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Texto da escritora feminista indiana Chandra Mohanty, intitulado Mulheres do Terceiro Mundo e a Política Feminista
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Mulheres do Terceiro Mundo e a Política Feminista Sob olhos ocidentais Estudos feministas e discursos coloniais*
Chandra Talpade Mohanty Qualquer discussão sobre a construção política e intelectual dos “feminismos de
terceiro mundo” devem se voltar a dois projetos simultâneos: a crítica interna dos
feminismos hegemônicos “ocidentais”, e a formulação de preocupações e estratégias
feministas autônomas, fundamentadas geograficamente, historicamente e culturalmente. O
primeiro projeto é de desconstrução e de desmantelamento; o segundo, de criação e
construção. Apesar de esses dois projetos parecerem contraditórios, um agindo
positivamente e o outro negativamente, a menos que ambos sejam conduzidos
simultaneamente, os feminismos de “terceiro mundo” correm o risco de marginalização e
de guetização, em relação aos principais discursos (tanto de direita e quanto de esquerda)
feministas ocidentais.
É ao primeiro projeto que eu me dirijo. O que desejo analisar é, especificamente, a
produção da “mulher de terceiro mundo” como um sujeito singular e monolítico em alguns
textos (ocidentais) recentes. A definição de colonização que pretendo invocar aqui é aquela
predominantemente discursiva, aquela cujo foco é um certo modo de apropriação e de
codificação de “estudos” e “conhecimento” sobre mulheres do terceiro mundo por meio
de categorias analíticas utilizadas em textos específicos, que tomam como referências de
interesses feministas, aqueles articulados nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Se
uma das tarefas ao formular e entender o locus dos “feminismos de terceiro mundo” é
delinear o modo pelo qual ele resiste e trabalha contra o que eu estou me referindo como
“discurso feminista ocidental”, uma análise da construção discursiva das “mulheres do
terceiro mundo” no feminismo ocidental é um primeiro passo importante.
Claramente, o discurso feminista ocidental e a prática política, não são nem
singulares nem homogêneos em seus objetivos, interesses ou análises. De qualquer modo, é
possível traçar uma coerência ou efeitos resultantes da suposição primária de “ocidente”
(com todas suas complexidades e contradições) como referência primordial à teoria e a
prática. De modo algum quando me refiro ao “feminismo ocidental”, pretendo dizer que se
trata de um bloco monolítico. Ao contrário, pretendo chamar atenção para efeitos similares
de várias estratégias textuais usadas por escritores que classificam os Outros como não
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ocidentais, e consequentemente, classificam-se a si mesmos (implicitamente) como
ocidentais. É nesse sentido que uso feminismo ocidental. Argumentos similares podem ser
construídos em termos de classe média urbana africana, acadêmicos asiáticos produzindo
estudos sobre suas irmãs da zona rural ou da classe trabalhadora que assumem sua própria
cultura de classe média como norma, e classificam histórias e culturas da classe
trabalhadora como a dos Outros. Assim, mesmo que esse ensaio se centre,
especificamente, no que me refiro como o discurso “feminista ocidental” sobre mulheres
do terceiro mundo, também critico os acadêmicos do terceiro mundo quando escrevem
sobre suas próprias culturas utilizando estratégias analíticas idênticas.
Deveria haver ao menos algum significado político no fato de o termo colonização
ter descrito uma variedade de fenômenos nos textos feministas recentes, tanto de forma
geral como os de esquerda. Do seu valor analítico como categoria de troca econômica
exploratória, tanto no marxismo tradicional quanto no contemporâneo (cf.,
particularmente, teóricos contemporâneos tais como Baran 1962, Amin 1977 e Gunder-
Frank 1967) ao seu uso por mulheres feministas de cor nos Estados Unidos para descrever
a apropriação de suas experiências e esforços por movimentos hegemônicos de mulheres
brancas (cf., especialmente, Moraga e Anzaldúa 1983, Smith 1983, Joseph e Lewis 1981 e
Moraga 1984), colonização tem sido usada para caracterizar tudo, a partir das hierarquias
políticas e econômicas mais evidentes até a produção de um discurso cultural particular
sobre o que é chamado de “terceiro mundo”.1 Seja seu uso como construção explicativa
sofisticada ou problemática, colonização quase invariavelmente implica relação de
dominação estrutural e supressão – quase sempre violenta – da heterogeneidade do(s)
assunto(s) em questão.
Minha preocupação com tais textos tem origem em meu próprio envolvimento e
investimento em debates contemporâneos em teoria feminista, e a necessidade política
urgente (especialmente na era Reagan/Bush) de formar alianças estratégicas que
ultrapassem a questão de classe, raça e as fronteiras nacionais. Os princípios analíticos
discutidos abaixo distorcem as práticas políticas do feminismo ocidental, e limitam a
possibilidade de alianças entre feministas ocidentais (geralmente brancas), feministas da
classe trabalhadora e feministas de cor ao redor do mundo. Essas limitações são evidentes
na construção das prioridades (implicitamente consensuais) de assuntos em torno dos quais
aparentemente se espera que todas as mulheres se organizem. A conexão necessária e
integral entre estudos feministas, prática política feminista e organização determina o
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significado e o status dos escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo;
para estudos feministas, como para a maior parte dos outros tipos de estudo, não se trata
apenas da mera produção de conhecimento sobre um determinado assunto. Trata-se de
algo diretamente político e de uma prática discursiva que estão proposital e
ideologicamente imbricados no assunto. Eles (os estudos) são mais bem vistos como um
modo de intervenção em discursos hegemônicos particulares (por exemplo, antropologia
tradicional, sociologia, crítica literária, etc.); são uma prática política que enfrenta e resiste o
imperativo totalizador de corpos de conhecimento de longa data “legítimos” e
“científicos”. Assim, as práticas acadêmicas feministas (não importa se leitura, escrita,
crítica ou textualmente) estão inscritas em relações de poder – relações que enfrentam,
resistem, ou até mesmo, talvez, implicitamente suportem. É claro que também podem
existir estudos apolíticos.
A relação entre “Mulher” – uma combinação cultural e ideológica que os Outros
constroem através de discursos representacionais diversos (científicos, literários, jurídicos,
linguísticos, cinematográficos, etc.) e “mulheres” – reais, sujeitos materiais de suas histórias
coletivas – é uma das questões centrais em relação à qual a prática dos estudos feministas se
volta. Essa conexão entre mulheres na condição de sujeitos históricos e a representação da
Mulher produzida por discursos hegemônicos não é uma relação de identidade direta, ou
uma relação de correspondência ou de simples implicação2. É uma relação arbitrária
estabelecida por culturas particulares. Eu gostaria de sugerir que os textos feministas que eu
analiso aqui colonizaram discursivamente as heterogeneidades históricas e materiais das
vidas das mulheres do terceiro mundo, produzindo/representando, desse modo, uma
combinação singular “mulher do terceiro mundo” – uma imagem que parece
arbitrariamente construída, mas que não obstante carrega a autorização do discurso
humanista ocidental3.
Eu argumento que, as hipóteses de privilégio e universalidade etnocêntrica, por um
lado, e a autoconsciência inadequada sobre o efeito dos estudos ocidentais do “terceiro
mundo” no contexto de um sistema mundial dominado pelo Oeste, por outro,
caracterizam uma extensão considerável do trabalho feminista ocidental sobre mulheres do
terceiro mundo. Uma análise da “diferença sexual” na forma de uma noção monolítica de
patriarcado ou dominação masculina culturalmente transversal e singular leva à construção
de uma noção semelhantemente redutora e homogênea do que eu chamo de “diferença do
terceiro mundo” – aquela noção estável, ahistórica que aparentemente oprime a maior
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parte, se não todas, as mulheres nesses países. E é na produção dessa “diferença de terceiro
mundo” que os feminismos ocidentais se apropriam das complexidades constitutivas que
caracterizam as vidas das mulheres nesses países e colonizam-nas. É nesse processo de
homogeneização e sistematização da opressão das mulheres no terceiro mundo que o
poder é exercido em grande parte dos discursos feministas ocidentais, e esse poder precisa
ser definido e nomeado.
No contexto da posição hegemônica atual do Ocidente, do que Anouar Abdel-
Malek (1981) chama um esforço para “controle sobre a orientação, regulação e decisão do
processo do desenvolvimento do mundo com base no monopólio dos setores avançados
em conhecimento científico e criatividade ideal”, os estudos feministas sobre o terceiro
mundo devem ser vistos e examinados precisamente em termos de sua inscrição nessas
relações particulares de poder e esforço. Deveria ser evidente que não há nenhuma
estrutura patriarcal que esses estudos tentem enfrentar e resistir – ao menos que alguém
postule uma conspiração masculina ou uma estrutura de poder monolítica e ahistórica. De
qualquer modo, há uma balança mundial específica de poder dentro da qual qualquer
análise de cultura, ideologia e condições socioeconômicas, necessariamente, tem que estar
situada. Abdel-Malek é útil novamente nesse ponto, lembrando-nos sobre a inerência da
política nos discursos de “cultura”:
O imperialismo contemporâneo é, em um sentido real, um imperialismo hegemônico, exercendo em grau máximo uma violência racionalizada elevada a um nível mais alto do que nunca – através de ferro e fogo, mas também numa tentativa de controlar corações e mentes. Seu conteúdo é definido pela ação combinada do complexo militar-industrial e pelos centros de cultura hegemônica do ocidente, todos eles fundamentados em níveis avançados de desenvolvimento alcançado pelo monopólio e capital financeiro, e apoiados pelos benefícios tanto da revolução científica quando tecnológica da própria segunda revolução industrial (145-146).
Os estudos feministas ocidentais não podem evitar o desafio de se situarem e
examinarem seu papel em tal estrutura econômica e política global. Fazer menos do que
isso seria ignorar as interconexões complexas entre economias de primeiro e terceiro
mundo e o profundo efeito disso nas vidas das mulheres de todos os países. Eu não
questiono o valor descritivo e informativo da maior parte dos textos feministas ocidentais
sobre mulheres do terceiro mundo. Eu também não questiono a existência de excelentes
trabalhos que não caem em armadilhas analíticas com as quais eu estou preocupada. Na
verdade, eu lido com um exemplo de um trabalho como este adiante. No contexto de um
silêncio opressor sobre as experiências das mulheres nesses países, assim como da
necessidade de forjar relações internacionais entre os esforços políticos das mulheres, tal
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trabalho é ao mesmo tempo pioneiro e absolutamente essencial. De qualquer modo, é tanto
para o potencial explanatório de estratégias analíticas particulares empregadas em tal escrita,
quanto ao seu efeito político no contexto da hegemonia dos estudos ocidentais que eu quero
me voltar. Enquanto os textos feministas nos Estados Unidos ainda são marginalizados
(exceto a partir do ponto de vista das mulheres de cores em relação a mulheres brancas
privilegiadas), os escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo devem
ser considerados no contexto da hegemonia global dos estudos ocidentais – i.e., produção,
publicação, distribuição e o consumo de informações de ideias. Marginal ou não, essa
escrita tem efeitos políticos e implicações que vão além da audiência feminista ou
disciplinar imediata. Um efeito significativo das “representações” dominantes do
feminismo ocidental é sua fusão com o imperialismo aos olhos de mulheres do terceiro
mundo em particular4. Daí a necessidade urgente de examinar as implicações políticas de
nossas estratégias e princípios analíticos.
Minha crítica se dirige aos três princípios analíticos básicos que estão presentes no
discurso feminista (ocidental) sobre mulheres do terceiro mundo. Desde que meu foco
principal é nos textos das séries Third World Women da Zed Press Women, meus comentários
sobre o discurso feminista ocidental circunscrevem-se à análise dos textos nessas séries5.
Esse é um modo de dar foco à minha crítica. De qualquer modo, mesmo que eu esteja
lidando com feministas que se identificam cultural ou geograficamente do “ocidente”,
como mencionei antes, o que eu falo sobre essas pressuposições ou princípio implícitos se
aplica a qualquer um que use esses métodos, não importa se mulheres de terceiro mundo
no ocidente ou mulheres de terceiro mundo escrevendo sobre esses assuntos e publicando
no ocidente. Assim, eu não estou construindo um argumento culturalista sobre
etnocentrismo; estou tentando revelar como o universalismo etnocentrista é produzido em
certas análises. Na verdade, meu argumento se aplica a qualquer discurso que estabeleça
seus próprios sujeitos autorais como referentes implícitos, i.e., o parâmetro pelo qual se
enquadra e representa culturalmente os Outros. É nesse plano que o poder é exercido no
discurso.
A primeira pressuposição analítica na qual me foco está envolvida na locação
estratégica da categoria “mulheres” vis-à-vis o contexto da análise. A pressuposição de
mulheres como grupo já constituído e coerente, como interesses e desejos idênticos, sem
levar em consideração classe, etnia ou raça, ou contradições, implica uma noção de gênero
ou diferença sexual ou até mesmo patriarcalismo que pode ser aplicada universalmente e de
4
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modo culturalmente transversal. (O contexto de análise poder ser qualquer coisa, de
estruturas de parentesco e organização do trabalho, até representações midiáticas). A
segunda pressuposição analítica é evidente no nível metodológico, no modo acrítico pelo
qual se “prova” a validade do universal e do culturalmente transversal. A terceira é mais
especificamente a pressuposição política subjacente às metodologias e pressuposições
políticas, i.e., o modelo de poder e esforço que implicam e sugerem. Eu argumento que
como resultado dos dois modos – ou, na verdade, quadros – de análises descritos acima,
uma noção homogênea de opressão das mulheres enquanto grupo é pressuposta, o que,
por sua vez, produz a imagem de uma “mulher média de terceiro mundo”. Essa mulher
média de terceiro mundo leva uma vida essencialmente truncada, baseada em seu gênero
feminino (leia-se: ignorante, pobre, sem educação, ligada à tradição, doméstica, voltada para
a família, vitimizada, etc). Sugiro que tal visão está em contraste com a autorepresentação
(implícita) das mulheres Ocidentais como educadas, modernas, detentoras de controle
sobre seus próprios corpos e sexualidades, e dotadas liberdade para fazer suas próprias
decisões.
A distinção entre a representação das mulheres de terceiro mundo por feministas
ocidentais e a autorepresentação das feministas ocidentais é uma distinção da mesma
ordem daquela feita por alguns marxistas entre a função “mantenedora” da dona de casa e
o papel “produtivo” real da trabalhadora assalariada, ou a caracterização por
desenvolvimentistas do terceiro mundo como engajado com uma produção menor de
“matérias-primas” em contraste com a produtividade “real” do primeiro mundo. Essas
distinções são feitas com base no privilégio de um grupo particular como norma ou
referente. Trabalhadores assalariados, produtores do primeiro mundo, e como sugiro
feministas ocidentais que às vezes moldam as mulheres de terceiro mundo em termos de
“nós mesmas despidas” (ourserlves undressed, termo de Michelle Rosaldo, 1980), todos se
colocam na posição de referentes normativos em tal análise binária.
Mulheres enquanto Categorias de Análise, ou: Somos Todas Irmãs na Luta
Por mulheres enquanto uma categoria de análise, eu me refiro ao pressuposto
crucial que todas nós somos o mesmo gênero, para além das classes e culturas, somos, de
algum modo, socialmente constituídas como um grupo homogêneo identificado
anteriormente ao processo de análise. Esse é um pressuposto que caracteriza boa parte do
discurso feminista. A homogeneidade das mulheres enquanto grupo é produzida não só
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numa base de fundamentos biológicos, mas também numa base sociológica secundária e de
universalidade antropológica. Assim, por exemplo, em qualquer parte determinada da
análise feminista, as mulheres são caracterizadas como um grupo singular que tem em
comum a opressão. O que une as mulheres é uma noção sociológica de “semelhança” na
forma de repressão. É nesse ponto que uma divisão aparece entre “mulheres” como grupo
construído discursivamente e “mulheres” enquanto sujeitos materiais de sua própria
história6. Assim, a homogeneidade consensual discursiva das “mulheres” enquanto um
grupo é errônea para a realidade histórica material específica dos grupos de mulheres. Isso
resulta na pressuposição de mulheres como grupo já constituído, rotulado de “sem poder”,
“explorado”, “assediado sexualmente”, etc, por discursos feministas científicos,
econômicos, jurídicos e sociológicos. (Nota-se que isso é bastante parecido ao discurso
sexista que rotula as mulheres de fracas, emocionais, ansiosas, etc). Esse foco não é na
revelação de especificidades materiais e ideológicas que constituem um grupo particular de
mulheres como “sem poder” em um contexto em particular. O foco está, muito mais, em
encontrar uma variedade de casos de grupos de mulheres “sem poder” para provar a
generalização de que mulheres enquanto um grupo são desprovidas de poder.
Nessa seção me centro em cinco modos específicos nos quais “mulheres” enquanto
uma categoria de análise que são usados no discurso feminista ocidental sobre mulheres do
terceiro mundo. Cada um desses exemplos ilustra a construção de “mulheres de terceiro
mundo” como um grupo homogêneo “sem poder” frequentemente situadas implicitamente
como vítimas de sistemas socioeconômicos em específico. Eu escolhi lidar com uma
variedade de escritores – de Fran Hosken, que escreve principalmente sobre a mutilação
genital feminina, até escritores das “Mulheres na Escola de Desenvolvimento
Internacional” (Women in International Developement school), que escrevem sobre o efeito das
políticas de desenvolvimento em mulheres do terceiro mundo para a audiência ocidental e
do terceiro mundo. A similaridade das pressuposições sobre “mulheres do terceiro mundo”
em todos esses textos formam a base da minha discussão. Não faço isso para equacionar
todos os textos que analiso, nem para igualar seus pontos fortes e suas fraquezas. As
autoras com os quais eu lido escrevem com diferentes níveis de preocupação e
complexidade; de qualquer modo, o efeito da sua representação das mulheres de terceiro
mundo é coerente e apenas um. Nesses textos as mulheres são definidas como vítimas da
violência masculina (Fran Hosken); vítimas do processo colonial (Maria Cutrufelli); vítimas
do sistema árabe familiar (Juliette Minces); vítimas do processo de desenvolvimento
6
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econômico (Beverley Lindsay e a WID School [liberal]); e finalmente, vítimas do código
islâmico (Patricia Jeffery). Esse modo de definir as mulheres, essencialmente, em termos de
seu status de objeto (a maneira pela qual elas são, ou não são, afetadas por certas instituições e
sistemas) é o que caracteriza essa forma particular de se utilizar “mulheres” como categoria
de análise. No contexto das mulheres ocidentais estudando mulheres do terceiro mundo,
tal objetificação (apesar de benevolamente motivada) precisa ser tanto nomeada quanto
desafiada. Como Valerie Amos e Pratibha Parmar argumentam eloquentemente, “teorias
feministas que examinam nossas práticas culturais como ‘resíduos feudais’ ou nos rotulam
de ‘tradicionais’, também nos retratam como mulheres politicamente imaturas que precisam
ser conhecedoras e educadas no ethos do feminismo ocidental. Elas precisam ser
continuamente desafiadas...” (1984, 7).
Mulheres como vítimas da violência masculina
Fran Hosken, ao escrever sobre o relacionamento entre direitos humanos e a
mutilação genital feminina na África e no Oriente Médio, baseia toda sua
discussão/condenação da mutilação genital em uma única premissa privilegiada: aquela de
que a meta dessa prática é “mutilar o prazer sexual e a satisfação da mulher” (1981, 11).
Isso a leva, por sua vez, a alegar que a sexualidade da mulher é controlada, assim como seu
potencial reprodutivo. De acordo com Hosken, “a política sexual masculina” na África e ao
redor do mundo “partilham o mesmo objetivo político: assegurar a dependência e
subserviência feminina a qualquer custo” (14). Violência física contra mulheres (estupros,
agressão sexual, mutilação, circuncisão, etc.) é realizada “com um surpreendente consenso
entre os homens no mundo” (14). Aqui, as mulheres são definidas consistentemente como
vítimas do controle masculino – “as sexualmente oprimidas” 7. Apesar de ser verdadeiro que
o potencial masculino de violência contra a mulher circunscreve e elucida sua posição
social em certa medida, definir mulheres como vítimas arquetípicas congelam-nas em
“objetos-que-se-defendem” e homens em “sujeito-que-perpetuam-a-violência”, e (toda) a
sociedade em grupos de pessoa sem poderes (leia-se: mulheres) e poderosos (leia-se:
homens). A violência masculina deve ser teorizada e interpretada dentro de sociedades
específicas, tanto para entendê-la melhor quanto para efetivamente se organizar e modificá-
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la8. A irmandade não pode ser assumida com base no gênero; deve ser forjada em análise
história concreta e política.
Mulheres como dependentes universais
A conclusão do livro de Berverly Lindsay Comparative Perspectives of third World
Women: The impact of Race, Sex and Class (1983, 298, 306) afirma: “relações dependentes,
baseadas na raça, sexo e classe, estão sendo perpetradas através de instituições sociais,
educacionais e econômicas. Essas são as ligações entre Mulheres do Terceiro Mundo.”
Aqui, como em outras passagens, Lindsay sugere que as mulheres do terceiro mundo
constituem um grupo identificável puramente com base nas dependências compartilhadas.
Se as dependências compartilhadas fossem tudo que é necessário para nos unir como
grupo, as mulheres de terceiro mundo seriam sempre vistas como um grupo apolítico sem
status subjetivo. Ao invés disso, é o contexto em comum de esforços políticos contra classe,
raça, gênero e hierarquias imperialistas que podem tornar as mulheres de terceiro mundo
um grupo estratégico nessa conjuntura histórica. Lindsay também afirma que diferenças
culturais e linguísticas existem entre vietnamitas e mulheres negras dos Estados Unidos,
mas “ambos os grupos são vítimas de raça, sexo e classe.” Novamente as mulheres negras e
vietnamitas são caracterizadas por seu status de vítima.
Semelhantemente, examinemos afirmações tais como “Minha análise começará
dizendo que todas as mulheres africanas são política e economicamente dependentes”
(Cutrufelli 1983, 13), “Não obstante, aberta ou veladamente, a prostituição ainda é a
principal, se não a única, fonte de trabalho para mulheres africanas” (Cutrufelli 1983, 33).
Todas as mulheres negras são dependentes. Ambas as afirmações são ilustrativas das
generalizações espalhadas deliberadamente por meio de uma recente publicação da Zed
Press, Women of Africa: Roots of Oppression, de Maria Rosa Cutrufelli, que é descrita na capa
como uma escritora italiana, socióloga, marxista e feminista. É possível imaginar na década
de 1980 um livro intitulado Women of Europe: Roots of Opression? Não estou contestando o
uso de agrupações universais para propósitos descritivos. Mulheres do continente africano
podem ser descritivamente caracterizadas como “mulheres da África”. É quando “mulheres
da África” se torna um agrupamento sociologicamente homogêneo caracterizado por
dependências em comum ou desprovidas de poder (ou mesmo de força) que os problemas
surgem – dizemos muito pouco e muito ao mesmo tempo.
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Isso é devido a diferenças de gênero descritivas serem transformadas em divisão
entre homens e mulheres. Mulheres são constituídas como um grupo através de
relacionamentos dependentes em relação aos homens, que são implicitamente os
responsáveis por esses relacionamentos. Quando “mulheres da África” como grupo (versus
“homens da África” como grupo?) são vistas como um grupo precisamente porque são
generalizadamente dependentes e oprimidas, a análise de diferenças históricas específicas se
torna impossível, porque a realidade é aparentemente sempre estruturada por meio de
divisões – duas divisões mutuamente excludentes com grupos exaustivos, as vítimas e os
opressores. Aqui o sociológico é substituído pelo biológico, tendo em vista, no entanto, a
criação da mesma coisa – a unidade das mulheres. Não é o potencial descritivo da diferença
de gênero, mas o posicionamento privilegiado e o potencial explicatório da diferença de
gênero como a origem da opressão que eu questiono. Ao usar “mulheres da África” (como
um grupo de pessoas oprimidas já constituído) como uma categoria de análise, Cutrufelli
nega qualquer especificidade histórica para a posição das mulheres como subordinada,
poderosa, marginal, central ou não, em relação a redes sociais e de poder em especial. As
mulheres são consideradas como um grupo unificado “sem poder”, anterior à análise em
questão. Desse modo, trata-se apenas de especificar o contexto depois do fato. “Mulheres”
agora são calcadas no contexto da família, ou do ambiente de trabalho, ou dentro de
grupos religiosos, quase como se esses sistemas existissem fora das relações de mulheres
com outras mulheres, e de mulheres com homens.
O problema com essa estratégia analítica, deixe-me repetir, é que ela pressupõe
homens e mulheres como sujeito já constituídos antes mesmo de sua entrada dentro da
arena das relações sociais. Apenas se concordamos com essa pressuposição é possível
aceitar a análise que olha para os “efeitos” das estruturas de parentesco, do colonialismo, da
organização do trabalho, etc, sobre as mulheres, que já são definidas a priori como um
grupo. O ponto crucial que é esquecido é que as mulheres são produzidas por essas
relações assim como estão envolvidas na formação dessas relações. Como Michelle
Rosaldo argúi, “o lugar das mulheres na vida humana social não está diretamente ligado ao
produto das coisas que elas fazem (ou até menos do que isso, ligado à função do que elas
biologicamente são), na verdade o significado de suas atividades é adquirido por meio de
interações sociais concretas” (1980, 400). O fato de mulheres serem mães em diversas
sociedades não é tão significativo quanto o valor atrelado à maternidade nessas sociedades.
A distinção entre a maternidade e o status atrelado a ela é muito importante – trata-se de
diferença que precisa ser determinada e analisada contextualmente.
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Mulheres Casadas como Vítimas do Processo Colonial
Na teoria de Lévi-Strauss sobre a estrutura de parentesco como um sistema de
troca de mulheres, o que é significativo é que a troca em si não constitui a subordinação
das mulheres; as mulheres não são subordinadas em razão do fato da troca, mas devido aos
modos da troca instituída e aos valores atrelados a esses modos. No entanto, ao discutir o
ritual de casamento dos Bemba, um povo matriarcal e matrilocal9, Cutrufelli em Women in
Africa se centra no fato da troca marital das mulheres antes e depois da colonização
ocidental, ao invés de no valor atrelado a essa troca nesse contexto em específico. Isso faz
com que ela defina as mulheres de Bemba como um grupo coerente afetado por um modo
específico de colonização. Aqui, novamente, as mulheres de Bemba são constituídas quase
que unilateralmente como vítimas dos efeitos da colonização ocidental.
Cutrufelli cita o ritual do casamento dos Bemba como um evento multifacetado
“por meio do qual um homem jovem incorpora-se no grupo familiar de sua esposa, já que
ele passa a residir com eles e oferece seus serviços em troca de comida e subsistência” (43).
Esse ritual se estende por muitos anos e o relacionamento sexual varia de acordo com o
nível de maturidade física da garota. É apenas depois que ela passa por uma cerimônia de
iniciação na puberdade que o intercurso é sancionado, e o homem adquire os direitos legais
sobre ela. A cerimônia de iniciação é o ato mais importante de consagração do poder
reprodutivo das mulheres, de modo que o rapto de uma garota não iniciada não tem
consequência, enquanto penas severas são imputadas à sedução de uma garota iniciada.
Cutrufelli afirma que o efeito da colonização européia mudou todo o sistema de casamento.
Agora o jovem homem tem o direito de tomar sua esposa de seu povo em troca de
dinheiro. Isso implica as mulheres de Bemba terem perdido a proteção das leis tribais. No
entanto, mesmo que seja possível ver como a estrutura do contrato tradicional de
casamento (versus o contrato de casamento pós-colonial) oferecia às mulheres certo
controle sobre suas relações maritais, apenas uma análise do significado político da prática
efetiva que privilegiava uma garota iniciada em relação a uma não iniciada, indicando uma
mudança nas relações de poder femininas como um resultado dessa cerimônia, pode
prover um relato preciso sobre se as mulheres de Bemba eram de fato protegidas pelas leis
tribais todas as vezes.
De qualquer maneira, não é possível falar das mulheres de Bemba como um grupo
homogêneo dentro da estrutura tradicional do casamento. As mulheres de Bemba antes da
9 NT: sociedade na qual o homem é obrigado a viver com a família da esposa após o casamento.
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iniciação são constituídas dentro de um conjunto de relação sociais diferente daquele
comparado às mulheres de Bemba depois da iniciação. Tratá-las como um grupo unificado
caracterizado pelo fato de sua “troca” entre parentes do sexo masculino é negar as
especificidades sociais, históricas e culturais de sua existência e ao valor diferencial atrelado a
suas trocas antes e depois de sua iniciação. É tratar a cerimônia de iniciação como um ritual
sem implicações ou efeitos políticos. É também assumir que, ao meramente descrever a
estrutura do contrato de casamento, a situação das mulheres está posta. Mulheres enquanto
um grupo são posicionadas dentro de uma estrutura dada, mas não há tentativa de traçar os
efeitos da prática do casamento em constituir mulheres dentro de uma rede,
evidentemente, modificadora de relações de poder. Assim, pressupõe-se que as mulheres
sejam sujeitos político-sexuais anteriormente a sua entrada nas relações de parentesco.
Mulheres e Sistemas Familiares
Elizabeth Cowie (1978), em outro contexto, aponta as implicações desse tipo de
análise quando enfatiza a natureza especificamente política das estruturas de parentesco que
devem ser analisadas como práticas ideológicas que designam homens e mulheres como
pai, marido, mãe, irmã, etc. Assim, Cowie sugere que mulheres enquanto mulheres não
estão situadas dentro da família. É na família, enquanto efeito das estruturas de parentesco,
que as mulheres enquanto mulheres são construídas, definidas dentro do grupo e pelo o
grupo. Desse modo, por exemplo, quando Juliette Minces (1980) cita a família patriarcal
como a base para “uma visão quase idêntica das mulheres” que sociedades árabes e
mulçumanas têm, ela cai nessa armadilha (ver especialmente p. 23). Não somente é
problemático falar da visão das mulheres compartilhada por sociedades árabes e
mulçumanas (i.e., sobre mais de vinte países diferentes) sem se voltar às estruturas
históricas, materiais e ideológicas específicas que constroem tais imagens, mas falar sobre a
família patriarcal ou sobre a estrutura de parentesco tribal como a origem do status
socioeconômico das mulheres é assumir, novamente, que mulheres são sujeitos político-
sexuais antes de sua entrada na família. Então, enquanto por um lado das mulheres ganham
valor ou status dentro da família, a pressuposição de um sistema de parentesco patriarcal
singular (comum a todas as sociedades árabes e muçulmanas) é o que aparentemente
estruturam as mulheres como um grupo oprimido nessas sociedades! Esse sistema singular
e coerente de parentesco presumivelmente influencia outra entidade dada e separada,
“mulheres”. Assim, todas as mulheres, independentemente da classe e das diferenças
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culturais são afetadas por esse sistema. Não apenas todas as mulheres árabes e muçulmanas
parecem constituir um grupo homogêneo e oprimido, mas não há discussão sobre as
práticas específicas dentro da família que constituem mulheres como mães, esposas, irmãs,
etc. Árabes e muçulmanas, ao que parece, não se diferenciam de modo algum. Suas famílias
patriarcais vêm dos tempos do profeta Maomé. Elas existem como se estivesse fora da
história.
Mulheres e Ideologias Religiosas
Outro exemplo do uso de “mulheres” como categoria de análise é encontrada nas
análises transculturais que atestam certo reducionismo econômico ao descrever a relação
entre a economia e fatores tais como política e ideologia. Aqui, ao reduzir o nível de
comparação às relações econômicas entre países “desenvolvidos e em desenvolvimento”,
qualquer especificidade sobre a questão das mulheres é negada. Mina Modares (1981),
numa análise cuidadosa das mulheres e do xiismo no Irã, foca nesse problema quando
critica os textos feministas que tratam o islã como uma ideologia separada e fora das
relações sociais e práticas, ao invés de um discurso que inclui regras sociais para a economia
e para as relações de poder dentro da sociedade. O trabalho informativo de Patricia Jeffery
(1979) sobre as mulheres da tribo de Pirzada que viviam sob a prática de purdah10
considera que a ideologia islâmica é uma explicação parcial para o status das mulheres na
medida em que o islã dá uma justificativa para o purdah. Aqui, a ideologia islâmica é
reduzida a um conjunto de ideias cuja internalização pelas mulheres da tribo de Pirzada
contribui para a estabilidade do sistema. De qualquer modo, a principal explicação para o
purdah está no controle que os homens da tribo de Pirzada têm sobre os recursos
econômicos, e a segurança pessoal que o regime de purdah dá às mulheres de Pirzada.
Ao usar uma versão específica do Islã como o Islã, Jeffrey atribui a ele singularidade
e coerência. Modares ressalta que, “‘a Teologia Islâmica’ se torna, então, imposta a uma
entidade dada e separada chamada ‘mulheres’. Uma unificação adicional é alcançada:
Mulheres (significando todas as mulheres), não importando suas diferentes posições dentro
das sociedades, vêm a ser ou não afetadas pelo Islã” (63). Marina Lazreg construiu um
argumento similar quando fala do reducionismo inerente aos estudos sobre mulheres no
Oriente Médio e no norte da África:
10
NT: prática de segregar as mulheres dentro de casa.
14
Um ritual é estabelecido para que o escritor recorra à religião como a causa da desigualdade de gênero, assim como ela é colocada como fonte de subdesenvolvimento para boa parte da teoria da modernização. De um modo estranho, o discurso feminista sobre as mulheres do Oriente Médio e do Norte da África se espelha na interpretação dos próprios teólogos sobre as mulheres no islã...
O efeito desse paradigma é privar as mulheres de terem presença, de serem. Como as mulheres são subsumidas à religião apresentada em suas regras fundamentais, elas são inevitavelmente vistas como se estivessem evoluindo ahistoricamente. Elas, virtualmente, não têm história. Qualquer análise de mudança é, portanto, vedada. (1988, 87).
Mesmo que a análise de Jeffery não sucumba a esse tipo de noção unitária da
religião (islâmica), ela faz com que todas as especificidades ideológicas se percam nas
relações econômicas, e a universaliza com base nessa comparação.
Mulheres e o Processo de Desenvolvimento
Os melhores exemplos de universalização com base no reducionismo econômico
estão na literatura liberal de “Women in Development”. Proponentes dessa escola buscam
examinar o efeito do desenvolvimento sobre mulheres de terceiro mundo algumas vezes, a
partir de perspectivas autodenominadas feministas. Em última instância, há um interesse e
um comprometimento evidentes com a melhoria da vida dessas mulheres de países “em
desenvolvimento”. Estudiosas como “Irene Tinker e Michelle Bo Bramsen (1972), Ester
Boserup (1970), e Perdita Huston (1979) todas escreveram sobre o efeito das políticas de
desenvolvimento sobre mulheres do terceiro mundo11. Todas essas três mulheres assumem
“desenvolvimento” como sinônimo de “desenvolvimento econômico” ou “progresso
econômico”. Como no caso da família patriarcal de Mince, do controle sexual de Hosken e
da colonização ocidental de Cutrufelli, desenvolvimento se torna o equalizador de todos os
tempos. Mulheres são afetadas positiva ou negativamente por políticas econômicas de
desenvolvimento, e isso é a base para a comparação transcultural.
Por exemplo, Perdita Huston (1979) afirma que o propósito de seu estudo é
descrever o efeito do processo de desenvolvimento na “família enquanto unidade e em
seus membros individuais” no Egito, Quênia, Sudão, Tunísia, Sri Lanka e México. Ela
afirma que os “problemas” e “necessidades” expressados pelas mulheres urbanas e da zona
rural nesses países giram todos em torno de educação e treinamento, trabalho e salários,
acesso à saúde e outros serviços, participação política e regulação de direitos. Huston
relaciona todas essas “necessidades” à falta de políticas de desenvolvimentos sensíveis, que
11
15
excluem as mulheres como um grupo ou uma categoria. Para ela, a solução é simples:
implantar melhores políticas de desenvolvimento que enfatizem o treinamento para
mulheres que trabalham no campo, o estágio de mulheres, mulheres como agentes de
desenvolvimento rural, encorajem cooperativas de mulheres, etc. Aqui, novamente,
pressupõe-se que mulheres são um grupo coerente ou categoria anterior à entrada delas no
“processo de desenvolvimento”. Huston presume que todas as mulheres do terceiro
mundo têm problemas e necessidades semelhantes. Assim, elas devem ter interesses e
metas similares. No entanto, os interesses das donas de casa egípcias que vivem em cidades,
educadas e de classe média, para pegar apenas um exemplo, poderiam não ser vistos como
semelhantes aos das empregadas domésticas pobres e sem educação formal. Políticas de
desenvolvimento não afetam ambos os grupos de mulheres da mesma maneira. Práticas
que caracterizam o status das mulheres variam de acordo com a classe. Mulheres
constituem-se como mulheres através de complexa interação entre classe, cultura, religião e
outras instituições e ferramentas ideológicas. Elas não são “mulheres” – um grupo coerente
– apenas tomando como base um sistema econômico ou político em particular. Essas
comparações transculturais reducionistas resultam na colonização das especificidades da
existência diária e das complexidades dos interesses políticos que mulheres de diferentes
classes sociais e culturas representam e se mobilizam.
Assim, é revelador que para Perdita Houston, as mulheres de terceiro mundo sobre
as quais ela escreve tenham “necessidades” e “problemas”, mas poucas tenham quaisquer
“escolhas” ou liberdade de agir. Essa é uma representação interessante das mulheres do
terceiro mundo, significante ao sugerir uma autorepresentação latente das mulheres
ocidentais que têm sustentado este olhar. Ela escreve, “O que mais me surpreendeu e me
comoveu enquanto eu ouvia as mulheres em arranjos culturais tão diferentes foi a
impressionante semelhança – não importa se elas tinham estudado ou era iletradas, urbanas
ou rurais – de seus valores mais básicos: a importância que elas dão à família, à dignidade, e
a servir aos outros” (1979, 115). Houston consideraria tais valores incomuns às mulheres
do ocidente?
O que é problemático sobre esse tipo de uso de “mulheres” como um grupo, uma
categoria estável de análise, é que se pressupõe uma unidade ahistórica e universal entre as
mulheres baseada numa noção generalizada de sua subordinação. Ao invés de demonstrar
analiticamente a produção das mulheres como grupos políticos e socioeconômicos dentro
de contextos particulares locais, essa forma analítica limita a definição do sujeito feminino à
identidade de gênero, ignorando completamente identidades sociais de classe e étnicas. O
16
que caracteriza as mulheres como um grupo é seu gênero (sociologicamente, não
necessariamente definido biologicamente) acima de todo o mais, indicando uma noção
monolítica de diferença sexual. Conquanto as mulheres são constituídas como um grupo
coerente, diferença sexual se confina à subordinação feminina, e o poder é
automaticamente definido em termos binários: pessoas que o tenham (leia-se: homens) e
pessoas que não o tem (leia-se: mulheres). Homens exploram, mulheres são exploradas.
Tais formulações simplistas são historicamente reducionistas; elas também são ineficazes ao
designar estratégias no combate às opressões. Tudo que elas fazem é reforçar divisões
binárias entre homens e mulheres.
Como se pareceria uma análise que não faz isso? O trabalho de Maria Mies ilustra a
força do trabalho feminista ocidental sobre mulheres do terceiro mundo que não cai nas
armadilhas discutidas acima. O estudo de Mies sobre as bordadeiras de Narsapur na Índia
(1982) tenta analisar cuidadosamente uma indústria familiar substancial na qual as “donas
de casa” produzem toalhinhas de renda para o mercado mundial. Por meio de uma análise
detalhada da estrutura da indústria de toalhinhas de renda, da produção e da reprodução de
relações, da divisão sexual do trabalho, dos lucros e da exploração, e das consequências de
modo geral de se definir as mulheres como “donas de casa não trabalhadoras” e seu
trabalho como “atividade de lazer”. Mies demonstra os níveis de exploração nessa indústria
e o impacto desse sistema de produção nas condições de trabalho e de vida das mulheres
envolvidas nele. Além disso, ela consegue analisar a “ideologia da dona de casa”, a noção
de mulher sentada dentro de casa, como elemento subjetivo e sociocultural suficiente para
a criação e manutenção de um sistema de produção que contribui para a crescente
pauperização das mulheres e as mantém totalmente atomizadas e desorganizadas enquanto
trabalhadoras. A análise de Mies mostra o efeito de uma organização patriarcal
historicamente e culturalmente específica, uma organização construída na base da definição
de bordadeiras como “donas de casa não trabalhadoras” no nível local, regional, estatal e
internacional. As complexidades e efeitos de redes de poder em específico não só são
enfatizados, como formam a base da análise de como esse grupo particular de mulheres
está situado no centro de um mercado mundial explorador e hegemônico.
Esse é um bom exemplo de o que uma análise local cuidadosa, focada
politicamente, consegue fazer. Ela ilustra como a categoria mulheres é construída numa
variedade de contextos políticos que com frequência existem simultaneamente e
sobrepostos uns aos outros. Não há generalização fácil para a definição de “mulheres” na
Índia, ou para “mulheres do terceiro mundo”; também não há uma redução da construção
17
política sobre a exploração das bordadeiras a explicações culturais sobre a passividade ou a
obediência que podem caracterizar as mulheres e sua situação. Por fim, esse modo de
análise política e local que gera categorias teóricas a partir da situação e do contexto que
está sendo analisado, também oferece estratégias efetivas contra a exploração enfrentada
pelas bordadeiras. As mulheres de Narsapur não são meras vítimas do processo de
produção, porque elas resistem, desafiam e subvertem o processo em diferentes momentos.
Aqui está um exemplo de como Mies delineia as conexões entre a ideologia da dona de
casa, a autoconsciência das bordadeiras, e suas inter-relações que contribuem para as
resistências latentes perceptíveis entre as mulheres:
A persistência da ideologia da dona de casa, a autopercepção das bordadeiras como produtoras de pequenas mercadorias ao invés de trabalhadoras, não somente não tem ajuda da estrutura da própria indústria, como é reforçada pelas instituições e normas patriarcais reacionárias. Assim, a maior parte das bordadeiras expressou a mesma opinião sobre o purdah e sobre o isolamento dentro de suas comunidades, opinião que também era propagada pelos exportadores de rendas. Especialmente as mulheres de Kapu disseram que elas nunca tinham saído de suas casas, que as mulheres de sua comunidade não podiam fazer outra coisa que não o trabalho doméstico e toalhinhas de renda, etc, mas apesar do fato de a maior parte delas ainda se submeter completamente às normas patriarcais das mulheres gosha, também havia elementos contraditórios em sua percepção. Desse modo, mesmo que elas desprezassem mulheres que eram capazes de trabalhar fora de casa – como as intocáveis Mala e Madia, ou mulheres de outras castas mais baixas, elas não podiam ignorar o fato de que essas mulheres estavam ganhando mais dinheiro exatamente porque elas não era respeitáveis donas de casa, mas trabalhadoras. Em uma discussão, ela até mesmo admitiram que seria melhor se elas também pudessem sair e fazer trabalhos mais legais. E quanto elas foram questionadas sobre se elas estariam preparadas para sair de suas casas e trabalhar em algum lugar como uma fábrica, elas disseram que sim. Isso mostra que o purdah e a ideologia da dona de casa, mesmo que ainda inteiramente internalizadas, já têm algumas fissuras, já que eles têm sido confrontados com diversas realidades diferentes. (157)
É apenas ao entender as contradições inerentes às posições das mulheres dentro das
várias estruturas existentes que ações políticas efetivas e desafios podem ser concebidos. O
estudo de Mies percorre um longo caminho em torno disso para oferecer sua análise.
Mesmo que agora exista um número crescente de textos feministas ocidentais nessa
tradição12, infelizmente, também há um grande volume de escritos que sucumbem ao
reducionismo cultural discutido anteriormente.
Universalismo Metodológico, ou: a Opressão das Mulheres é um Fenômeno Global
12
18
Os textos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo se
comprometem com diversas metodologias para demonstrar a operação universal e
transcultural que caracteriza o domínio masculino e a exploração feminina. Eu sintetizo e
critico três desses métodos abaixo, partindo do mais simples ao mais complexo.
Em primeiro lugar, consegue-se a prova de universalismo através do uso de um
método aritmético. O argumento é o seguinte: quanto maior o número de mulheres que
usam véu, mais universal é a segregação sexual e o controle sobre as mulheres (Deardon
1975, 4-5). Semelhantemente, um grande número de exemplos fragmentados de diversos
países, aparentemente, também se soma a esse método. Por exemplo, todas as mulheres
muçulmanas na Arábia Saudita, no Irã, no Paquistão, na Índia e no Egito, usam algum tipo
de véu. Isso indica, por consequência, que o controle sexual das mulheres é um fato
universal em países nos quais as mulheres usam o véu (Deardon 1975, 7, 10). Fran Hosken
escreve, “Estupro, prostituição forçada, poligamia, mutilação genital, pornografia, violência
física contra garotas e mulheres, o purdah (segregação das mulheres), são todas violações
de direitos humanos básicos” (1981, 15). Ao igualar o purdah com o estupro, com violência
doméstica e prostituição forçada, Hosken afirma que o “controle sexual” é a função
principal para o purdah, não importa em qual contexto. Às instituições do purdah são
negadas quaisquer especificidades históricas ou culturais e as contradições e aspectos
potencialmente subversivos são totalmente descartados.
Em ambos os exemplos, o problema não está em se afirmar que a prática do uso do
véu é generalizada. Tal afirmação pode ser feita com base em número. É uma generalização
descritiva. No entanto, o salto analítico que se faz, da prática do uso de véu para uma
afirmação de que seu significado de forma geral é o controle das mulheres, deve ser
questionado. Mesmo que possa existir similaridade nos véus utilizados por mulheres na
Arábia Saudita e no Irã, o significado particular que se atribui a essa prática varia de acordo
com o contexto ideológico e cultural. Além disso, o espaço simbólico ocupado pelo purdah
pode ser similar em determinados contextos, mas isso não indica automaticamente que as
práticas em si têm significados idênticos no domínio social. Por exemplo, como se sabe, as
mulheres iranianas de classe média cobriram-se com véu durante a revolução de 1979 em
solidariedade às suas irmãs da classe trabalhadora que o usavam, enquanto que no Irã
contemporâneo, leis islâmicas mandatórias obrigam todas as mulheres a usarem véu.
Mesmo que em ambos os exemplos, razões similares possam ser dadas para o uso do véu
(oposição ao Xá e a colonização ocidental no primeiro caso, e a verdadeira islamização do
Irã no segundo), os significados concretos ligados ao uso do véu pelas mulheres iranianas
19
são claramente diferentes nos dois contextos históricos. No primeiro caso, usar o véu é
tanto um gesto de oposição quanto um gesto revolucionário da parte das mulheres
iranianas de classe média; no segundo caso, trata-se de obrigação institucional coercitiva
(ver Tabari 1980 para discussão em detalhes). É com uma análise que tenha como base
esses contextos específicos e diferenciados que estratégias políticas efetivas podem ser
geradas. Pressupor que a mera prática do uso do véu em diversos países muçulmanos
indica uma opressão universal das mulheres através da segregação sexual não só é
analiticamente reducionista, mas também se mostra sem utilidade no que se refere à
elaboração de estratégias políticas de oposição.
Em segundo lugar, conceitos tais como reprodução, divisão sexual do trabalho,
família, casamento, cuidados com o lar, patriarcado, etc, são frequentemente utilizados sem
sua especificação referente a contextos históricos e culturais. Feministas usam esses
conceitos ao dar explicações sobre a subordinação das mulheres, assumindo,
aparentemente, sua aplicabilidade universal. Por exemplo, como é possível referir-se “à”
divisão sexual do trabalho quando o conteúdo dessa divisão varia radicalmente de um
ambiente para o outro, e de uma conjuntura histórica para outra? Em seu nível mais
abstrato, é o fato de diferentes atribuições de tarefas de acordo com o sexo que é
significativo; no entanto, isso é bastante diferente do significado ou valor que o conteúdo
dessa divisão sexual do trabalho assume em diferentes contextos. Na maior parte dos casos,
a divisão de tarefas com base no sexo possui uma origem ideológica. Não há dúvidas que
uma afirmação como “mulheres estão concentradas em ocupações orientadas para serviços
em um grande número de países em todo o mundo” é descritivelmente válida. Portanto,
talvez possa ser invocada descritivamente a existência de uma divisão sexual do trabalho
similar em diversos países (nas quais as mulheres trabalham em ocupações de serviço como
enfermagem, assistência social, etc, e homens em outros tipos de ocupação). No entanto, o
conceito de “divisão sexual do trabalho” é mais do que uma categoria descritiva. Ele indica
um valor diferenciado atribuído ao “trabalho de homens” versus “trabalho de mulheres”.
A mera existência de uma divisão sexual do trabalho é frequentemente considerada
como prova da opressão de mulheres em diversas sociedades. Isso é resultado de uma
confusão entre os potenciais descritivos e explanatórios do conceito de divisão sexual do
trabalho. Situações superficialmente similares podem ter explicações históricas específicas
radicalmente diferentes, e não podem ser tratadas como idênticas. Por exemplo, o aumento
de lares chefiados por mulheres na classe média americana pode ser interpretado como
sinal de grande independência e progresso feminista, considerado que as mulheres escolheram
20
ser mães solteiras, que há um crescente número de mães lésbicas, etc. Entretanto, o recente
aumento em lares chefiados por mulheres na América Latina,13 que poderia ser interpretado
como um aumento de poder de decisão, está concentrado entre as classes mais pobres, nas
quais as escolhas de vida são mais restritas economicamente. Um argumento similar pode
ser levantado quanto ao aumento de lares chefiados por mulheres entre mulheres negras e
latinas nos Estados Unidos. A correlação positiva entre isso e o nível de pobreza entre
mulheres de cor e mulheres brancas operárias nos Estados Unidos ganhou até um nome: a
feminização da pobreza. Assim, enquanto é possível afirmar que há um aumento em lares
chefiados por mulheres nos Estados Unidos e na América Latina, esse aumento não pode
ser discutido como um indicador universal de independência das mulheres, tampouco
como um indicador universal de empobrecimento feminino. O significado e a explicação para
o aumento obviamente variam de acordo com o contexto histórico-social.
Similarmente, a existência de uma divisão sexual do trabalho na maior parte dos
contextos não pode ser explicação suficiente para a subjugação universal de mulheres da
força trabalhadora. Para que se caracterize a divisão sexual do trabalho como
desvalorização do trabalho das mulheres deve se partir de análise de contextos locais em
específico. Além disso, a desvalorização das mulheres deve também ser vista através de
análise cuidadosa. Em outras palavras, a “divisão sexual do trabalho” e “mulheres” não são
categorias analíticas comensuráveis. Conceitos como os de divisão sexual do trabalho são
úteis somente se gerados por meio de análises locais, contextuais (veja Eldhom, Harris, e
Young 1977). Se esses conceitos forem tomados como universalmente aplicáveis, a
homogeneização resultante de práticas materiais diárias, religiosas, raciais e de classe das
mulheres do terceiro mundo poderia criar uma falsa ideia de compartilhamento de
opressões, interesses e lutas entre as mulheres, em nível global. Para além da irmandade, há
ainda racismo, colonialismo e imperialismo!
Por último, alguns escritores confundem o uso de gênero como uma categoria
superordenada de organização de análise com a prova universalista e instanciação dessa
categoria. Em outras palavras, estudos empíricos de diferenças de gêneros são confundidos
com a organização analítica de estudos socioculturais. A resenha de Beverly Brown (1983)
do livro Natureza, Cultura e Gênero (Strathern and McCormack 1980) ilustra melhor esse
ponto. Brown sugere que natureza: cultura e feminino: masculino são categorias
superordenadas que organizam e localizam categorias inferiores (como
selvagem/doméstico e biologia/tecnologia) dentro de sua lógica. Essas categorias são
13
21
universais no sentido de que organizam o universo de um sistema de representações. Essa
relação é totalmente independente da substanciação universal de qualquer categoria
particular. Sua crítica depende do fato de que, em vez de esclarecer a generalização de
natureza: cultura: feminino :: masculino como categorias de organização subordinadas,
Natureza, Cultura e Gênero tomam a universalidade dessa equação como pertencente ao nível
da verdade empírica, que pode ser investigada por meio de trabalho de campo. Assim, a
utilidade do paradigma natureza: cultura :: feminino: masculino como um modelo universal
da organização de representação dentro de qualquer sistema histórico-social fica perdida.
Aqui, o universalismo metodológico é presumido com base na redução das categorias
analíticas natureza: cultura :: feminino:masculino para uma demanda de provas empíricas de
sua existência em diferentes culturas. Discursos de representação são confundidos com
realidades materiais, e a distinção feita anteriormente entre “Mulher” e “mulheres” fica
perdida. Trabalhos feministas que embaralham essa distinção (o que, interessantemente,
está frequentemente presente em autorepresentações de feministas ocidentais)
eventualmente acabam construindo imagens monolíticas de “mulheres do terceiro mundo”,
por ignorar as relações complexas e móveis entre suas materialidades históricas no nível de
opressões específicas e escolhas políticas, de um lado, e suas representações discursivas, de
outro.
Em suma: eu discuti três movimentos metodológicos identificáveis nos trabalhos
feministas (e outros trabalhos acadêmicos) interculturais que buscam desvendar a
universalidade na posição feminina subordinada na sociedade. A próxima e última seção
reúne as seções anteriores, buscando traçar os efeitos políticos das estratégias analíticas no
contexto de feministas ocidentais escrevendo sobre mulheres no terceiro mundo. Esses
argumentos não são contra a generalização na medida em que são por generalizações
cuidadosas, históricas e específicas, adequadas a realidades complexas. Nem esses
argumentos negam a necessidade de formar identidades e afinidades políticas estratégicas.
Assim, enquanto as mulheres indianas de diferentes religiões, castas e classes podem forjar
uma unidade política com base na organização contra a violência policial contra mulheres
(ver Kishwar e Vanita 1984), uma análise da violência policial deve ser contextual. Alianças
estratégicas que construam identidades políticas de oposição por si mesmas são baseadas
em unidades generalizadas e provisórias, mas a análise dessas identidades de grupo não
pode ser baseada em categoriais universalistas e ahistóricas.
O(s) objeto(s) do Poder
22
Esta última seção retorna a um ponto anterior sobre a natureza política inerente dos
estudos feministas, e procura esclarecer meu ponto a respeito da possibilidade de detectar
um movimento colonialista no caso de uma conexão hegemônica de primeiro-terceiro
mundo nesses estudos. Os nove textos na série Zed Press Women in the Third World que
discuti14 focavam-se nas seguintes áreas comuns ao examinar o “status” das mulheres em
diversas sociedades: religião, estruturas familiares/de parentesco, o sistema legal, a divisão
sexual do trabalho, educação e, finalmente, resistência política. Uma grande parte dos
ensaios de feministas ocidentais a respeito de mulheres no terceiro mundo se centra nesses
temas. É claro que os textos do Zed possuem ênfases variadas. Por exemplo, dois estudos,
Mulheres da Palestina (Downing 1982) e Mulheres Indianas na Luta (Omvedt 1980), focam
explicitamente na militância e envolvimento político feminino, enquanto que Mulheres na
Sociedade Árabe (Minces 1980) lida com o status legal, religioso e familiar das mulheres
árabes. Além disso, cada texto evidencia uma variedade de metodologias e níveis de
cuidado ao fazer generalizações. Interessante é que, entretanto, quase todos os textos
assumem “mulher” como uma categoria de análise na forma designada acima.
Claramente essa é uma estratégia que não é nem limitada a essas publicações do Zed
Press tampouco sintomáticas dessas publicações em geral. Entretanto, cada um desses
textos em particular assume que “mulheres” possui um grupo de identidade coerente entre
as diferentes culturas em discussão, antes de sua entrada em relações sociais. Assim,
Omvedt pode falar sobre “mulheres indianas”, referindo-se a um grupo particular de
mulheres do estado de Maharashtra, Cutrufelli sobre as “mulheres da África”, e Minces
sobre “mulheres árabes”, como se todos esses grupos de mulheres tivessem algum tipo de
óbvia coerência cultural, distinta da dos homens nessas sociedades. Esse “status” ou
“posição” das mulheres é assumida como auto-evidente, porque mulheres, como um grupo
já constituído, são colocadas em estruturas religiosas, econômicas, familiares e jurídicas. No
entanto, isso foca apenas onde as mulheres são vistas como um grupo coerente através de
contextos, independentemente de classe ou etnia, e estrutura, em última análise, termos
binários e dicotômicos, onde mulheres são sempre vistas em oposição aos homens, em que
o patriarcado é sempre necessariamente dominância masculina, e que os sistemas religiosos,
legais, econômicos e familiares são implicitamente assumidos como sendo construídos por
homens. Assim, ambos, homens e mulheres sempre constituem, aparentemente, duas
populações distintas, e as relações de dominância e exploração são sempre colocadas em
termos de todas as pessoas – todas em relações de exploração. Apenas quando homens e
14
23
mulheres são vistos como diferentes categorias ou grupos possuindo diferentes categorias
já constituídas de experiência, cognição e interesses como grupos é que uma dicotomia tão
simplista quanto essa é possível.
O que isso implica a respeito da estrutura e funcionamento das relações de poder?
A criação de um compartilhamento das lutas das mulheres de países de terceiro mundo por
meio de classes e culturas contra uma noção geral de opressão (sobretudo o grupo no
poder, i.e., homens) necessita da assunção do que Michel Foucault (1980, 135-45)
denomina modelo “jurídico-discursivo” de poder, cujas principais características são a
“relação negativa” (limite e falta), uma “insistência na norma” (o que forma um sistema
binário), um “ciclo de proibição”, a “lógica da censura”, e uma “uniformidade” do aparelho
funcionando em diferentes níveis. O discurso feminista no terceiro mundo que assume
uma categoria homogênea – ou grupo- chamado mulheres necessariamente opera por meio
do estabelecimento de divisões originárias de poder. Relações de poder são estruturadas em
termos de uma fonte unilateral e indiferenciada de poder e de uma cumulativa reação ao
poder. Oposição é um fenômeno generalizado criado como resposta ao poder – o que, por
sua vez, é detido por alguns grupos de pessoas.
O maior problema com tal definição de poder é que ela encerra todas as lutas
revolucionarias em estruturas binárias – possuir poder versus ser impotente. Mulheres são
impotentes, grupos desunidos. Se a luta por uma sociedade justa for vista em termos da
mudança das mulheres de impotentes para poderosas como um grupo, e essa é a implicação
do discurso feminista que estrutura as diferenças sexuais em termos de divisão entre os
sexos, então essa nova sociedade seria estruturalmente idêntica à organização de relações de
poder, constituindo a si mesma como uma simples inversão do que existe. Se relações de
dominância e exploração são definidas em termos de divisões binárias – grupos que
dominam e grupos que são dominados – evidentemente a implicação de que a ascensão ao
poder de mulheres como um grupo é suficiente para desmantelar a organização das
relações existente? Mas mulheres como um grupo não são de forma alguma essencialmente
superiores ou infalíveis. O cerne do problema reside naquele pressuposto inicial de
mulheres como um grupo ou categoria homogênea (“os oprimidos”), um pressuposto
familiar dos feministas radicais e liberais do ocidente.
O que ocorre quando esse pressuposto de “mulheres como um grupo oprimido” é
situado no contexto de feministas ocidentais escrevendo sobre mulheres do terceiro
mundo? É aqui que localizo o movimento colonialista. Ao contrastar a representação das
mulheres do terceiro mundo com o que eu me referi anteriormente como
24
autorepresentação das feministas do Ocidente no mesmo contexto, vemos como as
feministas ocidentais sozinhas passam a ser os reais “sujeitos” dessa contra-história. As
mulheres do terceiro mundo, por outro lado, nunca ultrapassam a generalidade debilitante
de seu status de “objeto”.
Enquanto que os pressupostos feministas radicais e liberais de mulheres como uma
classe sexual possam elucidar (ainda que inadequadamente) a autonomia de lutas
particulares de mulheres no ocidente, a aplicação da noção de mulheres como uma
categoria homogênea a mulheres do terceiro mundo coloniza e apropria as pluralidades de
diferentes grupos de mulheres em locações simultâneas, em enquadramentos étnicos e de
classe social; em assim fazendo, em última análise as priva de seu poder histórico e político.
Similarmente, muitos autores da Zed Press que baseiam-se nas estratégias analíticas do
marxismo tradicional também criam implicitamente uma “unidade” de mulheres,
substituindo “trabalho” por “atividades femininas” como primeiro determinante teórico da
situação das mulheres. Aqui novamente mulheres são constituídas como um grupo
coerente, não com base nas qualidades “naturais” ou necessidades, mas com base de uma
“unidade” sociológica de seu papel na produção domestica e trabalho assalariado (veja
Haraway 1985, esp. p. 76). Em outras palavras, o discurso feminista ocidental, ao assumir
as mulheres como um grupo coerente e já constituído, o qual é colocado em estruturas de
parentesco, jurídicas, entre outras, define as mulheres do terceiro mundo como sujeitos fora
das relações sociais, em vez de observar como as mulheres são constituídas através dessas
estruturas.
Estruturas jurídicas, econômicas, religiosas e familiares são tratadas como
fenômenos a serem julgados pelos padrões ocidentais. É aqui que a universalidade
etnocêntrica entra em cena. Quando essas estruturas são definidas como
“subdesenvolvidas” ou “em desenvolvimento” e as mulheres são colocadas dentro delas,
uma imagem implícita da “mulher de terceiro mundo média” é produzida. Essa é a
transformação da (implicitamente ocidental) “mulher oprimida” em “mulher de terceiro
mundo oprimida”. Enquanto que a categoria de “mulher oprimida” é gerada por meio de
um foco exclusivo na diferença de gênero, a categoria “mulher de terceiro mundo
oprimida” possui um atributo adicional – a “diferença do terceiro mundo!”. A “diferença
do terceiro mundo” incluiu ma atitude paternalista em relação às mulheres de terceiro
mundo.15 Como as discussões dos vários temas que identifiquei anteriormente (parentesco,
educação, religião etc) são conduzidas no contexto do relativo “subdesenvolvimento” do
15
25
terceiro mundo (que não é nada menos que um desenvolvimento injustificavelmente
confuso com um caminho diverso do tomado pelo Ocidente em seu desenvolvimento,
assim como ignorando a direcionalidade das relações mundiais de poder do primeiro-
terceiro mundo), as mulheres de terceiro mundo como grupo ou categoria são automática e
necessariamente definidas como religiosas (leia-se “não progressistas”), orientadas para a
família (leia-se “tradicionais”), incapazes (leia-se “elas-ainda-não-são-conscientes-de-seus-
direitos), iletradas (leia-se “ignorantes”), domésticas (leia-se “reacionárias”) e algumas vezes
revolucionárias (leia-se “seus-países-estão-em-um-estado-de-guerra; elas-devem-lutar!”).
Assim é como a “diferença do terceiro mundo” é produzida.
Quando a categoria das “mulheres sexualmente oprimidas” é localizada dentro de
sistemas particulares do terceiro mundo que são definidos em uma escala que é
normatizada por meio de pressupostos eurocêntricos, as mulheres de terceiro mundo não
são apenas definidas em um modo particular, prévio à sua entrada nas relações sociais, mas
também, uma vez que nenhuma conexão é feita entre deslocamentos de poder entre
primeiro e terceiro mundos, é reforçado o pressuposto de que o terceiro mundo apenas
ainda não evoluiu como o ocidente o fez. Essa forma de análise feminista, ao
homogeneizar e sistematizar as experiências de diferentes grupos de mulheres nesses
países, apaga todos os modos e experiências marginais e resistentes. 16 É significativo que
nenhum dos textos que resenhei na série Zed Press foque-se em políticas lésbicas ou em
políticas de organizações étnicas ou políticas marginais nos grupos de mulheres de terceiro
mundo. A resistência pode assim ser definida apenas como cumulativamente reativa, não
como algo inerente na operação de poder. Se o poder, como Michel Foucault argumentou
recentemente, pode realmente ser entendido apenas no contexto de resistência, 17 essa
percepção errônea é tanto analítica como estrategicamente problemática. Ela limita a
análise teórica, assim como reforça o imperialismo cultural ocidental. Pois no contexto de
um equilíbrio de poder primeiro/terceiro mundo, a análise feminista que perpetua e
sustenta a hegemonia da ideia da superioridade do Ocidente produz um conjunto de
imagens da “mulher de terceiro mundo”, imagens como a da mulher com véu, a mãe
poderosa, a virgem casta, a esposa obediente etc. Essas imagens existem em esplendor
universal, ahistorico, pondo em funcionamento um discurso colonialista que exercita um
poder muito especifico em definir, codificar e manter as conexões primeiro/terceiro
mundo existentes.
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Para concluir, então, deixe-me sugerir algumas similaridades desconcertantes entre a
típica assinatura de tais escritos feministas ocidentais sobre mulheres do terceiro mundo, e
a assinatura do projeto de humanismo em geral – humanismo como projeto ideológico e
político ocidental, que envolve a necessária recuperação do “Oriente” e “Mulheres” como
Outros. Muitos pensadores contemporâneos, incluindo Foucault (1978, 1980), Derrida
(1974), Kristeva (1980), Deleuze e Guattari (1977) e Said (1978) escreveram longamente
sobre o antropomorfismo e o etnocentrismo subjacentes, que constituem uma
problemática humanística hegemônica, a qual repetidamente confirma e legitima
centralmente os Homens (ocidentais). Teóricas feministas como Luce Irigaway (1981),
Sarah Kofman (veja Berg 1982) e Helene Cixous (1981) também escreveram sobre a
recuperação e ausência de mulher/mulheres entre o humanismo ocidental. O foco do
trabalho de todos esses pensadores pode ser descrito apenas como a revelação dos interesses
políticos que subjazem a lógica binária do discurso humanista e ideologia onde, como um
recente e valioso ensaio coloca, “o primeiro (majoritário) termo (Identidade,
Universalidade, Cultura, Desapego, Verdade, Sanidade, Justiça, etc), que é, na verdade,
secundário e derivativo (uma construção), é privilegiado em relação a e coloniza o segundo
(minoria) termo (diferença, temporalidade, anarquia, erro, apego, insanidade, desvio, etc), o
que é, na verdade, primário e originário” (Spanos 1984). Em outras palavras, é apenas
quando “Mulher/Mulheres” e “o Oriente” são definidos como Outros, ou como
periféricos, que Homem/Humanismo (ocidental) pode representar a si mesmo como
centro. Não é o centro que determina a periferia, mas a periferia que, em sua delimitação,
determina o centro. Assim como Kristeva e Cixous desconstruíram o antropomorfismo
latente no discurso ocidental, eu sugeri uma estratégia paralela neste ensaio para revelar o
etnocentrismo latente em alguns escritos feministas a respeito de mulheres do terceiro
mundo.18
Como discutido previamente, uma comparação entre a auto-apresentaçao feminista
ocidental, e a representação feminista ocidental de imagens da “mulher de terceiro mundo”
(a mulher de véu, a virgem casta, etc), imagens construídas ao adicionar a “diferença do
terceiro mundo” à “diferença sexual”, são baseadas (e assim obviamente trazem ao foco)
pressupostos sobre mulheres ocidentais como seculares, liberadas e tendo controle sobre
suas vidas. Isso não é para sugerir que as mulheres ocidentais são seculares, liberadas e em
controle de suas vidas. Estou me referindo a uma auto-apresentação discursiva, não
necessariamente à realidade material. Se essa fosse uma realidade material, não haveria
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necessidade de movimentos políticos no Ocidente. Similarmente, apenas do ponto de vista
do Ocidente é possível definir “terceiro mundo” como subdesenvolvido e
economicamente dependente. Sem o discurso sobredeterminado que cria o terceiro mundo,
não haveria um (singular e privilegiado) primeiro mundo. Sem as “mulheres de terceiro
mundo”, a auto-apresentação particular das mulheres ocidentais mencionada anteriormente
seria problemática. Estou sugerindo, assim, que uma possibilita e sustenta a outra. Isso não
é para dizer que a assinatura de trabalhos sobre o terceiro mundo por feministas ocidentais
têm a mesma autoridade do projeto do humanismo ocidental. No entanto, no contexto da
hegemonia do establishment intelectual do humanismo ocidental na produção e
disseminação de textos, e no contexto do imperativo legitimante do discurso humanístico e
científico, a definição de “mulher do terceiro mundo” como um monólito pode muito bem
estar atrelada a uma práxis econômica e ideológica maior das pesquisas científicas
“desinteressadas” e do pluralismo, que são a manifestação superficial de uma colonização
econômica e cultural latente do mundo “não-ocidental”. É hora de mover-se para além de
Marx, que achou possível dizer: “eles não podem representar a si mesmos, eles devem ser
representados”.