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Eu - cem anos de poesia I Congresso Nacional de Literatura - I CONALI ISBN 978-85-7539-708-4 1658 MORTE E LITERATURA: A POESIA DE SANDRA HERZER Rodrigo Michell dos Santos Araujo (PPGL/UFS/FAPITEC-SE) Fernanda Bezerra de Aragão Correia (PRODEMA/UFS/CAPES) O que pode um texto? Um texto que chama, um texto que tudo diz, um texto louco, um texto embriagado, um texto (in) consciente, indecidível, um texto-vida. E mais: um texto agonizante, um texto insone, um texto em êxtase, melancólico, desesperado. Um banho de chamas que destrói tudo por onde passa. Alerta de incêndio: apocalípticos, também podemos, assim, o chamar: textos-morte, tanatotextos que são sublimes e, ao mesmo tempo, degradados, enfermos, poeira. Como nunca dormem, cravadas nas potencialidades do vazio absoluto da página em branco, as palavras, ébrias, correm como fluxos, um turbilhão sem começo nem fim. Da magia à fatalidade, da solidão ao grito de desespero, a obra da paranaense Sandra Mara Herzer assim sendo o nome de batismo do então Anderson Herzer, ou apenas Herzer é um intenso córrego que vaza por todas as frestas até chegar às profundidades últimas da vida. De idas e vindas, jogada no esquecimento e no silêncio da margem, Sandra deixou apenas uma obra: A queda para o alto (1985). Convergência de dores e tormentos, de fugas e retornos da FEBEM do Estado de São Paulo, uma obra que (de)cai para os cumes do desespero, ou para a morte; obra que joga o leitor para baixo, para o alto, para os lados, para o infinito, para o não-lugar. Fragmentos. Na obra, Herzer tudo diz, tudo aponta, tudo denuncia, tudo proclama, a ponto de nos perguntarmos: para que direção aponta? 1 Dizer tudo sobre si próprio, tentando esgotar o texto finito e 2 (NASCIMENTO, 1999: 310). Divididas em duas partes, a primeira parte da Queda contém um depoimento de Herzer sobre a agonia de uma vida em chamas, um testemunho manchado de dor, e a segunda parte trazendo suas poesias. Autobiografia para a morte. teorizações de autobiografia propostas por Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico (2008). pacto, partimos da literatura íntima de Herzer rumo à experiência da morte, fazendo de sua obra uma tanatobiografia. Neste palco de paixões e crueldades, recorremos à construção de um espaço de morte, fundamentando a partir de Maurice Blanchot, fundamentalmente em suas obras O espaço literário (2011) e A parte do fogo (1997), um trânsito entre a experiência da morte e a literatura, ou um trânsito entre morte e vida, onde uma figure na outra. Assim, far-se-á, neste espaço construído, uma aproximação entre a obra e o pensamento do filósofo romeno Emil Cioran, a partir de sua primeira obra em romeno, Sur les cimes du désespoir (1990). O que pode, então, um encontro entre Herzer e o considerado, hoje, o mais pessimista dos filósofos, a hiena pessimista (PIVA, 2002) Cioran (REDYSON, 2011) podem se estabelecer, tais como: vida agônica, sofrimento, melancolia, morte, desespero e angústia. 1 A mesma mão que aponta, como no filme do cineasta Theo Angelopoulos, Paisagem na neblina (1988), onde uma mão de concreto sem o dedo indicador emerge do mar, indicando para o acaso. 2 Grifos do autor.

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MORTE E LITERATURA: A POESIA DE SANDRA HERZER

Rodrigo Michell dos Santos Araujo (PPGL/UFS/FAPITEC-SE)

Fernanda Bezerra de Aragão Correia (PRODEMA/UFS/CAPES)

O que pode um texto? Um texto que chama, um texto que tudo diz, um texto louco, um

texto embriagado, um texto (in) consciente, indecidível, um texto-vida. E mais: um texto agonizante, um texto insone, um texto em êxtase, melancólico, desesperado. Um banho de chamas que destrói tudo por onde passa. Alerta de incêndio: apocalípticos, também podemos, assim, o chamar: textos-morte, tanatotextos que são sublimes e, ao mesmo tempo, degradados, enfermos, poeira. Como nunca dormem, cravadas nas potencialidades do vazio absoluto da página em branco, as palavras, ébrias, correm como fluxos, um turbilhão sem começo nem fim.

Da magia à fatalidade, da solidão ao grito de desespero, a obra da paranaense Sandra Mara Herzer assim sendo o nome de batismo do então Anderson Herzer, ou apenas Herzer é um intenso córrego que vaza por todas as frestas até chegar às profundidades últimas da vida. De idas e vindas, jogada no esquecimento e no silêncio da margem, Sandra deixou apenas uma obra: A queda para o alto (1985). Convergência de dores e tormentos, de fugas e retornos da FEBEM do Estado de São Paulo, uma obra que (de)cai para os cumes do desespero, ou para a morte; obra que joga o leitor para baixo, para o alto, para os lados, para o infinito, para o não-lugar. Fragmentos. Na obra, Herzer tudo diz, tudo aponta, tudo denuncia, tudo proclama, a ponto de nos perguntarmos: para que direção aponta?1 Dizer tudo sobre si próprio, tentando esgotar o texto finito e 2 (NASCIMENTO, 1999: 310). Divididas em duas partes, a primeira parte da Queda contém um depoimento de Herzer sobre a agonia de uma vida em chamas, um testemunho manchado de dor, e a segunda parte trazendo suas poesias. Autobiografia para a morte.

teorizações de autobiografia propostas por Philippe Lejeune, em O pacto autobiográfico (2008).

pacto, partimos da literatura íntima de Herzer rumo à experiência da morte, fazendo de sua obra uma tanatobiografia. Neste palco de paixões e crueldades, recorremos à construção de um espaço de morte, fundamentando a partir de Maurice Blanchot, fundamentalmente em suas obras O espaço literário (2011) e A parte do fogo (1997), um trânsito entre a experiência da morte e a literatura, ou um trânsito entre morte e vida, onde uma figure na outra. Assim, far-se-á, neste espaço construído, uma aproximação entre a obra e o pensamento do filósofo romeno Emil Cioran, a partir de sua primeira obra em romeno, Sur les cimes du désespoir (1990). O que pode, então, um encontro entre Herzer e o considerado, hoje, o mais pessimista dos filósofos, a hiena pessimista (PIVA, 2002)

Cioran (REDYSON, 2011) podem se estabelecer, tais como: vida agônica, sofrimento, melancolia, morte, desespero e angústia. 1 A mesma mão que aponta, como no filme do cineasta Theo Angelopoulos, Paisagem na neblina (1988), onde uma mão de concreto sem o dedo indicador emerge do mar, indicando para o acaso. 2 Grifos do autor.

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Sendo este encontro da poetisa possível com qualquer outro filósofo pessimista, justificamos o encontro com Emil Cioran justamente por ambos viverem uma vida inflamada de agonia e fazerem desta um movimento de flatter la mort, de desejar a morte, como se a morte, ao invadir a vida de tal modo, chegasse a assumir uma forma, corporificando-se, como a morte em forma de mulher vestida de branco e com seios à mostra no visceral filme de Ingmar Bergman, Na presença de um palhaço (1997). Estabelecidos os encontros, é a poesia de Herzer, então, um grito agônico, de denúncia e desespero, uma poesia-grito, ou poesia-protesto, que quer ser ouvida, vista, sentida, tocada. Uma poesia que fala com o coração, que canta como quem canta a última trova. E é com a experiência da morte que é, pois, a sua lírica uma poesia-dor.

1. Do encontro com a morte

O que é a morte? Por que pensar (n)a morte? Partir da filosofia pode-se observar a gama

de filósofos que se debruçaram sobre o tema. Filosofar a morte, pensemos fundamentalmente na filosofia antiga, é abrir-se para o pensar a existência. Desta base, e partindo da filosofia antiga, o filosofar a morte, no curso da filosofia, se abre por dois caminhos: um, de filósofos que trataram a morte como um nada; outros, que pensaram a morte como outra vida (cf. COMTE-SPONVILLE, 2002: 47). Assim sendo, vê-se que, em qualquer dos dois caminhos, filósofos buscaram responder a o que, de fato, vem a ser a morte.

Problematizá-la, amá-la ou admirá-la. É possível tal olhar para a morte sem, antes, temê-la? Temer a morte é sempre partir rumo a um conforto, a um porto seguro, a um consolo sintomáticas são as primeiras linhas do Livro Tibetano dos Mortos homem contemporâneo procura na ciência e na tecnologia a mesma segurança que o primitivo tentou encontrar nos rituais, e que os nossos antepassados mais recentes buscaram na fé

ndezas da morte esta que, digamos, atesta nossa finitude, existência do ser-para-a-morte (cf. HEIDEGGER, 2011) é um dar-se, um entregar-se: um exercício de admiração. Ao menos, assim será para o filósofo romeno contemporâneo que aqui escolhemos para estabelecer um trânsito com o corpus do artigo: Emil Cioran. O primeiro grito agonizante de Cioran dá-se com sua obra Sur les cimes du désespoir (1990), obra escrita aos vinte e dois anos. Acometido por insônia e ideia de suicídio, a primeira obra de Emil Cimais pessimista e agonizant 2011: 59). Obra síntese do seu pensamento (PECORARO, 2004), sua revolta contra o mundo.

A primeira tese da obra 1 (CIORAN, 1990: 28). Aqueles que gozam de boa saúde

são cap 2 (CIORAN, 1990: 30). Isto é, só na enfermidade, existencialmente falando, para se compreender a morte; só descendo às profundezas da fatalidade

ência de saúde, mas uma realidade tão positiva e tão durável quan 2011: 24).

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Mas é pela enfermidade que tanto se pode compreendê-la como materializá-la. Materialização que nos permite, pelo viés antropológico, compactuar com a tese de Louis Vincent-Thomas (1983: 186), para o qual -la em imagens, em nossos sonhos, obsessões, impulsos, para desejá-la ou temê-la; é também materializá-la em

1 . Enfermidade e agonia. Mas a agonia desvenda o aspecto 2 (CIORAN,

1990: 20). É como um banho de chamas que queima por dentro: fogo purificador. Luta entre vida e morte onde se vive a segunda de forma dolorosa, mas consciente.

Enfermidade e agonia: ambas desespero. Grito altissonante, pois um grito de desespero 3 (CIORAN, 1990: 27). Mas é o homem, descido na enfermidade, agônico, pois

sofre. Sofrimento existencial? Sem adentrar, deveras, nas profundidades das camadas da filosofia da existência, é salutar pontuar que, entre agonia e sofrimento, infiltra-

4 (CIORAN, 1990: 19); isto porque o sofrimento é um estado de solidão. As pesadas linhas do pensamento de Cioran mostram que o sofrimento é um dos pilares da

-se num mundo e(REDYSON, 2011: 62). As portas do Éden parecem estar trancadas para o homem e, por não conseguir achar a c 5 (CIORAN, 1990: 60). Não há como abrir as portas do paraíso, a não ser pela destruição. Deste modo, sugere-se que a saída para Cioran é destruir o mundo, queimá-lo.

Vida enferma, pois miserável. Assim Cioran formula a tese de maior impacto de sua obra Cimes du désespoir: 6 (CIORAN, 1990: 100). Com uma escritura que flerta com o literário, na forma prosaica por excelência7, Cioran, além de pôr em confluência filosofia e literatura, põe numa via de trânsito, ou melhor, põe numa mescla, morte e vida, onde a morte deita-se sobre a vida, figurando-se nela. Logo, portanto, a morte, para Cioran, sempre triunfa, vence. E mesmo que a morte triunfe o homem enfermo, cada dia, ape 1989: 51). Conclui-se assim, em síntese, o que se

filosofia negativa de Emil Cioran, ou um pensamento em chamas. Mas, na escrita, Cioran chama a morte, ou, se assim melhor cabe a compreensão, é na

escrita que a morte se espalha. Pensemos. Não foi o próprio filósofo estoico Lucio Anneo Sêneca, ou simplesmente Sêneca, que, em seu pensamento epistolar endereçado à Lucílio,

de ânimo como se a morte fosse me chamar 8 . Na, e pela escrita perguntamos: posso morrer?

Escrever é trazer a morte para perto. Aqui trazemos o crítico e ensaísta Maurice Blanchot, para o qual se tenta responder à questãhá a fazer [...]. O homem morre isso não é nada, mas o homem é

1 Representarse la muerte no es sólo vivirla en imagen, en nuestros sueños, obsesiones, impulsos, para desearla o temerla; és

rio autor, não implicando uma tradução técnica. 2 3 4 5 6 7 Na obra Breviário da Decomposição (1989), Cioran apresenta a tese de que sua filosofia não possui sistemas não sendo ele próprio

8 Grifo nosso.

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(BLANCHOT, 2011: 100)1. Para Blanchot, o homem dissimula-se na morte. Dupla dissimulação: na solidão essencié o que existe atrás do eu, o que o eu dissimula 2. Dupla simulação, na morte e na escrita, conclui-se a tese de Blanchot como literatura como um direito à

(BLANCHOT, 1997: 312). E, frente à morte, assim se sente o escritor, nesta longa citação primordial:

A literatura aparece então ligada à estranheza da existência que o ser rejeitou e que escapa a qualquer categoria. O escritor se sente preza de uma força impessoal que não o deixa viver ou morrer: a irresponsabilidade que ele não pode superar torna-se a tradução dessa morte sem morte que o espera à beira do nada; a imortalidade literária é o movimento pelo qual, até no mundo, um mundo minado pela existência bruta, se insinua a náusea de uma sobrevida que não é uma, de uma morte que não põe fim a nada. O escritor que escreve uma obra se suprime nessa obra e se afirma nela. Se a escreveu para se desfazer de si acontece que essa obra o compromete e o chama, e, se escreveu para se manifestar e viver nela, vê que o que fez não é nada [...]. Ou, ainda, ele escreveu porque ouviu, no fundo da linguagem, esse trabalho de morte que prepara os seres para a verdade de seus nomes: trabalhou para esse nada, e ele mesmo foi um nada no trabalho (BLANCHOT, 1997: 326-327).

A partir desta citação extensa, porém visceral, de Blanchot, chegamos à tese de que é a

pois um phármakon phármakon(DERRIDA, 2005: 16). Em Jacques Derri A Farmácia de Platão (2005), a escritura um pharmakón, remédio e/ou veneno: o escritor um pharmakós? Nas trilhas do surrealismo, Blanchot

do que válido pa1997: 93-94). Qual seria, então, a condição do escritor? Para quê escreve? Em um brilhante

-se em perigo sem se arriscar, um modo de suicídio, de autodestruição, que deixa lugar comodamente à mais segura auto-como um samurai nipônico a praticar o seppuko (cf. ARAUJO, 2012): meio Yukio Mishima, meio Paulo Leminski, escrever para (não) morrer.

Tecidas considerações sobre a morte, e o encontro morte e literatura, podemos construir um espaço de morte para trazermos a poesia de Herzer, e que esta, na dissolução que lhe é proposta, possa bailar num movimento de puro êxtase um movimento que põe a dançar não apenas a poesia de Herzer, mas os próprios campos filosofia e literatura. Tudo é posto em movimento, dissolução, frenesi, gozo. Assim, neste espaço construído, podemos destacar a poesia que encontrou (com) a morte, uma poesia-grito, poesia-dor: tanatoescrita.

1 Grifo do autor.

2 Grifo nosso.

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2. : uma poesia à espera. A escrita autobiográfica da primeira parte da Queda para o Alto já revela, de início, a vida

como sofrimento cioraniano de uma pessoa que lutou o quanto pôde pelos marginalizados. Somada à segunda parte, de poesias, a obra, no todo, nos revela uma poetiza que, na escrita, vai de Eros a Tânatos, que fez de sua escrita um grito de dor e morte, mas sem deixar de crer no amor. Em suas poesias mais expressivas, o amor é sempre fruto ou oriundo da dor. Em uma volta aos mitos gregos, Caos, o vazio primordial, gera Gaia (a mãe, a terra), Tártaro (o abismo), Eros (o amor), Érebo (escuridão) e Nix (a noite). De Gaia, gera Urano (céu), a quem Gaia se une, gerando outros vários filhos, como os ciclopes, titãs e suas irmãs. Filhos que o pai, Urano, irá odiar. Temendo o poder de Urano de gerar outros filhos, a mãe Gaia presenteia o filho mais novo, Chronos, com uma foice, e este, segundo a mitologia, corta o órgão genital de Urano para impossibilitá-lo de procriar. Da mutilação, o falo de Urano cai no mar, mas, na queda, o sêmen do falo decepado mistura-se com as brumas do mar, dali nascendo, então, Afrodite, deusa do amor e da beleza (cf. especialmente ROMILLY, 1998; ROBERT, 1987; VERNANT, 1999; 2001; 2002). Em uma leitura contemporânea da mitologia, seria, digamos, o amor nascente da dor. Amor e dor na mesma moeda. Postos lado a lado, a poesia de Herzer traz essa marca de amor, mas pelo viés da dor e do sofrimento. Se a vida lhe é angústia e agonia, sua poesia é uma foice, como a de Chronos, para, depois do golpe, nascer o amor.

Herzer fixa paixões e sofrimento na escrita. E nada melhor que María Zambrano, em um , da obra A Metáfora do Coração e Outros Escritos (2000), para

afirmar-o poeta penetra-a, já que a poesia está agarrada à carne. Com este movimento, revela-nos

um ir e voltar, um chamar para afastar; uma angústia sem limites e um amor propag(ZAMBRANO, 2000: 126). Como que se estivesse a ouvir as palavras de María Zambrano, a obra de Herzer permite a abertura para dentro e para fora, permite a fuga e a busca, ou, como conclui

A poesia de Herzer põe o leitor em queda, em todas as direções, fá-lo perder o rumo.

Ousamos uma provocação: por que não uma poesia autobiográfica, pensando, e até, de certo

Queda para o alto, assim revela a carga lírica de Herzer:

Eu decaí, eu persisti Tentei por todos os meios ser forte. Lutei contra o tempo, Chorei em silêncio Gritei seu nome ao vento. Sou filho da gota Fui templo de miséria Meu pai, um perdido Minha mãe, a megera. Cresci vendo prantos, Dormi em meio à mata

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Chorei gotas sanguíneas Sou o pecado, sou a traça. Eu ouvi um grito de desespero, Vi a lenta corrupção, Vi o olhar do corruptor, Vi uma vida na destruição Eu vi o assassinato do amor. Tentei, venci, a vitória conquistei Porém um dia faleci. Hoje estou em sua lembrança Eu sou sua alma oculta E serei sua esperança. (HERZER, 1985: 19)1.

Neste poema inicial, há uma grande força lírica que joga o leitor para um profundo

todo manchado de sangue, manchado de dor, de tristeza, de melancolia. O eu lírico do poema, que decaiu, mas persistiu, tentando ser forte, constantemente luta: com a vida, mas principalmente consigo mesmo. Neste embate, é como se, digamos, o eu lírico estivesse frente a frente com um espelho que lhe reflete um mau reflexo, imagem refletida de um eu ambíguo.

-se, pode constatar que sua imagem refletida também é miséria. Não deviam os espelhos pensar antes de devolverem as imagens?2 Cruéis espelhos a revelarem um pai perdido, uma mãe miserável, dura realidade: não é mesmo a literatura que permite o fugirpor todos os lados. Após o décimo terceiro verso, onde o eu lírico, mais uma vez, assume sua condição de enfermo o enfermo cioraniano , os versos seguintes além de refletirem, pelo duro espelho, imagens apocalípticas funcionar como uma câmera que filma em câmera lenta as agruras do real: a lenta corrupção, o corruptor, a vida em ruínas. O trágico. A tragicidade da vida exposta pelo assassinato do amor, do Eros. Mas é no vigésimo verso que o eu lírico encontra, por fim, a morte. E se restou apenas a lembrança, ou fragmentos de lembranças, é porque a morte é um lançar-se no nada. Nada

Os primeiros poemas da seção Poemas trazem a marca da lembrança, da partida, do adeus,

resultando, pois, a saudade, a solidão, o sofrimento, o choro, o vazio. Como se observa em

longos, enaltecendo o caráter de prosa poética, pois também são longas a saudade e a dor. Tanto -se um eu lírico que, como se

ébrio por estar perdido, movimenta-se no nada, no vazio. Como nota-se no seguinte verso de

145). Um dos expressivos poemas intitula-

1 Vale observar que, no capítulo XXI do diário que compete à primeira parte da obra, há uma pequena alteração no tocante aos

. Aqui, os versos estão mais longos. Pode-se observar, portanto, que, na versão do poema que abre a obra, os versos encontram-se mais lapidados e arrumados. 2 Vale lembrar a antológica frase do filme de Jean Cocteau, O sangue de um poeta

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Eu queria ser da noite o sereno E umedecer o vale seco e pequeno. Eu queria, no dia claro, luzir Para ao amor todo o povo conduzir. Eu queria que branca fosse a cor da terra E não vermelha, para inspirar a guerra. Eu queria que o fogo me cremasse Para ser as cinzas de quem hoje nasce. Eu queria que os mais belos poemas fossem de Deus Para neles encontrar as virtudes dos irmãos meus. Eu queria e muito queria saber ganhar Para que as simples alegrias pudesse comigo guardar. Eu queria, como queria, saber perder Para agora tanta saudade de ti, não sentir doer. Eu queria morrer agora, nesse instante, sozinho, Para novamente ser embrião, e nascer; Eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver! (HERZER, 1985: 147)1.

Poema de grande conteúdo subjetivo-sentimental e de apenas uma única estrofe de dezesseis versos, ou estrofe irregular, nota-se, quanto ao som do poema, a disposição de rimas emparelhadas obedecendo ao esquema AABB. Ainda no tocante ao som, quanto à simetria do poema, também pode-se observar a predominância do emprego de homeoptoto, isto é, repetição de várias palavras na mesma função. Pelo pretérito imperfeito do verbo querer, o eu lírico manifesta seus anseios, suas inquietações, suas ambiguidades: sereno/seco; noite/dia claro; saber ganhar/saber perder; morrer/nascer; morrer/viver. Um eu lírico na tentativa de proteger o próximo, o irmão indefeso, os marginalizados e os espaços secos, de opressão. Que o amor conduza o povo, que branca seja a cor da terra: uma poesia em defesa da vida, do amor. Mas como o sonho, o querer, de uma vida justa e sem guerra parece não se concretizar, forma-se o desejo de nulidade, de apagamento, de morte. Mesmo que das cinzas, como uma fênix, venha o renascer. Num movimento de queda, para o alto e para baixo, a poesia nos joga num labirinto de incertezas, e neste ponto onde tudo se mexe no turbilhão, podemos nos encontrar com Emil Cioran e suas proposições de que querer apagar-se, anular-se, diluir-se, nadificar-se. Querer morrer. Querer esgotar-se no branco vazio. E não é, mesmo, a morte um branco? 2 . Nada importa, êxtase da morte. le bain de feudesejado pelo eu lírico. A partir desse desejo, num movimento de êxtase, a poesia encontra a morte. O encontro vem do alto, diz-

3. Assim, perguntamos: a poesia encontrou o que queria? Encontrou a morte? A vida? Se a poesia de Herzer pode ser encarada como autobiográfica, esta não limita sua escritura

ao campo autobiográfico. A poesia de Herzer ultrapassa o limite autobiográfico e alcança o universal. Se as dores do poema de Herzer parecem ser as dores da poetiza, são, também, as dores do mundo, de um mundo manchado de vermelho que inspira a guerra, a violência, a opressão, o medo, a tirania, a dor, o choro, o ódio; e a poesia de Herzer pode ser tomada como um grito de 1 Observa-se que, na página 167 da obra, o mesmo poema encontra-se numa nova edição com o título modificado, constando

to verso editado, onde lê-Não há registros da época em que a autora editou o poema. 2 A morte como um branco, além de poder ser visualizado através da mulher vestida de branco em Ingmar Bergman, vale citar o branco da morte muito bem trabalhado no filme A Palavra (1955), do diretor dinamarquês Carl Theodor Dreyer, por meio de uma película quase sempre branca, e a morte podendo figurar-se na névoa. 3 -

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resposta a essa opressão. O poema mais expressivo e mais melancólico da obra, não eliminando o fato de os outros também o serem, chama-

E de chorar, já sou pranto; De relembrar, esquecido, Nas mãos, palmas calejadas Cavando desejos, proibidos. E de pensar, já sou louco, Não há encontro para mim, Não nome em tua lista, Não iniciei, sou sem fim. Com tantos erros passados, Ganhei má fama sozinho, Com tantos passos errados Não encontrei meu caminho. Tentei abrir as mãos e não vi nada, Nem mesmo aquele beijo da mulher falada, Nem aquele antigo abraço que ganhei, Eu lutei... perdi! Porque contigo errei. E de pecados, sou negro, De relutar, sou sem forças, De persistir, sou sem vista, De agredir, comunista! Não tenho eira nem beira, Não tenho amor para amar, Não posso amar quem não aceita Lutar e ver fracassar. E vou seguindo sem luzes, Ninguém verá minha partida, Não quero deixar saudades, Nem prantos na despedida. E se me quer na lembrança, Guarde meu nome contigo Meu nome é nome, só nome É simples mas decisivo. Na flor das noites de sangue Eu parto sem chorar dor, Eu parto, mas deixo contigo O que fui aqui, ... deixo amor. (HERZER, 1985: 158-159).

Relembrar, esquecer. Constantemente o eu lírico nega-se desejo da nulidade. Lançar-se -se até que nada sobre, ou sobre apenas o nome, um nome

nos versos sétimo e trigésimo primeiro ficam claro essa nulidade. Mas se eu lírico, ao negar-se, assume-se apenas como um nome, nome qualquer, abre-se também para o universal: quantos de

poesia de Herzer, a luta e a perda. As poesias lutam e, ao abrirem as mãos e nada verem, perdem, decaem, fracassam. Resta-lhe, pois, partir. Partir sem rumo, partir por todos os lados, partir para a morte. Partir para o branco vazio.

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Poesia-dor, se fazendo de desabafo, de uma poetiza que não esperou para ver sua única obra publicada. Intensa, Herzer morreu cedo. Cedo demais. Em um agosto de 1982 um corpo estendido gravemente ferido no viaduto 23 de Maio, em São Paulo, fora encontrado e levado ao Hospital Gastroclínica. Herzer, uma canção de amor em dias de frio, uma flor em noites de sangue, que fez da vida um palco. Antes de sua morte, Herzer escreveu um singelo poema,

Fiz de minha vida um enorme palco Sem atores, para a peça em cartaz Sem ninguém para aplaudir este meu pranto Que vai pingando e uma poça no palco se faz. Palco triste é meu mundo desabitado Solitário me apresenta como astro Astro que chora, ri e se curva à derrota. E derrotado muito mais astro me faço. Todo mundo reparou no meu olhar triste Mas todo mundo estava cansado de ver isso E todo mundo se esqueceu de minha estreia Pois todo mundo tinha um outro compromisso. Mas um dia meu palco, escuro, continuou. E muita gente curiosa veio me ver Viram no palco um corpo já estendido Eram meus fãs que vieram para me ver morrer. Esta noite foi à noite em que virei astro A multidão estava lá, atenta como eu queria. Suspirei eterna e vitoriosamente Pois ali o personagem nascia E eu, ator do mundo, com minha solidão... Morria! (HERZER, 1985: 12).

Dois apontamentos: primeiro, o poema é, digamos como um hino à Cioran, pois um personagem decaído e jogado em um mundo que lhe é puro sofrimento, isto é, viver, para este personagem, é o que Cioran chama de vida como um mau gosto, um plágio (CIORAN, 2004: 34).

personagens, experimentaram a vida como um mau gosto e, assim como Herzer, lutaram [Mishima e Herzer] com toda a força da brilhante espada samurai em defesa d

lírico para não se fazer ouvir, a encenação parece não se fazer ver. A saída? A morte. Tanto a poesia de Herzer quanto os personagens dos romances de Yukio Mishima encontram na morte a saída de um mundo que não se quer enxergar, de um mundo caduco que não saber ver. Assim, no palco o corpo estendido pôde ser visto. Ali virou astro ou estrela, para lembrar a personagem Macabéa, de Clarice Lispector, em A hora da estrela (1998). Também teve o mesmo destino Herzer, estendida sob o viaduto a virar astro no dia da estreia. Da vida, um aplauso.

Considerações finais

Morrer livremente. Experimentar a morte: desejá-la, encontrá-la, tocá-la, figurá-la. Uma

transa. Um gozo. Êxtase. Mas ainda voar nas asas da morte, romper-se no céu da morte, abrir-se

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para o branco da morte. Assim, onde tudo pode estar em movimento, onde tudo pode dar-se ao turbilhão da vida, construímos um espaço de morte. Com a poesia de Herzer e a filosofia negativa de Cioran, via crítica de Maurice Blanchot, tudo se pôs em trânsito, diálogos, confluências, intersecções. Neste frenético movimento onde todos se encontram, pudemos ver uma poesia que é ponte de Eros a Tânatos. Uma poetiza que escreveu suas cicatrizes, suas dores, suas paixões. Uma obra manchada de sofrimento.

A Queda para o Alto é uma obra que, caída no esquecimento da crítica literária, grita, mesmo que sua voz seja rouca; que luta, mas lhe falta força; que crê na esperança do amor; que crê na vida sem guerras. Como um samurai japonês que luta até o fim com honra e paixão, mas se lhe é posta a derrota, morrer-se-á com a cabeça erguida, pois a morte lhe é um princípio ético. Devir-morte: o que os japoneses chamam de seppuko. As páginas de Queda trazem, portanto, a experiência da morte, e por esta experiência alcançam os cumes do desespero. Porque, deste modo, morrendo nos convertemos em donos do mundo.

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