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Pedagogia 2011
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS VII
SENHOR DO BONFIM – BA
PEDAGOGIA 2005.1
JAIRLÂNDIA RIOS NASCIMENTO
ENCONTROS E DESENCONTROS COM O COTIDIANO DA ESCOLA NA ROÇA: UM ESTUDO A PARTIR DE UMA HISTÓRIA
DE VIDA.
SENHOR DO BONFIM - BA2011
0
JAIRLÂNDIA RIOS NASCIMENTO
ENCONTROS E DESENCONTROS COM O COTIDIANO DA ESCOLA NA ROÇA: UM ESTUDO A PARTIR DE UMA HISTÓRIA
DE VIDA.
Monografia apresentada como pré-requisito para conclusão do Curso de Pedagogia: Docência e Gestão de Processos Educativos, Departamento de Educação Campus VII da Universidade do Estado da Bahia.
Orientadora: Profª Msc. Suzzana Alice Lima Almeida
SENHOR DO BONFIM - BA2011
1
JAIRLÂNDIA RIOS NASCIMENTO
ENCONTROS E DESENCONTROS COM O COTIDIANO DA ESCOLA NA ROÇA: UM ESTUDO A PARTIR DE UMA HISTÓRIA
DE VIDA.
Data da aprovação: _____/_____/_____
Banca examinadora
___________________________________________________Profª.: Msc. Suzzana Alice Lima Almeida (Orientadora)
_____________________________________________________Profª.: Msc Rita de Cássia Oliveira Carneiro (Avaliadora)
___________________________________________________Profª.: Beatriz de Souza Barros (Avaliadora)
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Dedico este trabalho primeiramente a Deus, criador de todas as coisas, que me deu a vida e me permitiu chegar até aqui.
Aos meus pais que me deram a vida e me ensinaram a vivê-la com dignidade, não bastaria um obrigado. A vocês que iluminaram os meus caminhos obscuros com afeto e dedicação para que eu os trilhasse sem medo e cheia de esperanças, não bastaria um muito obrigada. A vocês que se doaram inteiros e renunciaram aos seus sonhos para que muitas vezes, pudessem realizar os meus obrigada. Amo vocês!
Ao meu filho Gabriel por tantas horas de ausência, quando eu deixei de ninar você, de te abraçar para conseguir terminar este trabalho, meu muito obrigada filho e quero dizer que você é a razão máxima da minha vida. Te amo!
Ao meu amor, meu esposo, grande companheiro e sendo hoje o dia que cheguei ao fim de mais uma grande jornada, acredito ser uma boa ocasião para dizer que sou de uma sorte grande e a prova disso é ter você.
Aos meus amigos da faculdade e fora dela, agradeço a amizade que gentilmente vocês me permitiram desfrutar. Agradeço a energia de vocês que positivamente, muitas batalhas me ajudaram a ganhar! Pelo apoio, pelas horas de lamento, de risos e lágrimas, pelas reclamações na biblioteca, nas salas vazias nas quais nos reuníamos para desabafar.
Aos meus irmãos, Lusinéia e Itamar.
Ao meu irmão cunhado Miro (in memória), pelo incentivo e apoio que me deu em sua casa juntamente com minha irmã Lusinéia. Lembro-me com nostalgia do seu sorriso magnífico me dando aulas sobre tudo, porque você de tudo sabia um pouco. São imagens que vêem à minha memória, do teu rosto, do teu sorriso, do
3
seu jeito simples que cativava a todos. Vontade de te rever amigo irmão, seus gestos, a risada em comum contando as histórias e os casos antigos, as músicas novas sem moda, sem tempo nenhum, que vontade de te rever Miro, dizer que estou com saudade de alguém que se foi para sempre.
A caminhada não foi fácil, quase tão difícil quanto à dor da separação, embora todos esperassem esse momento, não acreditávamos que ele chegasse tão depressa, porque apesar de todo peso da longa jornada o calor dos nossos passos nos uniu de tal maneira que fica difícil dizer adeus, um gesto breve para alguns e eterno para outros.
4
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Suzzana Alice Lima de Almeida, pessoa a quem escolhi
para me conduzir e me orientar, pela sua paciência e competência a me
dispensados nas noites de terça-feira. A admiração que tenho por você me
acompanhará, seja dentro deste espaço acadêmico ou fora dele, porque
admiração é algo que se constrói lentamente, mas que depois de alicerçado,
não se acaba.
À comunidade Rural de Riacho dos Tanques, local onde vivi meus primeiros
anos de infância, lugar que me inspirou a escrever este trabalho.
À Universidade do Estado da Bahia, pelo acolhimento e apoio.
À Maria, funcionária da Biblioteca da UNEB, pela atenção e pela paciência
quando solicitada.
À Elienai Vitorino, pelos estágios realizados em sua Escola Pequeno príncipe.
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“Sou filho das matascantor da mão grossatrabalho na roçadeveras o destino.
A minha choupanaé tapada de barro,só fumo cigarrode palha de milho.
Meu verso rasteirosingelo, sem graçanão entra na praçano rico saloon
Meu verso só entrano campo e na roça,na pobre palhoçada terra ao sertão.”
Patativa do Assaré
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RESUMO
Este trabalho autobiográfico fundamenta-se pela necessidade de discutir as aproximações e os distanciamentos que separam os alunos da zona rural na década de 1980 em relação aos dias atuais. Utilizo para isto, minha própria história de vida como criança que viveu e estudou em uma escola rural, puxando da memória lembranças prazerosas. A partir do primeiro capítulo tento descrever o motivo desta pesquisa, o meu interesse por esta área do conhecimento e a minha relação com a educação no campo. Busco em Arroyo (1999), Caldart (2002) e Alencar (2001) os sentidos de respeitar as especificidades e singularidades que permeiam a vida no mundo rural discutindo e encontrando sempre nesses autores bases para fortalecer minha crítica no sentido da atenção especial que deve ser dispensada a identidade dos povos do campo. Procuro descrever também o caminho trilhado com as experiências da vivência na comunidade rural tendo como suporte para essa busca a pesquisa qualitativa abraçando a vertente etnográfica, onde desenho o caminho trilhado na comunidade, na minha terna idade, em relatos emocionantes, lembrando de fatos passados em meio a lágrimas de alegria por ter uma memória tão fiel e a nostalgia que dominou todo esse percurso, agradecendo a herança de uma vida vivida no campo que me fez buscar uma melhor compreensão do meu eu e do meio em que vivo na construção de uma proposta que atenda as singularidades que permeiam os povos da zona rural.
Palavras-chave: Educação do campo; Discentes rurais; A importância de respeitar a identidade dos sujeitos do mundo campesino; Narrativa: trilhando o difícil caminho do contar a si mesmo a sua história de vida.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................10
CAPÍTULO I......................................................................................................12
1. PROBLEMATIZANDO A EDUCAÇÃO DO CAMPO..................................12
CAPÍTULO II.....................................................................................................25
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.................................................................25
2.1 Educação do campo............................................................................25
2.2 Discentes rurais...................................................................................30
2.3 A importância de respeitar a identidade dos sujeitos do mundo
campesino..................................................................................................33
2.4 Narrativa: trilhando o difícil caminho do contar a si mesmo a sua
história de vida...........................................................................................38
CAPÍTULO III....................................................................................................42
3. METODOLOGIA: O TRAJETO DA PESQUISA.........................................42
3.1. Tipo de pesquisa.................................................................................43
3.2 Lócus....................................................................................................44
3.3 Sujeitos................................................................................................45
3.4 Aplicação do instrumento de coleta de dados......................................45
CAPÍTULO IV....................................................................................................48
4. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS
.......................................................................................................................48
4.1 A infância vivida por uma criança na zona rural na década de 1980.. .49
4.2. Percursos de uma estudante da zona rural nos primeiros anos de
escolarização na década de 1980..............................................................58
4.3 Um passeio pelo tempo: a vida cotidiana escolar dos alunos da escola
de Riacho dos tanques atualmente e a relação com a década de 1980, do
século passado..........................................................................................62
4.3.1 Os alunos campesinos e a vida cotidiana atual - algumas
aproximações.............................................................................................63
4.3.1.1 Reencontro com o cotidiano da ‘’roça’’...................................63
4.3.2 Os alunos campesinos e a vida escolar atual: Alguns
distanciamentos.........................................................................................70
8
4.3.3 Desencontro com o cotidiano escolar da ‘’roça’’........................70
CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................75
REFERÊNCIAS.................................................................................................78
APÊNDICES
9
INTRODUÇÃO
A Educação no Campo é um assunto que merece destaque nas
discussões sobre educação, considerando que a mesma tem um papel
importantíssimo na vida das pessoas que vivem no mundo rural.
É notório o distanciamento das matrizes políticas, pedagógicas,
curriculares e culturas urbanizadas que distorcem cada vez mais a identidade
do homem campesino em toda sua singularidade e identidade, fazendo com
que estes sujeitos sintam vergonha de assumir sua própria identidade ou
sintam-se inferiores por serem chamados ‘’da roça’’, além de toda essa
problemática, a pequena quantidade de trabalhos na área são fatores que nos
inquietam tornando-se o fio condutor desta pesquisa.
O silenciamento desses elementos relevantes para o reconhecimento da
identidade de um povo acaba ficando a mercê de propostas vindas de fora e
quando são lançadas as políticas públicas de abrangência nacional, percebe-
se o quanto essa contextualização foi desconsiderada e o quanto as
particularidades desses territórios ficam menosprezadas. Assim, o currículo
acaba por selecionar e excluir esse povo do restante do Brasil.
Diante dessa questão em que evidenciamos a problemática nacional da
educação rural, é pertinente destacarmos as experiências vividas por sujeitos
ao longo de sua formação, que vivenciaram a realidade educacional do campo
com toda sua problemática. Sendo assim, esse trabalho apresenta também um
caráter autobiográfico, porque fala da história vivida por mim nos anos de
escolarização na zona rural.
Considerando essa premissa, a presente pesquisa delineou como
objetivos de pesquisa: Identificar por meio da narrativa (auto) biográfica a
trajetória de vida de uma criança campesina e a escola na década de 1980 e
10
comparar a realidade identificada na dinâmica da vida atual da escola e das
crianças campesinas.
A escolha do tema de pesquisa surgiu com o desejo de adentrar um
espaço onde vivi minha infância e os primeiros anos de escolarização com o
anseio de perceber que mudanças e retrocessos aconteceram neste espaço.
Atrelado a isso, a emoção de voltar ao lócus vinte e dois anos depois, foram
motivos que me fizeram realizar esse estudo.
No primeiro capítulo apresento o problema da pesquisa:
Problematizando a educação do campo, no qual abordo algumas questões
relevantes no contexto da educação no campo, mas delineando o processo de
ter sido discente rural enfatizando as mudanças ocorridas atualmente na vida
cotidiana e escolar dos discentes rurais matriculados na escola rural Riacho
dos Tanques em relação à década de 1980, levando em consideração as
relações tecidas nas experiências e no contexto escolar vivenciado na trajetória
de vida cotidiana e escolar.
No segundo capítulo discorro sobre o referencial teórico, fazendo uma
análise da educação no campo, discutindo questões fundamentais para todos
aqueles que atuam no campo educacional bem como para aqueles que têm
interesse na educação rural, defino os conceitos – chave que nortearam a
discussão e apresento os principais teóricos que deram sustentação na
construção dos significados atribuídos a cada palavra no desenvolver da
pesquisa: Vasconcelos (2000), Nóvoa (1992), Goodson (1992), Larrosa (2001)
(2005), Souza (2003) (2006), Reis (2003), Oliveira (1994), Candau (1997),
Lüdke (1997), Fonseca (1997), Jesus (2000), Munhoz 2003 e Goodson (1995).
No terceiro capítulo, trago reflexões metodológicas destacando os
fundamentos e procedimentos construídos ao longo da investigação. No quarto
capítulo apresento a análise de dados no paralelo com o referencial teórico
com base nos elementos coletados na realidade investigada e finalmente o as
consideraçõies, pontuando as descobertas como elementos de evidência de
todo percurso investigativo.
11
CAPÍTULO I
1. PROBLEMATIZANDO A EDUCAÇÃO DO CAMPO
A educação brasileira em áreas rurais teve um início descontínuo e
desorganizado, no final do 2º império. A sociedade brasileira só despertou para
a educação rural em conseqüência do forte movimento migratório interno dos
anos 1910/20, quando inúmeras pessoas do campo deixaram a zona rural em
busca da industrialização.
O forte movimento migratório dos anos 1910/20, fez com que a então
sociedade brasileira despertasse para a educação rural, em conseqüência
exatamente desse movimento. A razão que levou as pessoas do campo a
migrarem para os centros urbanos foi a busca pelo trabalho que se fazia
presente no meio urbano em conseqüência da industrialização.
Todo esse movimento migratório fez surgir o ‘’Ruralismo Pedagógico’’,
que pretendia segundo Maia (1982, p.25): ”... uma escola integrada às
condições ideais regionalistas, com objetivo maior de promover a fixação do
homem ao campo”.
Diante disso, percebemos claramente que o despertar para a educação
rural no Brasil pela sociedade, se deve ao fato de que a migração
campo/cidade incomodou a elite no poder daquele momento histórico, por
conta principalmente do inchaço das grandes metrópoles. O que nos leva a
perceber que o ‘’Ruralismo Pedagógico’’, Maia (1982), era promover a fixação
do homem ao campo. Nota-se com clareza que foi uma política de prevenção e
contenção e não de boas intenções em relação aos rurícolas. O Ruralismo no
ensino permanece até a década de 1930, e a escolaridade mantinha vínculos
tradicionais coloniais totalmente distantes das exigências econômicas daquele
momento. (LEITE, 2002).
12
Indício de transformações no modelo econômico agro exportador faz
com que a escolaridade de forma geral tomesse posições mais favoráveis à
educação do campo, levando em conta as tendências escolanovistas e
progressivas em educação lançadas pelos pioneiros da Educação Nova, e as
tendências das reivindicações urbanas.
Sabemos que o Brasil é um país de origem agrária, entretanto, a
educação rural não foi nem ao menos citada nos textos da Constituição de
1824/1891, o que deixa claro o descaso dos dirigentes e as matrizes culturais
centradas no trabalho escravo. (BRASIL, Resolução CNE/CED nº 1/2002: 7)
A II Conferência Nacional (Por uma Educação no Campo), Resolução
CNE/CEB nº 1/2002, evidencia que a política educacional brasileira durante
muitos anos ignorou a necessidade de um projeto específico direcionado ao
homem do campo. O sistema educacional que foi implantado no Brasil é
marcado por um forte modelo de exclusão. Quanto ao desenvolvimento do
campo, durante séculos serviu à classe dominante, sendo negada a grande
parte da população rural, isso se deveu ao fato da concepção de que para
desenvolver a atividade agrícola não seria necessário o letramento. Na
concepção das elites do Brasil agrário, os indígenas, as mulheres, os negros e
os trabalhadores rurais prescindiam do aprendizado da leitura e da escrita. Por
essa razão, por muito tempo, foram excluídos do processo educacional.
Em uma pesquisa sobre o espaço escolar, soube-se que no governo de
Mendes de Morais (que foi prefeito do Distrito Federal entre 1951 e 1977, à
época localizada no Rio de Janeiro), foram criadas escolas rurais no Distrito
Federal, numa época em que este se urbanizava e industrializava
aceleradamente. Segundo Vorraber (2003), isso teria ocorrido como
demonstração de apoio à política acordada com os Estados Unidos, depois da
Segunda Guerra Mundial, de devolver as pessoas ao campo, o que era
desejado por aquele país ‘aliado’. Buscava-se com isso, a volta ao estado
13
anterior, ou seja, que eles continuassem industrializados e que nós
retornássemos ao status de produtores agrícolas.
Diversas ações foram desenvolvidas naquele momento visando a ‘’volta
ao campo’’, e umas dessas iniciativas foram as famosas ‘’missões rurais’’. A
primeira e mais importante, a única que ‘’quase’’ deu certo, foi a missão de
Itaperuna, no norte do Estado do Rio de Janeiro. Criaram em pequenas
cidades do interior, todo tipo de atendimento que inexistia até então, como
cursos para professores em zona rural e algumas iniciativas para melhorias nas
escolas. Mas isso ocorreu não só no setor educacional, atingiu também o setor
da saúde. Foram criados postos hospitalares, trazidos médicos e enfermeiras,
incrementada a formação local de agentes de saúde e instituído um serviço
com assistentes sociais. Tudo isso para que o Brasil percebesse como era bom
viver no campo novamente e como era ruim ir para as cidades (havia uma
grande campanha pela imprensa mostrando as dificuldades e os perigos de se
viver nas grandes cidades) (VORRABER, 2003)
É interessante notar e ao mesmo tempo causa indignação, como a visão
elitista e governamental sobre o campo e seus habitantes ao longo do processo
histórico. O homem campesino, enquanto cidadão era de colocar-se no seu
verdadeiro lugar, sem que ele pudesse sair de lá para ir e vir, como se
vivessem presos e limitados, como se o fato de viverem no mundo rural fizesse
deles seres inferiores, ‘’ quase’’ sem identidade.
Historicamente, o sistema educacional brasileiro não teve diretrizes
políticas e pedagógicas específicas, que possibilitassem manutenção e
qualidade em todos os níveis. Segundo Furtado e Brandão (1999), são comuns
as cenas de escolas improvisadas embaixo de árvores, galpões, prédios de
igrejas, entre outros. Ainda hoje, encontram-se salas de aula que não possuem
um quadro de giz nem carteiras. Os jovens e adultos, à luz das lamparinas
(pois a tecnologia em forma de energia elétrica ainda não se faz totalmente
presente no meio rural), esforçam-se para acompanhar com bastante
dificuldade o que o professor escreve no quadro, porque, além disso, há
aqueles que não têm boa visão e necessitam de óculos.
14
A despeito de tímidas iniciativas no final do século XIX, é somente a
partir da década de 1930 e mais sistematicamente das décadas de 1950 e
1960 do século XX, que o problema da educação campesina no Brasil é
encarado mais seriamente o que significa que paradoxalmente a educação do
campo no Brasil torna-se objeto do interesse do Estado justamente num
momento em que todas as atenções e esperanças se voltam, para o urbano e
a ênfase recai sobre o desenvolvimento industrial.
Lembremo-nos, por exemplo, da meta do governo Juscelino Kubitschek
de desenvolver cinqüenta anos em cinco. As ideologias do progresso que
incluíam necessariamente o crescimento do urbano destroem a vocação
agrícola de todas as gerações independentemente de ser em países de
vocação agrícola ou não. Veiga (2000) nos auxilia nessa discussão quando diz
que o progresso e o desenvolvimento, princípios de evolução, exigiam o fim do
campo e do camponês, já que ambos eram sinônimos do passado e do atraso.
A educação apresenta sérios problemas de origem. Planejada a partir da
escola urbana, a escola rural parece tão alienada do seu meio quanto o são
também as escolas urbanas para as classes populares. Alienadas porque são
planejadas com base em realidades distintas e distantes, portanto, totalmente
desconexas com os sujeitos a que são destinados. Para Leite (1999),
percebemos a distância existente entre as expectativas do planejamento
governamental e as das populações rurais beneficiadas. A escola rural é
inadequada ao seu meio, tal como se apresenta. Vê-se, portanto, a partir
desses levantamentos, que é grande a distância entre o currículo da escola
rural e a vida da sua clientela, conseqüência evidente do desconhecimento das
populações pela burocracia que planeja (BRANDÃO, 1997; CALDART, 2001;
FURTADO, 1997).
Há algo interessante que as pesquisas vêm mostrando: o fato de as
propostas sempre destacarem que é preciso respeitar a realidade do aluno,
mas não há menção alguma à realidade da escola rural. O campo aparece cuja
15
proposta simples, jamais com sua própria identidade é como se fosse uma
realidade quase inexistente nessas propostas.
Sabemos que há uma grande discussão no meio acadêmico no sentido
de que o ensino deve ser contextualizado, que este seja particularizado,
levando em consideração a realidade dos sujeitos envolvidos no processo, mas
sabemos do distanciamento que há entre o discurso e a prática e buscamos
em Martins (2004), argumentos que fortalecem nossa discussão, quando
afirma que uma educação contextualizada é também uma operação de
descolonização de um currículo que impõe verdades absolutas. Uma solução
viável seria descolonizar o currículo e reconstruir visibilidades, onde permitisse
que os excluídos ganhassem voz no currículo oficial numa perspectiva de uma
educação contextualizada.
Ainda sobre essa questão, complementamos com Reis (2005) quando
pontua que a educação contextualizada não pode ser entendida com um
espaço do aprisionamento do saber, ou ainda na perspectiva de uma educação
localista, mas como aquela que se constrói no cruzamento cultura – escola –
sociedade. A Resolução nº 63 de 19/12/2006, (letra c), destaca esta questão
quando fala que não basta o acesso à escolarização, mas há a necessidade de
construir uma escola de qualidade, pública (estatal e não estatal), socialmente
contextualizada.
Entretanto, percebe-se que a educação rural no Brasil, por motivos
sócios- culturais, sempre foi relegada a planos inferiores e teve o elitismo como
retaguarda ideológica, acentuando assim, o processo educacional aqui
implantado pelos jesuítas e a concepção político-ideológico da oligarquia
agrária, conhecida na expressão popular: ’’gente da roça não carece de
estudos, isso é coisa de gente da cidade’’. As dimensões da problemática que
envolve a escola rural atualmente são bastante extensas, considerando que
historicamente a educação escolar sempre foi negada ao povo brasileiro e
especificamente ao homem do campo.
Diante disso, cabe a nós, enquanto educadores/educadoras e
cidadãos, refletirmos e questionarmos as diretrizes e políticas públicas voltadas
16
para a educação (as escassas que existem), procurando questionar o atual
sistema vigente com o objetivo de cobrar mais atenção à educação rural.
Vinculada ao sistema produtivo, a escolaridade campesina também serviu de
suporte para a estruturação de uma sociedade desigual e de preparo mínimo
de mão-de-obra que atendesse prerrogativas político-econômicas. Desse
modo:
...esta constatação permite então inferir que a negação da escola traz em si embutida a negação da cidadania, isto é, da participação social e política, enquanto os projetos especiais trazem a compulsoriedade de uma ação político-pedagógica que acomode, adestre essa mão-de-obra de acordo com as necessidades de divisão social do trabalho e dentro dos estreitos limites de sua utilidade econômica. (FONSECA, 1989, p.19).
Embora estejamos vivendo em um século onde a globalização e a
tecnologia são pré-requisitos indispensáveis para o crescimento e
desenvolvimento de uma nação, países como o Brasil, de origem
exclusivamente agrária, adotam um modelo governamental que continua
renegando e menosprezando a educação do campo. Questões simples como
recursos materiais e humanos fazem dessa modalidade de ensino uma
constante de problemas anteriormente citados.
Embasados em Veiga (et.al. 2002), notamos que quando se discute e
se avaliam os estudos na área de Educação Rural no Brasil hoje, um dos
principais problemas com os quais nos defrontamos é a definição do próprio
termo rural. Quando a educação do campo era um projeto ligado ao
desenvolvimento do país cuja vocação de país agrícola demandava políticas
específicas de educação rural, se propalava um tipo de projeto diferentemente
do que é hoje, pois a realidade é bastante distinta e o novo rural brasileiro
ganha pouca semelhança com a década de 1950, inclusive no sentido da
revalorização ocorrida com a crise das cidades.
A visão da Educação do Campo está em construção e tem sido um
dos grandes desafios dos debates político e teórico que estão em curso.
Entretanto, há questões que já foram congregadas ao ideário que estamos
querendo defender como aponta Molina (2004): “A educação do campo não é
compatível como o modelo de agricultura capitalista que combina hoje no Brasil
17
latifúndio e de agro negócio, exatamente porque eles representam à exclusão
da maioria e a morte dos camponeses” (p.76).
A educação do campo defende a superação do antagonismo rural e
urbano e da visão predominantemente de quê o moderno e mais avançado é
sempre o que é urbano, e que a tendência de progresso de determinada
localidade se mede a partir da redução da população rural daquele local. Existe
ainda uma outra forma de pensamento, com o qual nos aproximamos que
busca a construção de um olhar diferenciado para esta relação: cidade campo
vista dentro dos princípios de eqüidade social e heterogeneidade cultural que
cada um tem ricamente. Está ainda embutida nesta questão a mudança
paradigmática da falsa visão do significado da população do campo em nosso
país, que tem servido de justificativa para a ausência de políticas públicas
destinadas a ela.
A educação rural não se limita apenas ao espaço escolar, mas está
também presente nas diversas expressões da luta social e é justamente a
participação nesta luta que cria as condições de produção e apropriação de um
saber que permite uma compreensão transformadora da realidade, uma vez
que a escola é a comunidade e a comunidade é a escola.
As inúmeras investigações têm constatado que é importante averiguar
os condicionantes estruturais e conjunturais que produzem e reproduzem as
ações educativas, bem como os atores sociais com suas lutas, representações
e identidades. Levando isso para a educação rural, é importante investigar os
condicionantes e as representações que norteiam as ações educativas neste
meio, uma vez que tais sujeitos têm sua própria identidade que será afirmada
ou deformada pelos condicionantes educativos. A educação rural, da
perspectiva da população a que se destina, ou seja, os trabalhadores rurais,
deve ser caracterizada por uma constante preocupação cada vez maior em
discutir essa problemática.
Acreditamos que se quisermos uma verdadeira mudança no sistema
educacional no sentido de melhoria, de qualidade, especialmente a educação
18
rural, teremos de nortear nossas reflexões para ações como as que propõem
Arroyo (1987):
Se quisermos que a escola não murche ainda mais precisamos enxertá-la na árvore vigorosa e florescente dos movimentos sociais, pois esse caminho permite que o trabalhador passe da condição de receptor para a de produtor do conhecimento. Na condição de sujeitos que pensam a sua história, esses trabalhadores têm consciência de que escolas querem e dos conteúdos intelectuais e morais que ela deve produzir e transmitir. (p. 29)
Embasados em Damasceno (1998), acreditamos que a escola deveria
preparar os alunos para não aceitar essa situação que nosso olhar
normalizador denomina de ‘’normal’’, onde poucos têm muito e a grande
maioria, não tem nem o que comer. Sabemos que não é fácil, mas a escola
deveria preocupar-se com o trabalho das pessoas que dão duro todo dia;
pensamos que os professores e os trabalhadores juntos poderiam fazer uma
escola diferente.
Segundo Vorraber (2003), tais coisas só começam a acontecer quando
começamos a nos dedicar a estudar o cotidiano. É que tanto os professores
quanto os alunos criam realidade de trabalho dentro da escola, trazem coisas
que ainda não conseguimos enxergar, sentir e compreender.
Oliveira (2005) comunga dessa discussão quando fala que no contexto
da Educação Rural, essa atitude começa exatamente a partir do momento que
se procura trabalhar o contexto cotidiano no qual os sujeitos do processo vivem
suas peculiaridades, suas ações, procurando compreender e valorizar sua
identidade, pois a mais significante das mudanças é o modo como vemos a
realidade e de como dela partimos.
Dentro da relativa escassez de estudos que caracteriza a temática da
Educação campesina, há certa abundância de estudos que mostra a
precariedade das condições físicas e intelectuais da escola rural. Há uma
grande quantidade de estudos sobre a incompatibilidade entre o atual projeto
rural definido do ponto de vista das necessidades e valores da cidade e um
19
novo e futuro projeto que considere as necessidades e valores das populações
rurais.
Segundo Leite (2002), o enfoque especial que se dá à educação rural
converge para o contexto no qual ela se manifesta, considerando-se a
realidade campesina a partir de uma estrutura sócio-cultural e econômica
bastante distinta dos outros agrupamentos humanos. Nesta fala percebemos
claramente a questão da atenção e respeito que deve ser dispensada aos
rurícolas e suas peculiaridades. Quando ele fala que a práxis rural delineou
tipos comportamentais característicos que, em nível educacional de
transmissão e de aprimoramento de experiências, reclamam um tipo de
atendimento quase que exclusivo, é exatamente neste ponto das experiências
cotidianas da sua realidade de convivência do que lhe é peculiar; isso não
difere como aponta das exigências educacionais de outros grupos, o
diferencial, o que está variando é tão somente, o substrato psicossocial.
Tais questionamentos nos levam a refletir sobre nossa prática enquanto
educadores, parafraseando Alves (1993), há uma grande diferença entre ser
educador e ser professor, e neste caso da educação rural, o fato de ser
educador é fundamental e decisivo, para refletirmos e respondermos aos
questionamentos colocados, como inquietações que devem nortear nossa
prática docente. Reflexões como estas devem orientar o trabalho de todo
educador, especificamente àqueles que atuam junto a escolas e comunidades
campesinas. Isto significa pensar a educação (política e pedagogicamente)
desde os interesses políticos, sociais, culturais de um certo grupo social; ou se
trata de pensar a educação (que é um processo universalizado) desde uma
particularidade, isto é, dos sujeitos concretos que se movimentam dentro de
certas condições sociais de existência em um dado tempo histórico.
Atualmente, notam-se algumas mudanças dentro do espaço educacional
e das políticas públicas em relação à problemática do campo, escassas e
lentas, mas percebe-se alguma mudança nesse sentido. Furtado (2006)
destaca que o conceito do rural em oposição ao urbano no Brasil, teve até a
década de 70 sua máxima expressão, significando a diferença entre o atraso e
20
o moderno, ou seja, o fato de estar na territorialidade urbana, significava estar
em contato com a modernidade, com o que se tinha de mais avançado. Esse
avanço e modernidade estavam ligados aos produtos produzidos pela indústria,
graças às grandes descobertas das ciências e das tecnologias que
prosperavam e ainda pelos bens e serviços proporcionados pela cidade. Na
outra dimensão estava o lócus de atraso, relacionados à forma de vida das
pessoas que estavam na zona rural com suas técnicas de produção
rudimentares, sendo então considerados como a parte fora do comum, da
realidade e da totalidade definida pela representação social urbana.
A década de 90 surge trazendo o rural como um espaço destinado à
tranqüilidade, ao lazer, turismo, servindo de refúgio ou descanso causado pelo
transtorno agitado das cidades, sendo assim, o rural ganha um novo caráter, o
de puro. Um novo desafio, diante das pequenas mudanças que lentamente
mudam o olhar e atenção para com a educação do campo, está relacionada a
uma postura político-pedagógica, critica, dialógica, que postule uma formação
técnica e política, como nos fala Candau (2005), de sujeitos politicamente
conscientes, com uma visão humanizadora, que valorize o sujeito através de
sua identidade cultural e compreenda o trabalho como algo que dignifica o
homem enquanto sujeito histórico e não enquanto objeto ou coisa.
Essa questão da Educação do Campo pensado como processo que
contribui para a formação e emancipação humana está entre as
recomendações da Resolução nº 63 de 2006 sobre a Educação Rural quando
diz que o Programa Nacional de Educação Formal e não Formal da Agricultura
Familiar, entende a Educação do Campo como processo que contribui para a
formação e emancipação humana, envolvendo: ações formais (iniciativas de
escolarização desenvolvida pelo sistema escolar público nas esferas federal,
estadual, municipal e comunitária; ações não formais (iniciativas de formação
política, sindical, técnica, produtiva, religiosa, cultural desenvolvida por
instituições governamentais de extensão rural, assistência técnica, pesquisa e
por entidades não governamentais e movimentos sociais); e as ações
informais: as que se desenvolvem na família, na comunidade, nas
manifestações culturais, nos meios de comunição, no trabalho, muitas vezes
21
espontâneas, vindas não só de organizações, mas, sobretudo de pessoas, que
na vida cotidiana, promovem ações educativas.
Baseado nesse pensamento começou-se a discutir outra representação
de escola do campo, não uma educação para os sujeitos do campo e sim uma
educação com os sujeitos do campo. Destaca Molina (2004), que a educação
do campo como novo paradigma, está sendo arquitetada por diversos grupos
sociais e universidades e rompem com o paradigma rural cuja identificação é a
do produtivismo, ou seja, o campo como lugar da produção de mercadorias e
não como espaço de vida, o lugar da dialetização da cultura, do saber e da
construção de identidades.
É pertinente frisar a importância dessa pesquisa no contexto educacional
da contemporaneidade, tanto no aspecto acadêmico quanto no social e
profissional, visto que essa investigação traz à mostra a importância da ação
pedagógica no contexto da Educação Rural para contribuir com o resgate de
valores campesinos silenciados pela cultura urbana que invade o mundo rural e
lhes roubam a verdadeira identidade.
Então decidimos que estudaríamos as mudanças ocorridas atualmente
na vida cotidiana e escolar dos alunos matriculados na escola rural Riacho dos
Tanques, escola onde estudei, nos dias de hoje em comparação com a década
de 1980. Considerando tais circunstâncias, acredito ser de extrema relevância
desenvolver o estudo com base nos pressupostos que permeiam a formação
no processo de ser aluno da zona rural, partindo da perspectiva (auto)
biográfica. Por isso, fiz a opção de me debruçar sobre minha própria história de
vida de estudante campesina para narrar e analisar o caminho trilhado pelos
discentes do campo. Ainda são sujeitos nesse processo, 08 alunos da escola
citada anteriormente, sendo quatro meninas e quatro meninos, com idade entre
07 e 10 anos, e estudam quatro no turno matutino, sendo que todos estão no
2º ano e quatro no turno vespertino, sendo um no 4º e três no 5º ano.
22
Com base nesses pressupostos, trago agora a minha questão de
pesquisa, que é: Quais as mudanças ocorridas atualmente na vida cotidiana e
escolar dos discentes campesinos matriculados na escola rural Riacho dos
Tanques em relação à década de 1980?
Por ter sido aluna na zona rural, tive a oportunidade de conviver com a
realidade do campo, tanto cotidianamente quanto educacionalmente e pude
perceber que com o passar dos anos os olhares e a postura em relação à
educação no campo mudaram. É pertinente então, estudar se as condições de
vida educacionais que os discentes do campo, dentro da realidade em que
estudei permanecem iguais ou acompanharam as mudanças para a educação
rural. Sendo assim, essa realidade em que os discentes vivem/convivem
atualmente, desperta uma gama de questionamentos/inquietações que talvez
nem precisem ser respondidas, mas compartilhadas para melhor ser
entendidas, descortinando o íntimo discente, podendo abrir novos caminhos e
reflexões sobre o ser aluno na zona rural e como a história de vida contribui
para isso. Como afirma Souza (2003) em seu texto:
As narrativas autobiográficas podem ser construídas a partir dos seguintes eixos norteadores: a infância; processo de alfabetização; vivência escolar; primeiro contato com a escola: função da escola; lembranças dos seus professores/professoras; percepção/vivência do planejamento, desenvolvimentos das aulas/atividades didáticas; disciplina na escola; atividade extra classe; avaliação no cotidiano escolar. (p. 45)
Portanto, tomarei minha história de vida escolar na alfabetização no
campo como estudo dessa inquietação, analisando por intermédio da narrativa
(auto) biográfica, o processo de ter sido aluna da zona rural trazendo a
seguinte questão: Quais as mudanças ocorridas atualmente na vida cotidiana e
escolar dos discentes campesinos matriculados na escola rural Riacho dos
Tanques em relação à década de 1980?
Sendo assim, surgiu os seguintes objetivos de pesquisa: 1. Identificar
por meio da narrativa (auto) biográfica a trajetória de vida de uma criança
campesina e a escola na década de 1980. 2. Comparar a realidade identificada
com a dinâmica da vida atual da escola e das crianças campesinas.
23
CAPÍTULO II
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Trataremos aqui do referencial teórico da pesquisa, nosso problema e
objetivo nos direcionam aos seguintes conceitos-chave: Educação do campo,
Discentes rurais, A importância de respeitar a identidade dos sujeitos do mundo
campesino e Narrativa: trilhando o difícil caminho do contar a si mesmo a sua
história de vida.
2.1 Educação do campo
Toda educação está inserida em um contexto cultural próprio, contexto
este que moldará sua prática. A partir do momento que a sociedade primitiva
se dividiu em classes, a educação sistematizada está sob o poder das classes
dominantes, refletindo os interesses da mesma até nossos dias.
O Brasil é visto como um país emergente, num modelo totalmente
urbanizado, marcado por desigualdades e exclusões. Índios e camponeses são
ditos como “espécies em extinção”, diante de tal lógica, não há porque se
preocupar com essas pessoas, nem direcionar políticas públicas no sentido de
beneficiá-las, como nos relata Arroyo (1987) “é uma idéia dominante propor um
modelo único de educação adaptável aos especiais, aos diferentes: indígenas,
camponeses, meninos de rua, portadores de deficiência e outros”, o que nos
remete a memória aos documentos oficiais como LDB, os quais tratam de
“adaptar os conteúdos, calendários, material didático e metodologia à natureza
da vida do meio rural.
24
Partindo dessas inquietações, abriremos aqui uns parênteses para
explicitar o que diz a LDB (Lei de Diretrizes e Bases), a respeito da educação
rural:
Art. 28 – Na oferta de educação básica para a população rural, os
sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua
adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região,
especialmente:
I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais
necessidades e interesses dos alunos da zona rural;
II – organização escolar própria, incluindo adequação do calendário
escolar às fases do trabalho agrícola e às condições climáticas;
III – adequação à natureza do trabalho na zona rural.
Baseada na Constituição de 1988, que trata a educação rural no âmbito
de igualdade de direito e do respeito às diferenças, a LDB também abre espaço
para uma adequação da escola à vida da população rural quando se refere às
diferenças regionais, como dita o artigo 26:
Art. 26 – Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
Conforme o disposto na proposta curricular da LDB para a educação
rural, esta deve está em total conexão com a realidade local. A educação para
a população rural no Brasil de hoje, é tratada sob a denominação de Educação
do Campo, incorporando uma variada realidade histórica, que engloba as
práticas diversas da “vida campestre”, como os lugares onde vivem os povos,
agricultores tradicionais, extrativistas, caçadores, pesqueiros, quilombolas,
arrendatários, indígenas e fazendeiros.
Essa denominação expressa a luta dos povos do campo por políticas
públicas que garantam o direito e acesso à educação, educação esta que seja
no campo e do campo, como explicita. O povo tem direito de ser educado no
lugar onde vive, tem direito a uma educação pensada desse lugar, e com a sua
25
participação vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e
sociais. (CALDART, 2002).
A LDB defende que na oferta de educação básica para a população
rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua
adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, isso diz respeito a
tudo que se refere à educação básica para a população rural, além do
calendário e do currículo estaria incluso aí a questão do espaço físico que é
destinado para a escola rural, sendo estes, na maioria das vezes improvisada
nas casas das próprias famílias ou até mesmo em baixo de árvores.
Furtado e Brandão (1999) nos relatam ainda hoje, encontram-se salas
de aula que não possuem um quadro de giz nem carteiras. Os jovens e
adultos, à luz das lamparinas (pois a tecnologia em forma de energia elétrica
ainda não se faz totalmente presente no meio rural), esforçam-se para
acompanhar com bastante dificuldade o que o professor escreve no quadro.
A educação rural vem se instituindo como área própria do conhecimento
que tem o papel de fomentar reflexões que acumulem força e esforço no
sentido de contribuir na construção do imaginário coletivo sobre a relação
hierárquica que há entre campo e cidade... do campo como lugar de atraso.
Vincula a luta por uma educação específica que respeite os sujeitos do campo
e do conjunto das lutas sociais pela transformação das condições de vida no
meio rural, condição de desumanização.
A concepção da escola do campo é definida a partir dos sujeitos sociais
a quem se destina: agricultores, famílias, assalariados, assentados, ribeirinhos,
caiçaras, extrativistas, pescadores, indígenas, remanescentes de quilombo,
enfim, todos os povos do campo brasileiro. Essa concepção está expressa no
parecer das Diretrizes e tem sua identidade definida no Art. 2, e único das
Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do campo, ao
afirmar que:
...a identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes a sua realidade, ancorando-se na temporalidade e
26
saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.
Veiga (2002) nos coloca diante de tal questão ao falar que a concepção
da Educação Rural definida pelos seus sujeitos sociais deve estar vinculada a
uma cultura que se produz por meio de relações medidas pelo trabalho,
entendendo trabalho como produção material e cultural de existência humana.
Para isso, a escola precisa investir em uma interpretação da realidade que
possibilite a construção de conhecimentos potencializadores, de modelos de
agricultura, de novas matrizes tecnológicas, da produção econômica e de
relações de trabalho e da vida a partir de estratégias solidárias, que garantam a
melhoria da qualidade de vida dos que vivem e sobrevivem no e do campo.
A escola do meio rural não vive processos informativos e formativos
relacionados à realidade local, principal motor da comunidade e razão de ser
da vida no campo. O conhecimento toma como ponto de partida a cidade,
adotando um currículo unificado com um modelo urbanizado. Buscamos em
Martins (2004), argumentos que fortalecem nossa discussão, quando discorre
que uma educação contextualizada é também uma operação de
descolonização de um currículo que impõe verdades absolutas. Uma solução
viável seria descolonizar o currículo e reconstruir visibilidades, onde permitisse
que os excluídos ganhassem voz no currículo oficial numa perspectiva de uma
educação contextualizada.
Seus conteúdos estão voltados aos processos urbanos e industriais, a
cidade é apresentada como superior, como lugar “de quem quer subir na vida”,
porque no meio rural não há possibilidades e tal ideologia acabou sendo
difundida entre os rurícolas. (SAVIANI, 1999).
A Constituição de 1988 vem possibilitar uma virada neste quadro, ao
colocar a educação como direito público, abrangendo todos os níveis e
modalidades de ensino. Já a LDB, lei 9394/96, ao instituir o direito a igualdade
27
do acesso à educação e do respeito às diferenças, possibilitou mudanças
significativas, e a abertura de caminhos para uma educação para a população
rural que respeite as peculiaridades do campo, seus sujeitos e específica para
os mesmos. (Art. 26 e 28 da LDB).
Cabe-nos então, interrogar quais são as verdadeiras intenções dos
elaboradores de documentos oficiais. Percebemos, através das diversas
leituras que fizemos e de uma reflexão mais atenta, que esses documentos
oficiais são elaborados em “escritórios fechados”, sem a participação da
população. Evidenciamos também que a beleza das palavras que estão nesses
documentos é elaborada com o propósito de obter financiamentos, ficando
relegada a qualidade da educação.
Leite (2002) nos coloca diante de uma questão fundamental, quando nos
provoca, nos leva a pensar no fato de que o Brasil necessita apenas de um tipo
de escola: Quantos Brasis teremos por este imenso território? Com quantos
modelos de escolas devemos contar? Sabemos que não podemos nivelar norte
e sudeste, litoral e interior, e, muito menos rural e urbano. Nessa questão, está
explícita a atenção que é negada ou simplesmente pensada como algo inferior,
que pode ‘’ficar pra depois’’, em relação à Escola Rural.
Isso significa desenvolver uma nova concepção pedagógica, ajustando a
organização curricular, calendário, metodologia e recursos didáticos a realidade
das populações rurais comprometendo-se na construção de um projeto de
sustentabilidade para o campo, tendo como referência o respeito, a valorização
e o fortalecimento da identidade campesina, étnica e racial dos diferentes
povos do campo.
Diante de tal situação, percebemos que o papel de todos que estão
realmente interessados em uma mudança na qualidade do sistema educacional
e mais precisamente pela educação rural, é ser responsável por uma
socialização entre todos os sujeitos, e nós educadores precisamos estar
atentos.
28
Situações do tipo que envolve o desenvolvimento de aprendizagem do
discente rural podem está ligada a essa questão, se esse discente tem um
currículo totalmente alienado do seu meio ele irá recusar a aprendizagem, não
demonstrará interesse nem avançará, mas isso demonstra, ao contrário da
nossa visão distorcida, um sinal de grande inteligência e não de atraso, pois
parafraseando Rubem Alves, na maioria das vezes a recusa de alguém a
aprender é um sinal de inteligência, e no mundo rural, assim como as
pesquisas tem mostrado, adota-se um currículo distorcido da realidade
campesina, em contrapartida, os discentes rurais rejeitam uma realidade que
não lhe é peculiar, totalmente alienada do seu meio, e sendo assim, a
aprendizagem não acontece, demonstrando um sinal de inteligência desses
discentes que se tivessem sua realidade como ponto de partida avançariam na
aprendizagem certamente.
2.2 Discentes rurais
Pensar em criança da zona rural é pensar em infância e pensar em
infância é reportar ao que nos fala Gama (2001), sobre a mesma, ao afirmar
que a infância é a idade da meninice, período do crescimento que precede a
puberdade, e para infantil a definição de relativo à criança, ingênuo, inocente.
Essa relação está imbuída de significados próximos, uma vez que a infância
traz consigo essa pureza, essa inocência que caracteriza tão delicadamente a
criança, e o fato de residir no meio rural contribui para toda essa ingenuidade,
pois o ambiente puro, natural e rural contribui para isso. Sobre essa questão,
nos fala Lajolo (2001):
Enquanto objeto de estudo, a infância é sempre um outro em relação àquele que a nomeia. A palavra ‘‘infante’’, infância e os demais cognatos, em sua origem latina e nas línguas daí derivadas, recobrem um campo semântico estritamente ligado à idéia de ausência da fala, essa noção de infância como qualidade ou estudo do ‘’infant, isto é, ‘’d’quele que não fala’’, constrói-se a partir de pré-fixos e radicais lingüísticos que compõem a palavra: in prefixo que indica negação; fanti = particípio presente do verbo latino fari, que significa falar, dizer. (p. 229).
29
Sendo assim, as crianças que vivem na zona rural não deixam de ter as
mesmas aspirações, a mesma inocência, o mesmo desejo de brincar, que é o
que de fato caracteriza a infânciam, por ser uma criança do campo. Então,
estas devem ser tratadas sem distinção, como uma criança qualquer.
No campo, as crianças brincam como uma outra qualquer da sua idade,
e nesse brincar, elas encontram respostas para suas indagações e acabam
sanando algumas dificuldades de aprendizagem. Através da brincadeira
também acontece a aprendizagem de maneira prazerosa e saudável, isso
ocorre porque não há uma obrigação em aprender e ainda porque, nas suas
brincadeiras de crianças do meio rural estão presentes a realidade que vive no
dia-a-dia, com expressão de sua cultura.
Maluf (2003) vem nos auxiliar quando fala que: ‘’ quando brincamos,
conseguimos sem muitos esforços encontrar respostas a várias indagações,
podemos sanar dificuldades de aprendizagem, bem como interagirmos com
nossos semelhantes’’(p. 98).
Assim como toda criança, as crianças do campo necessitam de uma
atenção espacial para a sua formação e nessa tarefa o educador é peça
fundamental. Nessa arte, está uma atenção especial e um cuidado por parte do
docente rural no tocante a contar estórias, pois estas contribuirão para a
formação da personalidade das crianças rurais, como nos esclarece Bettelheim
(1980):
Ao ouvir um conto, as crianças traduzem em imagens a estória que ouve, por isso, é primordial que os adultos, ao contarem esses contos atentem para a narrativa, pois esta contribuirá significativamente para enriquecer as experiências dos pequenos na estória, e nos fala ainda que: Isso implica em uma afirmação da personalidade da criança através de uma experiência especifica compartilhada com outro ser humano que, embora adulto, pode apreciar integralmente os sentimentos e as reações da criança (p.59).
E nessa arte de contar estórias os adultos precisam ser sensíveis,
participando diretamente dela, envolvendo-se por inteiro, por que o fictício pode
30
ajudar a entender o real, como nos esclarece Cury (2003, p.32): ‘’As estórias
podem resgatar as histórias, a ficção pode resgatar a realidade’’.
Para os educadores que atuam junto a comunidades rurais é importante
valorizarem a identidade dos sujeitos que englobam o campo educativo rural, e
Alencar (2001), nos fornece subsídios que evidenciam esta valorização:
Sala pequenina perdida nos confins do Brasil, acelerando o passo do ‘’caminho da roça’’, repleto de ‘’sabenças’’. Existe um projeto político educativo nesta escola? As quantas andam? Estamos abertos ou fechados à vida? Tenho perguntado a estes meus alunos quais os seus sonhos? E os meus, permanecem sempre atualizados e concentrados nas peculiaridades deles? No meu ‘’escorredor de macarrão’’ da memória escolar, que cursos, aulas, colegas e professores ficaram para sempre? O que aprendi de fato com eles? (p.98).
Estes são questionamentos que nos colocam de ‘’cabeça para baixo’’,
que nos levam a refletir sobre o que fomos enquanto educandos e o que
estamos sendo enquanto educadores, especificamente, educadores de escolas
rurais. O que será que deixaremos como lembrança para nossos educandos,
nosso autoritarismo e superioridade? Nossa forma ‘’urbanizada’’ de pensar e
agir entre eles ou nossa forma de levá-los a pensar seu contexto com orgulho,
seus afazeres, valores, ideais e sua cultura como algo que lhes é peculiar e
que fazem parte de sua identidade? São respostas a perguntas feitas e
perguntas a respostas prontas como estas que devem nortear nosso trabalho
enquanto educadores pensantes da educação rural.
Percebemos nas palavras de Molina (2004) que a escola, enquanto
direito, precisa estar onde os sujeitos estão. Nela sempre há algum tipo de
socialização, porque sempre há relações sociais. Mas nem sempre isto integra
o projeto pedagógico da escola e a intencionalidade dos educadores, sobre
essa questão, buscamos ainda em Alencar (2001) subsídios que fortalecem
nossa discussão quando este afirma que:
... não se pode ensinar alguma coisa a alguém, pode-se apenas auxiliar a descobrir por si mesmo.’’ Trata-se de levar o educando a percorrer um caminho que ele já conhece. Caminho que, para a
31
grandeza do ofício pedagógico, é sempre novo, pois vivido e percebido de forma singular por cada aprendiz. (p.111).
Identificamos nas palavras de Alencar, a importância que é dada à
singularidade, peculiaridade e saber que cada um traz em si embutido do seu
meio cultural, que constitui sua identidade, sendo este o ponto de partida para
qualquer projeto educativo de sucesso. E no caso especifico das crianças
ruralistas essa questão deve ser encarada com delicadeza, uma vez que tais
crianças passam assim como todas, pela delicada fase da vida humana que é
a infância e é arriscado sufocar sua individualidade nessa fase, pois é a mesma
que segundo Vygotsky (1989) alicerça a identidade para a construção de sua
personalidade.
A escola socializa a partir das práticas que desenvolve; por meio do tipo
de organização do trabalho pedagógico que seus sujeitos vivenciam e das
formas de participação que constituem seu cotidiano. São as ações que
revelam as referências culturais das pessoas, dos educandos.
2.3 A importância de respeitar a identidade dos sujeitos do mundo campesino
A construção da identidade está intimamente ligada às experiências e
vivências no contexto social, (família, escola, comunidade). Tomamos como
base, as reflexões de Nóvoa (2005), que define o seguinte:
A identidade não é um produto adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente. (...) (p. 35).
A Educação do Campo deve levar em conta que os sujeitos ali inseridos
possuem histórias, têm nomes e rostos, sonham, participam das lutas sociais,
raças, gêneros, lembranças e etnias diferenciadas. Cada sujeito sozinho e em
coletividade formam uma relação de pertença a terra e as formas de
organização solidária. Entretanto, os currículos precisam partir das formas
32
variantes de construção e reconstrução do espaço físico e peculiar da região,
dos sujeitos e do meio ambiente, como nos aponta Faria (1986) dizendo que se
deve congregar não somente ao currículo, mas ao dia-a-dia da escola, a
cultura da justiça social e da paz, tarefa vital para um projeto político de
Educação do campo que se pretende emancipatório.
Esse processo que engloba conhecimentos, atitudes valores e
comportamentos edificados no processo educativo devem refletir-se também
na grandeza institucional de forma permanente e sistemática e deve abarcar
toda vida escolar e, portanto, também o processo avaliativo. Este, por sua vez,
precisa atender os saberes acumulados pelas experiências de vida dos
educandos do campo e constituir-se como ferramenta de observação da
necessidade a partir dos quais estes saberes precisam ser estendidos. Não
apenas os saberes, mas a própria dinâmica da realidade onde está arraigado
este processo, do contrário torna-se nulificar o princípio categórico da escola
conectada à realidade dos sujeitos.
Para Brandão (1980) não há uma única forma de educação e ela pode
acontecer em vários espaços:
Ninguém escapa da educação. Em casa, na rua,na igreja, ou na escola, de um modo ou de outro, todos nos envolvemos pedaços da vida com ela: para apreender, para ensinar, para aprender-e-ensinar, para saber, para fazer, para ser ou para conviver, todos os dias misturamos a vida com a educação (p.85).
Toda educação está inserida em um contexto cultural próprio, contexto
este que moldará sua prática. Encontramos em Martins (2001), outra referência
que está totalmente conectada com o que estamos querendo defender em
relação ao conceito Educação do Campo, quando ele nos diz que todas as
pessoas possuem conhecimentos, e podem construir.
Sendo assim, a escola precisa levar em conta os conhecimentos que os
pais e a comunidade possuem e resgatá-los dentro da sala de aula num
diálogo constante com os saberes produzidos nas diferentes áreas do
33
conhecimento. Tais conhecimentos precisam garantir elementos que
colaborem para uma melhor qualidade de vida. Os vários saberes não têm fim
em si mesmo, eles são instrumentos para intercessão e mudança de atitudes
dos vários segmentos neste processo de renovação.
Os sujeitos inseridos na comunidade campesina possuem sua própria
cultura, suas ‘’sabenças’’, que precisam ser levadas em consideração, pois
essas pessoas são detentoras de sabedoria popular rara, como nos é dito no
trecho do livro Cultura Popular e Educação, (2008, p.35), ‘’uma pessoa
‘’analfabeta’’ é uma pessoa ‘’letrada’’ nos muitos saberes e sabedorias de sua
vida e sua cultura. Sem saber ler as palavras que os eruditos escrevem, ela
pode ser senhor e ou senhora de sabedoria popular rara e preciosa’’.
A escola do campo é uma compreensão que está atrelada à realidade
dos sujeitos, realidade esta que não se limita ao espaço geográfico, mas que
se aludi, principalmente, aos subsídios socioculturais que delineiam os modos
de vida dos sujeitos. Para que essas especificidades, que singularizam cada
lugar possam ser respeitadas e validadas, é necessário afirmar a aplicação do
artigo 12 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), relativa às
pospostas políticas pedagógicas dos municípios e aos projetos pedagógicos
das escolas, os quais deverão ser arquitetados mediante um processo coletivo
e de vasta averiguação da realidade, pois percebemos que tais projetos são
elaborados de maneira isolada, sem a participação das partes interessadas e
com um conjunto que vai confrontar com a realidade dos sujeitos aos quais são
impostos uma vez construídos sem coletividade torna-se algo imposto.
Um dos objetivos políticos da Educação do Campo deve ser o de
defender a mobilização e coordenação dos camponeses em movimentos
sociais que fortaleçam e aproximem sua presença coletiva na sociedade e que
seja seu espaço principal de educação para a participação e para as lutas
sociais necessárias. Molina (2005) defende que a educação rural deve ser
invertida na lógica sobre a qual vem sendo pensada, pensamento este voltado
para uma ação pedagógica no sentido de dinamizar ou ‘’modernizar’’ a
sociedade rural. O que temos que pensar é em ações pedagógicas
34
harmonizadas com a dinâmica social do campo, acelerada pela presença dos
movimentos sociais. Isto provoca em todo um outro tipo de reflexão pedagógica
e metodológica a ser feita em cada um dos ambientes propositais de educação,
incluindo as escolas.
Pierro (2006) percebe a Educação Rural como um campo pedagógico
fronteiriço, que bem poderia ser aproveitado como terreno fértil para a novidade
prática e teórica. Quando se adotam percepções mais restritivas sobre o
acontecimento educativo, entretanto, o lugar da educação rural pode ser
apreendido como marginal ou secundário, sem maior importância do ponto de
vista da formulação política e da concentração pedagógica.
A Educação do campo não precisa e nem deve ser um projeto de
educação apenas dos campestres nem apenas de quem participa das lutas
sociais, mas este acoplar lhe confere um traço de identidade e concepção
extraordinário e que não pode ser perdido. Ainda buscando subsídios em
autores, encontramos em Molina (2004), um importante aspecto a ser
considerado quando ele nos leva a perceber que a Educação Campesina se
identifica pelos seus sujeitos:
É preciso compreender que, por trás de uma indicação geográfica e de dados estatísticos isolados, está uma parte do povo brasileiro que vive neste lugar e desde as relações sociais especificas que compõem a vida no e do campo, em diferentes identidades e em sua identidade comum; estão pessoas de diferentes idades, famílias, comunidades, organizações, movimentos sociais. A perspectiva da educação rural é exatamente a de educar as pessoas que trabalham no campo, para que se encontrem se organizem e assumam a condição de sujeitos da direção de seu destino. (p.182).
Ainda em Molina (2004), percebemos que estamos tratando de uma
educação dos e não para os sujeitos do campo. Feita por meio de políticas
públicas, mas que seja construída com os próprios sujeitos dos seus direitos. A
afirmação dessa descrição que vem ilustrando nossa concepção é
especialmente importante se considerarmos, que, na história do Brasil, toda
vez que houve uma sinalização de política educacional ou projeto pedagógico
específico isto foi feito para o meio rural e muito poucas vezes com os, ou
35
ainda menos, pelos sujeitos do campo. Isto nos leva a perceber que os
governos tentam sujeitá-los a um tipo de educação domesticadora.
A Educação do Campo, além de se inquietar com o cultivo da identidade
cultural camponesa, precisa reconquistar os meios da educação dos grandes
valores humanos e sociais: emancipação, justiça, igualdade, liberdade, respeito
à diversidade, bem como instalar nas novas gerações o valor da utopia e do
engajamento pessoal a causas coletivas, humanas.
O trabalho e a cultura são produções e expressões necessariamente
coletivas e não individuais. Raiz cultural, que inclui o vínculo com determinados
tipos de processos produtivos, significa pertença a um grupo, identificação
coletiva. As relações interpessoais (educador - educando) são intrínsecas à
concretização do ato educativo, mas se trata de pensá-las não como relação
individuo-individuo para formar indivíduos, mas sim como ralações entre
pessoas culturalmente arraigadas, para formar pessoas que se compõem como
sujeitos humanos e sociais.
Veiga (2002) diz que um aprendizado que seja fundamentalmente
humano procura apreciar no espelho o que somos e querermos ser; assumir
identidades pessoais e sociais, ter altivez delas, e enfrentar o desafio do
movimento e de sua constante construção e reconstrução. Educar é ajudar a
construir e fortalecer identidades; esboçar rostos, formar sujeitos. Isso tem a
ver com valores, modo de vida, memória, cultura.
Afinal, estamos falando de como a escola pode auxiliar os educandos a
perderem o embaraço, de ‘ser da roça’; a aprender a ser ‘camponês’; a
aprender a apreciar a história dos seus antepassados, tendo uma visão crítica
sobre ela; a aprender com o passado para saber arremessar o futuro.
Por fim, ainda com Veiga (2002), concluímos que o contexto está
inteiramente fundado à cultura da terra e à identidade terrena. A educação no
contexto permitir a recriação da identidade com o campo que se modifica em
36
matrizes culturais que alimentam a força e a esperança de vida. Essas matrizes
se compartilham pela história no existir dentro do conjunto.
2.4 Narrativa: trilhando o difícil caminho do contar a si mesmo a sua história de vida.
As narrativas estão presentes em vários campos da pesquisa em
educação. É concebida como um forte instrumento de investigação da
subjetividade dos sujeitos pesquisados, permitindo um maior aprofundamento
do pensar/agir/sentir a sua história de vida, dando lugar ao pesquisador imergir
com mais propriedade nos sentidos e significações que o narrador explicita
através de suas reminiscências de experiência. Souza (2006) vem afirmar que:
A escrita da narrativa, como uma atividade metarreflexivo, mobiliza no sujeito uma tomada de consciência, por emergir do conhecimento de si e das dimensões intuitivas, pessoais, sociais, e políticas impostas pelo mergulho interior, remetendo-o a constantes desafios em relação às suas experiências e às posições tomadas. Diversos questionamentos surgem na tensão dialética entre o pensamento, a memória e a escrita, os quais estão relacionados à arte de evocar, ao sentido estabelecido e à investigação sobre si mesmo, construídos pelo sujeito, para ampliar o seu processo de conhecimento e de formação a partir das experiências. (p. 101)
Ainda nessa reflexão, Jesus (2000) afirma que:
Fico pensando em minha construção identitária, no processo vivido e entendo que trago em mim um pouco de cada história ouvida até então, no entanto sendo parte, sou uma, mesmo que contendo a multiplicidade, trago singularidades em minha história que a torna única. Seria possível estabelecer ou privilegiar um único espaço de construção? (p. 33).
É partindo dessa reflexão de individualidade/coletivo de sentimentos,
sensações e subjetividades, que adentro na discussão da imagem discente e
de seu sentimento identitário dentro do contexto educacional presente na
sociedade contemporânea, destacando as influências e as negações à pessoa
do discente rural.
37
A narrativa (auto) biográfica possibilita analisar as experiências
vivenciadas pelo sujeito e contadas por ele mesmo a si mesmo, as lembranças
e significados da sua trajetória histórica e do sentimento de identidade que
nasce com sua história de vida. Nessa busca, me descobri enquanto discente
de escola rural, em vários momentos atribuindo significados às reminiscências
da minha trajetória escolar, um reencontro comigo mesma, refletindo
intensamente sobre as experiências ocorridas na vida cotidiana campesina e
escolar ao mesmo tempo, histórias que trazem um leque de emoções
fortemente presentes em minha identidade.
A narrativa surge com a perspectiva da pesquisa com a história de vida,
mais especificamente com a história oral, com o intuito de ter maior domínio na
investigação da subjetividade humana, permitindo uma explanação mais
profunda dos sentidos e significados da área a ser pesquisada. Como ressalta
Pérez (2003, p. 100), a narrativa nos permite conhecer e analisar (...) “histórias
que não nos falam de fatos, mas de acontecimentos, que não se constituem
em documentos, mas em signos, que não nos apresentam argumentos, mas
sentidos”.
Através da narrativa, os sujeitos conseguem expor seus anseios,
trajetória e lembranças, como define Azevedo (2003, p. 128): “As narrativas
parecem ser a maneira mais adequada de apreensão do cotidiano (...) narrar o
cotidiano escolar significa deixar emergirem as múltiplas redes que o tecem
(...)”.
O contexto tecido por meio da narrativa a partir da dimensão
autobiográfica permite ao sujeito que investiga e é investigado uma gama de
informação sobre si mesmo, permeado de reflexões sobre as experiências
vividas no dia-a-dia. Sendo assim, ao chamar as marcas do vivido, (re)
constrói-se uma trajetória repleta de significados. Como discute Souza (2006):
A arte de evocar, narrar e de atribuir sentido às experiências como uma estranheza de si permite ao sujeito interpretar suas recordações em duas dimensões. Primeiro, como uma etapa vinculada à formação a partir da singularidade de cada história de vida e, segundo, como um processo de conhecimento sobre si que a
38
narrativa favorece. O processo de formação e de conhecimento possibilita ao sujeito questionar-se sobre os saberes de si a partir do saber-ser – mergulho interior e o conhecimento de si – e o saber-fazer-pensar sobre o que a vida lhe ensinou. (p. 62)
Quando se recompõe o trajeto trilhado nos espaços vivenciados por
intermédio da escrita das reminiscências, pode-se compreender o contexto e
os sentidos desse caminho, constituindo-se em fonte de estudo e compreensão
de quem se é ou de quem nos tornamos, levando em consideração as
especialidades de todo o processo acontecido. Na concepção de Fonseca
(1997) a narrativa permite dialogar com os lugares vividos, em especial, o
espaço escolar quando afirma que:
Nas narrativas, há diferentes avaliações de como cada um se apropriou dos saberes formativos em suas vidas escolares. Com os olhos no presente, volta-se para o passado, revelando características dos cursos, das escolas, dos professores. Das principais leituras e influências, do cotidiano escolar, detalhes que, muitas vezes, escapa dos historiadores da educação (...) (p.201).
O contexto das narrativas autobiográficas é perpassado por
singularidade e sentimento identitário. São muitas as expressões encontradas
na arte de buscar por quem se é. Essa perspectiva de pesquisa é um processo
profundo, é uma espécie de desmistificação das facetas que constituem o
percurso daquele que narra sua história observa e descreve. A pessoa
investiga e é ao mesmo tempo investigada. O diagnóstico baseia-se na
autonomia e identidade de quem conta a sua história. Nessa perspectiva,
Ferraço (2003) caracteriza a narrativa como:
(...) trabalhar com narrativas se coloca para nós como uma possibilidade de fazer valer as dimensões de autoria, autonomia, legitimidade, beleza e pluralidade de estéticas dos discursos dos sujeitos cotidianos. Trabalhar com histórias narradas se mostra como uma tentativa de dar visibilidade a esses sujeitos, afirmando-os como autores/autoras, também protagonistas dos nossos estudos. (p. 171).
Larrosa (2005, p. 52) discute essa idéia em seu texto quando diz:
Ao relato do processo temporal pelo qual um indivíduo singular alcança sua própria forma, constitui sua própria identidade, configura sua particular humanidade ou, definitivamente, converte-se no que
39
é.” Pensando nesse contexto de interação, de tecer caminhos adentro em mais detalhes sobre o percurso realizado.
Sendo assim, os trabalhos realizados na perspectiva da “narrativa
(auto) biográfica admite uma aproximação muito grande entre o objeto
pesquisado e o pesquisador, possibilitando uma análise mais profunda do
pensar/agir e sentir. Por intermédio da narrativa, da escrita total das
lembranças da trajetória pessoal é que permite a capacidade de tornar-se um
processo mais reflexivo e consistente de interpretação da subjetividade
humana, que convém muito na perspectiva de pesquisa em educação.
40
CAPÍTULO III
3. METODOLOGIA: O TRAJETO DA PESQUISA
Metodologia no parecer achado em Houaiss (2004, p. 494), “é um
conjunto de métodos, princípios e regras empregados por uma atividade ou
disciplina”. Entendemos a metodologia como a possibilidade de trilhar pelas
veredas do conhecimento, guiado por um objeto único de pesquisa ou
investigação sob inquietações que excitam a saída em rumo às respostas, que
conduz à fonte de desmistificação da realidade vivenciada por todos, sujeitos
da vida cotidiana.
Todo ato de pesquisa deve ser acompanhado de paciência,
sensibilidade e senso de discernimento. Entendemos pesquisa, conforme o que
nos fala Ludke (1986), como um árduo trabalho de investigação sobre
determinada realidade, com claros objetivos de analisar os sujeitos e os
elementos como integrantes de um bom pesquisador, que para alcançar seus
objetivos desenvolve estratégias e métodos, buscando denunciar e transformar
a realidade.
Para concretização da presente pesquisa, foi realizado um campo de
estudo a partir a perspectiva qualitativa, por acreditarmos ser o mais adequado
para o caráter do presente trabalho, e ao mesmo tempo propiciar a liberdade
de transcorrer os espaços da investigação com mais segurança, uma vez que
permite uma relação mais aproximada do aspecto que pretendemos desvendar
no objeto de estudo, em busca da compreensão da subjetividade presente no
ser aluno do campo. Buscamos fortalecer nosso discurso em André e Dalmazo
(1995, p. 17) “(...) a configuração da perspectiva qualitativa da pesquisa (...) o
foco da investigação deve se centrar na compreensão dos significados
atribuídos pelos sujeitos às suas ações.”.
41
Entendemos metodologia como o procedimento pelo qual se dá o
alcance da pesquisa, como também o meio adequado e coesivo das ações
propostas. A pesquisa apresentada na vertente qualitativa deve distingui-se
pela aproximação do pesquisador com o objeto pesquisado, dando
oportunidade máxima para enlaçar os significados e os valores conceituais que
representa para o sujeito em estudo, sem esquecer de primar pela idéia da
representatividade que o contexto em que está inserido tem para a
compreensão de si mesmo. “(...) é a preocupação com o significado, com a
maneira própria com que às pessoas vêem a si mesmas, as suas experiências
e o mundo que as cerca. (...)” (id ibid).
3.1. Tipo de pesquisa
O tipo de pesquisa que foi optado para a realização desse trabalho
abraçou a vertente etnográfica, uma vez que a perspectiva etnográfica em
educação possibilita a descrição dos fenômenos educacionais. No caso
específico desse estudo, propusemos descrever a trajetória do ser aluno de
escola rural a partir da narrativa da minha própria história.
Nessa perspectiva, o campo etnográfico possibilita subsídios e recursos
para adotar uma postura investigativa com base na descrição, já que a mesma
permite a aproximação com o objeto de estudo, sendo a mais conveniente no
estudo com História de Vida. Para tal, optamos por realizarmos o estudo
recorrendo a Narrativa (auto) biográfica para descrever a trajetória, o percurso,
as experiências de vida dos sujeitos campesinos envolvidos no processo,
considerando esses elementos como significantes no trajeto de minha historia
de aluna da zona rural, o qual só foi possível seguindo a proposta da descrição
minuciosa no processo, que segundo Geertz (1978):
(...) se entrelaçam no corpo da etnografia de descrição minuciosa na esperança de tornar cientificamente eloqüente as simples ocorrências. O objetivo é tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados; apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura na construção da vida coletiva empenhando-as exatamente em especificações complexas. (p. 38)
42
Com base nesse pressuposto, busquei identificar elementos presentes
na minha trajetória de menina da zona rural, através da descrição da minha
própria história, focalizei como base para efetivação do referido trabalho, a
História de Vida. Utilizamos como instrumento de coleta de dados a Narrativa
(auto) biográfica, para assim compreender a dimensão da ótica do discente
rural na década de 1980 aos dias de hoje, com as mudanças ocorridas no
passar dos anos, como destaca Munhoz (2003):
O que foi lembrado, como foi narrado, em que circunstancias foi evocado o fato: tudo isso integra a narrativa, que sempre nasce na memória e se projeta na imaginação, que, por sua vez, depois de articular estratégias narrativas, se materializam na representação verbal que pode ser transformada em fonte escrita. (p. 61)
Procuramos apoio na vertente de pesquisa elaborada por Pérez (2003)
para justificar o caminho trilhado com a escolha da narrativa (auto) biográfica
em educação: “Escrever sua história é um estado inédito, que possibilita
colocar-se como sujeito de sua própria história: lembrar o vivido é evocar a
memória das marcas, reatualizando-as como reminiscências e corporificando-
as através da linguagem. (p. 102)
3.2 Lócus
Como estamos tratando de narrativa (auto) biográfica, e essa narrativa
transcorre na escola rural onde estudei no decorrer da minha trajetória de
estudante do campo, delimitamos como campo específico a escola rural de
Riacho dos Tanques, localizada na zona rural no município de Mairi-Ba, há 09
km da sede. O foco se desenha na referida escola, que é composta de apenas
uma sala de aula, 02 banheiros, um masculino e outro feminino, uma cantina e
uma pequena área. A escola funciona nos turnos matutino e vespertino, com
um total de vinte e um alunos, sendo dez meninas e onze meninos, com nove
no turno matutino e doze no turno vespertino, funcionado das 07h00min ás
11h30min horas e das 13h00min às 17h00min horas. O corpo docente é
formado por duas professoras, uma com formação em magistério e outra
formada em normal superior e duas merendeiras que também exercem a
43
função de faxineira. Tem uma coordenadora, que atua junto a um grupo de
escolas rurais, não se limitando apenas a uma escola. O lócus se materializa
nas relações produzidas, é um campo empírico simbólico.
3.3 Sujeitos
Quando me reportei ao caminho de formação em Pedagogia, optei por
falar sobre o processo de ser aluno da zona rural. Então decidi em consenso
com minha orientadora, voltar o olhar para me enquanto discente do campo,
visto que vivenciei isso no meu cotidiano na época em que fui aluna da zona
rural. Então decidimos que estudaríamos quais as mudanças ocorridas
atualmente na vida cotidiana e escolar dos alunos matriculados na escola rural
Riacho dos Tanques, escola onde estudei, nos dias de hoje em comparação
com a década de 1980.
Sendo assim, me declaro como sujeito desse estudo, tendo como objeto
analisar as mudanças ocorridas na vida escolar dos alunos da escola na qual
estudei, assumindo a condição de pessoa que investiga e que é investigado,
infere e busca respostas por mediação do caminho científico, divisando o
centro do problema que permeia a investigação rigorosa exigida no entorno
acadêmico. Como afirma Souza (2006, p. 4) “(...) o sujeito toma consciência de
si e de suas aprendizagens e experiências quando vive, simultaneamente, os
papéis de ator e investigador da sua própria história.”
Ainda são sujeitos nesse processo, 08 alunos da escola citada
anteriormente, sendo quatro meninas e quatro meninos, com idade entre 07 e
10 anos e estudam quatro no turno matutino, sendo que todos estão no 2º ano
e quatro no turno vespertino, sendo um no 4º e três no 5º ano.
3.4 Aplicação do instrumento de coleta de dados
Para o desenvolvimento do presente trabalho, que visa o desmistificar
as mudanças ocorridas na vida escolar dos discentes da escola rural Riacho
44
dos Tanques, considerando minha própria trajetória de estudante rural a partir
da narrativa de minha história de vida, e por se tratar de um trabalho pautado
na construção (auto) biográfica, fomos impelidos a utilizar a narrativa como um
dos instrumentos e subsídios de extrema relevância na obtenção ou apreciação
do objeto em estudo mencionado anteriormente. Para Souza (2006, p. 47): “A
escrita da narrativa remete o sujeito para uma dimensão de auto-escuta de si
mesmo, como se estivesse contando para si próprio suas experiências e as
aprendizagens que construiu ao longo da vida, através do conhecimento de si”.
A alternativa por empregar a narrativa se deu por conta de ser um
instrumento que permite a construção de uma descrição meticulosa do objeto a
ser analisado, e ao mesmo tempo, por está imbuída de pequenos detalhes de
suma importância para desenrolar um estudo profundo da subjetividade do
sujeito, e de seu contexto no cotidiano.
Também optamos por nortear este trabalho para a técnica da entrevista
semi-estruturada que representa um dos instrumentos básicos para a coleta de
dados dentro da perspectiva de pesquisa que estamos desenvolvendo. De
acordo com Triviños (2001, p.146): “a entrevista semi-estruturada, em geral,
parte de alguns questionamentos básicos amparados na teoria e, em seguida
oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão
surgindo à medida que se recebem as respostas do informante”.
A entrevista semi-estruturada possibilitou que as informações fluíssem
mais naturalmente, uma vez que o entrevistado não se via cercado por uma
série de questões. Assim, norteamos nossas questões para o objeto que
estávamos estudando, sem, contudo, reter a liberdade e espontaneidade dos
sujeitos. Optamos por esta técnica pela oportunidade que ela nos proporciona
de ficarmos frente a frente com e o entrevistado, observando o que ele diz e
como diz seus gestos, expressões faciais, alteração da voz, todos esses
elementos constituem uma riqueza de detalhes. Sobre essa questão, Minayo
(1994) diz que: “a entrevista não significa uma conversa despretensiosa e
neutra, uma vez que se insere como meio de coleta dos fatos relatados pelos
autores, enquanto sujeito/objeto da pesquisa que vivenciam uma determinada
45
realidade que esta focaliza’’. (p. 57). Esse procedimento foi favorável, uma vez
que proporcionou uma maior confiança junto ao pesquisado.
46
CAPÍTULO IV
4. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS RESULTADOS
O presente capítulo traz a análise e interpretação dos sentidos e
significados atribuídos no texto da narrativa e da entrevista não estruturada
sendo relevante para o processo de desmistificação do objeto em questão,
identificar por meio da narrativa (auto) biográfica a trajetória de vida de uma
criança campesina e a escola na década de 1980 e comparar a realidade
identificada com a dinâmica da vida atual da escola e das crianças
campesinas. A leitura minuciosa e o confronto da narrativa e da entrevista com
a discussão teórica apresentada baseiam-se na análise conduzida por todo o
rigor científico exigido na elaboração e aplicação de trabalhos desse tipo.
As palavras escritas no contexto da narrativa e da entrevista
apresentam-se permeadas por singularidades, representações simbólicas e
uma gama ampla de elementos e influências presentes na vivência do
cotidiano e inerente ao processo de eu ter sido discente rural e assim
desvendando os sentimentos de pertencimento ou de compreensão de ser
aluno do campo.
Busquei usar a narrativa para colher com riquezas os detalhes, as
reminiscências que permeiam o trabalho em questão, sendo possível (re)
construir e refletir sobre o percurso realizado. Souza (2006) em seu estudo
sobre as narrativas (auto) biográficas, afirma que:
A arte de lembrar remete o sujeito a observar-se numa dimensão genealógica, como um processo de recuperação do eu, e a memória narrativa marca um olhar sobre si em diferentes tempos espaços, os quais articulam-se com as lembranças e as possibilidades de narrar as experiências. (p. 102)
Para observar os detalhes do processo de ter sido aluna no campo a
partir da minha própria história de vida, fizemos ligações de passagens das
47
experiências pessoais na (auto) biografia com contexto na entrevista coletada
com os discentes do lócus nos dias atuais. Foi realizado um estudo mais
detalhado sobre a educação no campo, com o intuito de perceber os preceitos
dessa modalidade de ensino dentro da sociedade brasileira, sendo possível
traçar uma linha de investigação capaz de mapear as influências ou marcas
deixadas pelo formato oficial da educação no campo, analisando as
especificidades em cada momento histórico, mas detendo-se com mais afinco
às ultimas modificações ocorridas no âmbito das reformas entre as últimas
resoluções para a educação no campo, o que torna possível vislumbrar com
maior propriedade os vestígios de mudanças que estão ocorrendo na educação
rural.
Para alcançar os objetivos almejados, passei três dias na comunidade
rural de Riacho dos Tanques conversando com os discentes atuais, essas
conversas giravam em torno de sua vida cotidiana e sobre a escola. Começarei
por relembrar a minha trajetória de vida cotidiana e escolar de criança
campesina, levando em conta as especificidades de ter vivido no mundo rural
na década de 1980, buscando posteriormente analisar as aproximações e os
distanciamentos entre a minha história de vida e a das crianças rurais atuais da
minha comunidade. Para tanto, segue as seguintes categorias:
4.1 A infância vivida por uma criança na zona rural na década de 1980.
Viver no campo naquela década, com toda sua liberdade, seus jeitos característicos e encantadores para uma criança era pura magia, principalmente se essa criança era natural da zona rural, se não conhecia nem havia sido contagiada pela zona urbana e sua cultura. Esse meio cultural campesino no qual eu vivi me parecia o paraíso, é certo que aquele era o mundo que eu conhecia até então, mas também era verdade que montar a cavalo, subir em árvores, alimentar animais, pegar água da fonte, correr livremente pelos campos, sem restrições entre outras coisas eram ações gratificantes que encantavam a minha infância na zona rural naquele período, mais precisamente nos anos de 1985 a 1992, pois estes são os anos da minha infância que deixaram lembranças marcadas na minha memória para sempre.
48
Mas o que achava a maioria urbanizada? O que pensava a maioria da
população? Apesar de todo esse mundo natural e livre que permeava a minha
vida e das outras crianças campesinas naquele momento, éramos ainda
vítimas do preconceito enraizado desse Brasil que se dizia e se diz
industrializado e urbanizado e denominava o rural como sinônimo de atraso. As
tecnologias, a globalização naquela década ainda eram muito restritas para o
meio rural e a energia elétrica não se fazia presente na minha vida e das outras
crianças naquele pedacinho de chão rural, nem havia água encanada.
Nesse relato, dou voz à criança que está em mim. Mergulho nas mais
remotas experiências de minha trajetória de habitante e discente rural, para
lembrar os mais diversos momentos dessa trajetória e de como eu interagi com
esses momentos. Ao relembrar da minha vida no campo e da sua liberdade e
magnitude, da minha infância tão pura e cheia de incertezas que eu a vivi no
meio rural, reportei-me ao que nos fala Gama, (2001), sobre a infância, onde
diz que a mesma é a idade da meninice, período do crescimento que precede a
puberdade, e para infantil a definição de relativo à criança, ingênuo, inocente.
Essa relação está imbuída de significados próximos, uma vez que a infância
traz consigo essa pureza, essa inocência que caracteriza tão delicadamente a
criança, e o fato de residir no meio rural contribui para toda essa ingenuidade,
pois o ambiente puro, natural e rural contribui para isso.
Nesse momento, percebe-se também que a realidade em relação à
educação rural ainda traz resquícios da época em que acontecem os fatos. A
falta de energia, por exemplo, ainda é uma realidade no cotidiano escolar rural,
apesar de fatos narrados terem acontecido há quinze anos.
Recordo-me dos fatos como se eles tivessem acontecido hoje, basta
fechar os olhos e tudo acontece como mágica, os dias, as noites, as falas, as
pessoas, as brincadeiras, o cotidiano rural, os detalhes do percurso realizado
naquela época, Larrosa (2005, p. 52) discute essa idéia em seu texto quando
diz:: “(...) ao relato do processo temporal pelo qual um indivíduo singular
alcança sua própria forma, constitui sua própria identidade, configura sua
particular humanidade ou, definitivamente, converte-se no que é.” Pensando
49
nesse contexto de interação, de tecer caminhos adentro em mais detalhes
sobre o percurso realizado.
Minha vida cotidiana era muito rica em detalhes, eu vivia intensamente minha infância e sonhava.
Toda manhã eu era acordada por um pequeno raio de sol que iluminava fracamente a humilde janela do meu quarto, porque ainda não era dia completamente, mas eu queria sair da cama de colchão nada confortável, mas que para mim era perfeito, pois nele eu dormia tranquilamente e sonhava os sonhos mais lindos que podiam habitar a cabeça de uma criança na minha idade, tinha entre 05 e 07 anos de idade.
Então, eu levantava e corria para o curral, onde meu pai tirava o leite para nós, nossos familiares e vizinhos. Após o desjejum, que era composto por bananas produzidas na nossa roça, ovos, leite fresquinho e cuscuz, eu corria para fora, porque brincar era o meu lema e o tempo escorria pelas mãos se não começasse logo.
A riqueza de detalhes descrita nesse trecho da narrativa demonstra com
muita clareza que a infância é um estado inédito, onde os sonhos parecem ser
verdades, e estes permeavam a minha vida cotidiana de criança rural, eu
brincava, viajava na minha fantasia que me permitia imaginar o que eu
quisesse. E nessa doce nostalgia de recordar a minha infância na zona rural, o
sonho, as fantasia que perpassavam minha vida naquele momento, lembrei de
um livro que li durante o curso de Pedagogia e ficou na minha memória, nele
aprendi que a fantasia é um recurso natural do qual precisamos para alimentar
nossas esperanças, com ela, temos mais forças para enfrentamos as
infortúnias da vida, é na infância que essas fantasias precisam ser nutridas, é
Bettelheim (1980) quem vem auxiliar nessa questão, quando fala que:
O inconsciente é a fonte de matéria-prima e a base sobre a qual o ego erige o edifício de nossa personalidade. Prosseguindo na comparação, nossas fantasias são os recurso naturais que fornecem e moldam essa matéria-prima, tornando-a útil as tarefas egóicas de construção da personalidade. (p.176)
Sendo assim, a fantasia contribuiu ricamente para a construção da
minha personalidade, para auxiliar a criança cheia de inquietações que eu era
na época, as mais variadas formas de explicações dadas pelos adultos não
resolviam os meus problemas internos, mas esse recurso riquíssimo, a
50
fantasia, me auxiliou nessa busca pela compreensão da vida e das
descobertas que ela me proporcionava.
Brincava com minha irmã mais nova, a diferença de idade entre nós era de 1 ano e 09 meses, e nossas brincadeiras eram de casinha, cozinhar, ir à feira, brincávamos também com bonecas e de futebol, pois tínhamos a influência do nosso irmão caçula, na época então com 03 anos e que nós não deixávamos brincar porque dizíamos que ele só atrapalhava, e o pior é que atrapalhava mesmo.
O coitadinho, se sentindo rejeitado começava a bagunçar, a embaçar as brincadeiras. Desarrumava nossa casinha, corria com nossas bonecas, sujava nossas coisas, enfim, travessuras como essas e outras pairavam no ar. Mas nós também brincávamos com ele de bola, de montar, de ‘’tanger’’ o gado, enfim, e diversas outras.
Também subíamos em árvores e a preferida era nosso querido pé-de-cajá, que hoje ainda lá se encontra só os pedaços ainda fincados na terra. Também outras quatro primas, nos finais de semana, juntavam-se a nós, na casa de meus avós paternos, que fica bem pertinho de nossa casa. Nos cultos dominicais, nossas brincadeiras ficavam ainda mais divertidas, pois nesta oportunidade reunia-se o maior número possível de crianças da vizinhança. Nas férias, nossas primas urbanizadas, que vinham de Salvador-Ba para passar as férias juntavam-se a nós e ai nossas brincadeiras eram ainda mais divertidas, porque as misturas de culturas urbanas e rurais embelezavam nossos dias e finais de tarde.
As lembranças desse período têm um significado imensurável no meu
desenvolvimento enquanto criança, principalmente criança da zona rural, pois
a brincadeira é uma atividade fundamental para isso e minha vida naquele
período era brincar. Maluf (2003) vem auxiliar nessa questão quando fala
que: “quando brincamos, conseguimos sem muitos esforços encontrar
respostas a várias indagações, podemos sanar dificuldades de
aprendizagem, bem como interagirmos com nossos semelhantes”. (p. 98).
É na brincadeira também que a criança aprende, e esse aprendizado
acontece de maneira espontânea e natural, pois não há uma obrigação para
tal, é através da brincadeira que conseguimos compreender mais claramente
essa fase tão delicada da vida que é a infância e a criança, como nos fala
Bettelheim (1980, p.123):
Através de uma brincadeira de criança, podemos compreender como ela vê e constrói o mundo - o que ela gostaria que ele fosse quais suas preocupações e que problemas a estão minando. Pela brincadeira, ela expressa o que teria dificuldade de colocar em
51
palavras. Nenhuma criança brinca só para passar o tempo, a sua escolha é motivada por processos íntimos, desejos, problemas, ansiedades, brincar é a sua linguagem secreta, que devemos respeitar mesmo se não a entendemos.
A riqueza de detalhes descrita nesse trecho da narrativa demonstra com
muita clareza as relações tecidas entre a zona rural e a zona urbana. No trecho
que lembro da presença de minhas primas urbanizadas que saiam de Salvador
todos os anos para passar as férias conosco, recordei-me de como nós as
tratávamos, como seres superiores a nós, éramos nós mesmos
preconceituosos contra nós próprios, mas essa atitude não estava em nós por
acaso, mas sim porque era essa a idéia que a sociedade nos passava, sendo
assim, se elas eram da cidade então nós éramos inferiores e o que elas
determinassem nas brincadeiras nós acatávamos porque as admirávamos.
Percebo também que nessa mistura de culturas rurais e urbanizadas,
entre nós moradores do campo e nossas primas moradoras da cidade,
acontecia o aprendizado, indiretamente, porque não havia uma intenção, mas
acontecia, entre nós mesmos, porque na nossas relações haviam trocas de
experiências, nas falas, nas brincadeiras, já que a educação acontece em
vários lugares, não precisa necessariamente ser na escola como nos fala
Brandão (1980, p.75): “não há uma única forma de educação e ela pode
acontecer em vários espaços, em casa, na rua,na igreja, ou na escola, de um
modo ou de outro, todos nos envolvemos pedaços da vida com ela”.
Essa afirmação vem mostrar que a vida está intimamente ligada com a
educação, pois estamos a todo o momento envolvendo o cotidiano para
apreender, para ensinar, para aprender-e-ensinar, para saber, para fazer, para
ser ou para conviver, todos os dias misturam a vida com a educação.
Éramos de uma família de católicos fervorosos, fomos criados com base na fé católica, sendo assim, fomos batizados e todos os domingos acompanhávamos nossos pais para o culto e uma vez ao mês era celebrada a missa na escola local, que também servia de igreja. Meu avô paterno, nosso vizinho, sábio humilde, dotado de saberes populares, ensinava com segurança os remédios naturais para todo tipo de enfermidade, e todos da região vinham procurá-lo para saber que remédio tomar. Às vezes, rezava-se na casa de meu
52
avô paterno, que ficava na sede da Fazenda, a novena em louvor a Nossa Senhora, e todos da família, além dos vizinhos que vinham juntar-se numa comunhão de fé, isso acontecia nas noites de lua-cheia. Nas noites de natal, eram feitas as procissões de preparação para o advento, que eram celebradas nas casas da vizinhança e culminava no dia dos Santos Reis, em janeiro, com a celebração final na escola local, centro para os acontecimentos mais importantes da comunidade.
Um ponto que merece destaque é o fato de a única escola local servir
de palco para os acontecimentos mais importantes da minha comunidade
rural na época, lá acontecia às aulas escolares, as aulas de catecismo, os
cultos, as missas, os reisados, enfim. Isso me fez lembrar de que a educação
para o meio rural precisa estar no campo e para o campo, uma educação
pensada desse lugar, que expresse as lutas, as manifestações culturais
desse povo. Caldart (2002) nos fala sobre essa questão quando diz que o
povo tem direito de ser educado no lugar onde vive tem direito a uma
educação pensada desse lugar, e com a sua participação vinculada à sua
cultura e às suas necessidades humanas e sociais.
São as marcas deixadas no decorrer da narração que me fizeram
lembrar do trecho que fala da sabedoria popular do meu avô Joaquim. Idoso
sábio, que não sabia a letra do ‘’ABC’’, mas o saber empírico lhe dotava de
saberes ricos para todos da sua comunidade. Esse fato fez-me lembrar de
um trecho de Cultura Popular e Educação, onde fala que uma pessoa
‘’analfabeta’’ é uma pessoa ‘’letrada’’ nos muitos saberes e sabedorias de sua
vida e sua cultura. Sem saber ler as palavras que os eruditos escrevem, ela
pode ser senhor e ou senhora de sabedoria popular rara e preciosa.
O fato é que nós estamos acostumados a atribuir qualidades as
diferentes culturas humanas, e fazemos isso tomando a nossa como
referência, é como se ela fosse a melhor. No caso da comunidade rural, é a
comunidade urbana que atribui juízo de valor na cultura ruralista tomando a
sua como referência. Mas a situação atual, de lenta mudança faz com que
olhares diferentes sejam dispensados para essa questão nos fazendo
perceber que as culturas humanas são diferentes, mas isso não significa que
53
são desiguais. O que existe é uma diversidade de qualidades de experiências
humanas e não se deve hierarquizar essa diversidade.
Lembro-me também da casa dos meus avós maternos, que era os que eu mais gostava, eu comparava aquela fazenda ao paraíso, chorava para ficar lá, mas só queria ficar se minha mãe também ficasse. Lá, eu brincava com meus primos que moravam com minha vó, eram dois irmãos loirinhos, Dernival e Eufrásia. Nossas brincadeiras não eram diferentes das que realizávamos em casa, mas além delas, ainda montávamos a cavalo com o auxilio de nossa tia Amélia, buscávamos água na fontinha também com a referida tia, prendíamos vaga-lumes à noite debaixo da mesa e ficávamos na casa-de-farinha, observado os trabalhadores. Ah, como eu gostava dali! Recordo-me com muita nostalgia, das noites deitada na cama de minha tia Nadir, olhando a lua crescendo lá na serra até dormir... Minha tia Nadir era professora, dava aulas em casa mesmo, era professora leiga, trabalhava com alunos de idades e séries diferentes e eu gostava de ficar ali, um pouco observando, um pouco atrapalhando suas aulas e desejando também entrar logo para escola.
Na casa dos meus avós paterno também tinha casa-de-farinha, e todos usavam a mesma, desde os familiares até os vizinhos. Quando era tempo de colher a mandioca esta era levada para lá onde seria preparada para se transformar em farinha. Nessas ocasiões, passávamos o dia lá na casa do meu avô Joaquim, era maravilhoso, desde ficar na casa-de-farinha até brincar pelos campos, aproveitávamos o dia até à noite, quando éramos então conduzidos para casa e após o banho dormíamos extasiados. Antes, porém, tínhamos que rezar para que Deus nos abençoasse. Às vezes, mãe contava estórias, não estórias com livros coloridos, mas estórias orais que ela sabia umas universais e outras que ela inventava, e nós ficávamos ali, quietos, interessados escutando, até que dormíamos, não antes de detoná-la de perguntas sobre a estória que acabara de contar.
Não poderia esquecer também das fotografias tiradas por tio Ruy, em dezembro, quando ele vinha com minha tia e as primas para passar as férias. Era um momento único, todos nós queríamos que ele tirasse várias fotografias, e ele tirava, não várias, mas algumas de cada uma/um de nós. Aquele momento para nós era ‘coisa de cinema’, porque não tínhamos câmara fotográfica nem nossos pais nos levava a um fotografo para tirarmos fotografias, só em momentos especiais como primeira eucaristia e natal.
Na época de trovoadas era magnífico, a chuva caindo, relâmpagos e trovões viravam a noite e meus pais ajeitando as coisas em casa para não molhar, nessas ocasiões, ficavam todos quietos. Quando amanhecia, era só alegria, íamos para os córregos e tomávamos banho. O cheiro de chuva ainda impregnado nos campos, as folhas dos matos cheias de água, e nós ali, vivendo cada momento, cada segundo. O cachorro também nos acompanhava para esta festa e depois, chegávamos em casa molhados e felizes. Não víamos televisão, só nas oportunidades que íamos para casa de nossos parentes na sede do município, por isso, televisão para nós era novidade, motivo para euforia. Em contra partida, tínhamos uma infância livre, sem restrições, porque no campo, vive-se livremente.
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Um momento que marcou muito foi quando eu fiz 06 anos de idade e meu avô Joaquim, pai de meu pai, me deu de presente um brinco... recordo ainda com grande nostalgia o dia 10 de abril de 1987, ele chegou lá em casa, bem cedo, eu estava lavando a louça, minha mãe nos ensinava os afazeres domésticos já nesta idade. E lá estava meu vô Joaquim, com um pacotinho na mão e disse que só me daria se eu adivinhasse o que era eu disse: é um retrato! Mas, finalmente ele matou minha curiosidade quando colocou o embrulho entre minhas mãos e me mandou abrir, lá estava um lindo par de brincos de pérola, que alegria que eu fiquei!! Depois disso, não me recordo que fim levou aquele par de brincos.
Os domingos eram vividos intensamente, na escola local, que servia de centro de laser. Lá, realizava-se pela manhã a catequese e à tarde, o culto dominical católico onde as crianças aprendiam os valores morais e cristãos da referida religião. Após várias brincadeiras que embalavam as crianças até o cair da tarde, quando o cair da noite não permitia mais brincar ali, porque não existia luz em forma de energia e os bujões a gás eram então acessos nas casas das redondezas anunciando que era hora de voltar para casa. No lar doce lar não existia banheiro, e o banho era de ‘’bacia’’, logo após, uma sopa quentinha. Após escovar os dentes, segurando um copo que servia de pia, orava-se e dormia-se tranquilamente, embalado pelos sons emitidos por sapos, grilos e insetos diversos, além dos gatos Bilú e Mimi, que dividam o teto com todos os habitantes da casa.
Lembro-me dos finais de ano, da aproximação do natal, momento mágico aquele. Não ganhávamos presentes, nem acreditávamos que Papai Noel colocaria um embaixo de nossas camas, acreditávamos na sua existência, mas ele nunca deixava nada para nós, ano após ano, e nada do Papai Noel. Mas nada destruía aquele mês de magia, alegria e empolgação para nós. Logo que dezembro chagava, íamos nós para a mata catar gravatá, samambaia e outras plantas típicas da região e próprias para serem usadas no natal. Essa tarefa nos deixava por demais felizes, extasiados e realizados.
Finalmente em casa, íamos armar a lapinha, o presépio, que se compunha de pedras, areia, alguns bichos, as coisas que trouxemos da mata e um galho de arvore seco que era todo enfeitado com cartões de natal, bolas, sinos, estrelas e fitas coloridas. Todas as tardes ficávamos de joelhos em frente à lapinha e orávamos para o Deus-Menino nos abençoar. Quanta inocência, pureza e fé naquele momento da Ave-Maria... Logo após, o rádiozinho de pilhas embalava o som da Ave-Maria, e nós ali, quietos, em respeito, atentos a cada palavra do padre.
Analisando esse trecho da narrativa, percebo um dado relevante no
tocante à educação no campo, com relação ao que se propõe para esta
modalidade de ensino. Quando me lembro da minha tia professora leiga, passa
por minha mente as suas aulas, foi como se eu fizesse uma viagem no tempo...
imagens, gestos e atitudes dela apareceram como magia, eu revi aquelas
cenas, e lembrei de como ela procurava valorizar a vida na zona rural, a sua
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comunidade, incentivava seus alunos a não terem vergonha de serem da roça,
que as pessoas da cidade só sobreviviam porque as pessoas do campo
existiam e trabalhavam para produzirem os alimentos para eles, os da cidade.
Ela perguntava para eles o que queriam ser na vida, quais os sonhos deles.
Isso me fez recorrer ao que nos fala Alencar (2001), sobre essa questão,
quando nos diz:
Sala pequenina perdida nos confins do Brasil, acelerando o passo do ‘’caminho da roça’’, repleto de ‘’sabenças’’. Existe um projeto político educativo nesta escola? A quantas andas? Estamos abertos ou fechados à vida? Tenho perguntado a estes meus alunos quais os seus sonhos? E os meus, permanecem sempre atualizados e concentrados nas peculiaridades deles? No meu ‘’escorredor de macarrão’’ da memória escolar que cursos, aulas, colegas e professores ficaram para sempre? O que aprendi de fato com eles? (p.89).
Percebo que minha tia professora, embora leiga, praticava algumas das
sugestões que nos é dada e questionada por Alencar, quando ele nos faz
perceber que perguntas simples para nossos alunos do tipo qual seu sonhos
podem fazer a diferença. Encontro evidências também na sala de aula, assim
como na narrativa de Alencar a sala de aula da minha tia era uma sala
pequenina e perdida, no meio do quase nada, onde crianças e adultos vinham
para aprender, mas também ensinava, com suas ‘’sabenças’’.
Mais uma vez os vestígios da história de vida ligam-se ao fato de ter sido
moradora e discente da zona rural com a pessoa na qual eu viria a ser. Na
parte da narrativa que me recordo de minha mãe contando estórias para nós
dormirmos, me pego pensando de como ela estava cansada, de tanta luta,
tanto trabalho, mas não desistia de nos agradar e involuntariamente ela nos
ajudava a crescer intelectualmente, despertava em nós, o gosto pela leitura, e
sei que esse seu gesto contribuiu significativamente para que depois eu
gostasse muito de livros, porque adolescente eu lia tudo que estivesse a minha
frente, às vezes ia almoçar, jantar e até dormir com o livro embaixo do braço.
Tudo isso me fez recordar o livro que li sobre contos, de Bettelheim
(1980), lá, ele nos diz que ao ouvir um conto, as crianças traduzem em
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imagens a estória que ouve, por isso, é primordial que os adultos, ao contarem
esses contos atentem para a narrativa, pois esta contribuirá significativamente
para enriquecer as experiências dos pequenos na estória, exatamente como
minha mãe fazia e ainda ele nos fala ainda que: ‘’Isso implica em uma
afirmação da personalidade da criança através de uma experiência especifica
compartilhada com outro ser humano que, embora adulto, pode apreciar
integralmente os sentimentos e as reações da criança’’.
Uma outra questão em evidência é o fato de naquela época, após o
entardecer, as crianças iam para casa, porque brincar não era mais possível
visto quer a energia elétrica ainda não se fazia presente naquela comunidade.
Isso nos remete ao que discorre Brandão (1999), sobre essa problemática: ‘’
Os jovens e adultos, à luz das lamparinas (pois a tecnologia em forma de
energia elétrica ainda não se faz totalmente presente no meio rural), esforçam-
se para acompanhar com bastante dificuldade o que o professor escreve no
quadro.
4.2. Percursos de uma estudante da zona rural nos primeiros anos de escolarização na década de 1980.
Mas criança da zona rural também precisava de escola, pelo menos era assim que pensavam meus pais. Minha mãe vinha de uma família culta e na sua maioria urbanizada, inclusive com profissionais também na área da educação. Em contra-partida, a família do meu pai, bem simples e sem muita preocupação para ‘’estudos’’. Mas o fato é que lá em casa, havia uma inquietação para que os filhos estudassem, crescessem e vencessem. Assim, aos 07 anos de idade, ingressei na escola, mais especificamente na escola municipal Ana Nery, que oferecia alfabetização à 4ª série do Ensino Fundamental I, localizada na Fazenda Riacho dos Tanques de propriedade do meu avô paterno, há 09 km da sede na zona urbana na cidade de Mairi. É importante frisar que, eu não entrei na escola no ano anterior para esperar minha irmã, que na época não tinha idade suficiente para freqüentá-la. Era interessante observar como todo o dia à tarde, após o almoço corria para escola eu e minha irmã mais nova, com 05 anos de idade. Eu, bem dedicada aos estudos, com sede de beber daquela fonte de saberes, minha irmã, relapsa, gostava da escola, mas não do que ela lhe ensinava. Lembro-me claramente do espaço físico que componha a escola: era uma sala única pequena, com quadro de cimento verde e umas cadeiras enfileiradas onde cerca de 40 alunos da redondeza vinha para aprender o ‘’ABC’’. Era uma sala multisseriada. As aulas começavam
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às 13h30min com intervalo às 15h00min e reiniciava às 16h00min, geralmente antes das 17h00min estávamos liberados. A professora, minha tia emprestada era leiga, como se denominava na época, ela morava na comunidade, sua casa ficava de frente para escola. Faziam parte ainda desse espaço escolar 02 banheiros, um para as meninas e outro para os meninos, uma cantina muito pequena onde servia as merendas e uma área igualmente pequena, que se destinava a recreação, mas que não brincávamos nela, de tão pequena que era. Lembro-me também que na hora do recreio, além da merenda que vinha em tempos espaços fornecida pela Prefeitura, nós também levávamos merenda de casa que em geral eram as frutas que produzíamos ali mesmo, na roça.
Essa parte da narração me fez voltar o olhar para uma questão
importantíssima no que se refere à aprendizagem do aluno, principalmente se
esse aluno for do campo onde a realidade local não é levada em consideração
na hora da elaboração do currículo. Sobre essa questão, Martins (2004),
discorre que uma educação contextualizada é também uma operação de
descolonização de um currículo que impõe verdades absolutas.
Isso fica claro no trecho da narrativa que lembro de minha irmã, ela não
gostava muito do que nos ensinavam ali, ia para escola apenas porque nossos
pais diziam que para crescer na vida era preciso estudar, mas não gostava, e
essa recusa em aprender da parte dela era um sinal de inteligência, porque
algo estava sendo empurrado para ela, algo pronto e alienado do seu meio,
esse era um sinal de inteligência dela, porque, parafraseando Rubem Alves, na
maioria das vezes a recusa de alguém a aprender é um sinal de inteligência, e
lá, assim como as pesquisas tem mostrado, tínhamos um currículo distorcido
da nossa realidade campesina.
Ainda sobre essa questão, um outro fato que me inquietou foi com
relação ao espaço da escola, era uma escola pequenina, sem espaço
suficiente para brincadeiras e nem mesmo para estudar, porque o número de
alunos da redondeza era grande e o tamanho da única sala era demasiado
pequena para comportar a todos. Esse problema me fez lembrar da questão de
se pensar no fato de que o Brasil necessita apenas de um tipo de escola, e
essa questão nos é esclarecida com Leite (2002) quando questiona sobre
quantos Brasis teremos por este imenso território? Com quantos modelos de
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escolas devemos contar? Sabemos que não podemos nivelar norte e sudeste,
litoral e interior, e, muito menos rural e urbano.
A merenda era fornecida pela prefeitura, mas quase sempre faltava. Sempre se servia feijão com carne de charque, macarronada e suco com bolacha de água e sal. Não reclamávamos da merenda, havia apenas aqueles que não gostavam de alguma coisa e pronto. Na hora do recreio, brincávamos todos juntos, maiores e menores de todas as brincadeiras, como pula-corda, baleado, pega-pega, cantiga de rodas, futebol entre outras.
Um fato que marcou e que não saiu da memória, é que antes de entrar na escola, antes de saber as primeiras letras, eu já brincava de escolinha na varanda de casa, colocava livros e revistas abertos sobre a mesa (estes eram doados por minha tia Nadir Rios, professora). Ficava horas e horas ali, brincando de dar aula, inventava nomes para meus alunos e memorizava-os, mas a memória falhava, e eu pensava: ‘’tomara que mãe me mande logo para escola, porque só assim, eu aprenderei a ler e escreverei os nomes de meus alunos na capa de seus livros e assim, não os esquecerei’’. Essa tendência para educação era influenciada pela minha tia, irmã da minha mãe, que era professora e ao observá-la dando aula, antes de entrar para escola, voltava para casa e ficava a imitá-la, desejado também ser professora.
O fato é que, no mesmo ano que entrei para escola aprendi a ler e escrever e sai dali direto para a ‘’Cartilha’’, com uma alegria imensa e a certeza de que minha vida escolar estava apenas começando.
Na Cartilha a realidade não foi diferente, os mesmos colegas, pois a sala como já mencionei era multi seriada, então o que poderia acontecer era de alguns saírem, porque concluíram a 4ª serie do ensino fundamental. O espaço físico não mudou, nem as carteiras enfileiradas. A merenda continuou com o mesmo cardápio e faltando sempre. Só a professora que mudou quem nos ensinou nesse período foi minha prima, também leiga,filha da minha tia Neide que foi pró no ano anterior, ela morava também lá, na casa de sua mãe. Lembro-me que gostávamos dela porque era bem jovem, graciosa e espontânea, mas não parecia muito dedicada ao ofício do magistério. Gostava muito de brincar durante as aulas e contava também muitas estórias. Nesse período eu já sabia ler e escrever. Foi um ano divertido e no final do ano letivo, fui aprovada para 1ª serie do Ensino Fundamental I, fiquei alegre e eufórica, porque iria comprar caderno agora e fazer provas.
Essa arte de lembrar de cenas passadas da minha vida e que
aconteceram há muito tempo atrás me trazem uma nostalgia imensa, mas não
sofro com isso, pelo contrário, essa parte é maravilhosa, lembrar, pensar, um
acontecimento vem atrás do outro, é muito bom, principalmente sobre os
tempos de escola, de alfabetização, distante. Então, reflito que hoje sou um
pouco de cada detalhe vivido, em cada espaço, com pessoas diferentes, em
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momentos e épocas diferentes, das historias que ouvi, dos anos vividos no
campo, enfim, não seria possível definir um único espaço de construção, e
nessa refeição busco apoio em Jesus (2000), quando afirma que:
Fico pensando em minha construção, no processo vivido e entendo que trago em mim um pouco de cada história ouvida até então, no entanto sendo parte, sou uma, mesmo que contendo a multiplicidade, trago singularidades em minha história que a torna única. Seria possível estabelecer ou privilegiar um único espaço de construção? (p. 33)
É partindo dessa reflexão de individualidade/coletivo de sentimentos,
sensações e subjetividades, que adentro na discussão da narrativa acima. Foi
nessa tarefa de lembrar que percebi o quanto minha prima professora jovem e
graciosa contribuiu para minha formação. Suas brincadeiras espontâneas e a
sua maneira de contar histórias era tudo sem intenção, mas ela fez a diferença
nessa parte, pois contava essas estórias muito bem, eu lembro. Isso me levou
a pensar no que nos relata Bettelheim (1980), sobre essa questão de contar
estórias para crianças em salas de aula: ao ouvir um conto, as crianças
traduzem em imagens a estória que ouve, por isso, é primordial que os adultos,
ao contarem esses contos atentem para a narrativa, pois esta contribuirá
significativamente para enriquecer as experiências dos pequenos na estória, e
nos fala ainda que:
Isso implica em uma afirmação da personalidade da criança através de
uma experiência especifica compartilhada com outro ser humano que, embora
adulto, pode apreciar integralmente os sentimentos e as reações da criança.
Percebo também que com suas espontâneas e longas brincadeiras, ela nos
auxiliava com a aprendizagem, sobre isso, Maluf (2003) vem nos auxiliar
quando fala que: “quando brincamos, conseguimos sem muitos esforços
encontrar respostas a várias indagações, podemos sanar dificuldades de
aprendizagem, bem como interagirmos com nossos semelhantes” (p. 98).
Nessa parte da narração, rica em detalhes que marcaram a passagem
da minha prima como pró, vejo como ela nos conduzia partindo do nosso meio,
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na verdade, ela não nos ensinava, involuntariamente ela nos leva a aprender
sozinhos, com as estórias contadas, ora universais ora inventadas com base
em nosso cotidiano, com suas brincadeiras, enfim, sobre isso, recorro a
Alencar ( 2001), quando nos diz:
...não se pode ensinar alguma coisa a alguém, pode-se apenas auxiliar a descobrir por si mesmo’’. Trata-se de levar o educando a percorrer um caminho que ele já conhece. Caminho que, para a grandeza do ofício pedagógico, é sempre novo, pois vivido e percebido de forma singular por cada aprendiz. (p.111)
Podemos ver que a professora leiga e jovem da zona rural é detentora
de saberes do seu meio que muitas vezes escapa da compreensão daqueles
que se dizem letrados superiores e urbanizados. Isso nos remete a pensar no,
nos é dito no trecho do livro Cultura Popular e Educação, (2008, p.35): “uma
pessoa ‘’analfabeta’’ é uma pessoa “letrada” nos muitos saberes e sabedorias
de sua vida e sua cultura. Sem saber ler as palavras que os eruditos escrevem,
ela pode ser senhor e ou senhora de sabedoria popular rara e preciosa”.
4.3 Um passeio pelo tempo: a vida cotidiana escolar dos alunos da escola de Riacho dos tanques atualmente e a relação com a década de 1980, do século passado.
Nessa segunda parte do trabalho, tentamos encontrar vestígios de
aproximações e/ou distanciamentos ocorridos na comunidade local em relação
à vida cotidiana escolar das crianças campesinas, com a década de 1980;
tempo em que ocorreram os fatos da narrativa autobiográfica apresentada
anteriormente.
As análises coletadas nesse período são de grande importância para
categorização dos dados, visando assim, um aprofundamento das discussões.
Apresentaremos aqui, os principais elementos de aproximações identificados.
4.3.1 Os alunos campesinos e a vida cotidiana atual - algumas aproximações.
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Buscamos respaldo na entrevista semi-estruturada para analisarmos as
aproximações identificadas na vida cotidiana escolar dos sujeitos atuais com a
década de 1980. Desse modo, enlaçamos as categorias, criadas a partir da
entrevista semi-estruturada.
4.3.1.1 Reencontro com o cotidiano da ‘’roça’’.
Nesta categoria conversamos com os sujeitos sobre seu cotidiano
escolar no campo. Tendo em vista as análises e interpretações desenvolvidas
na pesquisa, através das afirmações, a grande maioria dos sujeitos, cerca de
85% vivem seu dia-a-dia de maneira muito próxima da minha vida rural na
década de 1980. Para clarear essa questão, explicitamos as falas de três
depoentes:
D(2): ... Assim, nois come o que nois planta na roça né; na escola e todo dia também, nois brinca muito, de tudo, esconde-esconde, a gente sobe em árvores, a gente fica doido para amanhecer logo o dia, ai a gente brinca muito mais também agente ajuda nosso pai na roça...
D(3): ... Oxente, nois brinca é muito lá na escola, de tudo, pega-pega, sobe em cavalo, brinca de polícia e ladrão1, ajuda nossa mãe em casa, escuta rádio, olha a televisão, brinca também de boneca...
D (6): ... Eu adoro quando mainha me manda lavar os pratos, porque ai eu brinco de ser ela, penso que sou a dona da casa, que sou a mãe, ai a brincadeira de casinha é de verdade e na escola também a gente brinca de casinha...
Identificamos várias aproximações nas falas dos discentes acima com a
minha realidade campesina na década de 1980, tanto na escola quanto fora
dela. As brincadeiras de agora são, em geral, iguais as que brincávamos na
década de 1980, isso fica claro na narrativa, quando falo: ‘’ Também subíamos
em árvores e a preferida era nosso querido pé-de-cajá, que hoje ainda lá se
encontra só os pedaços ainda fincados na terra. ’’ Brincava com minha irmã
1 . Usaremos a letra D, seguida de numeração para denominarmos discente.2. Manteremos a pronúncia com uma grafia própria a fim de manter a originalidade e especificidade da fala dos sujeitos.
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mais nova, a diferença de idade entre nós era de 1 ano e 09 meses, e nossas
brincadeiras eram de casinha, cozinhar, ir à feira, brincávamos também com
bonecas, e de futebol. ‘’
Percebemos que as brincadeiras, assim como na década de 1980, ainda
são muito presentes na vida cotidiana das crianças do campo, e sobre essa
questão, Bettelheim (1980), vem nos auxiliar quando nos fala que ‘’ Através de
uma brincadeira de criança, podemos compreender como ela vê e constrói o
mundo, o que ela gostaria que ele fosse quais suas preocupações e que
problemas a estão minando.
Pela brincadeira, ela expressa o que teria dificuldade de colocar em
palavras. Nenhuma criança brinca só para passar o tempo, a sua escolha é
motivada por processos íntimos, desejos, problemas, ansiedades, brincar é a
sua linguagem secreta, que devemos respeitar mesmo se não a entendemos’’.
Ainda sobre a brincadeira, Maluf (2003), diz que: “quando brincamos,
conseguimos sem muitos esforços encontrar respostas a várias indagações,
podemos sanar dificuldades de aprendizagem, bem como interagirmos com
nossos semelhantes”. (p. 98).
Identificamos assim que as crianças rurais de Riachos dos Tanques
continuam brincando como brincavam as crianças na década de 80, mesmo
nos tempos atuais em que a energia chegou à comunidade, eles priorizam a
brincadeira sempre, em qualquer momento, até mesmo na hora de ajudar o pai
na roça, tarefa que geralmente é atribuída para os meninos. Para as meninas,
ajudar as mães nos afazeres domésticos, nesses momentos, elas também
brincam, aproveitam a oportunidade para brincar ‘’de verdade’’ de casinha, de
dona-de-casa, de mamãe, como podemos perceber nas falas dos discentes
citados anteriormente. Percebo também aproximações com minha vida
cotidiana na década de 1980, naquela época, minha mãe também me
designava para ajudá-la nos afazeres domésticos, e isso está claro numa parte
da narrativa quando digo: recordo ainda com grande nostalgia o dia 10 de abril
de 1987... , ele chegou lá em casa, bem cedo, eu estava lavando a louça,
minha mãe nos ensinava os afazeres domésticos já nesta idade...
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Numa outra parte da conversa, identificamos que 80% dos sujeitos
atuais se divertem de maneira bem próxima de como eu me divertia na década
de 1980, nos mesmos lugares e quase da mesma forma, sendo a escola local
o centro para os principais acontecimentos da comunidade. Para elucidarmos
essa questão, exporemos a fala de dois sujeitos a seguir:
D(1): ... A gente vai para as festas daqui da comunidade mesmo, dia de domingo tem culto no prédio da escola e tem dia que tem, missa, ai vem o padre, é muito bom...
D(5): ... Em janeiro tem a festa de Reis que nois desaruma a lapinha de natal, ai tem comida lá na escola, tem musica, nois dança, fica até tardão lá, pense que bom viu...
Os depoimentos dos discentes nessa parte da entrevista me levaram a
recordar fatos que marcaram minha vida durante os anos que vivi ali naquela
escola. Várias são as aproximações encontradas entre a década de 1980 e os
tempos atuais na vida desses campesinos. As festas de Reis, a Lapinha de
natal, as missas celebradas, os cultos dominicais, são manifestações culturais
que divertiam a nós, moradores da década de 1980 naquela comunidade e
continuam encantando e divertindo os moradores de agora daquele pedacinho
de chão. Extraí trechos da minha narrativa que evidenciam essas
aproximações:
Nos domingos acompanhávamos nossos pais para o culto e uma vez ao mês era celebrada a missa na escola local, que também servia de igreja. Nas noites de natal, eram feitas as procissões de preparação para o advento, que eram celebradas nas casas da vizinhança e culminava no dia dos Santos Reis, em janeiro, com a celebração final na escola local, centro para os acontecimentos mais importantes da comunidade. Lembro-me dos finais de ano, da aproximação do natal, momento mágico aquele. Finalmente em casa, íamos armar a lapinha, o presépio, que se compunha de pedras, areia, alguns bichos, as coisas que trouxemos da mata e um galho de arvore seco que era todo enfeitado com cartões de natal, bolas, sinos, estrelas e fitas coloridas.
As relações sociais específicas que compõem a vida dessa
comunidade devem ser respeitadas, porque ai vivem famílias que se organizam
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em comunidade manifestando seus costumes e sua cultura. O fato de a escola
local servir de palco para os acontecimentos mais importantes da comunidade
como as festas locais nos leva a pensar no que defende Molina (2004, p.194):
É preciso compreender que, por trás de uma indicação geográfica e de dados estatísticos isolados, está uma parte do povo brasileiro que vive neste lugar e desde as relações sociais especificas que compõem a vida no e do campo, em diferentes identidades e em sua identidade comum; estão pessoas de diferentes idades, famílias, comunidades, organizações, movimentos sociais.
O tempo passou tão depressa, mas não levou com ele as minhas
lembranças daquele período de magia que vivi meus anos de infância na roça.
Não levou também, as manifestações culturais daquele povo extraordinário
com o qual eu tenho o privilegio de me relacionar até os dias atuais, porque
ainda temos nosso pedacinho de terra lá, e lá está também o início da história
da minha vida. Encontrei várias aproximações da vida cotidiana daquelas
crianças campesinas nos dias atuais com minha vida cotidiana na década de
1980, quando vivia naquela comunidade rural. Isso me deixou feliz e satisfeita,
por observar que nem o tempo nem a tecnologia em forma de energia que lá
chegou recentemente não foram capazes de levar a inocência e a maneira de
viver daquelas crianças campesinas.
Ainda buscando identificar aproximações do cotidiano da roça de
agora com a década de 1980, continuamos nossa conversa com os sujeitos e
esta continuou a se desenhar de maneira muito espontânea. Nesse diálogo,
tivemos a oportunidade de observamos os gestos dos sujeitos, visto que
estávamos frente a frente com eles e a conversa fluía naturalmente.
Continuamos no encontro com o cotidiano da roça, visto que as aproximações
prosseguiram. As frutas que os sujeitos comem na escola, o leite tirado da vaca
são alimentos que também se faziam presentes naquela década, conforme
trecho extraído da narrativa, a seguir transcrito:
Então, eu levantava e corria para o curral, onde meu pai tirava o leite para nós, nossos familiares e vizinhos. Após o desjejum, que era composto por bananas produzidas na nossa roça, ovos, leite
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fresquinho e cuscuz, eu corria para fora, porque brincar era o meu lema e o tempo escorria pelas mãos se não começasse logo’’. Percebemos assim que, embora os anos tenham passado e a tecnologia em forma de energia tenha alcançado o campo e eletrodomésticos como televisão, geladeira tenha adentrado os lares rurais estes ainda permanecem com uma cultura ruralista no que diz respeito à alimentação. As propagandas dos alimentos enlatados quase não se fazem presentes na comunidade.
Continuam extraindo da roça uma boa parte da comida, as frutas são
um bom exemplo disso, pois raramente compram, só nas estações em que
ainda não cresceram ou a chuva não veio o suficiente para brotá-las. Para
demonstrar esta questão, extraímos os seguintes discursos:
D(5): ... Nosso pai planta fruta, banana, laranja, nois leva para merendar na esocla, leite tira da vaca, tem galinha ai mãe mata e nois come a carne, também tem os ovos...
D(7): ... A gente come os ovos, banana, manga, jaca, leite que é daqui mesmo, pai planta, mais as coisas traz da rua...
D(4): ... Painho planta muita fruta, aqui tem coco, jaca, pinha, banana, laranja, ai e gente leva para comer no recreio na escola também tem leite, ovos, o porco e galinha que nois come a carne...
Buscando respaldo nas análises e interpretações desenvolvidas na
pesquisa, através das afirmações, a maioria dos sujeitos, cerca de 70% vivem
seu cotidiano escolar de modo muito próximo da minha vida escolar na década
de 1980. Para obtermos material que pudesse nos respaldar na análise das
aproximações identificadas na vida escolar dos discentes atuais com a década
de 1980, nos baseamos nos depoimentos dos alunos a seguir:
D(1): ... a escola é boa, tem campo pra nois brincar de bola. A pró é bonita...
D(2): ... ela tem dois banheiros, uma sala que a pró dá aula, tem a dispensa que tia guarda a merenda e só...
D(5):... eu adoro ela, ela é bonita, tem um quadro verde que a pró escreve, tem a sala que a pró da aula, as cadeiras, a dispensa da merenda...
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Nesta parte da conversa, encontramos várias aproximações entre a
década estudada e a atualidade. Tais aproximações estão bem claras quando
busco respaldo na narrativa para identificá-las, sendo assim, transcrevemos
parte da narração para mostrarmos essas aproximações:
Lembro-me claramente do espaço físico que compunha a escola: era uma sala única pequena, com quadro de cimento verde e umas cadeiras enfileiradas aonde cerca de 40 alunos da redondeza vinha para aprender o ‘’ABC’’. Era uma sala multiseriada. As aulas começavam às 13h30min com intervalo às 15h00min e reiniciava às 16h00min, geralmente antes das 17h00min estávamos liberados. A professora, minha tia emprestada era leiga, como se denominava na época. Faziam parte ainda desse espaço escolar 02 banheiros, um para as meninas e outro para os meninos, uma cantina muito pequena onde servia as merendas e uma área igualmente pequena, que se destinava a recreação, mas que não brincávamos nela, de tão pequena que era.
Concluímos que quase tudo permanece ainda como há mais de vinte
anos atrás. Com relação ao espaço da escola, era uma escola pequenina, sem
espaço suficiente para brincadeiras e nem mesmo para estudar, e permanece
exatamente igual. Esse problema me fez lembrar do fato de se pensar se o
Brasil necessita apenas de um tipo de escola, e essa questão nos é
esclarecida com Leite (2002) quando questiona sobre quantos Brasis teremos
por este imenso território? Com quantos modelos de escolas devemos contar?
Sabemos que não podemos nivelar norte e sudeste, litoral e interior, e, muito
menos rural e urbano.
Neste outro momento, buscamos analisar se as crianças gostavam de
estudar. Sobre esta questão, evidenciamos algumas falas:
D(8): ... nois gosta. Painho e mainha disse que tem que estudar para crescer na vida...
D(5): ... não gosto, mainha disse que tem que estudar, ai eu estudo...
D(3): ... gosto não, mais tem que estudar...
Direcionando o olhar para as falas dos alunos, busco apoio na discussão
de Martins (2004), quando declara que uma educação contextualizada é
67
também uma operação de descolonização de um currículo que impõe verdades
absolutas. Isso fica explicito nas falas dos discentes, quando, na sua maioria,
dizem que não gostam de estudar, mas os pais os obrigam a isso, pois diz que
só estudando pode se alcançar alguma coisa na vida.
As aproximações são muitas com relação a essa questão. O fato de
uma parte dos discentes atuais não gostarem de estudar se aproxima da
postura da minha irmã que está explicitada em um trecho da minha narrativa:
“ela não gostava muito do que nos ensinavam ali, ia para escola apenas
porque nossos pais diziam que para crescer na vida era preciso estudar”, mas
não gostava, e essa recusa em aprender da parte dela era um sinal de
inteligência, porque algo estava sendo empurrado para ela, alienado do seu
meio, esse era um sinal de inteligência, porque, parafraseando Rubem Alves
(1993), na maioria das vezes a recusa de alguém a aprender é um sinal de
inteligência, e lá, assim como as pesquisas tem mostrado, tínhamos um
currículo distorcido da nossa realidade campesina.
Ainda analisando essa questão, percebemos que o fato de a maioria das
crianças manifestarem que não gostam de estudar está relacionado com o que
nos fala Martins (2004), quando defende que uma educação contextualizada é
também uma operação de descolonização de um currículo que impõe verdades
absolutas, e ainda, o mesmo discorre que todas as pessoas possuem
conhecimentos, e podem construir. Sendo assim, é preciso verificar os
condicionantes culturais e sociais que estão por trás de uma indicação de estes
discentes, em sua maioria, responderem não gostar da escola.
4.3.2 Os alunos campesinos e a vida escolar atual: Alguns distanciamentos.
Nesta categoria, apresentaremos os distanciamentos identificados no
lócus com relação a vida escolar atual em relação à década de 1980. Para
tanto, continuamos nos respaldando na entrevista semi-estruturada, pois
68
tínhamos a intenção de através da mesma coletar os fatos relatados. Essa
atitude se aproxima do que defende Minayo (1994), quando fala: “a entrevista
não significa uma conversa despretensiosa e neutra, uma vez que se insere
como meio de coleta dos fatos relatados pelos autores, enquanto sujeito/objeto
da pesquisa que vivenciam uma determinada realidade que esta focaliza”. (p.
57).
Sendo assim, para uma maior elucidação dos distanciamentos
encontrados, entabulamos a subcategoria seguinte:
4.3.3 Desencontro com o cotidiano escolar da ‘’roça’’.
Refletindo sobre a questão dos distanciamentos entre os dias atuais e a
década de 1980, trazemos aqui alguns aspectos que elucidam esses
distanciamentos. Quando questionadas sobre o modo de viver atualmente na
escola, uma pequena parte dos sujeitos, 15% afirmaram que preferem ver
televisão, a irem à escola ou até mesmo brincarem, em oposição à década de
1980, quando a energia não se fazia presente no meio rural no qual eu vivi. Eis
algumas falas que demonstram distanciamentos entre os dias atuais e a
referida década:
D(5): ...Oxe, eu gosto é de assistir televisão, adoro filmes e desenhos, ficar brincando nada,nem ir para escola, eu prefiro assistir do que tudo...
D(8): ... Painho vendeu minha novilha e vai me dá um videogame, eu adoro assistir televisão, ai, quando ele trouxer meu videogame igual o do meu primo vai ser massa, se eu pudesse, vem para escola eu ia, fazer o que?...
D(6): ... Eu adoro quando mainha me manda lavar os pratos, porque ai eu brinco de ser ela, penso que sou a dona da casa, que sou a mãe, ai a brincadeira de casinha é de verdade. Mas eu também adoro assistir televisão, a novela, mais eu só assisto e noite, mais é bom ó...
Esses distanciamentos ficam claros, se compararmos os meus
depoimentos descritos nas minhas lembranças sobre os anos vividos naquele
69
local. Assim, extraímos trechos que se distanciam, para mostrar esse
desencontro: “Não víamos televisão, só nas oportunidades que íamos para
casa de nossos parentes na sede do município, por isso, televisão para nós era
novidade, motivo para euforia”. “... porque brincar era o meu lema e o tempo
escorria pelas mãos se não começasse logo”.
Esses trechos servem para identificar os distanciamentos encontrados
por umas poucas crianças nos dias atuais com as crianças na década de 1980.
Naquela época, a tecnologia em forma de energia elétrica ainda não se fazia
presente naquela comunidade e, portanto não existia televisão. Sendo assim,
as crianças daquela década não assistiam televisão, elas se divertiam
brincando de outras maneiras já explicitadas anteriormente. Já nos dias atuais,
com a energia presente naquele meio, umas poucas crianças preferem assistir
em vez de brincar.
Procuramos analisar como se alimentam na escola as crianças de
hoje, e fizemos um paralelo buscando identificar os distanciamentos com a
década de 1980. Para tanto, selecionamos as falas a seguir como forma de
ilustração dessa questão:
D(8): ... uma parte nois compra, que é a comida da fábrica, outra nois planta, e eu gosto de chocolate que painho traz dia de sábado, ai eu levo para escola na segunda, mais não dou para ninguém, como sozinho, é melhor que essas fruta...
D(1): ... painho planta tudo que é fruta, feijão, tem farinha da mandioca, ovos, tanta coisa, mais eu prefiro salgadinho pra merenda...
Essa análise nos faz perceber a distância entre a década de 1980 e o
cotidiano escolar das crianças campesinas atuais, com relação aos alimentos.
Na década de 1980, as crianças daquela comunidade não tinham acesso a
merendas fabricadas tais como salgadinho e chocolate, como nos é relatado
nos depoimentos anteriormente citados. Essa tendência é resultado da
evolução do meio rural com a presença da energia elétrica que
conseqüentemente trouxe a televisão para os lares dos habitantes desse meio
70
e com ela, as propagandas que fizeram com que alguns aderissem ao
consumo de produtos industrializados.
Já na minha época, não existia quem divulgasse tais produtos para o
meio campesino, sendo assim, comíamos e merendávamos o que produzamos
ali, como frutas, por exemplo. Para evidenciarmos esse distanciamento entre
os períodos, extraímos um trecho da narrativa da minha história de vida:
“Então, eu levantava e corria para o curral, onde meu pai tirava o leite para nós,
nossos familiares e vizinhos. Após o desjejum, que era composto por bananas
produzidas na nossa roça, ovos, leite fresquinho e cuscuz”.
Quando interrogados sobre a escola e os professores, uma grande parte
dos sujeitos, cerca de 90% afirmaram que a professora morava na cidade e era
formada em nível superior, conforme os depoimentos expostos a seguir:
D(1): ... a escola é boa, a pró é chique, ela mora na rua, e tem faculdade...
D(3): ... gosto muito de estudar, porque quando crescer quero ser professora igual a minha pró, que tem faculdade...
D(3): ... gosto muito de estudar, a minha, tem faculdade e quando eu me formar quero morar na rua igual a ela e trabalhar...
Os distanciamentos que encontramos são em relação a formação das
professoras, que outrora eram leigas, sendo as atuais formadas, e uma
inclusive, com nível superior. Busco trechos da minha narrativa que deixa claro
esse distanciamento: “A professora, minha tia emprestada era leiga, como se
denominava na época... Só a professora que mudou quem nos ensinou nesse
período foi minha prima, também leiga, filha da minha tia Neide que foi pró no
ano anterior”.
Outra questão que merece destaque é o fato de as professoras atuais
residirem na zona urbana, um ponto de distanciamento da década de 1980,
quando as professoras, na época então minha tia e minha prima residiam na
comunidade local. Extrai da narrativa trechos que revelam esse
distanciamento:
71
Só a professora que mudou quem nos ensinou nesse período foi minha prima, também leiga, filha da minha tia Neide que foi pró no ano anterior, ela morava também lá, na casa de sua mãe. A professora, minha tia emprestada era leiga, como se denominava na época, ela morava na comunidade, sua casa ficava de frente para escola.
Essa questão me fez refletir sobre o cuidado que deve ser dispensado
em relação à escola rural. Sendo os professores moradores da zona urbana há
sempre o risco de quererem urbanizar o campo, sem levar em consideração as
suas especificidades. Sobre isso, buscamos apoio em Alencar (2001):
... não se pode ensinar alguma coisa a alguém, pode-se apenas auxiliar a descobrir por si mesmo.’’ Trata-se de levar o educando a percorrer um caminho que ele já conhece. Caminho que, para a grandeza do ofício pedagógico, É sempre novo, pois vivido e percebido de forma singular por cada aprendiz. (p.111).
Ainda sobre esses distanciamentos, Caldart (2002) nos diz que o povo
tem direito de ser educado no lugar onde vive tem direito a uma educação
pensada desse lugar, e com a sua participação vinculada à sua cultura e às
suas necessidades humanas e sociais. Buscamos também apoio em Veiga
(2002), que discorre sobre essa questão defendendo que um aprendizado que
seja fundamentalmente humano procura apreciar no espelho o que somos e
querermos ser; assumir identidades pessoais e sociais, ter altivez delas, e
enfrentar o desafio do movimento e de sua constante construção e
reconstrução.
Educar é ajudar a construir e fortalecer identidades; esboçar rostos,
formar sujeitos. Isso tem a ver com valores, modo de vida, memória, cultura,
porque uma pessoa que habita o mundo campesino não pode ser rotulada de
inferior apenas por sua pertença ao campo, como nos oferece subsídios sobre
essa problemática o livro Cultura Popular e Educação, (2008, p.35), “uma
pessoa “analfabeta” é uma pessoa “letrada” nos muitos saberes e sabedorias
de sua vida e sua cultura. Sem saber ler as palavras que os eruditos escrevem,
ela pode ser senhor e ou senhora de sabedoria popular rara e preciosa”.
72
A construção dessa narrativa possibilitou a sistematização da trajetória
de ter sido discente da zona rural. Fiz uma viagem ao centro de me, por meio
das lembranças guardadas em minha subjetividade, desmistificando os
sentidos e significados construídos nas relações com todos aqueles que
passaram por minha vida nesse período e deixaram muito de si em minha
pessoa, contribuindo significativamente no processo de tornar-me hoje uma
Pedagoga.
73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Começo a escrita deste texto compartilhando o sentimento de alegria e
surpresa. Confesso que a escrita e análise da minha narrativa (auto) biográfica
foi uma atividade de extrema complexidade e dificuldade, enfrentei momentos
de alegria intensa e ao mesmo tempo angustiante por verificar como o tempo
passou rápido como se fosse água escorrendo entre meus dedos. Revivi
momentos mágicos da minha infância e da minha vida de criança na zona rural,
através das reminiscências de minha trajetória de alfabetização no campo
entrelaçado com a vida pessoal também na zona rural. O ato de narrar tornou-
se um exercício de extrema profundidade introspectiva, dando a impressão em
determinados momentos de estar entrando numa máquina do tempo,
reativando os períodos evocados pelas lembranças, foi como se uma
lembrança trouxesse outra e assim sucessivamente, os fatos acontecidos
outrora iam surgindo e entre risos e lágrimas eu ia escrevendo cada um deles,
tentando detalhar o máximo possível que meus 29 anos me permitissem.
Senti, ao chegar ao término desse trabalho, após minuciosa leitura e
interpretação da narrativa escrita, a presença de inúmeros fios que teceram e
contribuíram significativamente para meu crescimento pessoal e profissional.
Pessoas que passaram por mim, deixando muito de si, fazendo-se presente em
minha construção como pessoa que hoje sou.
Sendo assim, percebi também, a importância de refletir sobre o discente
e docente do campo, numa esfera mais ampla, direcionando o olhar para a
compreensão do contexto profissional do aluno da zona rural partindo da sua
história de vida e dando-lhe a oportunidade de falar sobre si, expondo sua
subjetividade guardada no íntimo, para desse modo poder atribuir significação
aos meus conflitos, anseios, desejos, sonhos medos, lembranças e essência,
uma vez que tal análise possibilitou-me a reflexão do sentido presente no
caminho do ter sido aluna do campo com a pessoa com na qual eu viria ser
74
ressaltando-se as influências, os modelos seguidos, as marca impregnadas na
construção do meu ser como pessoa. Pude refletir com mais propriedade essa
compreensão tecida na análise da narrativa (auto) biográfica, considerando o
percurso realizado em minha trajetória de discente rural e às experiências
vivenciadas no espaço educativo rural.
A escrita e análise da minha história de vida através da narrativa (auto)
biográfica possibilitaram-me a introspecção no campo de minha subjetividade,
permitindo a reconstrução do caminho de formação por meio das
reminiscências do período escolar no campo, dos professores parentes que
passaram por minha vida naqueles primeiros anos e que deixaram suas
contribuições no processo de tornar-me cidadã, marcas essas evidenciadas em
inúmeros momentos da trajetória de formação.
É conveniente destacar, a importância desse trabalho em minha
formação acadêmica, uma vez que a busca pelo conhecimento não acontece
apenas de maneira objetiva e mensurável, se o conhecimento é algo produzido
por pessoas com a competência de produzir sentido, nada mais lógico de que ir
a busca por meio do conhecimento de si.
O objetivo maior consistia em identificar por meio da narrativa (auto)
biográfica, quais as mudanças ocorridas na vida cotidiana e escolar dos
discentes rurais da Escola Riacho dos Tanques, compreendendo o delicado
processo de educação dentro da zona rural levando em consideração o olhar
para si mesmo para compreender a rede tecida que se constitui na trajetória de
formação.
Nesse sentido, compreendo o leque de significados encontrados ao
longo da narrativa permeado de sentido, principalmente no tocante as
experiências vivenciadas em diversos momentos e ambientes, destacando-se
as situações evidenciadas no período de escolarização, tendo como referência
os professores e a comunidade rural onde eu vivi. Essa reflexão deixa evidente
a relação estreita entre o compromisso do educador das escolas rurais com a
comunidade local, um não se desliga do outro estando sempre se entrelaçando
75
no percurso cotidiano, porque só assim, se pode fazer um trabalho
diferenciado, que faça valer apenas, que produza bons frutos no sentido de
beneficiar os discentes do campo valorizando suas ‘’sabenças’’ e delas
partindo. Outro aspecto são as relações criadas entre as professoras e seus
alunos, uma relação que constrói significados encontrados em muitos
momentos dos meus primeiros anos de escolarização no campo, carrego em
me muito de meus ex-professores do campo, tanto que há tantos anos,
exatamente há quinze anos, eu me lembro de cada um deles, mesmo sendo
leigos, cada um deixou sua marca profunda, e eu lembro de cada rosto, de
cada jeito, de cada sorriso ao ensinar-me as primeiras letras do ‘’ABC’’ e a lição
da Cartilha.
Outra compreensão arquitetada no transcorrer dessa pesquisa, é que
não há um fim no processo de formação, as pessoas encontram-se em
constante processo de formação/transformação. Então, é admissível afirmar
que me encontro ainda no processo de tornar-me, acrescentando sentidos e
significados por intervenção dos fios tecidos no emaranhado da vida, correndo
por um caminho transcorrendo novos rumos e experiências autenticando o meu
ser como pessoa e como profissional.
76
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80
ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA
Caro discente, estamos elaborando esta pesquisa para elaboração do trabalho
de conclusão de curso referente ao curso de Pedagogia da Universidade do
estado da Bahia - UNEB. Por esse motivo, gostaríamos de contar com sua
disponibilidade e colaboração para realização a nossa pesquisa. Sua
identidade será mantida em sigilo na apresentação dos resultados.
1º- Como vocês vivem aqui, o que fazem no dia-a-dia?
2º De que vocês se alimentam?
3º-Como se divertem? Que festas acontecem aqui na comunidade?
4º- Como é a escola? De que vocês brincam no recreio?
5º- Como são os professores?
6º- Vocês gostam da escola?
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