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A torre do silêncio1 (Adelpho Monjardim)
Sumário
Vinte minutos na lua ....................................................................... 5
Uma noite de horror ....................................................................... 47
A torre do silêncio ....................................................................... 55
O satanás de Iglawaburg ....................................................................... 67
O purba ....................................................................... 79
O diário da “Medusa” ....................................................................... 131
Vinte minutos na Lua
[5]2 Chapéu batido para trás, paletó desabotoado, colarinho aberto e a gravata
frouxa, embarafustou-‐se, pela redação do Star, o repórter Bill. Como sempre atrasado.
O’Connor, o redator, mirou-‐o por cima dos óculos. Sem dar-‐lhe tempo, Bill deixou cair sobre
a sua mesa algumas tiras de papel, e gritou para que todos ouvissem:
– Os Yankees venceram! E, vertiginosamente, foi-‐se, por entre as mesas, em busca da
sua. Arrastou a cadeira e deixou-‐se cair sobre ela com todo o peso do corpo, soltando
ruidoso suspiro de alívio. Maquinalmente estendeu as longas pernas e pousou-‐as sobre a
secretária, ajeitando entre elas a Remington portátil. Em tão cômoda posição começou a
dedilhar o teclado com ímpeto heróico das sinfonias de Beethoven. A pobre estremecia e
ameaçava desconjuntar-‐se sob o peso daquelas mãos. O carro constantemente arremessado
de um extremo a outro, percutia, sem descanso, o marginador, fazendo-‐o vibrar em tlim-‐
tlins sonoros, verdadeiros “SOS” de dor e de desespero. [6]
Mr. O’Connor, que o não perdia de vista, resmungando e mascando a ponta do
charuto, inclinou-‐se sobre o ditafone e manteve-‐se concentrado por alguns instantes, findos
os quais levantou-‐se, resoluto, e a passos largos encaminhou-‐se na direção de Bill.
Apreensivo Bill viu-‐o chegar. E tinha as suas razões. Sem delongas ou preâmbulos Mr. 1 MONJARDIM, Adelpho. A torre do silêncio. Rio de Janeiro: A Noite, 1944. 2 Os números entre colchetes referem-‐se aos números das páginas dos originais.
2
O’Connor foi-‐lhe atirando sobre a mesa as mesmas tiras de papel, dizendo em tom que não
admitia réplicas:
– Mr. Bill! Escreva mais e trabalhe menos! Que pretende dizer com estas tiras em
branco e meia dúzia de rabiscos?!
– É o jogo de beisebol entre Yankees e Giants.
– Então é novo sistema de taquigrafia?
Embaraçado, Bill procurou desviar a tempestade. Curvando-‐se sobre a máquina
disse:
– Um minutinho Mr. O’Connor e completarei o desenrolar da peleja. Um minutinho e
será uma nota sensacional.
Pouco faltou para que Mr. O’Connor se lhe atirasse ao pescoço. Jogando o charuto ao
chão e pisando-‐o com violência, berrou a plenos pulmões:
– Basta! Basta de palhaçadas e mentiras! Soubesse você onde tem a cabeça e saberia
que o jogo foi transferido! Vou dar-‐lhe um minutinho para falar com Mr. Randall, em seu
gabinete.
– Mr. Randall! Fez Bill, pondo-‐se de pé.
– Sim, Mr. Randall, confirmou O’Connor, sarcasticamente.
Uma bomba atômica não lhe teria causado maior surpresa. O ranzinzíssimo e temido
Mr. Randall [7] não era mais nem menos que o diretor proprietário do Star.
– Que deseja ele de mim? – gemeu Bill, deixando-‐se cair, desamparado, sobre a
cadeira.
– Apresse-‐se! Ordenou O’Connor de modo que mais parecia o rosnar dos buldogues.
E arrematou com sarcasmo que punha à tona a alegria que lhe ia n’alma: Creio que esta será
a sua definitiva oportunidade. E repetiu sílaba por sílaba: de-‐fi-‐ni-‐ti-‐va.
– Por favor Mr. O’Connor, que deseja de mim Mr. Randall? Vai dar-‐me as contas?
– Não é propriamente isso, mas no fim será o mesmo.
– Com mil bombas! Eu estou ficando doido! E ameaçador: – Eu o responsabilizarei
pelo que acontecer!
– Pois creia Mr. Bill, que ambos lucrarão se acontecer algo do que o espera. O Star
não anda na sua cabeça, em compensação a sua cabeça anda nas estrelas! E, já de costas,
completou a tirada:
– Passe bem Mr. Bill, e vá dar um passeio na Lua!
3
Boas risadas coroaram esta tirada, enquanto Bill permanecia, indeciso, com a cabeça
apoiada entre as mão e os cotovelos na mesa.
– Apresse-‐se rapaz! gritou, de lá, Mr. O’Connor.
Enchendo-‐se de coragem, pela primeira vez, procurou alinhar-‐se, chegando ao
requinte de mirar-‐se ao espelho e corrigir o laço da gravata. E passos firmes dirigiu-‐se para o
gabinete do diretor. Com [8] coração aos pulos parou à porta. Contou até dez e,
timidamente, bateu. Uma voz ríspida ordenou do lado de dentro: – Came in!
Era a primeira vez que Bill entrava no luxuoso gabinete de Mr. Randall. Este era de
estatura inferior à média e de compleição delicada; possuidor de enorme cabeça, quase
calva, que à primeira vista denunciava o intelectual. A barba preta, bem cuidada, os bigodes
frisados, emprestavam-‐lhe maior dignidade à fisionomia fidalga, que um pince-‐nez,
cintilante, mais acentuava. Trajava-‐se com apuro e no momento envergava terno cinza,
tendo à lapela vistosa gardênia. Ao surgir Bill, parou de escrever. Descansou a caneta e
esperou com a formalidade de estilo. Bill preparava-‐se para murmurar uma desculpa,
quando Mr. Randall ordenou pela segunda vez: Came in!
Com a cautela de quem se aproxima de um fio de alta tensão, aproximou-‐se Bill do
homem poderoso do Star. A custo murmurou algumas palavras à guisa de apresentação. Mr.
Randall franziu o cenho e, com afetado espanto, mediu-‐o de alto a baixo, dizendo: Ah! É o
famoso Mr. Bill!
Bill sentiu a ironia. As tartarugas quando pressentem o perigo escondem a cabeça
dentro do casco, e ele achou prudente defender-‐se com um meneio, afirmativo, de cabeça.
– Queira sentar-‐se e esteja à vontade. Aceita um charuto? E estendeu-‐lhe a caixa com
belos e dourados cubanos. [9]
Os olhos cobiçosos do repórter acariciaram-‐nos, por alto, mas, entre tímido e polido
declinou. Cedo Mr. Randall compreendeu que estava a fazer, com o subordinado, o
antipático jogo do gato com o rato, que não era propósito seu. Bill conhecia-‐se muito bem,
mas o mesmo não se dava com Mr. Randall.
– Mr. Bill, voltou a falar Randall, eu tenho as melhores informações a seu respeito.
Afirmou-‐me Mr. O’Connor, que é rapaz de futuro e, sobretudo, ativo.
Bill estremeceu de ódio. Sanguínea nuvem deslizou, lenta, diante das suas
esbraseadas pupilas. Punhais, facas, revólveres, povoaram-‐lhe os pensamentos. E viu-‐se com
um joelho sobre o estômago do velho O’Connor, tendo as mãos cingidas à sua garganta. A
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voz de Mr. Randall despertou-‐o do devaneio assassino: – Conhece, ou já ouviu falar no Dr.
Nherú?
Bill olhou para o teto, pensativo. Alisou a ponta do queixo e, finalmente, confessou
não o conhecer.
– Não importa. Ele chegou há dois dias apenas. Um suspiro de alívio escapou-‐se do
peito do repórter.
– Nherú é um cientista indiano. Vem precedido de grande fama. Contam maravilhas a
seu respeito. Até que pode fazer a transmigração da alma! É, também, hipnotizador notável.
No terreno da metafísica é considerado autoridade ímpar.
Para Bill, grandes e célebres eram só os jogadores de beisebol. Fora do mundo
esportivo nada [10] mais lhe merecia ou despertava atenção. Foi, portanto, com certa
surpresa e espanto que olhou para Mr. Randall, para ver se não estava a pilheriar.
– Não, Mr. Randall, nunca ouvi falar nesse homem.
– É possível. Ele está apenas a quarenta e oito horas nesta cidade. Espero e faço
questão que o nosso jornal seja primeiro a entrevistá-‐lo. O senhor compreende o meu
interesse.
Bill meneou a cabeça meio aparvalhado com a enorme responsabilidade que lhe
pesava sobre os ombros. Fazer reportagem sobre beisebol era com ele, porém, entrevistar
cientistas era coisa muito diferente. Era mandar um mudo confessar um surdo. Em que
enrascada me meti, pensava quando a voz inquisitorial de Mr. Randall chamou-‐o à dura
realidade:
– Confio na sua capacidade. Estou informado que é o homem talhado para a missão,
que requer diplomacia e tato. Devo preveni-‐lo de uma coisa: Dr. Nherú é extremamente
suscetível. Não deve ser contrariado. De uma irascibilidade capaz dos maiores desatinos. A
ignorância é para ele imperdoável. Foge às reuniões por esta razão. Seria incapaz de trocar
duas palavras com pessoa de nível mental inferior. Não tome o aviso como para o senhor. E
acrescentou com um sorriso: – Estou bem informado a seu respeito.
Um gosto de sangue encheu a boca de Bill. Crispou os punhos de cólera impotente e
deixou-‐os pender, molemente, ao longo do corpo; invadido de [11] fatal desânimo, em que
o homem se deixa aniquilar sem um gesto, sem uma queixa.
Com vivacidade Mr. Randall consultou o relógio e com vivacidade exclamou: – By
God! São 3 horas! Não temos tempo a perder. Vá entrevistar o seu homem!
5
Numa confusão terrível Bill arrastou-‐se para fora do gabinete e as últimas
recomendações de Mr. Randall, pareciam-‐lhe odiosos sarcasmos:
– Não se esqueça de colocar, de quando em quando, umas pitadinhas de sal
científico na sua palestra. Vá pelo caminho pondo ordem nos seus conhecimentos. Procure
pôr-‐se em dia com Kant.
Dito isto com certa afetação literária, Mr. Randall fechou a porta para abri-‐la, em
seguida, e gritar para Bill, que ia longe:
– Quarta Avenida, 219!
Bill nem se virou. Limitou-‐se a sacudir, afirmativamente, a cabeça, pela primeira vez
cheia de alguma coisa. Cabisbaixo continuou por entre as mesas surdo e cego às perguntas e
acenos dos companheiros. Nem mesmo viu O’Connor, que o mirava com o mais
impertinente dos sorrisos.
As últimas palavras do diretor verrumavam os ouvidos de Bill como um disco
defeituoso. Acorreram-‐lhe as mais desencontradas ideias e a que mais se avolumava era a
de abandonar o emprego e fugir. Era a única que lhe dava calma e tranqüilidade ao espírito.
Ora bolas, pensava: Para que amofinar-‐me? Não sou bom repórter esportivo? O Newspaper
deseja os meus serviços. É verdade que é jornal [12] mais modesto, mas pagar-‐me-‐á mais
dez dólares e um contrato por quatro anos. E como quem toma resolução definitiva e
inabalável: – Passe bem Mr. Randall! Eu me demito! E assoviando para um cab que passava,
nele embarafustou-‐se ordenando: – Quarta Avenida, 219!
O auto parou diante de suntuoso arranha-‐céu de aspecto severo. Muitos carros
estacionavam à porta e muitas pessoas se aglomeravam no vestíbulo. Não foi difícil a Bill
reconhecer muitos dos seus colegas dos outros jornais e os fotógrafos se denunciavam
naturalmente. Aglomerada diante dos elevadores fechados a pequena multidão gritava e
gesticulava contra um homenzinho que lhe retribuía na mesma moeda. Compreendeu logo
que repórteres não eram personas gratas ao cientista. Uma ideia ocorreu-‐lhe para furar o
bloqueio. A primeira providência foi despachar o automóvel. Numa pequena loja, à
esquerda, do edifício, modesta tabuleta anunciava: “Encanador”. Em dois saltos estava no
interior da loja. O dono, velhote amável e loquaz, atendeu-‐o.
– Quero alugar umas ferramentas de encanador, falou Bill.
O proprietário fez-‐lhe ver que não alugava e nem vendia ferramentas e que o seu
estabelecimento apenas atendia chamados. As maneiras afáveis do velhinho cativaram a
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confiança de Bill, que achou melhor explicar-‐lhe a situação. Largo sorriso iluminou [13] o
semblante simpático do velho Smith, que em tempos de moço fora repórter esportivo de
The Rings.
– Vocês, meninos são endiabrados. Fazem-‐me recordar os bons tempos. E mostrou
os dentes num sorriso franco. Só queria ver-‐lhe a cara quando descobrir o logro. Batendo no
ombro de Bill, disse: – Pode levar a caixa que está junto ao balcão.
Quando Bill quis pagar-‐lhe o preço do aluguel, apôs-‐se dizendo: – Não aceito nada.
Considerar-‐me-‐ei pago com a leitura da sua entrevista roubada. Nela encontrarei algo de
mim mesmo. Adeus e boa chance.
Ligeiro Bill safou o paletó e pendurou-‐o no cabide e sopesando a caixa saiu dando
alegre goodbye ao velho Smith.
Quase correndo dirigiu-‐se para os fundos do edifício. O elevador de cargas ia subir
carregado de bagagens. O ascensorista não parecia de bom humor. A um grito de Bill parou
de fechar a porta.
– Sou o encanador. Chamado urgente para o apartamento do Dr. Nherú.
O homem olhou-‐o com maus olhos e resmungou qualquer coisa, virando-‐lhe as
costas. Por cima do seu ombro Bill viu-‐o apertar o botão do 14o andar. O elevador subiu
direto com a velocidade do raio. A brusca parada fez com que Bill saltasse por cima das
malas e fosse chocar-‐se com a parede de aço. Cioso da sua importância o ascensorista
apanhou duas maletas e secamente ordenou: Acompanhe-‐me! [14]
Bill que não esperava por aquela, seguiu-‐o gostosamente. No fundo do corredor
pararam diante de pesada porta de carvalho, lisa e polida como espelho. 1.485 era o
número, artisticamente trabalhado em metal dourado. Batendo à porta o ascensorista
seguiu o seu caminho sem esperar qualquer agradecimento. Do lado de dentro, cristalina
risada chegou aos ouvidos de Bill, que nem teve tempo para pensar, pois a porta abriu-‐se e a
cara azeitonada de circunspecto criado apareceu. Como que movido por ideia súbita ia
fechá-‐la de novo, quando Bill se interpôs entre ela e o batente. Tomado de surpresa o criado
preparava-‐se para reagir, quando Bill lhe falou: -‐ Sou o encanador!
– Mas não chamei nenhum encanador, respondeu o criado em seu meio inglês.
– Mandado da gerência, redarguiu Bill, de modo convincente.
– Neste caso vou chamar sahib, decidiu o criado, olhando-‐o com desconfiança.
Queira esperar aqui mesmo. E entrou na sala contígua.
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Bill encontrava-‐se na sala de espera mobiliada com a sóbria elegância americana,
nada apresentando que despertasse particular atenção.
Ao retornar o criado, cessaram as risadas cristalinas e aos ouvidos de Bill chegaram
vagos murmúrios de um diálogo e de passos que se dirigiam ao seu encontro. Procurou
tomar a mais ingênua atitude possível. Firme, quase em posição de sentido, com a caixa de
ferramentas na destra, mais parecia um soldado da warmacht que simplório [15] encanador.
A impressão que lhe causou a súbita irrupção de Nherú, foi surpreendente. Jamais imaginara
tipo igual. Magro, estatura mediana, trajando a rigor, o Dr. Nherú destacar-‐se-‐ia em
qualquer meio. Como se não bastasse, alvíssimo turbante, enfeitado com vistosa pérola,
completava-‐lhe a impressionante figura. Do rosto comprido e seco destacava-‐se o aquilino
nariz entre dois penetrantes olhos negros, que lhe davam ar arrogante e agressivo. Um
bigode fino, à chinesa, sombreava-‐lhe a boca de lábios delgados), fortemente unidos,
denunciadores de vontade imperiosa e espírito dominador. Diante daqueles olhos
inquiridores, olhos raio X, que atravessavam a matéria e perscrutavam a alma, Bill vacilou
como Édipo frente à Esfinge. Ensaiou um sorriso enquanto o doutor o examinava de alto a
baixo.
– Eu sou o encanador, tartamudeou. E o doutor limitou-‐se a imperceptível franzir de
lábios. Eu... ia Bill repetir, desconfiado de que o doutor desconhecesse o inglês, quando
ouviu, no seu próprio idioma, a resposta irônica: – Já sei. É o encanador. E tornou a sorrir
enigmaticamente.
O brilho daqueles olhos parados, fixos como duas estrelas, enchiam de confusão a
alma de Bill. E se ao menos aquele rosto se contraísse num ricto de cólera. Numa expressão
de dúvida, de espanto. Não. Mantinha-‐se imperturbável, indiferente como lousa tumular.
Diante daquele sorriso e daquelas pupilas fixas, Bill começou a sentir a vista turva e
tudo mover-‐se-‐lhe ao redor. Num esforço supremo apelou para as [16] energias que ainda
lhe restavam. Tudo não passava de mera sugestão. A entrada de uma moça, na sala,
quebrou o encanto que o sujeitava. A linda platinum blond, de olhos azuis e tez rosada como
as maçãs da Califórnia, conteve, surpresa, a gargalhada franca, levando aos lábios dois
mimosos dedos de unhas esmaltadas cor de sangue. Meio confusa correu os olhos de Bill
para o doutor. Bill sentiu renascer-‐lhe a coragem. Voltou a ser o dinâmico repórter das
grandes competições esportivas. Era, novamente, cem por cento, o repórter Século XX.
Quase soltou um assovio daqueles com que os jovens costumam saudar as beldades que
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passam. Alta, esbelta, tipo esportivo era o que se poderia chamar último modelo made in
USA. Bonita, aliava à beleza a graça natural, que mais lhe aumentava os encantos. Tentou
desculpar-‐se, porém, o doutor tranquilizou-‐a com um gesto. Ele parecia gozar o embaraço
de Bill e nada fez para ajudá-‐lo a sair do impasse.
– Esperá-‐lo-‐ei lá dentro, disse a moça, não querendo ser importuna, retrocedendo
sobre os próprios passos.
– Não, Diana. Fique! – ordenou o doutor.
A jovem parou à entrada da sala, junto ao reposteiro.
Sem desviar os olhos do repórter, disse o doutor para a jovem:
– País extraordinário é o seu, Diana! Na minha terra só aos iniciados é dado ler o
pensamento alheio. Aqui, mal descansei as malas no hotel e já [17] sabem que estou
precisando de um encanador! É edificante! Simplesmente assombroso! E dava à voz tom de
indisfarçável ironia.
Crédula ela fitava Bill como se estivesse presenciando um fenômeno. Bill gaguejou
qualquer coisa que ela não chegou a ouvir. O olhar perscrutador do indiano ora se detinha
nas suas calças impecavelmente frisadas ou na finíssima camisa de seda, quando não se
detinha nas mãos bem tratadas, que denunciavam cuidados especiais de manicure. Cansado
daquele jogo felino, ordenou bruscamente:
– O senhor encanador pode começar. E mandou o criado acompanhá-‐lo até o quarto
de banho.
De passagem pela loira miss, Bill ensaiou o seu melhor sorriso, conseguindo apenas
articular uma careta cômica. Na segunda sala os seus olhos se maravilharam com o luxo
asiático. Móveis, nenhum. Grosso tapete persa não deixava a descoberto polegada, sequer,
de piso. Almofadas, dos mais ricos tecidos, enfeitadas a ouro, distribuíam-‐se com arte por
todos os cantos. Tapetes cobriam as paredes envolvendo-‐as em sombras e mistérios como
nos contos orientais. Apenas esguia coluna de jade, a um canto, contrastava com as cores
severas do ambiente. O que mais intrigou a Bill foi a minúscula esfera de prata que a
encimava. Pensou estar sendo vítima de alguma alucinação. Julgou-‐se transportado a um
palácio das Mil e Uma Noites. Para certificar-‐ se que não sonhava, esfregou os olhos.
Enquanto caminhava para a porta que do outro lado dava acesso ao corredor, seguindo os
passos do [18] soleníssimo criado, viu a jovem ir ao encontro do Dr. Nherú junto à coluna
que tanto o intrigava. Sobre o corredor abriam-‐se três portas: uma de cada lado e a terceira
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no fundo. Para essa dirigiu-‐se o criado. Abrindo-‐a com largo gesto, convidou-‐o a entrar. O
desespero de Bill era visível. Amaldiçoou, com os seus botões, a ideia que tivera. Como
poderia, de tão longe, entabular conversação com o famoso cientista? O criado fechou a
porta. Desanimado Bill deixou cair a caixa de ferramentas. Incontinente ela se abriu e a
mesma cara apareceu. De sentinela à vista, pensou. Como farei para recompor a situação?
Enchendo-‐se de coragem abriu a porta e foi esbarrar em cima do formalizado fâmulo. Sem
mesmo se dignar a olhá-‐lo, afastou-‐o de forma um tanto rude e encaminhou-‐se para a sala
em que se encontrava o doutor. Vendo-‐o entrar o cientista fitou-‐o com surpresa, tendo
ainda entre os dedos a pequenina esfera de prata. O leve sorriso que perpassou pelos lábios
da jovem era algo parecido com o que dispensamos àqueles que nos tentam iludir. Bill era
fino para não compreender e como bom sportman estava pronto para confessar-‐se vencido.
O olhar que lhe dirigiu Nherú, valia por uma pergunta, e Bill voltou a ser o impetuoso
repórter do Star.
– Perdão, Doutor. Mas gostava de saber qual o defeito que acusa o seu quarto de
banho.
Inefável sorriso iluminou o semblante do enigmático doutor e os seus olhos
adquiriram singular expressão, em que o sarcasmo e o espanto se mesclavam:
– Pois gostaria, também, que mo dissesse. [19]
– Eu?!
– Sim, o senhor! Por ventura não lê o pensamento alheio?
– O doutor graceja. Eu apenas entendo de torneiras e de serpentinas...
– É só do que não entende. Talvez lhe sejam familiares as serpentinas de papel
colorido!
– O senhor não estará sendo injusto? – interveio, conciliadora, a jovem.
– Não, Diana. Sei o que digo e porque o estou dizendo.
A campainha retiniu no vestíbulo. O doutor interrompeu-‐se para dar ordens ao
criado: – Veja quem está. Se –outro encanador despache-‐o! Enquanto o criado desaparecia o
doutor voltou-‐se para Bill: -‐ Não sei como o senhor denomina o que em minha terra se
chama abuso. Aqui, onde tudo é grande e excessivo, talvez, chamem liberdade. Porém, deve
ter, como em todo lugar, o seu limite. A liberdade de um termina onde começa a de outro.
Este é o seu caso...
– Mas, balbuciou Bill, prenunciando tempestade.
10
O Dr. Nherú, que agora lhe falava, era outro. O cenho carregado e as palavras
sibilantes, revelavam cólera. Para maior desassossego, como brotado do solo, surgiu
soberbo latagão, de bíceps volumosos, que se foi postar pouco distante. Neste comenos
chega um ruído de vozes, que vai crescendo até à altercação violenta. É o criado e o recém-‐
vindo. O doutor interrompe-‐se e com o rosto voltado para a porta de entrada espera o
resultado. [20] A discussão assume alturas inquietantes. Ouve-‐se como que um choque de
corpos. A porta fecha-‐se violentamente e alguém tomba, com estrondo, no corredor. A
seguir entra o criado ajeitando os punhos e com a gravatinha preta virada de encontro à
alvura imaculada do colarinho duro. Curvando-‐se diante do doutor, disse suavemente: – Era
o novo encanador.
Bill sobressaltou-‐se. A moça sorriu e o doutor acrescentou: – Talvez fosse o
verdadeiro! Mas foi melhor assim.
Bill esforçou-‐se para sorrir, mas estava por demais nervoso para tão ingente tarefa
poderia, quando muito, imitar o sorriso de um enforcado. A voz sibilante de Nherú cortou-‐
lhe o fio do pensamento: – O senhor é um transgressor da lei: invadiu o meu lar sob falso
pretexto! Merece ser castigado!
– Protesto! Eu sou encanador!
– Impostor é o que você é!
– Ofende-‐me!
– O senhor é que ofende a minha inteligência com esta grosseira mistificação! Onde
se viu encanador assim? – disse dirigindo-‐se à jovem. Onde, em serviço, usaria sapatos tão
caros?
Bill esfriou. Nem coragem teve para olhar para os pés. Diana não pôde sopitar o riso.
Minucioso nas suas observações, prosseguiu o doutor: – Veja o friso das calças, que dobras
só conhece as do cabide! E que tecido! Casimira para $ 100,00! Camisa de seda! Botões de
punhos, de ouro! Que maravilha [21] os encanadores americanos. Aposto que usam relógios
de platina cravejados de diamantes!
Com um riso amarelo Bill levou a mão ao pescoço, procurando ajeitar a gola da
camisa.
– Por certo, continuou Nherú, aí devia estar, há pouco, caríssima e vistosa gravata. E
que mãos delicadas! Permita-‐me a indiscrição. O senhor trabalha de luvas?
11
A esta altura Bill não sabia se devia zangar-‐se ou continuar representando o papel de
encanador. Achou prudente não responder.
– Nem manchinhas de óleo quer nas mãos, quer na roupa. Que admiráveis os
encanadores americanos!
A moça não podia refrear o riso, que tanto encabulava o atribulado repórter, muito
embora fossem por ele as suas simpatias.
O doutor abandonou o sarcasmo para retornar à atitude severa de juiz inflexível: –
Quero que saiba que me não enganou desde o momento que aqui pôs os pés. O senhor é
um daqueles que se aglomeram lá em baixo. Vai fazer-‐lhes companhia. E se dê por feliz não
saindo pela janela.
– É uma violência! O senhor não pode fazer semelhante coisa! Estamos na América!
– E eu estou em minha casa! E fazendo sinal ao latagão de bíceps atléticos.
Ali, o serviçal, aproximou-‐se. Recuando, Bill caiu em guarda, na mais correta postura
da “nobre arte”. Agachado, Ali avançava, cautelosamente, como enorme aranha. Antes que
se verificasse o choque [22] entre os dois homens, Diana gritou: – Não, professor! Não
consinta!
Bastou um olhar de Nherú para o serviçal voltar à impassibilidade de estátua. Mais
aliviado Bill readquiriu a sua atitude pacífica. Friamente ordenou-‐lhe o doutor: Retire-‐se!
– Resta-‐me obedecer, replicou Bill, dando de ombros. E para ser por ele
compreendido: – Razão tinha Mr. O’Connor. Antes fosse passear na Lua! E a passos largos
dirigiu-‐se para o quarto de banho, em busca das ferramentas.
Quando ele saiu a moça falou: – O senhor está sendo demasiado severo. Esse moço
demonstrou ousadia e engenho. Merece ser recompensado. Se for um repórter dê-‐lhe a
oportunidade que procura.
– Os repórteres são todos uns néscios! – respondeu, mal humorado, o doutor.
– Não seja pessimista. Se o importunam culpe à sua celebridade. O moço mostrou ser
diferente. Foi o único a chegar à sua presença.
– Bem, para satisfazer-‐lhe vou dar-‐lhe uma oportunidade. Deixe-‐o voltar. Ele disse
algo que me despertou um velho desejo.
– Que foi? – perguntou a moça, espicaçada em sua curiosidade feminina.
– Já vai saber. Aí vem ele.
12
Muito desajeitado vinha Bill segurando a maleta e maldizendo as roupas que o
fizeram fracassar; ao mesmo tempo que aparafusava as mentiras com que revestiria a
entrevista gorada. E, filosoficamente, concluía em paz com a consciência: – [23] mais difícil é
criar que copiar. Reservou o mais amável sorriso para a jovem, a quem cumprimentou com
elegante curvatura de corpo e erguendo a elevada estatura passou pelo cientista com altiva
arrogância. Doido para vê-‐lo pelas costas o criado já estava abrindo a porta.
– Um momento, disse-‐lhe o doutor. Creio tê-‐lo ouvido mencionar a Lua. A que
propósito? Enganar-‐me-‐ia?
Surpreso, sem saber o “porquê” daquele interesse, Bill respondeu curioso e
desconfiado: – Disse que antes tivesse ido passear na Lua. Os olhos de Nherú brilharam de
satisfação e os seus lábios se entreabriram num sorriso de felicidade. – Passear na Lua,
murmurou repetindo as palavras de Bill. Sem dar importância, Bill ia retira-‐se, quando Nherú
lhe falou em tom sério: – O senhor quer dar um passeio na Lua?
Bill olhou-‐o como quem olha um louco. O doutor adivinhou-‐lhe o pensamento: – Não
estou louco. Faço-‐lhe uma proposta. Responda-‐me agora: A que jornal pertence?
– Ao Star.
– Interessante! Das estrelas à Lua um pulo!
Pela primeira vez Bill pensou seriamente em pular do décimo quarto andar à rua.
– Façamos um acordo. O senhor quer uma entrevista sensacional e eu lhe ofereço
coisa mais extraordinária. Uma autêntica viagem à Lua, para ser contada em seu jornal. [24]
– O doutor está brincando. Tomar-‐me-‐iam por louco!
– Dou-‐lhe a palavra de honra! Farei com o senhor a experiência que busco há anos.
Não obstante o tom sério com que falava o Dr. Nherú, Bill ainda duvidava, e arriscou
uma pilhéria:
– Só se me transformar em “radar”.
– À sua alma sim, respondeu-‐lhe Nherú com voz grave. Ela será o radar vivo e
pensante com que esquadrinharei as maravilhas do universo! Os olhos do doutor,
adquiriram brilho diabólico e as suas mãos crisparam-‐se como garras de fera.
Entre assustado e indeciso Bill olhou para a moça, mas ao vê-‐la sorridente tomou
novo alento:
– Confesso que não me agrada a perspectiva de me ver transformado em radar,
bisbilhotando a amplidão sidérea, porém, é a minha profissão. Aceito!
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O cientista estendeu-‐lhe a mão de dedos longos e trêmulos como pernas de aranha.
Estava selado o pacto como dois bons desportistas. Operou-‐se radical transformação nos
modos e até na fisionomia do doutor. De taciturno e ríspido passou a loquaz e solícito. Como
prova de excelente humor exclamou:
– Creio que estamos fugindo às regras de bom tom. Bill e Diana entreolharam-‐se,
intrigados e ele completou. Vou, primeiramente, apresentar-‐me: Panda Nherú, de Agra.
Doutor em ciências físicas e naturais e Grão Mestre do Himalaia. Aqui Miss Diana Morgan,
minha amiga e quase secretária. A moça estendeu a mão, que Bill apertou enquanto se [25]
apresentava: – Eu, Bill Brennan, de New York. Repórter esportivo do Star. E com ar de
espanto: Diana Morgan?! A filha do Presidente do Import and Export Bank?
– Exatamente, respondeu o doutor.
A jovem gozou o espanto de Bill. E este continuou: – É-‐me familiar o seu nome,
através dos noticiários esportivos. Jamais pensei conhecê-‐la de forma tão singular. Creia que
me proporciona grande satisfação.
– Obrigada.
– Esperava conhecê-‐la no próximo campeonato de Forrest Hill.
– Sim? Entretanto depende das provas de Daytona Beach.
– Que me diz! Daytona Beach?!
A resposta de Miss Diana foi um sorriso. O Dr. Nherú explicou:
– Você não conhece Diana. Tem coragem para coisas mais arriscadas.
– E que pode haver mais arriscado que Daytona Beach?
– Os espaços interplanetários!
– Refere-‐se à aviação?
– A uma aviação em que se é a um tempo aparelho e piloto.
– Está sendo transcendental, doutor.
– Explico, falou Diana, tornando à conversa: – Não sei se você sabe o que vem a ser
um Mestre do Himalaia. [26]
Bill fez sinal negativo e ela continuou:
– Os Mestres do Himalaia ou os Homens Sábios do Oriente, são uma seita que habita
certo mosteiro perdido nos flancos da grande cordilheira, nas lindes extremas do fabuloso
Tibet. De há séculos detêm os grandes segredos da vida e da morte. O Universo não lhes
apresenta mistérios. Tempo e espaço não têm para eles significação transcendental. Brincam
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com a alma como brincamos com um bichano. As forças da natureza são-‐lhes dóceis
instrumentos. Eis o que é o professor Nherú.
– Bill olhou-‐o de modo a deixar transparecer o assombro de permeio com a dúvida.
Existiria alguém assim?! De certo não! Espírito esportivo resolveu aceitar o jogo como lho
apresentavam. Nherú aproveitou a pausa para retomar a palavra: Depois do que lhe disse
Diana, creio já nos conhecermos bem. Por tudo que ouviu não me julgue fabricante de
milagres ou coisa parecida. Se algo extraordinário há nos meus trabalhos deve ser procurado
na ignorância dos que desconhecem os segredos do Himalaia. Nós que vivemos nas imensas
solidões, que estamos em mais íntimo contacto com a natureza, e mais perto do verdadeiro
Deus, herdamos a sua sabedoria.
Enquanto falava as suas feições iam adquirindo o aspecto selvagem dos velhos
monges das lendas tibetanas, perdidos para além do horizonte, na noite dos tempos. O
silêncio caiu entre os três. Diana foi colocar-‐se junto à coluna de jade. Nherú, de cabeça
baixa, entregara-‐se à meditação. Assim [27] passaram-‐se os minutos e Bill esperava sem dar
sinal de impaciência. Por fim Nherú, num movimento rápido, levantou a cabeça e respondeu
a Bill o que, mentalmente, se perguntara: – Não! Diana não se submeterá a essa prova! E
como Bill lhe fizesse muda interrogação, apressou-‐se a explicar: – Ela quer prestar-‐se para a
minha experiência, mas não consentirei. Os riscos superam as suas forças.
– De que fala? – perguntou Bill, que continuava não entendendo.
– Lembra-‐se do que lhe falei sobre os espaços interplanetários ? Numa aviação em
que se era, simultaneamente, aparelho e piloto?
– Recordo-‐me, mas continuo na mesma.
– Tem razão. V. não sabe ainda o que vem a ser o que chamo a grande prova.
Quando falei em empregar a alma humana como radar não falei em sentido figurado. Nunca
ouviu falar na transmigração da alma?
– Já, mas nunca lhe dei crédito.
– Para um leigo tal opinião não desdoura, retrucou o cientista com indisfarçável
azedume, porém, em nosso meio vale o que ouro vale.
Bill corou e tossiu para disfarçar o embaraço.
– A grande experiência consiste no emprego da alma em pesquisas pelas regiões do
universo, onde as distâncias e o frio superam tudo que a imaginação possa criar. As viagens
aos mais distantes planetas poderão ser realizadas sem as ridículas máquinas que os
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ficcionistas engendraram para tais intentos; máquinas que jamais chegariam [28] ao destino,
mesmo que pudessem vencer a atração da Terra. Pudesse o engenho humano construir um
bólido que atingisse a Lua com a velocidade da luz e nenhum homem chegaria lá vivo!
Morreria congelado nos espaços interplanetários, mesmo em tão insignificante fração de
tempo!
– Espantoso!
– Sim, espantoso. Mais espantoso é encontrar quem queira tentar a prova.
– O professor exagera, interrompeu-‐o Diana. Eu mesma me ofereci.
– E que lhe disse eu?
– Desculpou-‐se que eu era mulher.
Bill aparteou-‐o:
– Assim o doutor contraria o princípio espírita de que a alma não tem sexo.
– Não discuto teorias, respondeu o doutor. Devemos ser coerentes se buscamos a
verdade. Quem ignora as prerrogativas que entre vivos goza o suposto sexo fraco?
– Boa saída, exclama Diana.
– De perfeito gentleman, concordou Bill.
Sorrindo, prosseguiu o doutor:
– Poupam-‐me, assim, explicações. Você Diana, conhece os meus projetos. Deixe-‐me
explicá-‐los a Bill.
– Que venha depressa. Que reportagem para o Star.
– Será a maior de todos os tempos, emendou o doutor, contagiado pelo entusiasmo
do repórter. Ouça com atenção o que lhe vou dizer: apesar de [29] todas as probabilidades
de enviar um habitante da Terra à Lua, ainda não a realizei por uma razão...
– A impossibilidade de vencer a atração da Terra e o frio dos grandes espaços,
respondeu Bill.
– Não. Esta razão deixou de existir. O corpo astral não se subordina às contingências
da matéria. O astral é o próprio espírito. É a alma. Ele se movimenta no espaço livre como o
pensamento, que é mais rápido que a luz! É insensível às leis da natureza. Não sente frio,
nem fome; não respira e não se cansa. O problema é encontrar um homem bastante
corajoso para submeter-‐se à prova.
– Se procura assustar-‐me, perde tempo doutor.
Os olhos do cientista traíram a emoção que lhe ia n’alma e, com voz trêmula falou:
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– Não, apenas estou sendo sincero. Teoricamente os riscos são mínimos, porém, a
prática poderá reservar-‐nos surpresas.
– Haja o que houver, estou às suas ordens.
– Obrigado. Não me descuidarei para que tudo corra como espero.
– Devo fazer o testamento? – gracejou Bill.
– Poderá fazê-‐lo. E caminhando para o corredor dos fundos, convidou Bill e Diana
para que o acompanhassem. Abriu a porta da direita e entrou em pequeno mas luxuoso
escritório. Sem dar palavra sentou-‐se à escrivaninha e começou a escrever, ligeiro e nervoso.
Ao findar passou o papel para Bill, que assinou com mão firme. Era a declaração de que
corria livre e espontaneamente os riscos da experiência. Por cima do ombro de Bill, Diana
lera [30] os seus termos, e em tom de quem não admite réplica exigiu que lhe fosse feita
declaração idêntica. Debalde o professor argumentou, implorou, até que Bill julgou
descobrir a fórmula conciliatória. Ele tomaria conta de Diana, na Lua! E a romântica
perspectiva avolumava-‐se e crescia na sua mente exaltada. Até então contentavam-‐se os
namorados com idílios ao luar. Ele iria viver o seu romance em pleno coração da rainha da
noite! Piramidal! Simplesmente piramidal! Diante dos quixotescos argumentos de Bill, Nherú
capitulou.
Novamente voltaram à sala guarnecida de tapetes e da estranha coluna de jade. O
doutor fê-‐los sentar, frente a frente, à moda oriental. Posto que entre eles colocou a coluna,
de forma que a bola de prata lhes ficasse à altura dos olhos. Assumindo atitude majestosa
bateu palmas por duas vezes. O criado surgiu. Trocaram palavras em sua língua natal e todas
as portas se fecharam. Diana e Bill viviam pelos olhos. Com voz cava falou-‐lhes o doutor:
– O momento é decisivo. Não lhes exagerei os riscos. Há tempo para recuar. Que diz,
Diana?
– Que estou pronta para a prova!
– E você, Bill?
– Que poderia estar de volta se não fosse esta demora.
Apesar dos pesares o doutor sorriu, tranquilizado com a soberba coragem de ambos.
– Pois não os impacientarei mais. Ouçam o que lhes vou dizer: por certo estranharão
que tendo [31] eu poderes extraordinários não pesquise, pessoalmente, aquilo que tanto me
fascina. Explicarei: poderia fazê-‐lo, mas seria demasiado esforço para mim. Não os
molestarei com inúteis explicações científicas. Direi apenas que fora do âmbito terrestre ser-‐
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me-‐ia difícil e perigosa a experiência, por motivos óbvios. Dentro dele as auras são mais
favoráveis e a auto-‐magnetização pode ser praticada sem inconvenientes. Assim pude
realizar a façanha que a nenhum outro mortal foi possível. Pisar o cimo do Everest! Apenas
um me precedeu. E esse lá está, enregelado, sobre o paredão do noroeste! Chamava-‐se
Mallory. Enormíssimos riscos correria se me aventurasse em outros mundos sob a minha
própria influência. Precisaria fazer duas coisas capitais a um tempo: uma ditada pelo instinto
e outra pela inteligência. Claro que uma prejudicaria a outra. Assim terei intactas, em
potência, todas as minhas faculdades. Poderei concentrar-‐me, exclusivamente, nos meus
objetivos. Sob os efeitos da auto-‐magnetização eu seria vulnerável sob múltiplos aspectos. O
tempo é questão primordial. Ninguém resistiria por mais de vinte minutos à tão árdua
missão. Vocês terão vinte minutos para ir à Lua e voltar.
– Só? – exclamou, desapontada, Diana.
– Tempo suficiente para quem se move pelo pensamento, esclareceu Nherú.
Pensando, quanto tempo precisaria V., para ir à Lua?
– Uma fração de segundo.
– Será o tempo para alcançá-‐la. [32]
– Lembre-‐se, doutor, que a distância que nos separa dela equivale a trinta viagens,
ida e volta, de New York a Berlim! – ponderou Bill.
– Não me esqueci, e para seu governo acrescento: a distância poderia conter, lado a
lado, como contas de um colar, trinta esferas do tamanho da Terra.
– Subiremos a tão grande altura? – interrogou Diana, visivelmente assombrada.
– Não, querida. No grande espaço universal não existe em baixo nem em cima. São
concepções adstritas apenas ao nosso meio. A distância da Terra ao seu satélite varia de
363,310 a 405,530 quilômetros.
Bill e Diana entreolharam-‐se estarrecidos. O Dr. Nherú prosseguiu:
– Faço tais citações a título de curiosidade, porque representam cifras e nada mais.
Em nosso caso têm o valor de zero à esquerda. Os fenômenos que lá se observam não
atuarão sobre vocês, embora os seus corpos sejam tangíveis. Não sei se ignoram que os dias
lunares representam 15 dos nossos. É fácil imaginar-‐se a tragédia de um céu sem nuvens,
num planeta sem atmosfera, sem vento, sem chuva, exposto à radiação de um sol
abrasador. A temperatura sobe a 120°C e nas trevas que se seguem, por igual período, cai a
mais de 100° abaixo de zero! Que organismo poderia resistir a temperaturas tais? Como
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respirar se ar não existe? E não existindo são também inexistentes o som, o aroma e o fogo.
E tudo porque a sua pequenez a impede de reter a [33] atmosfera necessária à sua vida.
Todos os átomos de gás, existentes, se escaparam para o espaço e nele se perderam.
– Entretanto, a Lua parece-‐nos bem grande, objetou Diana.
– Sim, por estar mais próxima que os demais astros. Para convencê-‐la direi que a sua
a superfície não comportaria mais do que o continente africano. A parte que se vira para
nós, é apenas o dobro da superfície da Europa. Seriam necessário 81 Luas para obter-‐se o
mesmo peso e massa da Terra. Daí exercer menor atração sobre os objetos, resultando que
um corpo que aqui pesa seis quilos lá pesaria um! Pela mesma razão um homem que aqui
salta dois metros lá saltaria doze. Não obstante tudo isto ser-‐lhes-‐á indiferente. O corpo
astral não sofre a influência do meio físico. Para locomover-‐se basta o pensamento.
– Contudo, blasonou Bill, eu gostaria de gozar, lá, os mesmos privilégios que desfruto
aqui.
– Não lhes seriam de nenhuma utilidade. Viveria menos que um peixe fora d’água. E
se tal não sucedesse, o menor mal seria um enjoo crônico, desconhecido na Terra. Como
sabe os enjoos produzidos pelas viagens marítimas são provocados pela ação da gravidade,
que na Terra varia entre 10 e 20%, ao passo que na Lua varia em torno de 90%!
– Não acrescente mais nada doutor! Já estou sentindo náuseas. Explique-‐me, então,
como orientar-‐me naquele mundo estranho. [34]
Nherú sorriu e respondeu:
– Não lhe aflijam detalhes. Eu serei o guia. A Lua é o mundo do silêncio. Lá vocês
serão mudos como as rochas. Conversarão pelo pensamento. Quanto a ser um mundo
estranho é apenas força de expressão. E note: serão os primeiros a pisar e a reivindicar
aquele solo que é parte integrante do nosso planeta.
– O professor divaga, murmurou Diana.
–Não, filha. Ocorreu isso há uns 1.200 milhões de anos, quando a Terra ainda se
encontrava-‐se em estado gasoso. É coisa sabida por qualquer estudante de geologia.
– Que atestado de ignorância nos está passando, chasqueou Bill.
– Absolutamente! Não lhes posso exigir conhecimentos que lhes não interessam, e
nem dizem respeito. Os meus estudos aprofundaram-‐me na matéria, mas se justificam.
Hoje, sem os recursos da ficção, sem as balas de Júlio Verne ou a cavorite de Wells,
desvendarei os segredos da Lua com os olhos de vocês. Quando lá estiverem as suas reações
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serão por mim registradas como se fora eu próprio que a estivesse palmilhando. Bem, falei o
que devia falar. Agora tome posição, Bill. Você também, Diana. Assim. E fez Bill retomar a
posição frente à coluna de jade, encimada pela bolinha de prata. Corrigiu a posição de Diana,
para que o busto lhe ficasse mais ereto. Aproximou os seus rostos o mais possível e pediu-‐
lhes fixassem a bolinha, fazendo com que as extremidades dos dedos de Bill tocassem as
[35] têmporas da sua companheira. Em seguida bateu palmas três vezes, compassadamente.
Surgiu o criado com uma taça de ouro em uma bandeja, trazendo cuidadosamente dobrada,
sobre o braço direito, alvíssima toalha de linho. – Concentrem-‐se! Ordenou. Fixem o
pensamento no que desejam fazer. E dizendo, mergulhou os polegares no óleo aromático
contido na taça e pousou-‐o sobre a fronte de Bill, entre os supercílios, conservando as
palmas das mãos e os dedos estendidos sobre a cabeça. Assim permaneceu por espaço de
meio minuto. Os dois fixaram a bola de prata e quando acentuado estrabismo começava a
exigir-‐lhes grande esforço físico o doutor retirou a mão direita da cabeça de Bill e pousou-‐a
sobre a de Diana, repetindo com voz grave as seguintes palavras: Aum! Aum! Aum!
Acometidos de súbita sonolência os dois jovens deixaram-‐se resvalar, mansamente,
para as almofadas dispersas sobre o tapete. Com um sorriso de triunfo Nherú contemplou os
corpos inanimados e, cautelosamente, retirou-‐se para o canto mais distante da sala, fazendo
sinal ao criado para que se retirasse. Em seguida sentou-‐se à oriental. Cruzando os braços
deixou a cabeça pender sobre o peito e quedou imóvel como estátua.
***
Depois de fixar por algum tempo a bola de prata, Bill sentiu viva e dolorosa contração
dos músculos visuais, ao tempo que tênue névoa luminosa se espalhava, gradativamente,
por todo o campo visual, ofuscando tudo que o rodeava, e parecia [36] emanar do próprio
cérebro. Viu-‐se de repente mergulhado em trevas, nas quais se debateu até sentir-‐se cair no
vácuo infindável e perder a consciência de tudo. Ao recobrar-‐se, achou-‐se atravessando o
espaço com incrível rapidez, dentro da noite eterna. Começou a sentir a vertigem daquela
espantosa velocidade, mas foi apenas impressão. Em outras circunstâncias o terrível frio dos
espaços tê-‐lo-‐ia enregelado em milésimos de segundo. O seu rosto fendia a tenebrosa
imensidade produzindo vagas geladas de vento, que lhes corriam pelas faces, alucinantes. E
do fundo daquela noite espantosa começou a surgir indecisa claridade que se foi
pronunciando até transformar-‐se em esplendorosa aurora. Como se lhe tivessem tirado a
venda dos olhos, um grito de assombro encheu-‐lhe a alma. Via a Lua como jamais a vira!
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Voava ao seu encontro e o seu disco crescia, crescia, sem cessar! Divisava, nítidas, as suas
montanhas pontiagudas como agulhas de catedrais. Abismos silenciosos e profundos.
Crateras espantosas, verdadeiras alucinações de pesadelos, e depressões infinitas que a
distância se destacavam como grandes manchas e se multiplicavam de forma a parecer
impossível descer-‐se ali sem ir parar no fundo de um daqueles abismo. Justificava-‐se a
definição de Nasmyth: ser a superfície da Lua verdadeira espuma de crateras. De repente
abriu-‐se-‐lhe aos pés uma cratera que a vista não conseguia abranger em toda a plenitude.
Sentiu a opressão do medo, pois para aquele abismo o arrastava a fatalidade da sua
trajetória. Nem bem pensou e se viu mergulhado [37] em trevas. A sensação que
experimentou foi a de estar descendo por um poço. Alucinado gritou, gritou, sem ouvir,
sequer, um único som. Esquecera-‐se que estava no país do silêncio. Desorientado, no auge
do desespero, sentiu os pés tocarem o solo. Cessara a descida. Receoso, procurou
ambientar-‐se às trevas. Percebeu pisar terreno áspero e difícil, onde os pés se mergulhavam
em camadas de seixos que cediam ao seu peso. Procurou orientar-‐se e olhou para cima.
Estarrecido viu que do alto, do céu completamente negro, grossos jorros de luz desciam,
obliquamente, por extenso paredão, em semi-‐círculo, a perder-‐se de vista. As paredes, cuja
cor cambiava entre o pardo e o amarelo, caiam a pique de vertiginosa altura. A Bill o que
mais intrigava era a muralha não se fechar, embora estivesse quase certo de se encontrar no
fundo de uma gigantesca caldeira. Bastava-‐lhe observar o semicírculo fantástico que, ao
alto, emergia banhado de luz. Ao tatear as suas mãos tocavam em arestas agudas como
punhais, quando não deslizavam por paredes lisas ou esbarravam em grandes blocos que lhe
tolhiam o passo. Naquele silêncio de abismo começou a sentir as angústias do medo.
Lembrou-‐se então de Diana, e com assombro sentiu-‐se logo em contato com ela.
Ocorreram-‐lhe à mente as instruções do Dr. Nherú. Aquele seria o meio de trocarem
impressões, uma vez que o som não encontraria elementos de propagação.
– Onde está V., Diana? [38]
– Num lugar horrível! Percebo tudo vagamente. Não me habituei ainda à escuridão.
Penso estar à beira de um precipício.
– Mas estamos no mesmo lugar!
– Como sabe?!
– O Dr. Nherú, lá da Terra.
– Como farei para encontrá-‐lo?
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Esqueceu-‐se! Use o pensamento.
Bill sentiu algo tocar-‐lhe, de leve, o braço. Apesar de toda a coragem, assustou-‐se.
Jamais esperara aquele passe de mágica. – Em que lugar fomos cair, queixou-‐se Diana. –
Pavoroso! Pior que não me acostumei ainda à escuridão. – Aqui parece-‐me mais escuro. Lá
onde eu me encontrava podia perceber a montanha que se erguia a meu lado, cujo cimo se
coroava de luz. – Olhe Diana! Lá V., via aquela muralha banhada pelo sol? – Não! Não a via!
Que céu negro! Como pode ser dia se brilham as estrelas? – É porque V. está acostumada ao
nosso céu. Falta aqui a atmosfera, que ao ser iluminada pelo sol sobrepuja, com a sua
claridade, o fulgor das estrelas, devido à refração dos raios luminosos. Dando uma palmada
na testa, exclamou Bill: – Desvendei o mistério! Estamos num cone dentro de um dos
círculos da Lua! A razão de ser este lugar mais escuro explicasse por estarmos no lado que se
encosta à muralha que circunda esta imensa cratera. – Cratera?! É isto um vulcão?!
Perguntou Diana, horrorizada. – Creio, mas não lhe dê cuidados. Isso foi há milênios. Devia
ter sido um engenho de destruição como não [39] conhecemos na Terra. – Por que fala em
círculos e crateras se estas muralhas não se fecham? – Ilusão apenas. Devemo-‐la ao
pequeno raio da Lua. Todo o aspecto fantástico que de fora se observa, desvanecer-‐se-‐ia se
nos pudéssemos situar no interior ele um desses círculos. Não seria mais interessante que o
de uma planície comum, pela mesmíssima razão que acabo ele explicar.
– Já estou distinguindo melhor as causas, Bill.
– E eu também. O terreno é que é duro para se andar. – Nunca vi tanta pedra na
minha vida! Por aí poderá V. fazer ideia das formidáveis erupções deste monstro. Tanto
quanto me permite a escuridão vejo que estamos quase no cume de um monte.
Diana e Bill atentaram para os diversos aspectos da região. Esforçava-‐se ela para
classificar um pedaço de rocha, que sustinha, encostado aos olhos, enquanto Bill sondava a
escarpa. Ao lado montanhas mais altas se elevavam, passo que outras se deixavam ficar para
baixo, porém, terminavam, todas, como dentes de imenso serrote. Pelos cálculos deviam
estar a altura de alguns milhares de metros. – Eu daria um ano de vida para saber em que
lugar me encontro, falou Diana. – Pois acabo de saber sem sacrifício algum. Estamos na
cratera de Tycho. – Também ouvi a voz do professor, Bill. Pois saiba, Diana, que esta é uma
das maiores crateras da Lua. Creio que maiores só as de Ptolomeu e Platão. Tycho é um dos
gigantes da orografia lunar. Supera em muito o nosso Monte Branco. – Está ouvindo a voz do
Dr. Nherú? – [40] Estou, Bill. – Pois bem, ele quer que saiamos em direção às montanhas de
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Doerfel. Concentremo-‐nos. Junto de elevada falésia deram-‐se as mãos e por instantes
mantiveram-‐se cabisbaixos. O que se seguiu não pode ser descrito. Viram-‐se, de repente, em
assombrosa região à plena luz de um sol estranhamente rubro, sem auréola, engastado num
céu negro e recamado de estrelas. Diana pensou: – Que mundo estranho!
Apesar da intensa luz do Sol, a superfície lunar é relativamente escura. Tudo porque
as suas rochas não refletem bem a luz recebida. Aos assombrados olhos dos dois terrícolas
surgiu a espantosa realidade daquele estranho mundo. Achavam-‐se entre cordilheiras como
jamais viram. Uma das montanhas era duas vezes mais alta que o Cervino. As seguintes
formavam um conjunto sombrio de rochas a pique e inacessíveis. Cavernas escancaravam
bocas imensas, negras como a consciência de Judas. De quando em quando avalanches de
rochas despencavam-‐se do alto e se abatiam no vale sem o mínimo ruído. Eram, pela
continuidade, inquietadoras, como se a Lua se tivesse desmoronando. Panorama trágico e
desolador. Pedraria bruta e revolta a erguer-‐se, em ânsias, buscando a abóbada fria,
indiferente, negra mortalha a lembrar-‐lhe a condição de astro morto, de cadáver insepulto.
Bill e Diana, avistavam-‐se com as montanhas de Doerfel, que tantas vezes
observaram no hemisfério sul da Lua. Como era decepcionante a realidade naquele astro
inocente e belo, que enche de [41] encanto e de poesia as noites da Terra. Lembrou-‐se Bill
das suas cidades subterrâneas e do seu povo assim forçado a viver para fugir ao seu
descontrolado clima. Ali naquelas cavernas, talvez, residisse o seu grande segredo.
Entretanto a desolada paisagem que o cercava valia por um desmentido. O chão, para bem
dizer, formava-‐se de lavas e cinzas vulcânicas Por todos os lados rochosas formações
despidas da mais leve camada de terra. Vegetação não existia, parecendo mesmo nunca ter
existido. Nenhum ser vivo por mais insignificante: Apenas um sol sem brilho, que parecia ser
sugado pelas próprias rochas. De distância em distância curiosas formações circulares, de
grandes proporções, erguiam muralhas a alturas espantosas. Percebia-‐se, de pronto, a
ligação daqueles fenômenos com a ação vulcânica e os efeitos de um rápido resfriamento da
crosta lunar. De mãos dadas Bill e Diana, puseram-‐se em movimento, procurando contornar
os montões de lavas e cinzas solidificadas, de arestas cortantes. Caminhos nunca existiram.
O solo um amontoado de escórias e rugas só comparáveis à superfície de uma pinha. A certa
altura achou-‐se Bill entre duas camadas distintas de lavas. Uma se dirigia do norte para o sul
e a outra em sentido inverso. A primeira explicava-‐se: partia das crateras que ficavam nas
montanhas à retaguarda. E a segunda? A própria lava era de natureza diversa. Parecia vidro
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e brilhava refletindo o sol. Mais uma arrancada, e galgaram o promontório assim formado. O
assombro encheu-‐lhes as almas. Ante à visão recuaram. Sob [42] os pés abria-‐se um abismo
a perder-‐se de vista, vindo das bandas de Tycho e cortando o vale formado pelas Montanhas
Doerfel. A largura calculava-‐se por três dezenas de quilômetros. O mais extraordinário era o
brilho que dele se irradiava, como se fosse constituído de vidro líquido. Mal refeitos do
espanto quedaram mais estupefatos ainda, quando descobriram outra fenda que partindo,
também, de Tycho dirigia-‐se rumo oposto depois de caminharem paralelas vários
quilômetros.
– São estes, disse Bill, os pontos luminosos avistados da Terra, e que intrigam os
sábios astrônomos. Lava vítrea e mais nada. – Deve ser isto mesmo, respondeu Diana.
Partem de Tycho, onde as radiações são visíveis. Entretanto as atenções de Bill, viravam-‐se
para as cavernas abertas nas escarpas de Doerfel. Resolveu transportar-‐se até lá. Por um
erro de concentração, ou por uma força superior, foram parar no mais profundo abismo da
montanha. Diante do ocorrido Bill não se mostrou contrariado. Aproveitou para certificar-‐se
das possibilidades de uma vida igual à da Terra, em tais circunstâncias: a existência de
camadas de oxigênio; vestígios de água; de vida animal ou vegetal mesmo nas suas mais
ínfimas espécies. Trabalho árduo e infrutífero. O fundo da voragem era apenas depósito de
incríveis camadas de rochas desprendidas das montanhas. De água nem vestígio e as
famosas nuvens de vapor aquoso, mera fantasia. A vida, enfim, não se manifestava em
nenhuma das suas formas. Nem um líquen, sequer, para quebrar a [43] monotonia dos
paredões acobreados e lisos como almas puras. Em determinado ponto Bill, que em sua
juventude trabalhara em campos de mineração, julgou descobrir vestígios do precioso
metal, o que vinha observando em outros pontos. Tomado de natural interesse entrou a
pesquisar o que lhe parecia inexaurível veio. Não foram longe os seus passos.
Interromperam-‐nos profunda greta que se abria no solo, formando um abismo dentro de
outro. A grande altura acima de sua cabeça, Bill divisou a abertura de enormíssima caverna.
Nada mais lhe restava fazer naquelas estéreis profundezas, onde não existia um só palmo de
terra como conhecemos. Restava-‐lhe, entretanto, a esperança de nas cavernas encontrar a
possível história do nosso satélite.
Por prevenidos que estivessem os dois terrícolas não puderam sopitar o assombro ao
se verem no pórtico monumental da caverna. Em confronto, as da Terra não passavam de
miseráveis tocas de ratos. No seu interior poderiam fazer evoluções várias esquadrilhas dos
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maiores e mais modernos aviões conhecidos. No pórtico caberiam, com folga, os mais altos
edifícios de New York!
Bill não precisava ser forte em geologia para perceber, à simples vista, a natureza
daquela caverna. As paredes de basalto, polidas como o mármore, pontilhadas por miríades
de cristais, faiscavam como estrelas de céu de inverno. Fantasmagoria de sonhos com
ressaibos de pesadelo. O piso era um rio de lava, vítrea, petrificado em pleno fastígio. E
sobre a lava [44] resplandecente os dois filhos da Terra, quedaram-‐se extáticos. Mas
também ali a natureza estava morta. O imenso túnel parecia não ter fim. Urgia explorá-‐lo.
Para ambos o assombro deveria ser um sentimento extinto. A caverna abria outro pórtico
para o interior da própria montanha, que, como todas as da Lua, era perfeitamente oca. O
vazio insondável abria-‐se se diante dos seus olhos. Estavam no interior de um vulcão!
Transidos de medo ergueram os olhos para o alto, onde de encontro ao céu rasgava-‐se o
gigantesco cone. Desejaram estar lá e, no mesmo instante, acharam-‐se no mais alto pico de
Doerfel. Admiração, espanto e medo foram sentimentos contraditórios em suas
maravilhadas almas ao surpreenderem o grande segredo do universo – a face oculta da Lua!
Maravilha das maravilhas! Por sobre as suas cabeças um astro maior do que o Sol brilhava
no espaço! Ocorreu-‐lhes a ideia de que, também, a Lua possuísse o seu satélite. Não
tardaram em reconhecer, no astro de esplêndida magnitude, a própria Terra! Diana quedou
emocionada diante da extraordinária realidade. Ver o seu próprio mundo a gravitar no
espaço! Não tardaram reconhecer, na face do novo astro, embora de forma imprecisa, os
contornos familiares do continente americano e as grandes manchas formadas por seus
mares.
O cume do Doerfel é um amontoado sinistro de rochas ígneas, em parte calcinadas
pela ação vulcânica dos primitivos tempos e, em parte, pelas fantásticas mutações de
temperatura. Dir-‐se-‐iam as caprichosas formações dos planaltos do Brockem, nas [45]
Montanhas do Harz, transportadas para lá. À direita erguia-‐se altíssima cordilheira formando
imponente maciço superior ao Dorfel. Não lhes foi difícil reconhecer o Leibinitz, ponto
culminante da Lua. O resto da paisagem lunar ajusta-‐se aos tipos: Grand Canyon e Kalahari,
sendo deste os chamados mares, como o Imbrium, enormíssima depressão de mais de
setenta quilômetros de diâmetro, coberta de cascalhos e blocos de rocha enegrecida, onde
jamais flutuou uma só gota d’água. Costumamos dizer que nada se cria e nada se perde,
tudo se transforma. Na Lua não acontece nenhuma destas coisas. É imutável através das
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idades. Nem o vento, nem a chuva prestam concurso à sua modelagem bizarra. Os únicos
artífices são o frio e o calor.
Vis-‐à-‐vis ao Doerfel estreito território, sulcado de fendas, limitava-‐se com a zona das
sombras. Tenebrosa escuridão despejava-‐se sobre aquelas paragens como a maldição de
Cain. Ali se ocultavam as mesmas formações caprichosas: montanhas, círculos, fendas e
mares e os terrenos pedregosos e áridos. Enfim – a morte e a desolação
Faltavam dois segundos para expirar o tempo concedido a Bill e Diana. Prepararam-‐
se os dois para o regresso ao planeta natal, convencidos de ser ele o melhor dos mundos.
Pela última vez contemplaram as silenciosas paragens e, melancolicamente, concluíram que
também os astros têm o seu destino e que a Lua é um cadáver sideral, errante entre as luzes
celestes. [46]
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Uma Noite de Horror
[47] Embora decorridos trinta anos, sobre o que vos relato agora, sinto, ainda,
percorrer-‐me a espinha um frêmito de mortal pavor ao recordar-‐me daquela estranha
aventura.
Por uma tarde escaldante de junho de 1901, exuberante de luz, descia eu, ao passo
tardo do meu cavalo, os abruptos pendores da Serra do Amambaí, em busca de Nioaque. O
sol, descambando por detrás dos elevados cerros, emprestava-‐lhes dourados reflexos. Ao
alcançar o vale, nos últimos contrafortes da cordilheira, era quase noite. Um vento morno,
soprando das bandas do planalto, pressagiava mau tempo. A noite caiu rápida, negra, e sem
estrelas. Na estreita vereda, entre cerradas matas, fustiguei o cavalo, que dava o máximo
das suas forças. Lúgubre gemia o vento nas altas ramas e do chão, em revoada, erguia-‐se a
folhagem seca, que, impiedosamente, me açoitava o rosto. A tempestade caíra com todo o
tenebroso cortejo.
Ao primeiro ribombo do trovão, ecoando nas queb