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MODELOS DE AUTONOMIA INDIVIDUAL
E ESTADO DE DIREITO EM HEGEL
Agemir Bavaresco 1
Sérgio B. Christino 2
Resumo: A autonomia individual emergente manifesta-se apática e insensível em relação às
questões coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo
o estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esse conceito de
liberdade, como autodependência ou auto-satisfação, com todo seu potencial destrutivo, conduz-nos
ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes.
Ora, em que medida a mundialização, constituindo-se numa sociedade de indivíduos,
apresenta semelhanças e diferenças, por exemplo, com o Estado de Direito, conforme esta figura é
tematizada na Fenomenologia do Espírito? Se a autonomia do indivíduo hegeliano passa pelo
reconhecimento da pessoa abstrata, pelo sujeito capaz de agir e pelo cidadão organicamente
inserido na sociedade civil e no Estado, quais os alcances e limites do reconhecimento numa futura
autonomia individual mundializada?
Diante dessa inquietação, apresentamos, primeiramente, os modelos antropológicos de
autonomia individual subjetiva e os modelos antropológicos de autonomia intersubjetiva. Depois,
estudamos a figura do estado de Direito na Fenomenologia de Hegel e, no final, apontamos alguns
desafios ao futuro da autonomia em face ao estado de Direito atual.
Palavras-Chave: Autonomia, Estado de Direito, Filosofia, Fenomenologia do Espírito.
Abstract: The emergent individual autonomy reveals to be apathetic and indifferent facing
collective inquiries and social reality. It becomes fixed in a limitless expenditure of goods and
services, according to the lifestyle and the form of an individuality centered in oneself. This idea of
freedom like self-dependence or self-satisfaction, with all its destructive potential, drives us to the
impact of an ecological crisis without precedence.
But in what measure the mundialization, being a society of individuals, presents similarities and
differences, for example with the State of Law, according as this image is described in
Phenomenology of the Spirit? If the hegelian individual autonomy undergoes the abstract person's
recognition, the subject able to act, and the citizen organically inserted in the civil society and in the
State, what are the reaches and limits of the recognition in a future world-wide individual
autonomy?
Due to this uneasiness, we present, at first, the anthropological patterns of subjective individual
autonomy and the anthropological patterns of inter-subjective autonomy. Afterwards, we study the
image of the State of Law in Hegel‘s Phenomenology, and, at the end, we point out some challenges
to the future of the autonomy in view of the present state of the Law.
Keywords: Autonomy, State of Law, Philosophy, Phenomenology of the Spirit.
1 Doutor pela Universidade de Paris 1, Professor do PPG em Filosofia PUCRS e Pesquisador na linha
jusfilosófica. 2 Advogado, UFPEL, Assistente de Administração e Pesquisador na linha jusfilosófica.
2
INTRODUÇÃO
Os 200 anos da publicação da Fenomenologia do Espírito (1807-2007), de Hegel
desafiam-nos a atualizar seus temas e problemas, permitindo compreender novas figuras do
espírito humano, como a da autonomia individual face à sociedade mundializada. A
autonomia individual emergente manifesta-se apática e indiferente, frente às questões
coletivas e à realidade social. Fixa-se num consumo ilimitado de bens e serviços, segundo o
estilo de vida e a forma de uma individualidade centrada em si mesma. Esta noção de
liberdade como autodependência ou auto-satisfação, com todo seu potencial destrutivo, nos
conduz ao impacto de uma crise ecológica sem precedentes. Charles Taylor que evidencia,
em Hegel e a sociedade moderna, que o pensamento hegeliano foi presciente quanto às
nefastas conseqüências para as quais nos arrasta a noção de autonomia racional cartesiano-
kantiana. Assim, a necessidade de retorno a Hegel se faz presente, toda vez que se busque
uma visão de autonomia subjetiva que supere as deficiências da perspectiva analítica do
entendimento. Conforme Taylor: ―... os escritos de Hegel nos oferecem uma das tentativas
mais profundas e de maior alcance de elaborar uma visão da subjetividade corporificada,
do pensamento e da liberdade emergindo do fluxo da vida, encontrando expressão nas
formas da existência social e descobrindo-se na relação com a natureza e com a história
(Taylor, 2005, p. 208)‖.
Ora, em que medida a mundialização, constituindo-se numa sociedade de
indivíduos, apresenta semelhanças e diferenças, por exemplo, com o Estado de Direito,
conforme esta figura é tematizada na Fenomenologia do Espírito? O conceito de autonomia
individual para Hegel dá-se mediante a luta pelo reconhecimento que se opera em vários
níveis e figuras da história, conforme a experiência da consciência. Se a autonomia do
indivíduo hegeliano passa pelo reconhecimento da pessoa abstrata, pelo sujeito capaz de
agir e pelo cidadão, organicamente, inserido na sociedade civil e no Estado, quais os
alcances e limites do reconhecimento numa futura autonomia individual mundializada?
Diante desta inquietação, optamos por cotejar a perspectiva do indivíduo na sua
relação com o império romano, empreendida por Hegel na Fenomenologia, com o
indivíduo no império atual na mundialização, para situar os possíveis desdobramentos do
futuro da autonomia.
Apresentamos, primeiramente, os modelos antropológicos de autonomia individual
subjetiva e os modelos antropológicos de autonomia intersubjetiva. Depois, estudamos a
figura do estado de Direito na Fenomenologia de Hegel, mostrando a atomização do corpo
3
social no império romano, fragmentando a relação do indivíduo com o todo. Na Filosofia
do Direito, Hegel descobrirá o direito da liberdade subjetiva, permitindo um outro modo
de pensar o Direito: o sujeito mediante o recurso à noção de eticidade. Apontando,
portanto, para um percurso em que o futuro da autonomia inicia no nível das relações
interpessoais e se realiza na esfera das instituições, conforme a eticidade hegeliana,
estruturando-se no reconhecimento do cidadão em nível sócio-jurídico-político. Porém, isto
não será tratado, especificamente, neste estudo, embora, indiretamente, a teoria hegeliana
estará sempre presente. Nossa preocupação, no final, será apontar alguns desafios ao futuro
da autonomia face ao estado de Direito atual.
1 – MODELOS DE AUTONOMIA INDIVIDUAL
O conceito de autonomia foi introduzido por Kant para designar a independência da
vontade, em relação a qualquer desejo ou objeto de desejo e a sua capacidade de
determinar-se em conformidade com uma lei própria, que é a da razão. A autonomia é,
portanto, a capacidade de autodeterminação. Kant contrapõe a autonomia à heteronomia,
em que a vontade é determinada pelos objetos da faculdade de desejar. Os ideais morais de
felicidade ou perfeição supõem a heteronomia da vontade, porque supõem que ela seja
determinada pelo desejo de alcançá-los e não, por uma lei sua. A independência da vontade
em relação a qualquer objeto desejado é a liberdade no sentido negativo, ao passo que a sua
legislação própria (como ―razão prática‖) é a liberdade no sentido positivo. Portanto, a lei
moral exprime a autonomia da razão pura prática, isto é, a liberdade (cf. Blackburn,
1997,31; Abbagnano, 2000, 97-98).
Esse ficou sendo o conceito clássico de autonomia, porém, antes mesmo de ele ter
sido elaborado por Kant e, a partir dele, encontramos, na história, modelos diferentes de
autonomia individual subjetivos ou intersubjetivos. Apresentamos, brevemente, estes
modelos com a finalidade de mostrar que a construção deste conceito antropológico está
vinculado às teorias jusfilosófico-políticas.
4
1.1 - Modelos antropológicos de autonomia individual subjetiva
a) Indivíduo egoísta racional de T. Hobbes
À objetividade extremada da antiguidade clássica, especificamente à grega, a
filosofia moderna, desde Ockham e de Hobbes, oporá um subjetivismo modelado na sua
forma mais radical. Conforme acentua Michel Villey em seu livro Leçons d’histoire de la
philophie du droit, os seguidores destes filósofos ―se negam a ler na ―natureza‖ as relações,
as obrigações sociais; eles concebem somente os ―direitos‖ individuais, os poderes, as
liberdades naturalmente ilimitadas desde que a lei positiva resultante do consentimento dos
cidadãos (e portanto, indiretamente resultante destas mesmas liberdades) não lhes imponha
limites (Villey, 1962, 157 – tradução dos autores)‖.
Guilherme de Ockham, aponta Villey, com sua crítica reduz a nada o antigo direito
natural imutável, recusando-se a reconhecer outra lei natural de valor universal, e portanto
imutável, que a lei moral. Para Ockham, a natureza nos apresenta tão somente os
indivíduos separados e livres e, a partir daí, defende com ardor, neste universo parcelado,
as liberdades que o indivíduo tem por natureza, como dados jurídicos primeiros que, à lei e
à convenção somente caberia modelar e adequar de maneira a preservá-los na condição de
direitos subjetivos (Villey, 1962, 246).
Estava assim colocado um primeiro esboço, para que Hobbes desenhasse o seu
Estado de Natureza, com base em um estado pré-social, onde os homens ao sabor dos
instintos, viveriam em uma guerra de todos contra todos. Mas que, para avançar na marcha
histórica, precisariam que aí prevalecesse algum direito, qual seja: o direito que o indivíduo
recebeu da natureza, com o objetivo de assegurar, por todos os meios, sua conservação
pessoal, sua segurança, o livre usufruir da posse dos bens que por sua própria vontade deles
se apossasse.
Portanto, para Hobbes, desde esta guerra de todos contra todos por si pré-figurada, a
teoria política daí decorrente é a do ―indivíduo ameaçado, que vai constituir um pacto
associativo com outros indivíduos para a garantia de seus interesses individuais, (...) sua
autoconservação do indivíduo se torna o eixo a partir do qual se pensa sua sociabilidade e
sua autonomia (Oliveira, 2007, 8)‖. Logo toda estruturação da ordem política é pensada, a
partir destes direitos naturais individualizados, que pugnara inicialmente Ockham, e que
depois veio a ser consolidado por Hobbes, na condição de profeta por excelência do
espírito jurídico moderno (Villey, 1962, 56). Toda razão de ser da ordem política ―é estar a
5
serviço dos direitos deste indivíduo pensado por Hobbes como egoísta racional (Oliveira,
2007, 9)‖.
b) Indivíduo na subjetividade transcendental solipsista de Kant
Para os comentadores da filosofia de Kant, é nela, que essas premissas subjetivistas
são postas plenamente à luz, sendo do mesmo modo, aí, que o indivíduo racional vai,
efetivamente, ganhar uma justificativa plena para sua concepção solipsista, atomizada, na
qual a pessoa singular, é, ao mesmo tempo, autoconsciência e determinação orientadora
para sua própria ação. Numa perspectiva monádica que define as obrigações e, ao mesmo
tempo, quer orientar o agir perante as mesmas, colocando, este sentido de mão única como
condição de validade norteadora da ação. Com Kant a essência da fundação do estado civil
permanece ainda, e mais centrado no indivíduo. Cabe, no entanto, evocar a ressalva que faz
Walter Jaeschke: ―Embora Kant antecipe o conceito de direito – concebido
intersubjetivamente -, sua doutrina sobre a propriedade suscita de início a impressão de que
se necessitaria, para fundamentação da propriedade, somente da vontade daquele, que, por
primeiro, se apodera de um objeto, e que faz valer a sua pretensão de posse mediante sinais
externos (Jaeschke, 2004, 58)‖.
Em Kant, a autonomia é a capacidade de o indivíduo se autodeterminar, de construir
a si mesmo a partir dos princípios da própria razão. O ser humano faz derivar sua
autonomia de sua própria condição racional (Oliveira, 2007, 9).
Autonomia é, assim, para Kant, antes de tudo, independência frente ao mundo
sensível: trata-se da superação da submissão aos mecanismos da natureza exterior e
interior, numa palavra, independência em relação à conexão necessária de todos os
fenômenos entre si pela mediação da relação de causa e efeito e do estabelecimento
da razão como a única fonte de legitimação das normas da ação humana. Sendo
assim, ela é, positivamente, autodeterminação, conquista do próprio ser por parte do
ser humano: o ser humano é livre, quando permanece ele mesmo em tudo que faz,
quando sua lei é a lei de sua própria liberdade, ou seja, quando ele é lei para si
mesmo, ―auto-nomia‖ (id. 10).
1.2 - Modelos antropológicos de autonomia individual intersubjetiva
Um outro modelo, ou figura que se considera, concebe o indivíduo como resultante
de um substrato eminentemente relacional, na qual o indivíduo alcança sua autonomia
desde o entrechoque das forças sociais em convergência ou em disputa. Esta autonomia se
dá pela luta por reconhecimento, em que um indivíduo constrói sua subjetividade
6
assumindo papéis em torno de seus interesses, confrontados com os interesses dos demais.
Esta perspectiva tem seu influxo a partir do esforço desenvolvido por Hegel, desde seus
primeiros escritos, conforme sublinha Axel Honneth. Nesse contexto, o indivíduo é um
indivíduo, porque reivindica sê-lo perante os demais: ―...um sujeito procura, mediante uma
ação provocadora, levar o outro indivíduo ou os muitos associados a respeitar o que não foi
ainda reconhecido nas próprias expectativas pelas formas de relacionamento social
(Honneth, 2003, 101)‖.
a) Indivíduo autônomo em comunhão de Fichte
Fichte criticou severamente esta categoria fundamental de Kant - a autonomia,
posto que procurou mostrar o fracasso de uma autonomia, pensada como processo de
autoconstituição de uma subjetividade auto-suficiente e fechada em si mesma. Para Fichte,
―quando o eu tenta voltar-se sobre si mesmo e se pensa como o que não é coisa, ele só tem
uma determinação negativa de si mesmo, perde qualquer segurança e entra num processo
de dissolução. Este risco é característico de toda subjetividade que se pensa a si mesma
,como auto-relação pura (Oliveira, 2007, 10)‖. Para este filósofo somente pela mediação
com outro eu, mediante a comunhão com ele, o eu se pode constituir como subjetividade
livre, autônoma. Assim, a comunhão é condição de possibilidade da autonomia. A
autonomia é, pois, um evento ético, ―ou seja, um evento de efetivação do bem, enquanto
unidade de justiça, enquanto respeito à dignidade e a liberdade dos outros, e amor, processo
de comunhão entre seres livres (id. 10-11)‖. Assim, o indivíduo somente se coloca como
responsável por um ato livre, quando, da mesma maneira, um outro eu seja também
responsabilizado, e tal acontece na ordem jurídica, que é o pano de fundo onde isto se
verifica (Jaeschke, 2004, 59).
b) Indivíduo autônomo universal de Hegel
Hegel trata de aprofundar a abordagem crítica formulada por Fichte quanto à
concepção de autonomia solipsista kantiana. Aqui, o processo de universalização da
autonomia se efetiva através da constituição da vida comunitária. A ruptura com o
solipsismo se dá de forma radical: ―as próprias instituições sociais são mediações
necessárias na conquista da autonomia do ser humano (Oliveira, 2007, 12)‖. Assim, torna-
se impossível pensar a autonomia fora da mediação das instituições, que estruturam a vida
social. Em Hegel o instituto da subjetividade é reconhecido como a marca dos tempos
7
modernos, e sua concepção de autonomia alcança a historicidade do indivíduo, ou seja, a
autonomia do indivíduo é fruto de uma interação histórica (id. 11-12).
Na Filosofia do Direito, o indivíduo para Hegel é compreendido, como sendo
imediatamente, uma pessoa abstrata; depois, como um sujeito capaz de agir; e enfim, como
um cidadão, organicamente, inserido na sociedade civil e no Estado.
Na Fenomenologia do Espírito, o indivíduo é descrito por Hegel, segundo o
conceito do reconhecimento; é na luta por reconhecimento que se opera a mediação em
várias figuras da consciência no percurso fenomenológico do Espírito. Descreveremos, a
seguir, a figura do estado de direito na Fenomenologia, com a finalidade de mostrar a
situação do indivíduo na sociedade grega e no mundo romano. Veremos que a contradição
da consciência do indivíduo no mundo antigo, reservadas as diferenças históricas, apresenta
pontos de semelhança com a situação do indivíduo numa sociedade mundializada.
2 – EXPERIÊNCIAS DO DIREITO NA FENOMENOLOGIA
Na Fenomenologia do Espírito, a formulação mediante a qual, segundo Hegel, a
consciência individual vai acessar a instância política (e histórica), começa no capítulo
VI, que se intitula O Espírito, sucedendo à Consciência, à Autoconsciência, e à Razão.
Neste ponto da obra, têm-se, aparentemente, um corte que vai dividir o subjetivo e o
objetivo. E é bem verdadeiro que até então, o movimento da consciência permanecera
subjetivo. Entretanto, com o Espírito se descortina o viés coletivo, político, objetivo da
consciência. Encena-se agora a objetividade da lei mediante a assunção das formas
sedimentadas em instituições como a família e o Estado, onde esta consciência até então
individual e transcendental precisa, necessariamente, posicionar-se, tomar partido,
aparecer na história, evidenciar-se. Mas para evidenciar-se a consciência precisa ter-se
tornado complexa, atravessado o percurso lento da história. É a consciência com o
outro ou contra o outro, mas que não pode deixar de aparecer através da ação. O
indivíduo aqui, logo, é o portador de uma consciência que parte da realidade social com
a qual já está reconciliada. Ou seja, é a descrição da experiência da consciência ao longo
da história, sendo articulada a partir de duas dimensões:
a) A dimensão das figuras que mostra o processo de formação do sujeito para o saber;
as figuras referem-se ao tempo histórico. Elas não são ordenadas segundo os eventos
empíricos da história, mas conforme a necessidade lógica.
8
b) A dimensão dos momentos descreve o ―movimento dialético ou a lógica imanente da
Fenomenologia e faz com que a aparição das figuras não se reduza a uma rapsódia sem
nexo, mas se submeta ao rigor de um desenvolvimento necessário‖ (Lima Vaz, p.12).
Então, pode-se mesmo afirmar que não há descontinuidade entre a parte precedente
e esta do tema do Espírito, mas uma seqüência inapelável, onde o desenvolvimento da
consciência, no sentido de tornar-se livre, não pode recuar e, portanto, deixar de fazer
história. E aqui, na Fenomenologia, este fazer-se história da consciência não se confunde
com a história linear dos povos, porém em apresentar as figuras da história em seus
momentos lógicos mais significativos, nos quais a dialética da consciência, mostrando-se,
primeiramente, nas figuras subjetivas da consciência, é justificada pelo seu aparecimento
no mundo; dentre os momentos mais expressivos desta fenomenologia aparecem, portanto,
a problematização posta à luz por Sófocles com sua Antígona, o individualismo romano, a
crítica iluminista às religiões e o Terror revolucionário.
2.1 – Experiência do Direito na cultura grega 3
O espírito verdadeiro, a eticidade é o capítulo VI com que Hegel inicia a seção C,
do espírito. O termo eticidade (Sittlichkeit) designa o mundo em sua unidade, sem a
separação entre substância e consciência. O espírito dá-se, aqui, a conhecer como ethos
(Sitte) e como leis, costumes e hábitos (Sitten). Trata-se de um mundo verdadeiro, todavia,
apenas de uma ―verdade imediata‖, que deverá ser provada pelas mediações históricas
efetivas, tornando-se uma ―verdade mediatizada‖.
Na bela vida ética do mundo grego, o indivíduo está harmonizado com as leis e os
costumes da polis, sendo o espírito no momento imediato, que precisa ser mediatizado pelo
advento das contradições internas (masculino-feminino, família-comunidade etc.). Segue-
se o rompimento do estado imediato, a oposição do indivíduo e a cidade - mundo romano.
―O mundo ético vivo é o espírito em sua verdade; assim que o espírito chega ao saber
abstrato de sua essência, a eticidade decai na universalidade formal do direito. O espírito,
doravante cindido em si mesmo, inscreve em seu elemento objetivo, como em uma
efetividade rígida, um dos seus mundos – o reino da cultura – e, em contraste com ele, no
elemento do pensamento, o mundo da fé – o reino da essência‖ (FE, 442). Por fim, os dois
3 As referências desta parte são as notas de rodapé da tradução da Fenomenologia do Espírito feita por
Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrière; as notas da tradução feita por Jean Hyppolite; e a obra de
Paulo Meneses: Para ler a Fenomenologia do Espírito. As citações da Fenomenologia do Espírito são da
tradução feita por Paulo Meneses que será abreviada assim FE, seguida do número do parágrafo.
9
reinos – o da cultura e da fé – tratam da formação dos povos europeus até a revolução
francesa. Este é o caminho percorrido pela consciência até o iluminismo. Será exposto,
agora, apenas o capítulo da eticidade, ou seja, a experiência do Direito na cultura grega e
romana.
2.1.1 - Harmonia do mundo ético: equilíbrio entre as leis na cidade grega
A cidade (lei do dia) articula a oposição entre o universal e o singular, mas,
privilegia o universal em detrimento da singularidade (lei da noite). Esta tensão anuncia a
ruína do mundo ético, implicando na oposição entre subjetividade e comunidade, em que os
protagonistas da experiência são o povo, o cidadão, a família, a morte. Anuncia um destino
onde aquelas duas forças se despedaçam, revelando uma divisão irremediável da totalidade
originária.
a) As leis na família: A família é a imediatidade inconsciente (ética natural) face à
mediação consciente (ética cidadã). O problema é como a família pode tornar-se um
singular universal, ou seja, marcar, eticamente, cada um de seus membros. Cabe à família
conferir ao morto sua universalidade ética, através do elemento terra (universal) e do
sangue da família. Os funerais são uma tarefa ética, em que a família universaliza as forças
particularizantes da natureza. ―Esse último dever constitui assim a lei divina perfeita, ou a
ação ética positiva para com o Singular‖ (FE, 453). Hegel faz da morte não um fenômeno
natural, mas um ato ético, porque por ela é garantido o direito do singular através dos ritos
da sepultura, elevando a morte à sua natureza.
b) As leis na cidade: Depois do acontecimento da morte, coloca-se o problema do
poder como segunda esfera, onde se dá a articulação entre a lei humana e divina (FE, 454).
c) A relação dos sexos ou a relação ética familiar: A terceira esfera em que se
decide a harmonia ética é a relação dos sexos. ―A lei divina que reina na família possui, de
seu lado, também diferenças em si [mesma], cujo relacionamento constitui o movimento
vivo de sua efetividade‖ (FE, 456). As duas primeiras relações sexuadas – relação marital e
parental – são dominadas pelos sentimentos de emoção e piedade. A terceira relação, entre
irmão e irmã, comanda a qualidade ética que permitirá a articulação verdadeira das duas
leis no interior do mundo ético.
Isto descreve a imagem de um mundo ético articulado harmoniosamente nas suas
próprias diferenças. ―Dessa maneira, o reino ético é, em sua subsistência, um mundo
imaculado, que não é manchado por nenhuma cisão. Seu movimento é, igualmente, um
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tranqüilo vir-a-ser – de uma potência sua para a outra – de modo que cada uma receba e
produza a outra‖ (FE, 463).
Sabemos como Hegel, antes de escrever a Fenomenologia, tentou representar a vida
orgânica de um povo como um todo harmonioso – o mundo ético, como infinitude e
totalidade - , inspirando-se na Política de Platão. ―O todo é um equilíbrio estável de todas
as partes, e cada parte é um espírito [semelhante ao] do indígena, que não procura sua
satisfação fora de si – mas a possui dentro de si, pelo motivo de que ele mesmo está nesse
equilíbrio com o todo‖ (FE, 462). Porém, na Fenomenologia, esta intuição do todo
equilibrado, torna-se um momento passado, pois há um desmoronamento da polis grega e
não é possível uma volta a ela no mundo moderno.
No mundo ético harmônico, a família se realiza na comunidade e vice-versa, no
entanto, a ação ética que é o singular efetivo desestabiliza esta ordem. Família e
comunidade passam a opor-se, porque os dois direitos diferentes se afrontam,
manifestando-se na tragédia antiga. O resultado deste conflito trágico será o
desaparecimento deste mundo. A lei divina e a humana são vencidas pelo destino e o
individualismo e o imperialismo substituem a família e a cidade.
2.1.2 - Da harmonia à tragédia: contradição do individuo e a comunidade
O modelo ideal, acima descrito, é posto em desarmonia pela introdução da
singularidade operante. A crise que se prepara tem os seguintes passos: cada consciência é
habitada de uma certeza imediata, concernindo seu agir ético; como tal, ela se dá
necessariamente uma das duas leis; mas, ela depende apenas de uma ou outra destas leis em
função de um azar natural. O desmoronamento deste mundo ético decorre desta oposição
entre necessidade ética e contingência da natureza.
A oposição entre poder público e consciência privada, a ordem emanando do poder
e o indivíduo que defende o imperativo de seu dever ético, encontra uma ilustração no
debate entre Creonte e Antígona (FE, 466).
Cada consciência, agora, entregue a sua própria lei, a conhece como totalidade ética
e deve realizá-la. ―O direito absoluto da consciência ética consiste, pois, nisto: que o ato – a
figura de sua efetividade – não seja outra coisa, senão o que ela sabe‖ (FE, 467). O ato,
assim como ele se apresenta no interior do mundo ético, implica uma discordância entre um
engajamento interior total e a parcialidade da tarefa, que a organização deste mundo
obriga a consciência. Esta falta, ou crime rompe a bela totalidade ética. A ruptura não é
11
provocada por uma incapacidade psicológica ou moral, mas pela estrutura da própria
sociedade. ―A culpa recebe também a significação de delito, pois a consciência-de-si, como
simples consciência ética, consagrou-se a uma lei, mas renegou a outra e a violou mediante
seu ato‖ (FE, 468). Agindo de forma efetiva a consciência torna-se culpável, pois ―inocente
é só o não-agir – como o ser de uma pedra; nem mesmo o ser de uma criança [é inocente]‖
(FE, 468). Esta falta é, ao mesmo tempo, crime, porque ela viola uma outra lei.
Antígona conhece e viola a lei humana, assim, ela coloca em risco a harmonia do
mundo ético. ―Devido a essa efetividade, e em virtude do seu agir, a consciência ética deve
reconhecer seu oposto como efetividade sua; deve reconhecer sua culpa: ―Porque sofremos,
reconhecemos ter errado‖‖(FE, 470). A consciência experimentou que seu ato não realiza a
tarefa ética que lhe cabe, então, ela se volta à interioridade, ou seja, faz um retorno à
disposição ética. ―Esse reconhecer exprime a cisão suprassumida do fim ético e da
efetividade; exprime o retorno à disposição ética, que sabe nada ter a não ser o direito‖ (FE,
471).
A experiência mostra na efetividade como se fragmenta o mundo ético. A
conjunção ao azar de três elementos que expressam pontos sensíveis deste mundo – morte,
poder e relação dos sexos – provocará a crise e o desmoronamento, começando pelos dois
primeiros. Recusando a Polinice, que ofendeu a comunidade, as mesmas honras que a
Etéocles, o defensor da cidade que representa a lei do dia entre em conflito com a lei da
noite que é o princípio interior de sua própria efetividade. ―Mas se assim o universal apara
de leve o puro vértice de sua pirâmide, e obtém a vitória sobre o princípio rebelde da
singularidade – a família – com isso somente entrou em conflito com a lei divina‖(FE,
474).
A feminilidade é a que vai questionar a compacidade do mundo ético, expressando-
se pela voz de Antígona, que contesta o fundamento ético da ordem de Creonte, levando a
crise ao ponto crítico. ―Essa feminilidade – a eterna ironia da comunidade – muda por suas
intrigas, o fim universal do Governo em um fim-privado, transforma sua atividade
universal em uma obra deste indivíduo determinado, e perverte a propriedade universal do
Estado em patrimônio e adorno da família‖ (FE, 475).
A contradição, experimentada pelo poder público, está em que para conduzir o
combate que vem do exterior, ele depende de fato do princípio familiar interior, contra o
qual ele teve que se dobrar. ―O lado negativo da comunidade que reprime para dentro à
singularização dos indivíduos, mas que para fora é espontaneamente ativo, possui suas
armas na individualidade‖ (FE, 475).
12
Minado pelos conflitos interiores e dividido naquilo que deveria formar sua unidade
espiritual, o mundo ético se afunda e deixa lugar ao princípio que não pode assegurar a
integração ao universal: a pura individualidade vazia, que introduzirá seu direito absoluto
ao reconhecimento. ―Como anteriormente só os Penates desabaram no espírito do povo,
agora são os espíritos vivos dos povos que, através de sua individualidade, desmoronam em
uma comunidade universal, cuja universalidade simples é sem-espírito e morta, e cuja
vitalidade é o indivíduo singular, enquanto Singular. A figura ética do espírito desvaneceu,
e surge uma outra em seu lugar‖ (FE, 475).
As duas causas, diz Hegel, do desmoronamento do mundo ético foram a ausência de
mediação e a não relação com a natureza. O Estado de direito herda este impasse. ―Esse
colapso da substância ética e sua passagem para uma outra figura são determinados pelo
fato de ser a consciência ética, de modo essencial, orientada imediatamente para a lei. Pois
a imediatez tem a significação contraditória de ser a quietude inconsciente da natureza , e a
irrequieta quietude, consciente-de-si, do espírito. Por causa dessa naturalidade, o povo ético
em geral, é uma individualidade determinada pela natureza – e, por isso, limitada – e assim
encontra sua suprassunção em uma outra‖ (FE, 476).
2.2 – Experiência do Direito na cultura romana
O estado de direito é uma figura da civilização que privilegia o direito no seu
sentido formalista. Esse momento corresponde ao império romano e a sua decadência em
que o individuo e o império se mantém num atomismo de pluralidade de pessoas. O triunfo
do império romano possibilita o aperfeiçoamento da doutrina jurídica, do direito abstrato e
o conceito de pessoa jurídica que é distinta da individualidade concreta. Hegel na Filosofia
da História afirma: ―Em Roma, nós encontramos agora esta livre generalidade, esta
liberdade abstrata que coloca de um lado o Estado abstrato, a política e a força acima da
individualidade concreta, subordinando-a, inteiramente, e que de outra parte cria diante
desta generalidade a personalidade – a liberdade do Eu em si que é necessário bem
distinguir da individualidade [concreta]‖ 4. ―Assim, a personalidade saiu, nesta altura, da
vida da substância ética: é a independência, efetivamente em vigor, da consciência‖ (FE,
479).
4 G. W. F. Hegel. Filosofia da História. p. 61. Apud tradução da Fenonemologia de Jean Hyppolite
(1941), tomo II, nota 75, p. 45.
13
Na Filosofia do Direito, Hegel, trata na primeira seção, do Direito abstrato que é o
Direito romano. Ora, no início desta parte o autor faz uma análise semelhante àquela,
sublinhando o caráter da noção vazia da pessoa. ―A unidade universal, a que retorna à
unidade imediata viva da individualidade e da substância, é a comunidade carente-de-
espírito, que deixou de ser a substância dos indivíduos. O universal, estilhaçado nos átomos
dos indivíduos absolutamente múltiplos – esse espírito morto - é uma igualdade na qual
todos valem como cada um, como pessoas‖ (FE, 477).
Há uma aproximação, de um lado, entre estoicismo e estado de direito, e de outro,
entre Dominação/Escravidão e mundo ético. Trata-se de um paralelo estrutural: os dois
primeiros capítulos (certeza sensível e percepção) da obra são reassumidas, em nível de
conteúdo, nesta primeira subseção do espírito. A articulação das duas leis (humana e
divina) inscreve-se no ciclo da vida. O conflito entre a essência da noite e aquela do dia,
retoma a relação senhor/escravo, atingindo um combate de vida e morte. Enfim, o
estoicismo aqui evocado será seguido da menção ao ceticismo e a consciência infeliz.
―Como agora a independência abstrata do estoicismo apresentava [o processo de] sua
efetivação, assim também essa última [forma de independência, a pessoa] vai recapitular o
movimento da independência estóica‖ (FE, 480). A relação abstrata à exterioridade da
propriedade sublinha no Estado de direito a dimensão limitada desta figura. ―Como o
ceticismo, assim o formalismo do direito, sem conteúdo próprio, por seu conceito encontra
uma subsistência multiforme – a posse – e como o ceticismo, lhe imprime a mesma
universalidade abstrata, pela qual a posse recebe o nome de propriedade‖ (id. 480).
No Estado de direito, o universal, estando separado da singularidade, se expressa
sob uma dupla forma irracional: explosão desse mundo na multiplicidade dos átomos
sociais, e sua reunião artificial na pessoa do ―senhor do mundo‖ (o imperador romano).
―Sabendo-se assim como o compêndio de todas essas potências efetivas, esse senhor do
mundo é a consciência-de-si descomunal, que se sabe como deus efetivo. Mas como é
apenas o Si formal – que não é capaz de domar essas potências – seu movimento e gozo de
si mesmo é também uma orgia colossal‖ (FE, 481).
2.3 – Individual e universal e atomização dos indivíduos: futuro da autonomia
A seção Espírito apresenta a igualdade ética da consciência singular e da
consciência universal, realizando-se na vida de um povo. Ocorre, em nossa época, diz
Hegel, que o universal está presente nas proposições e nos conceitos elaborados como o
14
resultado do percurso filosófico ao longo dos séculos, e a obra a realizar consiste em dar
nova vida e autoconsciência a este universal petrificado. O indivíduo desesperado deste
saber abstrato, irá manifestá-lo, pouco a pouco, como seu, deixando-o desenvolver sem
forçar as etapas. Quando o indivíduo tiver percorrido esse caminho, ele se tornará um
mundo, e a realidade não será mais uma essência longínqua, mas uma efetividade espiritual
imediata (cf. Labarrière, 1985, 112-119).
O método da Fenomenologia acontece pela passagem de uma experiência a outra,
desenvolvendo-se o conteúdo de modo progressivo, de tal modo, que a totalidade
manifestada no fim está presente nas primeiras etapas da consciência, porém, ainda como
uma ação escondida ou subterrânea. Agora, ela vem à luz, permitindo uma releitura do
itinerário percorrido, em nível de seu desenvolvimento real. Torna-se evidente que as
figuras consideradas até então, não tinham os ―momentos‖ da afirmação do espírito. Enfim,
―o espírito é a vida ética de um povo, enquanto é a verdade imediata: o
indivíduo que é um mundo. O espírito deve avançar até à consciência do
que ele é imediatamente, deve suprassumir a bela vida ética, e atingir,
através de uma série de figuras, o saber de si mesmo. São figuras, porém,
que diferem das anteriores por serem os espíritos reais, efetividades
propriamente ditas; e [serem] em vez de figuras apenas da consciência,
figuras de um mundo‖ (FE, 441).
―O verdadeiro sujeito da Fenomenologia do Espírito, é o acontecer do indivíduo
razoável, isto é, universal, pela reassunção do movimento que permitiu o desenvolvimento
do espírito na sua universalidade, através das figuras da história – isso que Hegel, sob esta
dupla forma individual e universal, chama o processo da ‗cultura‘‖ (Labarrière, 1979, 131).
Esse momento universal é o espírito em si, ou o espírito verdadeiro. Sua característica é
tentar uma conjunção direta e imediata entre o singular e o universal, através da vida de um
povo. Cada consciência atinge sua própria universalidade pelo jogo de uma operação
individual que a integra às leis, aos costumes comuns, enfim, a substância ética. Esta
identidade toma a forma de uma experiência histórica que reúne, na unidade do espírito o
pensamento e a efetividade: é o mundo grego e o mundo romano (id. p. 131).
a) A primeira dialética do espírito verdadeiro, ou seja, a eticidade, é a lei humana e
divina, o homem e a mulher. A oposição é entre o singular e o universal, esses momentos
não expressam um dualismo, mas as duas essências universais da eticidade, a saber, a lei
divina e a lei humana. Estas têm sua encarnação concreta em autoconsciências distintas, na
unidade imediata da substância e da autoconsciência, realizando uma igualdade efetiva do
15
universal e do singular. O mundo ético ou a eticidade desenvolve-se num equilíbrio
verdadeiro de seus momentos e leis, plenas de conteúdo verdadeiro.
b) A segunda dialética e figura do espírito, a ação ética, o saber humano e o divino,
a culpa e o destino, contém os princípios éticos determinados no elemento do ser, numa
individualização plena. Porém, esta simples autoconsciência, no final desta dialética, se
afirmará na abstração de seus direitos singulares, sendo a força desta ação ética que dividirá
o mundo do espírito verdadeiro. Com a figura do estado de direito, penetra-se no
movimento de divisão, a dialética do espírito, tornando-se alienado de si.
c) A efetividade ética imediata estruturou-se de uma parte, segundo a oposição dos
princípios, e de outra, segundo a dos indivíduos, nos quais os princípios se encarnam. Ora,
a lei de cada singular expressa a universalidade do espírito verdadeiro. Porém, esta
universalidade irá desaparecer pelo confronto entre as leis, porque o espírito individual que
pensava poder expressar-se imediatamente no seu mundo, recebeu dele apenas a imagem
parcial de sua própria positividade, sendo remetido de novo a si mesmo, para aprofundar
sua lei. Aqui, tem-se a evocação da figura do estoicismo em que a consciência do estado de
direito, terá uma definição, ao mesmo tempo, positiva e negativa a respeito da consciência
estóica individual (Labarrière, 1985, 120-128).
O mundo grego desapareceu, porque não deu ao indivíduo o seu devido lugar. A
figura que o sucede é o mundo romano. Este afirma, ao contrário, o indivíduo sem
intermediário ou mediação. O império romano torna-se propriedade de um particular, o
imperador. Os particulares buscam o interesse privado antes do público. O produto da
cultura romana é o Direito privado. O mundo romano é uma unidade consciente na pessoa
do imperador e cada particular é consciente de seus interesses privados, consciente dele
como particular. É a vitória da particularidade, sendo o particular a pessoa jurídica, que lhe
falta a universalidade. Não há individualidade em Roma, mas a pessoa jurídica, isto é, o eu
abstrato do homem isolado. O império romano reconhece o valor absoluto da pessoa, da
particularidade, mas não, a universalidade na particularidade, ou seja, ele não reconhece
cidadãos, verdadeiras individualidades (Kojève, 1994, 105-106).
Na descrição das experiências do Direito na Fenomenologia, constata-se que está
implícito o problema da autonomia individual subjetiva e intersubjetiva. A contradição
entre o indivíduo e a comunidade, na sociedade grega, culmina na tragédia e o direito não
consegue resolver o impasse entre a lei da cidade e lei da família. A experiência do Direito
romano, opta pelo lado do indivíduo, originando uma sociedade de pessoas atomizadas.
Nota-se, pela descrição hegeliana, que esta experiência do Direito, é semelhante ao da
16
autonomia individual subjetiva, embora, este conceito só será instaurado na modernidade.
Os modelos da autonomia individual descrevem a constituição destes tipos antropológicos
que foram elaborados na modernidade, opondo subjetividade e intersubjetividade. Hegel na
Fenomenologia, ao apresentar na figura do Direito a oposição entre individual e universal
na polis grega, e a atomização da pessoa no mundo romano, expõe na experiência da
contradição da consciência figuras da história, que necessitam do momento lógico da
superação do impasse jusfilosófico greco-romano. Esta superação ocorre no saber absoluto,
como sendo a reconciliação da totalização do espírito e da totalização religiosa. Na
Fenomenologia, o autor tem, diante de si, a constituição do modelo de autonomia
individual subjetivo da modernidade, contudo, ele constata que este modelo conduz a
impasses, daí a Filosofia do Direito apresentar na determinação da idéia de liberdade, a
autonomia individual subjetiva ser suprassumida na autonomia individual intersubjetiva.
Hegel sabe que a modernidade instituiu o conceito de subjetividade autônoma, porém, ele
quer construir um modelo que dê conta, ao mesmo tempo, deste novo conceito e o princípio
da filosofia política clássica: o todo precede o indivíduo. A primazia do universal inclui o
singular, de modo a garantir sua autonomia, sem, no entanto, destruir a organicidade
harmoniosa do todo e as partes na relação cidadão-Estado.
Nossa hipótese é de que, o fenômeno da mundialização em curso, apresenta
experiências do Direito, semelhantes às da figura do Direito na Fenomenologia, acima
apresentadas, ou seja, de um lado, a contradição entre o indivíduo e a comunidade que
conduz à tragédia, sob o ponto de vista cultural e de minorias étnicas, de gênero etc, e de
outro, a atomização dos indivíduos sob o ponto de vista jurídico-econômico. Então, face à
questão: o futuro da autonomia, uma sociedade de indivíduos? expomos alguns desafios à
autonomia no estado de Direito atual, tais como se apresentam no Direito, no trabalho e na
cultura.
3 – DESAFIOS À AUTONOMIA NO ESTADO DE DIREITO
O modelo de autonomia individual subjetivo influencia a construção da autonomia
nas mais diversas esferas da sociedade, determinando a identidade moderna (Taylor, 1997).
Por exemplo, na esfera privada, ―a rebelião contra a família patriarcal envolve uma
afirmação da autonomia pessoal e de vínculos voluntariamente constituídos, em
contraposição às demandas de uma autoridade impositiva‖ (id. p. 375).
17
Na esfera pública, continua Taylor, ―falar de direitos humanos universais, naturais,
é vincular o respeito pela vida e integridade humanas à noção de autonomia. É conceber as
pessoas como colaboradores ativos no estabelecimento e garantia do respeito que lhes é
devido. E, para nós, respeitar a personalidade envolve como elemento crucial respeitar a
autonomia moral da pessoa‖ (Taylor, 26). Temos assim, tanto na esfera privada como na
pública o desenvolvimento do conceito de autonomia, segundo o modelo subjetivo. Este
modelo de autonomia individual subjetivo perpassa o estado de Direito atual num contexto
de mundialização, atravessando sobretudo o Direito, o mundo do trabalho e a cultura.
Vejamos, agora, em nível jusfilosófico as implicações da passagem de um modelo de
Direito da autonomia individual subjetivo para um modelo de autonomia individual
intersubjetivo.
3.1 – Autonomia e Direito
No que se refere, ao Direito, o desafio que o problema da autonomia desencadeia, é
a constituição do modelo moderno de Direito, correspondendo ao sujeito da sociedade
industrial nascente. No entanto, face aos novos sujeitos da sociedade atual, vê-se a
necessidade de realizar uma passagem de modelos jurídicos, atendendo a uma nova
hermenêutica jusfilosófica. Esta análise restringe-se ao contexto jurídico brasileiro, porém,
pode-se aplicá-lo a outros cenários do Direito comparado.
O Procurador de Justiça e Professor Lenio Streck analisa o modelo de Direito da
autonomia individual e aponta a necessidade de constituir um modelo intersubjetivo. Ele
constata a crise do Direito, do Estado e da dogmática jurídica, porque estes não conseguem
atender as especificidades das demandas originadas de uma sociedade complexa e
conflituosa. O paradigma liberal-individualista-normativista está esgotado. O crescimento
dos direitos transindividuais e a crescente complexidade social exigem novas posturas dos
operadores jurídicos. O contexto da crise do modelo de Direito de cunho liberal-
individualista é acompanhado por uma outra crise, a do paradigma epistemológico da
filosofia da consciência (Streck, 2003, 18).
O autor frisa que a noção de contrato social não pode ser entendida no âmbito de
uma filosofia do sujeito, mas, sim, no âmbito de uma filosofia da intersubjetividade
(relação sujeito-sujeito), própria do paradigma hermenêutico, no interior do qual o sujeito
desde sempre está mergulhado na lingüisticidade do mundo, uma vez que não há
linguagem privada. O privado somente decorre das inter-relações com o público. Acreditar
18
em linguagem privada é retornar ao paradigma da filosofia da consciência, em que a
subjetividade autônoma é instauradora do mundo (Streck, 2003, nota 58, p. 45).
O judiciário brasileiro está preparado para lidar com conflitos interindividuais,
próprios de um modelo liberal-individualista, e não, dos problemas decorrentes da
transindividualidade ou da intersubjetividade, própria do novo modelo advindo do Estado
Democrático de Direito previsto na Constituição promulgada em 1988 (Streck, 2003, 52).
O pressuposto do imaginário jurídico liberal individualista, está embasado na filosofia da
autonomia da consciência, carente da reviravolta lingüístico-pragmática, que implica a
relação intersubjetiva (id, p. 59).
Streck constata que a economia de mercado se legitima pela categoria do sujeito
autônomo de direito moderno, elaborado por um paradigma hemenêutico de cunho
metafísico-abstrato (id, p. 63). Ora, afirma Streck, no Brasil, já passamos do Estado Liberal
– formalmente – para um Estado Social (não realizado) e, a partir de 1988, passamos a ter
uma Constituição que institui o Estado Democrático de Direito. A atividade judicial
continua, porém, como simples ‗administração da lei por uma instituição tida como
‗neutra‘, ‗imparcial‘, e ‗objetiva‘, ficando o intérprete/aplicador convertido num mero
técnico do Direito positivo (id, p. 64). Enfim, a crise do paradigma liberal-individualista de
produção de direito, é decorrente da não-superação, pela dogmática jurídica, do paradigma
da prevalência da lógica do modelo de autonomia subjetivo moderno.
Face ao modelo de autonomia individual subjetivo, o autor, entende que a
compreensão do novo modelo de Direito e de Estado, estabelecido pelo Estado
Democrático de Direito implica a construção de possibilidades para a sua interpretação (id,
p. 277). Em nível da prática jurídica (doutrina e jurisprudência dominantes) não há ainda
uma resposta (id, p. 279), porém, o que se quer é a construção das condições de
possibilidade de uma nova maneira de compreender o Direito (id, p. 281).
Ele propõe, assim, a resistência constitucional, entendida como processo de
identificação do conflito entre princípios constitucionais e o neoliberalismo que entra em
contradição com aqueles: solidariedade frente ao individualismo, igualdade substancial
frente ao mercado (id, p. 289).
―Esse novo modelo constitucional supera o esquema da igualdade formal rumo à
igualdade material, o que significa assumir uma posição de defesa e suporte da
Constituição como fundamento do ordenamento jurídico e expressão de uma
ordem de convivência assentada em conteúdos matériais de vida e em um projeto
de superação da realidade alcançável com a integração das novas necessidades e
a resolução dos conflitos alinhados com os princípios e critérios de compensação
constitucionais‖ (id, p. 289).
19
O modelo de Direito de autonomia individual intersubjetivo têm, portanto, como
referência a constitucionalização, ―colocando-se, necessariamente a Constituição como
instância máxima para a aferição do sentido das normas‖ (Streck, 2002, 88; Streck, 2006,
149).
3.2 – Autonomia e mundo do trabalho
No que diz respeito à autonomia no mundo do trabalho, o desafio é posto ao tempo
do trabalhador e à sociedade do conhecimento tecnológico. É importante destacar, afirma
Bifo, ―a independência do tempo social em relação à temporalidade do capitalismo. A
autonomia é a auto-regulação do corpo social, na sua independência e nas suas interações
com a norma disciplinar‖ (Bifo, 2003, 2). O trabalhador conquista a sua autonomia
temporal, na medida em que ele se auto-regula no trabalho.
Porém, essa capacidade de autonomia temporal não o desvincula do processo do
capitalismo, mas o atrela de outra forma ainda mais sofisticada, através da reestruturação
tecnológica: ―O movimento de autonomia ultrapassou o movimento capitalista, mas o
processo de desregulamentação estava inscrito nas linhas de desenvolvimento do
capitalismo pós-industrial e era uma implicação natural da reestruturação tecnológica da
globalização da produção‖ (id, p. 3).
Para o autor, a reestruturação tecnológica que vincula a autonomia temporal do
trabalhador pode ser ilustrada em dois artefatos tecnológicos: a internet e o celular.
―Na economia pela internet, a flexibilização transformou-se numa forma de
fractalização do trabalho. A fractalização significa a fragmentação das atividades
temporais. O trabalhador não existe mais enquanto pessoa. Ele é apenas o
produtor substituível de microfragmentos de signos recombinados, entrada no
fluxo contínuo da rede. O capital não paga mais a disponibilidade do trabalhador
para o explorar enquanto num certo período, ele não paga mais o salário que
cobre todo o leque das necessidades econômicas de uma pessoa que trabalha. O
trabalhador (uma simples máquina possuindo um cérebro que pode ser utilizado
enquanto um fragmento do tempo) é pago por seu trabalho pontual, ocasional,
limitado no tempo‖ (id, 7).
Assim, o tempo de trabalho é dividido em células estanques. E estas células do
tempo podem ser compradas na internet, a tal ponto que uma empresa pode adquirir tanto
quanto ela o deseja. ―O telefone celular é o utensílio que caracteriza melhor a relação entre
o trabalhador fractal e o capital recombinado. O trabalho cognitivo é um oceano de
fragmentos do tempo microscópico, e a divisão em células é a capacidade de recombinar os
20
fragmentos do tempo no quadro de um único semiproduto. O telefone celular pode ser
considerado como a cadeia de montagem do trabalho cognitivo‖ (id, 7). Vemos, assim, que
a autonomia temporal no mundo do trabalho é relativa à reestruturação tecnológica
capitalista. Aqui, repete-se a ―figura do Estado de Direito‖ da Fenomenologia de Hegel, em
nível do trabalho, pois os trabalhadores se tornam indivíduos atomizados na rede da
internet ou no celular.
3.3 – Autonomia e cultura
A situação atual da autonomia do indivíduo, sob o ponto de vista da cultura em face
ao fenômeno chamado globalização (ou mundialização), é menos delimitadora de um tipo
de sociedade definido e mais um elemento desordenador dos vetores tradicionais até então
configurados: transnacionaliza mercados; dificulta o controle dos fluxos de capitais;
inviabiliza a tributação das trocas; põe em risco determinadas garantias até então
asseguradas pelo Estado nacional etc. Enfim, neste contexto, afirma-se uma peculiar
autonomia do sujeito.
A situação do indivíduo hoje é a constituição de uma ―subjetividade idêntica a si
mesma, fonte única do sentido do mundo‖ (Oliveira, 2007, 4). Tal estado de coisas resulta
de um conjunto de variáveis que se interpenetram e que tem seu ponto de inflexão naquilo
que Alain Touraine designa ―a decadência e o desaparecimento do universo que
chamávamos de social‖. (Touraine, 2006, 10) De fato, desde que se pode considerar
inexpugnável o triunfo da economia sobre a política, as categorias sociais, até então
vigentes, se embaralharam. A superação da sociedade industrial pela revolução tecnológica
da informação deixou para trás as relações sociais de produção, de tal maneira que os
conflitos de grande envergadura hoje, tais como as guerras, não têm mais função política
ou social e só podem ser elucidados pela ótica do interesse puramente econômico
(Touraine, 2006, 10). Em face de tal quadro, o indivíduo vê-se interditado para o exercício
de uma subjetividade engajada, perdendo os referenciais para uma razão de ser. Passa,
então, a assumir os riscos de um retorno solitário a si mesmo, que, se por um lado pode ser
valorado positivamente, do ponto de vista da autonomia, pode também ser determinante
para a adoção de posturas próprias de um cepticismo niilista.
Diferentemente do indivíduo gestado na modernidade, o indivíduo de hoje pode ser
descrito como uma reação ao intenso bombardeio da propaganda impingido pelos meios de
comunicação de massa. Portanto, descrente de valores universais, particularista, pragmático
21
na busca de seus interesses, voltado a orientações íntimas e individuais para a vida. ―O que
importa acima de tudo é sua liberdade individual entendida como fazer o que pretende,
como viver a intensidade do momento, sobretudo, as sensações fortes, e dentro deste
contexto desenvolver sua criatividade: daí a mudança e a inquietude permanente (Oliveira,
2007, 6)‖.
Manfredo de Oliveira, ao afirmar o aspecto ontológico da autonomia enquanto
categoria, assume a perspectiva intersubjetiva e histórica da autonomia, apontando para
uma autonomia solidária, para a qual o pressuposto é a necessidade da comunhão das
diferentes subjetividades autônomas. ―Portanto, a autonomia solidária inicia no nível das
relações interpessoais, mas só se sustenta na vida humana enquanto radicada no mundo de
instituições que marcam a vida coletiva e estruturam sua vida social, portanto, no nível do
econômico, do político e do cultural (id, 16)‖.
Já para Alain Touraine, a compreensão do sujeito, e portanto da autonomia, hoje
passa por acompanhar um movimento que o indivíduo faz, no sentido de libertar-se da
extremada sedução a que são bombardeados os que vivem nas cidades. Sedução esta que se
materializa tanto pela propaganda orientada para um consumo desenfreado, quanto pelo
chamamento à violência e às ―razões‖ da guerra (Touraine, 2006, 120). Diz este pensador:
―... o sujeito é a convicção que anima um movimento social e a referência às instituições
que protegem as liberdades (Touraine, 2006, 121)‖.
Em Touraine, o indivíduo não se limita à ―experiência imediata dele mesmo‖, mas,
sobretudo, ―é acompanhado de idéias por seu duplo, que se situa na ordem do direito, ao
passo que ele, por sua vez, evolui na ordem da experiência, da percepção, do desejo
(Touraine, 2006, 121)‖.
Diz Touraine: ―Hoje nossa moral é cada vez menos social. Ela desconfia cada vez
mais das leis da sociedade, dos discursos de poder, dos preconceitos com os quais cada
grupo protege sua superioridade ou sua diferença (Touraine, 2006, 124)‖. A descrença nas
instituições dominantes, aí, levam o sujeito a uma busca do direito de ser autor e sujeito de
sua própria existência e de se rebelar contra aquilo que torna nossa vida incoerente,
desprovida de sentido. E este é o pano de fundo, no qual ―se impõe a figura cultural da
sociedade (id, 125)‖, reclamando para sua compreensão um novo paradigma, da mesma
maneira que, no passado, a figura do social reclamara um paradigma próprio, para que se
pudesse superar o anacronismo do paradigma político. Para Touraine, o paradigma cultural
deve carregar consigo as exigências tanto do viés político, quanto do social, mas deve
22
responder às inquietações e o respeito aos direitos culturais (id, 175), que têm sua
concretude sempre em ―uma população determinada, quase sempre minoritária (id, 171)‖.
Trata-se aqui, na verdade, não mais do direito de ser como os outros, mas de ser
outro. Os direitos culturais não visam apenas à proteção de uma herança ou da
diversidade das práticas sociais; obrigam a reconhecer, contra o universalismo
abstrato das Luzes e da democracia política, que cada um, individual ou
coletivamente, pode construir condições de vida e transformar a vida social em
função de sua maneira de harmonizar os princípios gerais da modernização com as
―identidades‖ particulares (id., 171).
Concluindo, tomar-se como referencial de estudo a dicotomia autonomia individual
face à sociedade mundializada, implica em trazer à ordem do dia o ―precipitado teórico‖
que se consolidou ao longo da tradição filosófica no tocante ao duplo oposto mais geral,
que se desenha a partir dos pólos indivíduo versus comunidade, ou singular versus
universal.
Para os fins de nosso estudo, considerada a antiguidade clássica, enquanto aquela
quadra histórica, que toma por marco inicial a concepção grega de vida em sociedade e, por
derradeiro, a república romana, vê-se que a mencionada dicotomia é quase nula, posto que
a subjetividade é muito raramente expressada, diga-se, por vezes na figura de Sócrates e na
Antígona de Sófocles, enquanto signos primevos de um direito subjetivo individual.
Demais, a vida em sociedade era embebida por uma noção de direito público, cuja origem
remonta ao surgimento da pólis. Em As origens do pensamento grego, Jean-Pierre Vernant,
após evidenciar que é de um amálgama político-religioso que deflui o jurídico, mostra que
a evolução deste último aspecto da vida social já se torna público desde a crise do poder
micênico, quando, ―todo o domínio do pré-jurídico enfim, que governa as relações entre
famílias, constitui em si uma espécie de agón, um combate codificado e sujeito a regras, em
que se defrontam grupos...uma disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a
ágora, praça pública, lugar de reunião antes de ser um mercado (Vernant, 2003, 49-50)‖.
Dando-se, pois, com o surgimento da polis a esfera pública implanta-se como um setor de
interesse comum, que se opõe à noção de um interesse privado. Doravante, o ―controle
constante da comunidade se exerce sobre as criações do espírito, assim como sobre as
magistraturas do Estado. A Lei da polis, por oposição ao poder absoluto do monarca, exige
que umas e outras sejam igualmente submetidas à prestação de contas (Vernant, 2003, 55-
56)‖.
23
Em verdade a latência de qualquer dos pólos desta relação – seja do pólo subjetivo,
seja do pólo objetivo - vai reclamar sempre a efetividade da mediação ao longo do
desenvolvimento lógico e histórico do conceito de liberdade; no mundo pagão, da
antiguidade clássica, este conflito se colocava na inevitabilidade da contraposição entre as
esferas do oikos, da família e da polis, conforme observa Kojève: ―Certamente — em
princípio — uma síntese do particular familiar e do universal estatal poderia realizar o
homem. Mas tal síntese é absolutamente impossível no mundo pagão. Por que a família e o
Estado se excluem mutuamente, sem que o homem possa transitar de um à outra(Kojève,
1994, 187)‖. De modo, que falar-se em um par de opostos, no exame da questão em tela,
mais paralisa o estudo do que permite seu curso, e configura, na maior parte das vezes um
mero recurso retórico de apresentação do problema.
Não obstante esta constatação, vê-se que, em algumas etapas do desenvolvimento
filosófico, os autores tendem a fixar-se em um dos extremos de uma relação, sem levar em
conta a imprescindibilidade da mediação. Hegel evidencia e critica estas formas
equivocadas de abordar, metodologicamente, qualquer questão do ponto de vista filosófico,
e especificamente a questão do Direito, desde seu notável ensaio escrito em 1802, (Hegel,
1990), que nós traduzimos assim: Sobre as maneiras científicas de tratar o Direito
Natural; seu lugar na filosofia prática e sua relação com as ciências positivas do direito 5.
A crítica hegeliana, realizada nesta obra, ao formalismo, e também ao empirismo - que são
as ditas maneiras tradicionais de ver o Direito Natural, até então - começa por mostrar
como estas abordagens se fixam em apenas um lado do movimento dialético que o espírito
perfaz, constantemente, em sua objetivação. Trata-se, portanto, qualquer procedimento daí
derivado, de uma abstração inferior (Hegel, 1990, p. 29), que visa preencher uma
necessidade própria do múltiplo, a que o empirismo já anunciara, a necessidade de que o
finito, em sua diversidade, venha a ser superado por algo que paire acima de si, enquanto
verdade absoluta, infinita. Entretanto, a abstração inferior que o formalismo apresenta, não
logra tal intento, pois se limita a repetir a prática do empirismo, ou seja, enquanto este se
fixava na multiplicidade posta (um dos pólos da relação), aquele se fixará no seu oposto, na
abstração pura (o imperativo categórico). Hegel insere o Direito como um momento ético
num todo orgânico dialético-especulativo, enquanto que o formalismo atribui a esta mesma
eticidade relativa a conotação de eticidade absoluta. Mais tarde, na Filosofia do Direito,
Hegel incorpora este debate do jusnaturalismo, bem como os dois modelos de autonomia
5 Obra traduzida pelos autores que já se encontra no prelo.
24
individual, acima expostos, mostrando a instituição da liberdade, garantida na autonomia
da pessoa e do sujeito na instituição (Kervégan, 1998, 39).
Assim, entendemos que os desafios à autonomia no estado de Direito, permite
compreender que o fenômeno jurídico-laboral-cultural, num contexto de globalização,
encontra nos modelos antropológicos de autonomia subjetiva e intersubjetiva e nas
experiências do Direito, descritos na Fenomenologia de Hegel, parâmetros interpretativos
para o futuro da autonomia.
25
REFERÊNCIAS
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