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BELO HORIZONTE, AGOSTO DE 2006, Nº 1293, SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS. ENSAIO DE ANTONIO CANDIDO SOBRE O AMANUENSE BELMIRO + REINALDO MARQUES A ESCRI- TA AUTOBIOGRÁFICA EM CYRO DOS ANJOS + TEXTO DE MARIA ANGÉLICA MELENDI SOBRE MON- TANHA ROMANCE EM QUADRI- NHOS . HOMENAGEM AO CEN- TENÁRIO DE CYRO DOS ANJOS.

MON- ANTONIO CANDIDO SOBRE O AMANUENSE BELMIRO … · da obra memorialística de Cyro dos Anjos, instigando-o não apenas a ler, mas a deixar-se ler e viver as reflexões do amanuense

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2. agosto 2006

SECRETÁRIA DE ESTADO DE CULTURA ELEONORA SANTA ROSA SECRETÁRIOADJUNTO MARCELO BRAGA DE FREITAS SUPERINTENDENTE CAMILA DINIZFERREIRA PROJETO GRÁFICO E DIREÇÃO DE ARTE MÁRCIA LARICA CONSELHOEDITORIAL ÂNGELA LAGO + CARLOS BRANDÃO + EDUARDO DE JESUS + MELÂNIASILVA DE AGUIAR + RONALD POLITO EQUIPE DE APOIO ANA LÚCIA GAMA +ELIZABETH NEVES + FREDERICO MATOS + ROSÂNGELA CALDEIRA ESTAGIÁRIOSLORENA LOPES + VALBER PALMEIRA + NATÁLIA DUTRA JORNALISTA RESPONSÁVELADRIANA BARBOSA {REG. PROF. 6481/ M.G.}. TEXTOS ASSINADOS SÃO DERESPONSABILIDADE DOS AUTORES. AGRADECIMENTOS: CURADOR WANDER MELOMIRANDA + CURADOR DO VII SALÃO DO LIVRO ENCONTRO DE LITERATURA BELOHORIZONTE JOSÉ ALBERTO PINHO NEVES + IMPRENSA OFICIAL/ FRANCISCOPEDALINO COSTA DIRETOR GERAL, J. PERSICHINI CUNHA DIRETOR DE TECNOLOGIAGRÁFICA. {ESTA EDIÇÃO É UMA PARCERIA ENTRE A SECRETARIA DE ESTADO DECULTURA E A FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA NA PESSOA DE SUA PRESI-DENTE MARIA ANTONIETA ANTUNES CUNHA.}

Impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais.

Suplemento Literário de Minas GeraisAv. João Pinheiro, 342 - Anexo30130-180 Belo Horizonte MGTel/fax: 31 [email protected]

Nada mais pertinente e necessário, neste ano em que secomemora o centenário de Cyro dos Anjos, do que prestaruma homenagem ao escritor que, nascido em MontesClaros, soube como poucos, expressar os sentimentos daalma humana, através de sua escrita autobiográfica mar-cada pela ação da memória, sempre enganosa, pois comobem sabia, “escrever a vida jamais coincide com o vivido”.

Cyro dos Anjos é um escritor pouco lido, pouco divulgadoe bastante injustiçado, se considerarmos a qualidade - enão a quantidade - de sua obra. Ao se lembrar da distinçãofeita por Valéry entre os escritores estrategistas e táticos,Antonio Candido, em instigante artigo sobre O amanuenseBelmiro, afirma que seu autor pertence aos da primeiracategoria para explicar o trabalho, fruto de um longo perío-do de meditação e amadurecimento das idéias até que setornem palavras - sentimentos e pensamentos.

Nesta edição do Suplemento Literário em parceria com aFundação Municipal de Cultura no VII Salão do LivroEncontro de Literatura, realizado em Belo Horizonte, entreos dias 10 a 20 de agosto de 2006, o leitor encontraráartigos que, de maneiras diversas, fulcram a questão centralda obra memorialística de Cyro dos Anjos, instigando-o nãoapenas a ler, mas a deixar-se ler e viver as reflexões doamanuense sobre o passado e o presente, o espaço e otempo, o lirismo e a dura realidade do cotidiano, ambigüi-dades que provocam, no escritor, o sofrimento da desco-berta - e da certeza - de que “tudo está manchado por mim”.No espaço, constrói-se o tempo e no tempo cada um seconstrói a si mesmo e aos outros.

Camila Diniz FerreiraEditora

CAPA: Detalhe da capa do romance Montanha,de CYRO DOS ANJOS, editado pela Livraria JoséOlympio Editora.

.3agosto 2006

CYRODOSANJOS

CENTENÁRIO

ESTRA

TÉGIA

4. agosto 2006

ANTONIO CANDIDO

.5agosto 2006

Almeida Salles publicou certa vez em Planalto um dos rodapés mais

inteligentes que têm aparecido na imprensa periódica de São Paulo, no qual

aplica à nossa literatura a distinção de Valéry entre escritores estrategistas e

escritores táticos, alargando-se em reflexões muito agudas e justas sobre a

natureza da criação literária. Os nossos autores, segundo Almeida Salles,

pertencem quase na totalidade ao segundo grupo, isto é, o composto pelos

dotados de talento e habituados a construir, segundo o influxo dele, no

primeiro movimento da inspiração. Guiando-se quase apenas pelo instinto,

opõem-se deste modo aos do primeiro grupo, que vêem na criação o aflo-

ramento definitivo de um largo trabalho anterior, baseado em anos de medi-

tação e de progressivo domínio dos meios técnicos. Confiam, numa palavra,

menos na força impulsiva do talento que no domínio vagaroso, mas seguro,

dos recursos da sua arte – condição primeira para a plena expressão do pen-

samento e da sensibilidade.

Nota: Este artigo, publicado inicialmente na Folha da Manhã, de São Paulo, em 2 de maio de 1943, foi incluído em 1945 no livro Brigada ligeira.

6. agosto 2006

Lendo o artigo, a primeira pessoa em que pensei foi o romancista mineiro

Ciro dos Anjos, que, para falar como Almeida Salles (ou Valéry, se quiserem),

me parece um dos maiores dentre os poucos estrategistas da literatura

brasileira contemporânea. Segundo me contam, Ciro dos Anjos anda pela casa dos quarenta. Hámais de cinco anos publicou o seu único livro – O amanuense Belmiro– uma obra-prima, sem dúvida alguma. O acabamento, a segurança, oequilíbrio, a realização quase perfeita revelam o artista profundamenteconsciente das técnicas e dos meios do seu ofício, possuidor de umavisão pessoal das coisas, lentamente cristalizada no decorrer de longosanos de meditação e estudo. Porque esse romance é o livro de umhomem culto. No seu subsolo circulam reminiscências várias de leitu-ra, ecos de Bergson, de Proust, de Amiel, de autores cuidadosamentelidos ou harmoniosamente incorporados ao património mental. Porisso é que ele ressoa de modo tão diferente no nosso meio, com umsom de coisa definitiva e necessária, nem sempre produzido pelasobras dos nossos generosos táticos.

O amanuense Belmiro é o livro de um burocrata lírico. Um homemsentimental e tolhido, fortemente tolhido pelo excesso de vida interior,escreve o seu diário e conta as suas histórias. Para ele, escrever é, defato, evadir-se da vida; é a única maneira de suportar a volta às suasdecepções, pois escrevendo-as, pensando-as, analisando-as, o amanu-ense estabelece um movimento de báscula entre a realidade e o sonho.

Quem quiser fale mal da literatura. Quanto a mim, direi quedevo a ela a minha salvação. Venho da rua deprimido, escre-vo dez linhas, torno-me olímpico... Em verdade vos digo:quem escreve neste caderno não é o homem fraco que hápouco entrou no escritório. É um homem poderoso, que espiapara dentro, sorri e diz: ‘Ora bolas’.

O amanuense é infeliz. Chegou quase aos quarenta anos sem nada terfeito de apreciável na vida. Sonha; carrega nas costas a enorme trouxade um passado de que não pode se desprender, porque dentro dele estãoas doces cenas da adolescência. De repente, uma noite de carnaval lhe

.7agosto 2006

traz a imagem de uma donzela gentil. O amanuenseama, mas à sua maneira: identificando a moça decarne e osso, que mal enxerga de quando em vez,com a imagem longínqua da namorada da infância,ela própria quase um mito – um mito como o da don-zela Arabela. Não é difícil perceber o mal de Belmiro,literato in erba, lírico não realizado, solteirão nostál-gico. A sua desadaptação ao meio levou-o à soluçãointelectual; esta, que falhou como solução vital, per-manece como fatalidade, e o amanuense, a fim deencontrar um pouco de calor e de vida, é empurradopara o refúgio que lhe resta – o passado – uma vezque o presente lhe escapa das mãos, “(...) bem notoque vou entrando numa fase da vida em que oespírito abre mão das suas conquistas e o homemprocura a infância, numa comovente pesquisa dasremotas origens do ser".

Ora, se fosse só isso, estava tudo muito bem. O dramaé que o presente se insinua no passado. Se fosse pos-sível viver integralmente no mundo recriado pela me-mória, haveria a possibilidade de um modus vivendiquase normal, a seu jeito, como o do narrador de ÀLa Recherche du Temps Perdu. Acontece, porém, quea sensibilidade de Belmiro, jogando-o como uma bolaentre o passado e o presente, perturbando este comos arquétipos daquele, desmanchando a pureza da-quele com a intromissão das imagens deste, não lhepermite uma existência atual.

(...) depois de uma infância romântica e umaadolescência melancólica, o homem supõeque encontrou a sua expressão definitiva eque sua própria substância já lhe basta paraas combustões interiores; crê encerrado oseu ciclo e volta para dentro de si mesmo, àprocura de fugitivas imagens do passado,nas quais o espírito se há de comprazer.

Mas as forças vitais, que impelem o homempara a frente, ainda estão ativas nele e reali-zam um sorrateiro trabalho, fazendo-o vol-tar para a vida, sedento e agitado. Para ilu-dir-lhe o espírito vaidoso, oferecem-lhe opresente sob aspectos enganosos, encarnan-do formas do passado.

Belmiro, então, se entrega ao presente; mas não ovive. Submete -se, e readquire o equilíbrio pela auto-análise. Sabe que não lhe adianta pensar em como ascoisas seriam se não fossem o que são, e, concluindoque “a verdade está na rua Erê", isto é, na sua casinhamodesta e no seu ramerrão cotidiano, recita como poeta:

Mundo mundo, vasto mundoSe eu me chamasse RaimundoSeria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo, vasto mundomais vasto é o meu coração.

“Mais vasto é o meu coração." Conclusão típica deintrovertido, de homem que não lamenta, comoLawrence: “Eu estava tão enjoado do mundo. Tãocansado dele. Tudo estava manchado por mim", –porque a sua evasão consiste justamente em intro-jetar o mundo e banhá-lo todo nas próprias águas.Belmiro é o homem que chegou ao estado de parali-sia por excesso de análise: “(...) já lhes contei o quese passa dentro de mim quando começo a meditar:perco-me num labirinto de antinomias." Isto significaque é um candidato ao cepticismo integral e à imo-bilidade através do relativismo. Sempre a tomar con-sciência plena das suas variações e dos seus aspectosmúltiplos, Belmiro é o contrário do homem forte deque fala Balzac, o homem que não se lembra, quecresce num impulso vegetal, sem a peia do passado.

8. agosto 2006

Falou-se muito em Machado de Assis a propósito deCiro dos Anjos, insistindo-se sobre o que há de seme-lhante no estilo e no humorismo de ambos. O que nãose falou, porém, foi da diferença radical que existeentre eles: enquanto Machado de Assis tinha umavisão que se poderia chamar dramática, no sentidopróprio, da vida, Ciro dos Anjos possui, além dessa edando-lhe um cunho muito especial, um maravilhososentido poético das coisas e dos homens. O que éadmirável, no seu livro, é o diálogo entre o lírico, quequer se abandonar, e o analista, dotado de humour,que o chama à ordem; ou, ao contrário, o analistaquerendo dar aos fatos e aos sentimentos um valorquase de pura constatação, e o lírico chamando-o àvida, envolvendo uns e outros em piedosa ternura.Esta alternância, que ele emprega também como umprocesso literário, nós a encontramos de capítulo acapítulo, de cena a cena, na própria construção do es-tilo. E a certa altura, o amanuense a torna explícita:

Tais desnivelamentos é que compõemminha vida e lhe sustentam o equilíbrio. Aum Belmiro patético que se expandiu,enorme, na atmosfera caraibana – contem-plando a destruição das suas paisagens –sempre sucede um Belmiro sofisticado, quecompensa o primeiro e o retifica, ajustan-do-o aos quadros cotidianos. Chegado àsua toca da rua Erê, o Belmiro egresso de

Caraíbas se apalpa, se reajusta e assobia afantasia do hino nacional de Gottschalk.

Esta disposição excepcional, que dá uma dignidadehumana tão grande à poesia de Manuel Bandeira ede Carlos Drummond de Andrade, é o fundamento daarte de Ciro dos Anjos, e empresta ao seu romanceuma qualidade de vida que é superior à de Machadode Assis. Para conhecer este psicólogo lírico é precisoler todo o admirável § 33 d'O Amanuense Belmiro,quando ele descobre que o passado que evoca nãoexiste em si, mas é uma criação da sua saudade e dasua imaginação deformadora. O amanuense, pela pri-meira vez, sofre ao perceber que “tudo está mancha-do por mim", e considera tristemente: “Não voltareia Vila Caraíbas. As coisas não estão no espaço, leitor;as coisas estão é no tempo. Há, nelas, ilusórias per-manências de forma, que escondem uma desagre-gação constante, ainda que infinitesimal."

Se assim é, por que escrever sobre um passado querealmente não existe e um presente que cede ante aponta aguda da análise? Belmiro escreve porqueprecisa abrir uma janela na consciência a fim de seequilibrar na vida, o que não importa em ilusãoquanto ao verdadeiro significado deste trabalho:“Grande coisa é encontrarmos um nome imponente,para definir certos estados de espírito. Não se resol-ve nada, mas ficamos satisfeitos. O homem é umanimal definidor."

Numa ordem mais geral de ideias, pode-se dizerque o amanuense é uma ilustração do gravíssimoproblema dos efeitos da inteligência, através do seupoder de análise, sobre o curso normal das rela-ções humanas. Encarando assim o livro, o seu nú-cleo significativo vai ser encontrado numa páginado diário de Silviano, indiscretamente lida por

Há uma circunstância, porém, que o

salva e o liberta das redes do analista:

o senso lírico da vida, que restabelece

o equilíbrio vital.

.9agosto 2006

Belmiro: “Problema: – O eterno, o Fáustico. – Oamor (vida) estrangulado pelo conhecimento."

É este, com efeito, o problema central da obra. A ati-tude belmiriana resulta de uma aplicação do conhe-cimento aos atos da vida – entendendo-se neste casopor conhecimento a atitude mental que subordina aaceitação direta da vida a um processo prévio dereflexão. E assim, Ciro dos Anjos nos leva a pensar nodestino do intelectual na sociedade, que até aqui temmovido uma conspiração geral para belmirisá-lo,para confiná-lo nas esferas em que o seu pensamen-to, absorto nas donzelas Arabelas, nas Vilas Caraíbasdo passado, na autocontemplação, não apresenta vir-ulência alguma que possa pôr diretamente em xequea ela, sociedade organizada. Criando-lhe condições devida mais ou menos abafantes, explorando metodica-mente os seus complexos e cacoetes, os poderososdeste mundo só o deixam em paz quando ele se ex-pande nos campos geralmente inofensivos da litera-tura personalista, ou quando entra reverente no seuséquito. Coisas em que a gente se põe a matutar,quando vê aquele Belmiro tão inteligente e tão sen-sível, solidamente mantido em paz pela magreza doseu ordenado de amanuense, e perfeitamente desfi-brado pela prática cotidiana da introspecção (costumemuito estimável, segundo os cânones). Ou aqueleSilviano cheio de seiva, que é reduzido a não deixartransbordar senão a sua retórica, uma vez que aceitoucomo valor eterno uma filosofia que lhe aconselha ablague, cômoda para os negócios públicos, da auto-perfeição pela ascese intelectual.

Mas não é esta a impressão final que fica do livro deCiro dos Anjos, cuja releitura faço pela quinta ousexta vez, o que é um deleitoso consolo, como diria oEça, para a ficção mais ou menos frouxa com que ocrítico tem não raro de se defrontar.

Na página 27, Belmiro fala de um tocador de sanfonada sua Vila Caraíbas, que

(...) tocava apenas por amor à arte, ou talvezpara chorar as mágoas. E chorava-as tãobem que cada um que o cercava, sentia suasmágoas igualmente choradas. O artista serevelava, por esta forma, perfeito, extraindodos seus motivos individuais melodias ajus-tadas às necessidades da alma dos circun-stantes, que ali iam buscar expressão parasentimentos indefiníveis que os povoavame só se traduziriam por frases musicais. Essetraço da generosidade inconsciente dosgrandes artistas se encontrava no sanfon-ista da ladeira da Conceição.

E assim é esse livro, como são em geral os livros dosescritores de Minas.

Livros que lidam com os problemas do homem numtom de tal modo penetrante que autor e leitor seidentificam, num admirável movimento de afinação.

1. Recentemente apareceu um livro de grande utilidade para o estudo das raízes psicológi-cas d'O amanuense Belmiro. Trata-se da História da família Versiani, de Rui Veloso Versianidos Anjos, Belo Horizonte, 1944.

Não são livros que se imponham de

fora para dentro, vibrantes, cheios de

força. Insinuam-se lentamente na sen-

sibilidade, até se identificarem com a

nossa própria experiência1.

Acervo de Escritores Mineiros - UFMG

.11agosto 2006

DANCAI RAPARIGASBELMIRO BORBA

Passeando pelas ruas da cidade a minha magra figura, fui sin-

tonizando aqui e ali essas ondas de alegria de que tanto carece

a melancólica substância do velho e deficitário Belmiro.

Bem que a vida poderia ser um Carnaval permanente. Bem

que as moças em flor poderiam sempre fazer a ronda alegre

das ruas, cantando essas cantigas perturbadoras e que são a

voz da raça. E por que a vida não pode ser um perene carna-

val? Ao cair do sol, a mocidade deveria dançar na praça

pública, em homenagem ao Deus Momo, que é a última

encarnação de Dionisos.

As raparigas de pés ligeiros e delgado porte, vestindo uma

túnica sutil, dançariam ao som de instrumentos tropicais. E

o boné e as inúbias encheriam o espaço, cantando a festa

dos sentidos.

Dançai, raparigas! Cantai, raparigas! O velho e louco Belmiro

aqui está para ouvir as vossas melodiosas canções. É um

velho guerreiro trôpego, mas cuja flâmula já foi desfraldada

em cem mil batalhas. Homenageai o velho guerreiro!

24 de fevereiro de 1935Estado de Minas

12. agosto 2006

Inês

Gom

es

.13agosto 2006

Acervo de Escritores Mineiros - UFMG

14. agosto 2006

Acervo de Escritores Mineiros - UFMG

Inês

Gom

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.15agosto 2006

No Brasil da década de 50, ascoleções Edição Maravilhosa, daEbal (Editora Brasil e AméricaLatina) e Romance em Quadrinhosda Rio Gráfica Editora começarama publicar adaptações de clássicosda literatura nacional. Nesses anos,literatura e quadrinhos pareciamcompartilhar um imaginário con-tínuo, no qual as histórias em qua-drinhos seriam uma espécie deporta de entrada para o universoda leitura. Na quadrinização deuma obra literária, o texto originalfuncionaria menos como uma ori-gem que como um destino, pois,

ao atravessar o limite entre os gêne-ros, o desenho ocuparia o fococentral e os textos agiriam apenascomo notações.

MONTANHA,BRASILMARIA ANGÉLICA MELENDI

16. agosto 2006

Na capa de Montanha, de Cyro dosAnjos, número 10 da coleção Romanceem Quadrinhos, publicado em setembro-outubro de 1957 pela Rio GráficaEditora, já está perfilado o pacto deleitura proposto pelos adaptadores.Um homem de terno branco fuma,sentado numa varanda que se abre paraa baía de Guanabara. As imagens etéreasde dois rostos femininos superpõem-se àpaisagem carioca. Numa tarja amarela,à esquerda, se lê: Agora sei por quetodas as tardes espero, com ânsia,a sua volta...

A segunda capa destaca o nome dodesenhista: Gutemberg Monteiro e,em tamanho aparentemente proporcionalà sua importância na trama, os rostosdos personagens e seus nomes: PedroGabriel, Naná, Edméia, Everardo.A su-gestão da capa, que parece aludir aoconflito de um homem dividido entreduas mulheres, é apenas uma chamadapara introduzir a complexa narrativa daobra — um roman à clef, onde múltiplashistórias entrelaçam-se no cenário dasintrigas políticas do último governoVargas. Alianças partidárias, acordos

políticos, ações subversivas, casamentosde conveniência, amores clandestinossão, às vezes, o foco da narrativa,às vezes o pano-de-fundo sobre o qualpaira a ameaça de uma insurreiçãomilitar iminente.

Como o romance do qual foi adaptado,Montanha começa num trem que levaPedro Gabriel ao Rio de Janeiro. A jornada iniciada nessa viagem vai sedesdobrando em muitas outras. Naná,pelo contrário, viaja para o passado naspáginas do seu diário. A figuraçãoáspera, aparentemente linear, dissolve-seem cortes bruscos que tentam escandir otempo no ritmo irregular dos quadrinhosilustrados: a ação se desagrega, o cortedesconcentra o leitor e impede a síntese.Ao se limitar aos diálogos e monólogosinteriores — na adaptação, as descriçõessão substituídas por imagens —a intensi-dade textual se dispersa e se estilhaça.

Montanha, romance em quadrinhos,revela o desenho da época: contornosdelimitados, áreas preenchidas de negroou cinza, sombras. Os tipos físicos dosprotagonistas — homens altos de

.17agosto 2006

mandíbulas proeminentes, mulheressedutoras — são similares aos dos heróise heroínas dos quadrinhos americanos.Apenas o bigode à Clark Gable de PedroGabriel sugere uma possível filiaçãolati-na. Em alguns personagens secundários,Gutemberg Monteiro, traçou tipos locaise, ainda, quase-retratos, como acontecena seqüência dedicada ao diálogo entre opresidente e sua filha. Nessas páginas, éimpossível não identificar as figuras deGetúlio e Alzira Vargas.

Lemos o romance em quadrinhosMontanha, com a saudade de um tempoque hoje nos parece, de alguma maneira,mais simples ou mais ingênuo. Ummundo em que os gêneros novos ten-tavam se legitimar através dosconsagrados, no seio de uma cultura queapenas começava a ser híbrida. Na contra-capa da publicação — sob o subtítulo deUm romance diferente e ao lado de umafoto de Cyro dos Anjos —, um texto nãoassinado declara a dificuldade e o desafiode adaptar obras do tipo de “Montanha",onde há “pouca ação". Adaptado comcritério e comedimento, desenhado comexatidão, o romance em quadrinhos

complementa-se, na quarta capa, comuma entrega do Caderno de Poesia, quereproduz a tradução de Guilherme deAlmeida da Canção de Outono, deVerlaine.

A utilização da arte seqüencial parareescrever obras consagradas nuncadeixou de existir — lembrem-se as pri-morosas adaptações feitas por StéphaneHeuet, em 1998, de Em busca do tempoperdido ou La Argentina em pedazos.Una historia de la violencia argentina através de la ficción, organizada porRicardo Piglia, em 1993.

Apesar desses e outros exemplos, resultadifícil, hoje — depois dos super-heróis,da grafic-novel e do mangá—, pensarem quadrinização da literatura. Essacomplexa operação de passagem daspalavras ao desenho, nos convida,porém, à descoberta e à propagaçãode um repertório de imagens ocultas, escondidas nos vazios do texto.

MARIA ANGÉLICA MELENDI é crítica de arte e professora da Escola de Belas Artes UFMG.

18. agosto 2006

AESCRITAAUTOBIOGRÁFICAEMCYRODOSANJOSREINALDO MARQUES

.19agosto 2006

Com a publicação de A menina do sobrado, em1979, Cyro dos Anjos se inscreve na tradiçãomineira da literatura memorialística, autobiográfica,já palmilhada por Carlos Drummond de Andrade,Murilo Mendes, Pedro Nava, entre outros. Lite-ratura marcada pelo seu apreço à primeira pessoa,pelas conexões intrincadas e oblíquas entre o par-ticular e o universal, a realidade e a invenção. Aobra divide-se em duas partes: a primeira, co-brindo o período da infância e adolescência doNarrador transcorrido na bucólica Santana do RioVerde, hoje Montes Claros, intitula-se precisa-mente “Santana do Rio Verde" e já havia apareci-do de forma solitária em 1963, com o títuloExplorações no tempo; a segunda, dedicada aostempos da juventude passada quase toda em BeloHorizonte, entre 1923 e 1931, foi escrita posteri-ormente e nomeada “Mocidade, Amores"1.

Nessa mudança de título, opera-se um significativodeslizamento, em que o elemento espacial ganharelevância, ombreando-se ao tempo. Especial-mente se se considera o deslocamento do autobió-grafo de um mundo rural, típico de uma vila dointerior mineiro, para o mundo urbano da novaCapital, signo da modernidade à época. Desloca-mento que implica perdas e ganhos, com profun-das conseqüências para a sensibilidade e aspi-rações do Narrador. Demonstra essa importânciaadquirida pelo espaço o excerto “As cinco saídasde Santana" (1ª parte), em que se recupera umageografia da infância sob os impactos da moder-nização tardia.

Cada parte é constituída por textos breves, à manei-ra da crônica, na medida em que recebem uma

nítida marcação cronológica, aliada a refinadasreflexões sobre acontecimentos e experiências,individuais e coletivas, que dão ossatura e complei-ção à mera sucessão temporal. Reflexões cunhadasnuma linguagem altamente elaborada, de estilomais clássico, em que abundam alusões e citaçõesliterárias, artísticas, filosóficas, traindo às vezescerta entonação machadiana, como no saboroso eilustrativo diálogo contido em “O Birô, o Espelho"(2ª parte). Assim, o fluxo narrativo é contido fre-qüentemente pelo mecanismo da digressão, daauto-reflexão. Mecanismo que permite ao eu do-brar-se sobre si mesmo e sobre os outros, sobresua história pessoal e a de sua comunidade, nabusca, nem sempre frutífera, da atribuição de sen-tidos ao vivido.

Para Sylvia Molloy (Vale o escrito: a escrita auto-biográfica na América hispânica, 2003), a auto-figuração do eu propiciada pela autobiografiapassa sempre pela mediação da narrativa, pela lin-guagem, como única forma de apreendermos anossa existência; o que significa que a vida é neces-sariamente uma história, uma construção narrativa.Ou seja, um texto em que um eu se representa, seencena, por meio da rememoração, da verbaliza-ção. Mais que a questão da referencialidade, im-porta nessa encenação do eu a forma como osacontecimentos preservados na memória se articu-lam, compondo uma malha textual em que osvazios decorrentes do esquecimento ativam nãoraro elementos imaginativos e criativos, numesforço de fazer falar o que já se calou. Aspectoque aproxima a escrita autobiográfica da proso-popéia, figura cuja retórica procura fazer reviveros ausentes, os mortos, um sujeito arruinado no

20. agosto 2006

tempo, emprestando-lhes uma máscara textual.De sorte que, nessa automodelagem do euempreendida pelo texto autobiográfico, a grafia-de-vida não coincide com o vivido; colocados emdiferença, o texto e a vida tornam-se assimétricos.

Na escrita autobiográfica de Cyro dos Anjos, osujeito, os ausentes, os mortos revivem e falam apartir de um apurado recurso aos “arquivos damemória", conforme testemunham inúmeras pas-sagens de cunho metamemorialístico. Trata-se deuma escrita auto-reflexiva que, ao voltar-se tam-bém sobre si mesma, explicita suas operaçõesarqueológicas na escavação do eu, os procedi-mentos de recuperação do passado. Essa auto-reflexividade imprime ao texto de Cyro dos Anjosum caráter saborosamente moderno. De inspi-ração proustiana, sua oficina da memória se valede múltiplos procedimentos, em que se entre-cruzam a memória voluntária, marcada por umaatuação volitiva do autobiógrafo, e a memóriainvoluntária, com suas reminiscências, fragmen-tos de um mundo extinto ou inconsciente, quetomam de assalto o curso linear da escrita, impri-mindo-lhe insuspeitadas direções. Exemplifica-o aseguinte passagem:

A memória é manhosa, tenho de nega-cear. Primeiro, reproduzo o painel, assimcomo vem à mente; depois, investigopormenores, procuro restituir a pinturaprimitiva, removendo as finas pinceladascom que, sobre ela, o Tempo compôs ou-tros quadros. Cenas fugazes, que anteshaviam cintilado apenas – brinquedos noLargo de Cima, Ataualpa contando histó-

rias, soneca na marquesa da sala de jan-tar – desdobram-se, então, em perspecti-vas mais amplas, e mundos, que pareciampara sempre perdidos, vão, aos poucos,emergindo à superfície da lembrança.(p.19-20)

No trato com a lembrança, figurada plasticamenteenquanto camadas superpostas, um primeiro movi-mento, ou negaceio, consiste em fixar o plano geralpara, em seguida, removendo camadas, focar oselementos particulares, até então meras cintilações,revelando mundos perdidos. Esses fragmentos cinti-lantes de mundos remotos – os dias da infância e daadolescência protegidos pela bruma dos tempos –,semelhantes às mônadas benjaminianas, mostram-se de relance em “momentos extraordinários",resistindo à completa revelação. Nesses casos,investigando até onde o leva "o instantâneo lume",o Narrador se vale de outras estratégias:

Quando me fogem, não desespero: voudeslocando a câmara, vou tomando vis-tas em diferentes posições. Assim, a umarealidade poética exclusivamente minha,posso agregar outra, que se presumeobjetiva e que, menos particular, maisuniversal, seria, também, a de Loyola oua de Espínola, se conosco palmilhassemainda os caminhos da terra. (p.44)

Por meio dessa técnica do movimento de câmera,procurando ver de diferentes ângulos, o autobió-grafo movimenta-se do pormenor para o conjunto,de modo que uma realidade poética acaba incorpo-rando uma realidade mais objetiva. Por esse

.21agosto 2006

mecanismo de movimentos reversíveis entre o par-ticular e o universal, o individual e o coletivo, orelato do eu constitui-se também num relato sobreo outro; a observação do mundo privado do eu étambém observação da cena pública, da sociedade.Essa reversibilidade, em que experiência pessoal eobservação do mundo se confundem, é que faz comque a autobiografia se torne heterobiografia, con-forme observou Antonio Candido em lúcido estudo,contido em A educação pela noite & outros ensaios(1987), sobre a literatura autobiográfica em Minas.

Outra operação importante da escrita autobiográ-fica de A menina do sobrado relaciona-se àquelaabundância de alusões e citações literárias, artísti-cas e filosóficas. Tem a ver com a esclarecedoraanálise de Sylvia Molloy sobre o papel da leituranas autobiografias hispano-americanas, levando-aa afirmar que “a autobiografia é tanto umamaneira de ler quanto uma maneira de escrever".Tal afirmação me parece plenamente aplicável aosautobiógrafos mineiros. No projeto autobiográficode Cyro dos Anjos, a cena de leitura é recorrente eestruturante. Não por acaso, como lembrançaimpressiva da infância, o texto de abertura fazreviver o clã familiar em torno da "mesa de pereirobranco", à hora das refeições, precedidas sempreda leitura feita pelo pai de trechos variados, queincluíam páginas de divulgação científica, discur-sos, ensaios, biografias. Os livros chegavam aSantana por meio de caixeiros-viajantes ou pelaviagem anual do pai ao Rio de Janeiro.

São inúmeras as passagens em que o Narradorconta suas experiências de leitura, a descoberta deum autor, as impressões que lhe causam certos

livros. A leitura se realiza tanto de forma solitária,no quarto, quanto de maneira coletiva, comparti-lhada com amigos e irmãos, a exemplo da leiturade obras românticas relatada em “Amores dePlanchet" (1ª parte). Assim, autobiografar-se é tam-bém se constituir como leitor, apropriando-se doarquivo literário e cultural do Ocidente. Na exper-iência do escritor montesclarense, entretanto, aapropriação da cultura letrada se mescla com a cul-tura popular presente em Santana, seja sob a formadas histórias da ama Luísa Velha, das canções e fes-tas, seja sob o deslumbramento recente do cine-matógrafo. Mescla que se intensifica no espaçourbano da nova Capital, onde viverá sua juventude.

À guisa de conclusão, pode-se dizer que é pormeio da apropriação desse arquivo, recortando-oe citando-o, que o nosso autobiógrafo elaborauma imagem de si e dos outros. Como eventomediado pela narrativa, representar a própria vidaimplica forjar um mosaico de alusões e citaçõesdo discurso do outro, em cujo espelho o autobió-grafo vê-se a si mesmo e a sua comunidade. Maso faz à sua maneira, lendo esse arquivo de modofreqüentemente alterado ou distorcido. Assuntopara outra matéria.

1. Explorações no tempo (memórias) teve apenas uma edição (Rio de Janeiro: José Olympio,1963); seu texto revisto passou a integrar, com o título modificado, A menina do sobrado,cuja primeira edição, de 1979, saiu em co-edição da José Olympio e Instituto Nacional doLivro/MEC, e já conta com uma segunda edição (Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Garnier,1994). As citações contidas nesse artigo são dessa segunda edição.

REINALDO MARQUES é professor de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da UFMG.

22. agosto 2006

Acervo de Escritores Mineiros - UFMG

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.23agosto 2006

Acervo de Escritores Mineiros - UFMG

Como esta Rua Erê me enternece! Cá estou, de novo, e me-lhor fora não ter saído. A verdade está na Rua Erê e não noArpoador. É aqui, nesta sala de jantar, onde o relógio derepetição bate horas caraibanas, que encontro um refúgioembora precário.

Emília continua grave e exata. As coisas, louvado Deus, não semexeram de seu lugar. Tudo está como deixei e como sempreesteve. Tirante a ausência da pobre Francisquinha, nada sealterou no curso destes doze anos. Entretanto, as transfor-mações interiores me devastaram. Ano difícil, este que se foi!O velho Borba não confiava na paz das coisas e dizia que osreveses vêm, depois, uns sobre os outros. Assim foi em 35, anotempestuoso. Terá passado o furacão?

Até então, a vida me parecera de tal modo parada que supusestar no passado o sentido de minha existência. Por que pro-curar um sentido individual de existência? Há, nas interminá-veis chapadas do sertão, pequenas árvores que não dão fru-tos, nem sombra, nem possuem raízes medicinais. Ali estão,talvez, apenas para compor a paisagem da selva. Não estareiaqui somente para integrar o vasto painel humano — ponto deluz ou de sombra, molécula puramente pictórica, sem outrodestino? Deveria conformar-me com isto, mas o caniço pen-sante, inquieto, quis explicar-se.

CYRO DOS ANJOS

O AMANUENSEBELMIRO

FRAGMENTO DE