Monografia Bergson Fip 2008

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FUNDAO FRANCISCO MASCARENHAS FACULDADES INTEGRADAS DE PATOS PROGRAMA DE PS-GRADUAO (LATU SENSU) CURSO DE ESPECIALIZAO EM GEOPOLTICA E HISTRIA

BERGSON AMILEAR DE MACDO E BRITO

MEMRIA E POLTICA: Doutor Chiquinho e a Campanha Municipal eleitoral de Caic em 1968

CAIC-RN 2008

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BERGSON AMILEAR DE MACDO E BRITO

MEMRIA E POLTICA: Doutor Chiquinho e a Campanha Municipal eleitoral de Caic em 1968

CAIC-RN 2008

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BERGSON AMILEAR DE MACDO E BRITO

MEMRIA E POLTICA: Doutor Chiquinho e a Campanha Municipal eleitoral de Caic em 1968

Monografia apresentada coordenao do Curso de Especializao em Geopoltica e Histria, ministrado pela Fundao Francisco Mascarenhas, pelas Faculdades Integradas de Patos, em cumprimento s exigncias para a obteno do ttulo de Especialista. Orientadora: Ms. Olvia Morais de Medeiros Neta.

CAIC-RN 2008

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BERGSON AMILEAR DE MACDO E BRITO

MEMRIA E POLTICA: Doutor Chiquinho e a Campanha Municipal eleitoral de Caic em 1968

Monografia aprovada em _____/_______/________.

Banca Examinadora __________________________________________________________ Prof. Ms. Olvia Morais de Medeiros Neta (Orientadora) __________________________________________________________ __________________________________________________________

CAIC-RN 2008

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A minha esposa e meus filhos que tanto me ajudam neste caminhar.

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AGRADECIMENTOS Agradecemos, primeiramente, a Deus por ter nos dado a sade e a coragem para enfrentarmos os desafios cotidianos. Aos professores da FIP, que entraram em nossas vidas, nos orientando e guiando por entre a escurido, semeando em ns, com dedicao, e a sabedoria. Aos nossos orientadores pela pacincia, dedicao e compreenso nos momentos mais dolorosos desta empreitada. Aos nossos conterrneos e amigos, que nos concederam muita fora e informaes para a concretizao deste. Aos meus pais, pelo apoio, compreenso, dedicao e presena durante toda esta trajetria. A minha esposa e meus filhos, fonte inesgotvel de carinho e paz. Ao meu irmo Breno (In Memorian). Aos nossos familiares pelo incentivo constante e carinhoso, para que levssemos termos o projeto.

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RESUMO

Esta monografia intitulada Memria e Poltica: Doutor Chiquinho e a Campanha Municipal eleitoral de Caic em 1968 um estudo bibliogrfico, que aborda a memria no contexto histrico e poltico na eleio de 1968, em face da construo de aspectos que apontam para a recuperao e a representao do perodo histrico em questo, particularmente os gneros conhecidos como histria e memria. Para conduzir a discusso, foi feita a anlise do livro 1968 em Caic, de Francisco de Assis Medeiros, livro que retrata o perodo analisado no municpio de Caic/RN. Este trabalho se prope a discutir, do ponto de vista terico, as vertentes polticas, utilizadas nesta, buscando situ-las no debate historiogrfico contemporneo na constituio do prprio modo de ver e perceber o mundo contemporneo. PALAVRAS CHAVE: MMORIA POLTICA - ELEIO

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ABSTRACT

This monograph entitled Memory and Politics: Doctor Chiquinho and municipal electoral campaign of Caic in 1968 and a bibliographical study, which addresses the memory in historical and political context in the election of 1968, according to the construction of things pointing to a recovery and representation of historical period in question, particularly the genera known to history and memory. To lead the discussion, was the examination of the book in 1968 Caic, Francisco de Assis de Medeiros, book that portrays the period under review in the municipality of Caic / RN. This paper aims to discuss, the theoretical point of view, the issues policies, used in, trying them located in the historiographical debate in contemporary establishment of own way to see and understand the contemporary world. KEY - WORDS: MEMORY - POLITICS - ELECTION

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SUMRIO

1 1.1 1.2 1.3 2 2.1 2.2 2.3 3 3.1 3.2 3.3

INTRODUO..................................................................................... Histria e memria......................................................................................... Memria e Histria.......................................................................................... A memria e a sua dinmica............................................................................ Acontecimento e memria............................................................................... Histria e Poltica: A Campanha eleitoral de 1968 em Caic-RN............ Caic-RN e a poltica nos anos de 1960.......................................................... Caic no contexto da dcada de 1960............................................................. 1968: uma Campanha para a histria............................................................... Memria e poltica: Dr. Chiquinho e a Campanha eleitoral e 1968 em

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Caic-RN......................................................................................................... 32 Chiquinho e a Campanha de 1968: a construo de um candidato.................. 33 Dr. Chiquinho: de candidato prefeito............................................................ 36 O Desfecho da Campanha: a importncia dos programas eleitorais pelo rdio e o comcio da saudade na campanha de Dr. 43 46 54 57 Chiquinho......................................................................................................... O Comcio da Saudade.................................................................................... Consideraes Finais...................................................................................... Referncias......................................................................................................

3.3.1

1 INTRODUO

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A discusso sobre a relao entre Memria e Poltica, dentro do contexto historiogrfico um dos grandes debates tericos que atravessa vrias geraes de historiadores, pois envolve os objetivos e fundamentos do trabalho histrico. Atualmente, conforme a abordagem de alguns autores a memria no pode ser vista simplesmente como um processo parcial e limitado de lembrar fatos passados, de importncia secundria para as cincias humanas. Este trabalho intitulado Memria e Poltica: Doutor Chiquinho e a Campanha Municipal eleitoral de Caic em 1968, aborda os conceitos de Memria e Poltica, dentro do processo da Campanha Poltica e a eleio no ano de 1968, bem como dos aspectos histricos e econmicos que caracterizaram o perodo. Neste sentido, pretende-se evidenciar as implicaes do conhecimento histrico e geogrfico, tendo como base o livro 1968 em Caic de Francisco de Assis Medeiros. E, em seu desenvolvimento, ser tratada a construo de referenciais sobre o passado e o presente de diferentes grupos sociais envolvidos diretamente e indiretamente no contexto histricogeogrfico, identificando os conjuntos documentais de origem pessoal a uma manifestao concreta da memria individual de seu titular. Estudar a relao entre histria, memria e poltica privilegiar fatos e acontecimentos muitas vezes esquecidos ou desmerecidos. Cabe, num primeiro momento, fazer uma rpida e, por isso mesmo, superficial distino entre os conceitos de memria e poltica. O conhecimento histrico, de fato, possui e se permite essa dualidade: a memria coletiva e a histria dos historiadores. Isso significa dizer que as duas podem interagir entre si, e necessariamente o fazem, mantendo ainda assim suas especificidades e domnios. Pode-se at concordar que a histria a forma cientfica da memria coletiva, mas de qualquer maneira a identidade individual de cada uma permanece reconhecida. esse prprio carter de cientificidade, sua capacidade de informar sobre o passado, organiz-lo e hierarquiz-lo, desenvolvendo categorias de anlise que permitem tanto compreend-lo quanto responder os questionamentos do presente, ou seja, sua inteligibilidade e utilidade, que diferenciam a memria da histria. Esta possui uma especificidade como rea de conhecimento, uma forma particular de lidar com as temporalidades e uma exigncia de formao especfica que habilite o profissional a um trabalho com variadas fontes documental. Eis o ponto central deste trabalho monogrfico. No se trata apenas de diferenciar produes como memria ou histria a partir da formao de seus autores. Tampouco de afirmar que a viso de um passado muda conforme as pocas, estando o pesquisador submetido

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ao tempo em que vive. O fato que o trabalho histrico tem por fim tornar inteligvel o processo histrico e poltico de um perodo considerado turbulento, em vista da interveno militar no rumo do pas. Trata-se, portanto, de explicao, de compreenso, de pragmaticidade, no apenas de manuteno e celebrao do passado, mas da exposio dos aspectos cultural, histricos e polticos vividos no ano de 1968. A Campanha Eleitoral de 1968, em Caic representou aqueles que dela participaram um conjunto de novas possibilidades polticas. Estudar esta campanha tambm se debruar sobre a histria econmica, poltica e social do municpio de Caic. E neste contexto histrico, esta a figura de Francisco de Assis Arajo o Dr. Chiquinho, que o personagem central deste trabalho monogrfico e sua obra 1968 em Caic, que aborda as memrias do autor, em detrimento dos acontecimentos ocorridos neste perodo, uma vez que a dcada de 1960, mais precisamente o ano da campanha estudada marcada por agressivas disputas polticas. Como resultado dessas disputas ocorre muitos assassinatos. Um deles marcou a trajetria da campanha eleitoral de 1968, pois no ano de 1967, no ms de outubro fora assassinado o Doutor Carlindo de Souza Dantas e Anbal da Cunha Macedo, meu av. importante ressaltar que na memria coletiva desta campanha traz sempre recordaes de fatos emblemticos como assassinatos, intrigas e injurias. E, estudar a face destes relatos trazer para a academia fragmentos do cotidiano e das tramas polticas. Quando nos propomos a investigar a histria poltica tambm estamos abordando as nuances histricas de um povo e do seu lugar. Assim, este trabalho ir contribuir com a historiografia poltica da cidade de Caic e do Estado do Rio Grande do Norte. Para tanto apresentamos como objetivo geral a contextualizao dos aspectos histrico, cultural e poltico da participao e atuao de Francisco de Assis Medeiros Dr. Chiquinho, na Campanha Eleitoral para Prefeito de Caic (RN), em 1968, a partir de suas memrias e a co-relao das mesmas com os demais aspectos citados acima. Para o desenvolvimento da pesquisa que tem como temtica a histria poltica e memria, utilizaremos de olhares investigativos, destacando os mtodos da histria oral, uma vez que a mesma pode ser considerada como o registro da histria de vida de indivduos que, ao focalizar suas memrias pessoais, constroem tambm uma viso mais concreta da dinmica de funcionamento e das vrias etapas da trajetria do grupo social ao qual pertencem. Este mtodo apresenta um carter novo e envolvente, porque pressupe uma parceria entre informante e pesquisador, construda ao longo do processo de pesquisa e atravs de relaes baseadas na confiana mtuas, tendo em vista objetivos comuns. Constri-se assim uma imagem do passado muito mais abrangente e dinmica. Neste sentido, remontaremos

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"histrias" da Campanha de 1968 em Caic, nas quais destacaremos a atuao e a participao de um sujeito histrico - Dr. Chiquinho. Nestas circunstncias, toma-se vivel pensar a fonte oral como uma alternativa extremamente criativa, porque o dilogo estabelecido entre pesquisador e entrevistado, no momento da entrevista, constitui-se como uma experincia muito significativa, alm de ser um espao para a elaborao e manifestao da memria, que avana no sentido de construir um processo de democratizao da fala. A histria oral propicia a redescoberta de costumes e hbitos, a recriao de ambientes privados e coletivos. A matria prima dos depoimentos com os quais trabalhamos na histria oral so as lembranas. Para Halbwachs (1990:71), "[...] a lembrana em larga medida uma reconstruo do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e alm disso, preparada por outras reconstrues feitas em pocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se j bem alterada." Ou seja, as lembranas no vivem no passado, ao contrrio, precisam de um tempo presente de onde sejam projetadas e ancoradas por um sentido. Deve-se, ainda, salientar que, "na maior parte das vezes, lembrar no reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idias de hoje, as experincias do passado." Assim, as lembranas, alm de oferecerem uma descrio de acontecimentos vividos, trazem tambm uma anlise daqueles mesmos acontecimentos, dadas distncia em que o entrevistado se encontra deles, e sua disposio em avaliar as transformaes que vivenciou. Como salientamos anteriormente, uma de nossa principal fonte o livro de memrias, escrito por Dr. Chiquinho, publicado no ano de 2000 acerca da Campanha de 1968 em Caic. (MEDEIROS, 2000). Neste livro o autor reconstri a histria da Campanha de 1968 e as relaes polticas e sociais que nela se desenvolveram. Desta forma, esta fonte ser indispensvel anlise da histria poltica de Caic.

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CAPTULO UM Histria e Memria

1.1 Memria e Histria

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A memria, enquanto suporte da Histria, cumpriu uma longa trajetria, a partir do sculo XVI, evidenciando as caractersticas diferenciadas da sociedade antiga em que ocorre a hegemonia da histria oral, sendo que a memria escrita/figurada possuiu funes especficas neste contexto. A historiografia da Antiguidade clssica, como sabido, recorreu aos testemunhos diretos na construo de seus relatos. Esse tipo de fonte foi desqualificado na segunda metade do sculo XIX, mas, foi restaurada no sculo XX por historiadores que defendiam a validade do estudo do tempo presente. No entanto, a incorporao disciplina histrica do estudo da histria recente e do uso de fontes orais produzidas atravs da metodologia da histria oral no ponto pacfico: muitas vezes vista com suspeio e avaliada de forma negativa. Acerca da histria e da memria, Rousso (1993, apud Ferreira,1998:320) relata que:O aprofundamento das discusses sobre as relaes entre passado e presente na histria, e o rompimento com a idia que identificava objeto histrico e passado, definido como algo totalmente morto e incapaz de ser reinterpretado em funo do presente, abriram novos caminhos para o estudo da histria do sculo XX. Por sua vez, a expanso dos debates sobre a memria e suas relaes com a histria veio oferecer chaves para uma nova intelegibilidade do passado.

Nesta perspectiva, tomando como referncia as contribuies de Halbwachs, Pierre Nora (1993) prope uma nova histria das polticas de memria e uma histria das memrias coletivas da Frana. A valorizao de uma histria das representaes, do imaginrio social e da compreenso dos usos polticos do passado pelo presente, promovendo uma reavaliao das relaes entre histria e memria, permitindo aos historiadores repensar as relaes entre passado e presente e definir para a histria do tempo presente o estudo dos usos do passado. Nora (1993) aprofunda ainda a distino entre o relato histrico e o discurso da memria e das recordaes. A histria busca produzir um conhecimento racional, uma anlise crtica atravs de uma exposio lgica dos acontecimentos e vidas do passado. A memria tambm uma construo do passado, mas pautada em emoes e vivncias; ela flexvel, e os eventos so lembrados luz da experincia subseqente e das necessidades do presente. Essa perspectiva que explora as relaes entre memria e histria possibilitou uma abertura para a aceitao do valor dos testemunhos diretos, ao neutralizar as tradicionais crticas e reconhecer que a subjetividade, as distores dos depoimentos e a falta de veracidade

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a eles imputada podem ser encaradas de uma nova maneira, no como uma desqualificao, mas como uma fonte adicional para a pesquisa. Para Alessandro Portelli o aprofundamento terico e metodolgico, passa a penetrar no ntimo da histria oral de forma mais envolvente e subjetiva. Porm no deixaria de ser vista ainda como algo merecedor de censuras e indagaes por boa parte dos historiadores contemporneos. Tambm Portelli (1997:26) aponta que oralidade e escrita no so mutuamente excludentes. Pois a [...] supervalorizao das fontes orais terminam por cancelar as qualidades especificas, tornando estas fontes ou meros suportes para fontes tradicionais escritas, ou cura ilusria para todas as doenas. Pesquisar memrias para construir a histria, incorre para a instaurao de um novo tipo de relaes e novos pressupostos, o que para Furet (1988 apud FLIX, 2004:60) se poderia fazer "[...] renovar os velhos temas ou tratar temas que nunca foram trabalhados com mtodos j testados". Deve-se compreender que as fontes orais tm sustentao direta na teoria interpretativa, que suas origens do-nos informaes sobre o povo iletrados e letrados ou grupos sociais, cuja histria escrita falha ou distorcida. E tambm os temas so na maioria das vezes a vidas dirias e a cultura material destas pessoas ou grupos. A pesquisa em torno da memria considerada como uma atividade de investigao que se faz com objetivos definidos de descoberta ou de reavaliao e que envolve a dimenso de coexistir um dado novo, e neste aspecto o objetivo deste trabalho se torna bastante pertinente, uma vez que se buscam novas conceituaes para possveis abordagens. Para utilizar a histria oral necessita-se entender a memria. Usando os conceitos de memria coletiva transformaes, que segundo Maurice Halbwachs, [...] a memria deveria ser de constantes analisada como um fenmeno social, construda coletivamente a passvel individual. (apud SCHIMDT, 2000:10). Convm dizer que a memria respalda a histria, pois dela se alimenta (Le Goff, 2000), tanto quanto os documentos testemunham os fatos. A propsito, o autor, cita Pierre Nora ao se referir ao passado vivido pelos grupos sociais semelhana de memria histrica da sociedade e faz associao entre histria e memria ao considerar.At aos nossos dias histria e memria confundiram-se praticamente e a histria parece ter-se desenvolvido sobre o modelo de rememorizao, da anamnese e da memorizao. Os historiadores davam a frmula das grandes mitologias coletivas, ia-se da histria memria coletiva. Mas toda a evoluo do mundo contemporneo, sob a presso da histria imediata em grande parte fabricada ao acaso pelos meios de comunicao de massa, caminha para a fabricao de um

o que contraria as hipteses de que a memria apresenta-se puramente

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nmero cada vez maior de memrias coletivas e a histria escreve-se, muito mais do que antes, sob a presso destas memrias coletivas. (LE GOFF, 2000:54).

Hobsbauwm (1995:145) considera que o ofcio do historiador no somente "o de lembrar o que os outros se esquecem", mas principalmente de "compreender e explicar porque as coisas deram no que deram e como elas se relacionam entre si". A principal tarefa do historiador "[...] no julgar, mas compreender, mesmo o que temos mais dificuldade para compreender"; entretanto o que nos dificulta a compreenso "no so apenas nossas convices apaixonadas, mas tambm a experincia histrica que as formou". Entretanto, imprescindvel pontuar uma caracterstica prpria da fonte oral que, talvez constitua uma das singularidades do trabalho pautado em fontes orais. Essa especificidade reside no fato de que os meios e acervos de que dispe o pesquisador para a construo da percepo, no tempo e no espao, da experincia humana surjam do trabalho direto com pessoas, seres humanos concretos possuidores de emoes e experincias prprias, e no com dados estticos, ou com algo j pronto. 1.2 A memria e a sua dinmica A memria por ser dinmica acompanha as transformaes, mas tambm resiste s mudanas que muitas vezes e por vrios motivos optamos por no fazer. Nesse caso, como bem o lembram os especialistas, podemos compreender os relatos orais no apenas como uma dada compreenso do passado do que realmente aconteceu, mas tambm daquilo que deixou ou que deveria ter ocorrido. Se o que buscamos apreender a memria, e acredito que esta no se encontra na fala, preciso tambm um esforo numa tentativa de compreender as significaes dos silncios da memria, mais do que distores da memria o silncio deve ser pensado tambm como recurso a ser explorado e compreendido. certo que a tentativa de reconstruo do passado atravs das fontes orais implica para o pesquisador no reconhecimento das vrias verses acerca do tema relatado; porm, isso no significa que deva aceitar de modo acrtico a histria de vida da pessoa como uma narrao do acontecido. Nesse sentido, objetivo ao trabalhar a oralidade volta-se menos ao interesse em afirmar o relativismo total da verdade, e mais tentativa de compreender a formao das verdades dentro das histrias de vidas para poder refletir, num segundo momento, sobre o passado. Portanto, a preocupao principal consiste em aprofundar e compreender os percursos das narrativas, os movimentos presentes na memria. A matria prima do historiador so os documentos, a partir dos quais, mediante um esforo terico-prtico, ele produz o conhecimento histrico. No entanto, a produo do conhecimento uma prtica social e, portanto, carregada de valores e tambm sujeita s

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injunes que condicionam o trabalho dos historiadores, homens e mulheres de seu tempo e que falam de um determinado lugar social, com determinada viso de mundo. A historiadora Marieta de Moraes Ferreira (1992:32), acrescenta que esse processo continuou no sculo XIX, quando ocorre a institucionalizao da Histria como disciplina universitria e uma profissionalizao dos historiadores: "Nesse momento, os historiadores passam a adotar um conjunto de procedimentos para se diferenciar daqueles ento denominados amadores." Essa Histria metdica e factual, centrada no estudo de "grandes eventos histricos" e "grandes personalidades", foi muito forte at a primeira metade do sculo XX. Historiadores como Marc Bloch e Lucien Febvre propuseram a diversificao de temas, mais voltados para as "pessoas comuns" e relativizaram a importncia de "marcos polticos" para a escrita da Histria. Esse foi o primeiro passo que culminou com a diversificao do uso de fontes, englobando tambm a iconografia, a literatura e trabalhos artsticos. Segundo Pollak (1992:4-5),A memria seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado [...] sofre flutuaes [...] fenmeno construdo [...] Se podemos dizer que, em todos os nveis, a memria um fenmeno construdo social e individualmente, quando se trata da memria herdada, podemos tambm dizer que h uma ligao fenomenolgica muito estreita entre a memria e o sentimento de identidade.

Como esse caso teve repercusso nas eleies de 1990 para apresenta reflexes referentes organizao e a diversificao da memria, caracterizando-a como sendo seletiva porque nem tudo pode ser registrado no transcorrer histrico (SCHIMDT, 2000:12). As construes da memria devem ser compreendidas como implicaes do presente com o passado, ocasionando a alterao de sua forma devido ao fato da memria ser articulada socialmente. Em outras palavras, eventos histricos deixaram de ser vistos apenas como situados em uma linha do tempo para serem problematizados em funo de um contexto mais amplo de rupturas, transformaes sociais e mudanas culturais. Para ela, uma vez acontecido esse rompimento, a memria pde entrar mais facilmente no rol de preocupaes dos historiadores, j que lembranas habitam, por excelncia, longas duraes, ou seja, esto ligadas a processos histricos mais amplos. E nesta perspectiva, a obra 1968 em Caic, de Francisco de Assis Medeiros, traduz uma tentativa de se estabelecer os acontecimentos desta poca, em face de uma nova

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perspectiva, na qual pode ser usada a memria como constituinte de aspectos polticos prprios da poca, como veremos na seqncia. 1.3 Acontecimento e memria Halbwachs (1990) discute aspectos da memria, segmentando-a em memria individual e memria coletiva. Foi sobre o modo de encarar esta ltima que o autor destacou os elementos que organizam os traos sociais da cultura, disseminada pelos membros que dela fazem parte. Tal disseminao resulta do processo de mediao e transmisso de valores simblicos, capazes de armazenar as informaes e recuper-las sob forma de lembranas. Considera o autor:Haveria ento, na base da lembrana, o chamado a um estado de conscincia puramente individual que para distingui-lo das percepes onde entram tantos elementos do pensamento social admitiremos que se chame de intuio sensvel. (HALBWACHS, 1990:37).

O meio social oferece as bases para a construo da memria individual que, ao contato com os demais membros da comunidade, algo em comum constituir a memria coletiva. Portanto, para Halbwachs (1990), existem memrias individuais e os indivduos vo constituir uma atmosfera de intercmbios sociohistricos que transmigrar pelos pores do inconsciente, como herana que se manifesta em sucessivas etapas histricas do ser humano em contnua atividade cultural. Em referncia a figura de Dr. Chiquinho, no qual se situa o estudo em questo, percebe-se, que as fontes, em forma de depoimentos pessoais so memria. Para Becker (2003:46):O relato, seja ele biogrfico ou autobiogrfico, como o do investigado que se entrega a um investigador, prope acontecimentos que, sem se terem sempre desenrolado na sua estrita sucesso cronolgica (quem j coligiu histrias de vida sabe que os investigados perdem constantemente o fio da estrita sucesso do calendrio), tendem ou pretendem organizar-se em seqncias ordenadas segundo relaes inteligveis. O sujeito e o objeto da biografia (o investigador e o investigado) tm de certa forma o mesmo interesse em aceitar o postulado do sentido da existncia narrada (e, implicitamente, de qualquer existncia).

Quando se trabalha com Histria Oral, logo vem questo da delidade e validao cientificas, considerando-se a natureza subjetiva das fontes orais tanto quanto ao carter efmero da memria. Ora, o processo de reconstituio da memria radiofnica exigia do pesquisador posturas que se inscreviam na ordem da comparao, cruzamento de

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informaes, anlise de contedo das falas, para que as evidncias orais sugerissem a realidade com a qual estvamos trabalhando. A esse respeito, Thompson (2002) j assinalara:Nossa principal tarefa aqui ser tom-la [a questo da evidncia da histria oral] em seu sentido literal e verificar como se sustenta a evidncia oral quando apreciada e avaliada exatamente do mesmo modo como se avaliam todos os outros tipos de evidncia histrica (THOMPSON, 2002:138).

Percebe-se que o autor atribui a relevncia dos relatos orais como um documento a ser considerado pelo pesquisador, pois, de contrrio, seria [...] ignorar o extraordinrio valor que possuem [as fontes] como testemunho subjetivo, falado. (THOMPSON, 2002:34). Partindo deste entendimento, passamos a reconhecer o ator social na condio de sujeito portador da tradio oral, aqui admitido como documento vivo, no obstante reconhecermos a divergncia de opinies centradas sobre a fora da oralidade como algo que sustenta a histria. Burke (1992:170) lembra que para os historiadores a palavra escrita soberana, mas destaca que devemos reconhecer a distino entre a fala importante e a banal. Sendo assim, fomos ao encontro dos informantes por acreditarmos que as vozes reminiscentes das testemunhas deveriam ecoar sobre a materialidade da pesquisa, considerando-as importantes reconstituio da memria, como ser exposto nos captulos seguintes.

CAPTULO DOIS

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Histria e Poltica: A Campanha eleitoral de 1968 em Caic-RN

2.1 Caic-RN e a poltica nos anos de 1960

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Na dcada de 1960, o Brasil passava por uma sria crise poltica, agravada pelo conflito ideolgico da esquerda versus a direita, com radicalismo de ambas as partes. Dentro desse contexto, se destacava o antagonismo entre as foras nacionais (comunistas) e as foras conservadoras (entreguistas), com a participao ativa de polticos operrios e estudantes. Como conseqncia da crise que abalava o pas Jnio Quadros renunciou, entregando o cargo de presidente da Repblica a Joo Goulart, em agosto de 1961. Goulart, em agosto de 1961, tomou posse em 7 de setembro e governou, em regime parlamentarista, at ser deposto pelo golpe militar em 1964. As constantes crises polticas vividas pelo pas refletiam e deixavam profundas marcas na regio nordestina. Apesar do crescimento de sua produo industrial, a participao do Nordeste no produto total do pas caa para 15,5%, ndice menor do que o de outras regies. Como conseqncia do processo de industrializao, cresceram os centros urbanos, e, ao mesmo tempo, aumentava o xodo rural, com o deslocamento de grande nmero de famlias para as grandes cidades. De acordo com Pereira (2006:169):O aparecimento das massas na cena poltica foi tambm importante fator para o desenvolvimento do populismo. A urbanizao, a industrializao e o crescimento da organizao dos grupos populares faziam crescer os movimentos reivindicatrios por melhores condies de vida. Nessa situao, os lderes populistas procuraram mobilizar e manipular as aspiraes dos grupos populares emergentes no citado perodo, que aspiravam por melhores condies scio-econmicas.

Um dos fatores que contriburam para o xito do populismo no Rio Grande do Norte foi atuao da Igreja Catlica, com a instalao dos sindicatos rurais e com o Movimento de Educao de Base. Foi, sobretudo, no processo poltico que o descontentamento popular se refletiu no Nordeste, com grandes vitrias conquistadas pela oposio durante o perodo compreendido entre 1956 a 1962. No Rio Grande do Norte, em 1960, Aluzio Alves se elegeu governador e, no mesmo ano, Djalma Maranho chegou prefeitura de Natal, tambm pela oposio. A campanha poltica de 1960 se desenrolou num clima de muita agitao. O governo Dinarte Mariz deixou um testamento poltico que desorganizou, completamente, as finanas do Estado. O povo norte-rio-grandense estava asfixiado, aspirava por se livrar daquela situao, recebendo com entusiasmo a mensagem oposicionista que prometia reformular os

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processos administrativos, dinamizar a administrao pblica e criar as condies bsicas para iniciar a industrializao, comeando, dessa maneira, o desenvolvimento do Estado, em particular o municpio de Caic, no qual nos deteremos a seguir. 2.2 Caic no contexto da dcada de 1960 Como afirmou Cmara Cascudo, o gado levou o homem civilizado para o Serid, e o algodo expulsou o gado e fixou o homem regio. Depois da pecuria, foi a cotonicultura que impulsionou a economia nas terras do Serid. No sculo XIX, a pecuria associada a produo do algodo, sem sombra de dvida constituram os elementos que dinamizaram, impulsionaram e sustentaram o espao regional at as dcadas de 60/70 do sculo XX. Se a pecuria teve o papel de sedimentar a vida interna alicerada nas grandes fazendas de gado, portanto dando contorno ao espao rural, a cotonicultura vai projetar o Serid para alm de suas fronteiras, redesenhando a sua importncia no cenrio estadual. Tal fato decorrente da prpria natureza da produo algodoeira. certo que o cultivo do algodo se d no espao rural, mas ele teve o poder de alavancar o desenvolvimento regional, estruturando o espao urbano de forma bastante significativa. Isso porque, alm do processo de produo no campo, havia o beneficiamento e comercializao na cidade, possibilitando outro tipo de dinmica regional. O desenvolvimento de uma economia que articulava o campo a cidade estava dada para alm das fronteiras regionais e do pas. Nesse contexto, possvel dizer que at o sculo XIX a regio do Serid no passava de um recanto, cuja produo destinava-se apenas para o consumo interno, sem grandes vinculaes extra-regionais. Entretanto, esse quadro foi revertido a partir da cotonicultura como atividade comercial de exportao. Nesse cenrio o Serid despontava como principal regio econmica e epicentro do poder poltico do Estado. No Serid, o municpio de Caic, na dcada de 1960, j demonstrava o crescimento urbano provocado pela migrao do campo para a cidade. Primeiro, porque as cidades interioranas no eram capazes de reter a populao local, por falta de emprego e segundo pela falta de polticas pblicas, voltadas para a gerao de emprego, melhoria da educao, sade, habitao e lazer, a exemplo do que ocorrem, sobretudo, nas chamadas cidades regionais. Nesse contexto poltico, o crescimento urbano de Caic pode ser analisado, considerando-se o carter dinmico do fenmeno da ocupao do espao. Mesmo sendo baixo

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o padro tecnolgico, o cultivo do algodoeiro no Nordeste sempre teve papel de grande relevncia, tanto como cultura de reconhecida adaptabilidade s condies climticas da regio, como fator fixador de mo-de-obra, gerador de emprego e de matria prima indispensvel ao desenvolvimento regional e nacional. O perodo de 1960 a 1970 pode ser considerado como o momento de maior expressividade na economia de Caic e no Serid como um todo, em decorrncia da produo e beneficiamento do algodo. A dcada de 1960 testemunhou o perodo ureo da cotonicultura. A cidade tinha sua economia consubstanciada no binmio algodo-gado e, com relao ao processo de beneficiamento do produto, trs grandes usinas monopolizavam a produo do algodo em Caic, sendo a ALSECOSA a que permaneceu mais tempo em atividade. Segundo Morais (1999:94):Entre os anos 50/60, existiam na cidade trs usinas de beneficiamento de algodo: Diniz & Dantas S. A., Exportadora Dinarte Mariz S. A. e Algodoeira Serid Comrcio e Indstria S. A. (ALSECOSA). [...] A usina mais antiga era Diniz & Dantas S.A. pertencente a Jos Rocha Diniz e filhos, que se localizava em prdio conhecido como vapor de Jos Diniz (sic) (atual Rua Felipe Guerra). Conforme informaes prestadas por Jos Rocha, filho de Jos Diniz (assim era chamado), essa usina pertenceu, inicialmente, a Joel Dantas, tendo sido fundada em 1938. Foi adquirida por Jos Diniz e Francisco Assis Dantas em 1942, passando a chamar-se Diniz & Dantas S. A.. Trabalhava com o beneficiamento de algodo e produo de leo. Em janeiro de 1964, um grande incndio destruiu a maior parte do algodo estocado e danificou vrias mquinas, provocando enormes prejuzos. Nesse nterim, j estava em andamento a construo das novas instalaes da usina, em local denominado de Nova Descoberta.

De acordo com Morais (1999:93), no incio da dcada de 1960, a cidade tinha sua economia ainda consubstanciada no binmio algodo-gado. A cotonicultura, particularmente, apresentava maior expressividade em termos locais, dadas as condies de mercado favorveis ao algodo fibra longa. Declaradamente, as indstrias de beneficiamento de algodo contriburam com o desenvolvimento do municpio, bem como do surgimento de alguns bairros.A expanso da atividade algodoeira e a modernizao das unidades de beneficiamento na dcada de 60 repercutiram em termos de organizao espacial de Caic, por meio da localizao de usinas na cidade. As usinas funcionaram como plos dinamizadores tanto em tem de economia - oferta de empregos e circulao de capital- como no que se refere expanso urbana surgimento de bairros novos e crescimento de alguns j existentes. (MORAIS, 1999:94).

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O crescimento de Caic conduziu a uma ampliao do stio urbano, que marcou os anos 1960 como aqueles que a cidade se expandiu, e conseqentemente seu nmero populacional, tambm teve seu nmero aumentado. Para Morais (1999:113):Os resultados do Censo de 1960 tomam cada vez mais evidentes a consolidao da tendncia concentrao da populao no espao urbano, que vinha se esboando ao longo do atual sculo. Enfim, os nmeros comprovaram uma inverso entre a populao urbana (59,1 %) e a rural (40,9'%), alm de demonstrarem uma taxa de crescimento urbano para o perodo de 1950/60 de 109,3 %. A importncia do que revela os dados no reside apenas no fato de que a populao total cresceu (13,4%) e a populao urbana passou a ser predominante, mas no exponencial crescimento urbano ocorrido ao longo dos anos 50.

Ainda de conformidade com Morais (1999) a explicao para tal situao sugere a ocorrncia de um processo migratrio, que envolveu o deslocamento tanto da populao rural de Caic como tambm de outros municpios de sua rea de influncia, inclusive de suas zonas urbanas. Essas inferncias encontram respaldo nos dados obtidos que registram uma diminuio da populao rural caicoense, o que reflete um processo de mobilidade intramunicipal, mas que per si no justifica o considervel aumento da populao urbana. Pois,Acrescenta-se anlise o fato de que o Municpio de Caic nesse decnio passou por outra fragmentao, da qual surgiu o Municpio de So Fernando, em 1958. E ainda que, de acordo com os dados censitrios, mesmo tendo se verificado um crescimento urbano em quase todas as cidades da regio do Serid, nenhuma delas sequer aproximou-se do ndice alcanado por Caic nesse perodo. (MORAIS, 1999:113).

No aspecto poltico, a cidade de Caic, teve seus legtimos representantes, com atuao no Serid, bem como da poltica do Estado. De acordo com Mariz (1984:48), a sua hegemonia econmica se deu devido ao deslocamento do eixo poltico do litoral para o serto, com a ascenso da oligarquia Medeiros (j citada anteriormente, em referncia a Dinarte Mariz, representante da elite algodoeiro-pecuarista, tendo a frente s lideranas de Jos Augusto e Juvenal Lamartine. possvel considerar, inclusive, que foi a partir dos anos 1950/60 que Cac passou a assumir, de forma mais ntida, a funo de centro de prestao de servios, principalmente nos setores de comrcio, educao e sade; e que aos poucos sua economia ganhou novos contornos por meio de um tercirio que se dinamizava. Inserido neste cenrio, o jovem Francisco de Assis Medeiros, at ento apenas advogado, dava seus primeiros passos na poltica municipal, como companheiro inseparvel de algumas figuras j conhecidas no ambiente poltico, como Carlindo de Souza Dantas (In

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memoriam), Anbal Macdo (In memorian), Adjuto Dias, Raimundo de Souza Dantas, Emdio Germano da Silva dentre outros. Figuras estas que participariam diretamente da campanha poltica municipal de 1968.

2.3 1968: uma Campanha para a histriaO perodo de 1964 a 1983 foi marcante para todo Brasil. Ocorreram mudanas econmicas, polticas e sociais decorrentes do golpe militar que originou o regime poltico denominado de Revoluo de 31 de maro para os dominadores e ditadura militar para os oprimidos. O ano de 1968 foi o de maior efervescncia poltica e de represso. Foi nesse ano que o governo Costa e Silva editou o Ato Institucional no5, AI-5, que tornou o regime ainda mais repressor. O ato fechou o Congresso, instaurou inquritos militares sigilosos, alm de mobilizar um aparato de foras repressoras para fazer frente a um processo de guerra revolucionria. O AI-5 apresentou-se como uma medida permanente, ao contrrio do carter provisrio dos demais atos institucionais, vindo a serem revogados 11 anos depois. O ano de 1968, tido por muitos como o ano zero de uma nova modernidade, foi rico em fatos que transformaram o Brasil e o mundo. Na luta por direitos civis, nas artes e nos costumes, a dcada de 60 teve em 1968 seu pice. Se por um lado o Brasil vivia intensamente a efervescncia de um processo revolucionrio no mbito cultural, social e poltico, o pas sofria a represso retrgrada promovida pelo governo militar, instalado aps o Golpe de 1964, e que contava com o apoio de setores mais conservadores de sua sociedade. Este perodo da histria brasileira cada vez mais se torna objeto de estudo e reflexo. Uma abordagem ampla, onde a anlise dos fatos no se fixe apenas em fontes histricas tradicionais, de grande importncia para sua compreenso. Neste contexto, Dr. Chiquinho passa a descrever em seu livro 1968 em Caic, suas memrias, do que seria o ano pra no se esquecer, como bem afirma o escritor Zuenir Ventura, Para Medeiros (2000:04):Na verdade, a campanha para a eleio de Prefeito de Caic em 1968 marcou poca no Municpio, seno em toda a regio do Serid. [...] Incentivado pela generosidade de velhos e dedicados amigos resolvi abrir os meus arquivos pessoais, cerca de quarenta quilos de papis e documentos; duzentos eslaides, vinte volumosos lbuns de fotografias, dezenas de horas de gravaes em fitas magnticas; alguns filmes, e, acima de tudo, cadernos, muitos e grossos cadernos, hoje amarelecidos e quase em decomposio pela ao inexorvel do tempo e do ambiente mido dos armazns e pores em que estiveram amontoados ao longo dos anos. Maravilhosos cadernos,

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fiis guardies de todo o cabedal de anotaes que registrei durante a campanha e o exerccio do cargo de Prefeito.

Para inmeras pessoas 1968 foi o marco de uma nova modernidade, o ano zero de um amplo processo revolucionrio. Para o jornalista Zuenir Ventura foi o ano que no terminou ou que viria terminar muitos anos depois. Alguns creditam o incio de 1968 a abril de 1964 quando se iniciou o regime militar. Para outros 1968 comeou em 28 de maro com o assassinato do secundarista Edson Luiz durante um protesto estudantil e terminou na sextafeira 13 de dezembro com o anncio do Ato Institucional n. 5, no qual o governo militar definitivamente transformou o pas numa ditadura. Para o historiador Daniel Aaro Reis (1988:34) o ano de 1968 pode ser definido como:Um mundo em movimento, conflitos, projetos e sonhos de mudana, gestos de revolta, lutas apaixonadas: revolues de costumes, na msica, nas artes plsticas, no comportamento e nas relaes pessoais, no estilo de vida e nas tentativas novas no apenas de derrubar o poder vigente, mas de propor uma relao diferente entre poltica e a sociedade. O que no se questiona de modo vago e confuso a articulao da sociedade e suas grandes orientaes, seus propsitos, seu modo de ser: trata-se de mudar de sociedade e de vida.

Em contexto ao municpio de Caic, Dr. Chiquinho acrescenta que o ano de 1968, tambm continha as razes das desdobraduras que o resto do mundo apresentava.Ademais, 1968 impuseram decisivas transformaes humanidade. O filsofo Herbert Marcuse orientava a chamada nova esquerda. A juventude "pra frente" compunha o chamado poder jovem. A plula libertava as mulheres. As minorias desencadeavam virulenta luta contra a discriminao. Os estudantes sublevavam-se contra as estruturas dominantes. [...] Caic comemorava o centenrio de sua elevao categoria de cidade. O Brasil convivia com inflao de quarenta por cento ao ano e tinha uma populao de oitenta e nove milhes de habitantes. (MEDEIROS, 2000:04).

No que diz respeito, as eleies, deste ano representou bem mais que apenas uma eleio municipal, mas a caracterizao de um perodo que pode ser entendido, como histrico, uma vez que apresentava em seus meandros uma co-relao de foras polticas, e conseqentemente de poder. Para Araujo (2002:01):As campanhas eleitorais, os simbolismos dessas campanhas, o comportamento das massas messes momentos, o imaginrio poltico, a tradio poltica, a apropriao dessas tradies pelos diferentes grupos, sem falar nas ideologias partidrias e nas prticas polticas e as intenes por traz das mesmas, pois se tudo poder e, conseqentemente, poltica, ento se faz necessrio distinguirmos as diferentes formas e nveis de poder.

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Sob essa perspectiva, Remond (1996:12) ressalta que:H uma nova histria poltica reclamando seu espao, neg-la j no mais possvel, no entanto ainda faz-se necessrio uma delimitao, pois afinal, o que o poltico? Se o poltico o poder e, se concordarmos com Foucault, onde o poder est em tudo, tudo relao de poderes; dessa forma torna dificlima uma historiografia denominar-se poltica, mas se seguirmos essa linha e partirmos para o conceito de cultura, onde segundo a teoria contempornea toda ao humana uma ao eminentemente cultural, pois estar inevitavelmente relacionada ao universo simblico, chegamos mesma concluso, pois se tudo produzido culturalmente porque definir uma histria como poltica? O mesmo aplica-se ao conceito de imaginrio, de social etc.

No que diz respeito ao imaginrio poltico, estas eleies para Dr. Chiquinho, poderia ser considerada como participativa e popular, como jamais ocorrera no municpio.Em Caic, essa foi ltima campanha eleitoral para Prefeito desenvolvida de forma inteiramente artesanal. A mais violenta e festiva; a mais popular e marcante de todas elas em todos os tempos. Nela, com intensa participao, foi envolvida a comunidade toda, prenhe de amor e dio. numa exploso de incontida e ardente paixo poltica, como jamais manifestada at queles dias de obstinao na luta pela vitria nas urnas. Centenas e centenas de jovens caicoenses gravaram para sempre em suas retentivas sentimentais imagens dessa contundente batalha eleitoral, especialmente lembranas da parte festiva da campanha, dos comcios e passeatas, inesquecveis manifestaes de civismo e coragem que o tempo no consegue apagar da memria de nenhum de ns, porque j se sublimaram em saudade, em autnticos trofus que os coraes guardam como prova da bravura desses seridoenses idealistas que, destemidamente, foram luta, venceu e soube abrilhantar a vitria com tolerncia e respeito ao adversrio. Quantos participaram pobres e ricos, crianas, jovens e pessoas idosas, homens e mulheres, letrados e analfabetos, da cidade e do campo, todos conservam seus galardes e tm muitas histrias a contar desses bons tempos dos anos sessenta. (MEDEIROS, 2000:05).

E neste cenrio de verdadeira comoo poltica, que se enveredou a partir dos assassinatos do Deputado Carlindo Dantas e do industrial Anbal Macdo, no ano de 1967, foi lanada a candidatura de Dr. Chiquinho, que ocorreu na Granja Caiara (no municio de Caic), a partir do discurso de Adjuto Dias, que emocionado, exultou o lanamento do nome de Dr. Chiquinho, como lembra o prprio, como se ver abaixo:No seu discurso, ao final do almoo, Adjuto analisou percucientemente a situao do nosso grupo poltico sem o Deputado Carlindo Dantas, assassinado em 28 de outubro do ano anterior; exultaram os correligionrios do Deputado Milton Marinho a se unirem aos carlindistas contra o adversrio comum a quem tnhamos o dever de impor derrota com maioria digna das nossas mais legtimas tradies polticas no municpio; assegurou que o Senador Dinarte Mariz e o Deputado Grimaldi Ribeiro integrar-se-iam de corpo e alma na campanha; acrescentou, com sincera convico, sendo entusiasticamente aplaudido por todos os presentes, que dentro em breve seriam descobertos e postos na cadeia os mandantes e os matadores da chacina do Caic Esporte Clube, onde tinham tombado mortos dois fraternais companheiros, o

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Deputado Carlindo Dantas e o industrial Anbal Macedo. Ao concluir, com o entusiasmo que lhe era peculiar, lanou o meu nome para prefeito e o de Vicente Macedo Neto para vice-prefeito nas eleies a se realizarem em 15 de novembro. (MEDEIROS, 2000:13).

Caracteristicamente, esta eleio para o prprio Dr. Chiquinho foi impar, uma vez que desde os seus primeiros momentos, o aspecto emocional foi considerado a mola mestra da eleio, pois a campanha nascera devido ao sentimento de fazer justia a dois assassinatos, e, por conseguinte de modificar o quadro poltico que se estabelecera no municpio. De acordo com Barreira (1996), o aspecto emocional envolvido numa campanha eleitoral, est alm da busca por um resultado positivo, O perodo de campanha eleitoral representa mais do que um momento de jogos de estratgia e tticas empregadas para alcanar a vitria, representa um evento catalisador de valores sociais. Um campo frtil para analisar dimenses da vida cultural de uma dada sociedade que se evidenciam explicitamente na circunstncia eleitoral. Conforme a autora no perodo eleitoral que determinadas aes sociais se evidenciam:Ocorre uma radicalizao de imagens e personagens que so contrapostas. [...] uma campanha poltica essencialmente conito simblico, cujas regras do jogo so a exacerbao da diferena, o enaltecimento de aptides e a tentativa de apropriao de valores que expressam o centro da vida social. (BARREIRA, 1996:10)

Nessa esfera de disputas simblicas onde a imposio de uma figura poltica depende, alm de fatores externos, de sua aceitao carismtica e passional por parte do eleitorado, adquire relevncia incontestvel o apelo e utilizao dos sentimentos e emoes nos discursos e narrativas polticos. Desta forma, no universo da poltica, esse processo se apresentaria atravs do culto personalidade, os polticos so ento avaliados a partir de atributos pessoais, avaliaes de carter e de comportamentos. Cientes desta realidade, toda candidatura para ser efetivamente vlida precisa se estruturar de maneira a enaltecer tais aspectos do candidato. Outra questo determinante de tal apelo apresentada por Barreira (1996) como o desencantamento com a lisura do universo poltico bem como a ausncia de participao do eleitorado nas decises desta esfera:As condies de participao no plano das decises polticas constroem espaos de distanciamento, trazendo por conseqncia descrena na esfera da representao poltica. Eis porque o momento eleitoral tem a dupla tarefa de recompor para algumas camadas sociais o reconhecimento da poltica e viabilizar crenas atravs de plataformas partidrias. (BARREIRA, 1996:11)

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Desta forma, a construo e difuso de ideologias e de personagens polticos caricatos e carismticos se fazem necessrio. O espao das eleies pode ser percebido como situao na qual a troca simblica se realiza entre voto e adeso por credibilidade. Mas tal conabilidade suscitada atravs de apelos por sentimentos, crenas e subjetividades do imaginrio despertado a partir das emoes. possvel dizer que as diferentes campanhas polticas representam uma rotina normatizada pela experincia e readaptada a regras especificas de cada situao. Enquanto estratgia de enfrentamento de adversrios, as campanhas so metforas de um jogo cuja pea fundamental da ordem da linguagem, das crenas materializadas no voto. Convencer eleitores, comprovar capacidade de mando, provar integridade moral so tarefas que acompanham esse momento de difuso, incorporao e apropriao de elementos simblicos. (BARREIRA, 1996:11)

Como mencionado por Barreira (1996), existem regras especcas de cada situao, o cenrio e seus meandros em que acontece a disputa exerce inuncia crucial na deciso eleitoral. Neste sentido, fatores externos podem mesmo definir qual personagem poltico se posicionar adequadamente no cenrio vigente. Desta forma, o perl de um candidato est propcio a sofrer interferncia das caractersticas deste cenrio, o que determina tambm quais os recursos simblicos solicitados para compor este prl. Apesar de participar diretamente deste cenrio emocional, Dr. Chiquinho se viu em diversas ocasies que o mesmo no acreditava que tivesse realmente acontecendo. Numa destas ocasies, o prprio se viu envolvido num episdio ocorrido em janeiro de 1968, em que o mesmo descreve como inusitado, ao ser comparado a uma burra estropiada, colocada em frente a sua residncia:No dia 26, sexta-feira, bem cedinho, ao dirigir-me ao escritrio na Praa da Liberdade, deparei-me com uma cena inusitada. Durante noite tinham conduzido uma jumenta velha, estropiada e com grandes peladuras, caindo de magra e totalmente cega, para cima do coreto da praa. De uma caixa de papelo fora improvisada uma cangalha, que se encontrava amarrada ao dorso do animal. Com tinta vermelha via-se escrito em ambos os lados da cangalha: BURRA CEGA. Juntei-me aos populares que se encontravam no local, cheios de curiosidade em descobrir como poderiam ter levado aquele muar a lugar de to difcil acesso. Mas do que a questo da autoria do ato contravencional, chamou-me a ateno a cangalha de papelo. "Burra cega" em letras garrafais, vermelhas! De que se tratava? Que mensagem seria essa? Por volta das sete horas tnhamos conseguido descer o animal, que, destruda a cangalha, foi conduzido por populares em direo ao rio Serid. Nunca consegui descobrir a autoria dessa presepada.Com o passar dos dias a expresso autonomtica tornou-se fortemente popular, transformando-se no epteto do candidato da Arena vermelha e em adjetivo caracterizador de seus correligionrios: burraceguistas. Jamais me passara pela cabea que aquela brincadeira de mau gosto viesse a servir de motivao ao smbolo da campanha

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eleitoral. Quando o apelido alcanou a dimenso de verdadeiro lbaro da campanha, espetacular e ofuscante veculo. de popularizao do candidato, alguns amigos chegaram a supor que a ocorrncia da Praa da Liberdade fora montada por mim prprio para extrair um smbolo popular para a campanha. Pura imaginao, sem lgica e sem fundamento, porque jamais movi uma palha sequer deliberadamente, para possibilitar o ingresso da Burra Cega campanha eleitoral. Tudo aconteceu naturalmente, sem montagem alguma, ao acaso e por fora da verve da maravilhosa criatividade popular. O povo espontaneamente, soube aproveitar todo o poder simblico e mgico da ocorrncia, cujo nico participante conhecido humlima, depauperada e cega jumenta. (MEDEIROS,2000:17-18)

Apesar de o fato ter constrangido Dr. Chiquinho, de incio pelo quadro surrealista que o mesmo contemplava, e pelo fato de que o mesmo ter uma deficincia ocular, que o fazia ver apenas por uma de suas crneas, o fato em si como o mesmo declarou, se tornou a marca de sua campanha, onde seus prprios companheiros, numa visita do ento Ministro dos Transportes, no dia 27 de janeiro, Mario Andreazza ao municpio chocou a comitiva do ministro com outro episdio:Na vspera do aparecimento misterioso da burra, Caic recebera a visita ilustre do Cel. Mrio Davi Andreazza, Ministro dos Transportes. [...] No fui convidado a participar de nenhum dos eventos que marcaram essa visita ministerial. [...] Algum tempo depois, o Ministro retornou a Caic para inaugurar obras de asfaltamento rodovirio (24 de julho de 1969), solenidade realizada nas proximidades do Posto Fiscal do Itans, onde foi afixada placa comemorativa. Como Prefeito do Municpio entendera-me com os colegas dos Municpios vizinhos, que desejavam encaminhar alguma reivindicao ao Ministro, a fim de que elaborssemos documento nico, fundamentado e objetivo, dando-se prioridade s reivindicaes de carter regional com excluso de todos os pleitos locais. Enfim, o objetivo maior do documento era o de proceder a uma triagem na importncia das reivindicaes. Para a recepo do Ministro e a entrega oficial do documento, elaborado com o maior rigor tcnico, deslocaram-se para Caic diversos Prefeitos seridoenses, todos previamente cientificados das rgidas normas estabelecidas pelo cerimonial praticado pelos militares no governo. No momento em que, juntamente com o Governador do Estado e outras autoridades, nos dirigamos para o palanque de onde seria declarada inaugurada a obra com os discursos de praxe, vereadores caicoenses, quebrando bruscamente o protocolo, interceptaram a comitiva, e um deles, apressado e nervoso, disparou um discurso mais ou menos assim: - Ministro! Estamos aqui para fazer importante reivindicao para Caic! Queremos que Vossa Excelncia mande construir um mata-burro nessa BR, aqui no Itans, porque os animais, ovelhas, jumentos, porcos, vacas e bodes esto invadindo a cidade! Toda a comitiva pasmou de surpresa, envergonhada. (MEDEIROS, 2000:20).

Apesar de dantesca, as situaes descritas acima s vieram acrescentar ainda mais os nimos eleitorais da campanha, que ganhara cada vez mais a participao popular, e concretizava ainda a rivalidade entre as bandeiras verdes e vermelhas, mesmo sendo a ARENA, o nico partido, com dois candidatos diversos. Vale ressaltar que a bandeira que representava os correligionrios do Dr. Chiquinho, era preta e vermelha, em virtude do luto aos assassinatos cometido no ano anterior j descrito acima.

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O vermelho, vivo, brilhante, cor de sangue e de fogo, incitante e ativo, expressava a fora impulsiva e a bravura do dinartismo no Rio Grande do Norte. O preto era o luto, evocava Carlindo, seu sacrifcio e sua morte. No decorrer da campanha essa faixa preta foi conquistando significado mais profundo, qual seja o de vida renovada, assim como a noite prenuncia a aurora de novo dia, de nova vida. No hesito em afirmar que, na campanha, a fora do preto revelou-se muito mais poderosa do que a do vermelho. Os discursos nos comcios comprovavam a supremacia da motivao do preto sobre o vermelho. Sempre que a temtica dos palanques flua para a faixa preta da bandeira o entusiasmo popular redobrava. A combinao do vermelho com o preto em Caic expressava, de forma espontnea e intuitiva, o que vinha ocorrendo naquele ano no mundo todo: submisso das velhas bandeiras a profundas modificaes, admitindo smbolos dos novos tempos que surgiam. Carlindo fora assassinado na noite de 28 de outubro de 1967. (MEDEIROS, 2000:26).

De fato o assassinato de Carlindo de Souza Dantas Dr. Carlindo alterou de sobremaneira, com o sentimento da populao do municpio, que por vezes pediam justia, pela morte de um mdico amigo do povo, e que no se negava a atender seja quem fosse a hora que fosse. Neste contexto, o prprio Dr. Chiquinho, confirma que era difcil no se manter apenas como expectador, uma vez que era amigo do mdico e por razo crime ocorrido, muitas vezes se sentia como o responsvel de fazer justia ao amigo.

CAPTULO TRS

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Memria e poltica: Dr. Chiquinho e a Campanha eleitoral e 1968 em Caic-RN

3.1 Dr. Chiquinho e a Campanha de 1968: a construo de um candidatoCaracteristicamente, a campanha de 1968, foi de tamanho e valor incomparvel, para o municpio de Caic e sua pacata populao. Numa disputa singular, a eleio de 1968

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escolheria apenas prefeito e vice-prefeitos dos municpios, tal fato advindo da herana do golpe militar de 1964, que estabelecera novas determinaes para o pleito eleitoral. A legislao eleitoral estabelecida sob o vis militar permitiu a existncia de um cronograma eleitoral muito movimentado. Os processos eleitorais federais, estaduais e municipais corriam segundo calendrios distintos e desarticulados entre si. No municpio de Caic, onde estamos focando nosso estudo, no ano de 1968, tinha-se o calendrio das eleies municipais, que j se desenvolvia nos primeiros dias do ms de janeiro do decorrente ano. Para Medeiros (2000:50):A eleio de Caic em 1968 deu-se de forma completamente isolada, solteira, como se diz no jargo poltico. Nem para a Cmara Municipal houve eleies. Somente para prefeito e vice-prefeito, nada mais. Essa circunstncia determinava enormes dificuldades prticas para a execuo da campanha. A mais grave prendia-se omisso dos polticos em geral: senadores, deputados e governadores evitavam a todo custo nela se envolver. No queriam gastar dinheiro nem prestgio. Preferiam acumular foras para as prximas eleies gerais. Ningum ousava comprometer-se agora. Ficar em cima do muro era a posio mais cmoda.

Apesar de j ter seus prprios demritos, a eleio de 1968, passava pela questo das sublegendas, uma vez que por fora dos militares, alguns partidos polticos e seus dissidentes migraram para a Arena. A Aliana Renovadora Nacional (ARENA) foi um partido poltico brasileiro criado com a inteno de apoiar ao governo institudo a partir do AI-1. Foi fundada no dia 4 de abril de 1966, era um partido predominantemente conservador, como forma de sobreviver ao jugo militar. Os partidos polticos poderiam instituir at trs sublegendas, cada um, nas eleies para governadores e prefeitos, devendo cada sublegenda contar com pelo menos vinte por cento dos votos dos convencionais. Nas eleies com sublegendas somar-se-iam os votos dos candidatos do mesmo partido. Se o partido vencedor tivesse adotado sublegenda, considerar-seia eleito o mais votado dentre os seus candidatos. A instituio das sublegendas liquidou veio a solucionar dois graves problemas eleitorais do governo: Em primeiro lugar, acomodou polticos de todas as linhas num s partido como ficara caracterizada a Arena no Brasil todo, como em Caic, uma guerra aberta de interesses polticos entre adversrios do mesmo partido. Em segundo lugar, tornava-se quase impossvel vitria em eleio majoritria, especialmente no interior do Brasil, onde, como em Caic, quase todos os polticos estavam filiado a Arena.

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Eleio sui generis a de novembro desse ano, solteira, absolutamente isolada, realizando-se mediante sublegendas, processo desconhecido do eleitorado, que parecia perplexo. De modo geral, tambm o meio poltico mostrava-se bastante apreensivo, acima de tudo porque no conhecia ainda, por falta de instrues do Tribunal Eleitoral, todas as regras regulamentares do pleito. Havia, alm disso, muita incerteza quanto realizao da eleio, uma vez que a crise poltica no Pas agravava-se cada vez mais. No municpio de Caic, bem como em todo o Rio Grande do Norte, a Arena podia ser considerada um saco de gatos (MEDEIROS, 2000:218), pois se encontrava entre os seus filiados, as principais foras do Estado na poltica norteriograndense, que anos anteriores determinaram verdadeiras batalhas eleitorais.ramos todos da Arena, inclusive o arquiinimigo do Senador Dinarte Mariz, Deputado Alusio Alves, este um dos maiores propugnadores no Congresso pela aprovao da Lei das Sublegendas, objetivando quebrar a monoplio da extinta UDN dentro do novo Partido. A lei n 5.453, de 14 de junho de 1968, que institui o sistema de sublegendas permite aos partidos polticos a instituio de at trs sublegendas nas eleies de Governador e Prefeito. Isso significa que a Arena, por exemplo, pode lanar em cada municpio at trs candidatos a Prefeito, como se fosse de partidos diferentes. Cada sublegenda ser qualificada por um nmero, v.g., Arena-1, Arena-2 e Arena-3, na ordem decrescente dos votos com que forem institudas na conveno. Para que seja instituda uma sublegenda basta a indicao do candidato por 10% e a sua aprovao por 20% dos convencionais. s sublegendas so assegurados os mesmos direitos que a lei concede aos Partidos Polticos no que se refere ao processo eleitoral. No fosse essa lei eu no teria conseguido sair candidato. No Diretrio Municipal no obteria o apoio mnimo necessrio. Graas ao dispositivo legal que atribui competncia Comisso Executiva Regional para a escolha das sublegendas de candidatos a Prefeito foi possvel a soluo do impasse quanto s candidaturas de Caic. (MEDEIROS, 2000:218).

Com a definio dos candidatos a prefeito e vice-prefeito respectivamente, a Arena ficou acomodou-se em duas bandeiras e com elas os polticos locais que se dividiram e passaram a se articular em pr das duas candidaturas.Por isso as bandeiras. aqui em Caic, tinham cores diferentes das tradicionais. A Arena-1, verde e vermelha, a da Arena-2, vermelha e preta. A primeira significava a adeso de dinartistas ao verde do aluisismo; a segunda, a fora da memria de Carlindo dentro do dinartismo. (MEDEIROS, 2000:219).

De um lado, a ARENA-1, tendo como candidatos o Sr. Manoel Torres de Arajo (prefeito) e Severino Fernandes (vice-prefeito), e do outro lado a ARENA-2, tendo como

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candidato Francisco de Assis Medeiros - Dr. Chiquinho (prefeito) e Vicente Macedo Neto (vice-prefeito). No descortinar da campanha, a Arena verde, contava com o apoio do governo do Estado, na pessoa do Monsenhor Walfredo Gurgel, ento governador e a fora da poderosa Cruzada da Esperana, comandada por Aluzio Alves, isto sem falar no poder econmico da oligarquia algodoeira.Por todos considerados fortssima e imbatveis, a candidatura da Arena verde tinha a sustentaria slido grupo econmico financeiro; toda a estrutura poltica do Governo do Estado e da poderosa Cruzada da Esperana; o apoio de parte da Arena vermelha local e a experincia eleitoral do prprio candidato, que j exercera mandatos de deputado estadual. (MEDEIROS, 2000:56)

Tendo em vista o desenvolvimento da cidade, estar ligado cultura algodoeira, o algodo fazia do municpio a terceira maior cidade do Estado. Morais (1999:115) esclarece que o processo de industrializao que se efetivava no pas, no era o mesmo que ocorria no estado, principalmente no campo, que vivia um intenso processo de xodo rural.Diante das reduzidssimas possibilidades de permanncia do trabalhador no campo, afigurou-se a sua sada como alternativa, mesmo que, em muitos casos, isto no representasse o abandono da lida rural. Nesse momento, o pas no vivenciou somente uma migrao rural-urbana. As significativas propores que esta assumiu permitiram a conformao de um verdadeiro xodo rural, simultneo a um processo de urbanizao que, apesar de apresentar-se regionalmente diferenciado, afetou todo o pas. (MORAIS, 1999:115)

Ainda conforme a autora, Caic, se encontrava inserido neste processo:Portanto, Caic, ao apresentar um padro demo grfico em que a populao urbana foi, ao longo dos anos, consolidando uma tendncia ao crescimento, no se constituiu um caso isolado, motivado por fatores especficos. Refletiu, dessa forma, uma propenso que se delineava em mbito nacional. Contudo, a possibilidade de inscrever os fatos em um universo mais amplo no impede que as especificidades possam ser ressaltadas. Enquanto o Brasil dos anos 60 caminhava a passos largos pelas veredas da industrializao, a economia do Rio Grande do Norte prosseguia em sua articulao com as velhas estruturas de produo, no esvaecendo em seu papel de produtor de matria-prima para a economia do Sudeste. No Serid e em Caic, especificamente, o algodo ainda era considerado o ouro branco. Assim sendo, a cidade que em sua histria havia conquistado a funo de centro regional do Serid, teve reforada sua posio por meio da expanso e do fortalecimento da cotonicultura na economia do Estado, passando a vivenciar um processo que excedeu a marca de um mero crescimento urbano. (MORAIS, 1999:115).

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Dessa forma, verifica-se que Caic no constituiu um caso isolado, mas estava imersa no universo de cidades do serto produtor de algodo que passaram por um crescimento acelerado, principalmente entre os anos de 1950/60. Percebendo, o poder econmico das foras que se arregimentavam, Dr. Chiquinho passou a temer tambm o poder do algodo, principal atividade econmica do municpio.Uma usina de beneficiamento de algodo, empresa pertencente famlia do candidato, representava o poder econmico, a liderana do comrcio com o produtor rural e a fonte do status do Sr. Manoel Torres como industrial. A algodoeira, da qual era scio, expressava, na verdade, a maior fora financeira das atividades econmicas do Municpio. O poder econmico realmente nos preocupava sobremodo, tendo em vista os poucos recursos materiais de que dispnhamos.. Era to desigual a situao financeira dos candidatos, que houve at quem me sugerisse tomar de emprstimo para a minha campanha velho e surrado slogan: O tosto contra o milho. A usina, acima de tudo, servia como importante elo do candidato com o homem do campo. E o algodo representava a maior fonte de riqueza do Municpio. A empresa familiar dirigida pelo candidato da Arena verde era uma das mais antigas e das maiores na compra de algodo em toda a regio. Mantinha transaes comerciais com a maioria dos produtores rurais do Serid. Avultava enorme, portanto, o poder eleitoral da usina. O status de industrial, muito importante, servia para demonstrar a capacidade administrativa do candidato e o seu tirocnio empresarial. Alm das foras eleitorais advindas da Cruzada da Esperana e do Governo Estadual, o candidato da Arena verde contava com o apoio de parte da Arena vermelha representada pelo vereador Severino Fernandes, candidato a vice-prefeito. Contra a minha candidatura, portanto, acabava de ser acionado um verdadeiro rolo compressor. (MEDEIROS, 2000:83).

Iniciava-se assim, a maior disputa poltica de todas as eleies municipais de Caic. Disputa esta, que iria se caracterizar por suas peculiaridades de violncia, discursos inflamados e principalmente da participao popular.

3.2 Dr. Chiquinho: de candidato prefeito Defensor da bandeira vermelha e preta, que representaria um dos smbolos da campanha eleitoral de 1968, Francisco de Assis Pereira, ento advogado, se caracterizava na poca referida, como um homem simples e apaixonado pelo campo. Dr. Chiquinho, ainda esclarece que desde sempre se sentia bem no ambiente rural:Emocionou-me constatar que o stio era o mesmo, igualzinho ao que vira pela ltima vez nos idos de 1949, nas frias de junho, quando aprendi a remar nas guas do velho aude, utilizando canoas pertencente a pescadores amigos. Meu pai comprara esse stio a Manoel Adelino de Medeiros, seu sobrinho. Localizado s margens do aude pblico, foi o paraso dos meus dias de frias escolares, quando freqentava o curso primrio e os primeiros anos de ginsio. Abracei, cheio de encantamento, a velha rvore, o lindo pereiro de onde colhia "galinhas" para brincar, e que sempre permaneceu verde e vioso como agora, inclusive nos anos de

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seca. Localizado nas proximidades de uma pequena lagoa, o verde esmeralda de sua frondosa copa domina a paisagem cinzenta da aridez em volta. Oferece a mais acolhedora sombra no cercado da lagoa. (MEDEIROS, 2000:32).

Prestando servios ao pblico geral, Dr. Chiquinho ficou conhecido no municpio de Caic como um advogado muito ligado ao povo, principalmente os mais necessitados, o que no lhe dava condies de ter grandes possesses, chegando a se achar com meia dzia de clientes. Entretanto, mesmo prestando servios a populao, Dr. Chiquinho, ainda era visto apenas como um advogado, sem grandes pretenses polticas, at ser indicado para ser candidato a prefeito do municpio.Nossas preocupaes, no momento, fundavam-se nas evidncias de que eu sempre fora homem de escritrio, de moderada e discreta vivncia mundana, pouco identificado com o ambiente onde imperava a militncia mais exaltada do carlindismo: botequins, forrs e feiras; bases populares e bairros pobres da Cidade. Tnhamos pressa, portanto, em comear a discutir a campanha na parte destinada a afastar a pecha de impopular que pesava contra minha candidatura. (MEDEIROS, 2000:37-38).

Porm, por estar sempre acompanhado de pessoas conhecidas na cidade, como Dr. Carlindo Dantas, Vicente Macdo, Emdio Germano da Silva, Adjuto Dias, Milton Marinho entre outros, Dr. Chiquinho se tornou candidato popular, principalmente na defesa de um sistema de sade, que se mostrava precrio, e, por conseguinte fcil, de ser explorado numa campanha poltica, como a deste ano. Para tanto Dr. Chiquinho, esclarece que:A assistncia mdica dos pobres em Caic dessa poca achava-se destroada em verdadeiro estado de calamidade pblica. Pelo menos em relao aos pobres do meu partido. No havia como atender aos indigentes, que representavam a maioria dos que necessitavam dos servios mdicos e hospitalares pblicos. O povo estava morrendo mngua. A pouca e incerta assistncia hospitalar prestada a alguns poucos sortudos era precria e pssima. Humilhante. (MEDEIROS, 2000:65).

Feitas as reinvidicaes que viria a consolidar ainda mais a candidatura de Dr. Chiquinho, o mesmo passa a exigir a luz eltrica para alguns bairros perifricos, e, por conseguinte a soluo para a problemtica da falta de gua.Portanto, a energia eltrica s beneficiava pouco mais de 50% da comunidade. Os bairros Joo XXIII, Nova Descoberta, Boa Passagem e grande parte do Penedo e da Paraba viviam totalmente s escuras. Nas palestras, depois dos comcios, nunca se esquecia de enfatizar que, eleito Prefeito, todos teriam direito energia eltrica em sua rua e em sua casa como os moradores do centro da Cidade. Percorramos nessa poca os mais distantes arruamentos da periferia da Cidade. Muitos correligionrios de outros bairros distantes compareciam a essas reunies. Nas noites de lua

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aumentava consideravelmente a participao popular a essas concentraes. falta de luz eltrica, a luz da lua ajudava a clarear. os caminhos do comcio. Da a importncia da lua na campanha. Ao planejar os grandes comcios desses bairros o fizemos tendo em vista as noites de lua. Sem um pingo de dvida, foi a lua que proporcionou a realizao dos maiores comcios e das mais alegres passeatas da campanha. Assim que, logo foram baixadas pela Justia Eleitoral as normas regulamentares da propaganda eleitoral, ato contnuo comuniquei autoridade policial o calendrio dos comcios e passeatas nos bairros sem energia eltrica, compreendendo todas as noites de lua do perodo. Obtive sucesso total em todos os comcios realizados ao luar de minha terra. No belo e romntico luar do serto. A lua, que com o poder de sua seduo e beleza, iluminou a caminhada do povo, e o pequeno gerador, que acendia as gambiarras do entusiasmo nos comcios, deram brilho e calor campanha, redobraram a participao popular e ajudaram sobremodo a conquistar a vitria. Em poltica tudo vale, at a escurido. Sem ela, para que teria servido o gerador de Darei? A lua teria brilhado tanto? Eu teria realizado algum luarmco na campanha?

O apelo popular para utilizado por Dr. Carlindo tinha como foco a inteno de atingir justamente as classes sociais mais necessitadas. De acordo com Borba (2005:158):Dessa forma, o voto da grande maioria do eleitorado orientar-se-ia atravs das margens dos candidatos, que seriam difusas e vagas, porm no totalmente imprevisveis e aleatrias, pois, assim como Reis, a autora defende a tese de que o eleitor no sofisticado votaria, em grande parte, no candidato que lhe consegue transmitir a imagem de defensor privilegiado dos pobres, dos trabalhadores, da maioria da populao.

As constantes reivindicaes feitas por Dr. Chiquinho e seu grupo se estavam sempre direcionadas ao apelo popular. Segundo Machado (1998:45) Foi nesse momento que alguns polticos buscaram o apoio dos diferentes setores de uma sociedade em pleno processo de modernizao. O carisma, os discursos melodramticos e o uso da propaganda massiva produziram cones da poltica que, ainda hoje, inspiram os hbitos e comportamentos das lideranas polticas. E mais, os estudiosos dessa poca definiram tal perodo histrico como o auge do populismo no Brasil. Sob o aspecto terico, o governante populista fundamentava seu discurso em projetos de incluso social que, em sua aparncia, legitimavam a crena na construo de uma nao promissora. Definindo seus aliados como imprescindveis ao progresso nacional, o populismo saudava valores e idias que colocavam o grande lder como porta-voz das massas. Suas aes no mais demonstravam sua natureza individual, mas transformavam-no em homem do progresso, defensor da nao ou representante do povo. Construa-se a imagem do indivduo que desaparecia em prol de causas coletivas. De fato, foram os discursos em pr dos mais necessitados e a participao popular alavancaria a candidatura de Dr. Chiquinho. Segundo Fairclough (2001:123) o discurso uma prtica, um modo de ao e de representao que constri o mundo em significado atravs de trs aspectos que se salientam como identidade do sujeito, relaes sociais entre as

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pessoas e relaes de sistemas de conhecimento e crena. Esses efeitos construtivos do discurso podem ser entendidos, segundo o autor, atravs do sentido e do funcionamento da linguagem denominada como funes identitria, relacional e ideacional, que respectivamente nos mostram a representao das identidades sociais no discurso, as relaes sociais entre os participantes do discurso e os processos e relaes de significado de mundo dos textos. Alm disso, o discurso tambm uma prtica constitutiva medida que contribui para reproduzir ou transformar a sociedade, o que acontece por meio do discurso como prtica poltica e ideolgica, ambas preocupadas com a luta pelo poder. O discurso poltico pode, portanto, ser visto como uma produo discursiva visando a uma ao de algum sobre outro, sendo por muitas vezes chamado de discurso de poder. Para Pcheux (1981), os discursos polticos constituem, alm de sua funo de mascarar e de justificar aes e idias, uma rede de indcios para compreendermos concretamente como o orador se inscreve dentro de uma posio ideolgica determinada. Essa rede de indcios est intimamente ligada formao poltica do emissor, do momento histrico, da poltica dominante, entre outras condies de produo. E se utilizando de um discurso altamente inflamado, Dr. Chiquinho passou a denunciar o problema da falta de gua dos bairros mais afastados do centro, como o Joo XXIII, Nova Descoberta e Boa Passagem.A energia eltrica no era a principal reivindicao dessas comunidades. Tambm no me pleitearam escolas, calamento, emprego ou remdios. Queriam apenas matar a sede, pediam gua. Exigiam a extenso dos canos da rede de abastecimento d'gua para os seus bairros. No pediam, sequer, gua encanadaem casa.Satisfaziam-se com um chafariz no bairro! No Joo XXIII, jovem professora municipal entregou-me documento com muitas assinaturas, no qual a reivindicao, posta em termos confrangedores, demonstrava que o povo passava sede e, quando bebia gua, contraia amebase! Verdadeira calamidade o problema da gua potvel nesses bairros, sendo mais grave a situao do Joo XXIII, construdo sobre as pedras do monte do mesmo nome, localizado em rea de expanso urbana pertencente ao patrimnio da Diocese. Do abaixo assinado que me foi entregue constava j existirem no Joo XXIII 369 casas e 1724 moradores. gua s no rio Barra Nova, muito distante e muito poluda. Tambm em Nova Descoberta e em Boa Passagem no se desejava outra coisa: um chafariz. Profundamente comovedora a angstia do povo nesses bairros pobres, onde uma lata d'gua custava os olhos da cara, e onde ningum tinha dinheiro para nada. Naqueles casebres a fome, a sede, o analfabetismo. a doena e todos os de tais sofrimentos humanos. E a esperana de que aparecesse algum para ajud-Ias a vencer a pobreza absoluta e as injustias sociais. E de imediato, a luta pelo chafariz. No era diferente a gravidade do problema nos bairros mais afastados do centro. (MEDEIROS, 2000:56).

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E percebendo a necessidade de povo, pelo bem to precioso, Dr. Chiquinho passa a ter como bandeira principal de sua campanha a gua, mesmo que fosse de chafariz e um bico de luz.gua para matar a sede do povo passou a ser a idia-fora da minha campanha em toda parte aonde no chegavam os canos da Caern (Companhia de guas e Esgotos do Rio Grande do Norte), um chafariz para todos e um bico de luz para cada casa, prometi ao agradecer a colaborao dos signatrios do abaixo-assinado dos moradores do Bairro Joo XXIII. Mas no era s esse o problema. Por falta de adutora entre o Itans e os reservatrio da Caern, e por falta de tratamento adequado da gua, esta resultava distribuda ao povo altamente contaminada por amebas, causa maior do elevado ndice de mortalidade infantil. Um crime! (MEDEIROS, 2000:57).

Porm, a falta de gua, utilizada como pretextos eleitorais, passou a ser uma preocupao de ordem de sade pblica, uma vez que a falta de tratamento de gua, era mais um problema do sistema de sade precrio que o municpio apresentava.As amebases constituam as doenas mais difundidas na cidade. Uma praga! Endmica. Eu mesmo j for a contaminado duas vezes. E a culpa, como no poderia deixar de ser, cabia ao Governo do Estado, que "comandava dona Caern e a Arena verde de Caic", como se vociferava nos comcios e os sem-gua aplaudiam. Superando em interesse popular o problema da energia eltrica ou qualquer outro, exceo dos temas ligados vida e a morte de Carlindo, a questo do abastecimento d'gua da Cidade manteve-se durante toda a campanha como a maior fora de sustentao do apoio que recebi dos bairros da periferia da cidade, que ansiavam por esse importante melhoramento. Foi o sofrimento que presenciei no Joo XXIII que me orientou na direo dos chafarizes, em busca dos votos nascidos da imaginao do povo, sonhando com gua pura e abundante nas torneiras do seu bairro e das suas casas. (MEDEIROS, 2000:57-58).

No atendimento destes necessitados, Dr. Chiquinho complementava que:O meu estilo de atendimento reforou a credibilidade de meus compromissos e, ao mesmo tempo, aumentou expectativas e a fila das lamentaes e pedidos. Comi fogo para a todos agradar ou convencer de que realmente no dispunha de meios para atender. Nunca fui de enganar eleitores nem deles me esconder por mais absurdos e inatendveis que fossem suas insistentes investidas. [...] Eram todos eleitores meus, convictos e esperanosos. No eram eleitores comprados. Eram eleitores muito necessitados mas que no vendiam ou trocavam seu voto por nada no mundo. S chefetes polticos, cabos eleitorais e galopins inescrupulosos negociam votos, em grosso. No varejo no h esse mercado. E aqui em Caic, nessa campanha, nem uma coisa nem outra ocorreu. (MEDEIROS, 2000:104).

Segundo Reis (2000), as preferncias partidrias ou ideolgicas do brasileiro no se relacionariam com opinies altamente sustentadas a respeito de questes de natureza poltica, mas estariam baseadas em imagens difusas, simplificadas da posio dos partidos: existiria no

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sistema de crenas da populao uma diviso quase binria do processo poltico, de modo que os partidos estariam ou do lado do povo ou do governo, dos pobres ou dos ricos. O trabalho de Castro (1994), diretamente influenciado pelo paradigma terico de Reis (2000), procura explicar os mecanismos de deciso do voto segundo o grau de sofisticao poltica dos eleitores. Segundo a autora, a sofisticao poltica seria a varivel explicativa que melhor caracterizaria o comportamento eleitoral do brasileiro. Sua tese que enquanto os eleitores sofisticados (minoria) votam orientados por opinies sobre esses diversos e por uma preferncia partidria baseada em uma viso informada sobre os partidos e os candidatos, a grande massa popular desinformada e no tem opinio sobre as grandes questes do debate poltico, alm do que, [...] tende a atribuir a seus candidatos as qualidades que mais lhe agradam e as opinies que eventualmente tem quanto a issues diversos e possui baixo grau de consistncia ideolgica. (CASTRO, 1994:180). Dessa forma, o voto da grande maioria do eleitorado orientar-se-ia atravs das imagens dos candidatos, que seriam difusas e vagas, porm no totalmente imprevisveis e aleatrias, pois, assim como Reis, a autora defende a tese de que o eleitor no sofisticado votaria, em grande parte, no candidato que lhe consegue transmitir a imagem de defensor privilegiado dos pobres, dos trabalhadores, da maioria da populao. Na leitura, do livro 1968 em Caic de Francisco de Assis Medeiros, percebe-se que em todo decorrer do ano eleitoral, houve mudanas significativas na campanha especfica. De fato, a pessoa de Dr. Chiquinho ganhou notoriedade entre os polticos da Arena vermelha, a partir da entrada da participao popular na campanha, o que de certa forma foi, buscado a partir dos discursos. Como candidato, comandei durante o ano todo campanha das mais populares e intensas que se possa promover em colgio eleitoral do porte de Caic (MEDEIROS, 2000:108). A identificao do candidato com o povo era tanta, que Dr. Chiquinho acrescenta que sua campanha poderia ser entendida como uma [...] campanha pessoal, em contato direto e permanente com o eleitor, ombro a ombro com ele na luta. (MEDEIROS, 2000:108). O que se percebe hoje sobre a eleio de 1968, que esta era marcada por uma relao de carter pessoal entre os mais necessitados e o candidato, relaes estas carregadas de emotividade, de cunho paternalista e personalista, envoltas numa complexa rede de significaes e simbologias. Alm do carisma, o candidato em questo contava com uma extraordinria habilidade oratria, exibida em comcios e discursos em praa pblica para as multides embevecidas.

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O dia adia da campanha pde ser evidenciado em trechos do livro 1968 em Caic, onde o seu autor afirma piamente que quando no estava na rua, em comcios ou passeatas, em andanas pela zona rural ou na emissora de rdio nos programas gratuitos de propaganda eleitoral, permanecia no comit quase que exclusivamente atendendo pedidos de eleitores. (MEDEIROS, 2000:109). Caracteristicamente a distribuio de benefcios locais proporcionava muito mais retornos eleitorais do que as atividades legislativas dentro da Cmara ou as posies de voto assumidas em relao a uma determinada poltica. Por isso, os interesses locais prevalecem na arena eleitoral; as demandas locais parecem ter impacto mais forte no xito eleitoral. Apesar de ser uma prtica condenvel pela Justia Eleitoral, a romaria de eleitores em troca de favores perduraria por quase toda a campanha eleitoral:Alguns, mesmo no necessitando pedir, pedem s pelo prazer de receber algo de seu candidato e guardar ou usar a coisa recebida como autntico e estimado suvenir, smbolo do prestigio poltico do eleitor e da generosa ateno do candidato. [...] Formavam-se filas enormes, durante o dia todo, na calada do comit. E eu a todos recebia pessoalmente, embora a todos no pudesse atender o que solicitavam. [...] Que me pediam os pobres, todos correligionrios, porm nem todos os eleitores, porque muitos analfabetos? O aviamento de receitas mdicas era o pedido mais freqente. O pagamento dos emolumentos de casamentos e registros de nascimento vinha em segundo lugar. Os tabelies, no obstante a lei assegurar a gratuidade desses atos, cobram caro! Pobre no tinha dinheiro para casar no civil nem para registrar os filhos. [...] Passagens de nibus para a Capital, fotografias para o titulo eleitoral, fardamento e materiais escolares, roupa e calados, tratamento dentrio e dentaduras, ternos esportivos, culos e pequenas ajudas financeiras para fins diversos foi o que mais me pediram e eu atendi. Vez por outra aparecia pedido de emprego, nico que de jeito nenhum podia atender nem prometer. (MEDEIROS, 2000:109).

Para atender aos diversos pedidos, e sem qualquer fonte financeira Dr. Chiquinho sempre recorria aos amigos correligionrios, uma vez que era impossvel se tocar uma campanha eleitoral sem dinheiro em caixa. Para tanto, Dr. Chiquinho afirma que:Em seis meses tinha alisado. Nem Delfim Neto e Hlio Beltro, que cuidavam da economia do Pas, resolveriam situao to contraditria como a minha. No cofre, pobreza franciscana; na aparncia, abundncia e poder. Tenho certeza de que nenhum desses magos da nossa economia pblica aceitaria administrar amanha aventura, uma vez que nenhum tratado de economia recomenda o que planejei executar para reverter o quadro de insolvncia em que me encontrava: a) Tomar dinheiro emprestado a Joo Marinho, a seu Pretinho e a quem mais se arriscasse faz-Io; b) Arrancar a todo custo doaes de amigos e correligionrios; c) vender casa, carro, alguns objetos pessoais e tudo o mais que fosse preciso para manter a campanha, caso falhassem as doaes e os emprstimos. Seu Pretinho, como j mencionei, nunca deixou de atender a meus pedidos de emprstimos. O crdito no tinha limites. Joo Marinho era muito bem relacionado e para mim arranjou dinheiro emprestado at em Patos e Santa Luzia, na Paraba. (MEDEIROS,2000:69)

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Nos gastos eleitorais, a eleio de 1968, podia ser considerada, [...] a mais pobre de todas as campanhas eleitorais do municpio (MEDEIROS, 2000:112) e para solucionar a constante falta de verba e o aumento do peditrio, muitas vezes Dr. Chiquinho foi aos bolsos dos amigos que o visitavam no seu comit. Em das ocasies, relata Dr. Chiquinho que:Pela manh, quando j estava em pleno atendimento ao eleitorado, estiveram no comit, ao mesmo tempo, o ex-Prefeito Incio de Medeiros Dias e o agricultor Cosme Alves Rangel, do stio Bela Flor. Ambos demonstraram inconformismo com o que chamavam de explorao dos polticos pelo povo. A essa altura, a fila de pedintes j contava com mais de 50 pessoas. [...] Ningum acabar com esse tipo de pedintes enquanto houve pobreza e poltica. E mais: os que pedem dinheiro para beber cachaa animam como ningum os comcios e passeatas. Integram o processo de propaganda eleitoral. E o meu trabalho de proselitismo, assim, vis--vis com o eleitor, no o mais caro, pode ser o mais cansativo. Caras mesmo so as campanhas feitas por empresas de publicidade atravs do rdio, da televiso e dos jornais. J estavam de sada, quando entra uma senhora, pedindo-me uma passagem para Natal, onde precisava tratar de problemas de sade. Eu, como sempre, estava completamente liso. Mas a pobre mulher fez uma choradeira to grande que Incio Dias deu-lhe o dinheiro necessrio. [...] Saiu do comit acompanhando Cosme Rangel, que se prontificou ajud-Ia, e se dirigiram farmcia para a aquisio dos medicamentos. Cosme Rangel e Incio Dias nunca mais voltaram ao comit. Pudera! Mas continuaram firmes na amizade e no voto. (MEDEIROS, 2000:134).

Tal fato demonstra que a falta de verba para a campanha de Dr. Chiquinho era fator constante em todo perodo eleitoral, o que no entanto, no se transformou em obstculo para a eleio do mesmo, como veremos a seguir nas abordagens seguintes. 3.3 O Desfecho da Campanha: a importncia dos programas eleitorais pelo rdio e o comcio da saudade na campanha de Dr. Chiquinho Oficialmente, o horrio eleitoral gratuito da Justia Eleitoral, s teve incio no dia 1 de outubro de 1968, porm as entrevistas com Dr. Chiquinho j vinham ocorrendo antes mesmo do horrio eleitoral. Entrevistas estas que tratavam de poltica tanto no mbito municipal, como estadual. Foi durante estas entrevistas, que Dr. Chiquinho passou a desenvolver suas habilidades de grande orador adquiridas no decorrer de seus estudos para a advocacia, para captar votos, demonstrar o programa administrativo da sua candidatura e fazer denuncias sobre o assassinato de Dr. Carlindo e Anbal Macdo. Em uma dessas entrevistas na Emissora Rural de Caic, no ms de agosto, Dr. Chiquinho foi entrevistado por Salomo Gurgel Pinheiro e Joaquim Gaspar Filho, radialistas responsveis pelo noticirio poltico da emissora. Nela, o entrevistado foi sabatinado com 24

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perguntas, feitas pelos entrevistadores e ouvintes da emissora, que iam desde o programa de governo que o mesmo queria programar, a campanha poltica e, sobre o assassinato de Dr. Carlindo e Anbal Macdo. No seu livro Dr. Chiquinho informa que ficou um tanto chateado, pois pouco se falou de seu programa de governo, convergindo para o crime ocorrido no ano anterior.Falei sobre todos os problemas do Municpio, por mi