugar, e aparea o seco. E foi assim.E Deus disse: A terra produza erva verde, erva que dsemente, rvores frutuosas que do fruto segundo sua es-pcie, cuja semente esteja nelas sobre a terra. E foi assim.27

    27 - Traduo de Joo Ferreira Anes d Almeida, BbliaIlustrada (Lisboa, 2006), p. 19.

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    O mito Olmpico e Mitos filosficos da gnese

    do Mundo

    Difcil se torna separar estes mitos da gnese do

    Mundo e dos deues, dado que se interpenetram, se cru-

    zam. Como a mente humana gosta de organizar e arru-

    mar, a cada passo forando as fronteiras, faamos esse

    esforo, embora com a conscincia de que os mitos r-

    cos so liana que com muita frequncia aos outros se

    enlaam indelevelmente.

    Segundo os fragmentos rcos, enquanto a Terra-

    Me dormia, Urano olha-a com ternura e sobre as suas

    fendas mais secretas faz cair a chuva frtil. E foi assimque a Terra gerou as rvores, plantas e ores, os animais

    e as aves.

    Mas essa chuva fez ainda correr os rios que, en-

    chendo os lugares mais cncavos, originaram os lagos e

    os mares (cf. fr. 86).Depois surgiram os deuses por uma personicao

    sucessiva dos fenmenos e acidentes da natureza, at ao

    aparecimento e armao dos deuses olmpicos.

    O mito Olmpico da gnese das coisas e dos seres,

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    de que depois vai derivar o mito losco, tem uma das

    primeiras formulaes na Teogonia de Hesodo. Assim

    comea a narrao da criao do mundo, dos deuses e

    dos homens (vv. 116-138):Primeiro que tudo houve o Caos, e depoisa Terra de peito ingente, suporte inabalvel de tudo quan-to [existe,e Eros, o mais belo entre os deuses imortais,

    que amolece os membros e, no peito de todos os homense [deuses,domina o esprito e a vontade esclarecida.Do Caos nasceram o rebo e a negra Noitee da Noite, por sua vez, o ter e o Dia.A Terra gerou primeiro o Cu constelado,com o seu tamanho, para que a cobrisse por todoe fosse para sempre a manso segura dos deuses bem-

    [aventurados.Gerou ainda as altas Montanhas, morada aprazveldas deusas Ninfas, que habitam os montes cercados devales.Ela gerou ainda o plago estril, de ondas impetuosas,o Mar, sem o desejo do amor. Mas em seguidada ligao com o Cu gerou Oceano, de profundos rede-

    moinhos,e Coios, Crios, Hiprion e Jpeto,Teia, Reia, Tmis e Mnemsine,Febe de urea coroa e a amorosa Ttis.E depois destes nasceu o bem armado Cronos, de funestos

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    [pensamentos,o mais terrvel dos lhos, que detestou o pai orescente.28

    Hesodo (Teogonia 139-146) d-nos ainda, como -

    lhos da Terra e de Urano, os trs temveis Ciclopes (cujo

    nome signica de olhos redondos ou em crculo), com

    um s olho na testa, ferreiros de prosso e construto-

    res de muros colossais: Estropes (raio), Brontes (tro-vo) e Arges (relmpago)29. Alm destes, Hesodo

    ainda atribui unio de Geia com Urano mais os seguin-

    tes trs lhos, com forma semi-humana, gigantes de cem

    mos e cinquenta cabeas (vv. 147-153): Coto (antepassa-

    do epnimo dos Cotos), Giges (lho da terra) ou Gigas(gigante), Briareu (forte) ou geon (cf. Ilada 1. 403).

    Todos, Ciclopes e Gigantes, constituem uma descendn-

    28 - A traduo dos versos 116-130 de M. H. RochaPereira, Hlade (Porto, 92003), p. 108. A dos restantes minha.

    29 - So estes gigantes que mais tarde daro a Zeus, emrecompensa de ele os ter libertado da priso em que Urano ocolocara (Teogonia 154-159), o raio e o trovo como smbolosdo poder do deus (vv. 141 e 501-506).

    Teriam sido os lhos destes trs ciclopes que Ulisses teve de en-

    frentar no Canto 9 da Odisseia (vv.106-566). Cf. ainda Apolodoro

    3. 10. 4.

    A tradio dizia que os fantasmas dos Ciclopes habita-vam nas cavernas do Etna. -lhes atribuda a construo dosmuros colossais dos tempos micnicos. Cf. Apolodoro 1. 1-2

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    cia terrvel que o pai detestava.

    O conhecido texto de Hesodo acima transcrito

    que termina com a enumerao dos lhos de Geia ou

    Terra e Urano ou Cu, constituda por seis Tits (Oce-

    ano, Coios, Crios, Hiprion, Jpeto e Cronos) e outras

    tantas Titnides (Teia, Reia, Tmis, Mnemsine, Febe e

    Ttis) merece-nos algumas observaes. O trecho con-

    tm uma srie de nomes, em especial a partir do mo-

    mento em que se fala da descendncia da Terra. Estamos

    perante a poesia de catlogo, to caracterstica da poca

    arcaica grega e que ocupa parte fundamental em Heso-

    do. Podemos inclusive armar que a Teogonia quase no

    nos d mais do que genealogias dos deuses, de modoque, durante largos passos, temos apenas sries de no-

    mes. Como exemplos mais signicativos rero os Cat-

    logos das Musas (vv.77 sqq.), das Nereidas (vv.240 sqq.)

    e das Ocenides (vv. 346 sqq) respectivamente as

    lhas de Nereu e Dris ou Ddiva e de Oceano e Ttis.Os dois ltimos catlogos so praticamente constitudos

    apenas por uma sucesso de cinquenta e quarenta no-

    mes prprios, respectivamente, a que uma por outra vez

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    se junta um epteto e pouco mais30. Das Titnides talvez

    meream ser destacadas Tmis e Mnemsine, como sm-

    bolos, respectivamente, do poder da Ordem do mundo,

    da lei e do equilbrio eterno (Tmis); do poder do Esp-

    rito ou Memria que garante a vitria do esprito sobre

    a matria instantnea e fundamenta toda a inteligncia

    (Mnemsine), como sublinha P. Grimal31.

    Em outra observao pretendo sublinhar que estas

    primeiras divindades, bem como as de geraes subse-

    quentes, se so seres divinos, aparecem ao mesmo tem-

    po como foras elementares, fenmenos ou acidentes

    da natureza, caracterstica naturalista que muitas delas

    continuaro a manter ao longo dos tempos: Terra, Cu,Mar, Montanhas, Oceano, Ttis, Hiprion, Sol (ou H-

    lios), Lua (Selene), Aurora (Eos) estes trs ltimos per-

    sonicaes do fogo astral e lhos da titnide Teia e do

    Tit Hiprion32.

    Feita j referncia especial a Oceano e a Ttis, os

    30 - Vide B. Snell,A descoberta do esprito, p.67.31 -A Mitologia Grega (trad. port. Lisboa, 1989), p. 35.32 - Note-se que Hiprion tambm, juntamente com

    Hlios, deus-Sol e etimologicamente parece signicar o quecaminha nas alturas (se derivado de hyper in, ou o deusque est por cima, se relacionado apenas com hyper.

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    dois personicao da gua Ttis a simbolizar a po-

    tncia feminina do Mar e Oceano a personicar a gua

    primordial que rodeava o Mundo, de que nasciam ou

    eram alimentados os rios fontes e sobre a qual utuava

    a Terra habitada , sublinhe-se agora tambm a relao

    com fenmenos da natureza existente nos trs temveis

    Ciclopes acima referidos, nascidos da Terra e de Urano,

    que, alm de ferreiros de prosso e construtores de mu-

    ros colossais, personicavam trs aspectos das trovoa-

    das: Estropes (o raio), Arges (o relmpago) e Brontes (o

    trovo)33.

    A Me-Terra gerou ainda, com forma semi-humana,

    os seres das cem mos, os Hacatonquiros: Coto (antepas-sado epnimo dos Cotos), Giges (lho da terra) ou Gigas

    (gigante), Briareu (forte) ou geon (cf. Ilada 1. 403)34.

    33 - So estes gigantes que mais tarde daro a Zeus, emrecompensa de ele os ter libertado da priso em que Urano ocolocara (Teogonia 154-159), o raio e o trovo como smbolosdo poder do deus (vv. 141 e 501-506).

    Teriam sido os lhos destes trs ciclopes que Ulisses teve de en-

    frentar no Canto 9 da Odisseia (vv.106-566). Cf. ainda Apolodoro

    3. 10. 4.

    A tradio dizia que os fantasmas dos Ciclopes habitavamnas cavernas do Etna. -lhes atribuda a construo das mu-ralhas colossais dos tempos micnicos. Cf. Apolodoro 1. 1-2

    34 - Cf. Apolodoro 1. 1-2; Eurpides, Crisipo; Lucrcio 1.250; 2. 991 sqq.

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    Podemos quase dizer que, na Teogonia, Hesodo v

    deuses em tudo o que se lhe apresenta como vivo na na-

    tureza e acredita nos poderes divinos. Se no tivesse f

    nos deuses que descreve, toda a Teogonia no teria senti-

    do. Ele quer escrever com os nomes divinos o que existe,

    vive e tem signicado no mundo35. como se assistsse-

    mos anal a uma individualizao e personicao su-

    cessiva dos elementos, dos fenmenos e foras da natu-

    reza, dos acidentes fsicos da Terra at nos encontrarmos

    na presena de deuses. Da que possamos concluir que

    Hesodo faz preceder Teogonia uma Cosmogonia, ra-

    cionalizando assim a criao do Mundo36.

    Uma terceira observao diz respeito ao sentido eevoluo das descendncias destes deuses primordiais.

    A Teogonia distingue duas linhagens distintas:

    uma consagra o que h de negativo, sombrio, malco,

    violento e encontra-se personicada na descendncia da

    Noite e do rebo; a outra simbolizada nos mitos deUrano, Cronos, Zeus caminha no sentido da ordem e

    da justia, eliminando e separando com o tempo o que35 - Vide B. Snell,A descoberta do esprito, p.72.36 - Vide G. S. Kirk, The Sructure and Aim of the The-

    ogony in Hesiodo et son inuence (Entretiens Fondation HardtVII), p. 91.

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    temvel e negativo. Vejamos cada uma delas com mais

    pormenor.

    No incio havia a negra Noite e rebo, que seu

    irmo, as duas faces das trevas do Mundo: respectiva-

    mente, as das partes superiores e as das partes subter-

    rneas e inferiores. Os dois so entidades do Caos que,

    como observa Pierre Grimal, no o vazio inexistente

    e negativo dos fsicos e dos sbios, mas um vazio que

    todo ele poder e matriz do mundo37. Embora esse

    classicista francs considere que se trata de um vazio

    por inorganizao e no por privao, vazio porque in-

    descritvel e no porque no nada. Eu diria antes que

    o Caos nada potencial, vazio que contm em si todas aspotencialidades de que se gera e faz o mundo.

    A Noite comea por dar origem ao ter que

    a luz brilhante e o fogo mais puro e ao Dia, luz dos

    mortais. Depois, a gerao da Noite caminha sempre no

    sentido da personicao do negativo: Destino, Keres,Morte38 , Sarcasmo, Misria, as Parcas, Inveja, Engano,

    37 -A Mitologia Grega (Lisboa, 1989), p. 32.38 - So trs palavras que se referem morte. Mas em

    Hesodo trs diferentes palavras designam trs diferentescoisas. Vide M. L. West, Hesiod, Theogony (Oxford, 1966, repr.1988), p. 207 ad l. 140.

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    Velhice, ris ou Luta que, por sua vez, gera Fadiga, Es-

    quecimento, Fome, Dor, Combates, Massacres, Homic-

    dios, Querelas, Mentiras, Disputas, Desordem, Desvario,

    e muitas outras personicaes e guras que se apresen-

    tam sempre como ms e hostis na vida e na sociedade.

    Na outra linhagem, assistimos a uma sucesso de

    soberanos dos cus que se mutilam e destronam at que

    Zeus assume o poder e impe a justia. A actuao de

    Urano e Cronos comea por ser violenta e cruel, mas

    com a ascenso de Zeus ao poder as coisas alteram-se39.

    Terrveis, como vimos, eram os lhos gerados pela

    Terra e Cu (Urano), diz Hesodo (Teogonia 154-160), e

    por eles sentia o pai rancor, desde o primeiro dia. Porisso, mal nasciam ocultava-os nas entranhas da Terra,

    sem deixar que vissem a luz do dia.Quantos tinham nascido da Terra e do Cu,os mais temveis lhos, todos odiaram o seu progenitor,desde o incio. Pois, quando estavam prestes a nascer,logoos escondia a todos e os privava da luz,nas entranhas da Terra. Este feito hediondo comprazia-oa [ele,o Cu; mas, ela, a enorme Terra, gemia, com as entranhascheias, e concebeu uma cruel e prda vingana.

    39 - Vide B. Snell,A descoberta do esprito, pp.75-76.

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    E enquanto Urano se comprazia na sua malvadez,

    a Me-Terra nas suas profundezas gemia, e concebeu,

    urdiu um ardil prdo e cruel, criando o branco ferro e

    com ele fazendo uma podoa, com a qual incitou os lhos

    a ajud-la a punir a insolente crueldade do pai. Peran-

    te o receio de todos os outros, Cronos de pensamentos

    tortuosos, o mais novo dos Tits, ofereceu-se para co-

    laborar no castigo. Uma noite em que Urano, amoroso,

    envolvia a Terra, com a podoa corta-lhe os rgos geni-

    tais que lana para trs de si. Dos salpicos de sangue que

    caram na Terra nasceram as Ernias ou Frias, as Mlias

    ou Melades (as Ninfas dos Freixos) e os Gigantes; dos

    rgos que caram ou atingiram o mar comea a surgiruma espuma de que nasce Afrodite a deusa da seduo

    e do amor.

    E Cronos, o mais novo dos Tits, passou a reinar

    e casa com a Titnide Reia. Mas no teve um compor-

    tamento menos cruel do que o de Urano. Da sua uniocom Reia nasceram vrios lhos gloriosos. Vejamos o

    texto de Hesodo (vv. 454-458):Hstia, Demter e Hera de douradas sandlias,O poderoso Hades que, sob a terra tem a sua morada,com corao implacvel; e o altissonante deus que abala a

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    [terrae o prudente Zeus, pai dos deuses e dos homens,

    sob cujo trovo treme tambm a vasta terra.

    Mas, ao ter conhecimento por Gaia e Urano (a Ter-

    ra e o Cu) de que seria superado por um dos lhos, pas-

    sou a engoli-los nascena, at que Reia, ao chegar a vez

    de Zeus, foi suplicar aos pais, Gaia e Urano constelado,

    que a ajudassem a castigar a insolncia de Cronos e a sal-

    var o lho. Predisseram-lhe eles o destino do Uranida e

    aconselharam-na a enviar, por um lado, o lho Zeus, que

    Saturno, de GoyaSaturno, de Rubens

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    ia nascer, para Creta onde a prpria Terra que o recebe

    para o alimentar e criar na vasta Creta (v. 480); por

    outro, a envolver em faixas uma pedra para a entregar,

    em vez do lho, a Cronos que, no detectando o dolo,

    devora essa pedra que a divina consorte lhe entrega.

    Reia protegeu a infncia de Zeus, escondendo-o

    numa caverna em Creta e entregando-o aos cuidados

    das Ninfas e dos Curetas que, com o barulho das suas

    danas e escudos, encobriam os vagidos do recem-nasci-do. Alimentado a pela cabra Amalteia, quando ela mor-

    reu, Zeus conservou a sua pele e com ela fez mais tarde

    uma couraa, a gide ou pele de cabra (do substantivo

    grego aix, aigs cabra); um dos seus chifres foi trans-

    Reia e Cronos. Relevo Romano

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    formado na cornucpia da Abundncia.

    Ninfa alimenta Zeus e Curetas danam

    Entretanto Zeus crescia em Creta e tornou-se vigo-

    roso. Ao chegar idade adulta, tentou destronar Cronospor meio da astcia, propinando-lhe uma droga que o

    fez vomitar os lhos devorados. Assim descreve a cena

    Hesodo, na Teogonia (vv. 492-500):Rpidos cresciam depois o vigor e os gloriosos membrosdo prncipe. Com o decorrer dos anos,

    enganado por sucessivos conselhos dolosos de Geia,lana fora a prole o grande Cronos de tortuosos [pensa-mentos,vencido pelas artes e fora do seu lho.Primeiro vomitou a pedra, devorada em ltimo lugar.Cravou-a Zeus sobre a terra de largas vias,em Delfos divino, nos vales junto ao Parnasso,

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    memria para o futuro e maravilha para os mortais.

    Com o apoio dos irmos libertados, Zeus declara

    guerra a Cronos que de imediato ajudado pelos outros

    Tits. Assim se inicia a Titanomaquia que dura dez anos,

    at ao momento em que Gaia revela ao Crnida que ob-

    teria a vitria, se libertasse os lhos que Urano encerrara

    no Trtaro e Cronos mantinha presos os Ciclopes e

    os Hecatonquiros ou Gigantes das cinquenta cabeas e

    cem braos (vv. 501-506 e 617-628). Foi com a sua ajuda

    e colaborao dos outros Crnidas que Zeus conseguiu

    vencer: agrilhoou Cronos e os outros Tits, encerrando-

    os no Trtaro. Ento, por conselho de Gaia, os outros

    Olmpicos exortaram Zeus de olhar distante a tomar opoder a a tornar-se soberano dos imortais. E foi tambm

    por sugesto de Gaia que o Crnida distribuiu entre os

    deuses olmpicos as honras e competncias de cada um

    deles (Hesodo, Teogonia 881-885).E quando os deuses bem-aventurados terminaram a sua

    [tarefae decidiram, pela fora, as competncias dos Tits,ento, pediram, por sugesto da Terra,a Zeus Olmpico que v ao longe, que fosse soberano e[reinassesobre os Imortais. E ele xou-lhes as suas competncias.

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    E assim a Titanomaquia substitui no poder os deu-

    ses primordiais, lhos de Gaia e de Urano, pelos Olmpi-

    cos os lhos de Cronos e de Reia.

    De qualquer modo, em Hesodo, a substituio de

    Urano por Cronos e deste por Zeus no aparece apenas

    como uma sucesso violenta. antes um caminho ascen-

    sional para a ordem estabelecida por Zeus que se identi-

    ca com o triunfo da Justia40.

    Assim, na opinio de Hesodo, Urano e Cronos

    foram derrotados como castigo da sua violncia e injus-

    tia. Zeus mostrou-se justo desde o comeo e por isso o

    seu reinado foi duradouro.

    40 - Vide A. Lesky, Griechischer Mythos und VordererOrient, Gesamente Schriften, pp.379-400.

    A Titanomaquia, Vaso do Pintor de Brigos.Museu de Berlim

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    Na Teogonia, a justia e a ordem, rmes e constan-

    tes, impostas por Zeus, aparecem por todo o poema. So

    o fundamento das consideraes religiosas do poeta.

    Zeus assim o que estabelece a justia, o que repartiu

    por igual todas as coisas entre os deuses e xou a cada

    um suas honras. E a ideia de Zeus como ordenador justo

    ainda ter mais relevo nos Trabalhos e Dias do que tem

    na Teogonia.41

    Em concluso, como levam a pensar os desenvol-

    vimentos cosmognicos da Teogonia , Hesodo ocupa-se

    das relaes dos deuses e deusas entre si e com poderes

    mais primitivos, mas procura dar-lhes alguma ordem e

    fundamentar a autoridade e grandeza de Zeus, com basenuma relao de Justia.

    Encontramos no Prximo Oriente mitos que nar-

    ram uma evoluo e relao semelhantes na sucesso

    dos soberanos dos cus: por exemplo, nos arquivos hiti-tas apareceram textos (que se podem datar de 1400-1200

    a.C.), como o Poema de Kumarbi e a Cano de Ulikumini;

    textos babilnicos, como os poemas Atramhasis , da pri-

    41 - Vide B. Snell,A descoberta do esprito, p.74-77.

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    meira metade do segundo milnio, e Enuma Elish , da-

    tvel talvez de c. 1125-1103 a.C.; verses hurrticas com

    idnticas narraes, que so anteriores a meados do se-

    gundo milnio a.C. Por outro lado, a histria de Hesodo

    da castrao de Urano por Cronos, que termina a sua

    unio com Gaia, apresenta paralelismos com a narrao

    hitita de Kumarbi e com a teogonia fencia, a de San-

    chuniathon, preservada por Flon de Alexandria que, no

    entanto, apresentam ambos uma gerao anterior do

    deus-cu42.

    evidente que surge sempre a tentao de pergun-

    tar que relao podem ter s dados colhidos nos Poemas

    Homricos, acima referidos, e a narrao de Hesodocom essas verses:

    Acaso inuncia oriental no mito grego se en-

    contra reectida nos Poemas Homricos, na importncia

    dada a Oceano e a Ttis?43

    Ser que vestgios da sucesso violenta dos so-beranos dos deuses sobrevivem em Hesodo?44

    42 - Alguns destes poemas so abordados com maispormenor no ltimo captulo.

    43 - Vide Lesky, Thalaa (Viena, 1947), pp. 64-66 e 80-85 ; W. Burkert, Die orientalisierende Epoche (), pp. 88 sqq.

    44 - Vide J. Rudhardt, Le Thme de l eau primordiale dans

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    E o conhecimento dessas narraes por Hesodo

    seria obtido atravs do pai que era originrio da sia

    Menor?

    Viria por transmisso dos Fencios?

    E por que razo pensar em dbito de Hesodo

    ou em inuncia nele por parte desses textos ou mitos?

    Devemos recordar-nos que a faixa costeira da sia

    Menor nunca foi hitita; que a ocupao inica s se torna

    denitiva por 800 a.C.; que no so muitas as certezas

    quanto ao papel dos Fencios.

    No ser mais sensato pensar que a tentativa de

    codicao das lendas sobre a geraes divinas prime-

    vas comum a vrios povos? Que tanto a Teogonia deHesodo como os textos ou poemas do Prximo Oriente

    se liam nesse imenso caudal que procura explicar a ori-

    gem do mundo de uma maneira mais ou menos coerente

    ao pensamento humano dessas pocas?45

    Vejamos agora a explicao para a origem do mun-

    do e dos deuses que dada por Ovdio nasMetamorfo-la mythologie grecque (Bern, 1971), pp. 52 sqq.

    45 - Vide Kirk, The Structure and Aim of Theogony,in Hsiode et son inuence, (Fondation Hardt, Vandoeuvres-Genve, 1960), pp. 63-95.

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    ses 1. 5-75. Segundo o Sulmonense, de incio havia uma

    massa informa, confusa e desordenada o Caos um

    amontoamento de germens mal unidos e discordantes

    que nem era terra, nem ar, nem gua, mas tudo isso mis-

    turado. No havia ainda divindades, nem Tits; a Terra

    no estava ainda suspensa no ar nem em equilbrio; no

    a envolviam as guas (vv. 15-20):

    Mas ainda que houvesse ali terra, e mar, e atmosfera,a terra era ento instvel, as ondas no navegveis,e a atmosfera sem luz. Nada conservava a sua forma,cada coisa opunha-se outra, pois num mesmo corpoo frio guerreava o quente, o hmido lutava com o seco,o mole com o duro, o peso com a ausncia de peso.

    Um deus Ovdio no o nomeia, embora em ou-

    tros locais lhe chame fabricator e opifex rerum , talvez o

    Demiurgo ou Ordenador dos Esticos, separou do cu as

    terras e estas das guas, dividiu tambm o cu lmpido

    do ar espesso (vv. 22-23), separou os diversos elementos

    (vv. 24-31):Aps os ter desembaraado e extrado da escura massa,uniu cada um ao seu lugar, em harmoniosa paz.O fogo, a energia impondervel do cu convexo, ps-sea brilhar e fez para si um lugar no ponto mais alto.O que lhe mais prximo, pelo lugar e em leveza, o ar.A terra, mais densa que eles, arrastou partculas maiores,

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    e o seu peso puxou-a para baixo. A gua, uindo volta,tomou posse do ltimo espao e connou o disco slido.

    Separados os diversos elementos que constituam

    a massa informe inicial, o deus ou Fabricator deu for-

    ma redonda terra e nela separou as foras ou fenme-

    nos da natureza: assentou, nos seus devidos lugares, as

    nvoas e as nuvens, os raios e os troves, os ventos e astempestades; formou os mares e as praias, as fontes e os

    rios, os lagos e as lagoas; estendeu as plancies e cavou

    os vales; elevou os montes e encheu de folhas as orestas

    (vv. 34-60). Depois de todo este assentamento termina-

    do, ou de tudo ordenado, aparecem a luz celeste, ou oter purssimo, e os astros, os seres vivos e os animais

    (vv. 67-75):Sobre tudo isto colocou o ter purssimo, desprovidode peso, livre de quaisquer resduos impuros da terra.Mal tudo assim compartimentara com limites precisos,quando as estrelas, h muito oprimidas por uma nvoa

    impenetrvel, desataram a fervilhar por todo o cu.E para que regio alguma casse sem os seus seres vivos,os astros e as formas de deuses ocupam o solo celeste,as ondas couberam aos reluzentes peixes para l viverem,a terra acolheu os animais silvestres, o mvel ar as aves.

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    Se estivemos com ateno, demos conta de que,

    nestas lutas pelo domnio do Universo, entre foras mais

    primitivas e violentes e outras mais evoludas e j do-

    minadas pelo sentido de justia, ainda se no falou do

    homem. Tudo se passa num plano superior, entre for-

    as divinas, num plano csmico, se assim se entender. O

    homem aparecer mais tarde, modelado por Prometeu,

    lho de Jpeto com autorizao dos deuses, a cuja ori-

    gem e evoluo acabmos de assistir. E Prometeu faz o

    homem imagem dos deuses e moldando-o com argila e

    gua de Panopeia, na Fcida. Moldados os homens, Ate-

    na insua-lhes vida. E esse aparecimento e evoluo

    nem sempre paccos e por vezes atribulados e sofridos ser o assunto do prximo estudo ou captulo.

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    A . O D

    I

    Ficava ainda por explicar a presena dos homens

    no universo. A sua criao, geralmente, no aparece atri-

    buda linha de Cronos, mas deriva de um outro Tit,

    Jpeto, e da ninfa Clmene na verso mais conhecida,

    embora a me varie em outras verses46. Da unio nasce-

    ram quatro lhos, Atlas, Mencio, Prometeu e Epimeteu

    (Hesodo, Teogonia 507-616). Interessam-nos aqui Prome-

    teu e Epimeteu, o Previdente e o Inbil ou Desas-

    trado. Mas no deixarei de fazer uma meno, rpida,

    aos dois mais velhos, Atlas e Mencio, ambos castigadospor Zeus por terem tomado o partido dos Tits.

    Uma anotao mais longa, embora breve, sobre

    Atlas. Na Titanomaquia, luta ao lutar ao lado de Cronos

    e dos Tits. Com a vitria dos Olmpicos, recebe de Zeus

    pesada condenao: sustentar, de p, o cu para sempre,nos limites extremos do mundo ocidental, em frente ao

    jardim das trs Hesprides, as donzelas dos pomos de

    46 - A me varia conforme as verses: por exemplo, emApolodoro, Biblioteca 2. 3 (cf. texto 13), ela a ocenide sia.A mais citada tadavia a ninfa Clmene.

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    ouro jardim que aparece situado no Extremo Ociden-

    te e os nomes das donzelas identicam-nas com o pr-

    do-sol47. E a cou para sempre, salvo no momento em

    que Hracles o substituiu para ele lhe ir buscar as mas

    de ouro das Hesprides, que estavam guardadas pela

    Serpente, lha de Frcis e Keto (Hesodo, Teogonia 333-

    335). Talvez esse Jardim, como interpretam alguns, seja

    um smbolo do paraso e as mas de ouro uma espcie

    de salvo-conduto para l entrar.

    Mais tarde, ao passar pelo stio onde Atlas segura-

    va o Cu, Perseu mostra-lhe a cabea de Medusa e petri-

    ca-o na cordilheira do Atlas que atravessa a frica48.

    47 - Cf. Odisseia 1. 52-54; Hesodo, Teogonia 507 sqq.;Higino, Fbulas 150.

    48 - Cf. Diodoro Sculo 4. 27; Apolodoro 2. 5. 11; Ov-dio,Metamorfoses 4. 630-662.

    Atlas suporta o Mundo (poca romana tardia)

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    P

    Prometeu, mais avisado, colocou-se do lado dos

    Olmpicos, como o seu irmo Epimeteu. Alis, como o

    seu prprio nome indica (grego Prometeus relaciona-

    do commanthano aprender, conhecer), era previdente

    e conseguia um conhecimento antecipados das coisas.

    Com ele contrasta Epimeteu, o irmo, por ser inbil,

    desastrado, alis como sugere o seu nome.

    Apesar do apoio aos Olmpicos e a Zeus que os

    liderou Prometeu protagoniza com o pai dos homens

    e dos deuses relaes nem sempre amistosas ou mesmo

    paccas, at mais vezes conituosas. Com frequncia

    tal acontece para ajudar ou proteger os homens.Precisamente na primeira verso ou cristalizao

    do mito que conhecemos a de Hesodo por amor

    aos homens e para os beneciar que ele engana Zeus:

    durante um sacrifcio solene que assinalava o momen-

    to da separao de homens e deuses, divide um boi emduas partes: numa esconde no estmago a carne e en-

    tranhas e cobre-as com pele; na outra coloca os ossos

    disfarados por uma camada de gordura. Disse a Zeus

    que escolhesse e o deus, apesar de ter detectado o logro,

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    decide-se pela segunda (cf. Hesodo, Teogonia 535-557).

    Deste modo se explica tambm etiologicamente a razo

    de os Gregos, nos sacrifcios, queimarem aos deuses os-

    sos e gordura e destinarem a carne e as vsceras a serem

    assadas para um banquete pblico dos que participam

    na cerimnia religiosa. evidente que, para este proce-

    dimento dos Gregos, h subjacentes explicaes de m-

    bito econmico e social.

    Vendo o logro, Zeus irritou-se com os homens

    e com Prometeu. Para os castigar retirou-lhes o fogo,

    sentenciando, segundo as palavras do irnico Luciano:

    Que comam a carne crua49.

    Prometeu auxilia-os de novo, roubando o fogo daroda do Sol ou da roda de Hefestos e levando-o para a

    terra, escondido no caule de uma frula (canafrecha ou

    caule oco de sabugueiro ou funcho gigante).

    Zeus ento foi mais drstico na punio que atinge

    ao mesmo tempo mortais e Prometeu. Aos homens en-viou uma criatura feita pelos deuses e que era, portan-

    to, uma ddiva de todos eles Pandora. A Prometeu,

    prendeu-o com grilhes de ao no cimo do Cucaso e de-

    49 - Cf. Hesodo, Teogonia 521-564; Luciano, Dilogosentre Deuses1 e Prometeu no Cucaso 3.

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    terminou que todos os dias uma guia lhe fosse comen-

    do o fgado, que se renovava incessantemente durante

    a noite. Zeus teria jurado que jamais o libertaria. Mas

    Hracles, passando por l, matou a guia com uma seta.

    Zeus cou orgulhoso com o feito do lho, mas, para no

    quebrar o juramento, obrigou Prometeu a usar um anel

    de ferro das grilhetas agarrado a um pedao de pedra.

    Com este mito, que ganhou notoriedade em todo o

    mundo, procuravam os Gregos explicar o aparecimento

    do fogo na terra. Alm disso, Prometeu tornou-se ainda

    smbolo de diversos ideais.

    Vimos j que Prometeu possua dons de adivinhar

    ou de prever o futuro. Foi ele que disse a Hracles comoapoderar-se das mas de ouro, ensinando-lhe que s

    Atlas poderia colh-las no Jardim das Hesprides. Foi

    Prometeu que decifrou a Zeus um antigo orculo rela-

    cionado com Mtis: anunciava que ela geraria um lho

    mais poderoso do que o progenitor e que o Crnida, por-tanto, se com ela casasse, viria a ser por esse lho destro-

    nado e destitudo do governo dos cus.

    De incio sem o dom de imortalidade, Prometeu

    recebeu-a do centauro Quron, ao trocar com ele a sua

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    condio de mortal. Ferido por uma seta de Hracles o

    arco infalvel e as setas mortferas devido ao veneno da

    Hidra de Lerna , o Centauro no podia suportar a dor

    e desejava morrer. Imortal que era, necessitava todavia

    que algum homem ou mortal aceitasse trocar a sua con-

    dio pela sua imortalidade de Quron. Prometeu fez-lhe

    esse favor e Zeus sanciona a troca, at por ter acabado de

    obter do lho de Jpeto um grande servio: a decifrao

    de antigo orculo que o vai desviar do casamento que

    tinha projectado com Mtis, a que acima se aludiu. E as-

    sim o Japetida adquire a imortalidade.

    Apontadas as linhas gerais do mito de Prometeu,

    vejamos agora a verso que nos aparece nos poemas deHesodo Teogonia e Trabalhos e Dias, a primeira vez que o

    encontramos e precisamente com Jpeto e Clmene como

    seus pais. Em ambos os poemas a narrao associa-o,

    embora sem culpa s se ela vier de no ter conseguido

    que o irmo Epimeteu recusasse a ddiva de Zeus , aoaparecimento da primeira mulher.

    A narrao, tanto na Teogonia (vv. 507 sqq.) como

    nos Trabalhos e Dias (vv. 47-105), comea com o castigo

    do protector dos homens: Zeus a amarr-lo a uma co-

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    luna com grilhes e enviar-lhe diariamente uma guia

    para lhe devorar o fgado, com a sua consequente liber-

    tao por obra de Hrcules (vv. 521-534):A Prometeu frtil em engenhos prendeu-o com indestru-tveis [laose dolorosas correntes colocadas no meio de uma coluna.Depois, lanou contra ele uma guia de longas asas; ela[comia-lheo fgado imortal, e ele crescia outra vez, todas

    as noites, em tudo igual ao que, no dia anterior, comera aave [de asas velozes.Mas o valente lho de Alcmena de belos tornozelos,Hracles, matou-a, e afastou este terrvel agelodo lho de Jpeto, libertando-o dos seus tormentos,com o consentimento de Zeus Olmpico de trono sublime,para que fosse ainda maior a glria de Hracles, nascido

    em [Tebas,que j antes se estendia sobre a terra que tudo produz.Agindo assim, ele honrou o seu nobre lhoe, embora irritado, cessou a clera que antes sentia,por ele ter discordado dos desgnios do poderoso lho de[Cronos.

    Como razo para esse castigo de Zeus, Hesodoaponta (vv. 535 sqq.) o dolo contra Zeus que Prometeu

    arquitecta, durante o sacrifcio de um boi que prepara

    no momento em que homens e deuses se separaram em

    Mecona: as duas partes em que divide o animal, a das

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    carnes e entranhas gordas, escondidas no estmago e

    sob a pele, e a dos ossos disfarados com gordura; o con-

    vite a Zeus para escolher e a opo do pai dos homens

    e dos deuses pela ltima, apesar de ter percebido e no

    ignorasse o engano, ele que conhece os desgnios imor-

    tais (vv. 553-557):Com ambas as mos levantou a branca gordura.

    Ao mesmo tempo, enfureceu-se-lhe o esprito e a iraencheu-[lhe o corao,quando viu os ossos brancos do boi, num prdo ardil.Desde ento, a raa dos homens que habita a terraqueima aos Imortais os ossos brancos, sobre altares [fume-gantes.

    Se o mito pretende ser uma explicao etiolgica,como vimos, para o facto de os Gregos nos sacrifcios

    queimarem os ossos para os deuses e assarem as carnes e

    vsceras para as distribuir em banquete pblico aos par-

    ticipantes na cerimnia religiosa, a consequncia, para

    os homens, desta atitude de Prometeu foi o castigo a queZeus os condenou, ao recusar o envio do fogo aos mor-

    tais. Mas mais uma vez o lho de Jpeto soube enganar o

    pai dos homens e dos deuses, roubando o fogo e trazen-

    do-o no interior de uma frula (vv. 565-569):

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    Mas o nobre lho de Jpeto iludiu-o,roubando o brilho do fogo incansvel que se v ao longe

    numa cana oca. Assim, atingiu de novo o nimode Zeus que amontoa as nuvens e irritou-se-lhe o corao[querido,quando viu, no meio dos homens, o brilho do fogo que sev [ao longe.

    A consequncia dessa irritao de Zeus foi criar,

    em lugar do fogo, um mal destinado aos homens que

    seria tomado como benesse a primeira mulher. Disse a

    Hefestos que com terra amassada modelasse um ser, do-

    tado de voz e foras, com corpo belo e semelhante a uma

    virgem. Atena adornou-a e embelezou-a: veste branca,

    cingida cintura, vu admirvel na fronte, diadema de

    ouro. Pronta a obra, Zeus ofereceu-a aos homens como

    um engano, j que dela saiu a raa das delicadas mu-

    lheres, um agelo para os homens (vv.588-598):O espanto apoderou-se dos deuses imortais e dos homens[mortais

    quando viram o duro engano, irresistvel para os homens.

    Pois dela provm a raa das delicadas mulheres,agelo terrvel que habita entre os homens mortais,no companheiras da Pobreza funesta, mas da Abundn-cia.

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    Nos Trabalhos e Dias a narrao no difere substan-

    cialmente da da Teogonia, apenas se sublinha o carcter

    malco que constituir o presente da mulher para os

    homens e na alegria que em todos causar.

    Acrescenta-se tambm ao trabalho de Hefestos e

    ao magistrio de Atena, que lhe ensina as suas artes, o

    contributo de Afrodite e de Hermes a primeira a dot-

    la de graas e de desejo, o segundo a incutir-lhe a arte da

    astcia e do engano. A esta obra, que mais renada do

    que a da Teogonia, deram os deuses o nome de Pandora,

    por ser uma ddiva de todos os deuses50.

    Zeus manda Hermes oferec-la a Epimeteu e este

    recebe-a, apesar de avisado por Prometeu para no acei-tar nenhum presente vindo de Zeus. Aceita-a e, depois

    50 - O mito de Pandora uma evidente explicaodos males no mundo: proibida por Zeus de abrir a arquinhaonde o deus colocara os males, a curiosidade foi mais forte elogo os males se espalharam por todo o lado. A questo daEsperana oferece algumas diculdades. Ser ela tambm ummal, uma vez que se encontra tambm na arquinha dos ma-les? Das vrias explicaes avanadas, parece-me ter razoa de Lesky, Histria da Literatura Grega (Lisboa, 1995), p. 125,ao sugerir uma outra verso do mito em que haveria vasilhasdiferentes para os bens e para os males (cf. Ilada 24. 527).Hesodo teria procedido juno das duas vasilhas numa s.Vide M. H. Rocha Pereira, Estudos de Histria da Cultura Cls-sica. I Cultura Grega (Lisboa, 92003), pp. 164-165 e nota 25.

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    de sofrer as consequncias, compreende: antes a raa hu-

    mana vivia alheada dos males (vv.90 sqq.), mas, depois

    que Pandora destapou a arquinha, os males espalharam-

    se pelo mundo (vv. 80-95):O arauto dos deuses deu a esta mulher o nomede Pandora, porque todos os habitantes das manses do[Olimpodoaram a ddiva, runa para os homens comedores de

    po.Em seguida, concludo o engano difcil e sem remdio,at Epimeteu envia o Pai dos numes o ilustre Argeifonte,85 arauto veloz dos deuses, a levar a ddiva; e Epimeteuno se recordou de que Prometeu lhe dissera para nuncaaceitar qualquer dom vindo de Zeus Olmpico, mas lho[mandassede volta, para que no viesse qualquer mal aos homens:

    s depois de o ter recebido, quando j tinha o mal, se deu[conta.90 Antes de facto habitava sobre a terra a raa dos ho-mens,a resguardo de males, sem a penosa fadiga92 e sem dolorosas doenas que aos homens trazem amorte.

    94 Mas a mulhe, levanta com a mo a grande tampa dajarra,95 e dispersou-os e ocasionou aos mortais penosas fadi-gas.

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    E desta forma Hesodo responsabiliza Pandora por

    todos os males que assediam o homem, pelas doenas

    que trazem a morte em ltima anlise pela mortalida-

    de humana.

    A Ilada, no conhecido episdio da ida de Pramo

    tenda de Aquiles para solicitar a devoluo do corpo do

    lho, parece ter tambm subjacente esta verso da jarra

    ou arca dos males, mas associa-lhe outra com as coisas

    boas ou bnos (24. 525-533):Pois deste modo aram os deuses para os mseros mor-tais:viverem entre aies. Eles, porm, vivem sem cuidados. que duas vasilhas jazem no solo de Zeus,com os dons: um contm os males que nos do e o outroos [bens.A quem Zeus tonitruante mistura a ddiva,esse encontra ora o que mau ora o que bom.Mas quele a quem d s desgraas, torna-o amaldioado,e a funesta demncia arrasta-o pela terra divinae vagueia sem ser honrado quer por deuses, quer por[mortais.

    A verso da Ilada alude apenas s duas arcas, uma

    com os males e outra com os bens, sem mencionar Pan-

    dora. Todavia possvel que o mito de Hesodo tenha

    simplicado a verso mais corrente que contemplava as

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    duas arcas, pertencendo a esperana dos bens. Assim

    na verso dos Trabalhos e Dias de Hesodo aparece inclu-

    da entre os males, por o poeta de Ascra ter reduzido as

    duas arcas a uma s51.

    Na verso de Hesodo da criao da mulher, Pro-

    meteu no toma parte. Ela fruto da imprevidncia do

    seu irmo Epimeteu que aceita a oferta de Zeus, apesar

    de avisado a no o fazer.

    Concordo com a armao de R. Graves, de que o

    relato de Hesodo a respeito de Prometeu, Epimeteu e

    Pandora uma histria antifeminista, talvez da sua in-

    veno52.

    Pandora aparecia tambm como nome de umadeusa ctnica, por vezes identicada com Gaia, a Terra.

    possvel que tivesse comeado por ser um epteto da

    Terra-Me que tudo d e, como tal, surja representa-

    da na pintura de vrios vasos a sair da terra. Mais tar-

    de encontramo-la tambm como mensageira da Terra esmbolo da mulher (cf. Pausnias 1. 24. 7). Encontramos

    ainda Pandora como epteto da Deusa-Me Reia e com51 - Vide M. L. West, Hesiod, Works and Days (Oxford,

    1978), 169-170.52 - Os Mitos Gregos (trad. port. Lisboa, 1990, vol. I),

    cap. 39, 8, p. 133.

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    esse nome venerada em Atenas e em outras cidades53.

    Haver possvel relao entre a criao de Pando-

    ra e a de Eva, a partir da costela de Ado no Gnesis?

    geralmente aceite nas tradies de muitos povos que o

    homem existiu primeiro.

    No sculo V a. C., encontramos outra estraticao

    ou cristalizao do mito de Prometeu. Com base na ajuda

    que o Japetida d aos homens e subsequente castigo de

    Zeus, comps squilo (se a obra lhe pertence) o Prome-

    teu Agrilhoado que devia fazer parte de uma trilogia que

    ajudou o mito a espalhar-se e a ganhar notoriedade. Em

    squilo, com o nome do pai omitido, Prometeu tem porme, no Clmene, mas Gaia, identicada com Tmis. A

    pea atribui a Prometeu a ddiva do fogo e o que ino-

    vao a da esperana, nem sequer aludindo aos dados

    de Hesodo de que, em consequncia do ludbrio dos lo-

    tes do sacrifcio, Zeus havia retirado o fogo aos homens.A libertao do protagonista atribuda conjuntamente a

    Hracles e tambm ao Centauro Quron (vv. 1029-1032).53 - Cf. Hipnax 104. 48; Aristfanes,As Aves 971;

    Filstrato, Vida de Apolnio de Tiana 6. 39. Sobre Pandora e asdiversas divindades com esse epteto vide M. L. West, Hesiod.Works and Days (Oxford, 1978), pp. 164-166.

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    Na tragdia Prometeu aparece caracterizado como

    um rebelde obstinado que em nenhuma circunstncia

    cede perante o poder tirnico de Zeus. Pela sua rmeza,

    contrasta com a subservincia de Oceano, de Hermes e

    de outras divindades.

    Zeus, por seu lado, o jovem tirano, inexvel

    e ingrato, que se excede, ao dar castigo duro demais a

    Prometeu, tanto mais que este o ajudara a tornar-se Se-

    nhos do Olimpo. Tenhamos em conta que estamos nos

    primeiros tempos de Zeus como soberano dos deuses.

    Possivelmente o Crnida suavizaria, nas outras peas da

    trilogia, a sua actuao e aprenderia a perdoar.

    De qualquer modo, Prometeu a personagem maisnobre e digna da tragdia: mantm silncio enquanto o

    agrilhoam ou ante os adversrios que esto ao servio

    de Zeus. Lamentos s o solta quando ca sozinho ou na

    presena de Io, outra das vtimas de Zeus.

    Nestas verses as mais antigas do mito, as de He-

    sodo e de squilo, Prometeu aparece apenas como ben-

    feitor da humanidade e no como seu criador. Depois

    o mito evolui, recebe novas estraticaes, e o lho de

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    Jpeto comea a exercer um papel bem mais signica-

    tivo do que o de puro benfeitor da humanidade passa

    a ser frequentemente considerado como o criador dos

    homens.

    Assim em Apolodoro (1. 7. 1) e nasMetamorfoses de

    Ovdio, Prometeu teria criado os homens, modelando-o

    com lodo imagem dos deuses (1. 82 e 363). Cito o passo

    de Ovdio em que se fala da criao de um ser mais no-

    bre, mais dotado de esprito sublime e capaz de dominar

    os restantes (Metamorfoses 1. 76-88):Faltava ainda um ser vivo que fosse mais nobre e maisdotadode actos elevados e capaz de exercer domnio sobre os

    outros:assim nasceu o homem, quer o criasse com divino smeno artce das coisas, como princpio de um mundo me-lhor;quer a terra, amante e recm separada do alto ter,contivesse grmens do cu seu familiar;essa terra que o rebento de Jpeto modelou, misturando-acom guas das chuvas, at lhe dar a gura de deuses que

    tudo [governam;e enquanto os outros animais, inclinados, olham a terra,ao homem deu um rosto levantado e ordenou que olhasseo cu e que levasse o rosto erguido para os astros.Assim a terra, que antes era tosca e sem forma,revestiu-se de guras humanas desconhecidas, transfor-

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    mou-se.

    Embora Ovdio aluda ao artice das coisas (o

    opifex rerum), como criador do ser humano, em ltima

    anlise Prometeu acaba por ter papel de relevo ou deci-

    sivo mesmo no seu aparecimento. E elucidativa a forma

    como ele modela a gura humana com barro amassado

    em gua e moldando-a imagem dos deuses.

    Sedutora a comparao que se pode estabelecer

    com criao da mulher, Pandora, por Hefestos e outras

    divindades. Fascinantes tambm os paralelismos que so

    avanados e se fazem com narraes relativas ao apare-

    cimento do ser humano, quer as encontremos no AntigoTestamento (no Gnesis), quer nos textos das regies da

    sia Menor e da Mesopotmia, quer em outros povos

    variados, e que sero referidas adiante.

    D

    O tema do castigo para a degradao dos homens

    e sua actuao progressivamente injusta e a mergulhar

    na impiedade est estreitamente ligado ao Dilvio. Co-

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    nhecemos na Grcia Antiga mais do que uma calamida-

    de assim chamada: dilvios mticos gregos de Oggia, de

    Atlntida e de Deucalio.

    Abordarei os dois ltimos, ambos ligados a lhos

    ou descendentes de Jpeto. A anotao relativa ao de

    Atlntida ser mais abreviada. Conhecedor dos segredos

    profundos do mar, Atlas governava em um reino exten-

    so, mais vasto do que a frica e a sia Menor juntas, que

    cava para l das Colunas de Hracles, ou seja em pleno

    Atlntico actual. Era a famosa e enigmtica Atlntida, de

    que fala Plato no Timeu 24d-25d e no Crtias 9-10, que se

    encontraria ligada por um ada de ilhas, onde existiam

    rvores de fruto, a outro continente longnquo e no li-gado Europa54. Constitua esse reino uma cadeia de

    montanhas que o envolviam por inteiro, com excepo

    54 - Esta lenda da Atlntida pode no ser totalmentelendria e fruto da imaginao. J tem sido identicada coma ilha de Faros no Egipto, com a Lbia ocidental, com umcontinente que estaria no Atlntico. Vide R. Graves, Os MitosGregos (trad. port. Lisboa, 1990), vol. I, cap. 39, 2-5, p. 131-32. A questo da Atlntida tem sido muito discutida, j deuorigem a abundante bibliograa e uma consulta Internetlogo nos submerge com imenso caudal de portais sobre oassunto. Pierre Vidal-Naquet,A Atlntida. Pequena histria deum mito platnico (trad. port.Lisboa, Teorema, 2006) d-nosuma posio sensata sobre to complexo tema.

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    de uma abertura para o mar, tornando assim a restante

    costa de difcil acesso. Essas montanhas cercavam uma

    plancie central que o povo cultivava, a na qual construiu

    templos, palcios, termas, estdios. Como andavam em

    constantes guerras com os povos vizinhos, tanto a orien-

    te como a ocidente, e actuavam com cupidez, crueldade,

    malvadez e injustia, os deuses mandaram contra esse

    reino um cataclismo, tremores de terra e um dilvio que

    num s dia tudo submergiu, tornando a navegao im-

    possvel no mar, devido aos baixios e ao muito lodo e

    lama que a ilha depositou.

    Vejamos de seguida o Dilvio de Deucalio, umdos lhos de Prometeu. Consorciado com Celeno ou Cl-

    mene, este Japetida, alm de Deucalio, teve Lico, Qui-

    mereu e, por vezes, tambm Etneu, Hlen e Tebe. Com

    a sua capacidade de previso, conseguiu o antecipado

    conhecimento do dilvio que Zeus projectava enviarpara aniquilar a raa humana, pelo que indica ao lho

    Deucalio o modo de se salvar da catstrofe, cuja origem

    entronca no horror de Zeus pelos crimes e pela impie-

    dade dos homens ou lhos de Licon entre os quais

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    uma refeio de um jovem dada ao prprio deus que se

    disfarara de viajante e se misturara com eles para ve-

    ricar o seu grau de insolncia (Pausnias 8. 3. 1). o

    desgosto com essa violncia e injustia que o decide a

    fazer cair sobre a Terra um grande dilvio com inteno

    de eliminar toda a raa humana. Mas Deucalio, avisa-

    do por Prometeu, seu pai, constri uma arca, enche-a de

    provises e nela embarcam ele e a mulher, Pirra, lha de

    Epimeteu. o chamado Dilvio de Deucalio.

    Mas suspendamos esta narrao in medias res, para

    ver as coisas ou os dados do mito melhor diramos, as

    razes do castigo ab ovo.

    A narrao do mito em Hesodo j apresentou umaexplicao para o aparecimento dos males a aceitao

    de Pandora por Epimeteu e o acto dela em destapar a pe-

    quena arca que os deuses lhe deram. Em consequncia

    disso os homens degeneram e tornam-se progressiva-

    mente mais injustos e insolentes. Uma degradao queaparece simbolizada em outro mito o das idades dos

    metais que nos d uma decadncia constante: do ouro ao

    ferro, de uma idade feliz, sem sofrimento, que vivia em

    harmonia com os deuses e em que vigorava a lealdade e

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    a rectido, em que a primavera era permanente e a terra

    se desentranhava em produes e frutos sem cessar; a

    descida traduz-se num crescendo de violncia e numa

    cada vez menor longevidade e corporiza-se na passa-

    gem do ouro prata e desta ao bronze at uma idade do

    ferro. Ento o homem atinge a degradao mxima, no

    h crime que no cometa: no h pudor, nem sincerida-

    de, nem lealdade; antes campeiam o dolo, a traio, as

    insdias, a violncia; o roubo e a rapina so correntes, a

    hospitalidade no respeitada, os pais so maltratados

    pelos lhos, no h afecto entre irmos; o homem j no

    encontra remdio de evitar o castigo.

    O mito surge em vrios autores, com destaquepara Hesodo (Trabalhos e Dias 106-201) e Ovdio (Meta-

    morfoses 1. 89 sqq.).

    Vou abordar aqui apenas o de Hesodo, por conter

    especicidades que necessitam ser dilucidadas, a come-

    ar pelo nmero de idades ou raas que so cinco, com oacrescento da dos heris, e no quatro como aparece em

    todos os outros. Em Hesodo todavia, apesar das Cinco

    Idades e da intromisso da Raa ou Gerao dos Heris,

    o mito procura tambm exemplicar a degradao su-

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    cessiva da humanidade que vai acompanhando a des-

    cida de valor dos metais uma decadncia que aparece

    traduzida nas crescentes irreexo, insolncia e violn-

    cia e sublinhada pela ausncia do temor dos deuses, at

    um ponto em que, adiantada a idade do ferro, os proge-

    nitores sero desonrados, os hspedes desrespeitados,

    os juramentos no sero cumpridos, a justia estar na

    fora. Ento a Vergonha (Aids) e a Justia (Dike), aban-

    donando a vasta terra, partiro para o Olimpo, tornando

    a vida e coexistncia impossveis. Como refere Hesodo

    nos versos nais do mito (vv. 200-201), contra o mal

    no haver defesa; para o homem, s penosas dores

    restaro55.A degradao dos homens provocou o desagrado

    55 - O mito das idades encontra paralelos em outrosautores clssicos e outras culturas, mas de modo geral apenasapresenta quatro raas, em degradao sucessiva do ouro aoferro. Hesodo introduz a raa dos Heris, entre a do bronzee a do ferro, e altera o sentido do mito, ou levanta dicul-dades sua interpretao. Embora essa intromisso pareacontradizer a interpretao do mito que perlhei, penso quea sua introduo foi correctamente explicada por T. G. Rosen-meyer (1957: 253-285) e se deve a reminiscncias histricas.Sobre o Mito das cinco idades em Hesodo vide ainda Hes-odo: Teogonia Trabalhos e Dias (Lisboa, INCM, 2005) Pre-fcio (p. 11) e H. Frnkel, Early Greek Poetry and Philosophy(trad. ing. Oxford, 1975), pp. 119-121.

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    dos deuses, em especial de Zeus. Resolvido a castig-los,

    a opo acabou por recair no dilvio, a punio de Zeus

    (para retomar a narrao mtica) contra a insolncia e

    impiedade dos lhos de Licon, um dos descendentes

    de Palasgo, como j foi referido no captulo sobre o mito

    pelsgico da origem do Mundo.

    Embora a tradio lendria nos transmita mais

    dois heris com o nome de Licon um lho de Pra-

    mo, que perece s mos de Aquiles, e um lho de Ares e

    de Pirene, morto por Hracles, o que nos interessa para

    este mito das origens o heri arcdio, lho de Pelasgo,

    o mais conhecido dos trs. Sucede a seu pai Pelasgo no

    trono da Arcdia e tem de vrias mulheres, muitos lhos uma lista que varia conforme os mitgrafos, a ponto de

    uns falarem em cinquenta e outros em vinte e dois.

    Licon e os lhos eram de grande impiedade e um

    dia Zeus quis experimentar at onde ia a sua insolncia:

    transformado em campons, pediu-lhes hospitalidade.Ento Lcon recebe-o, mas para saber se se tratava de

    um deus, d-lhe a comer as carnes de uma criana ou de

    um refm que tinha na corte. Horrorizado e indignado,

    Zeus derruba a mesa e fulmina Licon e todos os seus

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    lhos. Escapa Nictino, o mais novo, que a interveno de

    Gaia, a Terra, ainda consegue salvar. este que sucede a

    Licon no reino da Arcdia.

    Outras verses conguram o destino de Licon:

    uma delas corporiza o castigo inigido por Zeus na sua

    transformao em lobo (a verso que Ovdio seguir);

    segundo outra, Licon era piedoso e visitado a cada

    passo pelos deuses. Teriam sido os lhos os insolentes

    e mpios que quiseram vericar se os convidados que o

    pai recebia eram deuses. Da terem misturado carnes de

    uma criana na restante carne da refeio e o consequen-

    te castigo que recebem56.

    Hesodo, contada a degradao da humanidadeno smbolo mtico das idades, acima descrito, no refere

    o castigo do dilvio ou outro pelo menos nas obras que

    nos chegaram e apenas o pode sugerir nestes versos

    conclusivos do mito (Trabalhos e Dias 197-201):Ento partiro para o Olimpo, deixando a vasta terra,

    com alvas vestes ocultando o belo corpo,para junto da raa dos imortais, abandonando os mortais,

    56 - Cf. Apolodoro 3. 8. 1; Pausnias 8. 2. 1.Licon, lho de Pelasgo, civilizou a Arcdia e instituiu

    o culto de Zeus, mas incorreu na sua clera, quando lhe sacri-cou uma criana, pelo que o deus o transforma em lobo edestri a casa com um raio.

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    a Vergonha e a Justia. E as penosas dores restaroaos homens mortais. E contra o mal no haver defesa.

    A calamidade surge, porm, em outros autores

    clssicos e encontra grande desenvolvimento (ela e a in-

    solncia e injustia dos homens que a motivam) nasMe-

    tamorfoses de Ovdio (1. 163-293), a fonte principal.

    A os lhos de Licon e seus descendentes ou sejaos homens tornaram-se cada vez mais insolentes, mais

    cruis, mais injustos. Jpiter o nome romano do deus

    que corresponde ao Zeus grego rene ento o conclio

    dos deuses e revela-lhes a cilada que lhe armara o lho

    de Pelasgo: resolvido a comprovar o comportamento doshomens, Jpiter percorre a terra disfarado. Ao entrar

    no palcio de Licon, por sinais revela a sua divindade.

    Enquanto o povo lhe dirige splicas e o cumula de mani-

    festaes piedosas (1. 212-220), o rei zomba dessa crena

    e resolve experimentar se se trata de um deus: planeia

    assassinar Jpiter que era seu hspede, durante a noite

    e durante o sono, e no contente com isso mat