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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
CURSO DE COMUNICAO SOCIAL HAB. EM RADIALISMO
WALTER ELLER DO COUTO
FUTUROS DO PRESENTE: DIMENSES SOCIOTCNICAS DOS
FILMES DE FICO CIENTFICA
Cuiab MT
2013
WALTER ELLER DO COUTO
FUTUROS DO PRESENTE:DIMENSES SOCIOTCNICAS DOS
FILMES DE FICO CIENTFICA
Monografia apresentada no curso de Graduao em
Comunicao Social com Habilitao em Radialismo,
como pr-requisito para a obteno do ttulo de bacharel
em Comunicao Social pela Universidade Federal de Mato Grosso.
Orientadora:Prof. Dra. Dolores Cristina Gomes
Galindo
Cuiab MT
2013
A Renan Pedroso Batista.
AGRADECIMENTOS
Agradeo a toda a minha famlia por tudo o que uma famlia significa na vida de
qualquer pessoa. Ao meu pai, Sebastio, por mostrar o quo belo pode ser escrever;
minha me, Eva, por nunca desistir de lutar; minha av, Dejanira, por ser to forte e
doce; ao meu irmo, Wagner, por ter sido paciente conosco quando aprendamos a usar
o computador, e por ter nos mostrado como importante a amar a arte. Minha irm,
Wernica, porsempre ter sido uma boa amiga e por, quando entrei na universidade, ter
me mostrado o caminho das pedras para ter contato com a pesquisa. E minha irm mais
velha, Walquria, por ter sido um grande exemplo para mim e tambm por ter me
ajudado a aprender a ler. Agradeo tambm aos meus queridos cunhados: Andr,
Marcus e Gabriel.
Agradeo minha orientadora, Prof. Dra. Dolores Galindo, por ter me ensinado o
conceito de actante antes mesmo de eu conhecer o conceito de ator social; quando
estava ainda no primeiro semestre, me tornei seu bolsista. Certamente, a boa pesquisa
que fizemos h quatro anos contribuiu para eu querer, de fato, ser um pesquisador da
Teoria Ator-Rede. Agradeo tambm, claro, por sua orientao neste trabalho.
Agradeo aos membros do Grupo Lab.TECC por me acolherem nestes ltimos meses da
graduao, possibilitando encontros repletos de debates tericos incrveis.
Agradeo ao grupo de pesquisa Artes da Cpia por ter sido o primeiro grupo de
pesquisa a me mostrar como incrvel ser um pesquisador.
Agradeo ao grupo de pesquisa MID Mdias Interativas Digitais por ter acreditado
em mim, me deixando como responsvel de alguns projetos e possibilitando o meu
crescimento acadmico. Agradeo especialmente lder do grupo, Prof. Dra. Andra
Fernandez, e aos colegas que me levaram at ela: Sara, Renan Marcel, Talyta e Vito.
Agradeo a todos os membros do extinto Ncleo Parafernlia, que me influenciaram a
gostar de cinema e a escolher o curso de Rdio e TV quando estava no segundo ano do
Ensino Mdio. Sou especialmente grato a Madiano, Naiza, Fernando, Chic e Dudi.
5
Agradeo ao Instituto Ciranda por ensinar que no h caminho para o talento que no
seja o do trabalho duro. Por ensinar que s estudando com muita disciplina que
conseguimos executar belas msicas. Nada h de magia; o trabalho duro que constri
talentos. Agradeo de modo especial minha amiga Rafaella por ter me incentivado a
tocar cello, possibilitando momentos incrveis.
Agradeo a todos os meus colegas da turma de Comunicao Social 2009/2 por tantos
momentos nicos e amizades maravilhosas, que certamente levarei para o resto da vida;
incluo tambm aqueles que nos trocaram por outros cursos. Sou particularmente
devedor aos colegas da habilitao em Rdio e TV.
Agradeo a todos os meus amigos, que sempre proporcionaram momentos felizes.
Especialmente aos mais prximos: Julian, Wender, Jean Michel, Mila e Alexandre. Sou
grato tambm aos amigos do clubinho dos cinfilos, aos amigos do RPG e a todos os
outros amigos que fiz durante esses 4 anos de curso pela universidade. Seria impossvel
mencionar todas as pessoas incrveis que a UFMT me fez conhecer.
Agradeo aos membros da banca; ao Prof. Ms. Diego Baraldi, por ter sido to certeiro
em suas observaes durante a qualificao, o que contribuiu muito para o
aperfeioamento deste trabalho. E, tambm, agradeo ao Prof. Dr. Yuji Gushiken, que
sempre foi um incentivador da pesquisa no curso, e cujos comentrios foram muito
importantes para este trabalho.
Agradeo ao departamento de Comunicao Social e a todos os professores,
especialmente Prof. Ms.Vera. Agradeo aos tcnicos administrativos do IL,
especialmente ao Rudy. E tambm ao ECCO por disponibilizar uma sala para a minha
defesa.
E agradeo ao melhor lugar do mundo: o abrao fisicamente bimestral e virtualmente
dirio de Renan Pedroso Batista.
O fim das Coisas
Pode o homem bruto, adstrito cincia grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Das profundezas do Subconsciente
O milagre estupendo da aeronave!
Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sfrego, o solo sxeo; e, na nsia ardente
De perscrutar o ntimo do orbe, invente
A lmpada aflogstica de Davy!
Em vo! Contra o poder criador do Sonho
O Fim das Coisas mostra-se medonho
Como o desaguadouro atro de um rio...
E quando, ao cabo do ltimo milnio,
A humanidade vai pesar seu gnio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!
Augusto dos Anjos
RESUMO
Esta monografia aborda a fico cientfica como uma inscritora de futuros alternativos,
i.e., futuros idealizados no passado, que pensam um mundo onde algum aspecto da
cincia e da tecnologia evoluiu de forma distpica, utpica e, ainda, heterotpica.
Partindo de uma anlise sociotcnica, utilizamos a noo de amostras do futuro do
passado, que se baseia em conceitos da Teoria Ator-Rede, como a simetria generalizada,
a caixa-preta, referncias circulantes e proposies articuladas ou inarticuladas. O
trabalho prope, ainda, uma srie de questes sobre o realismo e as ontologias dos fatos
e ideias que aparecem na tela do cinema, bem como na cincia de forma geral. Fazemos,
tambm, uma pequena anlise do filme brasileiro Os Cosmonautas, de 1962. A Teoria
Ator-Rede e as noes dos Science Studies trabalhadas nesta monografia serviram muito
bem para falar sobre a fico cientfica enquanto gnero; entretanto, para avanar nas
anlises de obras especficas, ainda precisamos, em trabalhos ulteriores, avanar nas
vastas leituras sobre narrativas em TAR.
Palavras-Chave: Fico Cientfica, Futurismo, Cincia e Tecnologia, Teoria Ator-
Rede, Science Studies.
ABSTRACT
This work deals with science fiction as a provider of alternative futures, i.e., futures that
were sketched in the past and imagine a world in which some aspect of science or
technology has evolved in a dystopic, utopic, and even heterotopic way. Starting from a
sociotechnical analysis, we make use of several samples of theses futures of the past,
founded on concepts from the Actor-network Theory, like generalized symmetry, black
box, circulating references and articulate or inarticulate propositions. Moreover, this
work proposes a series of questions about realism and about the ontologies of the facts
and ideas that appear in cinema, as well as in science taken as whole. A small analysis
of the Brazilian film The Cosmonauts (1962) is made. The Actor-network theory, as
well as the notions generated by the Science Studies have shown themselves as useful
tools to talk about science fiction as a genre; however, for the purpose of advancing in
the analysis of specific works, we still need, in subsequent studies, to delve deep in the
vast materials that focus on narratives in ANT.
Key Words: Science Fiction, Futurism, Science and Technology, Actor-network
theory, Science Studies.
SUMRIO
INTRODUO, 10
1. ALGUNS OLHARES SOBRE A FICO CIENTFICA, 17
2. AMOSTRAS DO FUTURO, PROPOSIES, CAIXAS-PRETAS, 43
2.1 A noo da Caixa-Preta, 52
2.2 Amostras do futuro e a historicidade das coisas, 59
2.2.1 Tempo sedimentar: a histria das coisas sem histria, 61
3. PROPOSIES ARTICULADAS E INARTICULADAS, 65
3.1 Como analisar filmes de fico cientfica na dimenso normativa dos estudos da
cincia, 65
3.1.2 Princpio de Falseabilidade Stengeres-Despret, 68
3.1.3 Oito passos para fazer uma epistemologia poltica S-D, 72
3.2 Sobre o Texto, 77
4. OS COSMONAUTAS: DESCRIES PRELIMINARES, 80
CONCLUSO, 95
REFERNCIAS, 97
10
INTRODUO
Ao longo de mais de trinta anos, uma abordagem nova para o estudo da cincia e
do social tem se desenvolvido. Os Science Studies, que partem de uma epistemologia
poltica, so os estudiosos da cincia com uma abordagem sociolgica das associaes,
eles romperam com diversos princpios comumente aceitos em cincias humanas. Esse
grupo de pesquisadores, que, por serem obrigados a tomar para si uma definio e se
inserir em um campo, se autodenominam socilogos, historiadores, filsofos, cientistas
polticos e a esses campos j bem consolidados acrescentam o das cincias e das
tcnicas (LATOUR, 1994). Todavia, com bastante frequncia circulam livremente
entre os campos, e at se denominam hbridos.
Este campo chamado Science Studies inclui tambm a Teoria Ator-Rede, base
desse trabalho, que se diferenciou do campo de origem quando comeou a abranger um
maior nmero de temas no relacionados diretamente cincia. Isso levou, tambm, a
uma redefino do campo de origem considerando que a ampliao dos estudos do ator-
rede foram baseadas nos princpios de simetria generalizada, especialmente sua
definio de actante. Estudar a sociedade estudar a natureza e as coisas; estudar a
natureza e as coisas , tambm e necessariamente, estudar a sociedade, ou seja, os
coletivos de actantes.
Os estudiosos das cincias e das tcnicas rompem com a epistemologia ao, em
vez de estudarem a cincia sob o ponto de vista histrico, cronolgico e moderno
assimtrico, passarem a estud-la no momento em que ela construda.Uma vez que so
os vencedores que escrevem a histria, a epistemologia clssica s pode ser histrica no
momento em que apresenta sua lgica das revolues paradigmticas, ou seu princpio
de demarcao e de objetividade cientfica. Os Science Studies dizem que a cincia deve
ser estudada no momento de sua criao. A etnografia das cincia seria a melhor
abordagem para entrar em um laboratrio e ver como um fato surge; tratar os cientistas
como os antroplogos tratam os pr-modernos.
Abrir a caixa-preta da cincia, descontruir seu conhecimento e cartografar as
controvrsias seria a outra opo possvel para estudar o fato cientfico ou o objeto
tecnolgico. Neste caso, abrir a caixa-preta significa um deslocamento no tempo e no
espao para o momento em que a caixa foi fechada, levando em considerao tanto
11
vencedores quanto vencidos e seguindo as controvrsias que fizeram com que uma
afirmao ganhasse a forma de fato cientfico; assim que o estudioso da cincia e das
tcnicas deveria estudar o conhecimento e o fazer cientfico. entrando pela porta de
trs da cincia que conseguem entend-la.
Eessa abordagem de uma epistemologia poltica reviu a forma como surge um
fato, no mais focada no ato herico e livre da fora do cientista, mas incluindo cientista
e objetos em um coletivo sociotcnico, no qual mediadores ativam redes de porta-vez.
Cientista porta-voz, representante, e no mestre. Ele d voz aos atores ao mesmo
tempo em que tomado pela voz destes. Essa abordagem de estudar o fazer cientfico
muito clara: no h uma fora social, um contexto social, que faa o cientista criar o
fato; tampouco existe a descoberta do fato por um cientista provido de objetividade
herica; mas, em vez disso, h associaes entre os atores diversos que fazem com que
o fato surja, em um contexto de jogos de fora e de mascaramento poltico das
controvrsias.
Talvez a maior fama dessa escola seja a de tratar qualquer objeto como um ator
social, o que no verdadeiro, j que apenas os objetos que objetam, isto , os atores
com actncia, so tratados assim. O actante, termo alternativo para designar a entidade
que age e faz a diferena, vem para substituir o termo Ator, que demasiadamente
humano.
Para a epistemologia poltica, o conhecimento se condensa a partir das
contribuies de diversos atores que articulam e co-afetam-se entre si. So esses atores
que, agindo como mediadores, ativam uma rede de porta-vozes. Stengers e Despret
(apud Latour, 2002) propem que o conhecimento o resultado da composio de um
mundo plural, mas comum. A construo do conhecimento um processo
necessariamente sintonizado com diversas entidades. Quanto mais afetado um objeto,
mais articulado ele se torna, o que faz as proposies ganharem fora, e uma vez livre
das controvrsias, tornam-se fato cientfico. Esta viso de cosntruo do conhecimento
cientfico no se baseiam nos princpios de demarcao entre cincia e no-cincia,
verdadeiro ou falso, ou nos princpios da objetividade cientfica.A realidade e a criao
so sinnimos.Se um fato cientfico poderia ser estudado como uma rede de atores, um
ator-rede, ento qualquer coisa do social poderia ser estudada dessa forma. Assim,essa
abordagem, originalmente desenvolvida para estudar a cincia, ganhou cada vez mais
adeptos ao apliar seu leque de estudos para os objetos tradicionais da sociologia.O
social no poderia ser encarado como uma cola, uma liga que une as pessoas, uma mo
12
invisvel, um habitus, ou uma estrutura onde os atores cumprem apenas papis sociais
preestabelecidos. Para a TAR (as siglas TAR ou ANT so as formas mais tradicionais
para se referir Teoria Ator-Rede; do ingls ActorNetwork Theory),a sociologia
clssica demasiadamente social, no sentido de que usa o social para explicar a
sociedade, ao passo que, na verdade, o social deveria ser a matria a ser explicada, e no
o ingrediente explicativo.
Para essa abordagem sociolgica das associaes, no h grupos, h apenas
formao de grupos;ou seja, quando um pesquisador for a campo, no deve definira
priori o grupo, j que no existe o social nesse sentido: grupos esto sempre sendo
feitos ou desfeitos. no momento em que os actantes se integram a uma rede que o
social surge; por isso,essa escola prima por elaborar relatos de risco, apenas
descrevendo o que observam, como os antroplogos fazem com os pr-modernos.
Sobesse aspecto, o que cria o social a actncia dos atores. Alm disso, alguns desses
atores so objetos que objetam,objetos com recalcitrncia e que esto lidados rede de
associaes que faz o social surgir, como mostra Latour (2012) em Reagregando o
Social. Por isso, o social , nesse sentido, algo que est sempre ocorrendo; ele precisa
ser reagregado.
No se trata, portanto, de desenhar uma rede onde atores agem, mas de seguir os
atores pelas redes que os mesmos criam descrevendo suas associaes. Essa rede algo
fluido, e no fixo, j que o social no o ingrediente, mas sim o bolo pronto; os
ingredientes so os atores. De modo que poderamos estudar a rede de telefones, trens
ou de internet sem estarmos fazendo pesquisa em TAR. seguindo o Ator-Rede,
descrevendo o que eles dizem sobre os mesmos, que se faz pesquisa sociotcnica.
por isso que a Teoria Ator-Rede to interessante para as reflexes sobre a
fico cientfica enquanto gnero cinematogrfico. Partindo dos mesmos princpios
bsicos, podemos analisar os contextos cientficos e tecnolgicos que envolvem a
histria, alm de tambm estudar o social sendo reagregado, para entendermos mais
sobre os coletivos de humanos e no-humanos. Essas reflexes so importantes, pois
incluem no debate social atores que no existem na atualidade, e que, por serem
amostras de um futuro alternativo, tem actncia o bastante para mover mundos, fazer a
trama acontecer e mudar a cultura e a natureza.
A fico cientfica oferece importante recurso para estudar associaes entre
atores em ambientes futuristas.Como veremos no primeiro captulo dessa monografia,
esse gnero, que j tem mais de cem anos, parte do princpio de que a cincia e a
13
tecnologia so to importantes para a narrativa que retir-las traria um
colapso,impossibilitando que a trama continuasse. O gnero utiliza-se das contribuies
da cincia para imprimir um realismo, embora no seja necessrio que as tecnologias
apresentadas na tela condigam com os manuais cientficos. Essa impresso da realidade
futurista tem o objetivo de fazer uma espcie de ensaio sobre alguma coisa. Variando
em relao s suas temticas, geralmente oferece imagens futuristas utpicas, onde a
sociedade evolui para melhor, mas tambm imagens distpicas, em que a humanidade
est encarando os resultados lancinantes do uso indiscriminado da tecnologia.
O segundo captulo retrata os principais conceitos que envolvem a TAR e a
histria da cincia. Partindo dos pressupostos sociotcnicos,cria-se a noo de amostras
do futuro do passado no presente. Essa noo nos ajudar em nossa tarefa de descrever
associaes. Para chegarmos a essa noo, descreveremos o conceito de caixa-preta,
historicidade das coisas, simetria generalizada, etc. Tambm reforamos a natureza da
cincia e do cinema como instituies que mostram proposies articuladas. A noo de
proposio articulada, juntamente com todos os conceitos ligados noo de amostras
do futuro, constitui elemento central neste trabalho.
No terceiro captulo, uma metodologia para analisar os filmes de fico
cientfica proposta. Essa metodologiatambm parte dos princpios da Teoria Ator-
Rede e da epistemologia poltica, j que tratamos tanto do social quanto do cientfico.
aqui que apresentamos as diferenas entre as assertivas de Popper e seu princpio de
demarcao entre cientfico e no-cientfico, entre verdadeiro e falso, e os princpios de
simetria generalizada especialmente trazidos por Stengers e Latour, para os quais, em
vez de assertivas, o melhor trabalhar com proposies articuladas ou inarticuladas.
Expomos, tambm, os princpios de descrio do social e como isso nos ajuda a
escrever relatos de risco, em que a objetividade alcanada atravs da descrio de
objetos que objetam. O foco est no actante articulando uma rede de associaes, a
funo do pesquisador apenas descrever o que os atores dizem sobre si mesmos.
Por fim, no quarto e ltimo captulo, fazemos as descries preliminares do
filme brasileiro Os Cosmonautas, de 1962, dirigido por Victor Lima. Este captulo no
tem o objetivo de fazer uma exaustiva anlise do filme, mas sim as descries
priliminares que envolvem a obra. Levando em considerao que ainda precisamos
aprofundar as leituras sobre narrativas da Teoria Ator-Rede, as reflexes exaustiva
sobre o filme sero feitas quando o mtodo descrito nessa monografia estiver mais
maduro. Por enquanto as descries preliminares do ultimo captulo foram muito
14
importantes para refletirmos mais sobre a necessidade de dialogar com tericos da TAR
que se dedicam a relexes sobre as narrativas, como Donna Haraway, John Law e
Annemarie Mol.
A escolha do filme Os Osmonautas foi feita por causa de diversos fatores
ligados ao cinema latino-americano e tambm fatores relacionados a prpria histria do
gnero de fico cientfica na Amrica Latina. A fico cientfica na Amrica Latina
existe pelo menos desde a dcada de 1880. Nomes como Machado de Assis, Augusto
Emlio Zaluar, Eduardo Holmberg, Francisco Calcagno e Joaquim Felcio dos Santos
so assossiados a essa primeira leva de escritores latino-americanos que se dedicaram
fico cientfica. Mas foi apartir do sec. XX que o gnero comeou a ganhar certa fora
no continente (CAUSO, 2003). Ainda que a primeira leva de escritores traga pouca
originalidade em relao ao estilo de escritores anglfonos, como mostra Andrea L. Bell
(2003) em sua obra Cosmos Latinos, sobre literatura de fico cientfica na Amrica
Latina e Espanha.
De acordo com Bell (2003) as caractersticas mais importantes da fico
cinetfica em nosso continente que suas histrias se inclinam para um tipo soft, com
temticas voltadas s cincias humanas, psicologia, ecologia e temas sociais e polticos.
Nessas histrias, tambm aparecem com freqncia o uso de smbolos cristos e a
oposio entre f e razo. Tambm h forte utilizao de stiras, alegorias e humor em
temas bem amplos, como a colonizao das Amricas e jornadas de heris. E embora o
incio da fico cientfica na Amrica Latina tenha sido sob forte influncia de
escritores da lngua inglesa, apartir dos anos de 1960 as maiores referncias para o
gnero foram internas.
A autora tambm chama a ateno para as caractersticas polticas do
continentem, principalmente entre as dcadas de 1970 e 1980, onde alguns pases
viveram ditaduras, o que levou muitos escritores a parar ou diminuir a produo, ou
ainda emigrarem para outros continentes. Depois das dcadas de 1980 o gnero voltou a
ganhar fora com a democratizao desses pases. no Brasil, Argentina, e Mxico
onde h maior nmero de escritores de fico cientfica da Amrica Latina.
importante tambm apontar o decisivo papel da internet que tem dado grandes
contribuies ao gnero, formando diversas comunidades virtuais de aficcionados e
eventuais escritores, principalmente entre jovens nerds, fs de fico cientfica. (BELL,
2003)
15
No cinema brasileiro de fico cientfica destacam-se alguns exemplos de
esforo para a construo de uma fico cientfica cinematogrfica brasileira, que tem
vnculos com o prprio esforo do cinema nacional. Em 1959, por exemplo, foi lanado
o filme O Homem do Sputnik, dirigido pro Carlos Manga, que conta a histria de um
casal de caipiras que passam a viver de forma completamente diferente depois que o
pioneiro satlite russo cai em seu galinheiro. Fortemente marcado pela comdia, a maior
parte dos filmes brasileiros de fico cientfica so tambm dessse gnero humorstico.
Outro filme importante para o cinema brasileiro o Parada 88: O limite do
Alerta, dirigido por Jos de Anchieta de 1977, conta a histria de uma cidade que vive
enclausurada em enormes tneis plsticos devido exploso de uma grande fbrica que
despejou no ar muitas substncias txicas. Os personagens precisam, ento, comprar
oxigncio para sobreviver. A temtica do filme importante porque foca na convivncia
das pessoas nesse ambiente de clausura, trata-se, tambm, de um drama psicolgico
voltado para um momento histrico importante no Brasil, o regime militar.
O filme Abrigo Nuclear, de 1981 dirigido por Roberto Pires, tambm bastante
interessante para a construo do gnero no cinema brasileiro, principalmente porque
foge do humor focando-se no drama e em uma fico cientfica mais hard. O filme
narra um grupo de humanos que vivem em um abrigo nuclear subterrneo durante
muitas geraes sob um sistema bastante rgido de disciplina. Todas as pessoas que
vivem nesse abrigo perderam completamente a ligao cultural com as formas de vida
tradicionais da humanidade, e o filme mostra como os personagens se guiam em uma
busca da verdade sobre si mesmos e sobre seu passado no mundo, para tentar responder
o motivo de viverem no abrigo.
No quarto captulo faremos uma breve anlise do filme brasileiro Os
Cosmonautas, de 1962, dirigido por Victor Lima. Nosso objetivo, neste captulo, fazer
uma anlise experimental para identificar a aplicabilidade das noes trabalhadas ao
longo desta monografia. Queremos, antes de uma anlise exaustiva sobre o filme, fazer
uma anlise que possa nos mostrar os rumos para continuar a pesquisa. A escolha do
filme foi guiada pela temtica peculiar da histria que tenta inserir o Brasil no contexto
das disputas espaciais da guerra fria. O filme representa um sonho, tanto para a cincia
brasileira, quanto para o cinema nacional, relacionados ao xito dos brasileiros em
relao aos outros pases.
Tambm pesou na escolha todo o histrico da fico cientfica com as viagens
para o espao. Como veremos no captulo 1 desta monografia, o filme A Viagem a Lua,
16
pioneiro na fico cientfica mundial e, ainda, as anlises dos argumentos da farsa
lunar relacionadas s imagens da Apollo 11. O filme a ser analisado foi rodado apenas
um ano depois da ida do primeiro astronauta russo e, tambm, do primeiro astronauta
americano ao espao, o que tornam a escolha ainda mais interessante pois reforam o
carter poltico da cincia no momento em que o filme foi concebido.
Uma caracterstica importante desse filme a sua ligao com a chanchada
brasileira que foi muito famosa at os anos de 1950, ligada a temas carnavalescos e
imagem da malandragem carioca. Embora fosse considerada por alguns crticos como
um humor vulgar e s vezes sem qualidade. Vemos isso em Os Cosmonautas tanto no
carter humorstico do filme, principalmente ao tipo de humor que prprio da
chanchada, quando pela escolha dos atores. A presena de Grande Otelo, por exemplo,
um dos fortes indcios dessa inclinao. O efeito cmico nas chanchadas era criado
pela repetio de situaes comuns comdia o pastelo, o pastiche, o travestimento
ou o simples aparecimento de um ator-personagem conhecido [como Grande Otelo ou
Oscarito] (LIMA, 2007)
17
1. ALGUNS OLHARES SOBRE A FICO CIENTFICA
Antes de entrarmos num debate amplamente ancorado na Teoria Ator-Rede,ao
qual esta monografia se prope, torna-se necessrio conhecer quais so os aspectos mais
gerais da fico cientfica debatidos pelo campo da comunicao nos ltimos anos. Para
isso, fizemos uma reviso de literatura a partir de repositrios como o Sage Journals,
Wiley Online Library Journals e Peridicos Capes. A reviso foi feita em ingls,
espanhol e portugus, alm da leitura de diversos livros relacionados s teorias do
cinema. Aps uma seleo, demos incio s leituras dos principais temas, como a
histria da fico cientfica, o realismo dos filmes, a relao entre os diretores de
cinema e os cientistas, os temas da fico cientfica, o futurismo e a natureza das
imagens.
Neste captulo, tambm se requer o conhecimento do termo diegese. Toda
representao em filmes tem uma inteno global de produo de sentido, ancorada na
diegese. Nas fices cientficas, a ideia de diegese importante, pois o ambiente
diegtico que deve ser analisado para a criao de contextos. Os filmes futuristas so
amparados por objetos, idias e comportamentos diegticos que atribuem sentido ao
futurismo do filme.
A diegese uma construo imaginria, um mundo fictcio que tem
leis prprias, mais ou menos parecidas com as leis do mundo natural, ou pelo menos com a concepo, varivel, que dele se tem. Toda
construo diegtica determinada em grande parte por sua
aceitabilidade social, e, logo, pelas convenes, cdigos e simbolismos em vigor numa sociedade. (AUMONT, 1993, p.248)
Portanto, podemos dizer, ao menos por enquanto, que a fico cientfica
constitui-se, essencialmente, naqueles filmes que buscam conferir uma seriedade
explicativa a alguma ao extraordinria ocorrida no ambiente diegtico. Cardoso
(2006) conta porque o romance de H.G. Wells, A Mquina de Explorar o Tempo, de
1895, uma fico cientfica. Segundo ele, esse romance de fico cientfica porque,
mesmo que amplamente imaginativa, a viagem no tempo explicada pela utilizao de
uma nova tecnologia. Alm disso, a obra se baseia nas teorias evolucionistas de Darwin,
e em algumas outras teorias que viam o tempo como uma quarta dimenso, o que
evidencia a sua inteno de tornar a cincia um ingrediente especial da histria.
18
[...] a racionalidade, o realismo, a busca de apoio em alguma teoria
que no parea descabelada, com explorao das implicaes daquilo
que for postulado: eis a pontos que diferenciam a fico cientfica, por exemplo, do horror ou do maravilhoso, dentro do conjunto maior
que constitui o gnero fantstico. (CARDOSO, 2006, p.19)
E embora a seriedade explicativa esteja presente na maior parte da fico
cientfica, o que a define enquanto gnero no a seriedade em si. Para ser fico
cientfica, uma obra no precisa ser amplamente objetiva, nem ao menos fazer uma
projeo real sobre tecnologia. E sim, preciso que a tecnologia e a cincia sejam um
ingrediente to importante para a histria que retir-las dela s pudesse acarretar num
colapso para a narrativa (BOVA, 1993; CARDOSO, 1998).
Um bom exemplo da utilizao de explicaes cientficas enquadrando uma
histria no aspecto da fico cientfica o livro Frankenstein, que, depois, foi
reproduzido em diversas formas, tanto em filmes quanto em peas de teatro e histrias
em quadrinhos. Aqui, tambm, cabe um exemplo de um tema de fico cientfica que
posteriormente foi comprovado pela cincia, ao mesmo tempo em que outros aspectos
da histria ainda permanecem no hall da fico. Segundo Miskolci (2011), a obra,
publicada quarenta anos antes de A Origem das Espcies, de Charles Darwin, j
preconizava sua ideia no-criacionista; dava incio a uma nova ontologia humana,em
que a criao est na natureza e no na obra de Deus. No caso, Frankenstein narra o
homem surgindo pela ao criadora da humanidade e da cincia.
Mas, por outro lado, segundo J. M. van der Laan (2010), quando o livro da
jovem Mary Shelley foi lanado, a ideia de construo de um homem com partes de
outros homens mortos era inconcebvel no imaginrio dos leitores, ainda que, neste
perodo, a anatomia patolgica j estivesse sendo desenvolvida em pases como a
Frana e a Itlia (FOUCAULT, 1998), dando cincia vastos conhecimentos sobre os
mecanismos estruturais subjacentes no homem doente e conferindo fundamentos
amplamente cientficos s tcnicas de necropsia. por isso que, diz Laan, Percy Bysshe
Shelley, o famoso poeta, teria escrito no prefcio do livro de sua esposa, na edio de
1818, comentrios de famosos fisiologistas (incluindo Dr. Darwin, av de Charles
Darwin) classificando a criatura feita por Dr. Frankenstein como no impossvel de ser
realizada, explicitando, assim, o carter central da cincia na elaborao da narrativa.
fcil imaginar o colapso que ocorreria na histria caso o elemento cincia fosse
retirado da trama.
19
Mais importantes e mais instrutivos so os motivos subjacentes
pesquisa cientfica ficcional do protagonista, de um lado, e, do outro, a
trajetria de seus experimentos ficcionais voltados para um fato cientfico subsequente. Entretanto, a realidade construda da histria
aponta para um futuro bem alm da data de sua primeira publicao.
A viso que Mary Shelley tem, de possibilidade tecnolgica e cientfica assustadora, agora empalidece quando comparada com tudo
o que a cincia e a tecnologia biomdica contemporneas so capazes
de realizar. O inimaginvel, do modo como ela havia imaginado, se
tornou, em muitas maneiras, real. (VAN DER LAAN, 2010, p. 299)1
Certamente, a obra de Mary Shelley agradou os fisiologistas da poca. E ainda
que a noo de transplantes de rgos (incluindo membros e at a face) esteja hoje cada
vez mais desenvolvida, no a que reside o sucesso da obra, e sim na sua capacidade
de utilizar a cincia para narrar sua histria ficcional. Da mesma forma que o crtico de
arte no se atreve a explicar a arte para artistas, ou aqueles membros do Science Studies
no explicam a cincia para o cientista (LATOUR, 2008), a fico cientfica no um
gnero destinado ao cientista.
Entre ser fiel cinciae ser fiel a um argumento narrativo que d mais sentido
trama, o autor de fico prefere a segunda opo, j que o objetivo do filme de fico
cientfica no demonstrar, de modo flmico, as atribuies prticas de um manual
cientfico verdadeiro. Na nossa viso, a melhor fico cientfica presta cuidadosa
ateno sobre o que significa ser humano e viver em sociedades humanas. Histrias de
fico cientfica so apenas histrias, mitos, narrativas, nada mais (MILLER e
BENNETT, 2008, p. 600)2.
Tome-se, por exemplo, o filme A ltima Esperana da Terra, um longa-
metragemamericano de 1971 dirigido por Boris Sagal, baseado no livro I Am the legend.
O filme mostra os efeitos devastadores de uma guerra biolgica ocorrida entre China e
Unio Sovitica, na qual uma bactria elimina a maioria da populao da terra. Os
humanos sobreviventes sofreram uma mutao que os impedia de viver durante o dia,
pondo-os em condies anlogas dos vampiros. A bactria descrita no filme no
1As traduces ao longo desse trabalho so nossas: More important and more instructive are the motives
underlying the fictional scientific research of the protagonist on the one hand and on the other the
trajectory of his fictional experiments toward subsequent scientific fact. Nevertheless, the constructed
reality of the story points to a future far beyond the date of its first publication. Mary Shelleys vision of frightening scientific and technological possibility now pales when compared with all that contemporary
biomedical science and technology is able to accomplish. The unimaginable as she imagined it, has in
many ways come true (VAN DER LAAN, 2010, p. 299). 2.In our view, the best science fiction accords careful attention to what it means to be human and to live
in human societies. Science fiction stories are just stories, myths, narratives, nothing more (MILLER e BENNETT, 2008, p. 600).
20
existe de fato, mas a possibilidade de sua existncia o que torna a narrativa
interessante, ao expressar uma condio vampirescaem termos cientficos.
No que diz respeito s modalidades de fico cientfica, Cardoso (2006)
distingue dois tipos. O primeiro deles a fico cientfica soft, que baseada em teorias
vindas das cincias humanas e sociais, em que o futuro imaginativo pensado com
situaes de aplicao de ordem cultura e social, e no apenas tecnolgica. O segundo
tipo, mais clssico, a fico cientfica hard, que imagina universos buscando
referncias em disciplinas como fsica, qumica, astronomia e biologia.
Fahrenheit 451 um filme francs de 1966, dirigido por Franois Truffaut,
econstitui uma fico cientfica soft baseada em hipteses das cincias humanas, em
que, num futuro imaginrio, todas as formas de escrita e leitura so proibidas por um
governo totalitarista. Todos que so pegos lendo acabam presos para uma reeducao, e
os lugares que contm muitos livros so incendiados pelos bombeiros. Tudo isso at
que um desses bombeiros comea a furtar livros para ler, fazendo com que seu
comportamento e viso de mundo mudem.
Um exemplo de fico cientfica hard o filme A viagem fantstica, tambm de
1966, dirigido por Richard Fleischer. Trata-se de um curioso longa-metragem
americano que conta a histria do desenvolvimento de tecnologias de miniaturizao
para encolhimentos de objetos e pessoas. Todavia, esse encolhimento temporrio, e,
quando um cientista descobre uma forma de faz-lo durar por tempo indeterminado,
ocorre um atentado que o pe em coma com um cogulo no crebro. Um grupo de
pesquisadores, com o objetivo de salvar a vida do cientista e tambm a sua descoberta,
decide encolher um submarino para irem at o crebro do cientista, para retirar o
cogulo. Eles tm apenas uma hora para fazer isso, antes que o submarino volte ao
tamanho original.
claro que nenhuma dessas definies so mutuamente excludentes. Isso quer
dizer que no deve existir um filme puramente soft ou hard. Apenas podemos
identificar uma predominncia entre um ou outro formato temtico. Por exemplo, o
filme francs Alphaville, de 1965, narra a histria de uma populao futurista dominada
por um supercomputador que abole todos os sentimentos. Aqui, a temtica hard, a
existncia de um supercomputador capaz de produzir efeitos devastadores e em massa
na mente das pessoas, possibilita, uma histria de cunho soft: quais efeitos
antropolgicos, polticos, psicolgicos e sociais nasceramda ausncia de sentimentos na
vida em sociedade?
21
Essas histrias de fico cientfica apresentam com frequencia futuros utpicos,
heterotpicos ou distpicos em suas narrativas. Utopia, heterotopia e distopia so
palavras que procuram designar lugares. Podemos ver topos, do grego lugar, por
exemplo, em diversas cincias que procuram descrever, justamente, o ambiente, como
o caso da topografia (neste caso como um prefixo) . A primeira a surgir dessas trs
palavras foi a utopia, que segundo Freitas (2008) foi criada por Thomas More em
1516 em seu livro Utopia. Nesta obra More descreve uma ilha imaginria em que
prope um Estado perfeito e uma civilizao ideal. A utopia, que siginifica literalmente
no-lugar, no est amparado no plano da referncia com o real, mas sim no plano
estritamente ficcional. J que uma utopia trata, necessariamente, de um lugar que no
existe.
Turcherman (2003) ainda nos diz que a modernidade um sonho de realizao
da utopia atravs da flecha irreversvel do tempo cronolgico, onde o mito do progresso
se impe como o caminho para realizar essas ideias utpidas. Atualmente a palavra
utopia designada para qualquer pensamento ideal e irrealizvel, ou at fantstico sobre
algum aspecto da cultura humana. Diversos tericos do social foram considerados
utpicos porque idealizaram pensamentos sociais sobre a humanidade que dificilmente
poderiam ocorrer. Mas podemos resumir o que o termo quer dizer da seguinte forma:
So os posicionamentos sem lugar real. So posicionamentos que
mantm com o espao real da sociedade uma relao geral de analogia direta ou inversa. a prpria sociedade aperfeioada ou o
inverso da sociedade, mas de qualquer forma, essas utopias so
espaos que fundamentalmente so essencialmente irreais ( FOUCAULT, 2009, p. 415).
A distopia, por sua vez, exatamente o oposto da utopia. Se a utopia pensa em
um futuro belamente ideal e fantstico para a civilizao, a distopia pensa em um futuro
completamente sombrio e lancinante. Se a utopia amplamente baseada no fantstico e
no ficcional, a distopia baseada no real, no aqui e agora, num aviso para a sociedade
sobre todas as formas ruins que suas aes podem trazer. Distpico significa
literalmente lugar de dificuldade, de dor, algo perfeitamente localizvel e com
equivalente real (embora seja uma relao de quivalncia e no uma relao direta), j
que so projees dos medos de uma sociedade.
No texto outros espaos Michel Foucault (2009) elabora o conceito de
heterotopia, que parte do conceito da utopia. Mas esse termo se relaciona tanto com
22
distopia quanto com utopia. J que no est vinculado apenas espaos imaginrios ou
a espaos reais, mas sim a uma mistura dessas duas modalidades (Freitas, 2008).
Heterotopias so
[...] lugares reais, lugares efetivos, lugares que so delineados na prpria instituio da sociedade e que so espcies de contraposicionamentos, espcies de utopias efetivamente realizadas
nas quais os posicionamentos reais, todas os outros posicionamentos
reais que se podem encontrar no interior da cultura esto ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espcies de lugares que
esto fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente
localizveis ( FOUCAULT, 2009, p. 415).
Nessa categoria de lugares do espaos do outro, espao do diferente, h ainda as
heterotopias de crise e as heterotopias de desvio. As heterotopias de crise so aqueles
lugares proibidos ou sagrados, como as viagens aps o casamento para a deflorao
da mulher, o cemitrio ou o servio militar. As heterotopias de desvio constituem
aqueles lugares destinados s pessoas que se encontram isoladas ou segregadas devido a
algum desvio, como as clinicas psiquiatricas e as prises. As heterotopias tem um
funcionamento especfico nas sociedades, podendo variar de sociedade para sociedade.
Esses espaos outros podem, ainda, justapor vrios lugares com caractersticas
diferentes. Elas tambm so heterocronias, por estarem ligadas ao tempo, funcionando
como outros espaos quando ocorre uma ruptura temporal entre o espao normal e a
heterotopia, como no museu, no cemitrio e as cidade sde veraneio. As heterotopias
esto ao mesmo tempo fechadas em si mesmas como abertas para que o exterior entre.
Podem-se tambm, com muita frequncia, expressar temas atuais ou histricos
em narrativas futuristas, como em Dune, filme americano de 1984, que um dos
maiores clssicos da fico cientfica. Ele narra o longnquo ano de 10.191 d.C., quando
a humanidade se espalhou pelo universo. Neste filme, uma especiaria com propriedades
de prolongar a vida, expandir a conscincia e ajudar em viagens interestelares torna-se o
motivo de intrigas e disputas de poder; essa especiaria encontrada em um planeta
constitudo por um grande deserto, conhecido como Duna. Embora a humanidade tenha
progredido em termos tecnolgicos e se expandido para diversos planetas, as disputas
pelo poder apenas fazem repetir o que j fora visto em toda a histria da humanidade,
traando at mesmo referncias s formas feudais de organizao poltica, e trazendo,
contextualizados em ambientes futuristas, os mesmos problemas.
Embora possam ser baseados no presente, deixando, portanto, abertas as
temticas da fico cientfica no que diz respeito sua problematizao e conflitos
23
narrativos, de forma geral os filmes apresentam formas padronizadas de retratar o
futuro. Vizcarra (2012), em uma anlise sobre a relao da fico cientfica com a
modernidade, diz que os filmes de fico cientfica apresentam ao menos cinco formas
de representar o futuro: (1) o filme de contato, em que se narram encontros com
extraterrestres, seja em invases aliengenas ou em viagens do homem pelas galxias;
esse tipo de filme descreve guerras onde os extraterrestres tm a finalidade de
exterminar a espcie humana, ou encontros nos quais o objetivo a cooperao entre
homens e E.Ts para um fim comum; (2) os filmes de contingncia, que narram as
mltiplas vertentes das crises ambientais e os efeitos colaterais e destrutivos do avano
tecnolgico, podendo incluir mutaes genticas em animais criando verdadeiras
monstruosidades derivadas da interferncia humana na natureza; (3) filmes de rebelies,
que narram histrias em que grupos humanos fazem revolues contra imprios muitas
vezes alicerados na tecnologia para dominar a vida das pessoas; (4) filmes de
explorao, em que ocorrem grandes expedies cientficas, ou mesmo viagens
comuns, geralmente para planetas distantes ou para regies improvveis da Terra; e (5)
filmes de alteridades, que apresentam as grandes mudanas sociais causadas pelas
tecnologias, principalmente as relacionadas comunicao e s formas de vida e cultura
globais da humanidade; eles mostram como o homem do futuro lida cultural e
socialmente com os avanos da tecnologia global.
Outra questo interessante sobre como os filmes de fico cientfica costumam
apresentar a imagem da cincia. Aps realizar um vasto estudo, que analisou mais de
220 filmes de fico cientfica, Weingart e Muhl (2003) identificaram uma srie de
padres de como a cincia geralmente apresentada no cinema. As questes levantadas
pelos pesquisadores so variadas. Eles queriam saber, por exemplo, quais eram as
disciplinas mais populares nos filmes de fico cientfica; nessas anlises, descobriram
que as ligadas medicina so as que mais dispem de representantes nas telas do
cinema. Outro tema abordado pela pesquisa era sobre o perfil dos personagens cientistas
desses filmes; a grande maioria eram homens entre 35 e 49 anos que se apresentavam
mais como pessoas discretas, em contraponto ideia mais clich de cientista maluco.
Menos de um quinto dos personagens cientistas analisados nesse estudo so mulheres,
e, quando so, geralmente so apresentadas como mulheres atraentes e jovens.
No que diz respeito ao perfil tico dos cientistas apresentados nos filmes
analisados, Weingart e Muhl (2003) mostram ainda, que existem alguns tipos de
representao muito constantes. O cientista como um ser bom e benevolente um dos
24
tipos; outro o famoso cientista maluco; h, tambm, os ambivalentes. Enquanto os
benevolentes so retratados como pessoas ingnuas quando tm que lidar com o
interesse de pessoas poderosas, os ambivalentes so facilmente manipulveis;
idealistas, embora facilmente corrompidos.
No que diz respeito s formas de os cientistas adquirirem conhecimento,
geralmenteos filmes mostram os pesquisadores como aqueles que fazem experimentos
com humanos e animais, alm dos cientistas que fazem descobertas por serem gnios,
ou os que descobrem por acidente.
Os autores, Weingart e Muhl (2003), ainda do um parecer, nos filmes
analisados, sobre a forma como o trabalho do cientista geralmente demonstrado.
Apresentaes dos mtodos cientficos em questo s ocorremse existirem motivaes
puramente narrativas: eles so apresentados como problemas ligados ao prprio
desenrolar da histria. Quando os mtodos no tm esse tipo de importncia, a
representao do trabalho do cientista no cinema tende a se concentrar somente nos
resultados por ele obtidos. Alguns cientistas, especialmente os cientistas malucos, so
apresentados como gnios solitrios, em seu laboratrio no poro, e, geralmente, com
objetivos que fogem s normas ticas da cincia.
Em pouco mais da metade dos filmes analisados por eles, Weingart e Muhl
(2003), constatou-se um desafio aos valores ticos de forma geral, o que levou a um
conflito entre a cincia retratada no filme e as perspectivas histricas. Geralmente, as
pesquisas mdicas so as que mais esto envolvidas com problemas ticos nos filmes.
Em quase todos os gneros de fico cientfica, a manipulao e criao da vida um
tema dominante.
No que diz respeito histria do gnero, algumas questes podem ser levantadas
j em relao ao prprio verbete Fico Cientfica. Segundo Cardoso (1998) a expresso
Fico Cientfica data de 1929, e atribuda Hugo Gernsback, embora a criao de
histrias de fico cientfica estivesse ocorrendo havia muito mais tempo. Alguns
autores e crticos ingleses preferem utilizar a expresso romance cientfico, como uma
tentativa de diferenciao da linguagem norte-americana nesse gnero; apesar desse
esforo, ainda h predominncia da expresso fico cientfica como forma geral de
referncia ao gnero.
Embora o romance Frankenstein, de Mary Shelley, que foi publicado por volta
de 1830, deva ser, sem sombra de dvidas, um dos primeiros romances de fico
cientfica (LANN, 2010), por volta de 1860 que o gnero ganha fora, especialmente
25
quando os romances de Jlio Verne comearam a se proliferar pelos crculos de leitores.
Contudo, foi em 1901, com as publicaes dos primeiros livros de H. G. Wells,
especialmente o livro Os Primeiros Homens da Lua, que a fico cientfica teve sua real
fundao tal como a vemos hoje. E, embora diversos outros autores tambm estivessem
produzindo fico cientfica nesse mesmo perodo, esses dois ltimos nomes so
considerados os pais fundadores do gnero. (CARDOSO, 1998)
A histria do surgimento da fico cientfica no cinema bastante curiosa e
bonita. Em seu livro introdutrio ao cinema, Jean-Claude Bernardet descreve um dos
acontecimentos maisimportantes da histria da imagem em movimento:
No dia da primeira exibio pblica de cinema - 28 de dezembro de 1895, em Paris -, um homem de teatro que trabalhava com mgicas,
Georges Mlies, foi falar com Lumiere, um dos inventores do cinema;
queria adquirir um aparelho, e Lumiere desencorajou-o, disse que o Cinematgrapho" no tinha o menor futuro como espetculo, era um instrumento cientfico para reproduzir o movimento e s poderia servir
para pesquisas. Mesmo que o pblico, no incio, se divertisse com ele,
seria uma novidade de vida breve, logo cansaria. Lumiere enganou-se. Como essa estranha mquina de austeros cientistas virou uma mquina
de contar estrias para enormes platias, de gerao em gerao,
durante j quase um sculo? (BERNADET, 2000, p. 11)
Depois desse episdio, Mlis conseguiu um Cinematgrapho em Londres e
iniciou sua carreira de cineasta, colocando em prtica todos seus conhecimentos de
ilusionismo e vrios truques cinematogrficos. Todos esses esforos foram feitos para
dar uma impresso de realidade s suas histrias. Sua realizao mxima talvez seja o
filme Le Voyage Dans la Lune (A viagem Lua, de 1902), que considerado como
sendo o primeiro filme de fico cientfica (ainda que uma proto-fico cientfica), e
tambm o pioneiro em usos de efeitos especiais como trucagens e plvora. Graas
impresso da realidade, o cinema vem, nesses mais de cem anos, agindo ativamente na
construo do imaginrio das pessoas, especialmente na fico cientfica e na fantasia,
gneros que, como veremos, tm ampla correlao.
A primeira dcada dos anos de 1900 foi muito frutfera para a tecnologia e para a
cincia, situao que progrediria cada vez mais rpido com o passar dos anos. Na
cincia, estavam sendo desenvolvidas a Lei de Planck da radiao de corpo negro
(publicada em 1901), a Terceira Lei da Termononmica por Walther Nernst (publicada
em 1906) e a descoberta da radioatividade por Marie Curie (entre 1896 e 1900). Alm
disso, a fsica quntica de Max Planck se desenvolvia. E foi no inicio desta dcada que
26
Albert Einstein publicou a sua teoria da relatividade, dando um grande salto no
pensamento fsico e desencadeando um importante avano metodolgico na cincia.
Os primeiros voos de avio dos irmos Wright foram feitos ainda em 1901 e
Santos -Dumont fez a primeira decolagem do seu 14-bis em 1906. Nesta mesma dcada,
desenvolvido o motor a Diesel e a produo em massa de automveis. O primeiro
Zeppelin voa. O primeiro rdio-receptor feito. O primeiro aparelho de ar-condicionado
criado. O detector de mentiras era inventado. A lmpada de non era apresentada
indstria. A primeira tecnologia de radiodifuso inventada. A cincia se torna cada
vez mais desenvolvida, e a vida na sociedade, cada vez mais ligada a diversos artefatos
tcnicos.
[...] a cincia como horizonte de plausibilidade, legitimador de uma viso de mundo nova: a Revoluo Cientfica comea no sculo XVII,
mas demora a influir generalizadamente nas formas de percepo do
mundo e das coisas, o que se d sobretudo a partir da segunda metade do sculo XVIII e tem seu auge no sculo XIX e na primeira metade
do sculo XX (CARDOSO, 2006, p. 22)
nesse contexto de grandes controvrsias cientficas e avanos tecnolgicos que
Georges Mlis faz o seu primeiro filme de fico cintfica. As descobertas da fsica de
Einstein e o desenvolvimento da aviao certamente contriburam para reforar o
imaginrio de viagens ao espao. Anos antes, dois livros de fico cientfica sobre o
tema haviam sido lanados e estavam fazendo bastante sucesso. Eram o Da Terra
Lua(1865) de Jlio Verne e Os primeiros Homens na Lua (1901) de H.G. Wells. Estes
livros foram usados para basear parte do roteiro de A Viagem Lua.
O cinema j estava se desenvolvendo neste perodo, e vrios filmes j tinham
sido rodados pelos Lumire e outros entusiastas do cinema. Entretanto,enquanto os
filmes dos Lumire retratavam eventos do cotidiano, Georges Mlis tinha uma grande
peculiaridade:
Diferentemente dos Lumires, Georges Mlilis sempre gravou em seu estdio, numaao teatraldianteda cmera, em que seus filmes
mostravam eventos fantsticos que no poderiam ocorrer na vida real. Embora todos os filmes de Melilis se conformassem ao estilo tableau padro do perodo, eles tambm estavam repletos de aparies e desaparecimentos mgicos, realizados por meio daquilo
que os cinematografistas chamam de stop action, isto , parando a cmera, fazendo o autor entrar ou sair da cena, e depois reiniciando a cmera para criar a iluso de que o personagem simplesmente
desapareceu ou se materializou (NOWELL-SMITH, 1996, p. 39)3
3 Unlike the Lumires, Georges Mlilis always shot in his studio, staging action for the camera, his films
showing fantastical events that could not happen in 'real life'. Although all Mlilis's films conform to the
27
Mlis fez mais de 500 filmes e construiu o primeiro estdio cinematogrfico da
Europa. Suas tcnicas foram muito inovadoras no tocante aos efeitos visuais e criao
do roteiro, mas, em termos de linguagem cinematogrfica, ele avanou muito pouco. A
maioria de seus filmes era rodada com planos gerais, sem a utilizao de
enquadramentos mais funcionais e de uma montagem mais especializada. Alm disso,
seus filmes foram precursores na tcnica de pintar quadro a quadro os fotogramas. Isso
possibilitava resultados incrveis de filmes coloridos j nos primeiros anos de 1900. A
principal caracterstica dos filmes desse perodo foi a inovao das tcnicas de produo
de efeitos visuais.
O trickfilm foi um dos primeiros gneros de filme. Embora primariamente identificado com o trabalho do mgico-francs-
tornado-cineasta Georges Mlis, muitos desses filmes foram feitos em diversos pases entre 1898 e 1908. Durante a fotografia, a cmera
era paralisada, uma mudana era feita (por exemplo, uma garota era
substituda por um esqueleto), e a fotografia era reiniciada. (NOWEL-SMITH, 1996, p. 129)
4
Nesta mesma linha, A Viagem Lua foi um filme feito quase que totalmente
dentro do estdio. Diversos efeitos especiais e mgicos foram utilizados para
imprimir a realidade com mitologias universais da cultura humana. Mlis une as
proposies fetiches. A inveno do avio e o desenvolvimento da fsica quntica e da
teoria da relatividade podem nos dar uma ideia de que a comunidade cientfica estava
debatendo temas ligados astrofsica. Depois desse filme outros tambm narraram a
ida do homem lua, como Frau im Mond (A mulher na Lua, de 1929) de Fritz Lang,
que conta uma viagem lua feita para buscar ouro; toda a tripulao acaba morta,
restando apenas um homem e uma mulher, sozinhos em um paraso, como no Gnesis
bblico.
A histria de Mlis narra a ida de homens para nosso satlite natural utilizando
uma enorme bala. Logo no incio do filme, um orador demonstra com pontilhados,
durante um encontro,a trajetria entre a Terra e a Lua, e explica o procedimento para
standard period tableau style, they are also replete with magical appearances and disappearances,
achieved through what cinematographers call 'stop action', that is, stopping the camera, having the actor
enter or exit the shot, and then starting the camera again to create the illusion that a character has simply vanished or materialized (NOWELL-SMITH, 1996, p. 39).
4 The 'trick film' was one of the earliest film genres. While identified primarily with the work of the
French magician turned film-maker Georges Mlis, many such films were made in several countries
between 1898 and 1908. During photography the camera would be stopped, a change made (for example,
a girl substituted for a skeleton), then photography resumed (NOWELL-SMITH, 1996, p. 129).
28
seus colegas. Primeiro, declara ele, um grande canho dever ser construdo. Deste
canho, partir um projtil tripulado que dever ser mirado na Lua;o objetivo que a
comunidade de cientistas possa conhecer o que h neste astro to importante para a
humanidade. A proposta causa indignao nos demais: como isso poderia dar certo?
Como poderia ser feito? Nada disso falado, mas a pantomima capaz de dizer tudo.
Alguns se exaltam, ficam bravos. Agresses ocorrem, objetos so lanados. O homem
que faz a proposta de ir Lua um gnio ou um louco? O homem que estava
impaciente e solitrio no incio da cena acha que louco. Seus demais colegas, todavia,
so mais pacientes que ele e parecem estar querendo ver no que tal ideia vai dar. Depois
de mais debates eles decidem que sim, iro lua.
Nesta primeira passagem do filme de George Mlis apresentada a primeira
proposio que torna toda a histria possvel: A viagem lua possvel graas ao
disparo de um projtil oco e tripulado. Este projtil similar a uma bala de revlver e
no disparo deve ser usado o mesmo dispositivo das armas de fogo: a plvora. Neste
ponto do filme, ainda h muitas controvrsias (notamos cientistas que so contrrios ao
experimento e que acham que ele no dar certo), embora j haja uma proposio firme
sobre o assunto, proposto pelo astrnomo orador e corroborado como possvel pelos
demais.
No decorrer do filme, outras proposies articuladas so apresentadas para
compor a histria, como a possibilidade de habitar a lua sem o auxlio de bombas de
oxgnio, ou a revelao de que a lua habitada por extraterrestres hostis. Est claro que
essa ideia de o homem ir Lua tripulando uma bala gigante disparada com plvora, ou
que na Lua existam homens verdes hostis no corresponde com a verdade encontrada
pela misso Apollo 11. Mas, ser que, por causa disso, o filme de Mlis deixa de ser
uma fico cientfica e passa automaticamente para o campo da fantasia? claro que
no! O ingrediente cincia da histria o que faz com que ela se mova, assim como
no j citado livro A Mquina de Viajar no Tempo de H.G.Wells. Neste caso, o princpio
de demarcao no aquele mesmo utilizao por Popper (1972); ou seja, quando uma
histria deixa de ser considerada na lgica popperiana como cientfica, ela no deixa de
ser uma fico cientfica. Embora ambas, a mquina do tempo e a bala gigante, sejam
meramente imaginativas, elas so mecanismos articulados que movem a trama; so, no
ambiente diegtico, a explicao racional a partir de uma tecnologia nova.
Aesterespeito, David Kirby (2003) diz que:
29
O objetivo da mdia ficcional no delinear comunicaes
acuradas/educativas sobre cincia, mas produzir imagens de cincia que produzam entretenimento. Essas imagens tm um impacto nas
concepes dos americanos sobre cincia, seja por encorajar
excitao, seja por instilar medo em relao a cincia e tecnologia. importante notar que cincia no contexto deste ensaio no definida como contedo substantivo; em vez disso, definida como um gnero,
tema ou representao convencionada na fico. Representaes
ficcionais da cincia abarcam mais do que apenas uma coleo de fatos. Elas incluem os elementos significantes no processo gerador de fatos chamado cincia um corpo de conhecimentos, os mtodos da cincia, as interaes sociais entre cientistas, equipamento de laboratrio, etc. Ademais, as representaes ficcionais da cincia,
especialmente em mdias visuais como a televiso e o filme, envolvem
a produo e a apresentao de uma imagem da cincia, tenha a cincia algo a ver com a cincia real ou no. (KIRBY, 2003, p. 263)
5
O filme dirigido por Franklin J. Schaffner, Planeta dos Macacos, de 1968, narra
a histria de um experimento feito para provar uma das hipteses da teoria da
relatividade, a saber, que viajar na velocidade da luz com uma nave espacial faz com
que o tempo passe de forma diferente do que acontece com os habitantes da terra.
Depois de uma viagem de dezoito meses na velocidade da luz, os astronautas retornam
terra, onde, provando que a teoria estava certa, j haviam se passado mais de dois mil
anos desde a partida. Porm, nesse tempo, diversos eventos ocorreram: o planeta est,
agora, dominado por macacos, e a espcie humana est escravizada. Neste caso, dois
aspectos so levados em conta; de um lado, a teoria cientfica aceita pela comunidade de
que o tempo passaria mais rpido para os usurios de uma nave espacial na velocidade
da luz; o outro, puramente imaginativo e controverso, que, em dois mil anos, a terra
ser dominada por macacos.
Miller e Bennett (2008) narram uma interessante palestra dada em 2006 por
Christine Peterson, vice-presidente de Poltica Pblica do Instituto Foresight, na qual
5The point of fictional media is not to devise accurate/educational communications about science, but to produce images of science that are entertaining. These images have an impact on Americans conceptions of science by either encouraging excitement or instilling fear about science and technology. It is important to note that science in the context of this essay is not defined as substantive content; rather it is defined as a genre, theme, or conventional representation in fiction. Fictional depictions of science
encompass more than just a collection of facts. They include the significant elements in the fact-producing process called sciencea body of knowledge, the methods of science, the social interactions among scientists, laboratory equipment, etc. In addition, fictional depictions of science, especially in
visual media such as television and film, involve the production and presentation of an image of science,
whether or not the science has anything to do with real science. (KIRBY, 2003, p. 263)
30
dizia que, para fazer previses em longo prazo acerca da evoluo das tecnologias e da
cincia, o instituto deveria focarna racionalidade tcnica. claro que uma organizao
como a que Christine preside, argumenta os autores, deve estar preocupada com a
racionalidade tcnica, j que no podem basear em fices cientficas suas previses
sobre fatos cientficos. Mas, para os autores, a maioria dos pensamentos em longo prazo
sobre as tecnologias no deveriam se limitar racionalidade tcnica. Deveria haver uma
abordagem em que o social fosse enfatizado tanto quanto a tcnica.
Mesmo a mais hard das fices cientficas, a que est profundamente
envolvida com respeitar as leis da fsica, centra-se em personagens. As
pessoas fazem as histrias ganharem vida. Esforos convencionais em
analisar os significados a longo prazo das novas tecnologias na sociedade frequentemente parecem perder de vista as pessoas, e
especialmente os indivduos, at mesmo em fruns de engajamento
pblico. A fico cientfica, por outro lado, se deleita nelas: suas foras, suas fraquezas, suas ambies, seus desejos, seus cimes.
Todavia, errado ver a fico cientfica como relacionada apenas a
indivduos; as narrativas de fico cientfica giram em torno de indivduos que habitam sociedades, e a melhor fico cientfica
aquela que nos permite, por meio de histrias individuais, ver
sociedades bem diferentes das nossas ganhando vida. (MILLER e
BENNETT, 2008, p. 600)6
Muitos filmes de fico cientfica contribuem com uma viso at mistificada da
cincia, nem sempre mostrando um contexto que condiz com a realidade. Embora a
fico cientfica queira apresentar imagens crveis para a sua audincia, na narrativa
que o foco est contido. A cincia um ingrediente fundamental, mas que geralmente
no utilizada para dizer no criatividade cinematogrfica. Em vez disso,
prefervel utilizar a cincia para dizer sim ao que a imaginao prope. [...] as
imagens, clichs e metforas usados pelos cineastas e roteiristas para retratar a cincia e
6 Even the hardest science fiction, the stuff deeply concerned with getting the laws of physics right, centers on characters. People make stories come alive. Conventional efforts to analyze the long-term
meanings of new technologies in society often seem to lose people, and especially individuals, even in
forums of public engagement. Science fiction, on the other hand, revels in them: their strengths, their
weaknesses, their greeds, their desires, their jealousies. Yet, it is wrong to see science fiction as merely
about individuals; science fiction narratives are about individuals who inhabit societies, and the best
science fiction allows us, through individual stories, to have societies very different from our own come
alive. (MILLER e BENNETT, 2008, p. 600)
31
os cientistas so um reflexo das imagens populares da cincia, dentro da medida em que
os filmes so um reflexo da cultura popular (WEINGART e MUHL, 2003, p. 282).7
David Kirby (2003), um importante estudioso britnico da comunicao
cientfica, acrescenta que muito tem sido e estudado e debatido sobre comunicao
cientfica nos meios de comunicao de massa. O estudo sobre esses meios to vastos,
que podem incluir programas de televiso, rdio, documentrios, revistas, etc., ainda
tem deixado a desejar quanto s formas ficcionais de comunicao cientfica. A grande
variabilidade da compreenso pblica de cincia torna as coisas cada vez mais difceis.
Diversos cientistas, afirma ele, acreditam que a comunicao da cincia em base
ficcional , na verdade, prejudicial para a viso do pblico sobre a cincia e para o
prprio empreendimento cientfico, principalmente quanto viso de que os cientistas
sejam pessoas malucas que vivem basicamente em laboratrios de poro.
Embora no haja compromisso com a cincia ou com o verdadeiro em
detrimento do falso, muitos filmes de fico cientfica so feitos com a contribuio de
cientistas, que do consultorias sobre temas de cincia. O objetivo criar uma histria
crvel, afinal. Kirby aponta que o que est por trs dessas consultorias a nfase no
realismo; levar o espectador a uma possibilidade de deslumbramento racional do
desconhecido. Vrios motivos bvios podem levar o cineasta a procurar o cientista;
outrossim, diversas questes motivam os cientistas: desde a diverso at possibilidade
de contribuir para que o pblico conhea o verdadeiro lado do fazer cientfico; sem
esquecer, claro, o ganho financeiro alto para executar uma tarefa, que para ele,
cientista, no to difcil. Por exemplo, o paleontlogo e artista Douglas Henderson,
que, segundo Kirby, atuou como consultor em Jurassic Park: O Parque dos
Dinossauros, de 1993, filme dirigido por Steven Spielberg, e Dinosaur, de 2000,
dirigido por Ralph Zondag e Eric Leighton, assim o fez apenas por causa do grande
ganho financeiro, que o possibilitaria, posteriormente, realizar seus verdadeiros desejos
profissionais,
O futurismo um dos temas mais frequentes em filmes de fico cientfica. A
lgica da evoluo tecnolgica parece dominar as mentes criativas na hora de conceber
seus filmes. Se os criadores querem apresentar possibilidades alternativas para o social e
para a cultura humana, desenvolvem, eles mesmos, tecnologias e teorias cientficas que
7[] the images, cliches, and metaphors used by filmmakers and scriptwriters to portray science and
scientists are a reflection of the popular images of science, insofar as their films are a reflection of popular
culture (WEINGART e MUHL, 2003, p.282).
32
possam lhes proporcionar um ensaio sobre alguma coisa, ou simplesmente se baseiam
em teorias j concebidas para imaginar ambientes outros. Esses ensaios sobre o
comportamento e a cultura humana frente a outros contextos tecnolgicos e cientficos
geralmente se ambientam no futuro.
Metrpolis (1927), filme de Fritz Lang, j apresentava, no contexto do
fortalecimento do gnero de fico cientfica, a viso distpica e futurista de uma
grande cidade do sculo 21 dominada por um megaempresrio. Neste filme, o futuro da
sociedade imaginado basicamente como a diviso entre, de um lado, os colaboradores
desse empresrio que controla tudo, e, de outro, a classe trabalhadora, que dominada
pelas mquinas. O filme traz imagens de carros voadores, robs e vrios edifcios e
mquinas, ambientando o futuro tanto na forma visual, na apresentao das novas
tecnologias, como na poltica de organizao e controle.
Esse futuro, entretanto, amplamente baseado no presente e no contexto da
criao do filme, j que [...] um filme tambm um documentrio sobre sua prpria
filmagem: [...], o filme, ao juntar pedaos do que foi gravado na filmagem, fornece
uma representao, uma imagem - temporalmente estranha s vezes - dessa filmagem
(AUMONT, 1993, p.170). Desse modo, sempre existiro futuros de passados
especficos. A humanidade muda sua viso sobre o que acredita que acontecer no
futuro de acordo com algumas variveis de sua vida presente, como diz Abbott:
Tomo como fato que a nica maneira de pensarmos acerca do futuro
seja mediante um entendimento do passado e do presente. Toda histria sobre um futuro possvel, seja um demgrafo prevendo a
populao daqui a dez anos, seja um escritor especulativo imaginando
o prximo milnio, uma projeo de algum aspecto da histria
humana. Em cada uma delas, os conceitos que utilizamos e os comportamentos que imaginamos derivam de nossa experincia do
presente... e de nosso conhecimento e interpretao do passado.
(ABBOTT, 2007, p. 123)8
Ao mesmo tempo, a criao de mundos alternativos tambm calcada em
individualismos da criao. Isso quer dizer que, em alguns aspectos, imaginar um
8I take as given that the only way that we can think about the future is through our understanding of the
past and present. Every story about a possible future, whether a demographer predicting population ten
years hence or a speculative writer imagining the next millennium, is a projection of some aspect of
human history. In every instance, the concepts that we deploy and the behaviors that we imagine derive
from our experience of the present . . . and from our knowledge and interpretation of the past(ABBOTT,
2007, p. 123).
33
mundo futurista projetar uma imagem e uma expectativa do presente, como vimos,
mas, em outros aspectos, uma deciso arbitrria da mente criativa.
A fico cientfica pode oferecer vises do futuro que so densamente
detalhadas, no apenas porque obras individuais se empenhem em criar mundos alternativos bem vvidos, mas, tambm, porque as
histrias em separado frequentemente retornam para imagens e temas
de importncia, remodelando-os e lhes adicionando mais profundidade (THURS, 2007, p. 76)
9
Vrios filmes podem servir como exemplo desses futurismos. Como em Blade
Runner: O Caador de Andrides, filme de 1982, dirigido por Ridley Scott, no qual a
humanidade inicia a colonizao espacial criando rplicas de humanos que so
exatamente iguais aos originais, mas mais fortes e geis, para que sobrevivessem
colonizao. Depois de acontecimentos polticos, a presena dos replicantes na terra se
torna proibida. Por isso, cria-se uma fora policial especial para caar e matar esses
clones.
Tambm pode ser um exemplo de filme futurista THX 1138; no caso, um
futurismo distpico. Esse filme americano dirigido por George Lucasnarra uma
sociedade subterrnea dominada por androides que obrigam a populao a consumir
drogas; todas as formas de emoes so proibidas. THX 1138 um desses moradores
dominados que acaba se libertando do sistema e chegando superfcie.
Um dos filmes mais simblicos quanto ao futurismo 2001: uma odissia no
espao, longa-metragem americano de 1968 dirigido por Stanley Kubrick.
considerado um dos maiores exemplares do gnero fico cientfica. O filme trata sobre
a evoluo cultural e tecnolgica da humanidade, alm de tambm tratar de vida
extraterrestre e apresentar diversas tecnologias de forma pioneira. Ele narra a evoluo
da cultura e da tecnologia humana, desde a utilizao de um osso como arma at s
modernas estaes espaciais; o conhecimento humano representado por um enorme
bloco de pedra negro.
J em O Planeta Proibido, filme de 1956 dirigido por Fred M. Wilcox, uma
viagem feita para um distante planeta no ano de 2200; o objetivo descobrir o que
havia acontecido com uma expedio enviada vinte anos antes, mas que jamais
retornara. Quando a nave chega ao planeta, envolvida por uma grande fora. Eles
9Science fiction can offer visions of the future that are thickly detailed not only because individual works
labor to create vivid alternative worlds, but also because the separate stories often return to important
images or themes, reworking them and adding to their depth (THURS, 2007, p. 76).
34
descobrem que todos os membros da expedio anterior estavam mortos, com exceo
de um psiclogo e sua famlia, que tiveram acesso tecnologia da civilizao que, um
dia, j havia habitado aqueleplaneta.
O filme sovitico Solaris, de 1972, dirigido por Andrei Tarkovski, narra a
histria deuma grande estao espacial posta na rbita de um planeta formado por um
imenso oceano com o intuito de descobrir se havia vida em meio imensido aquosa.
Devido a estranhos acontecimentos nessa estao, um psiquiatra enviado para l, e,
quando chega, descobre que seu amigo cometera suicdio. No decorrer da trama,
diversos eventos estranhos acontecem; no final, descobre-se que o planeta Solaris tem
poderes telepticos capazes de atuar nas lembranas, medos e imaginao das pessoas,
criando verdadeiras iluses que se confundem com a cruel realidade.
Todos esses filmes imaginam futuros altamente tecnolgicos que possibilitam a
viagem espacial, a dominao pelas mquinas, a criao de robs e andrides, etc.
Contudo, eles o fazem em termos prprios, uns mais prximos da realidade cientfica
atual, outros mais distantes. O filme 2001, por exemplo, imaginava uma estao lunar
no ano de 2001; essa ideia at hoje no foi realizada na prtica, mas nem por isso 2001:
uma odissia no espao deixa de ser um dos maiores filmes de fico cientfica. Ele
consegue fazer primoroso enredo baseando-se nesse fato criado, coloca seus
personagens para agir e uma histria acontece.
No h boas previses do futuro quando se fala de fico cientfica. H apenas
boas criaes de contextos tecnolgicos e cientficos para ensaiar novas formas de
articulao entre humanos e no-humanos. Na verdade, a fico cientfica oferece muito
pouco de uma viso tcnica sobre o futuro. Tal ensaio sobre alguma coisa tenta, na
verdade, projetar uma previso sobre a cultura e o comportamento humano frente frase
o que aconteceria se alguma coisa ocorresse. O que aconteceria aos homens se
extraterrestres invadissem a terra? O que aconteceria se tivssemos carros voadores? O
que aconteceria se pudssemos criar homens com pedaos de homens mortos? O que
aconteceria se robs dominassem nosso quotidiano? O que aconteceria se uma nova
ordem mundial fosse instaurada, um novo sistema? So perguntas como essas que
motivam a criao de um mundo alternativo.
Ningum consegue de fato escrever sobre o futuro, os escritores
utilizam-se de situaes futuristas para projetar e entender situaes do presente. E embora a relao fico cientfica e futuro sejam muito
prximas, nem toda fico cientfica precisa falar necessariamente
sobre o futuro, uma vez que no so os ambientes futuristas que
35
determinam o gnero, mas sim explicaes cientficas para eventos
extraordinrios. Dessa forma, poderia-se imaginar um presente em que
uma tecnologia nova surgisse, e fosse utilizada para conduzir dramaticamente a histria. (CARDOSO, 1996, p.7)
Desse modo, a preocupao da comunidade cientfica quanto preciso da
realidade cientfica no cinema equivocada. Mesmo que haja uma estreita semelhana
fsica entre o que filmado e o que aparece no filme, no h na fico cientfica uma
santidade secular da fotografia, como aquela apontada por Barthes10
(1984). Ainda que
a ideia de impresso da realidade nos conduza a imaginar, por alguns minutos, aquela
cincia e aquele futuro como uma representao da realidade, se isso no acontecer,
porque no existe ambiente diegtico e o filme no obteve sucesso. a que reside o
xito da fico cientfica: apresenta uma imagem que imprime a realidade utilizando-se
da cincia (com todo o seu status quo de falar em nome da realidade) para reforar o
que est se mostrando, sem que para isso precise se restringir a uma linha de
demarcao entre cincia e no-cincia, entre assertivas verdadeiras ou falsas, pois
estamos no mbito da fico.
O fato na fico a verdade no mito. Isto , o fato e a verdade da
histria no residem no literal, na realidade da existncia de Frankenstein, na acurcia da cincia de Shelley, na ligao com
qualquer de seus contemporneos, ou em quaisquer avanos
tecnocientficos subsequentes que o romance pudesse sugerir ou antecipar, mas no figurado, naquilo que Frankenstein e sua histria
contam e revelam acerca da motivao, investigao e prtica
cientfica; acerca da amoralidade, audcia e presuno cientfica; acerca da experimentao e avano tecnolgico e cientfico
descontrolados e incontestes; e sobre suas consequncias. Seu retrato
do homem de cincia que no conhece limites, no tem conscincia e
faz um monstro o que mais importa aqui. (VAN DER LAAN, 2010, p. 299)
11
10Essa santidade secular da fotografia apontada por Barthes diz respeito principalmente seu conceito de
nveis de evidncia das imagens, em que os observadores sentem a fotografia como um vestgio do
tempo, uma evidncia do real. 11The fact in the fiction is the truth in the myth.That is, the fact and the truth of the story do not reside in
the literal, in the reality of Frankensteins existence, in the accuracy of Shelleys science, in the link to any of her contemporaries, or in any subsequent technoscientific breakthroughs the novel might suggest
or anticipate, but in the figurative, in what Frankenstein and his story tell and reveal about scientific and
technological motivation, inquiry, and practice; about scientific presumption, audacity, and amorality;
about uncontrolled and uncontested scientific and technological experimentation and advance; and about
their consequences. Her figuration of the man of science who knows no bounds, has no conscience, and
makes a monster is here what matters most. (VAN DER LAAN, 2010, p. 299)
36
Embora alguns fatos imaginados na fico cientfica j estejam tornando-se mais
palpveis na realidade, como um pequeno avano nas viagens ao espao, estaes
espaciais, voos comerciais para o espao, a utilizao de robs espaciais e at algumas
pesquisas com o chamado teletransporte quntico, este tipo de previso no o objetivo
da fico. Destino Lua, filme americano de 1950 dirigido por Irving Pichel, narra a
viagem lua de forma bem mais realista do que o filme de Mlis. O importante aqui
que tanto em A viagem Lua, quanto em Destino Lua, o objetivo somente
contextualizar uma sociedade e um ambiente tecnolgico que seja mtico e no
mgico. A fico parece ter, segundo diz Cardoso (1996), uma relao com o
fantstico parecida com aquela relao entre a religio e a magia. O fantstico a
transgresso da norma, e, com isso, representa uma ultrapassagem do cotidiano com
eventos extraordinrios e sem explicao lgica. J a fico no mgica, e sim mtica:
ela ocorre em um contexto de normas socialmente aceitas (neste caso a cincia), e,
partindo desse pressuposto, finge responder a algumas questes que a cincia da poca
da criao da histria no consegue responder. Mesmo que misturada com elementos
cientficos ditos autnticos, como leis da natureza j provadas, hipteses bem aceitas e
teorias vlidas, ela no passa de uma representao mtica para problemas no
resolvidos, para um futuro alternativo.
Dessa forma, em O Dia em que a Terra Parou, de 1951, dirigido por Robert
Wise, a vinda de um ser aliengena para a Terra a fazer apelos pela paz aos povos torna-
se uma hiptese possvel. Nesse filme, uma nave aterrissa na capital norte-americana
trazendo um ser extraterrestre e seu rob; eles levam um ultimato aos lderes mundiais,
para que parassem de guerrear e de fazer uma corrida armamentista. Isso estaria
deixando temerosos os lideres dos demais planetas, j que a terra tambm pertence a
outros seres vivos. O tema pertinentede uma sociedade galcticaa impor regras aos
humanos parece caminhar entre as explicaes aceitas da mitologia. J que possvel
que haja uma civilizao extraterrestre, possvel que ela tenha suas normas, possvel
que ela queira intervir nos assuntos internos da humanidade quando esta se coloca
prestes a destruir riquezas naturais tambm pertencentes a outros seres vivos. Ou seja,
possvel que os (hipotticos) aliengenas faam o mesmo que os homens fazem: intervir
na soberania alheia quando um governo vai contra as normas internacionais.
O mais interessante sobre a questo do realismo dos filmes de fico cientfica
(s vezes requerido pela comunidade cientfica) a sua relao com as controvrsias
cientficas de forma geral. Se, por um lado, o filme de fico cientfica imprime a
37
realidade por mostrar imagens de proposies, como o homem indo Lua, um
aliengena invadindo a Terra, um enorme planeta aquoso que domina a mente das
pessoas ou uma sociedade dominada pela tecnologia, por outro lado, a prpria imagem
da cincia pode ser contestada como verdica. como se fosse uma via de mo dupla:
ao mesmo tempo em que o ficcional imprime a realidade, o cientfico pode levantar
controvrsias e ser interpretado como no real.
Imagem 1. Na imagem da esquerda, a Terra vista da Lua por homens que haviam viajado dentro de uma bala oca disparada com plvora. Filme de George Mlis,A Viagem Lua, de
1902.
Imagem 2. Na imagem da direita, a Terra vista da Lua pelo astronauta BuzzAldrin, o segundo
homem a pisar na Lua na Misso Apollo 11, de 1969. Fonte: NASA. (Esta foto tambm causou
controvrsias,pois nela no se veem estrelas)
O artigo de Perlmutter e Dahmen (2008) explora a controvrsia em torno do
pouso do homem da lua em 1969, especificamente em torno das imagens feitas dessa
explorao cientfica. Os autores tentam entender, tanto na dimenso cientfica, quanto
na popular, as crenas disseminadas em diversos sites: teorias de conspirao de que o
homem jamais teria realmente pisado na Lua. Esse fato controverso pode dar boas
contribuies para a diferena entre cincia e fico, realidade e mito. O importante
aqui que tanto os argumentos da farsa lunar quanto os argumentos cientficos da
NASA e de diversos astrofsicos partem da anlise das imagens. A Lua sempre
desempenhou fascnio na humanidade; nesse aspecto, o que crena e o que
cientificamente comprovado se misturam. Ela altera nossas mars, ao mesmo tempo em
que motiva algumas pessoas a cortar o cabelo apenas durante determinado perodo do
ms.Conquistar a lua sempre foi um sonho humano. Como vimos, diversos filmes
pioneiros de fico cientfica retrataram o feito.
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[] a foto do homem na Lua parece, ento, ocasionar pouco debate ou controvrsia. Enquanto a maior parte do conhecimento cientfico
difcil de retratar, quanto mais de compreender (por exemplo, teoria das cordas, distoro de espao-tempo, e assim por diante), o fato de
que foguetes deixem a Terra e levem homens a aterrissar na Lua
parece pertencer ao mais bvio exemplo de um experimento cientfico visualmente certificado como verdade. Certamente, essas imagens so um exemplo de fotos famosas recebendo universalmente um valor
de verdade, at assumirem um sentido transposicional, no se
elevando para objetos-mito at que todos tenhamos concordado com sua facticidade. (PERLMUTTER e DAHMEN, 2008, p. 23)12
Os autores seguem o texto apontando os principais argumentos dos que
defendem a tese da farsa lunar. Entre esses argumentos esto, principalmente,
observaes quanto s sombras que aparecem nas fotos (IMAGEM 3). Visto que, na
Lua, havia apenas uma fonte de luz, todas as sombras, em tese, deveriam ser projetadas
para o mesmo lado, e no isso o que as fotos mostram. Tambm se destaca certa
desproporcionalidade da Terra vista da Lua, e a tremulao da bandeira, sendo que no
deveria haver vento na superfcie lunar. A foto da pegada (IMAGEM 4), segundo a
mesmahiptese da farsa, no poderia ser feita, j que, sem umidade, jamais haveria
marcas de pegadas na Lua. Onde esto as estrelas nas fotos dos homens na Lua
(IMAGEM 2)? A prpria imagem do mdulo lunar Apollo 11 (IMAGEM 5), que no
parece ser capaz de voar, tira a credibilidade da viagem do homem Lua aos olhos dos
adeptos da tese da farsa lunar.
12 [] the photo of the man on the moon would seem to occasion little debate or controversy. While most scientific knowledge is difficult to picture, let alone comprehend (e.g. string theory, timespace distortion, and so on), that rockets left Earth and carried men to land on the moon seems to be the most
obvious instance of a scientific experiment visually verified as truth. Surely these images are an example of famous photos with a universally subscribed truth value, to take a transpositional sense, that
do not rise up to myth-object until after we all have agreed on their basic facticity. (PERLMUTTER e DAHMEN, 2008, p.23)
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Imagem 3. Nesta imagem, aparecem as projees das