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11 FLÁVIA SANTOS GOMES A EDUCAÇÃO NAS OBRAS DE RAMON LLULL (1232 – 1316): UMA PROPOSTA PARA A SALVAÇÃO DAS ALMAS. Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciada em História. Orientadora: Profª. Drª. Adriana Maria de Souza Zierer

Monografia apresentada ao Curso de História da ... · pelo pecado original e pautava sua existência na busca do gozo das glórias do Paraíso no pós- morte. Assim, o Cristianismo

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FLÁVIA SANTOS GOMES

A EDUCAÇÃO NAS OBRAS DE RAMON LLULL (1232 – 1316): UMA PROPOSTA

PARA A SALVAÇÃO DAS ALMAS.

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do Maranhão,

como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciada em História.

Orientadora: Profª. Drª. Adriana Maria de Souza Zierer

12

São Luís

2007

13

GOMES, Flávia Santos

A Educação nas obras de Ramon Llull (1232-1316): Uma proposta para a salvação das almas/ Flávia Santos Gomes. – São Luís, 2007.

62 p.

Orientadora:Profª. Drª. Adriana Maria de Souza Zierer.

Monografia (Graduação) – Curso de História, Universidade Estadual

do Maranhão, 2007.

1. Idade Média. 2. Ramon Llull. 3. Educação. 4. Salvação.

CDU: 37:128

14

FLÁVIA SANTOS GOMES

A EDUCAÇÃO NAS OBRAS DE RAMON LLULL (1232 – 1316): UMA PROPOSTA

PARA A SALVAÇÃO DAS ALMAS.

Monografia apresentada ao Curso de História da Universidade Estadual do

Maranhão, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciada em História.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________

Orientadora

________________________________________

Examinador (a) 1

________________________________________

Examinador (a) 2

15

16

17

À minha amada

família, Francisco, Valdênia,

Francivaldo e Fabrícia.

18

Agradecimentos

A meus pais, responsáveis por quem me tornei e aos quais tudo devo, pelas

cobranças e incentivos, ao longo da minha vida.

Aos meus irmãos sem os quais a vida perderia o sentido.

Aos tios, tias, primos e primas, família maravilhosa, que sempre acreditaram em

mim e nos quais sempre busquei despertar os melhores sentimentos.

À Adriana Zierer, bem mais que professora e orientadora, pela persistência e

incentivos.

A todos os meus professores, do Instituto Divina Pastora, do SESI, do Liceu

Maranhense e da UEMA, dos quais busquei apreender as melhores lições e o exemplo de

ser um bom educador.

Ao Instituto de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, especialmente ao Prof.

Esteve Jaulente.

A Pro-Reitoria de Pesquisa da qual fui bolsista por dois anos.

A todos os amigos da turma do segundo semestre de 2002, e aos que a nós se

juntaram posteriormente, que fizeram com que os anos na Universidade passassem

rápido e agradavelmente.

À Josielle, sempre amiga e disposta a ajudar.

À Jovana, que já faz parte da família, a quem adotei de coração como filha.

Ao Jailson, por me proporcionar a paz que precisava na fase de conclusão o

curso.

Às afilhadas Rayssa e Shayanne e a sobrinha Alice, por me proporcionarem a

felicidade que só uma criança é capaz.

A todos os que torceram e torcem por mim, amigos, feitos ao longo da vida,

Elicídia, Jacira, Geovana, Elaine, Sandra, Fernanda, etc.

A Deus a quem todas a graças e louvores devo.

19

Há quem busque o saber por si mesmo,

conhecer por conhecer: é uma indigna

curiosidade.

Há quem busque o saber só para exibir-

se: é uma indigna vaidade. Estes não escapam

à mordaz sátira que diz: “Teu saber nada é, se

não há outro que saiba que sabes”.

Há quem busque o saber para vendê-lo,

por dinheiro ou por honras: é um indigno

tráfico.

Mas há quem busque o saber para

edificar, e isto é amor.

E há quem busque o saber para se

edificar, e isto é prudência.

(Sermão sobre o conhecimento e a

ignorância, Bernardo de Claraval, Séc. XI e

XII)

20

RESUMO

Cada sociedade tem intrínseca em sua estrutura um modelo educacional convergente

com a cultura, a mentalidade e a política. Na Idade Média, tendo-se como referência o

Ocidente, este arquetipo baseava-se no estudo das Artes Liberais e das Ciências, dirigindo-se

para o seguimento dos preceitos cristãos. Ramon Llull, filósofo catalão do século XIII elabora

em sua vasta obra, cerca de 250 livros, um projeto pedagógico que tinha como principal

função levar o homem à salvação, através do exercício da ‘Primeira Intenção’ – “Amar, Servir

e Adorar Deus” – uma vez que o conhecimento seria uma forma de levar a alma a um plano

superior, o divino, já que, na concepção medieval, era Deus a fonte de toda a sabedoria. Llull

propunha em sua obra uma reformulação da sociedade do período por acreditar que esta

passava por um momento de crise nos valores morais. Assim, sua proposta sugere uma

educação totalmente baseada nos preceitos cristãos, que aos infiéis (gentios, judeus e

muçulmanos) dar-se-ia por meio da conversão baseada na razão e aos fiéis do cristianismo,

através de uma educação voltada para a religião, instrução essa que deveria começar pelos

príncipes. é a proposta educacional Llulliana o alvo desta pesquisa, tendo como fontes: Vida

Coetânea, a partir da qual elaboramos uma breve biografia do autor, Livro da Ordem de

Cavalaria (1279-1283), Doutrina para Crianças (1274-1276), O Livro dos Mil Provérbios

(1302) e o Livro das Besta (1288-1289), que embora tenham sido elaborados para públicos

diferentes, convergem no que gere à construção de um Projeto Educacional, com a intenção

de conduzir o homem à salvação.

*

Palavras-Chave: Idade Média – Ramon Llull – Educação – Salvação

21

ABSTRACT

Each society has an intrinsic educational model in its structure converging to the

culture, mentality, and the politics. On the Medieval Age, as a reference of the Occident, this

issue was based on the study of the Liberal Arts and Sciences, directing it for the pursuing of

the Christian rules. Llull Ramon, Catalan philosopher of century XIII elaborates in his vast

workmanship, about 250 books, a pedagogical project that had as main function to take the

man to the salvation, through the exercise of “ First Intention “." Love, Serve and Adore God"

- a time that the knowledge would be a form to take the soul to a superior plan, the Holy

Ghost, since, in the medieval conception, the source of all was the wisdom of God. Llull

considered in its workmanship a reformulation of the society of the period for believing that it

passed for a moment of crisis in the moral values. Thus, its proposal suggests an established

education in the Christian rules totally, that to the infidels (heathen, Jewish and Muslim)

would be given by means of the conversion based on the reason and to the ones who were

loyal to the Christianity, through an education toward to the religion, instruction that would

have to start by the princes. the target of this research is the proposal educational Llulliana,

having as sources: Coetânea life, from which we elaborate one brief biography of the author:

Book of the Order of Cavalry (1279-1283), Doctrine for Children (1274-1276), the Book of A

thousand Sayings (1302) and the Book of the Crossbow (1288-1289), that even so they have

been elaborated for different public, they converge to the construction of an Educational

Project, with the intention to lead the man to the salvation.

*

Key-Words: Average Age - Llull Ramon - Education - Salvation

22

ÍNDICE DE FIGURAS

Nº REFERÊNCIA Pág.

1 Detalhe Iluminura 1. Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum

Handschrift der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der

Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur 15

2 Detalhe Iluminura 1. Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum

Handschrift der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der

Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur 16

3 Detalhe Iluminura 4. Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum

Handschrift der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der

Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur 17

4 Detalhe Iluminura 9. Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum

Handschrift der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der

Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur 20

5 Detalhe Iluminura 9. Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum

Handschrift der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der

Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur 20

6 Iluminura 10. Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum

Handschrift der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der

Klosterbibliothek Sankt Peter Signatur 21

7 Iluminura 8. Breviculum ex artibus Raimundi Lulli electum Handschrift

der Badischen Landesbibliothek Karlsruhe aus der Klosterbibliothek

Sankt Peter Signatur 22

8 Disputatio. Livro dos Estatutos do Colégio da Sabedoria, fol. 39r, Arq. da Univ. de Freiburg. 25

9 Herrad von Landsberg. O Círculo da Filosofia. Hortus deliciarum, O

Jardim das Delícias (século XII) 32

10 Fra Angélico. O Juízo Final. Detalhe do Inferno (c.1432-1435). Museo di San Marco, Florença.

36

11 Fra Angélico. O Juízo Final. Detalhe do Paraíso (c.1432-1435). Museo di San Marco, Florença.

37

12 Livro das horas de Branca de Borgonha ou Horas de Savóia. New Haven (Conn), Beinecke Rare Library, Universidade Yale. Século XIV

38

13 Codex Manesse. Berslau. Grande Livro de Canções manuscritas de Heidelberg

39

14 Hieronymus Bosch. Os Sete Pecados Capitais (c. 1490). Museu do Prado. Madrid. 49

15 Codex Manesse. Rei Wenzell (1271-1305) Von Böhmem. Grande Livro de Canções manuscritas de Heidelberg

52

16-17 Grandes Crônicas da França. Iluminura. Anterior a 1380. Biblioteca

Nacional de Paris 53

23

ÍNDICE DE QUADROS

Nº. Referência Fonte Pág.

1

COSTA,Ricardo. Ramón Llull

(1235 - 1315) e o modelo cavaleiresco V.

ibérico inserido na mentalidade

cruzadística. In. www.ricardocosta.com

- O Livro da Ordem de

Cavalaria 44

2

- Doutrina para

Crianças

- O Livro dos Mil

Provérbios

47

3

- Doutrina para

Crianças

- O Livro dos Mil

Provérbios

48

4

ZIERER, Adriana. “Paraíso versus

Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem

Medieval em Busca da Salvação da Alma

(Século XII)”. In: FIDORA, Alexander e

PASTOR, Jordi Pardo (coord). Expresar lo

Divino: Lenguage, Arte y Mística.

Mirabilia. Revista de História Antiga e

Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro

de Filosofia e Ciência Raimundo

Lúlio/J.W. Goethe-Universität

Frankfurt/Universitat Autònoma de

Barcelona, v.2, 2003.

- Visão de Túdalo 50

5

GOMES, Flávia Santos.

Doutrina para Crianças: Um manual de

Salvação Llulliano. In.Anais [do] VI

Encontro Internacional de Estudos

Medievais/coordenação gera: Angelita

Visalli e Terezinha Oliveira. –

Londrina: ABREM/UEL/UEM, p. 448.

- Doutrina para

Crianças 51

24

SUMÁRIO Página

INTRODUÇÃO 11

1. RAMON LLULL: UMA BREVE BIOGRAFIA................................................15

1.1. A Conversão .................................................................................................15 1.2. Martírio e Peregrinação: A Busca da Purificação ......................................16 1.3. O Intelectual: Formação e Composição da Arte..........................................17 1.4. A Divulgação da Arte na Universidade de Paris .........................................20 1.5. Ramon Llull e o Mundo Islâmico ................................................................21 1.6. A segunda visita a Corte Romana e Parisiense ...........................................24

2. A EDUCAÇÃO NA IDADE MÉDIA EM DOUTRINA PARA

CRIANÇAS (1274-1276) DE RAMON LLULL..................................................25 3.1. Doutrina para Crianças.................................................................................30

3. EDUCAÇÃO E SALVAÇÃO NA VISÃO DE RAMON LLULL .....................35

3.1. O Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283) ................................................39 3.2. Doutrina Para Crianças (1274-1276) e O Livro dos Mil Provérbios

(1302) ............................................................................................................45 3.3. Livro das Bestas (1288-1289) ........................................................................52

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................58

REFERÊNCIA 59

INTRODUÇÃO

Na Idade Média o cristianismo foi o fator preponderante na formação da sociedade,

revelando-se em todas as estruturas humanas. O homem medievo via-se como eterno culpado

pelo pecado original e pautava sua existência na busca do gozo das glórias do Paraíso no pós-

morte. Assim, o Cristianismo configurava-se uma religião baseada na idéia de salvação.

Para tanto o homem do período medieval tinha que viver de acordo com os preceitos

da Igreja Católica, evitando diariamente os vícios que o condenariam à danação eterna e

25

exercitando as virtudes criadas por Deus, que o levariam ao convívio com Ele, e

conseqüentemente á salvação eterna.

Logo, era necessário que o homem se preparasse para a morte, que ocupava espaço

privilegiado na mentalidade medieval, para qual todos os homens deveriam estar a espera,

pois era vista como uma viagem do mundo terreno (de pecado) para o além, onde se daria

para os bons cristãos o encontro com Deus.

Na incessante busca da salvação era conveniente ao homem, sempre “fraco, vicioso e

humilhado perante Deus” resistir aos pecados que o condenariam aos tormentos eternos e

pagar por suas faltas, em vida, através de martírios, peregrinações e penitências.

Ramon Llull (1232-1316), filósofo que representa a mentalidade medieval, nasceu em

Maiorca, Catalunha, por volta de 1232, homem pertencente à nobreza, casado e com filhos

dedicou-se à arte de trovar até os trinta anos quando teve por cinco vezes a visão de Cristo

crucificado e receber a iluminação de que deveria dedicar sua vida a serviço de Deus.

Suas obras têm caráter educacional-catequético com finalidade de converter os infiéis

e guiar os cristãos a uma boa conduta para que pudessem alcançar a salvação, traduzindo as

representações necessárias para compreender a Idade Medieval. Nelas estão bem distintas as

características sociais, culturais e ideológicas do período, possibilitando, portanto, a

compreensão de suas estruturas.

É o projeto pedagógico empreendido por Llull o interesse deste trabalho. Seu método

visava o estudo das letras e das ciências, mas, tinha como finalidades estruturar uma

sociedade ordenada e norteada pela fé católica, e, principalmente, levar o homem para perto

de Deus, fonte de toda sabedoria, conduzindo-o à salvação.

Esta pesquisa desenvolve-se no campo da História do Imaginário, que é um

prolongamento da História das Mentalidades, desenvolvida pela 3ª Geração dos Annales.

Embora existam muitas similaridades entre História das Mentalidades e História do

Imaginário, notam-se diferenças:

A História das Mentalidades está muito associada à idéia de que existe em qualquer sociedade algo como uma ‘mentalidade coletiva’, que para alguns seria uma espécie de estrutura mental que só se transforma muito lentamente, às vezes dando origem a permanências que se incorporam aos hábitos mentais de todos os que participam da formação social (apesar de transformações que podem estar se operando rapidamente nos planos econômicos e político). A história do Imaginário não se ocupa propriamente destas longas durações nos modos de pensar e de sentir, mas sim da

26

articulação das imagens visuais, verbais e mentais com a própria vida que flui em uma determinada sociedade.1

Assim, enquanto a História das Mentalidades busca captar modos coletivos de sentir,

os padrões de comportamento e as atitudes recorrentes, a história do Imaginário volta-se para

objetos mais definidos: um determinado padrão de representações no repertório de símbolos e

imagens com a sua correspondente interação na vida social e política, como papel político ou

social de certas cerimônias ou rituais.

De acordo com Sandra Pesavento o Imaginário é o “sistema de idéias e imagens de

representação coletiva que os homens construíram para si, dando sentido ao mundo”2.

Para Le Goff, “até o mais prosaico dos documentos pode ser comentado, quer na

forma quer no conteúdo em termos de imaginário”, ou seja, todos os documentos são fontes

para as pesquisas sobre o imaginário3.

O período estudado nesta pesquisa é denominado por Hilário Franco Jr.4 como fim da

Idade Média Central (XI - XIII) e início da Baixa Idade Média (XIV - meados do XVI), sendo

o maior enfoque dado aos séculos XIII e XIV, nos quais Ramon Llull viveu (1232 – 1316).

O século XII foi visto pelos medievalistas como um século de renovação, fenômeno

designado Renascimento do Século XII, no qual foi notável o crescimento demográfico,

econômico, geográfico, das estruturas sociais e dos sistemas políticos, acompanhados de um

desenvolvimento cultural e intelectual e da inovação das instituições e dos métodos

educacionais5.

O tema abordado é o projeto pedagógico empreendido por Ramon Llull que tem como

finalidade a salvação das almas. A temática educação medieval, por muito tempo

negligenciada, tem ocupado um significativo espaço nas produções acerca da História

Medieval, principalmente a partir da segunda metade do século XX, com estudos sobre a

Universidade – instituição criada pelos medievos – o sistema de ensino, os intelectuais, a

organização escolar, os métodos pedagógicos, etc.

1 BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: especialidades e abordagens. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 94. 2 PESAVENTO, Sandra. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 43. 3 LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p.13. 4 FRANCO JR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. – 2ª ed. ver. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001. 5 VERGER, Jacques. Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. Trad. Viviane Ribeiro. São Paulo: EDUSC, 2001, p. 23.

27

Para Le Goff esta evolução escolar está intrinsecamente ligada ao florescimento das

cidades, a partir do século X, que propiciou o ‘nascimento’ de um grupo de intelectuais

voltados para a argumentação, a ciência e a crítica6.

Lízia Helena Nagel, defende que a concepção de homem de cada período está

intrinsecamente ligada à proposta educativa empreendida pela sociedade em questão. Assim,

o empreendimento pedagógico proposto por Llull, é de inestimável importância para

compreensão do modelo humano da Idade Média7.

Le Goff afirma que em nenhum outro tempo histórico houve um “modelo humano”

tão bem definido como na Idade Média. Para ele, este modelo era o do homem cristão8, logo,

era natural que a educação empreendida tivesse como intuito a formação de um homem

pautado na fé cristã e seguidor dos preceitos da Igreja Católica. Para tanto, tomaremos como

fontes as obras: Vida Coetânea, a partir da qual elaboramos uma breve biografia do autor,

Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283), Doutrina para Crianças (1274-1276), O Livro

dos Mil Provérbios (1302) e Livro das Bestas (1288-1289), nos quais, buscamos analisar a

proposta pedagógica empreendida por Ramon Llull.

Ramon Llull nasceu na ilha de Maiorca na Catalunha – Península Ibérica – em 1232,

logo após a reconquista, por Jaime I, do território que estava sob domínio árabe. Após a

retomada, sobreviventes mulçumanos permaneceram na ilha, em geral na condição de

escravos, exceto os que contribuíram para a conquista cristã.

É notável o desenvolvimento intelectual da Espanha neste período, bem como a

contribuição dos mouros para seu o enriquecimento científico, uma vez que o contato com os

árabes propiciou o ‘descobrimento’ de obras helênicas pelos Ocidentais. Além de cristãos e

mulçumanos, viviam também judeus, embora fossem em menor número.

A Península Ibérica, em especial a Espanha foi um centro de compilação, tradução e

divulgação das obras helênicas de matemática, física, lógica, ética e principalmente filosofia,

assim como de manuscritos orientais de aritmética, álgebra, medicina, astronomia, botânica,

agronomia, alquimia e filosofia9.

Llull conviveu simultaneamente com muçulmanos e judeus, em um território e período

de notável desenvolvimento cultural, fato que contribuiu para que ele fizesse da conversão

6 LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: José Olímpio, 2006, p. 26. 7 NAGEL, Lízia Helena. Paganismo e Cristianismo: Concepção de Homem e Educação. In. OLIVEIRA, Terezinha (org.) Luzes sobre a Idade Média. Maringá: Eduem, 2002, p. 35-45. 8 LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 9 LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: José Olímpio, 2006, p. 26.

28

dos ‘infiéis’10 uma de suas principais metas, embora, suas obras não sejam destinadas

unicamente a este público.

Chegaram aos nossos dias em média 250 obras de autoria de Ramon Llull, que tratam

dos mais diversificados temas, todos relacionados ao imaginário do medievo e que no Brasil

tem sido traduzidas e divulgadas pelo Instituto de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio.

Em geral, as obras de Llull têm caráter educacional-catequético, voltado para a

salvação das almas e a conversão dos infiéis11, convergindo sempre para a Primeira Intenção –

“conhecer, amar e servir a Deus”.

10 Em suas obras Llull denomina ‘infiel’ qualquer homem não cristão. 11 LLULL, Ramon. Vida Coetânea. (Trad. Ricardo da Costa) publicado na Internet: http: www.ricardocosta.com/vita.htm. Trad. Da edição de Gret Schib. Barcelona: Editorial Barcino, 1972.

29

1. RAMON LLULL: UMA BREVE BIOGRAFIA. 1.1. A Conversão

Ramon Llull nasceu em Maiorca em 1232, membro de uma família que gozava de um

considerável status e que possuía ligações com a corte de Jaime I, por ter participado da

retomada da ilha em 1229, que até então se encontrava sob domínio mulçumano. Por tal feito

a família de Llull recebeu concessões territoriais, integrando a nobreza maiorquina.

Pouco se sabe da vida de Llull até a idade de 30 anos, quando se deu sua conversão.

Em sua autobiografia, Vida Coetânea (1311)12, ela fala muito brevemente desta fase de sua

vida, dizendo somente que ocupava função de senescal e majordono do rei de Maiorca e que

se dedicava à arte de trovar.13

No entanto sabe-se que Llull casou-se com Blanca Picany em 1257 e teve dois filhos,

Madalena e Domingos. 14

Figura 1

Detalhe da Iluminura 1 do Breviculum

15 de Ramon Lluul.

Por volta de 1263, Ramon que se considerava um pecador. Após ter visto por cinco

vezes consecutivas a imagem de Cristo crucificado (Figura 1) em seu quarto enquanto

12 “Existem duas versões da Vida Coetânea, uma em latim e outra em catalão. A primeira é considerada mais autentica, a segunda possui detalhes adicionais (principalmente geográficos) e provavelmente foi traduzida do latim no século XV”. COSTA, Ricardo da. “Apresentação”. In. LLULL, Ramon. O Livro da Ordem de Cavalaria. São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2000. Utilizarei a tradução do Prof. Ricardo da Costa, traduzida para o português da edição em latim. 13 LLULL, Ramon. Vida Coetânea. (Trad. Ricardo da Costa) publicado na Internet: http: www.ricardocosta.com/vita.htm. Trad. Da edição de Gret Schib. Barcelona: Editorial Barcino, 1972, 2. 14 GAYÁ, Jordi. Biografía de Ramon Llull (con una cronología). http://space.virgilio.it/[email protected], II. 15 O Breviculum é uma versão menor de uma antologia de obras de Llull chamada Electorium feita por Thomas le Myésier (†1336), seu discípulo, doutor em medicina e cônego de Arras.

30

compunha uma ‘canção vã’ a uma dama por quem estava enamorado ‘com amor vil e

feiticeiro’, entendeu que tal visão tratava-se de um chamado divino.

A descrição mais detalhada de sua vida dar-se-á a partir das tais visões que o levaram

a uma vida dedicada à causa cristã, para qual formulou três propósitos:

1) Colocar sua vida para honra e glória de Jesus Cristo.

2) Fazer livros, “uns bons e outros melhores”, sucessivamente, contra os erros dos infiéis.

3) Fazer construir e edificar diversos mosteiros, onde homens sábios e literatos

estudassem e aprendessem a língua árabe e de todos os outros infiéis para que

pudessem predicar e manifestar entre eles a verdade da santa fé católica.

Ramon considerava infiéis todos os que professavam uma fé diferente da cristã. Mas

em sua missão dedicou especial atenção aos muçulmanos, fato que se explica pela ligação de

Llull com eles, uma vez que mesmo após a reconquista de Maiorca, muitos muçulmanos

continuaram vivendo na Ilha, num total de 50 mil habitantes, que representava cerca de 40%

da população da ilha islâmica e havia em média 3 mil judeus. 16

1.2. Martírio e Peregrinação: A Busca da Purificação

Figura 2

Detalhe da Iluminura 1 do Breviculum de Ramon Llull

16 JAULENT, Esteve. Introdução. In. LLULL, Ramon. O Livro do Gentio e dos Três Sábios. Rio de Janeiro: VOZES, 2001, p.10.

31

Após ter definido suas finalidades, Llull, inspirado pela vida de São Francisco vendeu

seus bens, deixando apenas o suficiente para o sustento de sua família e pôs-se a um período

de peregrinação ao santuário mariano de Rocamador, no sul da França, e à Santiago de

Compostela (ilustração na figura 2).

A peregrinação na Idade Média era considerada como uma forma de martírio, como

função de extirpar o pecado do corpo através do sacrifício, levando a alma à purificação.

A caminhada aos locais santificados pela presença de Cristo, dos apóstolos ou dos

santos podia levar semanas ou meses e as rotas não ofereciam seguranças aos fiéis, uma vez

que estavam repletas de provações, obstáculos e dificuldades. 17

O perigo de morte oferecido pelas viagens dos peregrinos, configurava-se como um

bem, uma vez que morrer a caminho ou nos lugares santos era uma forma de alcançar um

lugar no paraíso. 18

O martírio significou para Ramon um momento de mudanças de hábitos, de total

abandono da vida anterior, marcada pelo pecado. No início de boa parte de as suas obras Llull

se declara um pecador, em Vida Coetânea, ao que tudo indica ele cometia adultério, pois na

passagem que afirma “compor canções vãs a uma dama a quem amava com amor vil e

feiticeiro”, parece não ter sido para sua esposa.

1.3. O Intelectual: Formação e Composição da Arte

Figura 3

Detalhe da Iluminura 4 do Breviculum de Ramon Llull.

17 LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2005, p.127-131. 18 SOT, Michel. “Peregrinação”. In. LE GOFF, Jacques e SHIMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p.354.

32

Passado o período inicial de peregrinação que se prolongou até por volta de 126519,

Llull passou a dedicar-se aos estudos, uma vez que, segundo suas palavras, era iletrado, pois

teve na juventude uma educação deficitária, tendo aprendido apenas um pouco de gramática.

Para trabalhar no propósito da conversão dos infiéis comprou um escravo mouro para ensiná-

lo a língua árabe.

Este período de formação durou mais ou menos nove anos, nos quais também se

dedicou à formulação de seu método lógico que provasse a existência de Deus e da Trindade e

a verdade da fé cristã.

Como os demais intelectuais do período, Ramon buscou fundamentação de sua Arte,

principalmente na Bíblia, nos Padres, Platão e Aristóteles, sem, no entanto, negligenciar os

estudos dos árabes, influência regularmente encontrada em suas obras.

Em Vida Coetânea Ramon deixa clara sua preocupação com a educação, que será um

dos principais temas bordado em sua vasta obra, principalmente no que gere a importância

dada ao seu período de formação, que seria a base para o cumprimento de seus propósitos.

Llull encerra a narração do seu período de formação descrevendo o atentado que

sofrera por parte do seu escravo mouro, por quem teria sido alvejado com um golpe de faca.

Nesta passagem fica clara a compaixão e gratidão de Llull para com o escravo por tê-

lo servido como mestre, mesmo após atentar contra sua vida Llull impede que o matem e o

manda para o cárcere até que decida a punição adequada que destinaria ao mouro, como

podemos perceber no fragmento abaixo, no qual Ramon pede inspiração a Deus sobre a forma

como deveria agir com o mouro:

Partiu à Nossa Dona de Real para pregar a Nosso Senhor Deus que Lhe inspirasse o que faria com o dito mouro. E como houvesse feito ali orações por três dias, e estivesse muito maravilhado que seu espírito não descansava em dar-lhe morte ou vida, antes estava naquela mesma perplexidade, com grande tristeza retornou à sua casa; e, quando passou pelo cárcere onde o cativo estava, descobriu que o dito cativo estava pendurado com a corda com que estava preso. Deu então graças a Nosso Senhor o dito reverendo mestre, que Lhe havia tirado daquela grande perplexidade, pelo qual tanto Lhe havia suplicado.20

19 GAYÁ, Jordi. Biografía de Ramon Llull (con una cronología). http://space.virgilio.it/[email protected], II. 20 LLULL, Ramon. Vida Coetânea. (Trad. Ricardo da Costa) publicado na Internet: http: www.ricardocosta.com/vita.htm. Trad. Da edição de Gret Schib. Barcelona: Editorial Barcino, 1972, 13.

33

Após o incidente com o mouro, Ramon retira-se para o Mote Randa, com a intenção

de “pregar e servir” a Deus, é quando em estado de contemplação recebe a iluminação divina,

“dando-lhe a ordem e a forma de fazer os referidos livros contra os erros dos infiéis”21.

A partir de então Llull inicia sua grande produção literária, cerca de 300 obras das

quais 280 foram preservadas. Ao conjunto de obras escritas por inspiração divina Llull chama

de Arte:

A Arte é um sistema argumentativo baseado nas relações necessárias que se dão entre os princípios que constituem a realidade, que, na opinião do maiorquino, são os mesmos — embora em combinações e imensidades diferentes — para tudo o que existe, desde Deus, suprema Realidade, até a realidade mais ínfima. Estas relações obedecem a certas leis ou razões necessárias que permitem fundamentar um modo de argumentar que se apoia na realidade tal como ela é e não nas consistências mentais que a realidade pensada pode oferecer. Uma breve explicação sobre os pressupostos em que se baseiam estas razões necessárias sintetizará de alguma maneira a original Teoria de conhecimento do Doutor Iluminado.22

Não há na vida de Ramon um período específico de dedicação à composição da Arte,

sendo elaborada desde o período de formação e não finda com a sua pregação e peregrinação

ao mundo islâmico.

As primeiras composições datam de 1271-1274, sendo elas a Lógica de Gatzel, em

versão metrificada e o Livro da Contemplação de Deus, que foram escritos primeiro em árabe

e posteriormente em latim.

A produção literária de Llull passa por mudanças no decorrer de sua elaboração23.

Podemos destacar entre elas:

1. Ars Abreujada d’atrobar veritat – Primeira designação dada à Arte Luliana, busca

provar a verdade da existência de Deus.

2. Ars Universalis – Puramente aristotélica dedicada aos princípios da Teologia,

Filosofia, Direito e Medicina.

3. Ars Notatoria – Busca um sistema para reduzir simbolicamente o processo discursivo.

4. Ars Demonstrativae – Que serve de comentário. Pautada na teoria dos quatro

elementos, baseada na física aristotélica e medieval.

21 Idem, 14. 22 JAULENT, Esteve. “Introdução”. In. LLULL, Ramon. O Livro do Gentio e dos Três Sábios (1274-1276). Rio de Janeiro: Vozes, 2001, p. 17. 23 GAYÁ, Jordi. Biografía de Ramon Llull (con una cronología). http://space.virgilio.it/[email protected], IV-VII.

34

5. Art Inventiva – Baseada no sistema combinatório de três elementos. Caracterizada pela

tentativa de facilitar a compreensão de sua Arte.

6. Ars Generalis Ultima – preocupação com a lógica e com problemas tais como as

Cruzadas. Filosoficamente as obras aderem uma conotação anti-averroístas.

Llull também elabora obras nas quais aborda as temáticas de crítica e reformulação

social (O Livro da Ordem de Cavalaria), pedagogia (Doutrina para Crianças) e política (O

Livro das Bestas), que em geral possuem forte caráter catequético.

Segundo Ricardo da Costa, a Arte luliana possui cinco usos24:

1. Conhecer e amar a Deus;

2. Unir-se às virtudes e odiar os vícios;

3. Confrontar opiniões errôneas dos infiéis por meio das razões convincentes.

4. Formular e resolver questões e;

5. Poder adquirir outras ciências em breve espaço de tempo e tirar conclusões necessárias

segundo as exigências da matéria.

1.4. A Divulgação da Arte na Universidade de Paris

Figura 4 Figura 5

Detalhes da Iluminura 9 do Breviculum de Ramon Llull

24 COSTA, Ricardo da. “Apresentação”. In RAMON LLULL. Livro da Ordem da Cavalaria. (Trad. Costa Rio). São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2000, p. XXIV-XXV.

35

Em 1287 Ramon vai à corte papal solicitar que sejam construídos mosteiros onde seja

ensinada a língua moura aos clérigos para que estes, mais eficazmente, trabalhem na

conversão dos infiéis e na expansão da fé cristã. No entanto, a chegada de Llull coincide com

a morte do Papa Honório IV. É a partir de então que se dá a entrada de Llull no cenário

político europeu que até então se restringia à Maiorca.

Na mesma ocasião Llull dirige-se à França onde visita à corte de Felipe IV25, O Belo e

lê publicamente sua Arte, na Universidade de Paris, ocasião em que recebe críticas pela

complexidade do seu método.

Este episódio frustra o filósofo, uma vez que Paris é considerada como centro de

desenvolvimento intelectual, por esse motivo promoveu então uma vasta revisão de sua obra

em Montpellier, encerrando a primeira fase de construção da Arte, chamada Arte

Demonstrativa, e iniciando a produção da Arte Inventiva.

1.5. Ramon Llull e o Mundo Islâmico

Figura 6

Iluminura 10 do Breviculum de Ramon Llull.

25 Figura 4. Neste fragmento do Breviculum 9 está representado o encontro de Llull com Felipe IV.

36

Após o período inicial de composição de suas obras Llull pôs-se à missão de viajar o

mundo islâmico a fim de divulgar sua Arte e trabalhar na conversão dos infiéis. Inspirado pela

concepção de santo que se tinha neste momento.

No século XIII, o ideal de santidade deixou de ser o homem que se isolava nos

mosteiros parar orar por sua salvação e pela dos demais, o monge, passando a ser o apóstolo,

do “pregador itinerante” como é o caso de São Francisco e São Domingos26.

Sua primeira viagem foi a Túnis, em dezembro de 1293, onde Llull procurou por um

literato islâmico com finalidade de travar um debate27 para provar qual fé possuía verdade, a

de Maomé ou a Cristã. A viagem de Ramon a Túnis e o debate com os sábios mouros é

retratada na imagem 8 do Breviculum. (Figura 7)

Figura 7

Iluminura 8 do Breviculum de Ramon Llull.

Em vida Coetânea Ramon Llull narra como se deu o debate:

Acomodaram-se todos os mouros conhecedores que se encontravam diante da cidade de Túnis, alegando as mais fortes razões que sabiam e podiam em sua seita; e como o dito reverendo mestre facilmente respondeu e satisfez a eles, todos estavam espantados e maravilhados, e por isso ele começou a falar e dizer assim: “- Convém manter aquela fé e crença (a cristã) a qualquer homem sábio e letrado, qual majestade divina, a qual cada um de vocês crê e outorga, atribuindo maior honra, bondade, poder, glória e perfeição, e todas estas coisas em maior igualdade e concordância; e assim mesmo aquela fé e crença (a cristã) deve ser mais exaltada e mantida a qual

26 VAUCHEZ, André. O Santo. In. LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p.219. 27 O debate com sábios de outras religiões é um fato marcante na trajetória de Lúlio, fato veemente enfatizado em O Livro do Gentio de dos Três Sábios.

37

entre Nosso Senhor Deus e o seu efeito possua maior concordância e conveniência. E, como eu entendo, pelas coisas propostas a mim por vocês, que todos vocês que têm a seita de Maomé não entenderam que nas dignidades divinas existem atos próprios intrínsecos e eternos, sem os quais as dignidades divinas são ou seriam ociosas ab aeterno (assim como na bondade de Deus podemos dizer bonificativo, bonificável e bonificar, e em magnificência, magnificativo, magnificável e magnificar, e assim das outras dignidades semelhantes; e, por conseguinte, seria colocar ab aeterno ociosidade em Deus, a qual coisa seria blasfêmia, e contra a igualdade e concordância a qual realmente existe em Nosso Senhor Deus); e por isso, por esta razão, os cristãos provam que a trindade de pessoas existem na essência divina”. “A qual coisa provo necessariamente: outro dia ouvi dizer que foi revelado a um certo ermitão, ao qual divinamente foi inspirada certa Arte para demonstrar por vivas razões como na simplicíssima essência divina há trindade de pessoas. As quais razões e Arte, se com pensamento repousado quisessem escutar, ouviriam claramente não tão somente as coisas ditas acima, mas ainda como a segunda pessoa está unida de uma maneira razoável na natureza humana, e como na humanidade muito razoavelmente há paixão sustentada pela Sua grande misericórdia, pelos pecadores entre nós, pelo pecado de nosso primeiro pai, e para trazer-nos à Sua glória e beatitude, pela qual ultimamente temos estado criados.” E, como finalmente o dito reverendo mestre com as ditas razões começou a ilustrar os pensamentos e entendimentos dos ditos infiéis, seguiu-se que um dos ditos infiéis, pensando que se aquelas razões tão altas, tão maravilhosas e tão necessárias fossem manifestadas, a sua seita viria a ser totalmente exterminada e destruída, denunciou as coisas acima ditas ao seu rei, requerendo que o dito cristão morresse uma morte cruel. E, sobre as coisas ditas acima, o dito rei convocou seu conselho, que determinou aqui, pela maioria, que o dito reverendo mestre devesse morrer. 28

Os debates, minuciosamente respaldado pela lógica, eram um acontecimento freqüente

na Idade Média, uma vez que através deste era possível provar a veracidade dos seus

argumentos. Ao final do estudo de uma determinada ciência dava-se o debate que provava que

o aluno dominava tal conhecimento29.

Neste fragmento Llull denomina seu discurso mais verdadeiro que o dos sábios

islâmicos, que temerosos com a possibilidade de que Llull possa provar para mais pessoas a

superioridade de verdade da fé católica ante a moura, para evitar este feito, ordenam que o

maiorquino seja morto, fato que não se concretiza devido à intervenção de um sábio mouro.

Em breve passagem por Nápoles Ramon lê publicamente sua Arte, passando ainda por

Gênova, Paris, Chipre e Famagusta, enquanto esperava a eleição do Papa.

28 LLULL, Ramon. Vida Coetânea. (Trad. Ricardo da Costa) publicado na Internet: http: www.ricardocosta.com/vita.htm. Trad. Da edição de Gret Schib. Barcelona: Editorial Barcino, 1972, 26-28. 29 COSTA, Ricardo da. Em mini-curso, “Educação na Idade Média: Ramon Llull e as Sete Artes Liberais”, realizado na Universidade Estadual do Maranhão de 29 de agosto a 01 de setembro de 2006.

38

É necessário fixar que nas viagens de Llull a terras mouras há uma forte busca pelo

martírio, e que ele se põem por várias vezes em perigo de morte, uma vez que na mentalidade

medieval, morrer nessas condições era garantia de salvação.

1.6. A segunda visita a Corte Romana e Parisiense.

Dá-se então a segunda visita de Llull à corte romana, após a eleição do Papa Clemente

V (5 de julho de 1294), no entanto os pedidos do maiorquino não são recebidos com atenção.

Insatisfeito com o não acolhimento de seus pedidos por parte do Papa e dos reis,

especialmente Felipe IV, Llull escreve em 1295 o Desconsolo, na qual narra seu encontro

com um eremita para quem chora o fato dos ‘homens de poder’ não se disponibilizarem a

atender ao seu pedido de construir mosteiros onde fosse ensinada a língua moura para que os

clérigos trabalhem na conversão dos infiéis.

Mesmo com as constantes viagens, Llull não deixou de produzir suas obras, que

acreditava ser o meio de conversão dos infiéis e salvação dos homens. Para tanto, na

passagem por centros de compilação Ramon mandava fazer cópias de suas obras para que

fossem mais divulgadas e servissem para o propósito salvação dos homens.

Nesta altura da vida Llull com a idade já avançada, principalmente se levarmos em

conta a perspectiva de vida do período, utiliza uma narrativa com um certo tom de

lamentação, pelo não cumprimento de seus intuitos, alguns delimitados desde conversão e

outros adquiridos no decorrer de sua missão, como é o caso da luta contra o averroísmo e a

retomada da terra santa através do movimento cruzadístico.

As passagens aqui registradas são só algumas das tantas realizadas por Ramon ao

longo dos mais de cinqüenta anos de sua vida dedicados à defesa veemente do cristianismo.

Mesmo com a constante busca pelo martírio é provável que a morte de Llull tenha se

dado no Mosteiro de Miramar, único que Llull conseguira fundado por ele para servir ao

propósito de ensinar aos clérigos a língua moura, para trabalharem na conversão dos infiéis

para Maiorca, antes de março de 1316. Seu corpo fora enterrado no convento franciscano da

cidade de Maiorca.

39

2. A EDUCAÇÃO NA IDADE MÉDIA EM DOUTRINA PARA CRIANÇAS (1274-

1276) DE RAMON LLULL

Figura 8

Disputatio. Livro dos Estatutos do Colégio da Sabedoria, fol. 39r, Arq. da Univ. de

Freiburg.

É rotineiro, até hoje, mesmo nos cursos de Graduação em História, o pensamento que

o conhecimento, na Idade Média era monopolizado pela Igreja, e por ela proibido a qualquer

pessoa fora de seu meio. No entanto, o que se percebe, lançando um olhar um pouco mais

acirrado sobre o período, é que a Igreja, caracterizou-se durante este período como a

preservadora e mesmo propagadora do conhecimento antigo.

A aparentemente simples compilação de textos antigos, tão negligenciada pelos

renascentistas, foi responsável pela preservação da cultura clássica. Sem o esforço desmedido

de mestres como Boécio, que se impôs o projeto de salvar tal conhecimento na ocasião das

invasões bárbaras, nos seria impossível o conhecimento de por exemplo Platão e Aristóteles.

O que se propõe nesta pesquisa é um novo olhar à questão educacional da Idade

Média, que longe das perspectivas atuais, tinha como intenção não só a difusão do saber

científico, mas seu atrelamento a uma educação moral, que fazia parte de um projeto maior,

na mentalidade do período. Integrava a proposta de uma educação que conduzisse o homem a

um convívio harmônico, para alcançar, após a morte, a restituição, muitas vezes de uma vida

de sacrifício e abnegação, no Paraíso, gozando do convívio de Deus.

No entanto, não é a sobressaltada atenção dada ao pós-morte que abstém a sociedade

medieval de um currículo educacional. O currículo adotado na Idade Média era o das Artes

Liberais, esta nomenclatura deve-se ao fato de na Antiguidade Clássica só os homens livres

40

poderem se dedicar aos estudos destas artes, enquanto os escravos deveriam dedicar-se às

artes mecânicas.

Na Idade Média as Artes Liberais assumem uma nova significação, a idéia de ‘liberal’,

deve-se ao fato de tais artes promoverem a libertação humana do mundo terreno, já que a

sabedoria era uma das virtudes divinas, a educação era vista como uma forma de aproximação

com Deus, enquanto as artes mecânicas aprisionavam o intelecto humano, pois tinham fins

econômicos e os mantinham próximo da matéria.30

A obra que serviu de base para a educação medieval foi A Boda da Filologia com

Mercúrio do autor Cartago Marciano Capela (450-534), escrita entre 510-527. Esta obra

inseriu definitivamente o conceito das Sete Artes Liberais na Idade Média.

Marciano Capela foi influenciado por obras como A Enciclopédia de Varrón (116-27

a.C) e A República de Platão.

São chamadas de artes liberais:

1) Gramática;

2) Retórica;

3) Dialética;

4) Aritmética;

5) Geometria;

6) Astronomia, e

7) Música.

As três primeiras formam o Trivium e as restantes são o Quadrivium. Esta

nomenclatura é adotada posteriormente à obra de Capela. O quadrivium foi assim

denominado por Boécio (480-524). A palavra trivium só foi usada durante o Renascimento

Carolíngio. Platão caracteriza o trivium como as artes dos sermões e o quadrivium de artes

reais.

Voltaremos a falar das sete artes liberais à frente quando estivermos tratando da forma

como Llull designa cada um desses saberes. No entanto é necessário saber-se desde já que o

estudo do trivium e do quadrivium era introdutório para os estudos das ciências: Direito

(Canônico e Civil), Medicina, Filosofia e Teologia.

Até o século X as escolas eram escassas e com poucos alunos, eram em geral escolas: 30 COSTA, Ricardo da. Las Definicines de las Siete Artes Liberales e Mecánicas en la Obra de Ramon Llull. Editora Mandruvá: São Paulo, 2005, p. 34.

41

1. Paroquiais – de caráter eclesiástico.

2. Monásticas (V-X) – mais importantes e que atingem o maior número de pessoas.

• Escolas Interiores – dentro do claustro, para oblatos e monges.

• Escolas Exteriores – educação literária e religiosa para crianças desejosas

de ingressar no sacerdócio e para os abandonados.

3. Palatinas ou Cortesãs – onde de educavam os filhos de nobres (Período Carolíngio)

4. Episcopais ou Catedráticas – anexadas às catedrais.

A partir do século X acontece uma renovação das disciplinas, e uma evolução escolar,

que, segundo Le Goff, está intrinsecamente ligada ao florescimento das cidades que a partir

do século X propiciou o ‘nascimento’ de um grupo de intelectuais voltados para a

argumentação, a ciência e a crítica31.

Esta evolução culminou no Renascimento do século XII, que foi responsável por um

significativo aumento qualitativo uma vez que consistiu no enriquecimento das disciplinas, no

qual foi marcante o desenvolvimento da dialética, com o aumento do domínio da lógica e a

amplitude de todas as artes da linguagem. 32

O renascimento do século XII foi marcado pela renovação na instituição escolar, pelo aparecimento de grupos substanciais de homens, mestres e estudantes, magistri et scolares, apaixonado pelos estudos e que se dedicavam a ele em tempo integral, ao menos em uma parte de sua existência, pelo surgimento de novas atitudes diante do saberem que a humildade piedosa e deferente do monge foi substituída por um espírito de entusiasmo e de curiosidade, ao mesmo tempo que aparecia o gosto irresistível da competição e do combate verbal. Mas a mutação não atingiu, evidentemente, apenas as condições de certa forma externas da vida escolar e intelectual. Ela consistiu também em uma transformação profunda dos métodos e dos conteúdos do ensino.33

Em geral, a educação da Idade Média era de domínio da Igreja Católica. Era ela quem

regia os métodos, formava e regularizava os educares e gerenciava a educação ocidental.

Eram os Concílios os responsáveis pela regulamentação da pedagogia medieval.

As principais certezas dos medievais quanto à educação eram:

1. O encontro de satisfações sublimes (amor ao saber por ele mesmo);

31 LE GOFF, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: José Olímpio, 2006, p. 26. 32 LE GOFF, Jacques. Cultura, Ensino e Sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII. EDUSC: São Paulo, 2001, p.37. 33 Idem, p. 65.

42

2. A orientação intelectual depende primeiro do papel que pode desempenhar na

busca da salvação;

3. A inteligência tem que conduzir ao bem, que é Deus;

4. Todo saber é bom porque é um bem da inteligência humana;

5. Conhecer é um ato sagrado, pois nos aproxima de Deus;

6. O saber é um instrumento de promoção humana e social.

A sabedoria era vista como inata ao homem, uma vez que derivava da sabedoria

divina, infinitamente maior, assim convinha ao mestre guiar seu aluno ao encontro do

conhecimento, numa relação marcada pelo conceito aristotélico de benevolência.34

Lízia Helena Nagel, defende que a concepção de homem de cada período está

intrinsecamente ligada à proposta educativa empreendida pela sociedade em questão. Assim,

o empreendimento pedagógico proposto por Llull, é de inestimável importância para

compreensão do modelo humano da Idade Média35.

Le Goff afirma que em nenhum outro tempo histórico houve um “modelo humano”

tão bem definido como na Idade Média. Para ele este modelo era o do homem cristão36, logo,

era natural que a educação empreendida tivesse como intuito a formação de um homem

pautado na fé cristã e seguidor dos preceitos da Igreja Católica.

E para formar uma sociedade tão uniforme seus princípios norteadores desta eram os

bíblicos, conceitos como sabedoria e ciência37 eram extraídos da Bíblia e fundamentados

pelos tratados dos filósofos e teólogos da Igreja.

A educação tem um destaque significativo na obra de Ramon Llull, em suas obras,

Ramon propõe mais que um projeto pedagógico, indica um projeto de reforma social, baseado

na educação que converge tanto os fiéis, toda a cristandade a começar pelo príncipe quanto os

infiéis (gentios, judeus e mulçumanos), através da conversão e da educação religiosa para

servir ao propósito da Primeira Intenção. 34Bondade: Em sentido lato, excelência de um objeto qualquer (coisa ou pessoa). Diz São Tomás de Aquino: “A Bondade que está em Deus, está de modo simples e uniforme, nas criaturas está de modo múltiplo e dividido. As discussões do século XVII e XVIII a propósito da Bondade de Deus como móvel da criação fundaram-se num significado mais restrito do termo, que foi expresso claramente por Baumgarten: “A bondade (benignidade) é a determinação da vontade de fazer o bem aos outros. O benefício é a ação útil ao outro, sugerida pela Bondade”. Nesse sentido a Bondade identifica-se com o que Aristóteles chamava de Benevolência. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 35 NAGEL, Lízia Helena. Paganismo e Cristianismo: Concepção de Homem e Educação. In. OLIVEIRA, Terezinha (org.) Luzes sobre a Idade Média. Maringá: Eduem, 2002, p. 35-45. 36 LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. 37 Sobre Sabedoria ver: I Cor 1, 22-25, I Cor 2, 5-8, Rom 1, 19,21.

43

A concepção educacional defendida por Llull, aproxima-se muito da de Santo

Agostinho, que, por sua vez sofre forte influência platônica, mas está permeada da pregação

da doutrina cristã, convergindo para a purificação moral e o exercício intelectual do homem.

É intrínseca a relação entre a Igreja Católica, tida como representante de Deus, e a

educação medieval, sendo esta permeada dos dogmas cristãos. Seria a educação, tanto para

Llull quanto para Santo Agostinho, a forma de conduzir progressivamente o aluno a uma

proximidade com as virtudes divinas, uma vez que se pautavam na premissa que a verdadeira

educação era inspirada por Deus, não pelo mestre (homem)38.

O conhecimento de Deus é dado ao homem para que este O ame mais que a todas as

coisas e assim seja conduzido à salvação. Assim, o homem que tem mais conhecimento de

Deus e age condizentemente a este terá maior glória. Ao método de exposição técnica da

ciência desenvolvida por Llull, denominou-se Arte, que era um sistema de pensamento

aplicável a qualquer tema ou problema específico, com a tentativa de unificar todo o

pensamento da cultura medieval na busca da verdade de Deus, aplicado, segundo Ricardo da

Costa, principalmente em cinco eixos, já citados na página 2039:

Para que se faça uma melhor explanação sobre a educação na Idade Média é

necessário que se percebam suas influências, seus alcances e sua organização no decorrer do

período.

38 MELO, José Joaquim Pereira. A Educação em Santo Agostinho. In. Luzes Sobre a Idade Média. OLIVEIRA, Terezinha (org). Maringá: Eduem, 2002, p. 65-78. 39 COSTA, Ricardo da. Apresentação. In. O Livro da Ordem de Cavalaria. São Paulo: Instituto de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2000, p. 24.

44

2.1. Doutrina para Crianças

Em Doutrina para Crianças, obra que dedica à educação de seu filho Domingos, Llull

elabora uma forma para que seu descendente “mais rapidamente possa entrar na ciência com a

qual saiba conhecer, amar e servir seu glorioso Deus”, levando-o a aprender “os quatorze

artigos da Santa Fé Católica, os dez mandamentos que o Nosso Senhor deu a Moisés no

Monte Sinai, os sete sacramentos da Igreja” e mostrando “como cogitar as glórias do Paraíso

e as penais infernais” conduzindo-o a amar e temer a Deus, conforme os “bons

ensinamentos”.40

Esta obra é tida como a primeira grande síntese do pensamento llulliano e uma das

principais obras escritas em língua vulgar voltada para a educação infantil. Quando Llull

escreve esta obra seu filho tem por volta de oito anos.

Para Llull “ciência é saber o que existe”. Segundo o filósofo existem dois tipos de

ciência: uma adquirida e a que é dada pelo Espírito Santo. Paulo, baseado em Isaias, recorda

que será tirada a sabedoria dos sábios, pois para Deus a sabedoria deste mundo é loucura41.

Llull afirma que a ciência dada pelo Espírito Santo é “maior e mais nobre que aquela

que o homem aprendeu nas escolas de seus mestres”, pois a ciência infundida dá consciência

aos pecadores e ilumina os olhos dos homens que estão em erro. 42

O conhecimento de Deus é dado ao homem para que este O ame mais que a todas as

coisas e assim seja conduzido à salvação. Assim, o homem que tem mais conhecimento de

Deus e age condizentemente a este terá maior glória.

O projeto pedagógico llulliano servia basicamente ao princípio de levar o homem a

amar a Deus, propósito definido por Llull como Primeira Intenção.

Llull adotou a divisão dos saberes de Marciano Capella as sete Artes Liberais:

Gramática, Lógica e Retórica (Trivium), Geometria, Aritmética, Música e Astronomia

(Quadrivium) e em quatro ciências: Teologia, Direito, Ciência da Natureza, Medicina e Artes

Mecânicas.

As três primeiras artes que formam o Trivium, são consideradas como as principais, é

a partir da aprendizagem destas ciências que os cristãos poderão argumentar com os infiéis

convencendo-os a aderir à fé cristã. Llull as conceitualiza da seguinte forma: 40 LLULL, Ramon. Doutrina para Crianças. In. www.ricardocosta.com, p. 5. 41 I Cor 1, 19-21 42LLULL, Ramon. Doutrina para Crianças. In. www.ricardocosta.com, p.28.

45

a) Gramática

“É falar e escrever retamente e portal pelo qual se passa a saber das outras ciências”43.

O estudo da gramática na Idade Média é basicamente uma introdução à literatura latina, é

portanto, o estudo da língua latina e de suas normas de uso na qual se estudam principalmente

os compêndios de Helio Donato, Arte Menor e Arte Maior e as Instituições Gramaticais de

Prisciano Cesária.

b) Lógica

“É a ciência que exalta o entendimento humano é a demonstração das coisas

verdadeiras e falsas”44. Para Llull entendimento é um dos dons do Espírito Santo através do

qual a alma entende o bem e o mal., para ele, é através do uso da retórica que o homem

diferencia o saber verdadeiro do falso. Uma vez que essa ciência tem como fundamento a

busca da verdade que na concepção medieval é Deus, para o filósofo ela representa o ápice do

trivium. É através da lógica que se devia encadear os argumentos que serviriam como base na

conversão dos infiéis.

c) Retórica

“É falar bela e ordenadamente”45. È a arte utilizada nos discursos, que deviam estar em

uma linguagem bela para que fosse agradável aos ouvintes.

O caráter interdisciplinar é exposto nas obras de Ramon Llull, para ele, os saberes têm

dependências entre si, e uma serviria de auxílio para compreensão da outra, o trivium

representa para o filosofo uma unidade.

O filósofo adverte seu filho que não se dedique à aprendizagem do Quadrivium,

exceto da Música, pois requerem muito do pensamento humano, e este tem que tratar de amar

e contemplar Deus. Formam o quadrivium:

d) Aritmética

“É o ato de multiplicar somas em somas, e dividir uma soma em muitas”. Llull faz

ainda uma associação da aritmética com a memória, “essa arte existe para que o homem saiba

melhor reter o número na memória e na visão corporal”.46

43 Idem, p. 54. 44 Idem, p.54-55. 45 Idem, p. 55 46 Idem, p. 55.

46

e) Geometria

“É a doutrina de formas imóveis”.47 Na conceituação llulliana desta arte nota-se uma

configuração matemática e simbólica, para ele a geometria serviria ao propósito de medir as

dimensões terrestres para chegar à grandeza de Deus.

f) Astronomia

“É a ciência demonstrativa”.48 Aborda as leis dos astros e na Idade Média é mesclada

com a Astrologia.

g) Música

“É a arte pela qual temos doutrina para cantar e soar instrumentos corretamente”.49

Esta arte é a que Llull menos cita, sem fazer referência alguma ao seu passado de trovador,

antes das visões que tivera de Cristo crucificado, afirmando apenas que esta arte tem que ser

usada para entoar cantos a Deus, e critica os que por “vaidade mundana”, cantam e soam

instrumentos diante dos príncipes.

As sete artes liberais estão simbolizadas na obra Jardim das Delícias (Figura 9):

Figura 9

Herrad von Landsberg. O Círculo da Filosofia. Hortus deliciarum, O Jardim das Delícias

(século XII)

47 Idem, p. 55. 48 Idem, p. 55. 49 Idem, p. 55.

47

Esta imagem representa o Círculo da Filosofia. No meio, a figura no círculo central

representa a Filosofia, sentada sobre um trono como uma rainha, tem sobre sua cabeça uma

coroa com três cabeças que representam a Ética, a Lógica e a Física, e em sua mão uma

bandeira onde está escrito “Toda sabedoria vem de deus, somente os sábios podem fazer o

que desejam”, logo abaixo da Sabedoria encontram-se Sócrates e Platão por serem

considerados os precursores do pensamento cristão.50

Do seio da filosofia brotam sete fontes, que são as Sete Artes Liberais, representadas

nos semicírculos em volta do círculo central. A Gramática possui em suas mãos um livro e

um ramo em seu semicírculo a escritura “por mim todos podem aprender o que são as

palavras, as sílabas e as letras”. A Retórica tem um estilete e duas tábuas e diz “Graças a mim,

orgulhoso orador teus discursos podem ter vigor”. A Dialética diz: “Meus argumentos se

seguem com rapidez, igual ao ladrilho de um cão”. A Música possui uma harpa dizendo: “Eu

ensino minha arte com a ajuda de uma variedade de instrumentos”. A Aritmética diz: “Me

embaso nos números e mostro as informações que existem entre eles”. A Geometria que

possui um compasso diz “É com exatidão que examino as terras”. E a Astronomia que possui

uma lupa ou uma espécie de espelho, e diz, “Eu tenho o nome dos corpos celestes e predigo o

futuro”.51

Segundo Ramon, o estudo das Sete Arte Liberais é introdutório, e conduz o homem ao

estudo das quatro ciências. São elas:

• Teologia – é a ciência de falar de Deus e a mais nobre de todas, é a mais

conservada e amada pelos homens religiosos e fundada na fé.

• Direito – dividido em canônico (divino) e civil (terreno) que pertence ao uso

do príncipe para manter a justiça. Entretanto os dois não se convêm assim como a

perfeição divina e à malícia dos homens.

• Ciência da Natureza – é composta por quatro elementos – ar, água, terra e

fogo.

• Medicina – tem como fundamento manter e conservar a natureza do corpo

animado.

50 COSTA, Ricardo. Las Definiciones de las Siete Artes Liberales y Mecánicas en la Obra de Ramon Llull. Editora Mandruvá: São Paulo, 2005. p. 28-32. 51 Idem.

48

Llull dedica-se ainda a falar a seu filho das Artes Mecânicas52, conceituando-a como

“a ciência lucrativa manual para dar sustentação à vida corporal”. Muitas vezes visto com

desprezo, os trabalhos manuais são bem vistos na obra de Llull, Ramon chega a fazer uma

alusão aos sarracenos por sempre possuírem conhecimento sobre uma arte mecânica, e

defende que todos os pais devem ensinar a seus filhos um destes ofícios, para que esses

possam com seu trabalho sobreviver a qualquer adversidade. Assim, para Llull é mais

conveniente aos pais deixar ensinamentos que fortuna a seus descendentes.

No entanto Llull adverte seu filho que não pretenda se tornar um burguês através das

práticas mecânicas, pois o exercício da burguesia é o mais danoso e de pouca duração de

todos os ofícios. Isto porque visava o lucro e estava permeado pelos vícios.

A atenção que Llull dedica as Artes Mecânicas não é tão comum entre os autores

medievais, uma vez que eram vistas como atividades menores. Isto acontece na obra de Llull,

por conta de sua forte influência islâmica. Por considerar aspectos da cultura islâmica e por

sua proposta de diálogo inter-religioso, Llull é visto pelos estudiosos de sua obra como um

homem a frente de seu tempo.

52 Sobre trabalhos mecânicos na Idade Média ver: LE GOFF, Jacques. Para um Novo Conceito de Idade Média. Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente.Editora Estampa: Lisboa, 1979.

49

3. EDUCAÇÃO E SALVAÇÃO NA VISÃO DE RAMON LLULL

Soaria estranho, em tempos modernos, falar-se em educação traçando um paralelo

com a condição humana no pós-morte, no entanto, no período medieval o destino do homem,

ou melhor, de sua alma após a morte, era fator condicionante para elaborar um projeto

educacional que o conduzisse a exercer um comportamento na vida terrena que o levasse à

salvação.

Isto porque para o medievo sua escolha, seus atos, seu comportamento, seu cotidiano

e, sobretudo seu pensamento eram pautados na possibilidade de gozo da salvação no pós-

morte. Tal privilégio deveria ser conquistado pelo homem medieval no breve tempo de vida

terrena que o conduziria a uma condição eterna de salvação ou danação.

Assim, a vida terrena seria uma condição passageira na qual todo homem deveria

conduzir sua alma à salvação, fato que se daria através de três fundamentos básicos

essenciais, de acordo com a mentalidade medieval ocidental:

1. A crença e o seguimento dos preceitos cristão;

2. O exercício cotidiano das virtudes;

3. O afastamento dos vícios que os levariam ao pecado.

A partir do seguimento destes três propósitos o homem manteria sua alma pura, livre

do pecado e possivelmente alcançaria a salvação. Na Idade Média a morte era vivida

diariamente, a relação do medievo com ela era de expectativa, ele deveria estar sempre a sua

espera, e preparar-se para ela, purificando seu corpo, extirpando o pecado e praticando as

virtudes53.

Para conduzir o homem à salvação eterna foi construído durante a Idade Média um

projeto pedagógico pautado na moral cristã, que regularizaria a vida humana e levaria assim o

indivíduo a desfrutar das condições perpétuas de salvação.

A detentora e reguladora do ato humano na Idade Média era a Igreja, a educadora do

povo desde o fim da Antiguidade, que buscava aliar a educação científica à moral e

principalmente à educação da alma. Era a Igreja a representante de Deus na Terra, e a ela

cabia a elaboração das regras que levariam o homem ao Paraíso ou ao Inferno após a morte.

53 LAUWERS, Michel. Morte e Mortos. In. LE GOFF, Jacques e SHIMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p.243-259.

50

De acordo com a mentalidade medieval, para ajudar na real aplicação da moral cristã,

a Igreja contava com a vigilância contínua de uma legião de anjos que observavam o

comportamento de cada homem e ainda mais grave, com a observação de Deus, a quem

nenhum homem seria capaz de enganar e com o qual todos deveriam prestar contas de seus

atos no Juízo Final.

Outro fato que ajudava a condicionar o comportamento humano era a concepção de

Além que se tinha, baseada tanto nas Sagradas Escrituras54 quanto nas narrativas, exempla,

medievais que descrevem minuciosamente as características dos três espaços do Além –

Inferno (Figura 10), Paraíso (Figura 11) e Purgatório (Figura 12) – para onde cada homem

seria mandado após a morte de acordo com seu merecimento.

Embora na mentalidade medieval o corpo fosse a porta de entrada para todos os

pecados55, era através dele que o homem conquistava ou não a salvação, de acordo com sua

capacidade de manter-se livre da iniqüidade, era também com sensações afáveis ou

desagradáveis que os medievos descreviam o Paraíso e o Inferno respectivamente.

Figura 10

Fra Angélico. O Juízo Final. Detalhe do Inferno (c.1432-1435). Museo di San Marco,

Florença.

54 Paraíso – tido como morada de Deus, dos anjos e dos eleitos, a Jerusalém Celeste, lugar de felicidade eterna (Mt 25, 31-46; Jo 5, 25-29; Lc 16, 22-26). Inferno – visto como lugar de tormentos eternos, designados com vários nomes, como geena, fogo ou lago de fogo, abismo, tártaro e segunda morte (Mt 10, 28; 13-42; Lc 8, 31; Apoc 19, 20). Bíblia Sagrada. Trad. Centro Bíblico Católico. Ed. Ave Maria. São Paulo, 1997. BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: PAULUS, 1990. 55 CASAGRANDE, Carla e VECCHIO, Silvana. “Pecado” In. LE GOFF, Jacques e SHIMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 343.

51

O paraíso (Figura 11) era caracterizado como um ambiente harmônico, de odor e

temperatura afáveis, com ruas de ouro e pedras preciosas, onde se ouvia uma melodia

angelical, enquanto o inferno (Figura 10) era onde se instaurava o caos, ouviam-se gritos de

lamentação e murmúrios, ardia em brasa, tinha rios de fogo e de enxofre, povoado por

monstros e demônios, que castigavam os homens eternamente.

Figura 11

Fra Angélico. O Juízo Final. Detalhe do Paraíso (c.1432-1435). Museo di San Marco,

Florença.

O purgatório (Figura 12) só passou a fazer parte do imaginário medieval a partir do

século XII, com a necessidade de um espaço intermediário no Além que abrigasse os homens

que cometessem erros brandos e que, portanto, não mereciam o sofrimento eterno no inferno e

ainda não eram dignos da glória do paraíso, onde purgassem seus pecados por um tempo

proporcional à quantidade e gravidade de seus erros. Diferente dos outros dois espaços do

Além, o Purgatório não era eterno, e seria extinto no Juízo Final.56

56 LE GOFF, Jacques. Pecado. In. LE GOFF, Jacques e SHIMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 21-33.

52

Figura 12

Livro das horas de Branca de Borgonha ou Horas de Savóia. New Haven (Conn), Beinecke

Rare Library, Universidade Yale. Século XIV

O tempo de estadia no Purgatório como já foi dito dependia da quantidade e da

gravidade dos pecados remissíveis, podendo ser abreviado pelos sufrágios, “preces, esmolas e

missas que os vivos, parentes ou amigos, pagavam para abreviar o tempo de purgatório de

certas almas”, e por indulgências, “pagamentos em dinheiro à Igreja, que podia obter para

certos defuntos o perdão integral ou parcial de seu tempo restante de purgatório”. Podemos

perceber na Figura 12 criaturas angelicais resgatando as almas do purgatório, após purgar seus

pecados.

Eram o medo dos eternos trabalhos infernais e o desejo de gozo das glorias do Paraíso

os principais fatores condicionantes do comportamento do homem medieval. Em uma

sociedade que sobressaltava a importância da morte perante a vida, as imagens descritas pelas

narrativas e pela Bíblia dos espaços do Além tinham fundamental importância para a

condução da vida humana.

A obra de Ramon Llull nos faz perceber como, na Idade Média, essas considerações

acerca da educação eram fortes. Em sua vasta bibliografia a educação, seja moral ou

científica, obtém grande destaque. Perceberemos ao longo deste capítulo como Llull

desenvolve um projeto educacional que condiz com o desejo da Igreja, entretanto é repleto de

particularidades.

Para entendermos o projeto pedagógico empreendido por Llull, na concepção

salvacional, utilizaremos as obras: Vida Coetânea (1311), O Livro da Ordem de Cavalaria

(1279-1283), Doutrina Para Crianças (1274-1276), Livro das Bestas (1288-1289) e Livro dos

53

Mil Provérbios (1302), buscando as características pedagógicas que conduziriam o homem à

salvação.

3.4. O Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283)

Figura 13

Codex Manesse. Berslau. Grande Livro de Canções manuscritas de Heidelberg

Uma das características marcantes do período medieval é a intensa estratificação

social vigente, para os medievos essa condição aliada ao ordenamento seria a essência para a

construção de uma sociedade harmônica. Esta questão está bem explicitada na obra de Llull,

como na dos demais autores do período.

Cada esfera, ou ordem social, como designa Adalbéron de Laon, tão bem caracterizada

por Georges Duby57, tem pré-determinadas suas tarefas e responsabilidades no corpo social da

Idade Média, que em essência estaria dividido em três: Oratores (os clérigos, os que rezam),

bellatores (os que guerreiros, integrantes da nobreza), laboratores (trabalhadores).

É necessário frisar que esta tripartição aparece na literatura medieval entre os séculos

IX e XI, segundo Le Goff, para responder às necessidades de uma nova estrutura social e

política58, tema que não nos é relevante para o andamento desta pesquisa, bem menos, a

origem desta divisão social, a estratificação social da Idade Média nos interessa no ponto em

57 DUBY, Georges. As Três Ordens ou O Imaginário do Feudalismo. Lisboa: Editorial Estampa, 1982. 58 LE GOFF, Jacques. Para um Novo Conceito de Idade Média: Tempo, Trabalho e Cultura no Ocidente. Tradução Maria Helena da Costa Dias. Lisboa: Editora Estampa, 1979,p. 76.

54

que o autor aqui estudado, propõe diferentes formas de alcançar a salvação, de acordo com o

lugar social do indivíduo.

Na obra aqui abordada, O Livro da Ordem de Cavalaria, Ramon expõe com que

artifícios, os cavaleiros, atividade restrita aos homens nobreza, podem, no pós-morte,

desfrutar das glórias do Paraíso.

A Cavalaria era na Idade Média uma instituição que se sobressaltava, uma vez que

seus integrantes eram necessariamente oriundos da nobreza. Seu caráter militar era notório, no

entanto esta não era sua única faceta, estando essa permeada, a partir do século XI, de

preceitos cristãos.

No século X a sociedade medieval encontrava-se em profunda crise, já que a Igreja,

após o Cisma do Oriente59, via seu poder central enfraquecer-se gradativamente. Ondas de

saques devastadores, atos violentos contra os camponeses e a própria Igreja, liderados por

senhores de potentados locais e castelões com seus respectivos vassalos, também nobres,

componentes das ordens de cavalaria.

Mediante a crise instaurada, nos séculos X e XI a Igreja promove uma cristianização

da cavalaria atribuindo-lhe caráter de protetora dos pobres, indefesos e da Igreja, respaldada

nos juramentos impostos aos ingressores da ordem nas cerimônias de adubamento.

É neste contexto que se adequa o Livro da Ordem de Cavalaria de Ramon Llull que

ressalta as características cristãs que deveriam ser cultivadas e praticadas pelos integrantes da

ordem.

Segundo a narrativa, a obra teria sido entregue por um eremita, antigo membro da

Cavalaria, a um escudeiro que estava a caminho de um reino no qual o soberano seria armado

cavaleiro, para que este fosse mostrado a todos os que pretendessem integrar a ordem

pudessem ter ciência “da devoção, lealdade e ordenamento que o cavaleiro deve ter para

manter sua ordem”. 60

A obra está dividida em sete partes: Do começo da Cavalaria, Do ofício que pertence

ao Cavaleiro, Do exame do escudeiro que deseja entrar na Ordem de Cavalaria, Da maneira

segundo a qual o escudeiro deve receber a cavalaria, Do significado que existe nas armas de

59 Cisão entre na Igreja Católica ocorrida em 1054, fruto de séculos de divergências entre as duas divisões da Igreja, originando a Igreja Ortodoxa e a Igreja Romana. Ver ARNALD, Girolamo. Igreja e Papado. In. LE GOFF, Jacques e SHIMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 60 COSTA, Ricardo da. “Apresentação”. In RAMON LLULL. Livro da Ordem da Cavalaria (Trad. Costa Rio). São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2000, p.13.

55

Cavaleiro, Dos costumes que pertencem ao Cavaleiro, Da honra que deve ser feita ao

Cavaleiro.

Segundo a obra, a cavalaria surgiu devido à falta de “caridade, lealdade, justiça e

verdade no mundo”.

Por isso, de todo o povo foram divididos em grupos de mil e de cada mil foi eleito e escolhido um homem, mais amável, mais sábio, mais leal e mais forte, e com mais nobre coragem, com mais ensinamentos e de bons modos que todos os outros. 61

Para acompanhar este homem, foi escolhido, “a mais bela e veloz” de todas as bestas –

o cavalo, e por isso os homens dessa ordem foram denominados cavaleiros – e as mais belas

armas.

Devido à grande honra do início da cavalaria, todos os que desejassem ingressar nela

deveriam cultivar a virtudes dos primeiros cavaleiros.

A sociedade medieval era extremamente estratificada, segundo Llull, o cavaleiro

deveria ser de linhagem nobre e “senhor de outros homens”.

Para ser cavaleiro, Llull aconselha que, desde a adolescência62, o pai inicie o filho nas

atividades cavaleirescas, principalmente, como cavalgar e cuidar do cavalo. Entretanto só

estes ensinamentos não são suficientes.

Assim como os juristas e os médicos e os clérigos ouvem nas ciências e livros a lição e aprendem seu ofício por doutrinas de letras, é tão honrada e alta a Ordem de Cavalaria que não tão somente basta que ao escudeiro seja ensinada a Ordem de Cavalaria para cuidar do cavalo, nem para servir senhor, nem para ir com ele aos feitos de arma, nem para outras coisas semelhantes a esta; como ainda seria coisa conveniente que o homem da Ordem de Cavalaria fizesse escola, e que houvesse ciência da Cavalaria escrita em livros e que fosse arte ensinada, assim como são ensinadas as outras ciências. 63

Para Llull o verdadeiro ofício da cavalaria é manter a fé cristã e combater os infiéis,

sendo assim, “mantenedores e defensores do ofício de Deus”. Llull defende que todos os

61 Idem, p. 13. 62 São várias as nomenclaturas utilizadas para estabelecer a divisão das idades da vida na Idade Média, que são tradicionalmente divididas em quatro fases de em média vinte anos cada, a que utilizaremos é a seguinte: pueritia, iuventus, senectus e senium. Do Livro Real ou Pantegni de Haly Abbas. Ver BAGLIANI, Agostinho Paravicini. Idades da Vida. In. LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 553-565. 63 COSTA, Ricardo da. “Apresentação”. In RAMON LLULL. Livro da Ordem da Cavalaria (Trad. Costa Rio). São Paulo: Giordano, Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2000, p.21.

56

nobres sejam cavaleiros, assim, o poder temporal (nobreza) e o poder espiritual (Igreja)

estariam unidos para a manutenção e propagação do cristianismo.

No capítulo “Do ofício que pertence ao cavaleiro”, Llull enumera uma série de

obrigações do bom cavaleiro:

1. Manter e defender a fé católica;

2. Manter e defender o senhor terreno;

3. Manter a justiça;

4. Manter a terra;

5. Manter viúvas, órfãos e homens despossuídos;

6. Guardar caminhos e defender os lavradores.

É através da condição de defensor da Igreja e dos fiéis que os cavaleiros poderiam

alcançar a salvação. Assim, segundo o autor, os cavaleiros que não agem de acordo com os

ofícios da cavalaria deveriam “matar e prender a si mesmo”, entretanto como o suicídio é

pecado, perante a Igreja, e dano que levaria a danação eterna, é conveniente que o cavaleiro

“salteador, ladrão e traidor seja destruído e morto por outro cavaleiro”.64

Uma vez que à cavalaria era dado o poder sobre a vida e a morte desde que esta

servisse para o bem da Igreja, como é o caso dos mouros, especificamente na obra de Llull,

matar um mouro não seria pecado, uma vez que estes não exerciam o cristianismo, e,

portanto, os cavaleiros estariam agindo pela glória de Deus, ao banir do mundo a falsa fé 65.

No entanto Llull afirma que a primeira arma a ser usada é a conversão por meio da palavra.

Para entrar na Ordem de Cavalaria, o escudeiro deve:

1. Ser examinado por um cavaleiro amante da mesma;

2. Amar e temer a Deus, pois sem isso nenhum homem é digno de entrar na

Ordem de Cavalaria;

3. Ser nobre de coragem;

4. Ter idade conveniente, pois se é jovem demais “não pode haver aprendido os

ensinamentos” e se velho “tem debilidade de corpo”;

5. Ter linhagem nobre;

64 Idem. p. 41. 65 FRALE, Bárbara. Os Templários. São Paulo: Madras, 2005, p. 14-15.

57

6. Ter bons conhecimentos e costumes;

O ritual de sagração era o que iria consolidar a entrada do escudeiro na Cavalaria, esta

cerimônia é marcada por uma intensa referência cristã, na qual são as seguintes as etapas a

serem seguidas, descritas no Livro da Ordem de Cavalaria.

1. Confessar-se e comungar;

2. Jejuar na véspera da festa de sagração;

3. Durante a missa de sagração oferecer-se ao presbítero, que é o representante de

Deus;

4. Relembrar os ofícios da Ordem de Cavalaria, os quatorze artigos da fé católica

– “sem os quais o homem não é salvo” – os dez mandamentos que Deus deu a

Moisés, os sete sacramentos da Igreja.

5. “Diante do altar, deve ajoelhar-se (...) e o cavaleiro deve cingir-lhe a espada,

para significar castidade e justiça; e, em significação de caridade deve beijar

seu escudeiro”.

6. Depois de todo o ritual de sagração o novo cavaleiro deve “cavalgar e mostrar-

se às gentes”

Muitas vezes a figura do cavaleiro, no Livro da Ordem de Cavalaria é aproximada da

do sacerdote cristão, assim como existe significado no ornamento do clérigo, os paramentos

do cavaleiro também estão fortemente marcados pela simbologia. Como podemos visualizar

no quadro da próxima página.

58

Quadro 166

Simbologia cristã-cruzada luliana das armas do cavaleiro

Armas do cavaleiro Simbologia (significado)

Espada Feita à semelhança da cruz, para manter a justiça e a cavalaria Lança Verdade, apoio da esperança; força sobre a falsidade Elmo Vergonha, para que o cavaleiro não faça coisas vis Loriga Castelo e muro contra os vícios e faltas Calças de ferro Com suas armas, o cavaleiro deve manter os caminhos seguros Esporas Cuidado para não ser surpreendido Gorjal Obediência; proteção contra os vícios Maça Força da coragem Punhal O golpe de misericórdia; a esperança em Deus Escudo O seu próprio ofício; como o escudo, o cavaleiro se interpõe entre o

rei e seu povo

Sela Seguridade de ânimo que menospreza a covardia Cavalo A nobreza de seu valor; para que cavalgue mais alto que os demais

homens

Freio (para o cavalo) O cavaleiro deve frear sua boca de palavras mentirosas e suas mãos de gestos vis; deve deixar levar-se a todos os reinos.

Testeira (para o cavalo) Não deve fazer uso de suas armas sem motivo; a razão defende o cavaleiro de vitupérios e vergonha.

Guarnimientos (proteção para o cavalo)

O cavaleiro deve guardar seus bens para que mantenha a honra da cavalaria

Túnica Os grandes trabalhos que sofrerá em nome da cavalaria Divisa Para que seja reconhecido e lembrado por seus feitos Estandarte (para rei e nobres)

Para significar que os cavaleiros estão com o dever de manter a honra e a herdade de seu senhor

Para Llull o cavaleiro deveria ser o exemplo da sociedade, uma vez que formava a

ordem (laica) mais elevada na pirâmide social medieval, e por conseqüência seria um modelo

a ser seguido pelos demais, assim ele deveria manter em equilíbrio as virtudes corporais e as

espirituais, num perfeito estado de harmonia.

66 COSTA,Ricardo. Ramón Llull (1235 - 1315) e o modelo cavaleiresco V. ibérico inserido na mentalidade cruzadística. In. www.ricardocosta.com

59

3.5. Doutrina Para Crianças (1274-1276) e O Livro dos Mil Provérbios (1302)

O motivo pelo qual decidi trabalhar estas duas obras em um único tópico é o fato de

que ambas são consideradas sínteses do pensamento llulliano e possuem finalidades

convergentes, assim como a maioria das obras do filósofo, de conduzir o homem à salvação.

Doutrina para Crianças é uma obra destinada à educação infantil, que Llull dedica ao

seu filho Domingos, possivelmente pelo fato de não poder conduzir pessoalmente sua

educação. Elabora uma forma para que seu descendente “mais rapidamente possa entrar na

ciência com a qual saiba conhecer, amar e servir seu glorioso Deus”, levando-o a aprender “os

quatorze artigos da Santa Fé Católica, os dez mandamentos que o Nosso Senhor deu a Moisés

no Monte Sinai, os sete sacramentos da Igreja” e mostrando “como cogitar as glórias do

Paraíso e as penais infernais” conduzindo-o a amar e temer a Deus, conforme os “bons

ensinamentos”.

O Livro dos Mil Provérbios é uma recompilação da doutrina llulliana em breves

frases, que tem como principal intenção formular ditos, de fácil absorção, que mostrem a

verdade da fé católica.

Os provérbios, presentes ainda hoje em todas as sociedades, são objetos da cultura

popular e visam frisar o que é comum no comportamento humano de uma determinada

cultura, têm presente um caráter educacional, e produz uma verdade de um povo.

Na obra de Ramon estes ditados têm como base as Sagradas Escrituras, fonte da

verdadeira sabedoria na cultura medieval ocidental. Nela foram elaborados provérbios que

tratam dos mais diversos temas, que convergem com a moral cristã, mas tem como principais

funções promover a ordem social e levar o homem à salvação.

Segundo Luiz Lauand estas ‘fórmulas-resumos’ eram usadas por Santo Agostinho em

seus sermões como forma de fixar na memória dos fiéis ensinamentos a serem aplicados no

cotidiano. 67

Doutrina para Crianças está dividida em cem capítulos agrupados em onze partes:

Dos Treze Artigos, Dos Dez Mandamentos, Dos Sete Sacramentos da Santa Igreja, Dos Sete

Dons que o Espírito Santo Dá, Das Oito Bem-Aventuranças, Dos Sete Gozos de Nossa

Senhora, Das Sete Virtudes que são os Caminhos da Salvação, Dos Sete Pecados Mortais

67 LAUAND, Luiz Jean. Cultura e Educação na Idade Média: textos do século V ao XIII. São Paulo: Martins Fontes, p. 13.

60

pelos quais o Homem vai a Danação Perdurável, Das Três Leis, Das Sete Artes e De Matérias

Diversas.

Segundo Llull, para alcançar a salvação o homem deve crer:

1. Em um só Deus que é pleno de Perfeição;

2. Na Trindade e na Unidade de Deus (Pai, Filho e Espírito Santo);

3. Que Deus é Criador de tudo que existe;

4. que Deus tomou o seu Povo, que carrega a culpa do Pecado Original, do poder do

demônio;

5. Nas recompensas e glórias do Paraíso;

6. Na concepção do Filho de Deus por obra do Espírito Santo;

7. No nascimento do Filho de Deus para aniquilar e destruir a culpa e o pecado;

8. Na libertação do homem através do sofrimento e da Paixão de Cristo;

9. Que após a morte Jesus desceu ao Inferno para resgatar os homens dignos do poder de

Satanás, encaminhados a este devido ao Pecado Original;

10. Na ressurreição de Cristo;

11. Na ascensão ao Céu do corpo de Cristo;

12. No Juízo Final, no qual os homens ressuscitaram para serem julgados por Deus.

Segundo Llull, seguir rigidamente os preceitos da Igreja Católica, exercer os

sacramentos, fazer penitências, dar esmolas, ir à missa, e praticar os dez mandamentos,

também são caminhos que levam à salvação das almas.

Para a civilização cristã ocidental, o pecado sempre esteve atrelado à satisfação do

corpo e ao mundo. “É através do corpo que se concretiza a salvação ou danação da alma”68, é

o corpo então a porta de entrada do pecado que corrompe a alma e torna o homem indigno de

gozar das glórias do Paraíso, ou seja, ver Deus.

Assim, Doutrina para Crianças mostra-se como uma obra de caráter essencialmente

catequético que teria como principal função iniciar as crianças nos ensinamentos cristãos para

conduzi-las por uma vida de proximidade com Deus e por conseqüência ao gozo do Paraíso

no pós-morte.

Assim, os vícios e as virtudes deveriam ser respectivamente evitados e exercitados

pelos homens. Segundo Llull expressa em Doutrina para Crianças, as sete virtudes que 68 LE GOFF, Jacques. O homem medieval. (Tradução de: Maria Jorge Vilar de Figueiredo). Lisboa: Editorial Presença, 1ª edição, 1989, p.13

61

levam a glória eterna e sete os vícios que levam a alma aos trabalhos perduráveis e aos

tormentos eternos no Inferno.

Tanto as virtudes quanto os vícios descritos por Llull e suas respectivas considerações

acerca de cada, estão descritas tanto em Doutrina para Crianças quanto em O Livro dos Mil

Provérbios, como podemos visualizar no quadro 2:

Quadro 2

Virtude Doutrina para Crianças O Livro dos Mil Provérbios

Fé A fé é crer verdadeiras as coisas que são invisíveis; é crer com a luz da fé o que não consegue entender com a razão.

- Quem vende sua fé, compra o Inferno. - Quem pela fé morre, pela fé vive.

Esperança

A esperança é isto no qual está nossa salvação; Deus deu ao homem a esperança para que, fazendo boas obras tenha esperança na justiça de Deus.

- Não tenhas esperança em Deus sem bondade e justiça. - A esperança é a mensagem que o homem envia a Deus para que ele a receba e o perdoe.

Caridade

A caridade é amar a Deus e teu próximo; a caridade une o homem a Deus; a caridade faz o homem se consolidar de grandes danações, tornando-o rico de coragem

- Quem tem caridade, tem caridade com Deus, consigo e com seu próximo. - A caridade é o castelo da lealdade.

Justiça A justiça é restituir a cada um o que é seu por direito; Deus é justo por essência, logo, cada homem recebe o que merece.

- A justiça é a riqueza do homem pobre e a injúria a riqueza do homem rico.

Prudência

É a obra virtuosa do que ama o bem e se esquiva do mal, e é a obra da inteligência, que sabe distinguir o bem do mal; a prudência é concordar o tempo, o lugar, a quantidade e a qualidade; a prudência é dissimular para conservar segredos; a prudência é unir quando os outros separam; a prudência é separar quando os outros não têm quem os separe; a prudência é ter este século e o outro.

- A prudência está distante do homem que não é sábio. - A prudência e o caráter são parentes.

Fortaleza É a força de coragem da alma na batalha contra a carne, o mundo e o diabo.

- A força de coragem não tem falsidade e nem astúcia

Temperança É saber moderar os apetites e as paixões. - Quem não tem temperança está próximo da morte.

62

Llull adverte em Doutrina para Crianças, buscando ensinar seu filho, que as virtudes

foram criadas para ajudar o homem a alcançar a Salvação, entretanto, a maior virtude é a

incriada, ou seja, Deus, e que todas as virtudes descritas encontram-se em grau infinito em

Deus.

Os vícios que levam a Danação eterna são, segundo Llull, os que contrariam a essência

da criação do homem, amar, servir e louvar a Deus acima de tudo.

Quadro 3

Vício Doutrina para Crianças O Livro dos Mil Provérbios

Glutonia ou Gula

É o desejo exagerado de comer ou beber; Se tens tentação da glutonia, recorre à temperança, à abstinência, à contingência e à prudência.

- Pela glutonia tens prazer na boca e pena em todo o corpo. - O homem glutão se arrepende mais não se castiga.

Luxúria

É o desejo não satisfeito, contrário à ordem do matrimônio; a luxúria emporcalha o lembrar, o entender e o amar da alma conduzindo-o à morte eterna.

- A luxúria mata o corpo neste mundo e a alma no inferno. - A mulher do luxurioso não tem paz.

Acídia ou Preguiça

Através da acídia os homens estão todos os dias de má vontade; significa mais fortemente sinal de danação que qualquer outro vício.

- Por causa da ociosidade tens preguiçoso lembrar, entender e amar.

Avareza

É juntar coisas que são supérfluas ao homem e necessária aos pobres; é o apego exacerbado aos bens materiais e o não exercício da caridade.

- O homem avaro inveja todos os seus vizinhos. - A avareza é a doença contínua do corpo e da alma.

Soberba ou Orgulho

É a opinião e o desejo veemente de coragem para que i que é vil seja nobre e o que é nobre seja vil, a soberba foi o pecado cometido pelos demônios que desejavam se igualar a Deus.

- Se pudesse o homem orgulhoso desejaria ser Deus

Inveja É desejar outros bens sem meritória possessão.

- Através da inveja desejas o que não podes ter.

Ira É a perturbação do pensamento que destrói a conveniência entre o desejar e a inteligência.

- Quem está em ira está mais morto que vivo. - Tanto quanto estiveres irado, estarás na ira de Deus.

Podemos perceber estes sete vícios representados na figura abaixo.que no círculo

maior em sentido horário representam ira, soberba, luxúria, acídia, gula, avareza e inveja.

63

Figura 14 69

Hieronymus Bosch. Os Sete Pecados Capitais (c. 1490). Museu do Prado.

Estes vícios são também mencionados na obra anônima Visão de Túndalo do século

XII, que narra a viagem de um cavaleiro pecador, que permanece morto por três dias nos

quais vivenciará as punições dos pecadores e as recompensas dos justos no Além e após este

período volta à vida para advertir os homens injustos e redimir-se de seus pecados. São bem

fixadas nesta obra as punições sofridas pós-morte pelas transgressões humanas como

podemos notar no quadro abaixo:

69 Em Os Sete Pecados Capitais, o grande círculo representa o olho de Deus que observa a humanidade. No centro do quadro está a figura de Cristo no interior da íris azul, mostrando suas chagas. A íris está circundada por um círculo dourado em forma de raios de sol. Ali existe a inscrição: “Cuidado, Deus tudo vê” (Cave Cave Deus videt). Os quatro medalhões laterais mostram os quatro destinos humanos: o leito de morte, o Juízo Final, o Paraíso e Inferno. No interior da távola, são representados os sete pecados capitais, e acima dela pairam bandeirolas com advertências em latim. A Ira apresenta uma cena de ciúme e conflito. No Orgulho, um demônio exibe um espelho a uma mulher. A Preguiça mostra uma mulher vestida para ir à missa e tentando acordar um homem que dorme uma gostosa soneca. Na Avareza, um juiz aceita suborno; na Inveja, é retratado o provérbio “dois cachorros com um osso raramente chegam a um acordo.” Descreverei dois pecados com mais detalhes: a luxúria e a gula. A Luxúria retrata dois casais de amantes divertindo-se próximo a uma tenda de brocado vermelho. Há na cena comida, bebida e instrumentos musicais como a lira, propícios ao jogo amoroso. Próximo deles, os divertem um palhaço e um bufão. A Gula mostra um homem obeso, mascando um osso, numa mesa repleta de alimentos. A mulher traz mais comida, uma ave assada. Do lado direito, outro membro da família bebe vinho sofregamente da jarra, que escorre. Abaixo do homem obeso, uma criança gorda, seu filho, pede mais comida. Pendurados nas paredes, uma faca e um chapéu com uma flecha traspassada lembram objetos de caçador para obter mais comida. ZIERER, Adriana. “Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII)”. In: FIDORA, Alexander e PASTOR, Jordi Pardo (coord). Expresar lo Divino: Lenguage, Arte y Mística. Mirabilia. Revista de História Antiga e Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio/J.W. Goethe-Universität Frankfurt/Universitat Autònoma de Barcelona, v.2, 2003.

64

Quadro 470 Pecadores Pecados Capitais Castigos

Assassinos Ira Sofrem num vale profundo com carvões e com cruzel de ferro branco, que queimam mais que carvão.

Traidores Vaidade Almas passam do fogo do enxofre para o rio gelado e depois para o fogo novamente

Orgulhosos Inveja Mergulhar num lago fétido ao cair de longa ponte onde só atravessam os eleitos

Avaros Avareza São comidos e atormentados pela besta Aqueronte, depois são colocados no fogo e no rio de enxofre.

Ladrões Preguiça e Inveja Passam por pontes estreitas com pregos afiados; enormes bestas comem os que caem das pontes.

Glutões e Fornicadores

Gula e Luxúria Jogados em enorme forno que queima tudo, torturado com diversas ferramentas.

Luxuriosos, principalmente os

eclesiásticos. Luxúria

Besta devora as almas e as vomita, almas concebem monstros, como serpentes e outros que as mordem, agulhas de ferro e de fogo consomem as almas.

Muitas foram as Visões Imaginárias que se proliferaram durante a Idade Medieval, e

foram de grande valia para o controle psicológico da sociedade.

A narração das punições sofridas no Inferno e no Purgatório pelos pecadores eram

utilizadas como meio de controle da vida e do pensar do medievo. A crença na figura do

anjo, criatura celestial que era o mediador entre Deus e os homens e que os acompanhavam

diariamente, sendo testemunhas de todos os atos humanos. Segundo Llull, os anjos eram

criaturas espirituais que estavam sempre em contato com Deus e por não possuírem corpo não

estavam passíveis de pecar71. Assim, o homem medieval acreditava estar rodeado pela eterna

vigilância de seres celestiais.

Llull estabelece relação entre as leis do Antigo Testamento e as virtudes, e seu forte

antagonismo com os vícios, conforme mostra o quadro da próxima página.

70Idem, p. 151. 71 LLULL, Ramon. O Livro dos Anjos (1274 – 1283). Tradução do catalão medieval por Eliane Ventorim e Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2002.

65

Quadro 572 Lei Virtude Vício

Amar a Deus sobre todas as coisas

Fé, Esperança. Glutonia, Luxúria, Avareza, Acídia, Soberba, Inveja, Ira.

Não sejas perjuro Justiça, Prudência e

Temperança. Avareza, Inveja e Ira.

Veneração Fortaleza, Prudência e

Temperança. Glutonia, Luxúria, Avareza, Acídia, Soberba, Inveja, Ira.

Honrará teu pai e tua mãe Justiça, Prudência e

Temperança. Soberba, Ira.

Não cometerás homicídio Justiça, Prudência e

Temperança. Ira, Inveja.

Não faças fornicação Fortaleza, Prudência e

Temperança. Luxúria.

Não roubarás Justiça, Prudência e

Temperança. Inveja, Soberba, Glutonia, Acídia.

Não fará falso testemunho Caridade, Justiça, Prudência

e Temperança. Inveja, Ira, Avareza, Soberba.

Não invejarás a Mulher do teu próximo

Caridade, Justiça, Prudência e Temperança.

Luxúria, Inveja, Soberba.

Não terás inveja Caridade, Justiça e

Temperança. Avareza, Soberba, Acídia, Inveja.

As idéias de vícios e virtudes estão intimamente ligadas aos mandamentos do Antigo

Testamento, chamado por Llull de “Lei Velha”. Nota-se que o exercício das virtudes reforça a

execução dos mandamentos enquanto a prática dos vícios vai contra a vontade divina.

As obras de Llull transmitem as ideologias e as tensões as quais estavam submetidos

os homens medievais. A religiosidade, ponto mais marcante do período, é também discutida

nas obras do filósofo.

A maior intenção de Llull com seus escritos foi instruir os homens para a salvação por

meio do exercício do cristianismo, acreditando ser essa a verdadeira fé.

72 GOMES, Flávia Santos. Doutrina para Crianças: Um manual de Salvação Llulliano. In.Anais [do] VI Encontro Internacional de Estudos Medievais/coordenação gera: Angelita Visalli e Terezinha Oliveira. – Londrina: ABREM/UEL/UEM, p. 448.

66

3.6. Livro das Bestas (1288-1289)

Figura 15

Codex Manesse. Rei Wenzell (1271-1305) Von Böhmem. Grande Livro de Canções

manuscritas de Heidelberg

O poder do rei na Idade Média foi por muito tempo negligenciado, o discurso vigente

era que o poder da Igreja teria diminuído a importância real, e que a fragmentação da

sociedade feudal impossibilitava a formação de um poder forte e centralizado. Sem dúvidas a

sociedade medieval foi amplamente influenciada pela religião, sendo este um fator de suma

importância para ela e determinante na vida política.

Para Le Goff a figura real evolui e muda durante o a Idade Média, assumindo em geral

três formas:

A época carolíngia, quando o rei torna-se um rei ungido e um rei ministerial; entre 1150 e 1250, quando aparece um rei administrativo em face de três realidades (a Coroa, o território e a lei); e ao final do período, quando o rei encontra-se diante de um Estado sacralizado, que ele se esforça para sobreviver. 73

Franco Jr. também ressalta a pluralidade de características assumidas pelo monarca no

decorrer da Idade Média, destacando:

Nos séculos IV-VIII, a unidade multirracial romana foi substituída pela pluralidade nacional dos reinos germânicos. No século IX, restabeleceu-se uma relativa unidade com o Império de Carlos Magnos, que absorveu mas não eliminou outros reinos no período anterior. Nos séculos X-XII, o

73 LE GOFF, Jacques. Rei. In. LE GOFF, Jacques e SHIMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 395.

67

Império tornou-se apenas uma ficção, uma idealização, pois na prática ocorria uma profunda fragmentação política substantivada nos feudos, porém limitada pelos traços de vassalagem, que permitiram às monarquias recuperar aos poucos seus direitos. Nos séculos XIV-XVI, o processo de revigoramento das monarquias acelerou-se, estimulado pela crise global que fazia a sociedade depositar suas esperanças de recuperação do Estado.74

Logo, não se pode dar ao Rei medieval um papel simplesmente alegórico no cenário

medieval, principalmente a partir do Renascimento Carolíngio, uma vez que ele teve

importância significativa, não permanecendo como mero coadjuvante, subalterno ao poder da

Igreja ao longo do período medieval.

Isto pode ser demonstrado pela figuras do século XIV, que mostram São Luís ajoelha-

se diante do Papa (Figura 16), mas recebendo sentado a homenagem dos bispos de seu reino

(Figura 17).

Figura 16 Figura 17

Grandes Crônicas da França. Iluminura. Anterior a 1380. Biblioteca Nacional de Paris

Mas longe de entrar na discussão sobre o detentor e emanador de poder na Idade

Média, este estudo tem como finalidade discutir o papel deste rei perante a sociedade, como

representante escolhido por Deus, que governa para o povo a fim de levá-lo à salvação.

74 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente – 2ªed. ren. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 52.

68

Segundo Hilário Franco Jr. a política “está carregada de símbolos, de metáforas, de

ritos” e nas sociedades arcaicas, carregadas de crenças e permeadas pelo divino, estas

características são ressaltadas e dá o principal sentido á realeza. No caso medieval o rei não se

fazia importante pelo valor político, mas pela simbologia sobrenatural que era implícita a ele e

que se configura com fator de coesão social, uma vez que era visto como uma manifestação

divina, um representante escolhido por Deus, configurando-se assim uma ligação entre as

esferas política e religiosa.75

A Igreja tinha função de legitimar o poder real através de uma cerimônia religiosa, a

Unção Régia, que era “um rito de passagem que sacralizava o monarca, e tornava-o um eleito

de Deus”. Esta cerimônia foi inspirada no Antigo Testamento e praticada desde o século VII

no reino visigodo. Desde sua utilização por Pepino o Breve no século VIII passou a ser

obrigatória. A cerimônia consistia no derramamento de um óleo, considerado sagrado, sobre o

rei que estava sendo empossado, representando assim uma união do poder temporal e

espiritual.76

Os reis medievais se inspiram principalmente nas figuras reais do Antigo testamento,

sendo o modelo mais utilizado o de Davi77. A política e principalmente a figura real eram na

Idade Média intensamente marcadas pela idéia miraculosa e messiânica. Em Os Reis

Taumaturgos, Marc Bloch trata do caráter milagroso que estava implícito ao rei, que seria

capaz de curar escrófulas com o toque de suas mão. O caráter messiânico e militarista é

perceptível na lenda bretã arturiana e no sebastianismo português, entre outros.

O Livro das Bestas faz parte da obra Félix, ou Livro das Maravilhas e deve ter sido

composto entre 1288-1289 em Paris na ocasião da primeira visita de Llull a esta cidade.

Segundo Ricardo da Costa, o protagonista da obra, Félix, representa a imagem metafórica do

próprio Llull, como andarilho, pregador da fé cristã.78

A obra é uma fábula que trata da eleição de um rei no reino animal. No mundo

medieval o mundo humano era uma cópia imperfeita do celeste e o mundo animal uma

caricatura do humano. Llull se utiliza desta alegoria para fazer uma crítica.

75 Idem, p. 49. 76 Idem, p. 50. 77 LE GOFF, Jacques. Rei. In. LE GOFF, Jacques e SHIMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC, 2002, p. 396. 78 COSTA, Ricardo da. “Introdução”. In. LLULL, Ramon. Livro das Bestas. Tradução: Ricardo da Costa e Grupo I de Pesquisas Medievais da UFES. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 19-20.

69

Félix é uma novela de crítica social. De intenção reformística, didática e moral, não possui o objetivo de conversão tão própria do pensamento luliano, pois foi escrita para o próprio mundo cristão.79

Esta obra tem uma forte influência muçulmana, vários de seus exemplos são

inspirados na obra Kalia e Dimma. Na obra fica claro que a sociedade estaria passando por

uma crise dos valores morais e dos costumes sociais que se revelava em todas as classes

sociais, no entanto a obra tem função de doutrinar o ambiente político monárquico.

É consenso entre os especialistas que a obra é uma crítica a corte de Felipe IV rei da

França. Na cultura medieval o rei ocupa o lugar de Deus na terra e por isso tem que ter como

prioridade a manutenção da paz e da justiça. Para tanto deve se guardar dos maus

conselheiros, sendo esse a maior lição de Llull ao Rei, para que esse possa seguir sabiamente

ao dever primeiro, levar a si e a seu povo à salvação.

Embora a obra seja uma crítica à vida palaciana, não se configura como uma sátira

feudal, uma vez que está perfeitamente de acordo com o status quo vigente e sendo

complacente com a organização da hierarquia social do período.

Antes de discorrer sobre a obra é necessário que se coloque que a utilização dos

animais é perpassada pela simbologia bestiária medieval, na qual, o Leão era a própria figura

do rei pela sua força, o Leopardo passava a idéia de honra, a Onça era lisonjeira, a Raposa

astuta e a Serpente prudente.

O primeiro capítulo fala da eleição do rei, na qual a maioria das bestas concordaram

que o rei fosse o Leão, mas o boi vai contra esta escolha pelo fato do leão ser carnívoro –

nesta parte o autor liga os carnívoros à nobreza – e indica o cavalo, por sua beleza e

humildade. Utilizando um exemplo, o diálogo entre as personagens é sempre feito através de

exemplos, a raposa defende a eleição do rei, pois pela hierarquia natural o leão domina os

demais animais pela força.

A seguir, no segundo capítulo, dá-se a formação do conselho real, para qual o leão

pede o auxílio do povo, uma vez que ele reconhece os perigos de ser rei, pois, “pelos pecados

do rei muitas vezes Deus envia fome e doenças a terra”, logo é conveniente que o rei disponha

de um conselho que o guie para a sua salvação e de seu povo. Tal conselho deve ser formado

por homens sábios, leais e dignos.

79 Idem, p. 23.

70

O conselho real é então formado pelo Urso, Leopardo, Onça, Serpente, Lobo e o Galo,

este último devido ao discurso da Dona Raposa, que ficara insatisfeita por não compor o

conselho, mas, pela interseção da Onça o Leão fez do galo seu conselheiro por sua beleza,

sabedoria e por saber ser senhor de várias galinhas.

Com o conselho formado, a Dona Raposa insatisfeita arma uma traição contra o rei e

convence o Elefante de que com sua astúcia é capaz de derrotar o Leão e fazer do Elefante o

rei dos animais.

No quarto capítulo a Dona raposa torna-se porteira da câmara real, depois de uma

armação com o boi, convencendo-o que o Leão não era um bom rei e que levaria todo o povo

à danação por estarem na ira de Deus.

Um trecho deste capítulo que merece destaque é de um exemplo dado ao leão pela

raposa, onde fica claro qual é, na Idade Média, o papel do rei:

Um rei tinha ouvido falar de um santo homem que tinha grande sabedoria, e mandou procura-lo. Aquele santo homem veio ao rei, e o rei pediu que ficasse e o aconselhasse a governar seu reino, repreendendo-o caso visse algum vício nele também percebido pelas gentes. O santo homem esteve com o rei com a intenção de aconselhá-lo a fazer boas obras e a esquivá-lo do mal. Um dia aconteceu de o rei ter seu Conselho reunido para discutir um grande feito que havia acontecido em seu reino. Próximo daquele rei estava uma grande serpente, com a qual o rei se aconselhava mais fortemente que todos os outros. Quando viu a serpente, aquele santo homem perguntou ao rei o que significava ser rei neste mundo, e o rei disse: “-O rei está estabelecido nesse mundo para significar Deus, isto é, o rei deve ter justiça na terra e governar o povo que Deus lhe deu para comandar”.80

Com a intenção de criar laços com o rei dos homens o Leão envia à sua corte a Onça e

o Leopardo como mensageiros e o gato e cão para dar-lhe jóias. Com isto seu conselho ficou

reduzido e vulnerável às armações da Dona Raposa.

No capítulo V que narra o envio dos mensageiros ao reino dos homens são feitas

várias críticas a este e fica claro que o estado do reino é culpa principalmente da má gestão do

rei, que privilegiava a caça, a diversão, a luxúria e as práticas da vaidade e confiava muito em

seu conselho, “formado por homens perversos, malvados e vis que ansiavam mais serem reis

que o próprio rei”.

Na ausência do leopardo a raposa incita o leão desposar leoparda exaltando suas

qualidades e afirmando que “é vontade de Deus que o Rei tenha suas necessidades satisfeitas 80 LLULL, Ramon. O Livro das Bestas. Tradução: Ricardo da Costa e Grupo I de Pesquisas Medievais da UFES. São Paulo: Editora Escala, p. 57.

71

por seus súditos todas as vezes que for necessário”, fato que causa ira e descontentamento à

rainha e ao seu conselho.

No sexto capítulo, insatisfeito com a atitude do rei o leopardo chamo-o para um

confronto, para que a verdade saia vitoriosa num confronto justo, no qual o leão foi

representado pela onça, que foi derrotada pelo leopardo. No entanto, mesmo saindo vitorioso

do confronto o Leopardo é morto pelo rei traiçoeiramente, uma vez que se encontrava

exaurido pelo conflito.

No sétimo e último capítulo o Leão descobre a traição da Raposa e a mata,

significando assim a vitória da verdade. Llull encerra a obra com a moral da história, típica

das fábulas: “Está terminado o Livro das Bestas que Félix levou a um rei a fim de que ele,

olhando o que fazem as bestas, visse a maneira segundo a qual deve reinar e como se deve

proteger dos malvados conselhos e dos homens falsos.”81

Embora, como pudemos perceber com a análise destas fontes, a obra de Ramon Llull,

independente do público a qual se dedique, tem como fundamento principal levar o homem,

independente de seu lugar social, a gozar eternamente, no pós-morte, das glórias do Paraíso,

mostrando o quanto o destino da alma humana após a morte permeava a mentalidade do

homem medieval, revelando-se como uma de suas principais preocupações.

81 Idem, p. 88.

72

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta pedagógica elaborada por Llull, embora também pautada no conhecimento

científico, no seguimento de um currículo disciplinar, que no caso é o das Artes Liberais de

Marciano Capella, tem como principal fundamento uma educação que conduza o homem a

um contato com o Divino.

É sobretudo uma educação que sugere uma conduta moral, baseada nos preceitos

cristãos, para a composição de uma sociedade harmônica que seria alcançada a partir da

prática das virtudes, do afastamento dos vícios e da vivencia plena da vida cristã.

A salvação, o convívio com Deus, tão caro aos homens medievais, só seria possível e

merecido se eles praticassem uma vida pura, livre do pecado, e dedicada à Deus e à Igreja. Foi

a crença na possibilidade de uma vida eterna da alma após a morte do corpo que pautou o

projeto pedagógico de Ramon Llull, que defendia que através do conhecimento o homem

poderia aproximar-se da Sabedoria de Deus e, portanto, da salvação.

O que se faz necessário frisar é que embora a pedagogia luliana, como foi dito, tenha a

preocupação com o cumprimento do currículo educacional medieval, tem como principal

fundamento uma educação para a ‘vida integral’, que a alma tenha como ressarcimento o gozo

das glórias do Paraíso após a morte do corpo.

Obras como O Livro da Ordem de Cavalaria e O Livro das Bestas que em momento

algum fazem menção ao estudo das Artes Liberais ou das Ciências, não deixam, por isso de

possuírem uma intensa conotação educativa, que se demonstra no aconselhamento do

exercício de práticas que levem o homem à salvação, por meios diferentes da aprendizagem

científica proposta em Doutrina para Crianças. Mas não deixam por isso, de estar inseridas

na proposta educativa da Idade Média.

Ao olhar despercebido, estas obras seriam meramente consideradas um compêndio de

normas de comportamento. No entanto, refletem o principal intuito da pedagogia medieval: o

exercício de uma vida pautada na vivência cotidiana do cristianismo, a fim de alcançar para si,

no caso do Livro da Ordem de Cavalaria, ou para os súditos, como no Livro das Bestas, a

salvação eterna.

73

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