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Moacyr Scliar Max e Os Felinos

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    Coleo L&PMPocket, vol. 234

    Este livro foi publicado pela L&PM Editores, em formato 14x21, em1981.

    Primeira edio na Coleo L&PMPOCKET: junho de 2001

    Esta reimpresso: maro de 2009

    Capa: Ivan Pinheiro Machado sobre ilustrao de Edgar VasquesReviso: Renato Deitos e Ruiz FaillaceProduo: L&PM Editores

    ISBN 978-85-254-1048-1

    S419m Scliar, Moacyr 1937-Max e os felinos / Moacyr Scliar. Porto Alegre: L&PM,

    2009.128 p. ; 18 cm - (Coleo L&PM Pocket)

    1. Novelas brasileiras. I. Ttulo. II. Srie.

    CDD 869..932CDU 869.0(81)-32

    Catalogao elaborada por Izabel A. Merlo, CRB 10/329

    Moacyr Scliar, 2001

    Todos os direitos desta edio reservados a L&PM EditoresRua Comendador Coruja 314, loja 9 - Floresta - 90.220-180Porto Alegre - RS - Brasil / Fone: 51-3225-5777 - Fax: 51.3221-5380

    PEDIDOS & DEPTO.COMERCIAL:[email protected] CONOSCO:[email protected]

    www.lpm.com.br

    Impresso no BrasilVero de 2009

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    SUMRIO

    INTRODUO -Moacyr Scliar / 11DE TRNSITOS E DE SOBREVIVNCIAS -Zil Bernd / 23

    MAX E OS FELINOS / 39O tigre sobre o armrio / 41O jaguar no escaler / 65A ona no morro / 95

    SOBRE O AUTOR / 122

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    Medo, eu? O tigre no tem medo deningum... O tigre invisvel. A minha alma.

    Francisco Macias NguemeDitador deposto da Guin Equatorial

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    INTRODUO

    Moacyr Scliar

    ODestino ainda bate porta, claro, mas nestapoca de comunicaes instantneas prefere o telefone.Na tarde de 30 de outubro de 2002, voltando para casacansado de uma viagem, recebi uma ligao. Era uma

    jornalista do jornal O Globo, dando-me uma notciaque, a princpio, no entendi bem: parece que umescritor tinha ganho, na Europa, um prmio importante

    com um livro baseado em um texto meu.Minha primeira reao foi de estranheza: um

    escritor, e do chamado Primeiro Mundo, copiando umautor brasileiro? Copiando a mim? Ela se ofereceu parame dar mais detalhes, o que foi feito em telefonemasseguintes, e assim aos poucos fui mergulhando no que serevelaria, nos dias seguintes, um verdadeiros torvelinho,uma experincia pela qual eu nunca havia passado.

    Sim, um escritor canadense chamado YannMartel havia recebido, na Inglaterra, o prestigioso

    prmio Booker, no valor de 55 mil libras esterlinas,conferido anualmente a autores do Commonwealth

    britnico ou da Repblica da Irlanda (entre outros: Ian

    McEwan, Michael Ondaatje, Kingsley Amis,J.M.Coetzee, Salman Rushdie, Iris Murdoch). Sim, eledizia que havia se baseado em um livro meu,Max e os

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    felinos, publicado no Brasil em 1981, pela L&PM(Porto Alegre), e traduzido poucos anos depois nos

    Estados Unidos como Max and the Cats (New York,Ballantine Books, 1990) e na Frana comoMax et lesChats (Paris, Presses de la Renaissance, 1991). uma

    pequena novela que escrevi com grande prazer lembro-me de um fim de semana na serra gacha emque matraqueava animado a mquina de escrever, em

    todos os minutos em que no estava cuidando de meufilho, ainda pequeno.Minha primeira reao no foi de contrariedade.

    Ao contrrio, de alguma forma senti-me envaidecidopor ter algum se entusiasmado pela idia tanto quantoeu prprio me entusiasmara. Mas havia, na notcia, umcomponente desagradvel e estranho, to estranho

    quanto desagradvel. Yann Martel no tinha, segundosuas declaraes, lido a novela. Tomara conhecimentodela atravs de uma resenha do escritor John Updike

    para oNew York Times, resenha desfavorvel, segundoele.

    Esta afirmativa me perturbou.Max and the Catsno chegou a ser um best-seller, mas os artigos sobre olivro, que me haviam sido enviados pela editora, eramfavorveis inclusive o do New York Times, assinado

    por Herbert Mitgang. Teria Updike escrito uma outraresenha para o mesmo jornal? Se era esse o caso, porque eu no a recebera? Ser que os editores smandavam resenhas favorveis?

    A afirmativa seguia-se um comentrio deMartel. Uma pena, dizia ele, que uma idia boa tivessesido estragada por um escritor menor. Mas, em

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    seguida, levantava uma outra hiptese: e se eu nofosse um escritor menor? E se Updike tivesse se

    enganado? De qualquer maneira a idia principal dolivro serviu-lhe de ponto de partida para sua obra The

    Life of Pi. E qual essa idia?O Max Schmidt de meu livro um jovem

    alemo que est fugindo do nazismo e que embarcapara o Brasil. O navio em que viaja, um velho

    cargueiro, transporta tambm animais de umzoolgico. H um naufrgio, criminoso, mas Maxsalva-se em um escaler. E de repente sobe a bordo umsobrevivente inesperado e ameaador: um jaguar.Comea ento a segunda parte da novela, que temcomo ttulo O jaguar no escaler.

    Esta, a idia que motivou Martel. O seu

    personagem, Piscine Molitor Patel, Pi, um meninohindu cujo pai dono de um zoolgico. A famliaemigra para o Canad, levando os animais a bordo. H,na segunda parte do livro, um naufrgio (que depoisser considerado criminoso). Pi salva-se. No mesmo

    barco esto um tigre de Bengala, um orangotango euma zebra. O tigre liquida os trs e Pi fica derivacom o felino por mais de duzentos dias.

    O texto de Martel diferente do texto deMax eos felinos. Mas o leitmotiv , sim, o mesmo. E a surgeo embaraoso termo: plgio.

    Embaraoso no para mim, devo dizer logo. Naverdade, e como disse antes, o fato de Martel ter usado

    a idia no chegava a me incomodar. Incomodava-me asuposta resenha e tambm a maneira pela qual tomeiconhecimento do livro. De fato, no fosse o prmio, eu

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    talvez nem ficasse sabendo da existncia da obra. Nolugar de Martel eu procuraria avisar o autor. Alis, foi

    o que fiz, em outra circunstncia. Meu livro A mulherque escreveu a Bblia teve como ponto de partida umahiptese levantada pelo famoso scholar norte-americano Harold Bloom segundo a qual uma parte doAntigo Testamento poderia ter sido escrita por umamulher, poca do rei Salomo. Tratava-se, contudo,

    de um trabalho terico. Mesmo assim, coloquei otrecho de Bloom como epgrafe do livro que enviei aele (nunca respondeu nem sei se recebeu , mas eucumpri minha obrigao). Martel agiu de maneiradiferente. No prefcio, em que agradece a muitas

    pessoas, atribui a "fagulha da vida" ("the spark of life")que o motivou a mim. Mas no entra em detalhes, no

    fala emMax e os felinos.Nada se cria, tudo se copia, um dito freqente

    nos meios acadmicos. Escrevendo a respeito doincidente (prefiro este termo), Luis FernandoVerssimo observou que Shakespeare baseounumerosas obras em trabalhos de contemporneosmenores. Em realidade, no h escritor que no sejainfluenciado por outros Bloom, a propsito, fala da"angstia da influncia". Quando comecei a rabiscarmeus primeiros textos, copiava descaradamente. Emredaes escolares, transcrevi vrias frases do Cazuza,de Viriato Corra, um livro que foi lido por vriasgeraes de crianas brasileiras. Mas isto, no comeo.

    um sinal de maturidade procurarmos andar comnossas prprias pernas. E tambm um sinal dematuridade reconhecer, de forma explcita, a utilizao

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    do material de outros. Em trabalhos cientficos isto feito mediante citao bibliogrfica. A transcrio

    tambm no pode ser extensa.Essas coisas so levadas cada vez mais a srio,

    apesar de a noo de propriedade intelectual serrelativamente nova na histria da humanidade.Tomemos, por exemplo, os trabalhos de Hipcrates,considerado o pai da medicina, e que viveu no sculo

    V a.C. difcil saber o que realmente obra dele e oque foi escrito por seus discpulos. O nome Hipcratesera uma grife, uma gratuitafranchising. Era livrementeusado porque poca no havia direitos autorais. Emmatria de texto, isso surgiu com a indstria editorial,

    portanto em plena modernidade. Shakespeare aindavivia uma fase de transio.

    Uma idia uma propriedade intelectual. Istono significa que no possa ser partilhada. Pode, sim, efreqentemente o . Um editor prope um mesmo tema

    para vrios autores e faz uma antologia com ostrabalhos: nada demais nisso. Um autor no est

    prejudicando o outro. E diferente da situao de umproduto qualquer que copiado, o que implica prejuzopara o produtor original a pirataria. Usar a mesmaidia literria no chega a ser pirataria.

    Depois de muito debate sobre o assunto o livrode Martel finalmente chegou-me s mos. Li-o semrancor; ao contrrio, achei o texto bem escrito eoriginal. Ali estava a minha idia, mas era com

    curiosidade que eu seguia a histria; queria ver querumo tomaria sua narrativa boa narrativa, alis,dotada de humor e imaginao. Ficou claro que nossas

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    vises da idia eram completamente diferentes. Asassociaes que eu fiz so diferentes das que Martel

    faz.Um nufrago num escaler diante de um jaguar

    o que significaria aquilo para mim? Por que teria meocorrido aquela imagem? E uma pergunta que pode seaplicar a qualquer obra de fico (e a qualquer sonho,qualquer fantasia). E que admite dois tipos de resposta,

    em nveis diferentes. Um, mais profundo, e porconseguinte mais misterioso, diz que tais coisas seoriginam no inconsciente; so fantasias ligadas atraumas, cuja elaborao pode demandar muitas horas-div. O outro tipo de explicao aquele que ocorre ao

    prprio autor. Para mim o jaguar era a imagem de umpoder absoluto e irracional. Como foi o poder do

    nazismo, por exemplo. Ou, numa escala bem menor, opoder da ditadura militar que se instalou no Brasil em1964. Martel d uma conotao diferente religiosa imagem. E isto, presumo, deve ter reforado nele aconvico de que no estava copiando, mas simusando a idia como ponto de partida.

    ***

    Seja como for a histria, teve desdobramentossurpreendentes. Nos dias que se seguiram, comecei areceber cartas, e-mails, telefonemas e, sobretudo,

    pedidos de entrevistas de vrios rgos da imprensa.

    No sou um autor desconhecido, mas certamentenenhum dos meus livros teve a repercusso alcanada

    por esse. E nenhum esteve envolvido em tanta

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    confuso. Confuso esta que comeou com adivulgao extra-oficial do resultado do prmio,

    num site da Internet, um "fiasco", na expresso dojornal londrino The Guardian, de 26 de outubro.Simultaneamente, vinha luz a questo da idia dolivro. Em 27 de outubro, o prprio Yann Martel

    publicou no The Sunday Times, de Londres, um artigoque falava sobre o seu livro e o meu. No domingo, 3

    de novembro, O Globopublicou, em pgina inteira, amatria para a qual eu tinha sido entrevistado. Ajornalista Daniela Name lembrava: "Max e os felinosno o primeiro romance brasileiro supostamente

    plagiado por um autor estrangeiro. Publicado em 1934,A sucessora, de Carolina Nabuco, gerou um debateliterrio quando Rebecca, da inglesa Daphne du

    Maurier, foi editado quatro anos depois". (Rebecca,alis, foi adaptado para o cinema por AlfredHitchcock.) Dois dias depois, apareceu um outroartigo, vastamente difundido pelas agnciasinternacionais: aquele escrito para o New York Times

    pelo correspondente do jornal no Brasil, Larry Rohter,que me entrevistou por telefone. O ttulo era: "Tiger ina Lifeboat, Panther in a Lifeboat: a Furor Over a

    Novel" (O tigre num bote, a pantera num bote: umescndalo sobre um romance). Depois de explicar aosleitores americanos como pronunciar meu nome (Mo-uh-seer Skleer), Rohter falava do sucedido, destacandoque seu jornal jamais tinha publicado qualquer resenha

    de John Updike acerca deMax and the Cats. Tambmmencionava a reao da imprensa brasileira.

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    A isto seguiu-se a reao de um rgo daimprensa canadense, o National Post. A matria

    publicada no dia 7 de novembro levava como ttulo:"New chapter in a nations rage toward Canada" (Umnovo captulo na raiva de uma nao [o Brasil] contrao Canad). E o subttulo, usando a aliterao de que osanglo-saxes tanto gostam, era muito significativo:"Beef, Bombar-dier, books". O texto procurava

    associar a questo dos livros com os episdios daproibio da importao da carne brasileira peloCanad (o "beef") supostamente por razes sanitrias, ea concorrncia entre a brasileira Embraer e a canadenseBombardier para a venda de avies. Ou seja: o assuntoestava ultrapassando os limites da controvrsia literria.E difundia-se cada vez mais, como constatei, ao

    procurar descobrir na Internet o noticirio a respeito.Entrei no Google, digitei dois nomes, Yann Martel eMoacyr Scliar e fiquei estarrecido: havia mais dequinhentos textos sobre o affaire. E os pedidos deentrevistas continuavam. No dia 15, cheguei aosEstados Unidos, onde deveria dar uma palestra emAmherst, Massachusetts. Em minha passagem (demenos de um dia) por Nova York, fui entrevistado porcinco rgos de imprensa.

    A pergunta que mais me faziam e, nos EstadosUnidos, faziam-me de forma insistente dizia respeitoa um processo judicial. Algo para o qual eu no tinha amenor disposio. No s porque demandaria tempo e

    energia, como tambm porque minha atitude no era, enem nunca foi, litigante. Como mencionei antes, se, aotempo em que comeou a escrever seu livro, Yann

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    Martel tivesse entrado em contato comigo dizendo quequeria aproveitar a idia, eu teria concordado, e de

    bom grado. Ele no o fez, o que pode ser consideradoinadequado mas, ilegal? Eu relutava em ver a coisadessa maneira. De modo que resolvi dar o assunto porencerrado para decepo, no pude deixar de notar,de algumas pessoas, que gostariam de ver a brigacontinuar.

    ***

    Algumas concluses se podem tirar desseepisdio, para o qual o adjetivo "bizarro" me ocorreudesde o incio. , de fato, uma coisa muito estranha.H, nela, uma discusso objetiva sobre o que vem a ser,

    afinal, plgio. Objetiva porque h evidentesrepercusses prticas nesta poca de marcas, patentes edireitos autorais, mas nem por isso fcil de resolver.Mesmo que princpios gerais sejam fixados, cada casoser um caso e exigir uma deciso, judicial ou no,independente.

    A outra questo diz respeito aos famosos quinzeminutos de fama, de que falava Andy Warhol. Umlivro chega ao noticirio de duas maneiras. Pode seratravs de uma artigo crtico ou de uma resenha. Mas,se for dessa maneira, pode-se ter certeza de que arepercusso ser limitada. Barulho mesmo faz o succsde scandale. Que, diga-se desde logo, no afasta o

    mrito literrio. Escndalo provocaram livros comoMadame Bovary, de Flaubert, LAssomoir, de Zola, eLe diable au corps, de Raymond Radiguet, para

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    ficarmos s na Frana, onde se originou a expresso. Equal o mecanismo deste sucesso? E como se as pessoas

    dissessem, repetindo oEclesiastes: h livros demais nomundo acrescentando em seguida: dm-me ummotivo para ler esse livro em particular. E, quantomais picante, mais controverso for o motivo, melhor e tanto maior a possibilidade dos quinze minutos defama. Por coincidncia, na mesma poca da discusso

    sobre os livros, estourou o escndalo Winona Ryder: aatriz tinha sido surpreendida roubando roupas de umaloja. No menos surpreendente foi o artigo aparecidoem um jornal americano, dizendo que o julgamentoseria benfico para a carreira de uma atriz cujosltimos filmes, segundo o articulista, no haviam tidomuito xito. Pouco depois disso, um conhecido

    contou-me o sonho que tivera: sonhara que a histriado plgio havia sido combinada entre Yann Martel eeu, para mtua promoo. Um sonho inteiramenteexplicvel, na conjuntura em que vivemos. Livrodepende de promoo e a promoo depende, entreoutras coisas, da visibilidade do autor. Isso explica odesaparecimento do pseudnimo, por exemplo. Eexplica as viagens coast to coast que os escritoresamericanos fazem, atravessando os Estados Unidos deum ponta a outra para falarem de seus livros em

    palestras e programas de tev. claro que qualquercoisa que chame a ateno para a obra, nestascircunstncias, bem-vinda.

    Nem todos os escritores aceitam essa injuno.Lembro Rubem Fonseca recusando-se a falar sobre sua

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    obra em uma mesa-redonda: "O que tenho adizer est nos meus livros". Mas entre essa recusa e a

    aceitao total, s vezes at entusistica, h umgradiente de possibilidades no qual os escritores vo sesituando conforme sua disponibilidade, conforme seutemperamento, conforme sua capacidade decomunicao. Parte disso corresponde ao papel doescritor como intelectual: as pessoas esperam que quem

    sabe escrever saiba tambm falar e tenha idias atransmitir.O importante no fazer um investimento

    emocional nesta fama passageira. O importante notentar repetir os quinze minutos. "No h segundo atonas vidas americanas", disse Scott Fitzgerald, e isso vlido especialmente para arte e literatura: depois que

    as cortinas do palco se fecham, elas no abrem mais.As pessoas que no acreditam, ou no queremacreditar nisso, entregam-se, no raro, s mais

    patticas tentativas para fazer de novo brilhar, sobre si,os refletores do sucesso. Que tm um grande efeito:aquecem o ego. E no existe entidade que deseje sermais aquecida, e massageada, e acarinhada, do que oego. No passado, essa era uma exigncia tmida,

    porque individualismo uma coisa relativamenterecente: pode ter existido sempre, mas criou fora coma modernidade, e triunfa nesta poca narcsica em quevivemos. O ego exige sucesso. Mas, como disseClarice Lispector, numa carta a uma jovem que

    pretendia tornar-se escritora: "Quando voc fizersucesso, fique contentinha, mas no contentona. E

    preciso ter sempre uma simples humildade, tanto na

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    vida como na literatura". Contentinha, mas nocontentona: em quatro palavras, Clarice disse tudo, o

    que no de admirar, em se tratando de uma grandeescritora. interessante, alis, que tenha usado aexpresso "contente", mas no "feliz". No a mesmacoisa. Felicidade uma coisa transcendente, imaterial.Contente aquele que contm: sua carncia foi

    preenchida com elogios, com tapinhas nas costas. No

    Brasil temos a expresso "o bloco dos contentes". Usa-se em geral para pessoas que, ligadas administraopblica, conseguem favores, privilgios, mordomias. Oque as contenta vem de fora.

    Literatura no fonte de contentamento. Nem coisa que possa ser feita pelo membro de um bloco.Ela , essencialmente, um vcio solitrio. Isto no quer

    dizer que tenha de ser praticada numa isolada torre demarfim. A grande literatura inevitavelmente reflete ocontexto social da poca. Mas o faz como umsismgrafo, cuja agulha desloca-se como resposta amovimentos profundos. Espero que isso tenhaacontecido, ao menos em parte, ao menos em pequena

    parte, com uma histria chamada "Max e os felinos".Todo o resto, francamente, no tem muita importncia.

    Maro de 2003

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    DE TRNSITOS E DE SOBREVIVNCIAS1

    Zil Bernd

    "Et sais que je suis un homme maintenant car je suis la plus

    dangereuse des betes."

    Erri De Lucca, Trois chevaux

    A presente comunicao tem como objetivoprincipal colocar em paralelo Life of Pi a novel(2001), do escritor canadense Yann Martel (1963-)2, e

    Max e os felinos (1981), do escritor gacho MoacyrScliar (1937-). No pretendemos retomar a polmicainstaurada pelas imprensas canadense e brasileira, nofinal de 2002, relativa acusao de plgio pelo autor

    brasileiro contra o canadense. O que nos interessardestacar aqui a anlise das convergncias existentesentre as duas obras e as figuras da americanidade que

    1Texto publicado na obra coletiva O viajante transcultural: leituras daobra de Moacyr Scliar, organizado por Regina Zilbermann e ZilBernd. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. Srie Grandes Autores 1.2Yann Martel foi o vencedor do Man Booker Prize de 2002, um dos

    mais prestigiosos prmios literrios conferidos pela Inglaterra. Foitambm finalista para o prmio do Governador Geral (Canad) demelhor fico e do Commonwealth Writers Prize de melhor livro doano. Life of Pi est sendo traduzido para o francs pelos prprios paisde Yann Martel, que tambm so escritores e que vivem em Montreal.

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    elas agenciam. As temticas da travessia do oceano, donaufrgio e dos sobreviventes adolescentes que

    chegam ao Novo Mundo reeditam os mitos derenovao constitutivos da americanidade. A travessiamimetiza a viagem inaugural de Cristvo Colombo,os escaleres, que permitem aos adolescentes chegarrespectivamente, ao Canad e ao Brasil, simbolizam aarca de No, mito do recomeo e da restaurao cclica

    por excelncia. Pretendemos destacar as metamorfosesdas personagens durante a viagem e suas relaes comos felinos (um tigre e um jaguar) que sobrevivem comeles e que simbolizam ao mesmo tempo as foras dosubconsciente e a memria do passado que osimigrantes trazem consigo para a Amrica.

    Antes da travessia

    No livro de Scliar, Max e os felinos, o jovemMax, sendo filho de um comerciante de peles, viveuem meio a todas as espcies de peles de animais:raposas, visons, castores, etc. A loja, "Ao tigre deBengala", era decorada com um tigre empalhado queseu pai havia caado na ndia e que havia mandadoempalhar. Desde a infncia, Max temia este animal atal ponto que chegava a ter pesadelos, embora setratasse de um simples elemento de decorao. Eleficou traumatizado pela ordem do pai que mandou-o ir,

    noite e sozinho, buscar um jornal que haviaesquecido na loja. O menino teve que atravessar oterritrio do pai a loja de peles , enfrentar o mais

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    poderoso dos carnvoros, o tigre de Bengala, paraobedecer sua ordem. Max ficou to nervoso que

    chegou a ferir-se na cabea, regressando aos soluos casa, aps ter vivido uma traumtica experincia quenunca mais esqueceria.

    Alguns anos mais tarde, estando na universidadequando o regime nazista emerge na Alemanha, Max,que havia participado de manifestaes antinazistas,

    tem que partir de Berlim s pressas, no primeiro navio,para no ser preso. O navio naufragar e o jovemconseguir encontrar um lugar no pequeno escaler que

    j estava ocupado por um jaguar, o mais terrvel doscarnvoros, originrio da Amrica Latina. Se Max irassociar para o resto de sua vida a imagem do tigreempalhado sobre o armrio ao autoritarismo do pai, o

    jaguar, a quem ele dever alimentar durante toda atravessia para no ser devorado, permanecer como umareminiscncia do autoritarismo poltico, representado

    pelo regime nazista que o obrigou a deixar sua famliae seu pas natal.

    Em Life of Pi a novel, Piscine Molitor Patel(conhecido pelo apelido Pi) ter, em Pondichry,antiga capital de Canto, na ndia francesa, umaexperincia completamente diferente com animais,tendo vivido uma infncia feliz em companhia de suafamlia, que era proprietria de um jardim zoolgico.Passou sua infncia cercado de animais selvagens(vivos e no empalhados) de toda espcie, os quais so

    minuciosamente descritos pelo autor, que revelaprofundos conhecimentos de zoologia. O meninoherdar do pai a arte de apaziguar animais, sentindo-se

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    muito vontade em aliment-los e em trat-los, desdeque era bem pequeno. Aprende com o pai que, em um

    zoolgico, o animal mais perigoso o homem... Umdetalhe importante a ser destacado que Piscinedesenvolve, para alm de seu interesse pela zoologia,uma grande curiosidade pelo estudo das religies,querendo tornar-se ao mesmo tempo cristo,muulmano e hindu, o que simbolicamente representa

    uma espcie de preparao e ou de pressgio domulticulturalismo do Canad, pas para o qual seu paidecidiu imigrar.

    preciso tambm notar a habilidade de YannMartel nas passagens dos poderes narrativos: o autorcede seu lugar de narrador a Piscine Patel, adulto que,vivendo em Toronto, conta a histria de Pi, de sua

    fantstica travessia do oceano Pacfico, do naufrgio dobarco no qual viajava em companhia de sua famlia e,finalmente, de sua permanncia durante 227 dias emum barco salva-vidas com um tigre de Bengala.

    "We'll sail like Columbus!" (Life of Pi, p. 97),ou Vamos navegar como Colombo, disse o pai, emdireo a um novo pas, a uma vida nova, uma novautopia. A venda do zoolgico foi indispensvel para quea famlia obtivesse os meios financeiros para recomeara vida na Amrica. O Tsimtsum3, contendo parte dosanimais vendidos a zoolgicos dos Estados Unidos,alm da famlia Patel, parte do porto de Madras, nandia, em 1977.

    3Segundo a cabala, Tsimtsum ilustra a idia de criao e da atividadede Deus.

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    A travessia

    Enquanto Max atravessa o Atlntico para chegarao Brasil, Pi faz a travessia do Pacfico para chegar scostas do Mxico e depois sua destinao final, oCanad. As embarcaes nas quais viajam naufragam,com o desaparecimento de todos os passageiros. Os

    nicos sobreviventes so os heris Max (Scliar) e Pi(Martel), que conseguem salvar-se graas a precriosbotes salva-vidas cujo espao exguo sercompartilhado com animais selvagens que viajavamnos pores dos navios e que tambm conseguiramsobreviver ao desastre.

    Esse episdio nos remete ao texto bblico da

    Arca de No (Gnesis, 6,17). Depois do dilvio, No esua famlia e um exemplar de cada espcie animal evegetal permanecero quarenta dias e quarenta noitesna arca, espera da descida das guas para recomearuma nova vida na terra. Ser portanto somente aps a

    passagem inicitica no interior da arca que eles estaroprontos para dar origem a uma nova forma de vida noplaneta.

    Os dois romances em questo, sendo textosemblemticos da imigrao para as Amricas,reescrevem curiosamente essa famosa passagem doGnesis, para representar simbolicamente o fato de queos imigrantes tambm vivem um ritual de iniciao,

    representado aqui pelo imaginrio da travessia e donaufrgio, com a perda de seus bens e de suasreferncias, para chegar nus como novas figuraes

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    de Ado prestes a (re)comear um outro cicloexistencial.

    interessante notar nos dois textos aimportncia que os autores atribuem ao "trans"(prefixo inscrito em travessia), que remete passagemao outro lado e sada de si mesmo. O oceano oespao intermedirio, o entre-dois; os personagens a

    permanecero deriva em um espao-tempo suspenso

    onde enfrentaro seus prprios demnios, que soficcionalizados por animais ferozes como o tigre, azebra (de perna quebrada), o orangotango e a hiena, nocaso de Life of Pi, e o jaguar, no caso de Max e os

    felinos. Ficando deriva, os personagenspermanecero afastados de sua rota, perdero de vistaas margens e sero levados ao sabor dos ventos e das

    correntes martimas.A passagem de um continente a outro, bem

    como o tempo em que ficaram deriva constituem umespao intersticial que no mais o pas natal nem o

    pas de chegada. Tempo de fazer o luto da origem,segundo a bela expresso de Rgine Robin, aexperincia do estranhamento e de reconfigurar asutopias americanas. Durante a travessia, ser precisodar provas de coragem e de esperteza para assegurar asobrevivncia nesse entre-lugar4instvel e perigoso. Naesteira de Cristvo Colombo, os personagens fazem aexperincia da passagem do conhecido aodesconhecido, da civilizao barbrie e, assim como

    4 Para o conceito de entre-lugar, ver texto de Nubia Hanciau: Oconceito de entre-lugar e as literaturas americanas no feminino, queser publicado em BERND, Z., org. Americanidade e transfernciasculturais. Porto Alegre: PPG-Letras/UFRGS & Movimento, 2003.

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    o conquistador de 1492, devero enfrentar os monstrose os seres fantsticos que, segundo o imaginrio da

    poca dos descobrimentos, povoavam o "martenebroso". O principal desafio que se apresenta aos

    personagens o de ultrapassar as situaes-limite aque so expostos e de se manterem vivos apesar dasameaas constantes das tempestades, das ondas e dosanimais famintos a bordo. Ambos saem vencedores da

    experincia da perda, da solido, da incerteza e doiminente risco de vida representado pela proximidadedos animais selvagens.

    As tcnicas da narrativa fantstica, tomadas deemprstimo do dirio de bordo de Colombo, matriztextual incontestvel desse procedimento esttico,convidam os leitores a compartilhar a experincia

    inslita dos migrantes que, deixando para trs suaherana cultural, devem se confrontar com osfantasmas e os demnios de seu subconsciente antes decomear uma vida nova no pas de adoo. Realizandoao mesmo tempo a ruptura (com o passado) e a ligao(com o porvir), os nufragos vivem no limite de suaresistncia fsica e mental. Viver na fronteira de seus

    prprios limites produz efeitos curiosos: as aes dosanimais e das feras se confundem; o real e a fico sodificilmente distinguveis. A necessidade de

    permanecer vivos mobiliza as foras dos nufragos,cuja nica motivao a sobrevivncia.

    A sobrevivncia fsica metfora dos esforos

    que os migrantes devem fazer em sua nova vida parano deixar morrer sua memria e sua herana cultural.E interessante mencionar, aqui, a reflexo de Margaret

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    Atwood relativa aos elementos que simbolizam esintetizam certas naes. Segundo a autora canadense,

    as fronteiras simbolizam as Amricas, enquanto a ilhaseria a palavra-sntese para a Inglaterra, e sobrevivncia,o verdadeiro smbolo centralizador para o Canad(Atwood, 1987, p. 32). O tema da sobrevivncia,

    presente durante toda a travessia do oceano, prefigurao esforo de sobreviver material e culturalmente em

    um pas estrangeiro. Como destaca Atwood, "asobrevivncia poderia ser o vestgio de uma ordemantiga que se arranjaria para durar como faria o rptilde uma espcie primitiva" (p. 33).

    A chegada ao Novo Mundo

    No livro de Scliar, um lugar importante reservado chegada ao Brasil e adaptao de Max aonovo contexto de Porto Alegre. Observa-se asmetamorfoses do personagem que, no momento dedeixar seu pas, era ainda um adolescente e que, desdea chegada ao Brasil, revela um comportamento deadulto, pronto a tomar as decises de instalao, buscade emprego etc. Apesar de suas esperanas em relao nova terra, o heri comea a sentir-se perseguido:

    pensa que seus vizinhos o espionam e que uma ona oespreita, no bosque nas cercanias do stio em que foiresidir. Mesmo sabendo que as matas sul-rio-

    grandenses no so o habitat prefencial de onas-pintadas e que o vizinho alegue no possuir qualquer

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    vinculao com partidos nazistas, ele no deixar desentir-se observado.

    Lembremos aqui as teses de Grard Bouchardsobre as Amricas como lugar e objeto de novasutopias. Ele constata o fracasso das grandes utopiasamericanas tais como o melting pot, a democraciaracial brasileira entre outras, e reconhece um certodeclnio (ou fadiga) "da americanidade como espao

    de sonho e de substituio" (Bouchard, 2000, p. 182).O destino de Max prende-se de alguma forma a essaviso pessimista das Amricas como espao destinadoao fracasso e morte das utopias, pois o personagemno chega a libertar-se dos fantasmas que o habitavamem Berlim. Somente muitos anos mais tarde, aps tertentado matar um suposto ex-membro do partido

    nazista e de ter purgado alguns anos de priso, ele sesentir verdadeira e finalmente "em paz com seusfelinos" (Scliar, p. 116).

    Se, na obra de Scliar, todo um captulo consagrado chegada ao Brasil assim como sdificuldades do personagem em encontrar o seu lugarna sociedade de acolhida, na obra de Martel, o livroacaba no momento em que o nufrago chega terrafirme, se recupera em uma enfermaria e passa a narrarde dois diferentes modos suas inacreditveis

    peripcias. Entretanto o leitor conhece desde o incioque a adaptao, em Toronto, de Piscine Molitor Patel,ou Pi, foi muito bem sucedida, pois ele prprio o (ou

    um dos) narrador(es) dessa inslita histria. Sabe-se,por exemplo, que ele conseguiu concluir seus estudosem dois diferentes campos: em zoologia e em histria

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    das religies, e que em sua casa encontram-se umaesttua de Ganesh, o que remete ao hindusmo, religio

    praticada por sua famlia na ndia, uma Virgem deGuadalupe, o que remete religio catlica, e uma fotode Kaaba, figura sagrada do Islamismo. Ele est pois

    plenamente imerso no transcultural, e esta abertura sdiferentes maneiras de relao com o mundo faz partedas estratgias de sobrevivncia do personagem. Nesta

    narrativa cheia de humor e de clin d'oeils a vriasnarrativas orais extradas de diferentes culturas, amensagem subjacente remete incessantemente tesesegundo a qual se pode encontrar a(s) verdade(s)trilhando diferentes caminhos.

    Em Scliar, as passagens transculturais somenos evidentes na medida em que Max leva um certo

    tempo para resolver seus conflitos existenciais; emMartel, as passagens transculturais so claramenteapresentadas: o saber emprico sobre animais, que Pitrouxe de seu pas natal, e que foi reatualizado durante atravessia, se transforma em saber cientfico com orecebimento do diploma universitrio. Os dilogosiniciados na ndia sobre as diferentes propostastrazidas pelos diversos credos religiosos transformam-se em saber formal assegurado pelos meiosacadmicos freqentados no Canad. O que se observanos fenmenos da trans-cultura que os distintosaportes culturais que entram em contato passam por

    processos de transmutao, dando origem a algo novo

    que permite ao imigrante tornar-se outro sem deixar deser ele mesmo.

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    As figuras da americanidade

    Osdois romances exploram as figuras e os mitosda americanidade na medida em que se constroem a

    partir de viagens, de passagens, de travessias e demigraes e, se projetam algumas distopias,

    prefiguram sobretudo utopias de recomeo e de

    renovao. Os dois personagens refazem a experinciade Cristvo Colombo no que diz respeito pulso daviagem e da ultrapassagem do temor dos monstros que,segundo relatos orais, povoavam os oceanos e as terrasde alm-mar. Os animais selvagens so o outro ladodos personagens, e os diferentes relatos apresentadosmostram tambm que em situao-limite como a da

    luta pela sobrevivncia os homens podem comportar-se como as feras.

    Esta interface homem/fera encontra-seencriptada nas duas obras: em Max e os felinos, l-seem epgrafe uma citao de Francisco Macias

    Ngueme, ditador da Guin Equatorial: "Medo, eu? Otigre no tem medo de ningum... O tigre invisvel. Aminha alma". EmLife of Pi a novel, o autor apela para afigura da personificao: o narrador fabrica umasegunda verso de sua narrativa, substituindo osanimais por seres humanos: a hiena passa a ser ocozinheiro do navio naufragado, a zebra de pernaquebrada, um dos marinheiros, o orangotango, a me

    de Pi, e o tigre ora o prprio menino ora um serhumano cujo nome Richard Park, com quem Pidialoga durante a longa deriva pelo Pacfico.

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    Duas narrativas, isto , duas possibilidades derepresentar os fatos so fornecidas aos primeiros que

    vm socorrer os nufragos. No caso da obra de YannMartel, os funcionrios da companhia de seguros quevm conhecer as circunstncias do naufrgio doTsimtsum, bem como as condies quase miraculosasda sobrevida de Pi, defrontam-se com dois diferentesrelatos. Os entrevistadores que chegam enfermaria

    Benito Juarez, em Tomatln, no Mxico, tmdificuldades para crer no relato, que consideramfantstico, segundo o qual o jovem Pi conseguiusobreviver durante 227 dias em um escaler, emcompanhia de quatro animais selvagens que seentredevoram, sobrando no final apenas o tigre e o

    jovem. Diante da incredulidade dos entrevistadores, Pi

    apresenta-lhes sua segunda verso, segundo a qual eleconseguiu salvar-se em um barco salva-vidas com suame, um marinheiro e o cozinheiro do Tsimtsum, osquais acabam por se entredevorar, devido ao longotempo de permanncia deriva. Os funcionriosacham essa segunda verso ainda mais terrvel, pois serecusam a aceitar a prtica do canibalismo, econsignam em seus relatrios a primeira verso.

    EmMax e os felinos, o jovem fala do jaguar quelhe fez companhia aps o naufrgio do Germania aosmarinheiros de um navio que veio para resgat-lo. Osmarinheiros atribuem a histria do jaguar imaginaode Max, perturbado com a longa exposio ao sol,

    solido e sua extrema fatiga.Esse jogo de narrativas duplas assinala aimpossibilidade, no espao das Amricas, da

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    univocidade, das verdades e das certezas indiscutveis.Os dois autores vislumbram o espao americano como

    espao de negociao do identitrio e nos legam umalio de fundamental importncia: no existem fatos,s existem narrativas... Trata-se, de fato, de uma claraaluso histria das Amricas, onde cadaacontecimento tem ao menos duas verses: a doscolonizados e a dos colonizadores, a dos vencidos e a

    dos vencedores.Como temos tentado mostrar, os dois livros seconstroem a partir de um mesmo tema um menino euma fera tentando sobreviver em um barco deriva , amais velha das idias no mundo, segundo o dizer deSarah Schmidt (National Post, 2002). Segundo aautora, esse ncleo narrativo emerge nos romances de

    Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e em outras tantasnarrativas cuja enumerao seria fastidiosa, todasremontando ao mito bblico da Arca de No. Os doisromances guardam, contudo, grande originalidade seforem lidos na perspectiva das transferncias culturais,tentando-se interpret-los como narrativasemblemticas da imigrao, e a seus personagens,como personificaes do esforo de sobrevivncia. Atravessia do oceano se constitui no espaointermedirio que no nem o novo horizonte, nem oabandono do que foi. A longa deriva sobre as ondasconstitui o entre-lugar incontornvel para osimigrantes onde "presente e passado, interior e

    exterior, incluso e excluso se entrecruzam paraproduzir figuras complexas da diversidade e doidentitrio".

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    nesse entre-lugar aqutico, instvel eimprevisvel, que se encenam as lutas dos heris com

    seus prprios demnios, com o outro de si-mesmos. Atravessia, como rito de passagem, revela-seindispensvel antes da chegada a um mundo que seconstruiu at ento sem a sua colaborao.

    Os dois personagens, depois de terem feito umaviagem abracadabrante5, chegam ao que est por

    comear: uma nova vida na Amrica. Parece que osescritores brasileiro e canadense reescrevem o poema sntese da americanidade, que abre a antologia

    Lhomme rapaill/O homem restolhado, do poetaquebequense Gaston Miron. Eles tambm so dealgum modo homens restolhados, pois vo nocontexto do Novo Mundo recolher materiais j

    utilizados para lhes dar novas utilizaes, assegurandoassim a sobrevivncia de vestgios e de fragmentos desuas memrias que salvaram-se do naufrgio. Mironempregou a expresso rapaill, traduzida para o

    portugus por Flvio Aguiar por restolhado, "comosmbolo da reconstruo do humano sob os escombrosda colonizao"6, em um momento marcado por uma

    profunda crise das utopias e na esperana de poderredespert-las.

    Moacyr Scliar, no sul, e Yann Martel, no norte,ambos escritores americanos, sentiram necessidade derelanar o tema das utopias de renovao a partir do

    ponto de vista dos imigrantes, imbudos certamente da

    5Aluso ao famoso poema que se encontra na abertura do antolgicoL'homme rapaill.6Prefcio de Flvio Aguiar edio brasileira de O homem restolhado,de Gaston Miron. So Paulo: Brasilicnse, 1994, p. 7.

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    mesma generosidade de despertar o sonho e a fantasia,essenciais aos humanos e funo primordial da

    literatura. O apelo ao fantstico, que esconde um certonmero de enigmas e de mistrios, foi a estratgiaescolhida por ambos. Eles deixam a seus leitores atarefa de penetrar no interior das narrativas paradecodificar as opacidades como, por exemplo, o nomeque o personagem de Yann Martel atribui a si mesmo,

    Pi, diminutivo de Piscine, mas tambm dcima sextaletra do alfabeto grego, que remete a pripheria(periferia) e designa a circunferncia do crculo.

    Nmero estranho designado por uma letra, carregadode enigmas que desafiam a inteligncia da humanidadedesde a mais remota antigidade.

    Bibliografia:

    Corpus:

    MARTEL, Yann.Life of Pi, a novel. Vintage Canada, 2001.

    SCLIAR, Moacyr. Max e os felinos. Porto Alegre: L&PM

    Pockets, 2001. (primeira edio, 1981)

    Geral:

    ATWOOD, Margaret. La survivance. In: Essais sur la

    littrature canadienne. Montreal: Boreal, 1987. p.25-41.

    (original em ingls, 1972)

    BERND, Zil. Amricanit : les transferts du concept.

    Interfaces Brasil/Canad. Porto Alegre : ABECAN, 2002.N.2, p. 9-26.

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    BHABHA, Homi K. Disseminao, o tempo, a narrativa e

    as margens da nao moderna. In: O local da cultura. Belo

    Horizonte: UFMG, 1998. p. 198-238.BBLIA SAGRADA, trad. Padre Antnio Pereira de

    Figueiredo. Edio Barsa, 1968. Impresso pela Catholic

    Press. p.57. Gnesis 6,I 7; 6,I 8; 8,II; 8,I 2; 9, 29.

    BOUCHARD, Grard. Le Quebec, les Amriques et les

    petites nations: une nouvelle frontire pour l'utopie? In:

    Nowelle fron-tirre pour 1'utopie; CUCCIOLETTA et alii,ds. Legrand rcit des Amriques. Editions IQRC, 2001. p.

    179-190.

    CHEVALIER, J. & GHEERBRANDT, A.Dictionnaire des

    symboles. Paris: Seghers, 1969.

    COLOMB, Christophe. La dcouverte de l'Amrique. I.

    Journal de bord 1492-1493. Paris: La Dcouverte, 1991.

    CUNHA, Rubelise. Yann Martel's Life of Pi, a novel(resenha). In:Interfaces Brasil/Canad, n. 3, Porto Alegre:

    ABECAN, juin 2003.

    MIRON, Gaston. O homem restolhado. So Paulo:

    Brasiliense, 1994. Trad. de L'Homme rapaill por Flvio

    Aguiar.

    MORENCY, Jean. Le mythe amricain dans les fictions

    d'Amrique; de Washington Irving Jacques Poulin.

    Quebec: Nuit Blanche, 1994.

    Artigos publicados em jornais e revistas sobre a

    polmica Scliar/Martel:

    BRAZILIAN author contends Canadian who won Booker

    Prize stole his plot.National Post, Canada, nov. 7, 2002.A FRONTEIRA do que original (entrevista). Porto Alegre,

    Zero Hora, Cadernos de Cultura, nov. 9, 2002, p. 2.

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    VERSSIMO, L.F. Copiando Scliar. Porto Alegre. Zero

    Hora, nov. 6, 2002, p. 3.

    SCHMIDT, Sarah. Boy and beast on a boat: oldest idea inthe world,National Post, Canada, nov. 9, 2002, p. Al3.

    S um emprstimo? Veja,Nov. 6, 2002, p. 128.

    MENDONA, Renato. Scliar inspira vencedor de prmio

    literrio.Zero Hora, nov. 11, 2002, p. 37.

    Sobre o nmero Pi, site visitado em 14 de abril de 2003 :http://www.sciam.com/askexpert_question.cfm?article_

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    MAX E OS FELINOS

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    OTIGRE SOBRE O ARMRIO

    Envolvido com felinos Max sempre esteve, deum modo ou de outro.

    Nascido em Berlim, em 1912, era filho depeleteiro e cresceu entre peles; e destas, as que maisapreciava eram as de leopardo, infelizmente raras naloja do pai, um pequeno estabelecimento situado num

    bairro no muito bem conceituado de Berlim. Alivinham bater principalmente refugos: raposas de

    pedigree duvidoso, minks encontrados mortos sobre a

    neve, martas rejeitadas por outros peleteiros. E atmesmo mas disto no se falava em famlia, eraassunto tabu o coelho tinha sua vez nos casacosvendidos s clientes mais tolas. Como negociante, ecomo pessoa, Hans Schmidt no era um tipo refinado.Atarracado como um urso, era veemente demais noexaltar a qualidade de sua mercadoria; ficavavermelho, berrava, salpicava de perdigotos a cara dosclientes; e em casa, entre uma colherada e outra dasopa ruidosamente sorvida, gabava-se mulher e aofilho de j ter enganado muitos trouxas na vida.Ouviam-no em silncio, Max e a me. Erna Schmidtera exatamente o oposto do marido, uma mulher

    pequena e tmida, sensvel, no desprovida de certacultura. Na adolescncia, desejara ser declamadora; e noite, em meio a confusos sonhos, recitava em voz alta

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    versos de Goethe e de Schiller. O marido acordava-a asafanes: no posso dormir, gritava, por causa das tuas

    loucuras. Erna jamais reagia brutalidade do marido;mas s vezes, enquanto estava contando uma histriaao filho, interrompia-se de sbito e abraava-se a eleaos prantos.

    Tudo isto causava desgosto ao Max, que herdarada me a sensibilidade quase doentia. Tanto desgosto

    quanto prazer lhe traziam as peles. Desde crianahabituara-se a procurar refgio no depsito da loja, umaposento de dimenses reduzidas que recebia um

    pouco de luz e ventilao atravs de uma janelinhaguarnecida de grossas barras de ferro. Naquele lugarMax sentia-se feliz. Gostava de enfiar o rosto nas peles,

    principalmente (e isto veio depois a se revelar irnico)

    nas de felino. Estremecia de esquisita emoo aolembrar que aquela pele um dia recobrira o corpo deum elegante animal que correra pela frica atrs degazelas. Apenas o despojo do bicho? Sim. Para Max,contudo, era como se a fera estivesse ali, viva.

    E havia o tigre, naturalmente, o que dava onome loja: Ao Tigre de Bengala. O animal tinha sidoabatido pelo prprio Hans Schmdt, numa viagem quefizera ndia com o Clube dos Caadores umaaventura cuja descrio produzia no menino Maxexcitao, claro, mas sobretudo um mal-estar quaseintolervel. A ndia, nas grosseiras, jocosas palavras do

    pai, era um lugar sujo, cheio de nativos esquelticos, os

    chamados intocveis. Para ele a nica coisa que valeraa pena, na viagem, fora a caada ao tigre, quedescrevia com profuso de detalhes. Falava da floresta

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    impenetrvel, dos rudos misteriosos da noite, da tensaexpectativa com que os caadores, encarapitados em

    plataformas sobre rvores, aguardavam o tigre. E derepente a fera surgindo na clareira, o tiro certeiro otiro dele, Hans Schmidt e ali estava, sobre o armrio,o bicho, empalhado. Excelente trabalho, alis, fizera oempalhador. Deixara o couro quase intacto, a marca da

    bala mal sendo notada. Pela bocarra extrara as

    vsceras, substituindo-as por estofo do melhor. Osolhos eram de vidro, mas perfeitos. A certa incidnciade luz reluziam com um brilho feroz, o brilho que Maxno via nos tigres do zo, animais alis velhos,conformados ao cativeiro.

    Desde muito pequeno Max tinha medo do tigre,um medo que chegava a dar-lhe pesadelos. Acordava

    noite gritando, para desespero da me, que, alm detodos seus problemas, sofria de asma e conhecia os

    pavores da noite. Hans Schmidt zombava dos temoresdo filho e no perdia ocasio para espica-lo:covarde, no passas de um covarde. Uma noite, aps o

    jantar, ordenou-lhe que fosse loja, buscar um jornalsupostamente l esquecido. Max, ento com noveanos, levantou objees o frio intenso, a escurido mas o pai, irritado, disse que deixasse de ser medroso eque fosse de uma vez. Erna ps-se a chorar, pediu aomarido que pelo amor de Deus no fizesse aquilo coma criana. Max assistia discusso, sentado, hirto. Desbito levantou-se, e, sem nenhuma palavra, pegou o

    casaco e saiu. Ia para a loja.Caminhou apressado por ruas desertas. Aodobrar uma esquina, deu com um grande grupo de

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    pessoas que avanava pelo meio da rua, carregandotochas e cantando hinos: uma passeata dos socialistas.

    Os manifestantes avanavam lentamente; um lhe fezsinal para que viesse tambm.

    De repente, tropel de patas: policiais montadosinvestiam contra os manifestantes, sabresdesembainhados. Na confuso, Max viu um homemtombar, o crnio partido por uma espadeirada.

    Apavorado, correu para a loja, que ficava perto. Tremiatanto que mal conseguiu enfiar a chave na porta;finalmente entrou, escondeu-se atrs de um manequime ali ficou, no escuro, os dentes chocalhando. Aos

    poucos, os gritos foram cessando. A rua ficou emsilncio.

    Max mirava fixo o tigre. Ali estava ele, em cima

    de seu armrio, os olhos quando os faris de umcarro iluminavam o interior da loja reluzindo comum brilho sinistro. Entre os dois, entre o menino e afera, o balco, e sobre este, o jornal. O jornal que Max

    jamais conseguiria alcanar; no, pelo menos,enquanto estivesse paralisado pelo medo, um medocomo jamais sentira antes. Um medo humilhante etambm uma surda e contida revolta. Para que

    precisava o pai do jornal? Que notcias to importantestinha de ler? Por que e as lgrimas lhe corriam pelorosto era to cruel com o filho, o nico filho?

    Uma idia ocorreu-lhe: o quiosque da esquinatalvez ainda estivesse aberto; e se comprasse o jornal

    l? Mas no daria certo. Ao abrir a loja no dia seguinteHans Schmidt descobriria o jornal sobre o balco; seuscomentrios zombeteiros seriam ento insuportveis.

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    No. Tinha de vencer o medo, enfrentar o tigre, pegaro jornal, sair correndo mas voltar para casa como se

    nada tivesse acontecido. Est aqui o teu jornal, pai;mais alguma coisa? Agarrado ao manequim, noconseguia, contudo, dar um passo. As pernas no lheobedeciam.

    O telefone tocou: provavelmente o pai, irritadocom a demora dele (o que ests fazendo a? Cheirando

    as peles, maricas?)Pra, diabo, pra, murmurava Max,aterrorizado, mas o telefone soava insistentemente, eele ento empurrou o manequim, correu para o jornal,tropeou, caiu sobre o balco. Osvidros se quebraram,cacos penetraram-lhe fundo na mo. A dor lancinantef-lo gritar; mesmo assim, pegou o jornal e, sangrandoabundantemente, voltou para casa. Ao v-lo, a me

    comeou a gritar histericamente. No foi nada, disseMax, tentando acalm-la Ao pai, entregou o jornaltinto de sangue. O rosto aparvalhado deste homem foia ltima coisa que viu antes de desmaiar.

    No, Max no gostava da loja, territrio do pai edo tigre de Bengala. Mas do depsito sim, gostava. Aolongo dos anos foi adquirindo o hbito de se refugiarali para ler, coisa que Hans Schmidt consideravaesquisita, mas que permitia ao filho afinal era pai. Nodepsito, Max leu Andersen e Grimm, e, porinsistncia da me, Goethe e Schiller. Mas seusfavoritos eram os relatos de viagem, a comear poruma coleo chamada Aventuras do Pequeno Pedro.

    Graas a estes livros, pitorescamente ilustrados, Maxconheceu, por assim dizer, a frica (Kleine Petergehtnach Afrika), oJapo (Kleine Petergeht nach Japan), e,

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    evitando a ndia, cuja imagem o pai tinha devidamentedestrudo, chegou ao Brasil (Kleine Peter... Brazilien),

    pas que definitivamente o fascinou. J na terceira ouquarta pgina uma ilustrao mostrava o PequenoPedro em plena selva, olhando espantado, mas semmedo, para um grande felino (um jaguar, segundo otexto) que terminava de devorar um aborgene, o pdeste pendendo do canto da bocarra. Apesar deste

    banquete, ou justamente por causa dele, o jaguar tinhaum ar benigno, bem humorado at, muito diferente dotigre de Bengala; da ter Max ficado com a impressoque o Brasil era um pas alegre, feliz. Um dia pretendoconhecer este lugar to encantador, escreveu em seudirio. Era um rapaz sem amigos, e o hbito de serefugiar no depsito de peles s favorecia sua

    tendncia solido. No depsito fumou pela primeiravez; l se masturbava, e l teve sua primeira relaosexual.

    Essa mulher, essa Frida, trabalhava na loja. Eraa nica empregada; mais no seria necessrio, para oescasso movimento do estabelecimento. Era umarapariga baixota, gordinha, risonha, palradora. Filha decamponeses do sul, estava longe de ser uma pessoarefinada. A Max contava anedotas picantes, numalinguagem chula, e desmanchava-se de rir vendo orapaz corar.

    Uma tarde, Hans tendo de sair, pediu Fridaque tomasse conta da loja. V descansado, patro, ela

    disse, mas, to logo o homem saiu, trancou a porta ecorreu para o depsito. L estava Max, como decostume, deitado sobre as peles, lendo.

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    Frida ps-se a experimentar casacos, desfilandode um lado para outro que dizes, Max? no pareo

    uma dama, Max? rindo, piscando o olho. Maxolhava-a de soslaio, perturbado. Ela ligou o rdio. Osacordes de um tango inundaram o depsito.

    Vem danar.Max resmungou qualquer coisa acerca de no

    saber danar, mas ela puxou-o para si. Danaram,

    rostos colados, Max sentindo a maciez da pele dela eficando cada vez mais excitado. Por fim tombaramsobre as peles, os dois. Deixa comigo, ela sussurrou.Era experiente; tudo correu bem... Tudo correu bem.Quando Hans Schmidt chegou, Frida j estava de novoao balco, Max no depsito, o rosto ainda vermelhooculto atrs do livro; o tigre de Bengala, de cima de seu

    armrio, mirava fixo como sempre.No dia seguinte, contudo, despediu a

    empregada. Teria desconfiado de alguma coisa?Talvez. De qualquer modo, proibiu moa voltar loja; e a Max, advertiu que dali em diante evitassequalquer contato com ela.

    Max, porm, no podia esquecer aquela tarde nodepsito... Sonhava com a rapariga, escrevia-lhe cartasapaixonadas que logo destrua e por fim, noagentando mais, foi procur-la em casa. Frida orecebeu sem rancor, risonha como se nada tivesseacontecido. Perguntou pelo pai, pela loja e at pelotigre. Num impulso, abraaram-se; fizeram amor no

    sof da pequena sala, indiferentes presena da tiadela, uma velha cega e surda, que, sentada numacadeira de rodas, salmodiava velhas cantigas tirolesas.

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    Depois, enquanto se arrumavam, Frida perguntou, numtom casual, se o casaco de raposa que estava no

    depsito j havia sido vendido. Max disse que no. Pois ento ela disse, olhando-o de modo

    estranho na prxima vez em que me quiseres, vemcom o casaco. Ou no vem.

    Tarde, naquela noite, Max pegou a chave daloja, foi l e roubou o casaco, o tigre de Bengala desta

    vez no lhe causando nenhum susto. Para que o pai denada suspeitasse, arrancou com um p-de-cabra a ja-nelinha gradeada, espalhou peles por toda a loja; porltimo, no sem certo sentimento de vingana, atirouao cho o tigre empalhado. Ainda que intrigado pelofato de ter sido roubado apenas um casaco, HansSchmidt ficou furioso. A mesa do almoo fez um

    comcio diante da mulher e do filho; gritou que naAlemanha j no havia honestidade, que o pas tinha setornado um covil de ladres e de esquerdistas.

    noite, Max correu a levar o casaco para a Frida.Ela ficou maravilhada:

    Tu fizeste isto por mim, Max!Levou-o para o quarto, tiveram uma rpida e

    fogosa relao. Depois ela se levantou, nua, vestiu ocasaco e desfilava diante do espelho, rindo. Max ficouexcitado e quis uma segunda vez, mas ela o repeliu,subitamente irritada: chega, disse, muita coisa porum casaco vagabundo destes. Max sentiu as facesarderem; sem uma palavra, vestiu-se, saiu.

    Trs dias depois, num sbado, ele e o paicaminhavam pelo centro da cidade, em direo casa,quando de repente Hans Schmidt deteve-se. Houve

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    alguma coisa? perguntou Max, mas o pai norespondeu. Pra! berrou, saindo em desabalada

    correria em meio aos espantados transeuntes.Era a Frida que ele perseguia. Max reconheceu-a

    pelo casaco de peles.A caada no durou muito: a mulher tropeou,

    rolou pelo cho. Hans atirou-se nela, s bofetadas:Vagabunda! Ladra!

    Frida defendia-se como podia. Max olhava,assustado, sem saber se intervinha ou no. Ela o viu,pediu socorro:

    Me salva, Max! Diz a ele que no fui eu queroubei o casaco! Diz, Max!

    Max correu para o pai, tentou cont-lo semconseguir, o homem estava furioso. Mas j dois

    policiais se aproximavam. Separaram Hans e Frida, e,depois de um rpido interrogatrio, levaram ambos

    para o distrito. A pequena multido que se formaradispersou-se em meio a risos e comentriosgalhofeiros. Sem saber o que fazer, Max voltou paracasa. O pai regressou noite. Vinha com o casaco sobo brao, mas ultrajado: Frida fora solta, segundo ele,

    por ter amizades na polcia. No h mais honra neste pas, Max! A

    Alemanha est perdida! Podre, completamente podre.Deixou-se cair numa cadeira, com um ar to

    desamparado que Max, pela primeira vez, teve penadele. No era o autoritrio, o brutal Hans Schmidt que

    estava ali sentado, a cabea baixa, os ombrosencurvados; era um homem perplexo e assustado, umafigura digna de piedade. Max aproximou-se dele,

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    colocou-lhe a mo ao ombro. Sem saber exatamente oque dizer ofereceu-se para ajudar na loja: tu no

    precisas daquela mulher, pai; posso trabalhar contigo.Hans Schmidt ergueu a cabea, o brilho escarninho jde volta ao olhar:

    Tu, peleteiro? Nunca. s fino demais paraessas coisas do comrcio.

    Logo em seguida, porm, se arrependeu. No,

    meu filho, disse, melanclico, no quero que trabalhesnessa profisso desmoralizada, isto coisa para judeus.S me meti neste ramo porque no estudei, no seifazer nada.

    Tu vais para a Universidade, Max disse,pondo-se de p. Quero que sejas algum. Um lder,como os que a Alemanha precisa.

    Tal como o pai previra, Max revelou-se, naUniversidade, um aluno extraordinariamente capaz. Ede mltiplos interesses; no incio do curso pensou emdedicar-se ao Direito, s cincias humanas, mas logodepois sua fascinao pelo extico levou-o rea dascincias naturais. Comeou a freqentar oslaboratrios do Professor Kunz, famoso por seusestudos de psicologia animal poca, umaespecialidade relativamente nova. O Professorestudava o comportamento de gatos em situao deconflito. Colocava os animais em enormes labirintos,em que eram submetidos a constantes dilemas, umcaminho levando a um pires de leite, outro a um feroz

    buldogue. Breve, dizia Kunz homem atento aodesenrolar dos acontecimentos polticos e sociais ,estes experimentos tero grande valor prtico.

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    (Mais tarde, j no fim da guerra, o Professorviria a ampliar o campo de suas experincias,

    trabalhando principalmente com ciganos. Num tipo depesquisa, jovens ciganos, com microfones ao pescoo,eram jogados de avies; esperava o Professor que naqueda fornecessem os sujeitos, se no um depoimento,

    pelo menos alguma indicao grito primevo ou outro acerca do sentido da existncia, grande preocupao

    do Professor naqueles dias em que os aliados jestavam s portas de Berlim, ele ento querendo saberalgo sobre a transio para a vida eterna. Expectativafrustrada: os ciganos despedaavam-se no solo comum rudo seco, mas sem nenhum pio. Kunz, fones nosouvidos, esperava ansiosa e inutilmente qualquermanifestao deles. Foi forado a publicar os

    resultados negativos deste trabalho, procurandoameniz-los com uma complexa teoria sobre a relaoentre o nomadismo dos ciganos e sua muda trajetria

    para a morte. Em seus carroes, dizia na concluso,os zngaros vagueiam em busca do aniquilamento,estando acostumados a faz-lo em silncio, razo pelaqual a pesquisa fracassou. Encerrava sugerindo umcaminho para futuros trabalhos no gnero: atirar emabismos ciganos e carroes.)

    Max no acreditava muito nestas especulaes,mas gostava do Professor, entre outras razes porqueKunz, como oKleine Peter,percorrera inmeros pasesexticos, coletando espcimes para as experincias. No

    Brasil, por exemplo, vivera alguns anos; Max no secansava de ouvir as pitorescas descries que oProfessor fazia das criaturas da selva tropical, as

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    gigantescas borboletas, as curiosas preguias, esobretudo os misteriosos felinos. Um dia preciso

    conhecer esses lugares, suspirava. Tinha dezenoveanos, ento; era um rapaz de estatura mdia, magro, derosto anguloso, uma expresso de desafio no olhar.Tinha bom gnio e no fundo se considerava umotimista; nisto diferia de seu colega e grande amigo, oHarald. Ambos tinham a mesma idade, eram

    fisicamente parecidos, usavam at o mesmo tipo deculos de aro fino, dourado, e pensavam do mesmomodo em relao a muitos assuntos. Mas Harald erasocialista como o pai, que alis participara namanifestao que Max vira quando fora buscar o jornalna loja; escapando ento por um triz de morrer, ficaraamargurado em relao s coisas da poltica e

    transmitira esta amargura ao filho. Harald acreditavana luta de classes, estava ligado a uma organizaoclandestina. Rios de sangue precisam correr, costumavadizer, para que possamos passar do reino danecessidade para o reino da liberdade. Apesar destasdeclaraes bombsticas, reconhecia-se incapaz dematar uma mosca. Esperava que outros, maiscorajosos, levassem a cabo esta dura tarefa, eleajudando na medida de suas possibilidades, talvezescrevendo artigos. Ou poemas.

    Max sentia-se bem. Voltara a se encontrar comFrida; ela, muito grata por Max t-la defendido dosgolpes do pai, mostrava-se especialmente carinhosa.

    Viam-se apenas uma vez por semana, e s escondidas,pois ela agora estava casada com um pequenocomerciante. Este homem, que Max conhecia de fotos,

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    era nazista; s quintas, noite (e era noite que Fridarecebia o Max), ia reunio do Partido. Voltava de l

    bbado e eufrico, anunciando para breve a conquistado mundo pelo nazismo. Quer dominar o mundo,zombava Frida, mas na cama um desastre. Maxtambm ria dos nazis, achava-os ridculos. Harald,

    porm, alarmava-se: eles esto mostrando as garras eningum faz nada, Max.

    Pobre Harald. Seu aspecto, naqueles dias, eraverdadeiramente lamentvel, a barba por fazer, o olharalucinado. O problema dele falta de mulher, disseFrida, a quem Max externara suas preocupaes; noqueres traz-lo aqui? perguntou, ar faceto. Max,enciumado, meio que se ofendeu, mas acabou achan-do que, de fato, Harald melhoraria se o que nunca

    tinha acontecido at ento tivesse contato commulher, especialmente com uma mulher boa e alegre,como a Frida. Fez com que Harald fosse casa dela,mas a coisa terminou em desastre, o rapaz chorando econfessando-se impotente. A partir da, piorou muito;uma noite, a me, com quem ele morava, telefonou aMax pedindo que viesse com urgncia. Ele foi at l eencontrou o amigo nu, acocorado atrs de uma

    poltrona, gritando que os nazistas iam invadir a casa.Frida e Max tentaram ajud-lo como podiam.

    Frida dava dinheiro, Max procurou tratamentopsiquitrico. Era difcil; o pai de Harald tendo sido umesquerdista bem conhecido e o rapaz gozando da

    mesma fama, nenhum psiquiatra queria se arriscar acair em desgraa com os nazis. E Harald piorava dia a

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    dia; recusava a alimentao, fazia as necessidades nacama.

    Um dia recebeu um telefonema aflito de Frida:precisava falar-lhe com urgncia. Vou j a, disse Max.

    No. Aqui no. Depois explico.Marcaram encontro num pequeno restaurante

    nos arredores da cidade. Max chegou primeiro; logodepois veio Frida, o rosto oculto atrs de um pesado

    vu. Sentou-se, emborcou de um trago o clice deconhaque que Max lhe ofereceu, foi direto ao assunto: A coisa est feia, Max. Precisas fugir. Fugir? Fugir.O marido tinha descoberto a ligao dela com

    Max e Harald, denunciara os dois polcia poltica.

    Harald, mesmo doente, fora detido e estava sendointerrogado.

    Agora esto atrs de ti, Max. Tens de fugir.Ela j tinha providenciado tudo: fizera contato

    com o capito de um cargueiro, homem de confiana.Max deveria seguir para Hamburgo.

    Mas quando? Hoje. J.Max olhava-a, incrdulo. A histria parecia-lhe

    fantstica. Teria de deixar o pas? Porque tinha umcaso com Frida? Absurdo. No cometera crime algum,quanto mais poltico. Que Harald tivesse sido detido,isto ele ainda admitia, e procuraria livrar o amigo (mais

    uma razo para ficar em Berlim). Mas a ele,prenderem? Por qu? Contudo, Frida estava toangustiada que ele optou simplesmente por

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    desconversar. Est bem, disse. Vou minha casa,preparar as coisas...

    No! Frida agora estava transtornada. Nofaas isto, Max. Eles vo te pegar.

    Ele tranqilizou-a como pde, disse que ela nose preocupasse, que ele sabia o que estava fazendo.Saram separados; ela tomou um txi, ele foi denibus. J era noite quando chegou sua rua. A me o

    esperava na esquina. Pela expresso de seu rosto Maxteve, de imediato, a certeza que Frida dissera a verdade:os nazis estavam atrs dele, de fato.

    Eles esto l disse a me, mal contendo ossoluos. Interrogaram o pai...

    Ps-se a chorar. Max abraou-a. No tepreocupes, sussurrou, isto tudo um mal-entendido,

    logo se esclarecer, vais ver; tudo que tenho a fazer desaparecer por uns tempos...

    Ela enxugou as lgrimas, olhou-o, tentou sorrir.Vai, disse, vai com Deus. Abriu a bolsa, tirou umsaquinho de veludo escuro.

    Aqui tens algum dinheiro. E as minhas jias.Sempre serviro de algo.

    Beijaram-se. Max deu meia volta e afastou-se,apressado. Uma nica vez olhou para trs e ali estava ame, imvel em meio ao tnue nevoeiro. Foi a ltimavez que a viu.

    De um telefone pblico ligou a Frida, pediumais detalhes sobre o navio, a viagem. Ela explicou

    minuciosamente, tranqilizou-o: J te disse, o capito de confiana, at meu parente, dentro de duas ou

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    trs semanas ele te deixar no porto de Santos, noBrasil.

    S ento Max se deu conta que no perguntarapara onde ia. Brasil? O pas extico? A idia a princpiodeu-lhe um entusiasmo quase infantil; logo depoissentiu-se beira do pnico. Brasil? O que sabia desselugar, desse Brasil? Muito pouco: s o que aprenderano livro doKleine Peter. E as histrias que o Professor

    Kunz lhes contara. De resto, muitas dvidas. Dvidasquanto... aos nativos, por exemplo. O aspecto fsicodos nativos. Compleio: altos, baixos, bem ou malnutridos? Cor e textura dos cabelos. Cor dos olhos.Formato do crnio. Estado dos dentes. Hbitos,estranhos ou no. Ascendncia: caucsica, mongol,outra? Idioma. Tradies. Venerariam algum deus em

    especial? Com que tipo de culto? Em que p estaria aquesto dos sacrifcios humanos? Quanto aotemperamento seriam gentis? Loquazes, reservados?Prestativos, rebeldes? Tolerantes a estrangeiros?

    Dvidas quanto forma de governo. Braso dearmas (descrio sumria sendo o bastante). Hino.Bandeira. Produo agrcola. Navegao decabotagem. Prospeco de minrios. Transporte areo,terrestre, fluvial, lacustre. Moeda.

    Dvidas quanto ao clima. Seco, chuvoso?Ventos alsios presentes ou ausentes? Umidade relativado ar. Que tal um ar saturado de umidade, a respiraotornando-se difcil, roupas e papis encharcados,

    desfazendo-se?Dvidas apesar das narrativas de Kunz sobreflora e fauna. Verdadeiros, os boatos sobre a presena

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    de grandes plantas carnvoras? Variedades deorqudeas. Felinos.Felinos.

    Al! Al, Max, ests me ouvindo? Frida,impaciente. Responde, Max.

    Sim, disse Max, estou te ouvindo. Ainda bem,ela disse, pensei que tinham cortado a ligao.

    Despedia-se, no podia falar mais; desejava aMax felicidades e pedia a Deus que um dia...

    Adeus, disse Max. Pousou o telefone e dirigiu-se para a estao, onde tomou o trem para Hamburgo.No porto de Hamburgo aguardava-o uma

    inquietante notcia: o navio que deveria lev-lo aoBrasil, o Schiller, acabara de zarpar. Indicaram-lhe umoutro cargueiro, que tinha o mesmo destino. Max foifalar com o capito.

    Era um tipo muito sinistro, esseCapito. Tinhalongas barbas negras, e, como os antigos piratas, usavauma venda sobre um olho. Mirou Max com suspeio:sim, ia para Santos. No, no transportava passageiros.

    Max insistiu, ofereceu metade do que tinha emdinheiro, e, finalmente, toda a quantia. O Capitoterminou concordando.

    Mas v bem disse. No me responsabilizopor nada do que vier a te acontecer, ouviste?

    Max imaginou que esta advertncia tivessecarter apenas formal; no podia prever o que viria aacontecer... Disse que estava bem, que estava pronto

    para o que desse e viesse. O Capito levou-o a bordo,

    mostrou-lhe um estreito e abafado camarote. o melhor que temos.

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    Max disse que estava bem. O Germanialevantou ferros naquela mesma noite. Do tombadilho,

    Max viu as luzes de terra desaparecerem distncia. Asorte estava lanada.

    Nos primeiros dias a bordo Max passou mal. Acomida era pssima, ele enjoava; noite no conseguiadormir, por causa do barulho das mquinas e de unsmisteriosos rudos urros, guinchos. Era estranho,

    aquilo, mas no eram poucas as coisas estranhas nonavio os marinheiros, por exemplo, evitavam dirigir-lhe a palavra e Max no estava na situao de fazer

    perguntas e muito menos de reclamar. De qualquermodo foi se acostumando, aos poucos, vida de bordo.

    Ao contrrio do que o Capito lhe tinha dito,no era o nico passageiro a bordo; havia mais um, um

    italiano de meia idade, homem simptico e sorridente,que desfilava pelo convs como se estivesse passeando

    pela avenida de uma grande cidade: terno, gravata,bengala de casto de prata. Falava um mau alemo, oSr. Ettore; apesar disto, Max passou a procur-lo,depois que soube que o homem vivera no Brasil. Disseque para l voltava depois de uma turn pela Europa era o diretor e o empresrio de uma espcie de circo,ou zoolgico. Osanimais estavam no poro do navio(o que explicava os urros e guinchos que Max ouvia noite). Alis, a histria de animais a bordo deixou Maxapreensivo. Criou coragem, falou ao Capito arespeito. O homem riu: perigo? Perigo correm os

    pobres bichos, nas mos destes mostrava osmarinheiros animais.

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    O Signor Ettore era um entusiasta a respeito doBrasil. Pode-se fazer muito dinheiro l, garantia. No

    foi o meu caso, apressava-se a acrescentar; mas istoporque (sorriso maroto) sempre gostei das coisas boasda vida: mulheres, jogo, bebida.

    Apesar de toda a amabilidade do italiano, Maxno se sentia inteiramente vontade com ele. Parecia-lhe que o Signor Ettore ocultava qualquer coisa a

    respeito de sua viagem, impresso reforada pelo fatode t-lo visto duas ou trs vezes falando em voz baixacom o Capito. Contudo, Max estava decidido a no semeter em encrencas; bastavam-lhe as que tivera. Tudoque pretendia era chegar ao Brasil e l passar um ano,dois o tempo suficiente para que os nazistas fossemalijados do poder e ento voltar Alemanha e a uma

    vida normal junto aos pais e na Universidade.Imaginava o dia em que contaria aos amigos sobre aviagem no Germania; mas desejaria que tudo isso jfosse coisa do passado. A lembrana dos paisarrancava-lhe lgrimas, e, em lugar do dirio, eleescrevia agora longas e sentidas cartas (quando poderiamand-las?), com o que o tempo parecia-lhe passarmais depressa, a separao tornando-se menos penosa.At do tigre sobre o armrio Max agora tinha saudade;e se esperava rev-lo um dia era porque ainda nosabia o que estava por vir.

    Uma noite Max acordou com a sensao de quealgo anormal ocorria a bordo. Os animais estavam

    mais agitados do que de costume. Sentou na cama.Sim, alguma coisa estranha estava acontecendo: ouviao rudo de passos apressados, um confuso vozerio.

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    Vestiu-se rapidamente, saiu e neste momento asluzes se apagaram. Na semi-obscuridade via vultos

    correndo de um lado para outro. O que estacontecendo? perguntou, mas ningum lherespondia. Dirigiu-se para o convs e s ento notouque o navio estava adernado, e que continuavaadernando rapidamente. Capito! gritou. SenhorEttore! Ningum lhe respondia; os marinheiros

    estavam atarefados em baixar os barcos salva-vidas.S ento Max se deu conta: o navio estava afundando.Osbarcos desciam rapidamente, e logo no havia maisningum a bordo. Assustado, Max correu para aamurada:

    No me deixem aqui!Intil: os barcos se afastavam rapidamente. Ah,

    traidores, berrou Max. De repente percebia tudo. OGermaniajamais deveria chegar a seu destino, aquelenaufrgio estava planejado desde o incio. Agoraestava tudo explicado, o estranho comportamento doCapito e do italiano, suas conversas furtivas. O quequeriam, decerto, era o seguro do velho navio etambm o dos animais. De quebra, o Capito resolveraficar tambm com o dinheiro dele, Max. Com certezaesperava que ele no vivesse para contar a histria.Canalhas, rosnou Max mas agora no podia perdertempo, o Germania afundaria em minutos. Correu

    popa e ali milagre encontrou um pequeno escaler.A muito custo conseguiu baix-lo ao mar. Tateando no

    escuro, encontrou um remo. Sabia que os navios, aoafundarem, criam redemoinhos capazes de arrastar

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    para o abismo as pequenas embarcaes; portantoremou, remou com todas as foras.

    Ao clarear do dia viu-se sozinho na vastido dooceano. Enorme angstia apossou-se dele; ps-se achorar desabaladamente. Que triste situao. Que tristevida. Infncia no de todo feliz; adolescnciaatormentada; fuga precipitada da ptria e agora isso, onaufrgio! Era demais. Chorava, sim, chorava e se

    maldizia tambm: por que tivera de se meter com umamulher casada? Com um esquerdista maluco? Nosabia ele que na certa as coisas terminariam mal?

    Chorou muito. Por fim, enxugou os olhos eolhou ao redor, conformado: lgrimas de nada lheadiantariam. Precisava dar um balano na situao edecidir o que fazer.

    O mar, liso, alis liso como espelho, estavacheio de destroos do naufrgio - mas navio nenhumestava vista, portanto poderia desistir de um resgateimediato; mais tarde, talvez, ou nos dias que seseguissem. Quanto ao escaler, era slido e estavadevidamente aparelhado para emergncias: numagrande bolsa de oleado Max encontrou alimentosenlatados, vasilhas com gua, utenslios de pesca,lanterna eltrica. O que reforou as suspeitas de Max coisa preparada, o naufrgio mas lhe renovou asesperanas: tinha condies de sobreviver, tudo que

    precisava fazer era aguardar a passagem de um navioque o recolhesse.

    Ao julgar que a falta de alimento era o principalrisco que corria como nufrago, Max enganava-se denovo. Havia o sol.

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    Na tarde do segundo dia, Max j apresentavaqueimaduras srias. Sentia-se tonto, com dor de

    cabea; alarmado, deu-se conta que estava tendoalucinaes: via montanhas no horizonte que sedesfaziam quando ele esfregava os olhos; via ciclistasem uniforme branco pedalando sobre as ondas. E derepente ali estava o Harald, sentado frente dele.Harald! disse. Que surpresa, Harald! Conseguiste

    fugir, amigo! E no mesmo navio! E eu nem sabia queestavas a bordo! A todas estas exclamaes Haraldrespondia apenas com um magoado sorriso.

    Ests ressentido comigo, Harald? Pensas poracaso que te abandonei? No te abandonei, Harald.Tive de fugir s pressas, s isso. Do meu pai nem pudeme despedir; minha me dei um adeus rpido. E sabe

    Deus quando voltarei a v-los de novo, Harald...Vamos, Harald, no tens por que ficar zangado.

    Harald em silncio, sorrindo sempre, o ventoagitando-lhe os cabelos.

    Por que no me respondes, Harald? Vamos,rapaz, fala comigo. Temos que discutir nossasituao... Traar planos. Nossa sobrevivncia dependedisto. Fala, Harald! Diz alguma coisa!

    Harald imvel. E de repente o vento lhe levavaos cabelos, expondo a calva; e logo era a pele que sedesprendia, o rosto de Harald ficando reduzido a umacaveira sorridente. Max soltou um berro, estendeu amo para o amigo; mas neste momento a viso se

    desfez e ele se viu de novo s no barco. Era outraalucinao; de novo, causada pelo sol. Precisava

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    proteger-se, mas como? No barco no havia nada quepudesse usar para este fim.

    Teve ento uma idia: improvisar uma espciede cabana com os destroos do Germania queflutuavam a seu redor. Uma grande caixa de madeira,

    boiando a pequena distncia, parecia adequada paraisto. Com muito esforo, remou at l.

    Puxou a caixa para junto do barco. Examinou-a

    e constatou que tinha, na parte superior, uma tampafechada por um cadeado que agora, quebrado, pendiafrouxo. Max retirou-o.

    Alguma coisa pulou de dentro da caixa,arremessando-o com fora inaudita contra o cho doescaler. Max bateu com a cabea, perdeu os sentidos.

    Aos poucos foi se recuperando. Abriu os olhos.

    O berro que soltou atroou os ares. Diante dele,sentado sobre o banco do escaler, estava um jaguar.

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    OJAGUAR NO ESCALER

    MeuDeus, valei-me. Jesus Cristo, tem pena demim. Pai, me, me acudam. Me acudam, por favor...

    Os olhos fechados, as mos aferradas s bordasdo escaler, o corpo sacudido por violentos tremores,Max esperava pelo fim, que viria, primeiro, com umtremendo golpe da grande pata; logo em seguida a ferase atiraria sobre ele, lhe cravaria as presas no ventre,nos braos, nas coxas, arrancando postas de msculos,triturando ossos, ele morrendo em meio a sofrimentos

    atrozes... Senhor, em tuas mos entrego minha alma.Mas nada aconteceu. Segundos ou horas se

    passaram e nada acontecia. Lentamente, a medo, Maxdescerrou os olhos.

    O jaguar continuava ali, imvel, a fit-lo.Um felino enorme. Talvez no to grande

    quanto o tigre empalhado da loja, mas bem grande,assim mesmo. Diferente, na colorao: amarelo-avermelhada, com manchas pretas. No primeiromomento Max chegara a confundir, mas reconheciaagora: o feldeo era mesmo um jaguar (Panthera

    jaguarius) o que no representava nenhum consolo,ele estando diante da fera mais terrvel das Amricas

    (Kleine Peter, Kunz). Max no sabia a que atribuir ofato de o jaguar no t-lo ainda devorado; quela

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    altura, nada mais deveria restar dele. Ossos sangrentostalvez. Um p. Fragmentos do couro cabeludo.

    No momento, contudo, o animal no pareciadisposto a atac-lo. Continuava imvel, tranqilo, e atcom certo ar de tdio.

    Por que, Max no sabia. Pouco conhecia doshbitos dos felinos; e mesmo que fosse um especialistanesta rea, simplesmente no estava em condies de

    raciocinar. Talvez o animal no tivesse fome, naquelemomento; talvez tivessem-no alimentado antes donaufrgio (para que, se estava destinado a morrer?).Talvez se sentisse inseguro, ali no frgil escaler; talveztivesse medo do mar, to diferente de seu habitathabitual. Talvez se sentisse grato a Max, seu salvador(ainda que a contragosto); talvez fosse um jaguar

    domesticado, um animal afeioado ao homem,dependente, submisso. Mas talvez fosse uma feramatreira, aparentando tranqilidade para, no momentooportuno, dar o bote com maior facilidade.

    Max acalmou-se um pouco. A morte j no lheparecia to iminente; tinha tempo, poderia pensar emalgo. Quem sabe se atirava ao mar e nadava at acaixa? Trocaria de lugar com o felino, perdendo, claro, tudo que havia no escaler, todo o equipamentode sobrevivncia, mas ganhando em troca uma chancede escapar. Com o rabo do olho mirava a caixa,avaliava a distncia; no era muito, uns vinte metros.O que faria o jaguar se ele se levantasse de repente e se

    atirasse gua? Daria o bote decerto; mas conseguiriapeg-lo? Ainda no escaler? No ar? Poderia o jaguar"persegui-lo no mar? E quem seria melhor nadador

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    Max, que ganhara uma medalha no colgio (cemmetros, nado de peito, categoria infantil), ou um felino,

    a espcie sendo reconhecidamente avessa gua?Conjeturas inteis: neste momento o vento soprou um

    pouco mais forte, a caixa oscilou, encheu-se de gua eafundou.

    Max sentiu que estava molhado. Tinha-seurinado. De medo. Uma coisa que nunca lhe

    acontecera antes, nem mesmo quando era criana, nassituaes de maior pnico. Que humilhao. Maxderramou mais algumas lgrimas, o jaguar fitando-o.

    O sol comeava a declinar e os doiscontinuavam frente a frente. Imveis. Max estavaincmodo, as costas lhe doam mas no ousava semexer. Tudo que podia desejar que uma embarcao

    aparecesse e o salvasse mas no se atrevia sequer aolhar ao redor; a qualquer distrao poderia a feraarremeter. Em dado momento pensou que um navioaparecendo poderia at ser pior; a menos queconseguissem abater o animal de longe, com um tirocerteiro como os de Hans Schmidt, ele seria o primeiroa pagar caso o jaguar se sentisse acuado. Navio? No.Melhor no.

    O jaguar soltou um rugido.No foi bem um rugido, foi uma espcie de

    miado rouco, mas tanto bastou para que Max,sobressaltado, quase casse ao mar. Mal tinha serecuperado, o animal rosnou novo susto e

    escancarou a bocarra. A viso das enormes presas, dasfauces vermelhas, em nada contribuiu para acalmar o

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    pobre Max. O jaguar queria algo, quanto a isso nopodia haver dvida; mas o qu?

    Comida, claro.S poderia ser isso. O animal, sem comer h

    vrias horas, deveria estar faminto. Cabia a ele, Max (ea quem mais?), aliment-lo. Mas como? E com qu?

    Novo rosnado: Max tinha de agir depressa.Cautelosamente- no fosse seu gesto ser mal

    interpretado pela fera estendeu a mo, tirou umbiscoito da bolsa de oleado e depositou-o no cho dobarco, em frente ao jaguar. O felino apenas farejou obiscoito; nem sequer tocou-o. No come estas coisas,concluiu Max, j suando frio. Claro, carnvoroscomem carne, no biscoito. Mas, onde arranjar carne?Carne fresca, sangrenta, ao gosto de um jaguar feroz?

    Osolhos sempre fitos no jaguar, Max apanhouuma linha de pescar (o anzol felizmente estandoiscado) e jogou-o ao mar, rezando para que os peixesno tardassem a morder. Teve sorte: logo em seguida

    pegou um de regular tamanho, e, temeroso comoseria recebida esta nova oferenda? colocou-o diantedo jaguar.

    O felino farejou o peixe, que ainda se mexia,agonizante. Matou-o com uma patada uma cena dearrepiar despedaou-o com as garras e devorou as

    postas sanguinolentas (fugaz esperana de Max: vai seengasgar, vai se asfixiar seguida de medo: mas antesde morrer, pode me matar e de uma espcie de

    alvio: o jaguar parecia ter gostado do peixe, o quepodia representar alguma garantia para quem, comoMax, sempre se considerara pescador medocre,

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    incapaz de sobreviver se tivesse de depender para tantodesta antiga profisso).

    Rapidamente estaria no meio de um cardumeem migrao? Max ia tirando peixes do mar: umverdadeiro prodgio, um milagre bblico. Mas, comigual rapidez o jaguar os ia devorando.

    De sbito, sentiu fome. Fome. A viso doanimal comendo os peixes lhe despertara o apetite;

    dava-se conta agora que tambm ele no tinha comido.Tinha os biscoitos e outros mantimentos mas o quetinha vontade de comer, uma absurda vontade decomer, era peixe. O peixe que ele, Max, pescara.Mesmo cru, queria o seu peixe. Nem que fosse paraexperimentar um pedacinho.

    O jaguar agora parecia saciado; e ainda

    restavam, no fundo do barco, trs peixes, estespequenos. Ser que ele poderia?...

    Devagarinho, foi estendendo a mo.O jaguar fitava-o, impassvel.Os dedos de Max progrediam uns milmetros,

    paravam; avanavam mais alguns milmetros, paravamde novo. Agora faltava pouco.

    Repentinamente, o jaguar colocou a pata emcima dos peixes. De susto, Max chegou a cair paratrs. Recomps-se, ficou a olhar para o jaguar,ofegante, os olhos arregalados. Desculpe, murmurava.Desculpe, eu no queria.

    De sbito, caiu em si. O que estava fazendo?

    Pedindo desculpas? O que entenderia o animal de suasdesculpas? E depois por que pedir desculpas? Quemtinha pescado os peixes, afinal? No, nada de

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    desculpas. Tinha direito aos peixes. Se no a todos, aomenos metade. A dois, que fosse; a um. Direito

    tinha.Roendo o duro biscoito que o jaguar desprezara,

    ficou a olh-lo e no com medo; com ressentimento,com raiva at. Carnvoro, sim; mas injusto, por qu?Grosseiro, por qu?

    A noite caiu, uma noite escura, sem lua. Max

    mal divisava o vulto do jaguar. Estaria dormindo, afera? Talvez; afinal, fora bem alimentada. E seestivesse dormindo, ser qu?... No, no estavatramando nada mas, para o futuro, precisava descobriros hbitos de sono da fera, estud-los cuidadosamente;

    poderia ser til, este conhecimento. E se ainda notinha planos, poderia pensar a respeito, na longa noite

    (nas longas noites?) que tinha pela frente.Movendo-se com infinita cautela, Max apanhou

    a lanterna.Hesitou ainda um instante mas seja o que

    Deus quiser e acendeu-a. O facho brilhou naescurido e ali estavam os olhos do jaguar, reluzindo,fitos nele. Estremeceu, apagou a lanterna e guardou-a.

    Agora sabia: o jaguar no dormia. No dormiriajamais, ele no poderia contar com seu sono paraescapar. E escapar, como? Para onde?

    Uma enorme depresso apoderou-se dele, umatristeza avassaladora. Lembrou-se de novo do pai, dame, do conforto de sua cama em Berlim; deu-lhe uma

    vontade imensa de chorar, mas no chorou. Encolheu-se no fundo do barco e ps-se a cantarolar baixinho acano com que a me o embalava quando criana:

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    Guten Abend, Guten Nacht/Mit Rosen bedacht. No,no seria aquela uma boa noite, nem estava ele coberto

    de rosas. Contudo, acabou adormecendo.Despertou sobressaltado. Por um instante no se

    deu conta de onde estava; logo em seguida, porm,lembrou-se: o naufrgio, o jaguar... Ali estava o felino, sua frente, fitando-o. Bicho mau pensou Max. Bicho cruel, traioeiro. Bicho horrendo.

    No. Horrendo, no. Era at bonito, o jaguar.Imponente, o vulto recortado contra o cu quecomeava a clarear. Algoz? Sim, o jaguar o era. Mas

    para isso fora bem dotado pela natureza.Max suspirou, sentou no banco. Coando a

    cabea, olhou o mar calmo. Seria um dia bonito,aquele. Um dia para passear de iate...

    Uma rosnadela do jaguar trouxe-o de volta realidade. Sobressaltado, mas no muito: agora j sabiao que fazer. Atirou o anzol ao mar; como no diaanterior, teve sorte, pegando de imediato vrios peixes.Observou, com olhar mortio, o felino a devor-los,enquanto se indagava se aquela seria, dali por diante,sua rotina de vida: pescar para um jaguar, alimentar afera. Triste prognstico para quem um dia cursara aUniversidade! At quando teria de suportar to absurdaservido?

    O jaguar parou de comer e ergueu a cabea,orelhas empinadas, rosnando baixinho. Max olhava-o,surpreso e assustado. O animal parecia ter farejado

    algum perigo. Mas qual, ali na imensido deserta?

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    Logo descobriu. Uma barbatana triangular,emergindo da superfcie do mar, deslocava-se

    velozmente em crculos, a uns cem metros do escaler.Tubaro.Atraa-o o cheiro de sangue dos peixes, sem

    dvida. Mas, ousaria o tubaro atacar o barco? Se abordo estava uma fera to ou mais sanguinria que ele?Max, tremendo, esperava que no; e a presena do

    felino era, paradoxalmente, um conforto para ele,pobre nufrago. O jaguar era o perigo conhecido, como qual poderia conviver, pelo menos enquanto tivessexito na pescaria; mas se o tubaro chegasse a virar afrgil embarcao, estaria perdido. S lhe restavaesperar que seu algoz o protegesse. Deslizou para ofundo do barco e ali ficou, espiando a medo por cima

    da amurada.O tubaro continuava navegando em crculos.

    Aproximava-se cada vez mais, Max e o jaguaracompanhando-lhe os movimentos. De repente,at