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Maria João Antunes Nuno Brandão Sónia Fidalgo Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra A REFORMA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA CONSTITUCIONAL A presente intervenção tem como propósito avaliar o sentido, as considerações e as propostas do Relatório do Gabinete de Política Legislativa e Planeamento sobre o sistema de recursos em processo penal à luz da jurisprudência constitucional. Entendeu-se que tendo sido aberta com esse Relatório uma discussão pública sobre o actual sistema de recursos em processo penal com vista à sua reforma e que sendo esta uma matéria estreitamente relacionada com o quadro constitucional dos direitos, liberdades e garantias, seria pertinente uma análise às linhas fundamentais da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a mesma. 1. O direito ao recurso O recurso é um instrumento de impugnação de decisões judiciais colocado à disposição de vários sujeitos processuais, através do qual lhes é dada a oportunidade de submeterem uma decisão judicial à apreciação de uma instância judicial superior, em ordem à sua correcção. Nessa medida, o direito ao recurso constitui naturalmente uma garantia de defesa do arguido. A “jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade para salientar, por diversas vezes, que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal” 1 . Mesmo antes de o art. 32.º-1 da Constituição ter passado a declarar expressamente o recurso como uma das garantias de defesa, o Tribunal Constitucional * Este texto corresponde à comunicação apresentada no dia 25 de Novembro de 2005, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no âmbito do debate público nacional sobre a Reforma do Sistema de Recursos em Processo Civil e Processo Penal, promovido pelo Gabinete de Política Legislativa e Planeamento do Ministério da Justiça. 1 Ac. do TC n.º 49/2003.

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  • Maria Joo Antunes Nuno Brando Snia Fidalgo

    Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

    A REFORMA LUZ DA JURISPRUDNCIA CONSTITUCIONAL

    A presente interveno tem como propsito avaliar o sentido, as consideraes e as propostas do Relatrio do Gabinete de Poltica Legislativa e Planeamento sobre o sistema de recursos em processo penal luz da jurisprudncia constitucional. Entendeu-se que tendo sido aberta com esse Relatrio uma discusso pblica sobre o actual sistema de recursos em processo penal com vista sua reforma e que sendo esta uma matria estreitamente relacionada com o quadro constitucional dos direitos, liberdades e garantias, seria pertinente uma anlise s linhas fundamentais da jurisprudncia do Tribunal Constitucional sobre a mesma.

    1. O direito ao recurso O recurso um instrumento de impugnao de decises judiciais colocado disposio de vrios sujeitos processuais, atravs do qual lhes dada a oportunidade de submeterem uma deciso judicial apreciao de uma instncia judicial superior, em ordem sua correco. Nessa medida, o direito ao recurso constitui naturalmente uma garantia de defesa do arguido. A jurisprudncia do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade para salientar, por diversas vezes, que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimenses das garantias de defesa do arguido em processo penal1. Mesmo antes de o art. 32.-1 da Constituio ter passado a declarar expressamente o recurso como uma das garantias de defesa, o Tribunal Constitucional

    * Este texto corresponde comunicao apresentada no dia 25 de Novembro de 2005, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no mbito do debate pblico nacional sobre a Reforma do Sistema de Recursos em Processo Civil e Processo Penal, promovido pelo Gabinete de Poltica Legislativa e Planeamento do Ministrio da Justia. 1 Ac. do TC n. 49/2003.

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    afirmava, no Ac. n. 322/93, que uma das garantias de defesa, de que fala o n. 1 do art. 32., , justamente, o direito ao recurso contra sentenas penais condenatrias o que vale por dizer que, no domnio processual penal, h que reconhecer, como princpio, o direito a um duplo grau de jurisdio. Tem-se, alis, considerado que s o direito ao recurso do arguido goza de tutela constitucional. Isso em nada belisca a deciso legislativa de conferir esse direito a outros sujeitos processuais, mas implica que o quadro legislativo que consagra o direito ao recurso do arguido tenha de ser submetido ao crivo da conformidade constitucional.

    Essa , seguramente, uma das razes pelas quais, no mbito dos recursos em processo penal, o Tribunal Constitucional sobretudo chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade de normas que contendem com o direito ao recurso do arguido. tambm fundamentalmente sobre o recurso como garantia de defesa do arguido que se detm o Relatrio e nesse domnio que, como veremos, se centram algumas das suas principais propostas de alterao legislativa.

    2. Contedo do direito ao recurso do arguido e duplo grau de jurisdio O contedo do direito ao recurso como garantia de defesa de h muito identificado pelo Tribunal Constitucional com a garantia do duplo grau de jurisdio quanto a decises penais condenatrias e ainda quanto s decises penais respeitantes situao do arguido face privao ou restrio da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais2. O que significa que embora valha no processo penal portugus o princpio da recorribilidade das decises judiciais, do ponto de vista constitucional no so ilegtimas as restries ao direito ao recurso de decises no condenatrias ou que no afectem a liberdade ou outros direitos fundamentais do arguido. A Constituio no impe, portanto, a concesso ao arguido de um direito de recorrer de toda e qualquer deciso judicial que lhe seja desfavorvel. O duplo grau de jurisdio constitucionalmente imposto abrange, segundo o Tribunal Constitucional, tanto o recurso em matria de direito, como o recurso em matria de facto3.

    2 Ac. do TC n. 265/94. No mesmo sentido, cf., entre muitos outros, os Acs. n. 610/96 e n. 189/01.

    3 Cf. , por todos, o Ac. n. 573/98, tirado em Plenrio.

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    O duplo grau de jurisdio em matria de facto no tem, porm, de necessariamente consistir num reexame da prova produzida em primeira instncia ou numa renovao da prova. Com efeito, perante um modelo como o do CPP de 1987, em que das decises do tribunal colectivo e do tribunal do jri se recorria para o Supremo Tribunal de Justia, ou como o actual, que mantm esse regime para as decises do tribunal do jri, o Tribunal Constitucional decidiu, em plenrio, j depois da reviso constitucional de 1997, que o sistema de revista alargada tal como est previsto no art. 410.-2 do CPP preserva o ncleo essencial do direito ao recurso, em matria de facto, contra sentenas penais condenatrias4 proferidas por tribunais colegiais5. Desde logo porque, como se aduz no Ac. n. 322/93, um tal sistema de revista alargada, mesmo que incidindo sobre o texto da deciso recorrida e no sobre os elementos de prova constantes dos autos, protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na deciso da matria de facto); e, desse modo, defende-o do risco de uma sentena injusta. Alm disso, e em consideraes plenamente transponveis para o tribunal do jri, o tribunal colectivo (tendo em conta as regras do seu prprio funcionamento e as que presidem audincia de julgamento) constitui, ele prprio, uma primeira garantia do acerto no julgamento da matria de facto. Ao que h acrescentar ainda que, no recurso de revista alargada (), sendo, tambm ele, de estrutura acusatria, h lugar a uma audincia; e, nesta, pode haver alegaes orais. O mecanismo da revista alargada foi uma pea do sistema de recursos institudo pelo CPP de 1987, com o qual se procurou potenciar a economia processual numa ptica de celeridade e de eficincia e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade garantia contida num duplo grau de jurisdio autntico6. Muito embora esse sistema tenha reiteradamente recebido do Tribunal Constitucional uma declarao de conformidade constitucional quanto s suas linhas fundamentais, o certo que uma avaliao negativa quanto ao seu funcionamento, provinda de vrios quadrantes, justificou e determinou a sua reformulao substancial na reviso do CPP de 1998.

    4 Ac. n. 573/98.

    5 Ac. n. 322/93.

    6 Prembulo do Decreto-Lei n. 78/87, de 17 de Fevereiro, 7., c).

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    Alm de pretender restituir ao Supremo Tribunal de Justia a sua funo de tribunal que conhece apenas de direito, a reviso de 1998 procurou assegurar um recurso efectivo em matria de facto, tendo para isso eliminado a repartio horizontal de competncia entre relaes e Supremo Tribunal de Justia e aberto a possibilidade de recurso para a relao da deciso do tribunal colectivo, para apreciao da matria de direito e da matria de facto. Preconiza-se agora, no Relatrio, a extenso deste regime tambm s decises do tribunal do jri, porque, por um lado, a depurao da funo do Supremo Tribunal de Justia, como tribunal que conhece somente de matria de direito, ficou incompleta na Reforma de 1998 e, por outro lado, a discrepncia actual entre o regime do tribunal colectivo e o do tribunal do jri pouco adequada sob o ponto de vista constitucional.

    Todavia, o juzo de pouca adequao constitucional do actual regime de recurso da deciso de condenao do tribunal do jri no encontra eco na jurisprudncia constitucional. A concluso de que o mecanismo da revista alargada suficiente para assegurar um duplo grau de jurisdio em matria de facto, inicialmente formulada no domnio dos recursos das decises do tribunal colectivo, agora reiterada pelo Tribunal Constitucional tambm no que diz respeito s condenaes do tribunal do jri. O Tribunal Constitucional tambm no divisa no actual regime qualquer violao do princpio da igualdade pelo facto de o condenado pelo tribunal colectivo ter acesso a dois graus de recurso, ao passo que o condenado pelo tribunal do jri s dispe de um grau de recurso, uma vez que as situaes em causa so materialmente desiguais. Nas palavras subscritas pelo Ac. n. 175/2004, so realidades diferentes o julgamento e deciso tomada pelo tribunal do jri ou pelo tribunal colectivo, tal como diferentes so as realidades do julgamento e deciso pelo juiz singular ou pelo tribunal colectivo, no havendo ento motivos para declarar a soluo actual como inconstitucional por violao do princpio da igualdade. A razo invocada pelo Relatrio para estender ao recurso das decises do tribunal do jri o actual regime previsto para o tribunal colectivo prende-se, no entanto, no com supostas violaes do duplo grau de jurisdio em matria de facto ou do princpio da igualdade, mas antes com a circunstncia de actualmente as decises do tribunal do jri estarem sujeitas a um grau nico de recurso. Voltaremos,

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    por isso, a esta proposta do Relatrio quando de seguida analisarmos a problemtica do duplo grau de recurso.

    3. O duplo grau de recurso Alm do aprofundamento do duplo grau de jurisdio em matria de facto quanto s decises do tribunal colectivo, a outra grande novidade da reviso do CPP de 1998 foi a da introduo do duplo grau de recurso: por um lado, para possibilitar o recurso em matria de facto das decises do tribunal colectivo passou a admitir-se que delas possa recorrer-se para o tribunal da relao e j no s para o Supremo Tribunal de Justia; e por outro lado, abriu-se a porta a que, em determinados casos, dessa deciso proferida em recurso pela relao possa ser ainda interposto recurso para o Supremo. Esses casos so aqueles em que o julgamento em primeira instncia realizado pelo tribunal colectivo e a pena aplicvel seja de priso superior a 8 anos ou ainda quando, tratando-se de crimes punveis com pena de priso superior a 5 anos e no superior a 8, os acrdos das instncias tenham sido discrepantes. O Relatrio manifesta agora uma tendncia para alargar o mbito do duplo grau de recurso no sistema de recursos do processo penal portugus. Tal como se concluiu quanto questo do duplo grau de jurisdio em matria de facto, a deciso de reforar o duplo grau de recurso corresponde a uma legtima, embora passvel de critica, opo de poltica legislativa, que no imposta pela Constituio. Em jurisprudncia firmada pelo Ac. n. 189/2001 e reiterada variadssimas vezes, o Tribunal Constitucional entendeu que mesmo quanto s decises condenatrias, no tem que estar necessariamente assegurado um triplo grau de jurisdio, assim se garantindo a todos os arguidos a possibilidade de apreciao da condenao pelo STJ e em consequncia reconheceu existir alguma liberdade de conformao do legislador na limitao dos graus de recurso. Nesse acrdo, o Tribunal Constitucional considerou que mesmo em processo penal, a Constituio no impe ao legislador a obrigao de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz e, mesmo admitindo-se o direito a um duplo grau de jurisdio como decorrncia, no processo penal, da exigncia constitucional das garantias de defesa, tem de aceitar-se que o legislador penal possa fixar um limite acima do qual no seja admissvel um terceiro grau de jurisdio: ponto que, com tal limitao se no atinja o ncleo essencial das garantias de defesa do arguido. Ora, () o contedo essencial das garantias de defesa do arguido consiste

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    no direito a ver o seu caso examinado em via de recurso, mas no abrange j o direito a novo reexame de uma questo j reexaminada por uma instncia superior. O Tribunal Constitucional aponta a necessidade de evitar que a instncia superior da ordem judiciria fique sobrecarregada com a apreciao de casos de pequena ou mdia gravidade, j apreciados em duas instncias, como um fundamento razovel, no arbitrrio ou desproporcionado, do impedimento de acesso a um terceiro grau de jurisdio, que se encontra vertido nas alneas e) e f) do art. 400.-1 do CPP. Atenta a liberdade de conformao do legislador na limitao dos graus de recurso reconhecida pelo Tribunal Constitucional, o Relatrio defende agora que essa liberdade de conformao seja exercida no sentido de ampliar a extenso do duplo grau de recurso j existente no nosso sistema de recursos. E f-lo a propsito da clarificao de algumas questes que so hoje objecto de controvrsia doutrinal e jurisprudencial, que de seguida sero analisadas.

    3.1 A liberdade de escolha do tribunal ad quem A primeira dessas questes prende-se com a possibilidade de o recorrente escolher o tribunal ad quem. A alnea d) do art. 432. do CPP vigente prescreve que se recorre para o Supremo Tribunal de Justia de acrdos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame de matria de direito. Perante uma to simples e directa disposio, que aparentemente no deixaria margem para uma leitura que no fosse seno a de que em caso de recurso de deciso final proferida pelo tribunal colectivo restrito matria de direito, esse recurso deveria ser obrigatoriamente dirigido ao Supremo Tribunal de Justia, tem uma parte da jurisprudncia do Supremo admitido que nesse caso o recorrente possa optar entre interpor o recurso para a relao ou para o Supremo.

    Contra o que advoga esta jurisprudncia do Supremo Tribunal de Justia, no cremos que luz do regime vigente deva ser dada ao recorrente a oportunidade de escolher o tribunal superior a quem deva dirigir o seu recurso. No s porque a letra da lei no o consente, mas tambm e fundamentalmente porque uma tal soluo contraria a funo do Supremo Tribunal de Justia como ltima e decisiva instncia decisria quanto aplicao da lei e do direito, fomenta a contradio de julgados e constitui um obstculo celeridade processual.

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    Em todo o caso, dado que, no obstante a reiterada oposio entre duas correntes jurisprudenciais, a questo no foi at data objecto de clarificao por acrdo de fixao de jurisprudncia, e porque uma tal clarificao se afigura absolutamente necessria, dever o legislador definir uma soluo que no d margem para equvocos. Isto sob pena de, entretanto, os processos andarem a deambular da relao para o Supremo e do Supremo para a relao antes sequer de serem objecto de uma apreciao quanto respectiva questo de fundo, pois, mantendo-se a indefinio actual, bem possvel que o recorrente interponha recurso para a relao, esta se declare incompetente e remeta o processo para o Supremo, que por sua vez declara que competente a relao e lhe devolve o processo. O Relatrio vem propor a reclamada clarificao, num sentido oposto quele que defendemos: o recorrente dever poder optar por dirigir ao Supremo o recurso restrito a matria de direito, salvo nos processos por crime a que seja aplicvel pena de multa ou pena de priso no superior a 5 anos, em que o recurso deve ser interposto perante as Relaes. Refere o Relatrio que esta soluo a mais conforme

    ao escopo da Reviso de 1998 e a que melhor se adequa a um desenho da diferenciao orgnica entre as instncias de recurso, assente no princpio de que os casos de pequena ou mdia gravidade no devem, em regra, chegar ao Supremo. Caso esta proposta chegue a conhecer letra de lei, cremos que se acentuar um dos principais problemas apontados ao processo penal portugus, a morosidade processual.

    A proposta do GPLP vai ento no sentido de conceder ao recorrente a liberdade para escolher o tribunal ad quem que julgar o recurso. Esta soluo, sufragada por uma parte da jurisprudncia actual do Supremo, leva implcita a concesso de um duplo grau de recurso em matria de direito quando estejam em causa crimes punveis com pena de priso superior a 8 anos. Mantendo-se intocadas as regras actuais da dupla conforme, o condenado em primeira instncia por crime punvel com priso superior a 8 anos, querendo interpor recurso restrito matria de direito, saber que a ltima deciso caber sempre ao Supremo Tribunal de Justia, mas interessando-lhe adiar o termo do processo poder entretanto faz-lo passar pela relao. O processo arrastar-se- escusadamente por esta instncia durante mais algum tempo, que pode ser considervel, vendo o tribunal da relao a sua capacidade ocupada por um recurso intil.

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    Soluo altamente duvidosa no s porque, como concluiu Damio da Cunha a propsito da introduo do duplo grau de recurso na reviso de 1998, conduz a que, ao contrrio do que seria de supor, se coloque em causa a especial autoridade e estabilidade das decises judiciais, mas tambm porque contribui para uma dispensvel morosidade processual e para uma afectao irracional e intil dos meios disponveis no sistema judicial.

    3.2 A introduo de um recurso em matria de facto dos acrdos do tribunal do jri A segunda questo a que resulta da proposta de equiparao da tramitao do recurso da deciso do tribunal do jri do tribunal colectivo, por se considerar que o regime vigente pouco adequado do ponto de vista constitucional, uma vez que o grau nico de recurso que actualmente facultado quanto s decises do tribunal do jri parece no se harmonizar com a circunstncia de o tribunal do jri intervir em processos por crimes punveis com pena superior a oito anos, termos em que o

    arguido disporia incondicionalmente de dois graus de recurso. Esta justificao assente na inadequao constitucional da denegao de um duplo grau de recurso sobre as decises do tribunal do jri no acompanhada pela jurisprudncia do Tribunal Constitucional. Como vimos, a jurisprudncia constitucional aceita unnime e pacificamente que o direito ao recurso constitucionalmente garantido no se identifica com um direito a um duplo grau de recurso, pelo que logo por aqui se afigura improcedente a razo invocada pelo Relatrio para modificar o regime dos recursos das decises do tribunal do jri. Pensamos, alis, com o devido respeito, que o Relatrio no perspectiva correctamente o problema que est aqui em causa. O que, verdadeiramente, no regime vigente, pode restringir de modo substancial as garantias de defesa do arguido julgado pelo tribunal do jri no tanto a inexistncia de um duplo grau de recurso, mas antes a ausncia de um duplo grau de jurisdio pleno em matria de facto, determinada por uma deciso de outros sujeitos processuais que inelutavelmente imposta ao arguido. Ora, como vem declarando o Tribunal Constitucional, dada a existncia de um sistema de revista alargada e atenta a diferena material entre um julgamento realizado por um tribunal do jri e por um tribunal colectivo, o regime actual no viola o princpio do duplo grau de jurisdio em matria de facto, nem o princpio da igualdade.

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    Alm disso, a extenso aos recursos dos acrdos do tribunal do jri de uma dupla jurisdio plena em matria de facto, nos moldes que hoje valem para o tribunal singular e para o tribunal colectivo, de duvidosa conciliao com o estatuto simblico do tribunal do jri como tribunal em que o povo participa directamente na administrao da justia. Como tambm de aceitao muito duvidosa que em casos em que o acrdo recorrido no enferme de nenhum dos vcios previstos no art. 410.-2 e em que o que est fundamentalmente em causa o sentido para o qual pendeu o exerccio do poder de livre apreciao da prova do tribunal do jri, possa a deciso dos quatro juzes da relao modificar a matria de facto somente com base nos elementos de prova que subiram da primeira instncia, em detrimento de um juzo sobre a matria de facto formulado por um tribunal composto por sete elementos e que teve um contacto vivo, directo e imediato com a prova. O problema do actual regime dos recursos dos acrdos do tribunal do jri no reside no modo como est configurada a dupla jurisdio em matria de facto, baseada no mecanismo da revista alargada, que constitui a nosso ver a soluo mais equilibrada. O problema est antes a montante, nas condies exigidas pelo art. 13. do Cdigo para a formao do tribunal do jri. Com efeito, este tribunal pode ser constitudo a requerimento do Ministrio Pblico ou do assistente sem que para tal deva concorrer a vontade ou, pelo menos, a no oposio do arguido. Dessa forma, por aco de outros sujeitos processuais e sem que a tal se possa opor, o arguido v restringida a amplitude do seu direito a recorrer em matria de facto de uma eventual deciso final condenatria. Da que Damio da Cunha entenda que s ser admissvel, para salvaguardar um juzo de constitucionalidade, a constituio de um tribunal de jri a requerimento do MP ou do assistente, desde que o arguido preste a sua concordncia, ou, ao menos, a sua no oposio. At data, o Tribunal Constitucional nunca foi, todavia, chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional do art. 13. do CPP com o art. 32.-1 da Constituio. E no nos parece que o juzo de inconstitucionalidade lanado sem quaisquer hesitaes por Damio da Cunha, seja assim to inequvoco, pelo menos luz da jurisprudncia constitucional, que tem sempre considerado que o ncleo essencial do direito ao duplo grau de jurisdio em matria de facto suficientemente garantido por um recurso dotado do sistema da revista alargada.

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    Resta enfim saber se, para salvar o sistema de um eventual juzo de inconstitucionalidade, que ao cabo de quase 7 anos nunca ningum reclamou e como tal nunca foi proferido pelo Tribunal Constitucional, o mais acertado modificar o regime de recurso dos acrdos do tribunal do jri, com os inconvenientes assinalados, ou atacar o mal pela raiz e alterar o art. 13. do CPP. Face ao que dissemos, quase ocioso concluir que para ns s se afigura correcta a escolha do segundo termo da alternativa.

    3.3 A definio da expresso pena aplicvel prevista nas alneas e) e f) do art. 400.-1 Um terceiro ponto objecto de forte controvrsia jurisprudencial e doutrinal em matria de admissibilidade de interposio de recurso para o Supremo Tribunal de Justia o que se refere concretizao do sentido da expresso pena aplicvel contida nas alneas e) e f) do art. 400.-1 do. Est em causa nestes preceitos a definio de limites admissibilidade de recurso de acrdos proferidos pela relao. Em suma, a chamada dupla conforme, como barreira ao duplo grau de recurso. Neste domnio, j foram ensaiadas praticamente todas as interpretaes possveis para aquela expresso, no tendo ainda a jurisprudncia do Supremo Tribunal de Justia conseguido chegar a uma posio uniforme sobre a matria, o que no deixa de constituir factor de insegurana para os recorrentes, de desigualdade na aplicao do direito e de desprestgio dos tribunais superiores. Indefinio que tem contribudo igualmente para um grande fluxo de recursos para o Tribunal Constitucional, visando obter uma declarao de inconstitucionalidade de vrias dessas interpretaes pela circunstncia de impedirem o recurso para o Supremo. Tudo aponta, portanto, para a necessidade de uma interveno clarificadora do legislador. O problema desdobra-se em duas vertentes: o que entender por pena aplicvel quando o recurso incida sobre apenas um crime?; e o que entender por pena aplicvel em caso de concurso de infraces? Na primeira vertente, respeitante interpretao da expresso pena aplicvel quando o recurso tem por objecto apenas um crime, o Supremo Tribunal de Justia j avanou, pelo menos, trs posies: essa pena a pena abstractamente aplicvel ao crime imputado na acusao ou na pronncia; a pena abstractamente aplicvel ao crime pelo qual o crime foi condenado; ou a pena concretamente aplicada pela

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    relao e insusceptvel de agravao pelo Supremo Tribunal de Justia se se tratar de recurso interposto apenas pelo arguido e/ou pelo Ministrio Pblico no exclusivo interesse da defesa. O Tribunal Constitucional vem considerando que nenhuma destas interpretaes viola qualquer preceito ou princpio constitucional, nomeadamente o direito ao recurso como garantia de defesa do arguido, por este no exigir um duplo grau de recurso, e como tal qualquer uma daquelas interpretaes encontra-se subtrada sua rea de sindicncia. A este propsito e neste sentido, conclui o Ac. n. 451/2003 que no julgamento de constitucionalidade de normas, em fiscalizao concreta, o Tribunal Constitucional no sindica, no estrito plano do direito infraconstitucional, as interpretaes normativas feitas na deciso impugnada. O Tribunal Constitucional assume-as como um dado insindicvel e sobre elas que incide o seu juzo de conformidade ou desconformidade Constituio. A questo parece dever ser, assim, resolvida no estrito plano do direito ordinrio. O Relatrio preconiza uma alterao redaco das alneas e) e f) do n. 1 do art. 400., de modo a que a expresso pena aplicvel passe a ser interpretada, sem margem para dvidas, como a pena abstractamente aplicvel ao crime pelo qual o arguido foi condenado. Trata-se, a nosso ver, da nica soluo defensvel. Alm das razes que parte da jurisprudncia vem invocando nesse sentido, contra a soluo que identifica a pena aplicvel com a pena aplicada na deciso condenatria que no possa ser agravada pelo tribunal ad quem por se tratar de recurso interposto apenas pela defesa ou no interesse da defesa, milita decisivamente a perverso do princpio da proibio da reformatio in pejus que est na sua base. No aceitvel que esta garantia fundamental do direito ao recurso do arguido, que visa tornar efectiva a possibilidade de exerccio desse direito, possa ser lanada precisamente contra o arguido, impedindo-o de recorrer. Posio que foi tambm muito recentemente subscrita pelo Ac. n. 628/2005, em que, pela primeira vez e contra jurisprudncia anterior, o Tribunal Constitucional concluiu pela inconstitucionalidade daquela interpretao que identifica pena aplicvel com pena aplicada limitada pelo princpio da proibio da reformatio in pejus.

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    de saudar, portanto, a proposta do Relatrio, pela qual, caso merea consagrao legal, se tornar inequvoco que o condenado pela relao em pena concreta de priso no superior a 8 anos, por crime abstractamente punvel com pena de priso superior a 8 anos, poder recorrer para o Supremo Tribunal de Justia. A segunda vertente do problema em anlise prende-se com o contedo da expresso pena aplicvel em caso de concurso de infraces. Neste ponto o Relatrio no tomou posio, embora se trate tambm de matria jurisprudencial e doutrinalmente controvertida. A dvida reside em saber se nos casos em que a relao condene o arguido em concurso de infraces, deve entender-se por pena aplicvel a pena aplicvel ao mais grave dos crimes em concurso ou antes a pena nica conjunta aplicvel, correspondente soma dos limites mximos das penas abstractamente aplicveis aos crimes em concurso. A jurisprudncia do Supremo Tribunal de Justia, no que acompanhada por alguma jurisprudncia constitucional, tem-se inclinado maioritariamente pela primeira alternativa. A existncia de uma linha jurisprudencial e doutrinal contrria quela, justificaria uma interveno legislativa que esclarecesse de vez a questo, no sentido que dado por esta ltima corrente ao regime actual: so irrecorrveis os acrdos proferidos pela relao, em recurso, que tenham tido por objecto um concurso de infraces, cuja pena aplicvel, resultante da soma dos limites mximos das molduras legais dos crimes em concurso, no seja superior a 8 anos.

    5. Concluso Para finalizar, cumpre lanar um olhar global sobre o alcance das consideraes e propostas contidas no Relatrio do GPLP. A imagem que da resulta fundamentalmente a de um aprofundamento de uma tendncia que comeou a ser desenhada na reviso do CPP de 1998, que passa pelo alargamento do duplo grau de recurso e pelo reforo da dupla jurisdio em matria de facto, estendendo-a aos recursos de acrdos do tribunal de jri e parificando a documentao da audincia de julgamento dos tribunais colectivo e do jri ao actual regime do tribunal singular. Num tempo em que o processo penal portugus revela evidentes sinais de crise, em que de todos os lados so lanadas crticas, em muitos casos justas, de morosidade, seno mesmo de imobilismo, e em que to difcil encontrar correntes jurisprudenciais, estveis, uniformes e previsveis, no pode deixar de questionar-se se as propostas que ora discutimos apontam na direco certa.

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    Recorde-se, com Figueiredo Dias, que finalidades do processo penal so a proteco dos direitos fundamentais das pessoas, maxime do arguido, mas tambm a realizao da justia e o restabelecimento da paz jurdica. Na ponderao da concordncia prtica destas finalidades em matria de recursos, no pode deixar de tomar-se em considerao a jurisprudncia do Tribunal Constitucional, o rgo com legitimidade democrtica para em ltima instncia decidir da conformidade da lei processual penal lei fundamental. Ora, no exerccio de concordncia prtica das finalidades do processo penal, a finalidade de proteco dos direitos fundamentais do arguido , de acordo com a jurisprudncia constitucional, suficientemente tutelada por um grau nico de recurso e por uma dupla jurisdio em matria de facto das condenaes dos tribunais colegiais fundada no modelo da revista alargada. O sistema de recursos da verso original do Cdigo assentava no respeito por esse ncleo essencial e irredutvel do direito ao recurso do arguido e permitia um equilbrio razovel com as demais finalidades do processo penal. O abandono desse modelo tem sido feito em nome do reforo da tutela da posio processual do arguido, de cuja efectividade, face ao panorama actual, no se pode seno duvidar, e custa da ocupao muitas vezes injustificada dos meios limitados de que o sistema judicial tem ao seu dispor e de dilaes inteis do termo dos processos, em suma, custa das finalidades de realizao da justia e do restabelecimento da paz jurdica. Fica, assim, a dvida sobre se as opes de fundo que o Relatrio do GPLP revela so as mais adequadas para fazer face a uma situao de descrena e desconfiana da sociedade portuguesa quanto justia penal que temos. Tanto mais quanto certo que um sistema penal que no capaz de incutir na comunidade a que se destina o sentimento de que o desrespeito pelos bens jurdico-penais no fica impune, assegurando a manuteno da sua confiana na validade das normas jurdico-penais violadas, e que no capaz de restabelecer a paz social abalada pelo crime acaba por falhar naquilo que essencial.

    Maria Joo Antunes

    Nuno Brando Snia Fidalgo