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ÍNDIOS E BANDEIRANTES NAS ORIGENS DE SÃO PAULO

Monteiro, John. Negros Da Terra (Full)

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NEGROS DA TERRA,

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  • NDIOS E BANDEIRANTES NASORIGENS DE SO PAULO

  • JOHN MANUEL MONTEIRO

    NEGROS DA TERRA ndios e bandeirantes nas origens

    de So Paulo

    2~ reimpresso

  • Copyright 1994 by John Manuel Monteiro

    Capa:Ettore Bottini

    sobre a litografiaA dana dos ndios puris,

    in Viagem pelo Brasil, 1817-1820de Spix e Martius

    Preparao:Mrcia Copola

    ndice remissivo:Otaclio F. Nunes Jr.

    Reviso:Ana Maria BarbosaCarlos Alberto [nada - ~K)C:..

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Mcnrciro, John Manuel

    Negros da terra : ndios e bandeirantes nas origens deSo Paulo / John Manuel Monteiro. - So Paulo :Companhia das Letras, 1994.

    Bibliografia."I>N 85-7164-394-6

    1. Bandeirantes c sertanistas - Brasil2. Brasil - Histria- Entradas e bandeiras 3. Escravido - Brasil 4. ndios daAmrica do Sul - Brasil - Condies sociais 5. So Paulo(Estado) - Histria 6. Trabalho indgena 1. Ttulo.

    94-2280CDD-980.5

    ndices para catlogo sistemtico:I. Brasil : ndios : Escravido : Poltica indigcnista portuguesa :

    Histria 980.5

    2. ndios: Escravido : Poltica indtgenista portuguesa : Brasil :Histria 980.5

    1995

    Todos os direitos desta edio reservados EDITORA SCHWARCZ LTDA.

    Rua Tupi, 52201233-000 - So Paulo - sp

    Telefone: (011) 826-1822Fax: (011) 826-5523

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    SUMRIO

    Apresentao e agradecimentos................................ 7

    1. A transformao de So Paulo indgena, sculo XVI.... 17

    Os Tupi na Era da Conquista.................................. 18Contato, alianas e conflitos......................... 29Jesutas e colonos na ocupao do Planalto 36O contraponto jesutico 42Colonos na ofensiva.............................................. 51Concluso............................................................ 55

    2. O sertanismo e a criao de uma fora de trabalho..... 57

    A riqueza do serto............................................... 58Os portugueses de So Paulo e a destruio do Guair 68As grandes bandeiras e a economia paulista............... 76A reorganizao do apresamento.............................. 79Um remdio para a pobreza? . 85Novos rumos 91

    3. O celeiro do Brasil 99

    Um espao para o desenvolvimento.......................... 100Caminhos da agricultura paulista 113

    4. A administrao particular. 129

    A elaborao de uma mentalidade escravista 130O uso e costume da terra 136Colonos e jesutas: a batalha decisiva 141Escravos ou administrados? 147

    5. Senhores e ndios 154Da sobrevivncia vivncia..................................... 154

  • Caminhos para a integrao 159A busca de um espao prprio 170O conflito inevitvel 175O sentido ambguo das fugas 181De ndio a escravo: comentrios finais 186

    APRESENTAOE AGRADECIMENTOS

    6. As origens da pobreza rural 188

    So Paulo rural, 1679: distribuio da riqueza............ 189A concentrao e a consolidao da riqueza............... 195A difuso da pobreza rural 202

    Em 1651, aps uma longa marcha pelos sertes, alguns rema-nescentes da grande expedio do mestre-de-campo Antonio Rapo-so Tavares chegaram a Belm do Par, to castigados por doenas,fome e ataques de ndios que, segundo o padre Antonio Vieira, "osque restavam mais pareciam desenterrados que vivos" . No entanto,acrescentava o mesmo padre, a viagem "verdadeiramente foi umadas mais notveis que at hoje se tem feito no mundo": durante trsanos e dois meses os integrantes da tropa haviam realizado um "gran-de rodeio" pelo interior do continente, embora nem mesmo soubes-sem por onde andavam. Perdidos na imensido da Amrica, s des-cobriram que haviam descido o grande rio Amazonas quando suasprecrias e improvisadas embarcaes alcanaram o entreposto mi-litar do Gurup, na foz do Xingu, sendo disto informados pelos es-tarrecidos soldados do forte.

    No entanto, o que mais causou espanto em Vieira foi a aparen-te contradio entre to desmedidos esforos e seus objetivos pro-saicos, que tinham levado estes portugueses a atravessar tantas l-guas e sofrer tantas privaes para capturar a mo-de-obra que jul-gavam indispensvel para o seu modo de vida. Afinal de contas, omotivo singular que havia incentivado o empreendimento era o dearrancar "ou por fora ou por vontade [os ndios] de suas terras eos trazer s de So Paulo e a se servirem deles como costumam".

    De certa forma, a expedio de Raposo Tavares representa al-go emblemtico da expanso seiscentista na Amrica portuguesa.Apesar de muitos historiadores, seguindo Jaime Corteso, ressalta-rem a dimenso geopoltica do empreendimento, esta e tantas ou-tras expedies de apresamento oriundas de So Paulo pouco tinhama ver com a expanso territorial. Muito pelo contrrio: ao invs decontriburem diretamente para a ocupao do interior pelo coloni-zador, as incurses paulistas - bem como as tropas de resgate daregio amaznica e os "descimentos" dos missionrios em ambas

    7. Os anos finais da escravido indgena....................... 209

    Caminhos da liberdade: alforrias 210Caminhos da liberdade: a justia 215Transio para a escravido negra? 220

    Notas 227Referncias bibliogrficas 267Mapas e tabelas.................................................... 289ndice remissivo 291

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  • as regies - concorreram antes para a devastao de inmeros po-vos nativos. Parafraseando Capistrano de Abreu, a ao destes "co-lonizadores" foi, na realidade, tragicamente despovoadora.

    Na poca, os paulistas ficaram conhecidos na Amrica e na Eu-ropa como grandes sertanistas, sem iguais no seu conhecimento dosdilatados sertes, na sua perseverana e coragem. Posteriormente,alguns historiadores ergueram estes sertanistas - batizando-os debandeirantes - a propores picas, reconhecendo particularmenteseu papel na expanso geogrfica da Amrica portuguesa. Mas, seas bandeiras paulistas passaram a ocupar um lugar de destaque nahistoriografia brasileira, a sociedade que se constituiu a partir des-tes empreendimentos ainda permanece, na verdade, pouco conhecida.

    Com certeza, atrs das faanhas destes intrpidos desbravado-res esconde-se a envolvente histria dos milhares de ndios - os ne-gros da terra - aprisionados pelos sertanistas de So Paulo. Assim,grande parte dos estudos tem se concentrado nas peripcias dos ban-deirantes, sendo que o "ciclo de caa ao ndio" teria constitudo ape-nas uma fase preliminar e mesmo de importncia menor das ativi-dades bandeirantes, na qual os paulistas teriam fornecido escravosndios para os engenhos do Nordeste aucareiro. Ao mesmo tempo,a imensa bibliografia sobre a formao da sociedade e economia co-loniais tem dedicado pouca ateno ao papel do trabalho indgena.Apesar de algumas contribuies recentes terem lanado luz sobreeste tema negligenciado, as principais tendncias no estudo da Co-lnia permanecem subordinadas a um quadro terico no qual a or-ganizao do trabalho se atm lgica da expanso do capitalismocomercial. Nesta perspectiva, o ndio - quando mencionado - de-sempenha um papel apenas secundrio e efmero, ocupando a ante-sala de um edifcio maior onde reside a escravido africana.

    Negros da terra retoma a j trilhada histria seiscentista de SoPaulo buscando redimensionar todo o contexto histrico do fen-meno bandeirante. O ponto de partida a simples constatao deque as freqentes incurses ao interior, em vez de abastecerem umsuposto mercado de escravos ndios no litoral, alimentavam uma cres-cente fora de trabalho indgena no planalto, possibilitando a pro-duo e o transporte de excedentes agrcolas; assim, articulava-se aregio da chamada Serra Acima a outras partes da colnia portu-guesa e mesmo ao circuito mercantil do Atlntico meridional. Po-rm, deve-se ressaltar que a dimenso e o significado do trabalho

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    indgena em So Paulo no se limitavam mera lgica comercial. Naverdade, praticamente todos os aspectos da formao da sociedade eeconomia paulista durante seus primeiros dois sculos confundem-sede modo essencial com os processos de integrao, explorao e des-truico de populaes indgenas trazidas de outras regies.

    Nesta nova interpretao crtica da histria social de So Pauloentre os sculos XVI e XVIII, as populaes nativas ocupam um pa-pel central. Ao enfocar as origens, desenvolvimento e declnio da es-cravido indgena, os captulos que se seguem procuram demonstrarque as principais estruturas da sociedade colonial na regio surgi-ram de um processo histrico especfico, no qual diversas e distintassociedades indgenas ficaram subordinadas a uma estrutura elabo-rada visando controlar e explorar a mo-de-obra indgena.

    No seu conjunto, apesar de focalizar mais especificamente a es-trutura e dinmica da escravido indgena, este livro busca dialogarcom trs problemas centrais da histria do Brasil: o papel do ndiona histria social e econmica da Colnia; o pujante mito do ban-deirante; e a importncia das economias no exportadoras para aformao do pas. Longe de resolver estas questes, o material aquiapresentado antes visa contribuir com novos elementos para uma dis-cusso mais ampla e crtica da dinmica interna que se desenvolvianos interstcios de uma economia e sociedade voltadas prioritaria-mente para o Atlntico.

    Este livro nasceu de uma tese de doutorado defendida na Uni-versidade de Chicago em 1985. Embora se preserve grande parte domaterial original da tese, a mesma foi ampliada e enriquecida du-rante os ltimos seis anos em funo de pesquisas adicionais e emdeferncia s crticas recebidas. Muito devo a John Coatsworth, Bent-ley Duncan, Friedrich Katz e Stuart Schwartz, integrantes da banca,por seus comentrios e sugestes precisas, algumas das quais foramintegradas a esta verso.

    Agradeo s seguintes instituies, que financiaram pesquisasem arquivos portugueses, italianos e brasileiros: Center for LatinAmerican Studies (Universidade de Chicago), Social Science ResearchCouncil, FulbrightlHayes Commission e CNPq. Tambm contei como apoio institucional do Cebrap, que generosamente me acolheu em1991-2 como pesquisador visitante, permitindo a reviso final destelivro dentro de um rico ambiente interdisci plinar, privilgio raro pa-ra quem se acostumou com a austeridade intelectual da universidade.

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  • Trechos deste livro apareceram em diversas publicaes espe-cializadas: Slavery and Abolition, Estudos Econmicos, Histria(UNESP), Revista de Antropologia, Ler Histria, Cincias Sociais Ho-je e Revista de Histria. Sou grato aos pareceristas annimos destasrevistas por suas importantes crticas.

    Inmeras pessoas ofereceram prestimosa colaborao em diver-sas etapas desta trajetria. Durante minhas estadias em Portugal,contei com a valiosa assistncia e companhia intelectual de AlbinoMarques, L. M. Andrade, Patrick Menget, Bill Donovan e Ivan Al-ves Filho, sendo que estes dois ltimos tambm me acolheram noRio de Janeiro. Entre os colegas americanos, sou grato a Martin Gon-zalez, Cliff We1ch, Joel Wolfe, Herb Klein, Alida Metcalf, Mary Ka-rasch, Muriel Nazzari e Kathy Higgins, que leram e comentaram al-gumas partes do trabalho. Meus pais, Manuel e Madelyn Monteiro,bem como meu irmo Willy, ofereceram vrios tipos de apoio emmuitas ocasies.

    Em So Paulo, o grupo interdisciplinar ligado ao Ncleo de His-tria Indgena e do Indigenismo tem proporcionado um ambientefecundo para a discusso deste livro. Agradeo particularmente aMarta Rosa Amoroso, Beatriz Perrone-Moiss, Ndia Farage, Ro-bin Wright, Miguel Menndez (j falecido), Paulo Santilli, Domi-nique Gallois e Manuela Carneiro da Cunha. Dentre os colegas daUNESP, devo reconhecer o apoio e comentrios de Luiz Koshiba, So-nia Irene do Carmo, Ana Maria Martinez Corra, Manoel LeIoBellotto, Teresa Maria Malatian, Ktia Abud, Ida Lewkowicz, JacyBarletta e Anglica Resende. Pela leitura de verses anteriores destetrabalho, sou especialmente grato a Francisco "Pancho" Moscoso,Carlos Eugnio Marcondes de Moura, Jacob Gorender, Andr Ama-ral de Toral, Luiz Felipe de Alencastro e Lilia Moritz Schwarcz, todosadiantando sugestes enriquecedoras. Contei ainda com o estmulode Horcio Gutirrez, Jos Roberto do Amaral Lapa, Bob Slenes,Lcia Helena Rangel, Slvia Helena Simes Borelli, Mara Luz, Ma-ria Odila Leite da Silva Dias, Luiz e Dida Toledo Machado, e, so-bretudo, Maria Cristina Cortez Wissenbach.

    Finalmente, meu maior dbito com Maria Helena P. T. Ma-chado, por seu companheirismo e indispensvel apoio intelectual, semruim do njuda que me prestou na traduo deste livro. lvaro e Tho-IIllISt nossos filhos, 1II111bm contriburam, pois sem eles o trabalhotl'tlft Nldo 111'111 1!IIIIsI'I\p/do, porm mais pobre.

    NEGROS DA TERRA

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    ESQUEMA GERAL DASEXPEDrES DE APRESAMENTO,

    1550-1720

    Expedies de resgatee apresarnento dos Guarani,1550-1635 (por mar)

    Expedies de resgatee apresamento dos Guarani,1585-1641 (por terra)

    Expedies de apresamentode outros grupos,sobretudo ps-l640

    Expedies de mercenriospau listas nas Guerrasdo Nordeste, 1658-1720

    Rota aproximada da expediode Raposo Tavares, 1648-51

    Rota da expediode Sebastio Pais de Barros,1671-1674

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    Recife

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    N.S. ~da Candelria

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    tSAo Joo de Atibaia

    (e. 1669)-.N. S. t

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    N.S~da Ponte deSorocaba(1661)

    N. S.do Desterro ide Jundia

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    do Desterroou Santa Ins

    (e. 162l)

    N.S. Itil! euerrolI' IIIM1) \~/buari

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    SERR~ DO JAp/N.S. t

    de Belm(e. 1673)

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    SERR~DO

    Rio ./lIqueri

    MAR

    REGIO DE SO PAULONO FINAL DO SCUW XVIIVilas ~Aldeias (Capelas rurais tData de fundao(ou primeira menona documentao) ~- (1658)

    t N. s.N. s. t da Conceio

    da Conceio de de VuturunaAraariguama (1687)

    (1697)

    ~.Santana

    de Parnafba(162l)

    t N. S.da Conceiodo Tapeti(1660)

    Santana ide Mogi das Cruzes

    (1611)

    So Roque t(e.16l3)

    Santo Antoniot (1681)

    12 18 24 30km

    N.s.6~ da Graac' de Carapicuiba') (16Il)

    '0\,0

    N.S. 6do Rosrio'de Embu(1624)

    N.S. tde Montserrate

    (e. 1662) Santo Amaro(e. 1600) t

    N.S.dos Prazeresde ltapecerica6

    da Serra(sc.XVII) ~So Paulo

    (lll4/ll6O)

  • 1 A TRANSFORMAO

    DE SO PAUW INDGENA Sculo XVI

    No dia de Natal de 1562, Martim Afonso Tibiri perdeu sua ltima batalha, sucumbindo a uma das doenas infecciosas que gras-savam entre os habitantes indgenas do Brasil na poca. De certo mo-do, a vida e a morte deste importante guerreiro e chefe tupiniquim espelharam a prpria marcha da expanso europia na capitania de So Vicente no sculo XVI. Muitos anos antes, ele j havia incorpo-rado a seu grupo - como genro - o primeiro branco e assistira rpida ascenso deste como influente lder de ndios e portugueses. Na dcada de 1530, Tibiri consentira na formao de uma aliana com os estranhos, certamente tendo em vista a vantagem que esta lhe proporcionaria sobre seus inimigos tradicionais. Com a chegada dos primeiros jesuitas, no meio do sculo, autorizara a edificao de uma capela rstica dentro de sua aldeia e permitira que os padres convertessem seu povo, ele prprio sendo o primeiro catequizado. Os jesutas, por sua vez, expressaram sua reverncia por este ndio considerado exemplar sepultando-o no interior da modesta igreja de So Paulo de Piratininga.

    Embora ressaltem seu papel colaborativo no estabelecimento do domnio europeu na regio, os parcos dados biogrficos existentes sobre Tibiri podem ilustrar tambm uma outra perspectiva. De fato, se as aes de Tibiri ressentiam-se de uma forte influncia das de-mandas dos europeus, importante lentbrar que responderam antes lgica e dinmica interna da organizao social indgena. Alm disso, mesmo figurando como protagonista na formao das rela-es luso-indgenas na regio, Tibiri sofreu, ao lado dos demais integrantes da sua sociedade, as profundas crises e transformaes desencadeadas pela expanso europia. Aquilo que parecia uma alin-a inofensiva e at salutar logo mostrou-se muito nocivo para os ndios. As mudanas nos padres de guerra e as graves crises de au-toridade, pontuadas pelos surtos de contgios, conspiraram para de-bilitar, desorganizar e, finalmente, destruir os Tupiniquim.

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  • Basicamente ignorada pela historiografia vigente, a dinmica in-terna do Brasil indgena teve suficiente profundidade e densidade his-trica para influenciar de maneira significativa a formao da Co-lnia. A importncia desta dinmica no residia apenas nas confi-guraes econmicas e sociais que ela imprimiu nas sociedades nati-vas, como tambm nas maneiras pelas quis foi integrada mem-ria histrica dos povos aborgines. Neste sentido, muitas vezes foi a conscincia de um passado indgena que forneceu as bases para uma ao perante a situao historicamente nova da conquista. Fortes expresses desta tendncia surgiram, ao longo do sculo XVI, nos mo-vimentos sociais nativos, seja nas manifestaes messinicas, seja nos movimentos de resistncia armada, s vezes englobando a participa-o de diversas aldeias, como no caso da Confederao dos Tamoios.

    Levando em considerao a dinmica interna dos grupos tupi e o choque desta com o processo de expanso portuguesa, pretende-se, neste captulo, avaliar a histria das relaes luso-indgenas no Brasil meridional do sculo XVI. Durante este perodo, as aes e rea-es indgenas foram contrrias s expectativas portuguesas e, como tais, pesaram de modo significativo na elaborao de uma poltica lusitana de dominao na regio. Os portugueses, em suas relaes com os ndios, buscaram impor diversas formas de organizao do trabalho e, em contrapartida, defrontaram-se com atitudes incons-tantes que oscilaram entre a colaborao e a resistncia. No entan-to, das diversas formas de explorao ensaiadas, nenhuma delas re-sultou satisfatria e, igualmente, todas tiveram um impacto negativo sobre as sociedades indgenas, contribuindo para a desorganizao social e o declnio demogrfico dos povos nativos. Como conseqn-cia, os colonizadores voltaram-se cada vez mais para a opo do tra-balho forado na tentativa de construir uma base para a economia e sociedade colonial. Neste sentido, podem-se situar as origens da escravido no Brasil - tanto indgena quanto africana - nesta fase inicial das relaes luso-indgenas.

    OS TUPI NA ERA DA CONQUISTA

    No que consistiria esta "dinmica interna" das sociedades tu-pi? Sem fazer justia enorme complexidade das estruturas sociais do Brasil quinhentista, podemos destacar, de forma sinttica, alguns

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    elementos constitutivos dessa dinmica: o processo de fragmentao e reconstituio dos grupos locais, os papis de liderana desempe-nhados pelos chefes e xams e, finalmente, a importncia fundamen-tal do complexo guerreiro na afirmao da identidade histrica des-tes grupos. No seu conjunto, estes aspectos dizem respeito particu-larmente a pontos de inflexo nas relaes que se desenvolveram, posteriormente, com os europeus. Neste sentido, eles ajudam a ex-plicar no apenas as bases histricas sobre as quais os padres de resistncia e adaptao indgenas repousavam, como tambm os meios pelos quais a dominao portuguesa foi possvel.

    Ao chegarem ao Brasil, os invasores europeus logo descobriram que grande parte do litoral bem como as partes do interior s quais se tinha mais acesso encontravam-se ocupadas por sociedades que compartilhavam certas caractersticas bsicas, comuns chamada cul-tura tupi-guarani. Contudo, a despeito das aparncias de homogenei-dade, qualquer tentativa de sntese da situao etnogrfica do Brasil quinhentista esbarra imediatamente em dois problemas. Em primeiro lugar, a sociedade tupi permanecia radicalmente segmentada, sendo que as relaes entre segmentos ou mesmo entre unidades locais fre-qentemente resumiam-se a aes blicas. Referindo-se ao relaciona-mento entre grupos tupinamb e tupiniquim do Brasil meridional, Gabriel Soares de Sousa comentou: "E ainda que so contrrios os tupiniquins dos tupinambs, no h entre eles na lngua e costumes mais diferena da que tm os moradores de Lisboa dos da Beira" .1 Em segundo, grande parte do Brasil tambm era habitada por socie-dades no tupi, representando dezenas de famlias lingsticas dis-tintas. 2

    Para enfrentar estes problemas, os europeus do sculo XVI pro-curaram reduzir o vasto panorama etnogrfico a duas categorias genricas: Tupi e Tapuia. A parte tupi desta dicotomia englobava basicamente as sociedades litorneas em contato direto com os por-tugueses, franceses e castelhanos, desde o Maranho a Santa Catari-na, incluindo os Guarani. Se verdade que estes grupos exibiam se-melhanas nas suas tradies e padres culturais, o mesmo no se pode afirmar dos chamados Tapuia. De fato, a denominao "Ta-puia" aplicava-se freqentemente a grupos que - alm de diferen-ciados socialmente do padro tupi - eram pouco conhecidos dos europeus. No Tratado descritivo, Gabriel Soares de Sousa confessa-va a precariedade do estado de conhecimento: "Como os tapuias

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    g17reft102Text-BoxGabriel soares de souza

  • so tantos e esto to divididos em bandos, costumes e linguagem, para se poder dizer dles muito, era necessrio de propsito e deva-gar tomar grandes informaes de suas divises, vida e costumes; mas, pois ao presente no possvel...".3 Na mesma poca, o je-suta Ferno Cardim arrolou, com certa facilidade, 76 grupos no tupi sob a classificao "Tapuia". 4 Ao que parece, a denominao representava pouco mais que a anttese da sociedade tupi, sendo, por-tanto, projetada em termos negativos.

    De qualquer modo, o surgimento do binmio Tupi-Tapuia es-tava bem fundamentado, na medida em que identificava trajetrias histricas diferentes e formas de organizao social distintas, fato este destacado em virtualmente todas as fontes quinhentistas. s Es-boando suas primeiras impresses a respeito dos ndios do Brasil, o padre Manuel da Nbrega retratou os Tapuia em termos vagos: "H nestas terras uma gerao que no vive em casas, seno nos morros e tm guerra com todos e de todos so ,temidos" .6 J Ga-briel Soares de Sousa, ao descrever os Guaian, um povo j que ha-bitava a regio de So Paulo, destacava em maiores detalhes o apa-rente atraso destes ndios em relao aos Tupi:

    gente de pouco trabalho, muito molar, no usam entre si lavoura, vivem de caa que matam e peixe que tomam nos rios, e das frutas sil-vestres que o mato d; so grandes flecheiros e inimigos de carne hu-mana [ ... ] No vive este gentio em aldeias com casas arrumadas, como os tamoios seus vizinhos, mas em covas pelo campo, debaixo do cho, onde tm fogo de noite e de dia e fazem suas camas de rama e peles de alimrias que matam. 7

    Com tais imagens superficiais e incompletas contrastavam as des-cries mais elaboradas das sociedades tupi. Como veremos em maiores detalhes, estas diferenas - reais ou imaginrias - desem-penhariam um papel de relevo nas relaes euroindgenas que se desenrolariam depois da chegada dos brancos. s vezes conflituo-sa, s vezes pacfica, a convivncia entre formas radicalmente diver-gentes de organizao social manifestava-se em todas as partes do Brasil no sculo XVI. A regio englobada pela capitania de So Vicen-te no figurava como exceo, embora se tenha suscitado uma certa controvrsia em torno da identificao dos habitantes originais do local onde foi erguida a vila de So Paulo. Ali conviviam Tupiniquim e Guaian, estes J e aqueles Tupi, assim enquadrando-se rigorosa-

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    mente no esquema dicotmico Tupi-Tapuia. J invocamos as obser-vaes de Gabriel Soares de Sousa a respeito dos Guaian; podemos acrescentar os comentrios de um dos observadores mais imediatos da situao, Hans Staden. Ele diferenciava claramente os Guaian dos Tupiniquim, descrevendo-os como habitantes da serra, que "no tm domiclio fixo, como os outros selvcolas", e destacando a caa e coleta como sua base de sustentao.8

    De fato, a maioria dos relatos quinhentistas deixam claro que os Tupiniquim constituam os principais habitantes da capitania de So Vicente, pelo menos at a ltima dcada do sculo.9 Embora presentes no litoral, os Tupiniquim - "cuja regio se estende em oitenta milhas para o interior da terra e quarenta ao longo da cos-ta", de acordo com Staden -, 10 mantinham uma importante con-centrao de aldeias na Serra Acima, em torno do local que seria a futura vila de So Paulo.

    Embora as primeiras fontes identifiquem, atravs das denomi-naes tnicas, aquilo que se pode considerar como conjuntos tribais, na verdade a aldeia representava a principal unidade da organizao social dos grupos tupi. Mesmo assim, diversas comunidades podiam manter relaes bastante estreitas, amarradas em redes de parentes-co ou de aliana, sem que estas relaes, porm, se caracterizassem enquanto unidades polticas ou territoriais mais expressivas. 11 De fa-to, a unio entre unidades locais sofria constantes mutaes decor-rentes de circunstncias histricas, uma vez que as freqentes mu-danas na composio de alianas influam no carter e durao de laos multicomunitrios. Esta mutabilidade escapou ateno dos cronistas, que descreviam grupos de aldeias como se formassem con-juntos polticos mais abrangentes e fixos.

    Quanto ao nmero e tamanho das aldeias tupiniquim existen-tes durante o sculo XVI, os relatos dos contemporneos, infelizmen-te, pouco nos dizem. 12 Tudo indica, no entanto, que o principal as-sentamento tupiniquim na poca da chegada dos europeus era o do chefe Tibiri, certamente o mais influente lder indgena da regio. Nos anos de 1550, esta aldeia - conhecida pelos nomes de lnha-puambuu e, eventualmente, Piratininga - 13 passou a abrigar a ca-pela e o precrio Colgio de So Paulo de Piratininga, instalados pelos inacianos em 25 de janeiro de 1554. Uma segunda aldeia im-portante no perodo era a de Jerubatuba, sob a chefia de Cauibi, supostamente irmo de Tibiri. Esta ltima localizava-se em torno

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  • de doze quilmetros ao sul de lnhapuambuu, prximo ao futuro bairro de Santo Amaro. Em 1553, o aventureiro alemo Ulrich Schmidel, tendo passado alguns dias na aldeia, descreveu-a como "um lugar muito grande" .14 Finalmente, a terceira aldeia que figu-rava com certo relevo nos relatos quinhentistas, Urura, tambm tinha como chefe um irmo de Tibiri, chamado Piquerobi. Localizado a seis quilmetros ao leste de Inhapuambuu, este assentamento, mais tarde, tornou-se a base do aldeamento jesutico de So Miguel.

    Tambm dispomos de poucas informaes sobre o tamanho des-sas unidades pr-coloniais, mas, pelo que se pode apurar nos relatos, as aldeias tupiniquim possivelmente eram menores que sua contra-partida tupinamb no Rio de Janeiro, Bahia ou Maranho, confor-me as descries detalhadas dos cronistas e missionrios franceses e portugueses. Ao referir-se ao interior da capitania de So Vicente, o padre Diogo Jcome mencionou a existncia de algumas aldeias com quatrocentas almas cada.15 J o irmo Anchieta afirmou que cada aldeia ''consta s de seis ou sete casas", o que para Hans Sta-den seria uma "pequena aldeia" .16 Tais observaes contrastam com a populao freqentemente atribuda s aldeias tupinamb, es-timada em torno de oitocentos a mil habitantes, embora alguns cro-nistas mais empolgados tenham chegado aos milhares. 17

    De qualquer modo, o que se sabe de certo que estas aldeias no constituam povoados fixos e permanentes, pois, aps alguns anos, os grupos tendiam a mudar-se para um novo local. Na regio planltica, os primeiros jesutas alegavam que tais mudanas ocor-riam a cada trs ou quatro anos, enquanto outros relatos sugerem um espaamento maior, de doze ou mesmo vinte anos. J no pero-do inicial de influncia jesutica, no ano de 1557, tanto Inhapuam-buu quanto Jerubatuba viviam um processo de fragmentao. "O que pior", comentou o padre Lus da Gr, "no vo juntos." 18

    Diversos motivos podiam contribuir para o deslocamento de uma aldeia: o desgaste do solo, a diminuio das reservas de caa, a atra-o de um lder carismtico, uma disputa interna entre faces ou a morte de um chefe. Contudo, qualquer que fosse a razo, a repeti-da criao de novas unidades de povoamento constitua evento im-portante, envolvendo a reproduo das bases principais da organiza-o social indgena. Neste sentido, importante reconhecer o papel fundamental desempenhado pelo chefe na composio original e na proliferao de cada aldeia, pois a identidade histrica e poltica da mesma associava-se de forma intrnseca ao lder da comunidade. 19

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    A emergncia de unidades independentes de povoamento esta-va ligada capacidade do chefe em mobilizar parentes e seguidores. Apesar de a principal fonte de autoridade do chefe provir do seu pa-pel de liderana em situaes blicas, suas responsabilidades eram, tambm, atinentes organizao da vida material e social. De acor-do com Gabriel Soares de Sousa, aps determinar o deslocamento de uma faco, o chefe escolhia o local da nova aldeia, supervisio-nava a construo das malocas e selecionava o terreno para a horti-cultura. Ele no apenas trabalhava ao lado dos seus seguidores, co-mo tambm fornecia o exemplo: "quando faz [as roas] com ajuda de seus parentes e chegados, ele lana primeiro mo do servio que todos". 20 Este ltimo detalhe revelador, pois, a despeito de sua maior responsabilidade e prestgio, o chefe permanecia igual a seus seguidores na execuo das tarefas produtivas. De fato, a liderana poltica raramente correspondia a qualquer privilgio econmico ou posio social diferenciada.21

    Da mesma forma, os limites da autoridade dos chefes sempre permaneciam sujeitos ao consentimento de seus seguidores. Ao des-crever a liderana nas comunidades tupinamb e tupiniquim, Sta-den comentou: "Cada um obedece ao principal da sua cabana. O que o principal ordena, feito, no fora ou por medo, porm de boa vontade". 22 Os primeiros jesutas, por sua vez, lamentavam com freqncia a ausncia de um "rei" entre os Tupi, reconhecen-do que a fragmentao poliica servia de obstculo ao seu trabalho. Escrevendo de So Vicente, Pedro Correia relatou que a converso dos ndios havia de ser uma tarefa muito difcil "porque no tm Rei. antes em cada Aldeia e casa h seu Principal" .23

    . Esta ltima observao reflete a dificuldade dos europeus em identificar as fontes de autoridade poltica entre as sociedades indge-nas. Utilizando a designao de principal, os primeiros relatos proje-tavam trs nveis distintos de liderana poltica. Este termo aplicava-se aos chefes das malocas, das aldeias e s lideranas no nvel supra-al-deia. Esta ltima categoria no aparece com muita freqncia, sendo notada, geralmente, apenas no contexto da guerra, quando grupos distintos aliavam-se perante um inimigo comum. Assim, em diver-sas ocasies, o chefe Tibiri dos Tupiniquim ou o Cunhambebe dos Tupinamb comandaram guerreiros de diversas aldeias para a bata-lha, cada qual adquirindo uma vasta fama de lder valente e respei-tado. 24

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    g17reft102Text-BoxDeslocamentos

    g17reft102Text-BoxPapel dos chefes

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  • Embora, efetivamente, a principal fonte de autoridade repou-sasse na habilidade do chefe em mobilizar guerreiros, este possua outros atributos significativos. Nota-se, como exemplo, a virtude ora-tria, que figurava de modo importante na formao de um grande lder indigeJ;la. Anchieta, sendo ele prprio um exmio orador, rela-tou com admirao a fala de Tibiri na ocasio da morte do jesuta Pedro Correia.25 De acordo com Ferno Cardim, todos os dias, an-tes do amanhecer, o chefe "por espao de meia hora lhes prega, e admoesta que vo trabalhar como fizero seus antepassados, e destribue-lhes o tempo, dizendo-lhes as cousas que ho de fazer". 26

    Da mesma forma, Nbrega, escrevendo de So Vicente, forneceu algo do contedo destes discursos: "cada dia antes da manh de uma parte alta manda a cada casa o que h de fazer aquele dia, e lhes diz que ho de viver em comunidade" .27

    Alm de demonstrar o papel organizativo do chefe, os comen-trios de Cardim e de Nbrega indicam outro atributo no militar desta figura: o de guardio das tradies, sempre propondo que as aes futuras fossem executadas em termos daquilo que fora esta-belecido no passado. Sem dvida, a preservao das tradies foi elemento fundamental na definio da identidade coletiva, bem co-mo na organizao da vida material e social. O chefe tupinamb Ja-pi-au, ao ceder s presses francesas para enadicar o sacrifcio humano, explicou claramente como a tradio ditava a prtica. Na ocasio, tendo sido sua vontade vetada no conselho tribal, Japi-au comentou:

    Bem sei que sse costume ruim e contrrio natureza, e por isso mui-tas vzes procurei extingui-lo. Mas todos ns, velhos, somos quase iguais e com idnticos poderes; e se acontece um de ns.,ipresentar uma pro-posta, embora seja aprovada por maioria de votos, basta uma opinio desfavorvel para faz-la cair; basta algum dizer que o costume an-tigo e que no convm modificar o que aprendemos dos nossos pais.28

    Este mesmo papel - guardio das tradies - era comparti-lhado com os xams, ou pajs, que s vezes acumulavam, tambm, autoridade poltica.29 De acordo com Evreux, na sua descrio dos Tupinamb do Maranho, os xams "ocupam entre os selvagens a posio de mediadores entre os espritos e o restR do povo". 3 Com efeito, enquanto intermedirios entre o sobrenatural e o cotidiano, os xams desempenhavam diversas funes essenciais, tais como o

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    curandeirismo, a interpretao de sonhos e a proteo da sociedade local contra ameaas externas, entre elas espritos malvolos. Sua au-toridade derivava principalmente do conhecimento esotrico que pos-suam, resultado de longos anos de aprendizado com xams expe-rientes. Referindo-se aos Tupiniquim, Nbrega escreveu: "h entre eles alguns que se fazem santos e lhes prometem sade e vitria con-tra seus inimigos". 31 A importncia e prestgio dos pajs tambm foram enfatizados pelo chefe tupinamb Porta Grande, que contou aos jesutas que estes "lhes davam as coisas boas, scilicet, manti-mentos" .32

    Alm dos pajs, residentes nas aldeias, a vida espiritual dos po-vos tupi-guarani era, igualmente, marcada pela eventual presena de profetas ambulantes, chamados carabas. Apesar de estranhos co-munidade, os carabas exerciam grande influncia sobre os habitan-tes das aldeias. Segundo Nbrega, "de certos em certos anos vm uns feiticeiros de distantes terras, fingindo trazer santidade; e no tem-po de sua vinda lhes mandam limpar os caminhos e os recebem com danas e festas segundo seu costume" .33

    Exmios oradores, estes profetas transitavam de aldeia em al-deia, deixando uma mensagem messinica entre os ndios. Nbrega ofereceu alguma indicao de seu recado apocalptico:

    O feiticeiro lhes diz que no cuidem de trabalhar, nem vo roa, que o mantimento por si crescer, e que nunca lhes faltar que comer, e que por si vir a casa; e que os paus agudos se iro cavar, e as flechas se iro ao mato por caa para seu senhor, e que ho de matar muitos de seus contrrios, e cativaro muitos para seus comeres.34

    O discurso proftico convencia aldeias inteiras a embarcarem em longas viagens em busca de um paraso terrestre, uma "terra sem mal", onde a abundncia, a eterna juventude e a tomada de cati-vos predominavam. Embora muitos autores busquem explicar es-tas migraes ora como reaes messinicas conquista ora como manifestaes do conflito inerente entre tipos de autoridade (entre o principal e o caraba), importante reconhecer a dimenso histrica das mesmas.35 De acordo com Carlos Fausto, alm da orientao espacial dos movimentos, redundando em deslocamentos geogrfi-cos (geralmente para o Oriente), a busca da "terra sem mal" tambm se assenta num plano temporal. Terra dos valentes ancestrais do passado, tambm figurava como o futuro destino dos bravos guerrei-

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    g17reft102Text-BoxCapacidade de orador incrveis dos chefes

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    g17reft102Text-BoxPosio e caractersticas do XAMS

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    g17reft102Text-BoxCaraibas

  • rosque matassem e comessem muitos inimigos.36 Com efeito, o dis-curso do profeta dialogava com elementos fundamentais, os quais situavam os Tupi numa dimenso histrica: movimentos espaciais, liderana poltica, xamanismo e, sobretudo, guerra e sacrifcio de cativos.

    Entre os Tupiniquim, a liderana poltica e espiritual atingia sua maior expresso no contexto da guerra. Nestas ocasies, os chefes preparavam os planos de batalha e comandavam os guerreiros; os xams, atravs da interpretao de sonhos e outros signos, determi-navam quando os ataques seriam mais proveitosos; e os caratbas exal-tavam o ideal guerreiro em seus discursos. Na sua longa descrio da organizao social indgena, Soares de Sousa resumiu bem a po-sio central da guerra na sociedade tupi: "Como os tupinamb so muito belicosos, todos os seus fundamentos so como faro guerra aos seus contrrios" .37

    Os primeiros relatos coloniais, apesar das diferenas que apre-sentam, destacam trs elementos crticos que tiveram importncia cru-cial nas relaes intertribais e, posteriormente, euroindgenas. Estes seriam: a trama da vingana, as prticas de sacrifcio e antropofa-gia, e a complexa configurao de alianas e animosidades entre al-deias.

    Na regio do planalto, os Tupiniquim e seus inimigos - parti-cularmente os Tupinamb do litoral - proporcionaram belos exem-plos de guerra intestina. Ao longo do sculo XVI, os Tupiniquim e Tupinamb engajaram-se em freqentes escaramuas, num intermi-nvel ciclo de conflitos armados. Estes conflitos, porm, atingiram propores gigantescas em meados do sculo, em decorrncia das implicaes coloniais da chamada Guerra dos Tamoios. Testemu-nhas oculares relatavam batalhas envolvendo centenas e at milha-res de combatentes, na terra e no mar. Na sua descrio dos Tupi-namb, Pero de Magalhes Gandavo contou: "e assim parece cousa estranha ver dous, tres mil homens ns duma parte e doutra com grandes assobios e gritos frechando huns aos outros" ,38 Por sua vez, Anchieta, quando refm entre os Tupinamb, presenciou a arma-o de duzentas canoas para a guerra contra os portugueses, cada uma com capacidade para vinte a trinta guerreiros, alm das armas e mantimentos. 39

    Certamente, as circunstncias da Guerra dos Tamoios foram x-cepcionais; mesmo assim, as observaes de Staden, Lry e dos je-

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    sutas - observadores autorizados, uma vez que tinham vivido en-tre os ndios - revelam aspectos significativos da guerra tupi no pe-rodo anterior chegada dos europeus. Todos os relatos concorda-vam que o motivo principal dos constantes conflitos entre grupos locais repousava na sede de vingana. "Essa gente tem arraigado no corao o sentimento da vingana", escreveu Jean de Lry.4() N-brega, logo aps sua chegada ao Brasil, observou: "E no tm guerra por cobia, porque todos no tm nada mais do que pescam e ca-am, e o fruto que toda a terra d: seno somente por dio e vin-gana" ,41 E Staden, ao explicar "por que devoram seus inimigos", relatou diversas provocaes gritadas no calor da batalha, como: "aqui estou para vingar em ti a morte dos meus amigos" .42

    Apesar do ceticismo de muitos autores modernos, a trama da vingana, na verdade, bastante elucidativa. Ao definir os inimigos tradicionais e reafirmar papis dentro das unidades locais, a vingan-a e, de modo mais geral, a gi;erra foram importantes na medida em que situavam os povos tupi em uma dimenso histrico-temporal. Durante sua estadia entre os Tupinamb, Jean de Lry transcreveu um interessante discurso indgena que sugeria o significado da guer-ra na preservao da memria d:> grupo local. De acordo com o mes-mo, os Tupinamb mais velhos relembravam aos demais ndios as tarefas tradicionais a ela ligadas:

    Nossos predecessores, dizem falando sem interrupo, uns aps outros, no s combateram valentem~nte mas ainda subjugaram, mataram e comeram muitos inimigos, deixando-nos assim honrosos exemplos; co-mo pois podemos permanecer em nossas casas como fracos e covar-des? Ser preciso, para vergonha e confuso nossa, que os nossos ini-migos venham buscar-nos em nosso lar, quando outrora a nossa nao era to temida e respeitada das outras que a ela ningum resistia? Dei-xar a nossa covardia que os margai [maracajs ou tememins] e os pero-angaip [portugueses] qJe nada valem, invistam contra ns?

    O prprio orador fornecia a resposta: "No, no gente de minha nao, poderosos e rijos mancebos no assim que devemos proce-der; devemos ir procurar o inimigo ainda que morramos todos e se-jamos devorados, mas vinguem os os nossos pais!" .43

    Assim, ao que parece, a guerra indgena fornecia um lao es-sencial entre o passado e o futJro dos grupos locais. 44 A vingana em si consumava-se de duas maneiras tradicionais: atravs da morte

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  • do inimigo durante a batalha ou atravs da captura do mesmo e exe-cuo posterior no terreiro. Estes ltimos sofriam prolongado cati-veiro na aldeia inimiga, que culminava numa grande festa, onde os cativos eram mortos e comidos. Apesar de os relatos coloniais pro-curarem, por motivos evidentes, equiparar cativos a escravos, a to-mada de prisioneiros destinava-se unicamente. estes eventos.

    De fato, o sacrifcio dos cativos e a antropofagia tm provoca-do grande controvrsia desde o sculo XVI. No entanto, a nfase exa-gerada na antropofagia, naturalmente repugnante s sensibilidades ocidentais, tem distorcido o complexo guerra-sacrifcio. importante notar, por exemplo, que apesar do xito de alguns jesutas e capu-chinhos em persuadir grupos a desistirem da antropofagia, os mis-sionrios no conseguiam abafar to facilmente o ritual de morte no terreiro. Isto sugere, mais uma vez, que a consecuo da vingan-a - com ou sem antropofagia - constitua a fora motriz da guer-ra indgena ao longo do litoral brasileiro.45

    A importncia do rito sacrificial estendia-se, igualmente, es-fera das relaes interaldeias. A festa que marcava o fim do cativei-ro foi, muitas vezes, um evento que aglutinava aliados e parentes de diversas unidades locais. Segundo Nbrega, era a matana "para a qual se juntam todos os da comarca para ver a festa". 46 Mesmo quando a influncia dos jesutas comeava a se impor entre os Tupi-niquim, um grupo recusou-se a interromper "uma grande matana de escravos", a despeito dos apelos insistentes dos padres. "Escusa-ram-se os ndios dizendo que no podia ser por estarem j os convi-dados todos juntos e ter j todos os gastos feitos com vinhos e outras coisas. " 47

    Assim, a guerra, o cativeiro e o sacrifcio dos prisioneiros cons-tituam as bases das relaes entre aldeias tupi no Brasil pr-colonial. As batalhas freqentemente congregavam guerreiros de diversas uni-dades locais; em Piratininga, por exemplo, mesmo na presena dos jesutas, os Tupiniquim hospedavam outros grupos locais na prepa-rao de ataques contra os Tupinamb.48 E, aps as vitrias ou der-rotas, aliados e parentes reuniam-se nas aldeias anfitris: nas vitrias, para saborear a vingana; nas derrotas, para reconstruir aldeias des-trudas e recompor populaes destroadas. A dinmica das relaes entre unidades locais, expressa nos termos do conflito ou da aliana, por sua vez, forneceu uma das chaves do xito - ou fracasso - dos europeus, na sua busca pelo controle sobre a populao nativa.

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    CONTATO, ALIANAS E CONFLITOS

    Ao chegar a So Vicente, os primeiros portugueses reconhece-ram de imediato a importncia fundamental da guerra nas relaes intertribais. Procurando racionalizar o fenmeno, convenceram-se de que os interminveis conflitos representavam pouco mais que ven-detas sem maior sentido; ao mesmo tempo, porm, perceberam que podiam conseguir muito atravs de seu engajamento com elas. Con-siderando o estado de fragmentao poltica que imperava no Brasil indgena, as perspectivas de conquista, dominao e explorao da populao nativa dependiam necessariamente do envolvimento dos portugueses nas guerras intestinas, atravs de alianas espordicas. Ademais, pelo menos aos olhos dos invasores, a presena de um n-mero considervel de prisioneiros de guerra prometia um possvel mecanismo de suprimento de mo-de-obra cativa para os eventuais empreendimentos coloniais.

    Os ndios, por sua vez, certamente percebiam outras vantagens imediatas na formao de alianas com os europeus, particularmente nas aes blicas conduzidas contra os inimigos mortais. Entretan-to, estes logo descobriram claramente os efeitos nocivos de seme-lhantes alianas. A conseqente transformao da guerra, agravada pelos freqentes surtos de doenas contagiosas, trazia srias ruptu-ras na organizao interna das sociedades indgenas. Mais importante ainda, o apetite insacivel dos novos aliados por cativos - porm no no sentido tradicional - ameaava subverter a principal finali-dade da guerra indgena: o sacrifcio ritual no terreiro.

    J na primeira metade do sculo X:VI, os Tupiniquim comea-ram a enfrentar estes problemas na capitania de So Vicente. QuanJ do da chegada dos portugueses em 1531-2, eles haviam aceitado a presena europia justamente porque esta no apresentava nenhu-ma ameaa ostensiva ao bem-estar indgena. Afinal de contas, as prin-cipais aldeias tupiniquim estavam localizadas em cima da serra, ao longo do rio Tiet. Alm disso, encontrava-se entre os principais "guerreiros" um tal de Joo Ramalho, portugus que anos antes ti-nha se integrado ao grupo local chefiado por Tibiri. "Casado" com uma filha deste chefe, Ramalho acabou estabelecendo outra al-deia, que serviria de llase para a futura vila portuguesa de Santo An-dr da Borda do Campo.

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    g17reft102Text-BoxRelaes interaldeias no rito sacrificial

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    g17reft102Text-BoxPercepes dos ndios sobre o lado bom e ruim das alianas com os europeus

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  • Com toda-a certeza, a aliana entre os Tupiniquim e os portugue-ses muito se deveu presena de Joo Ramalho. Para o recm-chega-do jesuta Manuel da Nbrega, baseado em il.'iformaes secundrias, Ramalho era um portugus totalmente indigenizado. Escreveu N-brega: "[ ... ] toda sua vida e de seus filhos segue a dos ndios [ ... ] Tm muitas mulheres ele e seus filhos, andam com irms e tm fi-lhos delas tanto o pai quanto os filhos. Seus filhos vo guerra com os ndios, e suas festas so de ndios e assim vivem andando ns co-mo os mesmos ndios". 49

    Apesar de seu desgosto inicial pelos modos gentlicos de Rama-lho, Nbrega reconheceu imediatamente a fundamental importn-cia da presena dele na capitania. De fato, quando da sua primeira visita s aldeias do planalto, a comitiva inaciana contou com o apoio do filho mais velho de Ramalho, Andr, "para dar mais autoridade ao nosso ministrio, porque [Joo Ramalho] muito conhecido e venerado entre os gentios, e tem filhas casadas com os principais ho-mens desta Capitana, e todos estes filhos e filhas so de uma ndia filha dos maiores e mais principais desta terra". 50 Mais tarde, quan-do 9s portugeses resolveram povoar o planalto, o principal assen-tanientQ luso-tupi cresceu em torno da aldeia de Joo Ramalho.

    Por.tn, mesmo antes da ocupao mais concentrada do planal-to pelos portugueses, na dcada de 1550, a aliana foi submetida a srias provas. O desenvolvimento das empresas coloniais no litoral, sobretudo a partir da dcada de 1540, havia comeado a aumentar a demanda pela mo-de-obra indgena e pelo abastecimento de g-neros de primeira necessidade. Embora algumas unidades maiores, como a da famlia Schetz de Anturpia, houvessem chegado a im-portar escravos da frica Ocidental, a maioria buscou sua fora de trabalho entre a populao indgena. Em 1548, segundo um relato da poca, a capitania j dispunha de seis engenhos de moer cana e uma populao escrava superior a 3 mil cativos. 51

    Na procura por trabalhadores indgenas, os colonos buscavam suprir-se, inicialmente, de duas maneiras: atravs do escambo ou da compra de cativos. Na primeira forma de recrutamento, os portu-gueses ofereciam ferramentas, espelhos e bugigangas aos chefes indgenas na expectativa de que estes orientassem mutires para as lavouras europias. Embora til na derrubada das matas para o pre-paro das roas, esta forma mostrou-se inadequada, esbarrando na aparente inconstncia dos ndios. Na segunda forma de recrutamento,

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    os portugueses procuravam fomentar a guerra indgena com o intui-to de produzir um fluxo significativo de cativos que, em vez de sa-crificados, seriam negociados com os europeus como escravos.

    Entretanto, nenhuma das duas estratgias mostrou-se eficien-te, devido sobretudo recusa dos ndios em colaborar altura das expectativas portuguesas. Expectativas estas que, ademais, provo-caram rupturas nas relaes intertribais j existentes antes da chega-da dos europeus. O impacto negativo dos produtos europeus sobre as sociedades nativas foi sublinhado na dcada de 1550, peio jesuta Pedro Correia, da seguinte maneira:

    Se os ndios do Brasil so agora mais guerreiros e mais maldosos do que deviam ser, porque nenhuma necessidade tm das coisas dos cris-tos, e tm as casas cheias de ferramentas, porque os cristos andam de lugar em lugar e de porto em porto enchendo-lhes de tudo que eles querem. E o ndio que em outros tempos no era ningum e que sem-pre morria de fome, por no possuir uma cunha para fazer uma roa, agora tm quantas ferramentas e roas que quiserem, comem e bebem de continuo e andam sempre a beber vinhos pelas aldeias, ordenando guerras e fazendo muitos males, o que fazem todos os que so muito dados ao vinho por todas as partes do mundo.52

    Atrs deste discurso moralista est a sugesto das profundas transformaes e da desestruturao que tomaram conta das aldeias indgenas em contato com os portugueses. Com o passar do tempo, a postura dos ndios comeou a subverter o projeto dos europeus, justamente porque a transformao das sociedades nativas no ca-minhava na direo desejada pelos portugueses.

    Um problema imediato surgiu com o fracasso do sistema de es-cambo enquanto mecanismo que visava o suprimento das necessi-dades dos colonizadores, sobretudo no abastecimento de gneros ali-mentcios. Os horticultores tupi-guarani produziam excedentes com facilidade e parecia possvel expandir esta produo com a ajuda de utenslios de ferro. Os relatos quinhentistas, por exemplo, contm numerosas referncias a aldeias indgenas que apresentavam abun-dantes estoques de milho ou farinha de mandioca. Vicente Rodri-gues, um jesuta radicado em Pernambuco, escreveu que "vinham os. gentios de seis e sete lguas pela fama dos Padres, carregados de milho [mandioca] e o mais que tinham para lhes oferecer ... ". Um colega de Rodrigues em Pernambuco, Antonio Pires, relatou que cer-

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    g17reft102Text-BoxImportncia de Joo Ramalho

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    g17reft102Text-BoxPrimeiras formas de conseguirem os escravos

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  • ta vez chegou misso "um principal de outra aldeia, que vinha car-regado, com sete ou oito negros, de milho". No Sul, na mesma po-ca, os Guarani ficaram conhecidos pela abundncia de comestveis que forneciam aos europeus. "Muitas vezes vinham muitos ndios com grandes presentes de veados e galinhas, peixes, cera e mel", es-creveu o jesuta Leonardo Nunes ao descrever sumariamente os Carij.53

    Para o desagrado dos colonizadores, no entanto, os ndios for-neciam provises apenas esporadicamente e de maneira limitada, ao passo que os portugueses comearam a depender mais e mais da pro-duo e mo-de-obra indgena para seu prprio sustento. verdade que, em meados do sculo XVI, as relaes de troca chegaram a flo-rescer, mas cada parte atribua-lhes um sentido radicalmente distinto. A oferta de gneros por parte dos ndios no foi - como querem Alexander Marchant e outros autores subseqentes - uma simples "resposta" econmica a uma situao de mercado.54 Muito pelo contrrio, tanto a aquisio quanto a oferta de "mercadorias" de-vem ser compreendidas mais em termos de sua carga simblica do que por seu significado comercial. Tomadas fora de contexto, as ob-servaes dos jesutas acima citados podem conduzir a uma noo equivocada sobre a produo indgena nesta conjuntura crucial. Por exemplo, o padre Pires assim explicou o suprimento de gneros por um principal indgena: "O seu intento que lhe demos muita vida e sade e mantimento sem trabalho como os seus feiticeiros lhe pro-metem". Do mesmo modo, Leonardo Nunes revelou que os Guara-ni traziam seus "grandes presentes" na expectativa de uma contra-partida espiritul por parte dos jesutas. 55

    Assim, cabe ressaltar que o escambo ganha sentido apenas na medida em que se remete dinmica interna das sociedades indge-nas. Longe de se enquadrarem no contexto de uma economia de mer-cado em formao, as relaes de troca estavam vinculadas intrin-secamente ao estabelecimento de alianas com os europeus. Portan-to, os ndios aceitaram e at promoveram semelhantes relaes des-de que elas contribussem para a realizao de finalidades tradicio-nais. Paradoxalmente, foi nesta postura ostc::nsivamente conserva-dora que os grupos tupi contriburam para a transformao acelera-da das relaes intertribais e luso-indgenas.

    Na medida em que o escambo se mostrou um modo pouco efi-caz para atender s necessidades bsicas dos europeus, estes pro-

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    curaram reformular a base da economia colonial atravs da apropria-o direta da mo-de-obra indgena, sobretudo na forma da escravi-do. Inicialmente, a aquisio de escravos permanecia subordinada configurao das relaes intertribais. Contudo, com a presena crescente dos europeus, as -guerras intertribais passaram a adquirir caractersticas de "saltos", promovidos com o objetivo de cativar escravos para as empresas coloniais. Nesse sentido, como sugere o padre Correia no trecho acima citado, o resultado principal destas relaes iniciais foi a intensificao da guerra entre inimigos tradi-cionais, tais como os Tupiniquim e Tupinamb, com conseqncias desastrosas para os grupos indgenas.

    Os portugueses acreditavam que o aumento de prisioneiros de guerra acarretaria a formao de um considervel mercado de escra-vos, uma vez que mesmo a legislao colonial sancionava esta forma de adquirir trabalhadores. 56 Mas os cativos no se transformavam em escravos to facilmente. Os europeus logo enfrentaram resistn-cia venda de prisioneiros no apenas entre os captores como tam-bm entre os prprios cativos. Assim, por exemplo, quando o jesuta Azpilcueta ofereceu-se para comprar um prisioneiro tupinamb na hora do sacrifcio deste, foi a vtima que impediu a transao: "ele disse que no o vendessem, porque lhe cumpria a sua honra passar por tal morte como valente capito" .l7

    Paulatinamente, ficava mais e mais claro para os portugueses que a transformao do prisioneiro em escravo, atravs da manipu-lao da guerra, envolvia antes a redefinio ritual e social do sacri-fcio humano. Apesar de a maior parte dos grupos locais lutar pela preservao de suas tradies, as relaes euroindgenas acabaram provocando mudanas significativas. Alguns grupos tupiniquim, por exemplo, sobretudo aps a chegada dos jesutas, abandonaram a an-tropofagia e passaram a dar um enterro cristo aos inimigos mortos. Anchieta, ao comentar a dificuldade em eliminar por completo o sa-crifcio dos prisioneiros, escreveu que, "entre tanta multido de in-fiis, algumas poucas ovelhas se abstenham ao menos de comer seus prximos''. 58

    Na capitania de So Vicente, os pormgueses buscaram aumen-tar a oferta de mo-de-obra indgena por meio da aliana com os Tupiniquim, transformando-a de uma relao de relativa igualdade para uma de subordinao. No se conhecem em maiores detalhes os elementos precisos desta transformao, mas parece claro que,

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    g17reft102Text-BoxProblemas com a compra de escravos entre os europeus e indios

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  • j na dcada de 1540, os portugueses controlavam - direta e indire-tamente - algumas aldeias tupiniquim. O papel do genro de Tibiri, Joo Ramalho, foi fundamental na expanso da influncia e autori-dade dos colonizadores. De acordo com Ulrich Schrnidel, um alemo que visitou uma aldeia luso-tupiniquim em 1553, Ramalho "pode reunir cinco mil ndios em um s dia". 59 Assim, ao apropriar-se dos atributos de um chefe tupi, Ramalho acabou sendo o intermedirio ideal, colaborando sobremaneira na moldagem das relaes luso-indgenas em favor dos portugueses.

    Igualmente, o caso especfico de Joo Ramalho e sua relao com Tibiri ilustra outro elemento crucial no processo de domina-o portuguesa. No sculo xvr, o casamento e o concubinato torna-ram-se formas importantes atravs das quais os portugueses firma-ram sua presena entre os ndios do Brasil. De acordo com o padre Nbrega: "Nesta terra h um grande pecado, que terem os homens quase todos suas negras por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por mulheres, segundo o costume da terra, que terem muitas mulheres" .60 Em So Vicente, o concubinato atingiu propor-es to alarmantes, pelo menos aos olhos dos jesutas, que Pedro Correia, demonstrando certo desgosto, observou: "H muito pou-co tempo que me lembro que se perguntava a uma mamaluca qu ndias e escravas so estas que traz com voc; respondia ela dizendo que eram mulheres de seu marido, as quais elas sempre trazem con-sigo e olhavam por elas assim como uma abadessa com suas mon-jas". 61 Contudo, no se tratava simplesmente da adoo de prticas nativas pelos portugueses carentes na ausncia de mulheres brancas. Mais importante, a poligamia e o concubinato refletiam, s vezes, as alianas pactuadas entre portugueses e ndios, conferindo aos co-lonos certo prestgio dentro das estruturas indgenas.62

    Embora os portugueses conseguissem a adeso de alguns che-fes locais por meio dessas alianas, tais estratgias de consolidao do controle nem sempre foram bem-sucedidas. Conforme veremos adiante, a resistncia de outros elementos tupiniquim aos avanos dos portugueses evidentemente provocava srias crises de autorida-de entre os grupos locais, levando a um facciosismo agudo. Contu-do, mesmo os colaboradores mais prximos mostravam-se incons-tantes. At Tibiri, considerado pelos jesutas um caso exemplar de converso, chegou a repugnar ao irmo Anchieta quando insistiu em sacrificar um prisioneiro guaian " moda gentlica". Mais des-

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    concertante, pelo menos no ponto de vista de Anchieta, foi a mani-festao entusiasmada dos demais ndios presentes, "at os prprios catecmenos, por ser isso exactamente o que desejavam, e gritavam uma que se matasse". 63

    Apesar das dificuldades enfrentadas na dominao dos Tupini-quim, os portugueses de So Vicente conseguiram incitar os aliados a intensificar os conflitos com os Tupinamb. Em vista desta esca-lada, diversos grupos tupinamb, ao longo do litoral de Cabo Frio a So Vicente, aliaram-se, formando um poderoso movimento de resistncia. Entre as dcadas de 1540 e 1560, todo o litoral e muitas partes da Serra Acima foram envolvidos na chamada Guerra dos Ta-moios.

    De forma significativa, esta guerra refletiu mudanas importan-tes na estrutura dos conflitos intertribais no Brasil meridional. Se, no incio, a guerra estava arraigada na lgica das relaes e rivalida-des pr-coloniais, agora ficava claro que as aes blicas passavam a ser subordinadas s presses e demandas do colonialismo nascen-te. Estas transformaes, por sua vez, teriam efeitos profundos so-bre as estruturas internas das sociedades indgenas. Jean de Lry, ao relatar a tentativa dos franceses em comprar alguns cativos teme-min aos Tupinamb, elucida esta questo:

    Por mais esforos que fizssemos, porm, nossos intrpretes s conse-guiram resgatar parte dos prisioneiros. Que isso no era do agrado dos vencedores percebi-o pela compra de uma mulher com seu filho de dois anos, que me custaram quase trs francos em mercadorias. Disse-me ento o vendedor: "No sei o que vai acontecer no futuro, depois que pai Col (Villegaignon] chegou aqui j no comemos nem a metade de nossos prisioneiros''. 64

    Ademais, ficava cada vez mais claro para as autoridades portu-guesas que a insubordinao e rebeldia indgena estavam intrinseca-mente ligadas s provocaes europias, na medida em que a explo-rao desenfreada da mo-de-obra indgena aparentemente levava tanto resistncia armada quanto ao declnio demogrfico. A per-cepo desta ligao entre demandas europias e comportamentos indgenas contribuiu para a alterao radical da poltica portuguesa para o Brasil, poltica esta que envolvia pela primeira vez a prpria Coroa enquanto agente colonial. De fato, ao redigir o Regimento de Tom de Sousa em 1548, a Coroa no apenas estabeleceu as ba-

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    g17reft102Text-BoxCasamento e comcubinato

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    g17reft102Text-BoxResistncia por parte dos ndios

    g17reft102Text-BoxResistncia contra esses avanos

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    g17reft102Text-BoxGuerra dos tamoios

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  • ses de um governo colonial como tambm esboou a primeira mani-festao de uma poltica indigenista, dando incio a uma srie inter-minvel de leis, decretos, ordens e regimentos que fariam parte de uma legislao no mais das vezes ambgua e contraditria. 65 A no-va postura expressa no Regimento admitia abertamente que o fra-casso da maioria das capitanias tinha razes no cativeiro ilegtimo e violento praticado pelos colonos. Ao mesmo tempo, de forma mais velada, o Regimento reconhecia que o xito da Colnia dependia, em ltima instncia, da subordinao e explorao da mesma popu-lao indgena. 66

    JESUTAS E COLONOS NA OCUPAO DO PLANALTO

    A frota de Tom de Sousa trouxe entre seus passageiros alguns jesutas que haviam de representar a pedra fundamental da poltica indigenista. Apesar de sua relativa autonomia, pois respondiam antes ao general da ordem em Roma do que ao rei de Portugal, e apesar do enorme poder econmico que acumulariam subseqentemente, nestes primeiros anos os jesutas serviram aos interesses da Coroa como instrumentos da poltica de desenvolvimento da Colnia. Ofe-recendo um contraponto dizimao deliberada praticada pela maio-ria dos colonos, os jesutas buscaram controlar e preservar os ndios atravs de um processo de transformao que visava regimentar o ndio enquanto trabalhador produtivo. Com o estabelecimento de aldeamentos, os jesutas acenavam com um mtodo alternativo de conquista e assimilao dos povos nativos. C@nforme verificaremos adiante, este projeto malogrou, tendo graves implicaes para a for-mao de uma relao amargamente conflituosa entre jesutas e co-lonos na regio.

    No entanto, estes conflitos s se intensificariam anos depois. No contexto imediato da Guerra dos Tamoios, a despeito de srias diferenas cm opinio, jesutas e colonos colaboraram na ocupao formal do planalto pelos portugueses na dcada de 1550. Os freqen-tes ataques dos Tamoio contra as unidades coloniais do litoral torna-ram as atividades produtivas praticamente inviveis. O padre Manuel da Nbrega, ao reconhecer a necessidade de ncleos complementa-res no litoral e no interior, comentou que os habitantes da costa, ''posto que tenham peixe em abastana, no tem terras para manti-

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    mentos nem para criaes, e sobretudo vivem em grande desasosse-go porque so cada dia perseguidos dos contrrios e o mantimento que comem vem do Campo, dez, doze lguas do caminho ... ". 67 A Cmara Municipal de So Paulo, por sua vez, tambm destacou es-ta complementaridade em requerimento feito ao capito Estcio de S:

    [ ... ]lembramos a Vossa Senhoria em como esta vila de So Paulo sen-do h tantos anos edificado doze lguas pela terra adentro e se fazer com muito trabalho longe do mar e das vilas de Santos e So Vicente porquanto se no podiam sustentar assim ao presente como pelo tem-po adiante porquanto ao longo do mar se no podiam dar os manti-mentos para sustentamento das ditas vilas e engenhos nem haviam pastos em que pudessem pastar o muito gado vacum que h na dita vila e Ca-pitania ... 68

    Alm de criar uma economia subsidiria, a ocupao formal do planalto igualmente visava buscar novas fontes de mo-de-obra ca-tiva. A revolta dos Tamoio tornou a escravizao dos Tupinamb um negcio cada vez mais arriscado e caro. Diante disto, os portu-gueses voltaram sua ateno a outro inimigo dos aliados tupiniquim, os Carij, que em muitos sentidos forneciam o motivo principal pa-ra a presena tanto de jesutas quanto de colonos no Brasil meridio-nal. Cabe ressaltar que j existia, antes mesmo da fundao de So Vicente, um modesto trfico de escravos no litoral sul, encontrando-se, no meio do sculo, muitos escravos carij nos engenhos de San-tos e So Vicente.69

    De fato, a consolidao da ocupao europia na regio de So Paulo a partir de 1553 estabeleceu uma espcie de porta de entrada para o vasto serto, o qual proporcionava'uma atraente fonte de ri-quezas, sobretudo na forma de ndios. Acontecimentos quase simul-tneos, a criao da vila de Santo Andr da Borda do Campo e a fundao do Colgio de So Paulo representavam o embrio do con-flito entre colonos e jesutas em torno dos ndios. De um lado, com a participao ativa de Joo Ramalho, um grupo de colonos com seus seguidores tupiniquim estabeleceram a vila de Santo Andr, oficial-mente sancionada pelo donatrio em 1553, quando foi concedido um foral e instalado um conselho municipal para tratar de assuntos ad-ministrativos. Assim,...Santo Andr foi a terceira vila da capitania, seguindo So Vicente (1532, possivelmente 1534) e Santos (1545).

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    g17reft102Text-BoxSobre o regimentos e suas contradies

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  • O local da nova vila, situada no topo da serra prxima principal trilha utilizada pelos Tupiniquim nas suas excurses para o litoral, permitia acesso ao vasto interior ao sul e oeste da capitania, confor-me sugere o ttulo Borda do Campo.70 Realmente, os portugueses logo exploraram esta orientao, como ilustra a viagem de um certo Francisco Vidal, que, j em 1553, foi para o Paraguai, regressando em poucos meses com vinte escravos guarani. Embora o comrcio clandestino fosse pouco aceitvel para a Coroa, os documentos da Cmara Municipal de Santo Andr confirmam este contato com os espanhis do Paraguai. 71

    Ao mesmo tempo, os jesutas de So Vicente preparavam-se para subir a serra, pois padre Nbrega projetava a consolidao de trs aldeias indgenas no local da aldeia de Tibiri, entre os rios Taman-duate e Anhangaba, hoje centro de So Paulo.72 Os jesutas, N-brega em particular, alimentavam uma grande expectativa quanto expanso da influncia portuguesa em So Vicente, em parte consi-derando a experincia fracassada em outras capitanias, mas sobretudo por causa das notcias favorveis obtidas sobre a populao indgena do Brasil meridional. Em 1553, a maior concentrao de jesutas no Brasil achava-se em So Vicente "por ser ela terra mais aparelhada para a converso do gentio que nenhuma das outras, porque nunca tiveram guerra com os cristos, e por aqui a porta e o caminho mais certo e seguro para entrar nas geraes do serto, de que temos boas informaes". 73

    Seguindo o projeto de Nbrega, treze padres e irmos da Com-panhia, muitos deles recm-chegados na frota de 1553, escalaram a serra do Mar e fundaram, a 25 de janeiro de 1554, o Colgio de So Paulo de Piratininga. O colgio, alm de abrigar os padres que tra-balhariam junto populao local, tambm serviria de base a partir da qual os jesutas poderiam projetar a f para os sertes. Porm, ao orientarem suas energias para os Carij do interior, acabaram entrando em conflito direto com os colonos, que procuravam nestes mesmos Carij a base de seu sistema de trabalho.

    Todavia, este conflito no se materializou imediatamente, uma vez que antes se fazia necessria, para a permanncia dos invasores em solo indgena, a colaborao entre colonos e jesutas perante a resistncia dos ndios. Realmente, ao longo da dcada de 1550, os Tamoio mantiveram o litoral em estado de stio: lanavam at mes-mo ataques ao planalto, ameaando continuamente a jovem e inst-

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    vel vila de Santo Andr.74 Esta situao chegou a agravar-se na me-dida em que a ocupao permanente do planalto pelos portugueses provocava tambm cises entre os prprios aliados tupiniquim. O facciosismo interno, resultado deste processo, manifestava-se de for-ma aguda: em 1557, o jesuta Lus da Gr relatou que as princi_Pa~~ aldeias tupiniquim estavam sofrendo o processo de desagregaao.

    Foi neste contexto de insegurana que o governador Mem de S determinou a extino da vila de Santo Andr em 1558, mandan-do os moradores se deslocarem para as imediaes do Colgio, local mais seguro, onde se estabeleceu a vila de So Paulo em 1560. To logo foi consumada a fuso, em 1562, os colonos e os jesutas entrin-cheiraram-se na expectativa de um assalto dos ndios revoltados. Ao longo dos trs anos seguintes, os Tupiniquim, liderados por Pique-robi e Jaguaranho, respectivamente irmo e sobrinho de Tibiri, fizeram cerco nova vila, ameaando-a de extino.16 A guerra cau-sou srios danos para ambos os lados, afetando de forma mais agu-da os ndios que atacavam e os que defendiam So Paulo.

    De fato apesar da relativa igualdade em termos estratgicos e tecnolgicos'. os europeus contavam com uma arma muito mais po-tente que as armas de fogo: as doena,s contagiosas. Assim com~ em outras partes do Novo Mundo no sculo XVI, os cont~gios surti:a~ efeito devastador sobre as populaes indgenas do htoral brasilei-ro. A primeira epidemia mais sria alastrou-se pelo interior da capi-tania em 1554. "Com estes que fizemos cristos saltou a morte de maneira que nos matou trs Principais e muitos outros _ndios e n-dias" escreveu desoladamente um jesuta na poca.77 As vezes as-solando diversas capitanias de uma s vez, as epidemias mortais tornaram-se cada vez mais freqentes na segunda metade do sculo. Em 1559, por exemplo, um jesuta relatou o surto de uma doena que fazia vtimas em massa ao longo do litoral e no interior, do Rio de Janeiro ao Esprito Santo.78 Surtos considerveis de sarampo e varola irromperam em So Vicente durante a guerra de 1560-3, di-zimando e desmoralizando a populao nativa. 79

    Entrementes, o conflito mais amplo entre portugueses e Tupi-namb estava sendo definido ao longo do litoral, j que o efeito cumulativo da diplomacia, das aes militares e dos contgios havia reduzido os ltimos Tamoio a aliados, escravos ou cadveres. A con-cluso da guerra, com um saldo to negativo para os ndios, tam-bm ilustra alguns conflitos e contradies da guerra indgena neste

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    g17reft102Text-BoxDoenas contagiosas

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  • perodo de transio. O papel dos jesutas, sobretudo Nbrega e An-chieta, foi importante, mas no no sentido que aparece na historio-grafia convencional. Estes, na verdade, conseguiram promover um acordo entre certos grupos belicosos, o que, no entanto, no redun-dou propriamente na paz. De acordo com o relato de Anchieta, os Tupinamb mostravam-se dispostos a negociar precisamente porque a configurao das alianas estava mudando no contexto da guerra. Cientes da rebelio das faces tupiniquim contra os aliados portu-gueses, os Tupinamb enxergaram a oportunidade de estabelecer uma aliana com os portugueses para combater seus rivais tradicionais - os Tupiniquim. De fato, Anchieta confessou que o nico motivo para a negociao da parte dos Tamoio foi "o desejo grande que tm de guerrear com seus inimigos tupis, que at agora foram nos-sos amigos, e pouco h se levantaram contra ns ... ". 80

    Em 1567, quando a Guerra dos Tamoios chegou a seu fim, de-vido agressiva campanha militar comandada por Mem de S, as reas de ocupao portuguesa na capitania de So Vicente achavam-se momentaneamente pacificadas. No entanto, a perspectiva de desen-volvimento econmico que a paz prometia ressurgia com toda a for-a na luta pela mo-de-obra indgena, caracterizada sobremaneira pela competio direta entre jesutas e colonos. 81 At certo ponto, a questo envolvia uma delicada discusso tica em torno da liber-dade dos ndios, discusso que, entretanto, tem sido descontextuali-zada na historiografia. O fato que, mais especificamente, o que de fato se disputava eram as formas de controle e integrao na emer-gente sociedade luso-brasileira de grupos recm-contatados. Tanto jesutas quanto colonos questionavam a legitimidade e os mtodos utilizados pelo rival para arrancar os ndios de suas aldeias natais, que abrangiam desde a persuaso ou atrao pacfica at os meios mais violentos de coao. Uma vez consumada a separao, disputa-va-se o direito de administrar o trabalho dos ndios j deslocados para a esfera coloniaL

    Embora uma abordagem simplificadora dos fatos pennitisse de-limitar estes conflitos em termos de interesses bem definidos entre as partes, a situao real manifestou maior complexidade, explican-do, outrossim, algumas das contradies que passaram a povoar a poltica indigenista dos portugueses no Brasil. Realmente, ao passo que os colonos no se mostravam unvocos a favor da escravido como forma singular do trabalho indgena, nem todos os jesutas

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    se opunham ao cativeiro. Afinal de contas, todos - excluindo os ndios, claro - concordavam que a dominao nua e crua propor-cionaria a nica maneira de garantir, de uma vez por todas, o con-trole social e a explorao econmica dos indgenas. Um exemplo ilustrativo desta ambivalncia o pensamento do padre Manuel da Nbrega, que, entre outros, defendia a escravido indgena e africa-na como meio necessrio para o desenvolvimento da Colnia, suge-rindo certa vez que a condio escrava seria um avano para a "gen-tilidade". Ao discutir o modo mais eficaz para executar os planos jesuticos, Nbrega insistiu que queria ver o gentio "sujeito e meti-do no jugo da obedincia dos cristos, para se neles poder imprimir tudo quanto quisessemos, porque ele de qualidade que domado se escrever em seus entendimentos e vontade muito bem a f de Cris-to, como se fez no Peru e Antilhas".82 De fato, juntamente com muitos contemporneos seus - padres ou no -, Nbrega susten-tava a simples noo de que o Brasil s prosperaria a partir da do-minao dos ndios e, no caso de grupos particularmente resisten-tes, seria necessria a execuo de guerras justas nas quais o inimigo seria reduzido ao cativeiro.

    Para Nbrega, portanto, apesar de sua defesa da liberdade da maioria dos ndios, a escravido indgena devia ser permitida e mes-mo desejada em determinados casos, no apenas para efeitos de de-fesa ou de castigo, mas tambm porque a oferta de legtimos cativos atrairia novos colonos para o Novo Mundo. De fato, segundo N-brega, a receita certa para o desenvolvimento recomendava que "o gentio fosse senhoreado ou despejado ... ". 83 Anchieta, por sua vez, demonstrando certa frustrao com os resultados contraditrios de seus esforos entre os Tupiniquim de Piratininga, ecoava as postu-ras de seu mentor: "No se pode portanto esperar nem conseguir nada em toda esta terra na converso dos gentios, sem virem para c muitos cristos, que conformando-se a si e a suas vidas com a vontade de Deus, sujeitem os ndios ao jugo da escravido e os obri-guem a acolher-se bandeira de Cristo" .. 84

    Tais consideraes contriburam diretamente para a formula-o da lei de 20 de maro de 1570, que buscava regulamentar - mas no proibir - o cativeiro indgena. 85 O novo estatuto designava os meios considerados legtimos para adquirir cativos, sendo estes res-tritos "guerra justa': devidamente autorizada pelo rei ou governa-dor e ao resgate dos ndios que enfrentavam a morte nos ritos an-

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    g17reft102Text-BoxContradies das politicas indigienistas

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    g17reft102Text-BoxNem todos os jesutas se opunham ao cativeiri

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    g17reft102Text-BoxSobre Nbrega e Anchieta concordar com o cativeiro

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  • tropofgicos. Os demais ndios, escravizados por outros meios, fo-ram declarados livres. Na verdade, a lei teve pouco efeito sobre as reais relaes entre colonos e ndios, umayez que a brecha ofereci-da pela instituio da guerra justa abria caminho para abusos. De qualquer modo, a lei claramente refletia o tom conciliatrio adota-do por uma Coroa ambivalente, indecisa entre os interesses de colo-nos e jesutas. A postura a favor da liberdade dos ndios certamente atendeu aos apelos dos padres Lus da Cr e Jos de Anchieta, que participaram da junta de 1566, organizada pela Coroa para definir a poltica indgena, a partir da qual surgiu a lei de 1570. Ao mesmo tempo, a clusula referente guerra justa surgia como resposta demanda dos colonos por escravos, sendo ainda aceitvel para os jesutas. Este dispositivo, bem conhecido na pennsula Ibrica, ha-via sido invocado no Brasil pela primeira vez pelo governador Mem de S em 1562. Nesta ocasio os Caet foram condenados ao cati-veiro como castigo por terem, seis anos antes, trucidado e suposta-mente comido o primeiro bispo do Brasil, apetitosamente apelidado Sardinha. 86

    O CONTRAPONTO JESUTICO

    Se a legislao do sculo XVI tratava explcita e detalhadamen-te das questes da guerra e do cativeiro indgena, a regulamentao e distribuio da mo-de-obra permaneceram bem mais vagas. O im-pacto destrutivo da guerra levou os portugueses busca de caminhos alternativos de dominao e transformao dos povos nativos, sur-gindo neste contexto as primeiras experincias missioneiras. Ao implementar um projeto de aldeamentos, os jesutas procuraram ofe-recer, atravs da reestruturao das sociedades indgenas, uma solu-o articulada para as questes da dominao e do trabalho indgena. De fato, apesar de nunca atingir plenamente suas metas, o projeto jesutico logo tomou-se um dos sustentculos da poltica indigenista no Brasil colonial. 87

    O primeiro aldeamento da regio, embora no projetado ini-cialmente como tal, foi Piratininga, organizado em tomo da aldeia de Tibiri em 1554. No entanto, ao que parece, a populao dopo-voado no chegou a ser muito grande, mesmo nos termos da poca. Em setembro de 1554, Anchieta relatava que apenas 36 ndios tinham

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    sido batizados, alguns in extremis. Nesse mesmo perodo, os padres aceitaram apenas 130 ndios para a catequese, "de toda a idade e de ambos os sexos" .88

    A partir de 1560, com a fundao da vila de So Paulo, mais .trs aldeamentos foram institudos: So Miguel, Nossa Senhora dos Pinheiros e Itaquaquecetuba, todos no planalto nas imediaes da vila, abrigando sobretudo os Tupiniquim e Guaian. Um quarto al-deamento jesutico, Nossa Senhora da Conceio, acolheu um gru-po de "guarulhos" introduzidos, por volta de 1580, pelos padres. No decorrer do sculo XVI, o nico aldeamento no litoral vicentino foi o de So Joo, surgido junto vila de Itanham na dcada de 1560, sendo fundado e habitado por ndios carij.89

    Estas novas aglomeraes rapidamente comearam a substituir as aldeias independentes, transferindo para a esfera portuguesa o controle sobre a terra e o trabalho indgena. Em princpio institu-dos com a inteno de proteger as populaes indgenas, na verda-de os aldeamentos aceleraram o processo de desintegrao de suas comunidades. medida que os jesutas subordinaram novos gru-pos sua administrao, os aldeamentos tomaram-se concentra-es improvisadas e instveis de ndios provenientes de sociedades distintas. Mesmo assim, nos anos iniciais pelo menos, as missivas dos padres mostravam certo otimismo para com o potencial de cres-cimento dos aldeamentos. Em 1583, por exemplo, padre Gouveia registrou uma populao superior a quinhentas almas nos dois aldeamentos de So Miguel e Pinheiros, assim igualando-se po-pulao europia da regio, calculada em 120 lares.90 Dois anos depois, outro padre escrevia entusiasmado ao provincial sobre um populoso grupo de maromini (guarulhos) recm-"reduzido" e inte-grado a um aldeamento ao lado de ndios guaian, ibirabaquiyara (provavelmente Kayap meridional) e carij.91 Finalmente, relat-rios referentes a batismos, embora pouco especficos em termos nu-mricos, tambm apontavam para um crescimento dos aldeamen-tos nas dcadas de 1570 e 1580.92

    No contexto do sculo XVI, a expectativa positiva que o proje-to jesutico suscitava empolgava no apenas os missionrios como tambm a Coroa e at os colonos. Para um defensor do sistema es-crevendo no incio do sculo XVII, os aldeamentos seriam cruciais na defesa das zonas aucareiras do Nordeste contra ameaas exter-nas - as visitas peridicas de corsrios ingleses e holandeses - e

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    g17reft102Text-BoxAldeamento e Misses

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  • internas, especialmente aquelas representadas pelos Tapuia do inte-rior e pelos escravos aquilombados. 93 J para os colonos, a existn-cia de aldeamentos robustos e produtivos ofereceriam uma reserva de trabalhadores livres disponveis para a economia colonial, assim conciliando o ideal da liberdade com o objetivo maior de desenvolver a Colnia. Tal perspectiva agradou o bispo Antonio Barreiro, que, escrevendo ao papa em 1582, enfatizou que os jesutas, alm de con-tinuarem na luta a favor da liberdade dos ndios, ao mesmo tempo serviam generosamente aos interesses temporais com seus aldeamen-tos, "donde tambm ajudam os moradores para o plantar de suas canas e mantimentos e mais coisas necessrias s suas fazendas". 94

    Os colonos, por sua vez, demonstravam alguma simpatia ao pro-jeto de aldeamentos enquanto alternativa escravido, desde que este garantisse mo-de-obra abundante e barata. Em certo sentido, a poltica indigenista nos primeiros tempos visava desenvolver uma estrutura de trabalho na qual os colonos contratariam os servios dos ndios aldeados. O aldeamento proporcionaria uma estrutura de base para a reproduo da fora de trabalho, preservando-se algu-mas caractersticas da organizao social pr-colonial - tais como a moradia, a roa, a famlia e mesmo a estrutura poltica-, modi-ficadas, claro, pelo projeto cultural dos jesutas. Nesse sentido, o valor dos salrios permaneceria bem abaixo dos custos de reprodu-o da fora de trabalho, os quais seriam absorvidos pelas mesmas estruturas dos aldeamentos. Contudo, conforme veremos adiante, os aldeamentos no conseguiram atender demanda dos colonos.

    Alm de propor um mecanismo de acesso mo-de-obra in-dgena, o projeto dos aldeamentos tambm definiu a questo das terras dos ndios. Com o intuito de providenciar uma base para o sustento dos habitantes, cada aldeamento foi dotado de uma faixa consid