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Mostra do Redescobrimento. - adusp.org.br© Marcelino de Rezende Pinto 15 Fundações de apoio e financiamento público na USP Guilherme Ary Plonski 20 Motivos de sobra para repelir

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Mostra do Redescobrimento.6

500 anos, comemorações ou celebrações?AAnnaa MMaaee BBaarrbboossaa

Universidade em debate.

11A USP na hora da verdade

JJoosséé MMaarrcceelliinnoo ddee RReezzeennddee PPiinnttoo15

Fundações de apoio e financiamento público na USPGGuuiillhheerrmmee AArryy PPlloonnsskkii

20Motivos de sobra para repelir o ajuste liberal

LLuuiizz CCaarrllooss GGoonnççaallvveess LLuuccaass25

Entrevista DDaallmmoo DDaallllaarrii

37IV Congresso da USP

Universidade, visões antagônicas39

Reforma institucional, competitividade e autonomia financeiraBBrreesssseerr PPeerreeiirraa

48Resistir às determinações do mercado, em busca da autonomia do saber

MMaarriilleennaa CChhaauuíí

Brasil.

55Sobre a prisão de Benedito, Edmar, Elvis, Odair, Rosalino e Valquimar

JJoosséé MMoouurraa GGoonnççaallvveess FFiillhhoo63

Qual foi a vitória da oposição na última eleição do milênio?AAmméérriiccoo SSaannssiiggoolloo KKeerrrr ee MMaarrccooss NNaasscciimmeennttoo MMaaggaallhhããeess

DIRETORIAMarcos Nascimento Magalhães, Márcia Regina Car, Francisco Miraglia Netto,

Norberto Luiz Guarinello, Suzana Salém Vasconcelos, Lighia B. Horodynski-Matsushigue, Flávio Finardi Filho, Marcos Sorrentino, João Alberto Negrão, Clarice Sumi Kawasaki

Comissão EditorialAdilson Odair Citelli, Amilton Sinatora, Ciro Teixeira Correia, Flávio Wolff Aguiar,

Jair Borin, Luiz Menna-Barreto, Paulo Eduardo Mangeon Elias, Renato Queiroz

Editor: Pedro Estevam da Rocha PomarAssistente de redação: Antônio BiondiEditor de Arte: Luís Ricardo Câmara

Assistente de produção: Rogério YamamotoSecretaria: Alexandra M. Carillo e Aparecida de Fátima dos R. Paiva

Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosCapa: Luís Ricardo Câmara

Ilustração da capa: OhiCaricaturas da capa: Maringoni

Foto da capa: Daniel GarciaIlustrações: Ohi e Maringoni

Fotolitos: Bureau OESPImpressão: Gráfica Chesterman

Tiragem: 6 000 exemplares

Adusp - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374

CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SPInternet: http://www.adusp.org.brE-mail: [email protected]

Telefones: (011) 3813-5573/3818-4465/3818-4466Fax: (011) 3814-1715

A RReevviissttaa Adusp é uma publicação trimestral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo- S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem, necessariamente, o pensamento dadiretoria da entidade e são de responsabilidade dos autores. Contribuições serão aceitas, desde que ostextos, inéditos, sejam entregues em disquete e tenham, no mínimo, dez mil e, no máximo, vinte milcaracteres. Os artigos serão avaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.

CERT e fundações na berlindaO jurista Dalmo Dallari, professor da Faculdade de Direito, é um homem de 69 anos co-

nhecido por sua ponderação. Suas palavras sobre a CERT, na entrevista que publicamos nestaedição, devem portanto servir de alerta a todos os que se preocupam com a sorte da USP.Aquela comissão, disse ele, tornou-se “quase que um sistema à parte”, e a inexistência de cri-térios claros a leva a tomar decisões arbitrárias que envolvem a vida de docentes, departa-mentos e unidades. É preciso, enfatizou, rediscutir tudo que diga respeito à CERT.

Com esta e outras matérias, aprofundamos nesta edição o debate sobre a USP (e a Univer-sidade brasileira em geral). A par da defesa intransigente da educação pública, gratuita e dequalidade e da autonomia do saber, um traço une diversos textos: a referência às fundaçõesde direito privado existentes no interior da Universidade.

O professor José Marcelino, da FFCL-RP, ao comentar a proposta da Reitoria de estabe-lecer premiações por desempenho, hoje aparentemente relegada a segundo plano, sugere umnexo em geral desapercebido entre as fundações e a CERT, pois esta última deveria preocu-par-se, antes de tudo, com a demasiada “flexibilização” do RDIDP induzida por aquelas.

Também o professor Luiz Gonçalves Lucas, da Universidade Federal de Pelotas e diretorda Andes, trata das fundações ao examinar com perspicácia a reforma que vem sendo aplica-da pelo governo federal. Para ele, essas entidades são a fiel tradução prática da proposta de“organizações sociais” apresentada pelo ex-ministro Bresser Pereira.

A defesa das fundações comparece em texto do professor Guilherme Ary Plonski, dos de-partamentos de Administração da FEA e Engenharia de Produção da Escola Politécnica. Elepreside o Conselho Curador da Fundação Carlos Alberto Vanzolini e foi com este texto quedeu início à sua participação em debate preparatório ao IV Congresso da USP, realizado nodia 21 de novembro, no auditório do Instituto de Física.

Por outro lado, as fundações não escaparam à professora Marilena Chauí, da FFLCH, queno seu debate com Bresser, realizado em 20 de setembro pela Comissão Organizadora do IVCongresso da USP e reproduzido nesta edição, considerou necessário “reconsiderar de pontaa ponta” as fundações, como condição para a quebra do poder da “burocracia de tipo empre-sarial” que governa a USP. No debate, Bresser expôs seus argumentos em favor de uma refor-ma institucional da Universidade brasileira, baseada no modelo americano ou inglês e que,segundo ele, exclui a universidade pública estatal, por sua “ineficiência”. A universidadeideal, sustentou, é pública, mas não estatal, e exige competitividade a todo transe.

***

Esta edição da Revista Adusp, a última do milênio, traz ainda artigos de Ana Mae Barbo-sa, que traça um amplo painel da Mostra do Redescobrimento, erudito e bem-humorado; Jo-sé Moura, relatando o drama dos sem-terra condenados à prisão; Américo Kerr & MarcosMagalhães, avaliando as eleições de outubro, saudável chega-pra-lá na hegemonia neoliberal.

Desejamos aos nossos leitores um excelente 2001.

O Editor

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

500 ANOS,COMEMORAÇÕES

OU CELEBRAÇÕES?AAnnaa MMaaee BBaarrbboossaa

Professora da ECA-USP (aposentada)

Nada mudou em 500 anos. Índios foram espancados e os amigos do rei locupletaram-se. Em meio àscontrovérsias quanto a serem os festejos oficiais

comemoração ou celebração, a Mostra doRedescobrimento realizada em São Paulo suscitou uma

feroz luta de poder entre os donos dos bancos quedominam a política cultural das artes visuais no país.

Contudo, a exposição deveria ter merecido uma discussãomais conceitual. A primeira dificuldade, para o cidadão

comum, está na inacessibilidade dos catálogoscaríssimos, feitos para a Fundação Brasil 500 Anosganhar dinheiro e não para tornar o Brasil melhor

conhecido pelos brasileiros

Dezembro 2000RReevviissttaa Adusp

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As comemorações dos500 anos de “desco-berta” do Brasil fo-ram uma prova deque nenhuma formade colonialismo po-

de ser comemorada. Alguns pode-rosos, envergonhados, inventaramum subterfúgio: dizer que come-morar significa rememorar emconjunto, em comunidade e por-tanto tratava-se de análise de nos-so passado e não de celebração.Concluíram, portanto, que come-morar é politicamente correto,celebrar não é.

Não importando se foicelebração ou comemora-ção, os amigos do rei selocupletaram, confir-mando que nada mudounesses 500 anos: índiosforam espancados, répli-ca de caravela afundouetc. etc.

A maior parte das ativida-des que teve o selo dos 500anos iria acontecer no ano 2000quer se tratasse de 500 anos ounão. O setor editorial é que apre-sentou o saldo mais positivo dastais celebrações/comemorações.

Muitos títulos novos e reedi-ções sobre diversos aspectos daHistória e da Cultura brasileirachegaram ao mercado, talvezapostando no despertar da cons-ciência do brasileiro para sua ig-norância acerca da própria Histó-ria, despertar este provocado nes-te ano pelas constantes referênciasda mídia ao nosso passado. Masem torno do mês de junho a efer-vescência histórica da mídia haviasido aplacada.

Muito se falou de identidademas nada se ouviu falar sobre póscolonialismo.

Depois perguntam por quê aAustrália é um país desenvolvido.Lá estão mais preocupados em serpós colonizados do que em identi-dade. Teóricos do pós colonialismocomo Helen Tiffin, Bill Ashcroft eGareth Griffiths estão entre os maisconhecidos internacionalmente.

Embora preconceituosos, osaustralianos re+conhecem oAborígene, sua diferença e suasreivindicações. Todos os museus,por mais de vanguarda que pre-tendam ser, têm um setor de ArteAborígene tradicional e/ou con-temporânea.

Aí chegamos à área que maiscontrovérsia e disputa gerou nascomemorações dos 500 anos doBrasil: a Arte.

A Mostra do Redescobrimentorealizada em São Paulo nos prédiosdo Parque Ibirapuera, e por isto

confundida com a Bienal, suscitouuma feroz luta de poder entre osdonos dos Bancos que dominam apolítica cultural das artes visuais nopaís. Esta luta dominou o debate eradicalizou as posições. A turma dolado contrário fez política de terraarrasada, nada prestava na Mostrado Redescobrimento e a turmaaderida à Fundação Brasil500 anos não aceitavanenhuma crítica.

Contudo, a ex-posição deveria termerecido uma dis-cussão mais con-ceitual, pelo me-nos em respeito aosespecialistas nela envolvidos, comoEmanuel Araújo, Maria LúciaMontes, Kabengele Munanga, Dr.ªNise da Silveira, Luís Carlos Mello,Lize Salum, Nelson Aguilar, MariaAlice Milliet, Pernambucano deMello, Miriam Ribeiro, só para ci-tar os que mais conheço e admiro.

A primeira dificuldade para ava-liar a polêmica está na inacessibili-dade dos catálogos caríssimos, o

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

Uns dos problemas

mais discutidos foi a

cenografia de alguns módulos da

Mostra. Em O Olhar Distante me

irritou profundamente a imitação da

cenografia Walt Disney e a

submissão do visitante a um

percurso determinado pelo

designer

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Dezembro 2000RReevviissttaa Adusp

que impede o cidadão comum deler os textos que embasam a exposi-ção. São catálogos para a FundaçãoBrasil 500 Anos ganhar dinheiro enão um esforço editorial para fazero Brasil melhor conhecido pelosbrasileiros. Isso é lastimável em vir-tude de tanto dinheiro público dire-ta ou indiretamente envolvido.

Uns dos problemas mais discuti-dos foi a cenogra-

fia de alguns

módulos da Mostra. Con-fesso que estava ansiosa para

gostar, aprovar e defen-der a teatralização dosespaços expositivos,

por pensar que esse éum dos caminhos mais

claros da museografia pós mo-derna. Entretanto, no O Olhar Dis-tante me irritou profundamente aimitação da cenografia Walt Disneye a submissão do visitante a um per-curso determinado pelo designer.

A teatralização nas exposiçõesde arte procura explicitar contextos,entretanto respeitando a visibilida-de das obras, assim como a police-mia interpretativa do observador.

No caso do Barroco, cenografa-do por Bia Lessa, a contextualiza-ção foi bem sucedida. Ao entrarno espaço de representação do Sa-grado Católico o roxo que remeteaos rituais da Semana Santa eraimpactante e rememorante.

Entretanto, a estatuária barrocabrigava e perdia a luta para se tor-nar mais visível do que a cenografia.Embora sedutora a associação entre

procissão e carnavalização induzidapela cenógrafa, empobrece a exposi-ção porque reduz o seu significado auma única interpretação.

Exposições que conduzem auma única interpretação são auto-ritárias e limitadoras da capacida-de crítica do espectador.

O módulo mais bem realizadodo ponto de vista de espaço, con-ceito e narrativa foi o de Imagensdo Inconsciente. As magníficas ex-posições organizadas anteriormen-te pela Dr.ª Nise da Silveira, na es-colha, privilegiavam as imagens

que confirmavam conceitos jungia-nos. No Redescobrimento a plura-lidade de abordagens teóricas psi-canalíticas e psicológicas da ima-gem era evidente, resultando emvariedade estilística.

A exposição se iniciava pelaobra de Arthur Amora, paciente doEngenho de Dentro, cujo trabalhoé geométrico abstrato. Nunca viseus trabalhos expostos antes, masos conhecia através de Almir Ma-vigner, que orientou Amora e foi oprimeiro artista a trabalhar com a

Dr.ª Nise da Silveira. Não con-cordo com a interpretação de

que seu trabalho se trataapenas da simplificação darepresentação de peças dedominó e pelo contrário,penso que Amora foimuito influenciado pelasabras concretistas do mes-

tre Almir Mavigner cujoatelier chegou a visitar. Leo

Navratil demonstrou nos idosde 60 as tensões miméticas no

desenho de sofredores mentais e acapacidade deles para operar relei-turas de imagens que os fascinem.

Artur Bispo do Rosário e Auro-ra são pontos altos da exposição,que muito adequadamente e res-peitosamente enriqueceu o obser-vador com sintéticas histórias devida dos artistas.

Entusiasmantes também foramos módulos de Arte Popular e Ne-gro de Corpo e Alma, que tambémrecusaram elementos cenográficos,orientação que infelizmente nãofoi seguida no módulo Arte Afro-Brasileira cuja excelente escolha foiperturbada perceptivamente pelaslongas cortinas que me lembraram

Revoltada com

a borracha da história sobre

a produção da mulher no módulo

Arte no Século XIX, ao chegar em casa

consultei o livro de Theodoro Braga

sobre Arte Brasileira. Encontramos

mais de 300 mulheres catalogadas

como artistas no

Século XIX

festa em colégio de freiras. A pe-quena seleção de arte africanaapresentada nesse módulo era degrande relevância e a relação esta-belecida entre as peças uma dasmais altas experiências estéticasque a Mostra proporcionou.

O Módulo de Artes Indígenasquestionou pela própria cenografiavisões preconceituosas. Nosso indí-gena, que sempre foi consideradocomo selvagem e primitivo, tevesua produção inserida num am-biente cosmificado e luminoso,oposto à idéia de caverna eselvageria, apontando muitomais para a idéia de futurodo que para a idéia depassado, preconceituosa-mente colada à concep-ção comumente difundi-da acerca do indígena.Reforçando o diálogo en-tre passado e presente, seincluiu também a produçãodo indígena atual ao lado daprodução histórica, que se encon-tra em museus do exterior. Ques-tionou-se, portanto, o conceito deprimitivo e o conceito de tempo.

Completamente decepcionantefoi a exposição sobre a Arte no Sé-culo XIX. A curadoria parece terassumido os mesmos valores queregiam a Escola Nacional de BelasArtes naquele tempo. Nenhumaousadia de revisão ou de reinter-pretação. Acredito que o conceitoque regeu a exposição foi inclusivemais conservador do que a própriaEscola Nacional de Belas Artes.Basta lembrar que não há nenhu-ma obra de mulher na exposição ea ENBA cultuava pelo menosGeorgina de Albuquerque.

Revoltada com a borracha dahistória sobre a produção da mu-lher ao chegar em casa, consulteiaté altas horas da noite com Fer-nanda Cunha, uma aluna, o livrode Theodoro Braga sobre ArteBrasileira, emprestado por doisdias de um sebo. Encontramosmais de 300 mulheres catalogadascomo artistas no Século XIX.

O exaustivo módulo de Arte

Contemporânea, parecendo atéque a intenção era não deixarninguém de fora, foi reavaliadopara a itinerância em Portugal,com uma conseqüente reduçãoproposta por Jorge Molder, dire-tor da Fundação Calouste Gul-benkian e a magnífica idéia deacrescentar quatro excelentes ar-tistas: Neide Jallageas, RosanaPaulino, Eduardo Coimbra e Ar-tur Lescher.

Alguns artistas da facção do ou-tro Banco, que determina a políti-ca das Artes Visuais no país, pro-

meteram boicotar a itinerância,mas no fim se renderam e optarampela visibilidade na parede do ou-tro lado do Atlântico. Deram adesculpa de que entenderam setratar de uma nova exposição. SóCildo Meireles permaneceu fiel àFundação Bienal ou ao BancoItaú, contra a Associação Brasil500 Anos ou Banco Santos, e reti-rou suas obras da itinerância.

A clonagem, feita no Brasil, deartistas europeus e norte-america-

nos, que os críticos brasileiros fin-gem não ver, deu lugar a uma

frase irônica de Jorge Mol-der: “nosso critério foi eli-minar trabalhos muitopróximos a obras de artis-tas portugueses”.

Colonialismo é isto aí:o que deveria ser itinerân-

cia de uma exposição apre-sentada no Brasil é recon-

ceituado pela matriz.Outra dica para pensar o

colonialismo e reconsiderá-lo àluz de teorias pós coloniais é o fatosurpreendente de que na Mostrado Redescobrimento os módulosdas minorias (arte africana, artepopular, arte dos loucos, arte dosíndios) obscureceram a arte hege-mônica, obediente aos códigos eu-ropeus e norte-americano branco.Muita obra de arte de código altoempalideceu frente à arte de códi-go baixo.

Apesar do pós modernismo aluta de classes continua se refletin-do na Arte e com a autoeliminaçãodo Estado como estimulador dacultura, outra luta, a capitalista,determina os destinos da Arte e demuitos artistas neste país. RA

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Na Mostra do

Redescobrimento os módulos

das minorias obscureceram a arte

hegemônica, obediente aos códigos

europeus e norte-americano branco.

Muita obra de arte de código alto

empalideceu frente à arte de

código baixo

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A USP NA HORADA VERDADE

JJoosséé MMaarrcceelliinnoo ddee RReezzeennddee PPiinnttooProfessor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto-USP

A excelência acadêmica é um projeto coletivo e temcomo pressuposto a indissociabilidade de ensino,

pesquisa e extensão. A proposta da Reitoria de“premiar a competência” procura legitimar a prática

de complementações baseada na “flexibilização”do RDIDP e fomentada pelas fundações.

A CERT deveria debruçar-se sobre este problema,ao invés de usurpar competência dos colegiados

Passada a euforia deuma greve vitoriosagraças à competência,organização e ao bomsenso do conjunto dosprofissionais das uni-

versidades públicas paulistas, lide-rados por suas entidades represen-tativas, é o momento de retomar-mos algumas questões postas emcirculação pelos órgãos ligados àReitoria da USP antes do início domovimento e, a meu ver, não sufi-cientemente debatidas. Em espe-cial quero discutir a proposta que,sob o argumento de que a compe-tência deva ser premiada, introduzuma série de mecanismos de dife-renciação salarial. A pergunta quefica é a seguinte: como premiar al-go que é o próprio pressuposto dacarreira universitária? É comopremiar alguém por ser honesto.

Se existem docentes incompe-tentes, ou que não se dedicam àssuas atividades, estes devem seralertados, se possível corrigidos eeventualmente excluídos do qua-dro universitário. Ademais, aquelesdocentes que efetivamente se des-tacam nas áreas de pesquisa, ensi-no ou prestação de serviço, já sãodevidamente compensados. Assimé que os grandes pesquisadores sãotratados a pão de ló pelas agênciasde fomento, os bons professoressão sempre homenageados pelosseus alunos (quer melhor prêmio?)e aqueles que se destacam em de-volver para a sociedade, na formade serviços, um pouco do que aquise produz, recebem o seu retornoatravés do carinho e reconheci-mento da comunidade atendida.

Portanto, quando fala em pre-

miar aqueles docentes que se des-tacam individualmente, o que aReitoria está propondo é uma mu-dança na filosofia implantada naUSP pelos seus idealizadores em1934, que a fez diferente das suascongêneres na época e que explicaboa parte de seu sucesso. Esta filo-sofia tinha como pressuposto a in-dissociabilidade das atividades deensino, pesquisa e extensão e o en-tendimento de que a excelência

acadêmica é um projeto coletivo. O que fez o sucesso da USP foi

exatamente o fato de ela ter adota-do um modelo não referenciado em“pagamento por peças”, que é o quese propõe: eu publico mais, ou eudou melhor aula, ou eu trago maisrecursos, logo eu tenho direito deganhar mais. E o mais curioso destadiscussão é que o modelo até hojeem vigor tem dado ótimos resulta-dos como as estatísticas não cansamde mostrar. É como mexer em time

que está ganhando. A eventual mu-dança deste padrão de organizaçãoda universidade requer uma discus-são prévia sobre a necessidade defazê-lo. Sem falar que o modeloproposto pela reitoria já mostrou asua falácia no próprio campo da ad-ministração de empresas, onde omodelo de premiação individual es-tá sendo substituído por aquele re-ferenciado no trabalho em equipe.

O que é mais grave na propostada Reitoria é que, no fundo, elavem para legitimar uma política deremuneração diferenciada já exis-tente, viabilizada através dos com-plementos salariais propiciados pe-las fundações que pululam na USP,colocando esta instituição no li-miar da ilegalidade, em especialnas áreas da saúde e do ensino. Va-mos aos fatos: no caso da saúde, oatendimento diferenciado feito pa-ra clientes particulares em equipa-mentos públicos (Hospital das Clí-nicas, Incor etc.) tem provocadodenúncias freqüentes do Ministé-rio Público conforme temos acom-panhado pela imprensa, compro-metendo o bom nome da universi-dade e criando duas categorias dedocente: aqueles que recebem, di-ferentemente de seus colegas, com-plemento salarial por exercer ativi-dade que, ou já faz parte de seucontrato de trabalho e portantonão caberia adicional, ou não cons-ta de suas funções enquanto docen-te da USP e portanto não poderiaestar sendo exercida por um docen-te em RDIDP. Se na saúde a ques-tão é grave, na área do ensino o si-nal vermelho já foi ultrapassado.

A Constituição Federal estabe-lece como princípio a “gratuidade

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Basta abrir qualquer

jornal para se

encontrar, sob a

chancela do nome USP,

os mais variados

cursos pagos,

ministrados por

professores desta

universidade através

das famigeradas

fundações

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do ensino público em estabeleci-mentos oficiais” (artigo 206, incisoIV). Ora, que se vê hoje em dia?Basta abrir qualquer jornal degrande circulação para se encon-trar facilmente, sob a chancela donome USP, os mais variados cursospagos, oferecidos em prédios dauniversidade e ministrados por pro-fessores desta mesma universidadeatravés das famigeradas fundações.O fato de serem cursos não regula-res não desobriga o cumprimentoda Constituição Federal que adotao conceito amplo de ensino. Eupergunto: as fundações neste casonão estão servindo meramente co-mo um meio de burlar o que deter-mina a nossa lei maior? A USP po-de ser conivente com isso?

Sei que afirmações como estasgeram reações adversas de muitoscolegas, que alegam ser este com-plemento de renda o que lhes per-mite viver com um mínimo de dig-nidade. A meu ver esta posição éfalsa por dois motivos: primeiroporque este ganho ocorre apenasno curto prazo; a longo prazo oque acontece é que a universidadevai progressivamente se desobri-gando com o pagamento do salá-rio; não há um acréscimo global derenda, apenas uma substituição defontes, sem falar que quando chegaa aposentadoria... Prova cabal des-te fato é que, apesar do aumentodo número de aposentados, os gas-tos com pessoal da USP reduziram-se de 85,7% do total em 1995 para84,4% em 1998 (incluindo os apo-sentados e precatórios) e atingiramapenas 75,7% no período que vaide janeiro a novembro de 2000.

O segundo ponto é que este ga-

nho adicional só ocorre enquantopoucos participam do esquema; àmedida que se generaliza o ofere-cimento de serviços pagos, a velhalei da oferta e da procura joga ospreços para baixo. Neste aspecto,uma atitude imediatista vai noscausar um custo muito elevado nofuturo. Um outro argumento utili-zado pelos que defendem estaspráticas é que, sem elas, muitasatividades da universidade deixa-

riam de funcionar, incluindo oshospitais-escola. Creio que se auniversidade pretende vender ser-viços para alavancar fundos, que ofaça de maneira transparente e detal forma que os recursos advindossejam socializados para o conjuntoda comunidade universitária (do-centes, alunos e funcionários).

Quando um docente está pres-tando uma assessoria, atendendoclientes numa clínica médica, ouoferecendo um curso de extensão,

atividades estas pagas, ele, com cer-teza, está deixando de fazer, ou nãofazendo com a devida dedicação, al-guma das atividades-fins da univer-sidade e portanto está (espera-se)sendo substituído por outros colegasnestas tarefas. Logo, os benefíciosfinanceiros daí advindos devem sersocializados. Em resumo, a famige-rada flexibilização do RDIDP, quefoi o artifício regimental que propi-ciou todas estas distorções, gerouum câncer que, a meu ver, está cor-roendo a universidade em suas en-tranhas. Como diz Luiz AntônioCunha, o Brasil inovou na matéria,criando fundações sem fundos...

Nos EUA são os fundos propi-ciados por doações de algum milio-nário vaidoso, benemérito ou arre-pendido de seus pecados que pro-piciam recursos para que as funda-ções prestem serviços à sociedade.Aqui é a sociedade que tem quepropiciar os fundos para que os in-tegrantes das fundações paguemsuas contas no final do mês. Nesteaspecto, a primeira providência aser tomada é que se torne públicoatravés do site da USP a execuçãoorçamentária de todas as fundações(quantas são?) existentes em seuinterior ou que usam, de uma for-ma ou de outra, o seu santo nome.

Por último, cabe um pequenocomentário sobre a Comissão Espe-cial de Regimes de Trabalho(CERT) que é quem deveria estarexatamente fazendo uma discussãoprofunda sobre os efeitos que estaflexibilização dos regimes de traba-lho está ocasionando na universida-de. Longe de se dedicar a esta no-bre tarefa, contudo, esta comissãotem interferido em assuntos que ex-

Há uma usurpação de

competência por parte

da CERT. O Estatuto

da USP é cristalino:

cabe à CERT “opinar

acerca do regime de

trabalho”. Nossa

língua é clara: opinar

é diferente de deliberar.

Quem delibera são

os colegiados

trapolam a sua competência. O pri-meiro deles refere-se a uma usurpa-ção de competência estatutária porparte desta comissão, como bemalertou a assessoria jurídica daAdusp. O artigo 91 do Estatuto daUSP é cristalino: cabe à CERT “opi-nar acerca do regime de trabalho”.Ora, a língua portuguesa é clara:opinar é diferente de deliberar.Quem delibera são os colegiados. Enão poderia ser diferente, visto quea CERT é uma comissão assessorado Reitor, ocupando seus integran-tes cargos de confiança, e logo nãopode ter caráter deliberativo.

Apesar da letra do Estatuto,que é a lei maior da USP, esta co-missão tem ignorado solenementeas decisões dos colegiados. Se estacomissão discorda de alguma deci-são de Congregação, o que é justoe faz parte de sua atribuição, queoriente o Reitor e que este recorraao colegiado superior. O contráriodisto é o arbítrio, a injustiça e, aofinal, geralmente mais um precató-rio a ser pago pela Universidade.

O segundo aspecto refere-se aosdocumentos Diretrizes de avaliaçãodas atividades docentes e Normas bá-sicas internas da CERT. Se é louvá-vel que esta comissão apresente suaproposta para o conjunto da comu-nidade, é, por outro lado, inaceitá-vel que um assunto desta importân-cia seja encaminhado da forma co-mo o foi até o momento, através depequenas reuniões com diretores oudocentes, onde a proposta é apre-sentada como fato consumado. Ve-mos aqui mais uma vez a CERT ex-trapolando a sua competência legal.

As diretrizes de avaliação daatividade docente devem nascer de

um fórum unificado de discussão(como foi, por exemplo, o Fórumdo Ensino de Graduação, promo-vido pela Reitoria) envolvendo astrês pró-reitorias da universidade eque conte com a presença de espe-cialistas em avaliação o que, obvia-mente, não é o caso dos integran-tes da CERT, e nem deveria ser,cabendo a deliberação final aoConselho Universitário, órgão má-ximo de decisão na universidade.

Por suas implicações, um assuntodesta natureza não pode ser decidi-do no âmbito de um grupo restritode assessores de confiança do reitor,por mais dignos e respeitáveis queeles sejam. Neste aspecto, é curiosoobservar que, quando o assunto éseu próprio funcionamento, a uni-versidade aja de forma tão amado-ra. Apesar de produzir conhecimen-to rico e inovador sobre avaliação, aUSP não usa este conhecimento eos profissionais que o geram. Emoutras palavras, age-se de forma ab-solutamente não científica.

Neste sentido, é sintomática areação da universidade ante o Pro-vão do MEC: apesar de assumiruma postura crítica frente a ele, te-ve de engoli-lo por não ter desen-volvido até então qualquer proces-so sistemático de avaliação de seuscursos, apesar de uma ampla pro-dução científica na área. Mais doque isso, a USP aceita passivamen-te que seus alunos se submetam aoProvão, mas se recusa a participarda Avaliação das Condições deOferta feita pelo mesmo MEC.

Creio que a USP tenha que fa-zer uma discussão aprofundada so-bre competência e dedicação, po-rém pensando-as não como atribu-tos individuais de seus docentesmas enquanto um projeto coletivode universidade. Entendo que de-vemos nos questionar, sim, sobrenossa competência quando vemostantos ex-alunos e ex-docentes queocupam ou ocuparam posição dedestaque no palco decisório dopaís e que usaram a competênciaaqui adquirida seja para tentar le-gitimar a ditadura no país (Gamae Silva), ou para manipular os ín-dices de inflação (Delfim), ou ain-da para confiscar a poupança dosbrasileiros (Zélia), ou então para,em nome da modernidade e rene-gando tudo que disse ou escreveu,implantar uma política que destróio pouco de social que havia no Es-tado brasileiro, fragilizando os fra-cos e robustecendo os fortes, valo-rizando o individualismo e a com-petição em detrimento da solida-riedade que passa a ser confundidacom caridade (FHC). Será isto oque desejamos para a Universida-de de São Paulo? RA

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

Apesar de produzir

conhecimento rico e

inovador sobre

avaliação, a USP não

usa este conhecimento

e os profissionais que o

geram. Em outras

palavras, age-se de

forma absolutamente

não científica

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Dezembro 2000RReevviissttaa Adusp

FUNDAÇÕES DE APOIOE FINANCIAMENTOPÚBLICO NA USP

GGuuiillhheerrmmee AArryy PPlloonnsskkiiProfessor associado do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica

A legislação que rege a aplicação dos recursosorçamentários investidos pelo Estado no ensino

superior tolhe a agilidade e flexibilidade necessáriaspara responder às demandas por projetos

inovadores. As fundações permitem superar essaslimitações de forma legal e legítima

Agradeço à Adusp oconvite para partici-par do debate sobrefundações de apoioe financiamento pú-blico na nossa Uni-

versidade de São Paulo. Cumpri-mento os colegas ‘uspianos’ queintegram a mesa e saúdo o nobredeputado estadual César Callega-ri, incansável defensor da causa daeducação pública de qualidade. Odeputado acaba de retornar do es-tado de Andra Pradesh, na Índia,onde participou, em missão ofi-cial, da International Conferenceon “Strengthening Values Educa-tion” , evento organizado pelaUnesco, que realça no próprio tí-tulo a centralidade dos valores noprocesso educacional.

Colegas docentes, servido-res(as) não-docentes, estudantes: éjustamente sobre valores que cen-trarei minha contribuição nestedebate. Nem poderia ser diferente,uma vez que a manchete da pri-meira edição do Jornal do IV Con-gresso da USP é a pergunta funda-mental “Que Universidade quere-mos?”. Minha resposta é que que-remos a USP uma instituição im-buída de valores humanos de res-peito à liberdade, busca da verda-de, justiça, universalismo — valo-res a serem sempre defendidos nosmomentos de adversidade e turbu-lência. Queremos a USP em contí-nua busca da excelência nas varia-das dimensões da vida acadêmica ecrescentemente conectada com osdiversos segmentos e espaços doseu entorno sócio-econômico.

Numa visão de conjunto, as co-nexões existentes com o entorno só-

cio-econômico configuram uma re-de ampla, alimentada por fluxos deconhecimentos. Essa rede USP en-volve ativamente milhares de esco-las públicas fundamentais e médias,milhares de empresas e empreen-dedores(as), centenas de órgãos go-vernamentais, centenas de entida-des comunitárias e do terceiro setore, também, dezenas de instituiçõesde ensino superior e institutos de

pesquisa do País e do exterior. Pelaexigüidade do tempo, deixo de ilus-trar esta exposição com alguns dosfascinantes projetos inovadores queengrandecem o nome da USP.

Aproveito pela lembrar quemuitas dessas conexões estão aces-síveis no USPonline e que centenasdessas iniciativas estão referencia-das nas publicações “USP serviçoseducação”, “USP frente ao desafioda inclusão social” e “Universida-de e sociedade: experiências daUSP”, disponibilizadas pela Cecae.

Cabe sublinhar o caráter intera-tivo da relação Universidade-So-ciedade. Assim, deve a Universida-de continuar a estabelecer a suaagenda combinando, por um lado,o princípio da autonomia e, pelooutro, a sensibilidade cada vezmais apurada às demandas dos dis-tintos atores sociais. Igualmente,deve a Universidade de São Pauloaprimorar permanentemente oprocesso de democratização do sa-ber, valorizando a conexão com osvários segmentos de uma socieda-de em rápida transição.

Na construção da extensa emultifacetada rede de conexões daUSP, um modelo único não supretodas as características requeridaspara assegurar uma cooperaçãofluida com tantos atores sociais di-ferentes, num ambiente em muta-ção permanente. Assim:

• A necessidade de articularconhecimentos de várias especiali-dades, gerando sínteses capazes deresponder a questões concretas dasociedade levou à criação de cen-tros interdepartamentais, de núcleosde apoio à pesquisa e de núcleos deapoio à cultura e extensão.

• A demanda de comunidadese de pequenas empresas sustentaas empresas juniores e outros meca-nismos associativos de estudantes.

• A exigência de mecanismosde gestão de recursos compatíveiscom o ciclo do tempo de organis-mos governamentais e empresasem projetos inovadores é uma dasbases das fundações de apoio.

A concepção de novos modelosprossegue, refletindo a vitalidadeda USP na resposta adaptativa anovos desafios. Vejamos três exem-

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A exigência de

mecanismos de gestão

de recursos

compatíveis com

o ciclo do tempo

de organismos

governamentais e

empresas em projetos

inovadores é uma

das bases das

fundações de apoio

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plos recentes:• A ênfase na sinergia entre as

dimensões de pesquisa, inovação edifusão do conhecimento levou àrecente criação de Cepids, estimu-lada pela Fapesp.

• A conveniência da articula-ção entre os celeiros de talentostecnológicos co-localizados nestecampus da Cidade Universitáriaoriginou o Centro Incubador deEmpresas Tecnológicas – Cietec,numa parceria entre a USP, IPEN,IPT, Sebrae-SP e Secretaria daCiência, Tecnologia e Desenvolvi-mento Econômico; e,

• A percepção do potencial dasíntese entre os princípios da incu-bação de novos empreendimentose a abordagem da economia soli-dária para responder, de formainovadora, ao desafio da geraçãode renda levou, no contexto doProjeto Avizinhar, à criação da In-cubadora Tecnológica de Cooperati-vas Populares.

O quadro de referência expos-to indica as fundações de apoiocomo uma das muitas espéciesque atuam na diversidade neces-sária para uma saudável coopera-ção Universidade-Sociedade. Ca-be ressaltar algumas das caracte-rísticas específicas dessas funda-ções de apoio:

a) São instituídas, mediantedoação de bens livres, por docen-tes (como é a Fundação CarlosAlberto Vanzolini-FCAV, nos idosde 1967, com aprovação do De-partamento de Engenharia deProdução da Escola Politécnica)ou por ex-alunos (individualmenteou pelas suas associações) ou, ain-da, pela própria Universidade (co-

mo foi o caso da Fuvest e daFUSP, por decisão do ConselhoUniversitário).

b) Sua missão institucional é acolaboração com a Universidadeou com parte dela (este é o casoda FCAV, que colabora com o De-partamento de Engenharia deProdução).

c) Sem fins lucrativos, têm per-sonalidade jurídica privada de inte-

resse público, que lhes permite aagilidade e flexibilidade necessá-rias à dinamização dos fluxos deconhecimento entre a Universida-de e outros entes da sociedade.

d) São veladas pelo MinistérioPúbico ao longo de toda a sua exis-tência, que verifica se estão sendocumpridos os objetivos estabeleci-dos pelos instituidores. Destaca-sea figura do Curador das Fundações.

e) Os(as) integrantes do Con-selho Curador da FCAV são elei-tos(as) pelo colégio pleno dos(as)

docentes ativos do Departamentode Engenharia de Produção. OConselho Curador, democratica-mente eleito, escolhe a DiretoriaExecutiva.

f) As fundações de apoio man-têm convênio com a USP, em quese explicita esse desejo de colabo-rar com a Universidade ou comuma parte dela. No caso da FCAV,reza o convênio, aprovado peloConselho do Departamento, queela “proverá, na medida de suaspossibilidades, recursos para tra-balhos ou iniciativas a serem reali-zadas pela Escola Politécnica daUniversidade de São Paulo oucom sua colaboração, que propi-ciem o desenvolvimento tecnoló-gico da engenharia de produção eda administração industrial, bemcomo a melhoria do seu ensino eaprendizado.”

É oportuno destacar algumasdas formas pelas quais esses obje-tivos vêm sendo realizados:

a) Gestão de cursos de educa-ção continuada, organizados peloDepartamento de Engenharia deProdução, entre os quais se desta-ca o Curso de Especialização emAdministração Industrial, que vemoperando com êxito há mais devinte anos. A ele acorreram dozemil profissionais, em busca de co-nhecimentos que permitam seuaperfeiçoamento, aumentando suaempregabilidade. Esse curso deespecialização, considerado refe-rência, foi aprovado por todas asinstâncias da USP.

b) Apoio à introdução pioneirano país das novas tecnologias desuporte ao processo de ensi-no/aprendizagem (conhecidas co-

As fundações de apoio

são uma das muitas

espécies que atuam na

diversidade necessária

para uma cooperação

Universidade-

Sociedade. Sua missão

institucional é a

colaboração com a

Universidade ou com

parte dela

mo de “ensino à distância”) naárea da engenharia. Assim, comrecursos do Programa Reenge daFinep e a parceria da UniversidadeFederal de Santa Catarina, foimontada a Rede Brasileira de En-genharia, com mais de cem escolasde engenharia em todo o país, in-clusive em regiões menos desen-volvidas. Entre os conteúdos estãoo “Engenheiro 2001” e, com recur-sos do Ministério do Trabalho eEmprego, o “Projeto E”, voltadoao empreendedorismo (que foitransmitido, inclusive, pela TVUSP no Canal Universitário).

c) Ainda no âmbito do Labora-tório de Tecnologia Educacional, oProjeto WWW.Escola, que contri-bui para atenuar a brecha digitalno sistema educacional público.

d) Apoio à pesquisa e à publi-cação, por intermédio do Fundode Apoio à Engenharia de Produ-ção e o suporte à publicação de li-vros pelos(as) docentes do Depar-tamento.

e) Apoio ao ensino de gradua-ção, pela publicação de textos didá-ticos e pelo estabelecimento de prê-mios para trabalhos de formatura.

f) Estímulo à pós-graduação,facilitando a mobilidade, no país eno exterior, de estudantes para ex-porem seus trabalhos em congres-sos e seminários da área.

g) Apoio decisivo na organiza-ção do marcante encontro da co-munidade brasileira de engenhariade produção — o Enegep 2000,realizado na Escola Politécnica hápouco mais de um mês, com a par-ticipação da liderança intelectualinternacional nesse campo.

h) Prestação de serviços tecno-

lógicos, particularmente na áreade certificação de qualidade emprocessos e produtos, que são es-tratégicos para a manutenção dacapacidade das empresas brasilei-ras de gerar empregos. Esses ser-viços, que permitem à sociedadeacessar o conhecimento acumula-do no Departamento, tambémcontribuem expressivamente para

o ensino e a pesquisa, ensejando arealização de trabalhos de forma-tura, dissertações e teses focali-zando o campo da qualidade.

i) Desenvolvimento de estudosrelevantes para políticas públicas,como é o caso do estudo da cadeiaautomobilística, recentemente con-tratado pelo BNDES, articulandoas competências do Departamentode Engenharia de Produção e deoutras áreas da Universidade.

j) Apoio à participação crítica doDepartamento em questões de rele-

vância social, tais como as relaçõescapital-trabalho, a saúde e a segu-rança dos(as) trabalhadores(as) e osimpactos da terceirização.

É infundada a afirmação, espo-sada por alguns colegas, talvezpor falta de informações comple-tas, de que as fundações de apoioprivatizam a universidade pública.Primeiro, porque é vedada atransferência de recursos orça-mentários da Universidade públi-ca para qualquer uma das funda-ções de apoio. Pelo contrário, asfundações de apoio é que comple-mentam os recursos financeirosda Universidade pública. Assim,elas captam recursos privados parafins públicos.

Como sabemos todas e todos,os recursos orçamentários dedica-dos às universidades estaduaisnão atendem a plenitude das ne-cessidades da vida acadêmica.Eles têm assegurado o ensino degraduação e de pós-graduaçãogratuitos e de qualidade. Nessecontexto, aliás, cabe reconhecer oesforço do poder legislativo noapoio às universidades públicas.A Emenda Callegari, constitucio-nalizando os 9,57%, é um esforçona direção certa para assegurarainda mais o futuro da Universi-dade pública, mesmo em face deuma reforma tributária. Já os re-cursos para as atividades de pes-quisa e de extensão foram, são enecessitarão ser, em grande parte,captados externamente por aque-les e aquelas docentes que aliam omérito científico à competênciaempreendedora. Isso é assim nomundo acadêmico, no Brasil e noexterior.

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É infundada a

afirmação, esposada

por alguns colegas, de

que as fundações de

apoio privatizam a

universidade pública.

Pelo contrário, as

fundações de apoio é

que complementam os

recursos financeiros da

Universidade pública

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Nesse particular, deve-se que-brar outro mito infundado — o deque os e as docentes que fazemboa extensão têm baixa produtivi-dade na pesquisa. Pelo contrário, atese de doutoramento de SilviaVelho, aprovada pelo Departa-mento de Ciência Política da UnB,demonstra, com base em indicado-res sistemáticos, que há um círculovirtuoso entre a produção científi-ca e a extensão universitária.

As fundações de apoio, comosugerido pelo próprio nome, nãosão um fim em si, mas constituemum meio de ajudar a Universidadea cumprir a sua missão institucio-nal e desincumbir-se das suas ativi-dades-fim, particularmente a daextensão. Não integrando a admi-nistração indireta nem a estruturada Universidade, ou da unidade oudepartamento a quem propiciamapoio, ajudam a promover a coo-peração Universidade-Sociedade.Permitem superar, de forma legal

e legítima, limitações impostas pe-la legislação que rege a aplicaçãodos recursos orçamentários reco-lhidos do contribuinte e investidospelo Estado no ensino superior.Essa legislação tolhe a agilidade eflexibilidade necessárias para res-ponder às demandas por projetosinovadores que sindicatos, empre-sas, ONGs e mesmo organismos daadministração pública naturalmen-te fazem à Universidade.

A percepção da relevância dasfundações de apoio no provimentodos meios necessários ao atendi-mento das finalidades estatutáriasda USP não se limita às chamadas“unidades profissionalizantes”. Aolongo de seus oito anos de existên-cia, a FUSP tem sido demandadapor 29 das 35 unidades de ensino epesquisa. Entre elas “unidades bá-sicas” (tais como este Instituto deFísica na capital e o Instituto deCiências Matemáticas e de Com-putação no interior) e unidades da

“área de humanas” (tais como aFFLCH na capital e a FFCLRP nointerior). Vem, igualmente,apoiando entes que mobilizam to-da a Universidade, tais como o Ins-tituto de Estudos Avançados, a Es-tação Ciência e o Teatro da USP.

A vontade da comunidade uni-versitária de se abrir ao meio ex-terno é o que explica a instituiçãodas fundações de apoio, desde aFundação Brasileira para o De-senvolvimento do Ensino de Ciên-cias-Funbec, criada há tantas dé-cadas pelo professor Isaías Raw.Fundações e estruturas de interfa-ce similares são também encon-tradas nas universidades federaisbrasileiras e em muitas das me-lhores universidades públicas noexterior. Ajudam essas entidadesde interface a realizar o que, hádois séculos, Goethe nos propôs:“Não basta saber, é preciso tam-bém aplicar; não basta querer, épreciso também agir.” RA

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MOTIVOS DE SOBRA PARAREPELIR O AJUSTE LIBERAL

LLuuiizz CCaarrllooss GGoonnççaallvveess LLuuccaassDocente do Instituto de Sociologia e Política da Universidade Federal de Pelotas

Estamos diante de uma política antagônica emrelação à concepção de educação e de serviço

público que o movimento docente sempredefendeu. Não há negociação possível, e sobram motivos para enfrentamento

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Areforma do Estadoem andamento noBrasil é muito me-nos inovadora doque procuram fazercrer seus defensores.

No início da década de 60, já eraprivatista o discurso dominante en-tre as forças políticas que viriam aapoiar o golpe de Estado. Durantea longa tramitação da primeiraLDB, a direita parlamentar siste-maticamente havia procurado ga-rantir a transferência de recursospúblicos para o ensino particular.

Na mesma época, condenava en-faticamente a legislação trabalhistae previdenciária. Reivindicava amais ampla liberdade de mercado ea inviolabilidade da propriedade,contra as reformas de base em dis-cussão no período Goulart. Ques-tionava o monopólio do petróleo ea política de nacionalização de em-presas nas áreas de energia e comu-nicações. Via o corporativismo esta-tal herdado da era Vargas comoprincipal causa dos problemas na-cionais, e a terapêutica indicadapassava pela retração da interferên-cia pública sobre a economia, paraque se pudesse expandir a livre ini-ciativa. Embora não se falasse emneoliberalismo, era um programamuito próximo das bandeiras daSociedade do Monte Pélérin.

Já nos primeiros anos da ditadu-ra, porém, as necessidades de acu-mulação de capital abafaram os an-tigos clamores liberais. Algumasdas mais dogmáticas vestais da reli-gião do mercado renderam-se à se-dução do novo Leviatã. RobertoCampos foi, na ocasião, um dosmais influentes inspiradores da re-

de monumental de poupança força-da e estatalmente dirigida do siste-ma FGTS/BNH. Convicções doutri-nárias foram cuidadosamente ar-quivadas, à espera de melhor mo-mento para voltarem à luz do dia.

Ao contrário do que propunhaa fraseologia não intervencionistaanterior, o regime militar impul-sionou fortemente o crescimentodo Estado. Em consonância, po-rém, com os interesses que se aco-bertavam sob essa mesma fraseolo-gia, a órbita estatal em expansão sefez acompanhar desde cedo de ní-tida tendência à privatização inter-na de seus aparelhos administrati-vos, intimamente imbricados como poder econômico em processode monopolização.

O principal instrumento jurídicoregulador da estrutura e das ativida-des da burocracia pública foi, no pe-ríodo, o Decreto-Lei nº 200/67, quedividia a administração em direta eindireta, sendo a segunda compostapor autarquias, empresas públicas ede economia mista. Na vigência des-se decreto, proliferaram fundaçõesde direito privado que, embora sus-tentadas por recursos oriundos doorçamento da União, escapavam,assim como as empresas estatais, aqualquer controle público. Perma-neciam vinculadas à chefia do Exe-cutivo, mas através de laços pessoaise informais, decorrentes do poderde nomeação e exoneração de diri-gentes. Criou-se, assim, uma redede lealdades palacianas que, articu-lada com a onipresente iniciativaprivada, dispunha dos aparelhos deEstado como se fossem propriedadepessoal, no melhor estilo patrimo-nialista.

Ausência de procedimentostransparentes de licitação, contrata-ção de pessoal sem concurso, de-missões arbitrárias, inexistência deplanos de cargos e salários, remu-neração desigual para salário igual,uso generalizado das fundações co-mo instrumento de nepotismo fo-ram algumas das característicasmais marcantes do cenário da ad-ministração brasileira no final daditadura. Em seu conjunto, essequadro de uma esfera pública quese decompunha no mesmo movi-mento em que se expandia teria si-do facilmente compatível com a pri-vatização aberta que hoje se buscaimplementar. Mas o ajuste liberal-conservador brasileiro foi tardio, echegou precedido por algumas alte-rações institucionais importantesque, embora em escala modesta, re-tardaram-lhe a velocidade.

Entre o final da década de oi-tenta e o início dos anos noventafoi possível, sobretudo por meio daação dos movimentos popularesque então viviam uma fase ascen-dente, reverter em parte a trajetó-ria seguida durante a ditadura. Em1987, a Lei nº 7596 submetia asfundações que recebessem recur-sos da União aos mesmos contro-les exercidos sobre as autarquias,das quais, na prática, deixaram dedistinguir-se.

No mesmo ano, o PUCRCE,instituído no âmbito das institui-ções federais de ensino, represen-tava um passo importante no senti-do da garantia de tratamento iso-nômico a pessoas que desempe-nhassem, com níveis similares dequalificação e desempenho, asmesmas atividades. No ano seguin-

te, a Constituição Federal estendiao princípio da isonomia ao conjun-to do serviço público.

Em 1990, o RJU complementa-va dispositivos constitucionais e opaís passava a ter uma regulamen-tação única para praticamente atotalidade das relações de traba-lho nos órgãos da administraçãodireta, autárquica e fundacional.Mais que isso, substituia o empre-go regido pela CLT, que se haviadisseminado sobretudo nas funda-ções, pela relação de serviço pú-blico, de natureza mais institucio-nalizada e capaz de impor limitesà vontade particular e discricioná-ria dos governantes.

Ainda que incompletas, essasmudanças criaram espaços real-mente públicos no interior de apa-relhos costumeiramente tratadoscomo instrumentos de mando pri-vado. Foram, além disso, acompa-nhadas de transformações impor-tantes na concepção das atividadesdo Estado, sobretudo no que se re-fere às políticas sociais, onde hou-vesse avanços no sentido da demo-cracia e da universalização.

No entanto, muito do que seconseguiu obter durante a elabora-ção da Carta de 1988 permaneceusem eficácia, por desrespeito ouomissão governamental. Mesmo as-sim, e apesar de não ter sido jamaiso texto igualitário que muitos vêemnela, essa Constituição tornou-seum obstáculo às políticas de ajusteque nos têm sido impostas. Refor-má-la foi, desde muito cedo, umadas prioridades da direita brasileirae de seus mentores externos. As in-vestidas mais agressivas começaramno governo Collor, mas ganharam

em abrangência, intensidade e siste-matização a partir do primeiromandato de Fernando Henrique.

Poucas políticas tiveram ideólo-gos tão oficiais quanto o que aatual reforma do Estado encon-trou em Bresser Pereira. Em 1996,esse autor publicava em inglês, pa-ra discussões junto a quem de di-reito, e posterior tradução, um

texto em que oferecia modestacontribuição ao mundo subdesen-volvido: nada menos do que umterceiro momento paradigmáticode autointerpretação do desenvol-vimento da América Latina (Bres-ser Pereira: Crise Econômica e Re-forma do Estado no Brasil: ParaUma Nova Interpretação da Améri-ca Latina . São Paulo, Ed. 34,1996). O primeiro, estruturalista enacional-burguês, teria sido for-mulado por Prebisch; o segundo

consistiria na versão Cardoso/Fa-letto da teoria da dependência; oterceiro momento seria o da crisefiscal, originada sobretudo peloendividamento público e pelo po-pulismo econômico.

Bresser se define como social-democrata ou social-liberal, e pro-cura marcar suas distâncias em re-lação ao neoliberalismo, do qual sedistinguiria pela interpretação dacrise — ao enfatizar o papel da dí-vida externa — e pela soluçõespropostas, uma vez que o neolibe-ralismo procuraria retirar o Estadoda economia e da área social, en-quanto a “resposta social-democrá-tica não é o Estado liberal, mas oEstado social-liberal, que continuaresponsável pela proteção aos di-reitos sociais, mas que gradual-mente deixa de diretamente exer-cer as funções de educação, saúdee assistência social para contratarorganizações públicas não-estataispara realizá-las”(idem, p. 270).

Um leitor destituído de boavontade talvez estranhe que a dívi-da externa, pensada no diagnósti-co como causa principal da crise,não seja considerada quando sepropõe a terapia. E talvez julgueque a terceirização das políticassociais, com subsídios, venha a serum bom meio para favorecer inte-resses privados, coisa que os neoli-berais rejeitam na teoria e buscamsempre realizar na prática.

Como construir, sem agir sobreum fator determinante da crise fis-cal, a reforma capaz de superá-la?A resposta começa pela distinçãoentre quatro setores no interior doaparelho estatal: o núcleo estraté-gico, as atividades exclusivas de

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A reforma distingue

quatro setores no

aparelho estatal:

núcleo estratégico,

atividades exclusivas

de Estado, serviços não

exclusivos e produção

de bens para o

mercado. Nos serviços

não exclusivos, a

execução caberá às

organizações sociais

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Estado, os serviços não exclusivosou competitivos e a produção debens e serviços para o mercado.

O núcleo estratégico, locus dadefinição das leis e políticas públi-cas, é conceituado, por lapso oufranqueza, de forma muito restriti-va: são o presidente da República,os ministros e a cúpula dos ministé-rios os responsáveis pela decisão so-bre essas políticas, havendo tam-bém referência aos tribunais fede-rais, “encabeçados pelo SupremoTribunal Federal e pelo MinistérioPúblico” (idem, p. 283). O Congres-so Nacional supostamente não deveimiscuir-se nessa área nobre.

A privatização, sem subterfú-gios, só é proposta para a produçãode bens e serviços para o mercado.Os dois setores intermediários de-verão ser descentralizados. A exe-cução das políticas caberá, nas ati-vidades exclusivas, a agências regu-ladoras e, no setor dos serviços nãoexclusivos, às organizações sociais,que abrangerão universidades, es-colas técnicas, hospitais, museus. Ovínculo entre decisão e implemen-tação se fará através de contratosde gestão: “com ele, o núcleo estra-tégico definirá os objetivos das en-tidades executoras do Estado e osrespectivos indicadores de desem-penho, e garantirá a essas entida-des os meios humanos, materiais efinanceiros para sua consecução”(idem, p. 284). No âmbito de atua-ção das agências reguladoras, apropriedade pública será mantida,e as relações de trabalho continua-rão regidas pelo RJU.

Quanto às instituições federaisque venham a ser transformadasem organizações sociais, assegura

Bresser que não serão privatizadas,mas publicizadas. Como não podemobter no mercado a totalidade dosrecursos necessários ao exercício desuas atividades, dependem de trans-ferências estatais. Para justificá-las,não devem ser privadas, mas públi-cas. E não devem ser estatais, por-que não envolvem (sic) o poder deEstado (idem, p. 286). Estão lança-das, pois, as bases para um novo ti-po de propriedade: pública não es-

tatal. Apesar das enormes divergên-cias sobre esse conceito, o autornão parece ver necessidade de umtratamento aprofundado.

Passemos, então, para um nívelmais operacional: o que serão, naprática, as organizações sociais? Aresposta, agora, é clara: fundaçõespúblicas de direito privado. Volta-mos, assim, ao Decreto-Lei nº200/67, e superamos “o retrocessoburocrático ocorrido em 1988”(idem, p. 275). Mas haverá uma pe-quena diferença: essas fundaçõesdeverão ser criadas por pessoas fí-

sicas, e não pelo Estado, para quemelhor possam livrar-se de restri-ções normalmente impostas à ad-ministração estatal. Ou seja, a flexi-bilidade será ainda maior.

“As novas entidades receberãopor cessão precária os bens da en-tidade extinta. Os atuais servidorestransformar-se-ão em uma catego-ria em extinção e ficarão à disposi-ção da nova entidade. O orçamen-to da organização social será glo-bal; a contratação de novos empre-gados será pelo regime da Consoli-dação das Leis do Trabalho…”(idem, p. 287). Temos aqui a sínte-se de um programa que avança apassos largos. A América Latinapode ter ganho um paradigma,mas o Brasil está sendo contem-plado com algo mais palpável.

Descontados os malabarismosverbais, a publicização, na peculiarlinguagem da reforma, nada maisé do que a privatização total dasinstituições públicas encarregadasde implantar políticas sociais comoeducação e saúde. Fundações dedireito privado — deveria ser des-necessário lembrar — não são pú-blicas, mas privadas. Articuladasatravés de contratos de gestão comministros dotados de competênciapara decidir em caráter pessoal so-bre o teor desses acordos e a con-veniência de renová-los, significa-rão na verdade a ausência de qual-quer controle veredadeiramentepúblico sobre o fluxo de recursosnessas áreas.

O RJU é incompatível com aimplantação desse modelo. O tra-balho regido por normas estatutá-rias é contrário à natureza das or-ganizações sociais, e certamente

A publicização,

na peculiar linguagem

da reforma, nada mais

é do que a privatização

total das instituições

públicas encarregadas

de implantar políticas

sociais como

educação e saúde

acarretaria enfrentamentos judi-ciais. Impõe-se, portanto, adotar,nos órgãos que se pretende trans-formar, a regulamentação celetis-ta, ainda que para isso seja neces-sária, por algum tempo, a convi-vência dos dois regimes.

A reforma do Estado em im-plantação no país é um processoamplo, que abrange alterações naConstituição Federal e na legisla-ção ordinária, mas que não se es-gota no plano especificamente le-gal. Boa parte dos objetivos podeser alcançada diretamente atravésde ações ou omissões governamen-tais que podem conviver com o or-denamento jurídico existente, ousimplesmente infringi-lo.

Dentre as mudanças propria-mente normativas, que constituemseus aspectos mais visíveis, desta-ca-se a Emenda Constitucional nº19, que, entre outras inovações, ex-purgou da Constituição referênciasà isonomia no serviço público ereintroduziu a possibilidade decontratação de pessoal nos termosda CLT para os organismos esta-tais. Surge, assim, o emprego pú-blico, na realidade trabalho sub-metido a normas que se aplicam arelações privadas entre patrões eempregados. Essa emenda data de1998. No ano seguinte, tramitou noCongresso o PL nº 57/99, hojetransformado na Lei nº 9962, defevereiro de 2000. Trata-se de nor-ma genérica, que não cria os em-pregos, mas estabelece parâmetrosque deverão ser observados duran-te a sua criação, a ser feita pormeio de normas específicas. Isso éparte da estratégia governamental:um dos objetivos da reforma é

aprofundar a segmentação do tra-balho nas entidades do Estado, eisso requer o uso de instrumentoslegais diferenciados.

Os principais pontos a desta-car, a respeito dessa lei, são os se-guintes:

a) o regime é celetista; as apo-sentadorias e pensões serão regula-das pela previdência do setor priva-do, com teto de dez salários-refe-rência. Além da inadequação, emprincípio, da aplicação da CLT ainstituições ainda de direito públi-co, deve-se observar que existe, ho-je, tendência a flexibilizar crescen-temente — leia-se desproteger — otrabalho celetista. No mesmo senti-do, estão sendo feitas tentativas dereduzir a pouco mais da metade oteto das aposentadorias no RegimeGeral da Previdência Social;

b) o ingresso continua a depen-der de concurso público — nempoderia ser diferente, a menos quese aprovasse nova emenda consti-tucional — mas as demissões ficamfacilitadas. Além disso, o projetode carreira celetista em gestaçãono MEC aumenta as alternativasde contratação precária de docen-tes, com processo de seleção sim-plificado;

c) não poderá haver transposi-ção de um regime para o outro;

d) por força de dispositivo cons-titucional, as normas que venhama criar os empregos deverão serleis, e não medidas provisórias;

e) o RJU não se extingue. Con-tinuará regendo as atividades con-sideradas exclusivas do Estado.Por enquanto, mesmo nas univer-sidades, é a única norma em vigor,salvo raras exceções, embora seja

evidente a intenção governamen-tal de colocá-lo em extinção. Se is-so acontecer, haverá, por tempotalvez longo, a coexistência dedois regimes.

A legislação até agora aprovadapermanece incompleta. Só se tor-nará eficaz após a promulgaçãodas leis específicas, entre as quais areferente à educação. Diante disso,o MEC formou grupo de trabalhocom a finalidade de elaborar ante-projeto de lei para a criação doemprego público e adoção de dire-trizes de carreira nas instituiçõesfederais de ensino. Os textos pro-duzidos por esse grupo, dos quaisfoi possível conhecer duas versões,seguem a lógica que inspira o con-junto da reforma do Estado.

As carreiras propostas se ca-racterizam pela discriminação epelo aumento do trabalho precá-rio. O que as normas já existentesnão haviam deixado claro é agoraexplicitado, em dispositivo quepretende extinguir os cargos quese encontrem vagos na data dapublicação da nova lei, ao mesmotempo em que se proíbe o provi-mento dos que venham a vagar apartir dessa data. Vale dizer queos atuais servidores transformar-se-ão em categoria em extinção.Para que sejam depois colocadosà disposição da nova entidade, co-mo deseja Bresser Pereira?

Por inúmeras razões, estamosdiante de uma política antagônicaem relação à concepção de educa-ção e de serviço público que omovimento docente sempre de-fendeu. Não há negociação possí-vel, e sobram motivos para en-frentamento. RA

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EEnntt rreevv ii ss ttaaDALMO DALLARI

“NINGUÉM SABEQUAIS SÃO OS

CRITÉRIOS DA CERT”

Fotos: Daniel Garcia

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Atualmente, a Comissão Especial de Regimes de Trabalho(CERT) está presa a modismos e a uma visão puramente

administrativa da atividade dos docentes. Supervaloriza apesquisa e a publicação de artigos no exterior, ao passo quedesconsidera a docência: “É como se dar aula não tivesse

importância. A experiência comprova que sem boas aulas nãohá bom pesquisador”. São convicções do professor DalmoDallari, membro da CERT no início da década de oitenta e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP (1986-1990).

Dallari diz que é preciso haver um esclarecimento geral a respeito dos regimes especiais de trabalho. Afirma que

a inexistência de critérios de avaliação claros e uniformes abre caminho a decisões arbitrárias da CERT. Por isso,defende a rediscussão do papel dessa comissão central, dos critérios que aplica e da sua composição. Pede a

democratizaçãoda CERT. Chama atenção para o papeldecisivo dos departamentos na avaliação dos docentes.

Na sua opinião, a USP afundou no marasmo e enquadrou-sena “desordem nacional chamada de ordem”, traduzida pela imposição à vida universitária

de padrões meramente burocráticos, econômicos, produtivistas. “É preciso um pouco mais de rebeldia”, propõe.

A entrevista à Revista Adusp teve lugar na Faculdade de SaúdePública da USP e foi concedida a Lucília Daruiz Borsari, Marcos

Nascimento Magalhãese Pedro Estevam da Rocha Pomar.

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Revista Adusp- Professor, qualé a sua área no Direito?

Dallari- Minha área acadêmicase chama Teoria Geral do Estado.Mas essa disciplina é consideradauma introdução ao Direito Consti-tucional. Então eu poderia dizerque minha área é o Direito Público,toda aquela parte do Direito queenvolve relações com o Estado.

Revista Adusp- O sr. é profes-sor titular?

Dallari- Sou professor titular,fiz o concurso em 1974, mas naverdade estou dentro da USP des-de 1953. Entrei através de vestibu-lar em 1953, terminada a gradua-ção não havia naquela ocasião cur-so de mestrado e doutorado mashavia um curso de especialização,e eu fiz algumas especializações. Elogo em seguida fiz a livre-docên-cia e nunca mais saí. Então na ver-dade estou dentro da USP desde1953. Já vi muita coisa.

Revista Adusp- Que cargos o sr.já exerceu?

Dallari- Entre outras coisas eufui diretor da Faculdade de Direi-to. Era um cargo que gostaria mui-to de exercer, exatamente porqueme considero intelectualmente umfilho daquela faculdade. Muitofrancamente, sempre achei que serdiretor da Faculdade de Direitoera mais importante do que ser rei-tor da USP. Não que eu menospre-ze o cargo de reitor, mas é que deDireito e de Faculdade de Direitoeu entendo, então achava que po-dia fazer alguma coisa no sentidode melhorar, de atualizar métodos,de dar condições melhores para os

professores, os alunos, e acreditoque tenha conseguido efetivamen-te isto. Só para exemplificar: comodiretor, e tendo o apoio do reitorGoldemberg, eu consegui verbapara construir um edifício anexoao prédio tradicional da Faculdadede Direito do Largo de São Fran-cisco. Na verdade, esse prédio con-tinha em si vários objetivos. Umdeles era o aumento de espaço,porque o prédio tradicional foiplanejado e construído em 1932. Onúmero de alunos de lá para cá au-mentou muito. Em 1932 não haviacurso noturno, a biblioteca eramuito menor, não existiam depar-tamentos. Assumi a diretoria em1986, as instalações eram insufi-cientes, inadequadas. Antigas salasde aula tinham se transformadoem departamentos. Na mesma salahavia a secretaria do departamen-to, a sala de reuniões e a bibliote-ca. Evidente que assim não davapara trabalhar, para fazer seminá-rios, e não havia na escola umaúnica sala para seminários, só paraconferências. Porque em 1932 aidéia de uma aula era uma confe-rência. Na verdade o que pretendifoi a ampliação de espaço, mascriar espaço adequado para a indu-ção de novos métodos de trabalhoe de ensino. Isso efetivamente pos-so afirmar que consegui. Consegui-mos colocar lá 21 salas para semi-nários, e o que verifico hoje é quemuitos professores estão usando,mudaram sua metodologia, e osprofessores novos que vêm che-gando já têm o seu espaço adequa-do. Além disso, no prédio antigonão havia uma única sala de traba-lho para o professor. Ficava estra-

nho isso: o professor em dedicaçãointegral e não tem uma sala de tra-balho? O professor era obrigado aatender alunos e outras pessoasnos corredores, ou atender nagrande sala dos professores, ondenos intervalos os professores sereúnem para conversar e tomar umcafezinho. Evidente que isso erainadequado também. Então achoque consegui ser diretor razoável.Além do mais, quando assumi nãohavia um único computador na Fa-culdade. Quando saí, tinha infor-matizado toda a administração e játinha iniciado a informatização dabiblioteca. Criei também uma vi-deoteca, achei que era importantetermos uma coletânea de palestras,de seminários, para que se faça adiscussão em torno disso. Traba-lhei muito no sentido de mudarmétodos, de dar um sentido maisdinâmico, crítico e com a partici-pação do estudante. Dessa manei-ra marquei minha passagem peladiretoria da Faculdade de Direito.

Revista Adusp- Professor, omotivo principal desta nossa con-versa é a CERT: são as atividadesque a CERT vem desempenhandoe que vêm provocando grande in-satisfação dos docentes pelos mé-todos que esse organismo vemadotando. Então, para começar, osr. deve ter recebido o parecer daassessoria jurídica da Adusp,gostaríamos de saber sua opiniãosobre as questões que esse pare-cer suscita.

Dallari- Eu mesmo já fui mem-bro da CERT, conheço algumascoisas que acontecem na CERT,como acontecem, e alguns pontos

precisariam ficar mais claros eatualmente não estão. Na verdade,a própria idéia de regime especialde trabalho, que justifica a existên-cia da CERT, para muitos não fi-cou clara. Quando falo muitos, in-cluo docentes da USP e tambémmembros da CERT. Assim, enfren-tei esse tipo de problema: o docen-te que entende o regime especialcomo uma possibilidade de ganharmais, pura e simplesmente. Querdizer, não encara como uma novaresponsabilidade. Se ele vai ga-nhar mais é porque vai trabalharmais e vai trabalhar diferente. Oenvolvimento dele em pesquisanão se exige em RTP, mas a partirjá do RTC é indispensável, e noRDIDP muito mais. E tambémqual é a diferença entre uma dedi-cação integral e uma dedicação ex-clusiva. Que significa uma dedica-ção integral física, ou uma dedica-ção integral que mesmo que nãoseja física esteja sempre presente,que implique sempre a prioridadepara a USP. Essas coisas nunca fo-ram tornadas muito claras, e hojeestão fazendo falta: especialmentepor causa de conflitos que tem ha-vido, seria muito importante esta-belecer isso. Por exemplo, partici-pei de discussões em que docentesde algumas áreas — dou sempreum exemplo, da Matemática —afirmavam que o único regime ver-dadeiramente universitário é oRDIDP, e eu jamais concordei comisso. Eu, que estou em RDIDP hámuitos anos, decidi isto exatamen-te quando fui diretor: achei que sóseria bom diretor se tivesse umadedicação integralíssima. Uma dascoisas que fiz foi fechar meu escri-

tório de advocacia. Fechei. Depoisterminei o meu mandato de dire-tor, a prefeita Luiza Erundina meconvidou para secretário, que eraoutra atividade de dedicação inte-gralíssima, e a conseqüência é quenunca mais reabri meu escritóriode advocacia. Mas do ponto de vis-ta normal, de atividades comuns, oprofessor de Direito, para ser um

bom professor, deve ter atividadesfora da universidade. Ele deve sa-ber o que está acontecendo nos tri-bunais, se não ele vai ensinar o Di-reito dos livros e não o Direito daverdade, da prática. Ele tem quesaber o que é que o Ministério Pú-blico está fazendo, até a Polícia.Então ele tem que ter algum con-tato com a advocacia. O que nãoimpede que ele tenha uma dedica-ção integral e dê efetivamente aprioridade à USP, que ele orientepesquisas, que ele receba alunos, eque ele participe da administração

da escola. Então é diferente doprofessor que vai ter essa dedica-ção integral física, significando queele vai chegar na escola de manhãe vai ficar lá até a noite. Em algu-mas atividades isso é possível, tal-vez até seja bom, mas em outrasnão é o ideal. Por isso acho neces-sário que se faça uma discussão,para tornar mais claro o que é oregime. Porque na verdade essesregimes especiais foram criados hámuito tempo, em outra circunstân-cia, e agora estamos vendo que hámuita incompreensão, e é necessá-rio então rediscutir a questão.

Revista Adusp- Tem havido,professor, uma série de conflitosentre, digamos, a opinião do De-partamento, e eventualmente aopinião da Congregação, e a opi-nião da CERT. Os departamentostêm um procedimento na renova-ção dos contratos. Claro que issoera até algum tempo atrás cir-cunscrito aos famosos precários,que aliás tivemos a oportunidadede debater alguns anos atrás. Ho-je, ao que parece, está havendo,vamos chamar assim, uma certaofensiva da Reitoria não somentesobre os professores precários,mas sobre todo e qualquer docentecujo currículo ou relatório de ati-vidades por alguma razão passepela CERT. Queremos saber suavisão dessa relação: o Departa-mento tem certa opinião sobre odocente, a Congregação tem certaopinião, e a CERT eventualmenteentra com outros critérios, outrasquestões.

Dallari- Pelo que eu tenho vis-to, lido, e atualmente acompanha-

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“A CERT adotou algunscritérios que são

modismos, e se limitama uma verificação

quantitativa. E tambémqualitativa, quanto ao tipo de trabalho:

por exemplo, a quantidade de

publicações. Parece que é um dado religioso.

Se for publicação no exterior, consagra

qualquer um. É absurdo.É colonialismo cultural”

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do com interesse, porque façoparte da USP, a CERT adotou al-guns critérios que são da moda,são modismos, e que se limitam auma verificação quantitativa, pra-ticamente isso. E também com aqualitativa, em certo sentido, mui-to mais quanto ao tipo de traba-lho. Assim, por exemplo, a quanti-dade de publicações. Parece que éum dado religioso. Além disso, sefor publicação no exterior, consa-gra qualquer um. Isto é absurdo.Para usar palavras um pouco pesa-das talvez, é colonialismo cultural.Quanta coisa de péssima qualida-de se publica nos Estados Unidos.E quanta coisa de ótima qualidadese publica no Brasil. O fato de ha-ver publicação no exterior não de-via significar grande coisa. Pelaminha própria experiência pessoaleu sei disso: quem tem amigos noexterior tem facilidade para publi-car. Podemos ter alguém que pro-duza coisas ótimas e que não pu-blique no exterior. Então é um cri-tério que, se for aplicado com exa-gero, leva à injustiça. Não faz averdadeira avaliação. Outro aspec-to que também me tem chamado aatenção, mas que não é novo, por-que já no meu tempo da CERTacontecia: a supervalorização dapesquisa. Isso também é completa-mente distorcido. Há séculos queas pessoas escrevem livros tendopesquisado. Pesquisa não é novi-dade. Se eu pego um livro de Ma-quiavel, a quantidade de informa-ções que ele tem sobre os povosda Antiguidade, sobre os procedi-mentos dos governos, só pode serfruto de pesquisa. Não foi por in-tuição, não foi por acaso que Ma-

quiavel disse aquilo, que tem com-provação na História. Então pes-quisa não é nada de novo. O quehá são certos métodos, certas con-venções a respeito de como pes-quisar. E o problema que se temcolocado, e este eu já enfrenteiquando era membro da CERT, éque se valoriza muito pouco a ati-vidade docente. É como se dar au-la não tivesse importância. O im-portante é pesquisar. E eu estoumuito convencido, e a experiênciacomprova isso, de que sem boasaulas não há bom pesquisador. Éimpossível. O pesquisador temque ter conceitos firmes. Tem quesaber do que ele está falando. Temque ter discutido, inclusive, a con-ceituação, além de ter refletido so-bre ela. E isso não se faz atravésda pesquisa, a pesquisa vem de-pois. Ele pode até, através da pes-quisa, contribuir para reformularconceitos, mas a conceituação bá-

sica tem que vir antes. Então émuito importante alguém que dêaulas. E na USP se tem verificadoisso: que especialmente quando setrata de turmas mais numerosas odocente foge dessa atividade. Masele foge porque além de ser umaatividade muito mais trabalhosa épouco valorizada. Isso também te-ria que ser repensado: a atividadede docência, dar aulas, é funda-mental. Não se começa com a pes-quisa e não tem sentido, é inviável,uma boa pesquisa se alguém nãotiver aprendido antes. Esse é umdos problemas que estão coloca-dos, pelo que tenho visto: a CERTvalorizando demais a produção deartigos, a produção de pesquisa, oque acaba resultando numa verifi-cação apenas quantitativa. Paraacrescentar mais um dado, e quenão é novidade, porque nós todosque estamos trabalhando na Uni-versidade sabemos disso, existem

“É fundamental aopinião do conselho do

departamento. Porque eleé o fiscal permanente. É

quem tem o contatodireto com o docente,

sabe o que cada um estáfazendo, como sabe

também das necessidadesdo departamento. Dissotambém a CERT deveriase lembrar. Talvez até sepudesse dizer: respeitarmais as decisões dos

conselhos dedepartamento”

as famosas associações de pesqui-sa: eu ponho seu nome no que eufizer, você põe o meu nome noque você fizer. Então temos gentecom uma produtividade fantástica.É impossível. Mas é por causa des-sa circulação de nomes e de favo-res. É uma associação, na verdade.Uma fraude, mas uma fraude queem parte é instigada, se não justifi-cada, pela supervalorização dapesquisa e da publicação. Então,“como é isto que vai ter valor, euquero pôr meu nome nisto”. Nãoimporta se eu faço ou não.

Revista Adusp- Uma perguntamais específica em relação aos ca-sos em que a CERT tem se envol-vido: na realidade, o que ocorre etem ocorrido nos últimos anos éque contrariamente às decisões dodepartamento e da unidade, demanter o docente por exemplo emregime de RDIDP, a CERT segun-do seus critérios — que são muitopouco claros — decide tirar essesdocentes do regime integral, ba-seada fundamentalmente nestaanálise de número de papers, arti-gos publicados no exterior. Isso,claro, gera muito constrangimen-to, muita indignação em todas asunidades. O que parece é que aprópria regulamentação da Uni-versidade não confere à CERT es-ses poderes. O artigo 201 do Regi-mento Geral diz com clareza que adecisão da mudança de regime detrabalho deve ser do conselho dodepartamento, e aí sim passar pe-las instâncias superiores para queelas dêem o aval, anuam sobre is-so. No entanto, ela tem feito isso, evários colegas têm perdido o tem-po integral.

Dallari- Essa questão envolveaspectos jurídicos que são funda-mentais. Antes de tudo é precisolembrar que o docente está ligadoà Universidade por um contrato, eo contrato gera direitos e obriga-ções para as duas partes. Quer di-zer, não é possível uma mudançade cláusula contratual pela vonta-de de uma das partes. A legislaçãoda Universidade fixa as condiçõespara que alguém entre no regimeespecial, e estabelece algumas re-gras para que alguém saia do regi-me especial. Mas, quando alguémé admitido no regime especial, esseregime faz parte do contrato: en-tão isto é ao mesmo tempo um di-reito do docente e uma responsa-bilidade do docente. Por essa ra-zão, não cabe uma eliminação dodocente de um regime sem que ha-ja uma razão objetiva e demonstra-da. Não é possível, por um critérioabsolutamente subjetivo, eliminaralguém. Ou por motivos que nãofiquem claros. O motivo tem queser esse: o regime exige certas coi-sas e o docente não está cumprin-do sua obrigação. Mas tambémnesse caso é importante lembrar aopinião do conselho do departa-mento. Na verdade, o primeiro fis-cal do cumprimento das obriga-ções do regime é o conselho do de-partamento. Eu já ouvi o argumen-to, que volta e meia aparece, deque há uma espécie de corporati-vismo, de ação entre amigos den-tro do departamento: o departa-mento tolera o docente que nãocumpre rigorosamente suas atri-buições. Quanto a isto, eu diriaque é mais do que tempo no Brasil— não é só na Universidade, mas

também na Universidade — de in-vertermos o critério. Nós partimosdo pressuposto de que todos sãodesonestos até prova em contrário.O pressuposto tem que ser exata-mente o oposto disso: todos sãohonestos até prova em contrário.Por que digo isso? Porque há essaidéia, que é um preconceito, e éum pressuposto, de que o docenteé desonesto e que vai ser apoiadopor outros desonestos. Então elesó fica no regime especial para ga-nhar mais, ninguém vai exigir nadadele, e o departamento vai tolerar.Isso pode acontecer, mas é excep-cional e não deve ser o pressupos-to. O pressuposto é exatamente ocontrário. O docente que pediu pa-ra entrar ou que ficou no regimeespecial está consciente de quetem mais responsabilidade, e o de-partamento é quem decide sobre adistribuição do tempo do docente,sobre as tarefas que ele vai execu-tar. Isso tudo é competência doconselho do departamento. Em ca-so de dúvida, é razoável que aCERT peça esclarecimentos, peçacomprovação. Aliás, quando setrata de renovação, ou entrada esaída em regime, ou quando acon-tece qualquer coisa que coloca odocente sob a verificação daCERT, isso sempre é feito median-te documentação. O docente mui-tas e muitas vezes, para muitas ra-zões, é obrigado a dizer o que estáfazendo, como está fazendo, ondeestá fazendo. Então existe, sim, umcontrole que é permanente. Issonão significa eliminar a CERT.Porque poder-se-ia dizer: “Bom, seé assim, então o departamento équem vai fazer o controle, não é

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preciso que haja a CERT”. É pre-ciso que haja a CERT, porque háuma diversidade muito grande desituações na Universidade. Háuma diversidade de critérios se-gundo as especialidades, por exem-plo exigir uma dedicação integralnuma matéria como Física é dife-rente de dedicação integral emMúsica. Por isso existe a necessi-dade de um órgão central com cer-tos critérios mais genéricos, nãomais específicos, critérios mais ge-néricos e que deverão ser unifor-mes, objetivos e claros. Sobretudoclaros. Isso é o que me parece queestá faltando. Há critérios que nin-guém sabe de antemão quais são ecom freqüência se tem a impres-são de que num determinado pro-cesso se resolveu aplicar determi-nado critério. Quer dizer, não é ocritério uniforme, previamente co-nhecido, que se aplicará a todos.Isso faz com que a decisão daCERT passe a ser uma decisão ar-bitrária. Aí há uma diferença emDireito que é fundamental: a dis-tinção entre o discricionário e oarbitrário. O arbitrário é contra alei: é fora da lei, despreza a lei. Is-so não se admite. Nenhuma autori-dade pode decidir arbitrariamente.O discricionário é aquele direitode tomar decisão em relação auma área, uma parte da atividade,que não se poderia prever antes,que não é sujeita ao regulamentoescrito. Por exemplo: devem existirregras a respeito de quando umpolicial deve usar sua arma. Entre-tanto, o policial na madrugada, pe-rante um assaltante, tem poder dis-cricionário. Não há uma regra es-pecífica para dizer: quando a rua

não estiver bem iluminada, se esti-ver sozinho, se houver tal e tal cir-cunstância, então pode usar a ar-ma. A lei não desce a esse porme-nor, o regulamento não desce. Aísobra uma parte de poder discri-cionário. Então, em relação àCERT, é preciso que haja certas re-gras, certas normas, previamente

publicadas, conhecidas de todos, eque se sabe que serão as regrasque vão nortear as decisões daCERT. Depois, a partir disso, den-tro dessas regras, é que a CERTdeverá observar a situação particu-lar de cada docente. Mas aí é fun-damental a opinião do conselho dodepartamento. Porque ele é o fis-cal permanente. É quem tem ocontato direto com o docente, sabeo que cada um está fazendo, comosabe também das necessidades dodepartamento em cada circunstân-

cia. Porque muitas vezes aconteceisso: o docente é obrigado a mudarde atividade, às vezes tem aconte-cido até de interromper determi-nada pesquisa. Por quê? Porque háum fato novo, um docente quemorre, que viaja ou que pede li-cença e obriga à redistribuição detarefas no departamento. Isso tudoacontece no departamento e o de-partamento é quem tem a respon-sabilidade pela vigilância disso epelo controle. Disso também aCERT deveria se lembrar. Talvezaté se pudesse dizer: respeitarmais as decisões dos conselhos dedepartamento.

Revista Adusp- Mas essa im-portância que a CERT de certamaneira tem na sua visão cabe noatual modelo? Porque no atualmodelo, o senhor sabe, o reitor es-colhe os treze. De certa maneira,os treze viram juízes de algumaforma. Será que dá certo esse mo-delo, nesse sentido mais democrá-tico, de respeito ao departamento?Dá para compatibilizar isso outem um certo erro…

Dallari- Pela maneira como ascoisas vêm acontecendo, seria mui-to bom que o próprio ConselhoUniversitário rediscutisse as comis-sões de regimes especiais. Quaissão os critérios? Quem vai esco-lher os membros? Com a necessi-dade de se fazer uma distribuiçãodos membros entre diferentes se-tores da universidade, exatamentepara que tenha sempre alguém queconheça o setor e seja capaz deprestar esclarecimentos. Mas semdúvida alguma é muito importanteque haja uma participação maior

“Os reitores forammudando a composição

da CERT, orientando a CERT num

determinado rumo. A visão que a unidade e o departamento têmnão é exclusivamenteadministrativa, nemdeve ser. É a visão

científica, a visão dadocência. A CERT está muito distante

disso, muitoinfluenciada por

critérios puramenteadministrativos. Isso criaum conflito inevitável”

da comunidade universitária até naescolha dos membros da ComissãoEspecial, especialmente porque es-sa comissão, além de influir na vi-da do docente, pode influir enor-memente na vida do departamen-to. Ela pode atrapalhar o departa-mento. É necessário que haja, apalavra pode soar um pouco forte,uma democratização da composi-ção e das decisões da CERT.

Revista Adusp- Professor, re-centemente houve o caso do Insti-tuto de Geociências, em que há umconflito claro entre o conselho dodepartamento e a própria unidadecomo um todo, que avalia positiva-mente os relatórios de quatro do-centes, e a CERT, que diz: “Não,eu quero reformar o regime de tra-balho desses docentes”. Como épossível superar esse conflito?Quer dizer, há uma lacuna aí…

Dallari- Pois é, por situaçõescomo essa é que seria importanterediscutir a própria CERT. Redis-cutir critérios. Porque tudo foi decerto modo se modificando semque alguém dissesse por que modi-ficar, como modificar. Tudo foi aosabor dos acontecimentos. Os rei-tores foram mudando a composi-ção da CERT, foram orientando aCERT num determinado rumo, aCERT foi ficando muito mais pre-sa a critérios administrativos doque a critérios científicos e acadê-micos. A visão que a unidade e odepartamento têm não é exclusiva-mente administrativa, nem deveser. É a visão científica, é a visãoda docência, é a visão da adminis-tração da unidade em função dassuas peculiaridades. A CERT estámuito distante disso. Ela está sen-

do atualmente muito mais influen-ciada por critérios puramente ad-ministrativos. Isso cria um conflitoinevitável. É a avaliação da mesmarealidade sob critérios que sãomuito diferentes.

Revista Adusp- Tomando umcontexto mais amplo: um docenteefetivo, que esteja no regime de de-dicação integral há vinte anos.Que garantias ele tem, constitucio-nais, para continuar fazendo seutrabalho? Ele recebe um certo sa-lário, tem um certo conjunto decompromissos, e digamos que odepartamento acha que ele estátrabalhando bem. Ele tem algumagarantia constitucional geral, doponto de vista trabalhista?

Dallari- Ele tem toda a garantiajurídica, porque, como já mencio-nei, ele está ligado à Universidadepor meio de um contrato. Contratoé um acordo de vontades que geradireitos e responsabilidades paraas duas partes. No momento emque ele foi admitido no regime es-pecial, ele assumiu a responsabili-dade, ele cria o direito. Então, emprincípio, ele tem esse direito ad-quirido em caráter permanente. Épreciso que se comprove que elenão está cumprindo a sua respon-sabilidade, os seus deveres, paraque ele possa ser retirado. Se oprofessor tem um certo padrão devida e tem toda a sua atividade di-recionada para a Universidade, derepente passa a ganhar menos, éclaro que isso pode causar proble-mas sérios para a pessoa e para suafamília. Então por isso é que existeo direito adquirido e a possibilida-de de discutir no judiciário o res-

peito a esse direito. Em princípio,o docente que entrou no regimeespecial não pode ser retirado. Pa-ra ser retirado, é preciso que pre-viamente se comprove que ele nãoestá cumprindo as suas obrigações.

Revista Adusp- Essa comprova-ção teria que ser algo próximo deum processo administrativo ousimplesmente uma autoridade di-zer “acho que você não está cum-prindo”, como de certa maneiratem sido?

Dallari- Não, isso exige o pro-cesso administrativo, inclusivecom o direito de defesa. Aliás éexpressão da Constituição o direi-to à ampla defesa. Porque é al-guém que está ameaçado de per-der um direito. E a perda de direi-tos tem que ser plenamente justifi-cada e tem que ser precedida dodireito de defesa. No caso, concre-tamente: a CERT decidiu que vaitirar um docente de regime espe-cial: é preciso que haja documen-tos, que haja provas, de que real-mente o docente não cumpre assuas obrigações. É preciso ouvir odepartamento, porque a próprialegislação da USP dá um papel im-portante ao departamento noacompanhamento do trabalho dodocente. Então é preciso saber dodepartamento, ouvir o departa-mento e até, eu diria, reiterar aodepartamento o pedido de esclare-cimentos. E se a CERT chega auma situação em que ela diz:“Bem, o departamento diz que odocente está cumprindo suas obri-gações, mas nós concluimos quenão”, então ela consulte o depar-tamento, diga quais são os motivos

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da sua divergência. E dê, inclusi-ve, oportunidade ao departamen-to de se justificar. Porque, sem dú-vida alguma, quando existe estadivergência, ela está levantandodúvida sobre a idoneidade do de-partamento.

Revista Adusp- É um julgamen-to, quase, do departamento.

Dallari- Quase do departamen-to. Porque ela está recusando umadecisão do departamento. Então épreciso que o departamento tam-bém seja ouvido sobre isso, alémdo docente, sem dúvida alguma,porque um direito adquirido estásendo ameaçado.

Revista Adusp- Nessa mesmalinha, a garantia constitucionalcontra a redução de salário tam-bém beira essa questão?

Dallari- Também tem um pa-pel, apesar de que se diz que o sa-lário é uma coisa, e o acréscimodecorrente do regime especial éoutra. Mas na verdade, ingressan-do no regime especial, o docenteadquire o direito ao salário maior.Então tem natureza salarial. Nãoé um prêmio, não é um presente.É uma remuneração por serviçoprestado, e em princípio tambémé irredutível.

Revista Adusp- E isso indepen-dentemente de o contrato ser pre-cário ou o docente ser concursado?

Dallari- Exatamente. Porque defato é um contrato de trabalho,não importa se é efetivo, se é pre-cário. A proteção que o efetivotem é muito maior, mas de qual-quer maneira em relação à remu-

neração valeria para os dois, por-que é um contrato. E um contratotem que ser respeitado pelas duaspartes. O que não se pode admitiré uma mudança por decisão deuma das partes sem que esteja pre-vista essa possibilidade de mudan-ça, essa hipótese de mudança.

Revista Adusp- A CERT nãopede relatórios para todo mundo.

Na verdade os relatórios são fei-tos, no caso dos precários, quandohá renovação de contrato ouquando há discussão sobre seu es-tágio probatório em RDIDP. Ouentão os efetivos, quando fazemalgum pedido especial, ou de umacerta assessoria, ou um pedido deafastamento. Não tem aí um certocaráter discricionário? Porque háuma espécie de incentivo a você fi-car quieto no seu cantinho, comoalguém anônimo na multidão. Es-sa avaliação não teria um poucodesse viés? Como o Direito vê essaquestão, de que na verdade ela fis-caliza quem “levanta a mão”, poralguma razão? Somos 4.700 pro-fessores, são treze membros daCERT. Temos um monte de gentepara ser avaliado por treze cole-gas, que a rigor deveriam avaliarem conjunto os processos, e a gen-te sabe que há uma prática — etalvez até o senhor possa dar a ex-periência do seu tempo lá — de orelator relatar e os outros em ge-ral concordam com o relator. Sen-timos muito, nas decisões de co-missão na Universidade, isso de oparecer do relator ser aprovadopor unanimidade. Será que essesistema não é discricionário, ouarbitrário?

Dallari- Até por motivos de or-dem prática, não existe a possibili-dade de ficar o tempo todo vigian-do a todos. Por isso é que se dá aatribuição ao conselho do departa-mento. O conselho sim, que traba-lha diretamente com o docente,com pequenos números de docen-tes, tem a possibilidade, tem o de-ver de fazer a vigilância permanen-te. Agora, em relação à CERT, o

“Retirar um docente doregime especial exige

processo administrativo,inclusive com direito àampla defesa. Porque éalguém ameaçado de

perder um direito. Se aCERT decidiu que vai

tirar um docente deregime especial é precisoque haja documentos,

provas, de que o docentenão cumpre as suas

obrigações. É precisoouvir o departamento”

que se prevê é a vigilância em cer-tos momentos determinados. Issoentra numa rotina, e o fato de ha-ver um relator também, por si sónão invalida o processo. Porque es-se é o sistema que se usa em todosos tribunais. Porque não há condi-ções práticas, nem seria razoávelexigir que todos leiam todos osprocessos. Naturalmente há opressuposto de confiança, de serie-dade. Aquele que vai relatar su-põe-se que vai examinar, que vaifazer uma exposição, uma sínteseobjetiva daquilo que consta noprocesso, e assim ele relata. Masisto não impede os outros mem-bros de fazerem pedido de esclare-cimentos, e até mesmo de pediremvista do processo, adiando a deci-são. Eu mesmo participei de mui-tas reuniões da CERT em que issoaconteceu. Quando havia dúvida edivergência, quando parecia queas coisas não eram claras, não erararo que um dos membros pedissemais esclarecimentos. Ou pedisseesclarecimentos ao próprio rela-tor, querendo saber: “Mas nãoconsta mais isso? Sobre esse as-pecto, que é que consta?” Ou àsvezes se decidia pedir ao interessa-do, ou ao departamento, queacrescentassem informações. Oque não é razoável é se estabelecerum sistema em que, em todos osprocessos, todos vão acompanharo relator. Se isso acontecer estádemonstrado que não há vigilân-cia. Porque a obrigação de todos éficarem atentos e se for o caso pe-dir mais esclarecimentos ou diver-gir do relator. Não é normal essarotina de todos acompanharem orelator. Quanto ao outro aspecto,

de só se fazer a vigilância em cer-tos momentos, não me parece queseja um erro, exatamente pela im-possibilidade de fazer uma verifi-cação permanente de todos.

Revista Adusp- Na verdade, es-se sistema no fundo teria um pres-suposto de maior confiança, demaior delegação, lá no conselho dedepartamento e na unidade. Por-que se não ele passa a ser injusto,no sentido de que quem não semostra não é visto.

Dallari- Mas não é bem assim.A idéia é que o conselho do de-partamento, que tem as condiçõespráticas, faça a vigilância perma-nente. É possível, fácil, no nível dodepartamento, saber quem é quecomparece, quem é que dá as au-las, quem é que está pesquisando,quem faz qualquer coisa, ou parti-cipa da administração. No âmbitodo departamento é fácil isso. O

departamento tem obrigação defazer esta verificação. Por isso, decerto modo se justifica que aCERT só em ocasiões especiais to-me conhecimento.

Revista Adusp- Está na legisla-ção da Universidade que a CERTpode a qualquer tempo pedir rela-tório aos docentes. Isso não é in-compatível com a idéia de que apriori se tem que confiar que aspessoas estão fazendo seu trabalhode forma adequada?

Dallari- É, se for a qualquer mo-mento realmente não se justifica. Épreciso que haja alguma razão ob-jetiva que justifique. Se não, abrecaminho para perseguições e parauma diferenciação que passa a serilegal. Aí já não serão todos iguaisperante a lei. Uns serão mais iguaisdo que os outros, dependendo deter mais proteção ou mais inimi-gos. Por isto é que considero ne-cessário, agora mais necessário doque nunca por causa desses confli-tos, que houvesse uma rediscussãoda própria CERT: qual é o seu pa-pel, como ela se compõe, que crité-rios ela vai utilizar. Nós fomos so-frendo uma série de distorções, is-so foi ficando quase que um siste-ma à parte. Então qualquer docen-te está sujeito amanhã a sofrer umapunição, uma perda de direitos,sem saber bem por quê.

Revista Adusp- Como é que osenhor tem sentido, nesses anostodos na USP, o modo como a Uni-versidade reage o seu Direito como direito constitucional do país?

O que me parece é que existequase que um marasmo, um con-

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“Considero maisnecessária do que nunca

uma rediscussão daprópria CERT: qual é

seu papel, como secompõe, que critérios ela

vai utilizar. Fomossofrendo uma série de

distorções, isso foificando quase que umsistema à parte. Entãoqualquer docente está

sujeito amanhã a sofreruma punição, uma

perda de direitos, semsaber bem por quê”

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formismo. Porque antes existiauma participação muito maior.Havia muito mais discussão dasquestões da Universidade, inclusi-ve dos direitos. Havia mais dina-mismo, mais vida, e hoje pareceque se caiu numa rotina, as pes-soas se envolvem muito menos. Opior é que, exatamente porque secaiu nesse ambiente de conformis-mo, qualquer reivindicação, qual-quer queixa, é vista como um ab-surdo. Como um ato de extremarebeldia, alguém querer discutir oseu direito, o que é normal. Ouapresentar uma reivindicação,também absolutamente normal.Quer dizer, a Universidade já foium organismo mais dinâmico. Sin-to assim, comparando aquilo quevi quando entrei na Universidade,quando fui membro da CERT,

membro do Conselho Universitá-rio, com aquilo que vem aconte-cendo agora. Estamos muito buro-cratizados.

Revista Adusp- E centralizados. Dallari- Excessivamente cen-

tralizados, mas burocratizadostambém. Nós sentimos isso, demaneira muito evidente, na últi-ma greve. A predominância dosetor de relações humanas eraevidente e absurda. Era como sea Reitoria fosse lá. Critérios abso-lutamente burocráticos. Isso teriaque ser revisto.

Revista Adusp- Às vezes brinca-mos que a USP é como um princi-pado: tem a lei do país, do Estado,tem a Constituição, mas aqui agente faz a lei.

Dallari- Isso não é bem assim,porque o que está acontecendo naUSP é exatamente o enquadra-mento dela nessa desordem nacio-nal chamada de ordem. É um siste-ma supercentralizado, os critériosburocráticos, econômicos, produti-vistas é que contam, e se transpôsisso para dentro da USP. É exata-mente um enquadramento que nãodeveria existir, a USP deveria serum centro de resistência. E não es-tá sendo.

Revista Adusp- Toda a mecânicamesma de decisões do próprio Con-selho Universitário possibilita mui-to pouca discussão. Hoje os conse-lheiros falam só uma vez sobre ca-da tópico. O famoso expediente temficado para o final da pauta, quan-do muitos conselheiros, principal-

“Estamos excessivamente“Estamos excessivamenteburocratizados na burocratizados na

USPUSP. Na última greve . Na última greve a predominância do a predominância do

setor de relaçõessetor de relaçõeshumanas era evidente.humanas era evidente.Era como se a REra como se a Reitoriaeitoria

fosse lá. O que estáfosse lá. O que estáacontecendo é oacontecendo é o

enquadramento da USPenquadramento da USPna desordem nacionalna desordem nacional

chamada de ordem. chamada de ordem. Os critérios burocráticos,Os critérios burocráticos,

produtivistas é queprodutivistas é quecontam. A USP contam. A USP deveria ser um deveria ser um

centro de resistência. centro de resistência. E não está sendo”E não está sendo”

mente aqueles do interior, já tive-ram que se ausentar.

Dallari- Essa é uma praxe ab-surda, que foi adotada inclusivena Faculdade de Direito. Transfe-rir o expediente para o final dapauta é uma forma de impedirdiscussões. E isto é que chamo deburocratizar, porque o momentopolítico é o momento do expe-diente, em que cada um levantetemas novos. Claro que se alguémquiser propor alguma coisa parauma tomada de decisões, aí teráque pedir para entrar em pauta.Mas é diferente de alguém pedir apalavra para discutir uma questãoimportante que surgiu naquelemomento, é da ordem do dia. Oque se está fazendo é exatamenteessa burocratização. Temos queesgotar a pauta, temos que agirburocraticamente, e aquilo que édiscussão aberta, ampla, aconte-cerá se der tempo. E normalmen-te muita gente já foi embora, e háum certo cansaço no final, depoisde algumas horas de decisões, issotudo. E o que acontece é que de-saparece esse momento de crítica,que é fundamental.

Revista Adusp- Por conta dosprocessos dos docentes do IG, aComissão de Legislação e Recur-sos emitiu um parecer em que édito explicitamente que o reitor,por ele ter a incumbência de man-dar publicar as decisões de recon-tratações, nomeações etc., poderiasim tomar uma decisão à reveliadas decisões tomadas nos conse-lhos, unidades e até na CERT. Es-te parecer aborda outras coisas,mas particularmente coloca na

mão do reitor poder real, de al-gum jeito, e estará em pauta napróxima sessão do Conselho Uni-versitário, provavelmente. A apro-vação de um parecer como essenão seria quase anular a partici-pação do Conselho Universitárionas questões da Universidade?

Dallari- Sem dúvida. Porque aReitoria é o órgão executivo, masnão deliberativo. Claro que há unstantos assuntos administrativosque ficam na dependência da de-cisão do reitor. Mas esses assun-tos, que são objeto de discussões edecisões em colegiado, não po-dem, lá no final, ficar dependen-tes da vontade arbitrária do rei-tor. Isso realmente anula todo oprocedimento. E seria interessan-te que esse parecer fosse ampla-mente divulgado antes, até paramotivar os membros do ConselhoUniversitário, para que eles per-cebam a que ponto estamos che-gando. Mas aí mais uma vez vejoum reflexo dentro da USP daquiloque acontece fora. Se verificarmosqual é o papel do Congresso Na-cional no Brasil hoje, ele não tempapel. Quem é que legisla? É opresidente da República. Quem éque decide sobre os acordos inter-nacionais? É o presidente da Re-pública. Embora a Constituiçãodiga que o Congresso é que tem aúltima palavra, ele não tem. E orisco é isso: transpor exatamenteesse esquema para dentro da Uni-versidade. Então a reunião doConselho Universitário fica umaformalidade burocrática. Isto nãopode acontecer.

Revista Adusp- Na sua época de

diretor da Faculdade de Direito,ocorreram conflitos entre departa-mentos e a CERT?

Dallari- No caso da Faculdadede Direito não, porque eram ra-ríssimos os professores em regimeespecial. Aliás quando fui diretoruma das coisas que fiz, em parteconsegui, foi pedir aos professo-res que entrassem pelo menos emRTC. Porque eram raros os pro-fessores em regime especial. En-tão raramente tínhamos conflitos.Mas, além disso, não me lembrode nenhum caso em que uma de-cisão de departamento não tives-se sido acolhida pela CERT. Onormal é o acolhimento. Deveriacontinuar sendo, porque o pres-suposto é que o departamento,que está acompanhando mais deperto, sabe melhor quem é queestá cumprindo o seu dever.

Revista Adusp- O senhor nãoacha que a USP está precisando deum banho de democracia?

Dallari- A USP está precisandode um banho de dinamismo. Elacaiu num marasmo. Ela precisa serediscutir, discutir a sua própriaorganização, recolocar na discus-são as grandes questões. Nós pas-samos a discutir se tem dinheiroou não tem, onde é que se vai cor-tar a despesa, se contrata ou nãoem função de orçamento. Entãoisso é muito desanimador e justifi-ca também tantas aposentadoriase tanto desinteresse pela Univer-sidade. Há um evidente desprestí-gio. Tudo como conseqüência des-se estado de coisas. É preciso tra-zer um pouco mais de rebeldia àUniversidade. RA

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O IV Congresso da USP será realizado em 2001. Seu lançamento público ocorreu no último dia 20 de setembro, com a realização de um debate entre

o economista Luis Carlos Bresser Pereira e a filósofaMarilena Chauí, em torno do tema “Que Universidade

Queremos: Crítica ou Produtivista?”. Certamente, os debatedores são bem representativos dos campos

que se confrontam neste debate.

IIVV CCOONNGGRREESSSSOO DDAA UUSSPP

UNIVERSIDADE, VISÕES ANTAGÔNICAS

O ex-ministro Bresser, que é professor da FundaçãoGetúlio Vargas, foi um dos principais formuladores da

reforma do Estado implantada pelo governo federal desde1995 e o autor da proposta de “organizações sociais”.

Marilena, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, vem-se

destacando no panorama intelectual brasileiro como tenaz opositora da hegemonia conservadora,

tendo exercido o cargo de secretária municipal de Cultura de São Paulo durante a gestão Erundina. Como se verá nas páginas seguintes, Bresser rejeita aoposição crítica x produtivista adotada como mote do

debate, condena o sistema universitário público estatalpor ineficiência, considera que a maioria dos professores

universitários trabalha “pouquíssimo” e defende aimplantação de uma reforma institucional que possa

conferir às universidades competitividade e autonomiafinanceira, dentro do modelo americano ou inglês.Marilena, por sua vez, declara que compreender a

determinação do saber pelo mercado (ou pelo capital)não implica em submeter-se passivamente a essa

determinação, cabendo, antes, resistir a ela e combatê-la. Reitera que a universidade pública gratuita é um direito historicamente conquistado.

E sustenta que a luta pela autonomia do saber exigeestratégias de enfrentamento da burocracia estatal

“de tipo empresarial” que rege a USP nos dias de hoje.

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BBRREESSSSEERR PPEERREEIIRRAA

REFORMA INSTITUCIONAL,COMPETITIVIDADE E

AUTONOMIA FINANCEIRA

Quero em primeiro lu-gar agradecer aos or-ganizadores desteCongresso, pelo con-vite. É um prazer po-der debater com vo-

cês e especialmente com a profes-sora Marilena Chauí. Eu estavacontando à professora Marilena,que conheço há muitos anos, queno ano passado eu passei o segun-do semestre em Oxford, depois deter saído do governo. E em Ox-ford escrevi um paper que chama-va-se “Incompetência e Confi-dence Building (é melhor falar eminglês esse Confidence Building)Por Trás da Quase Estagnação daAmérica Latina nos Últimos Vin-te Anos” (N.R.: esse artigo, In-competence and Confidence Build-ing Behind Latin America’s 20Years Old Quasi-Stagnation, estádisponível no site www.bresserpe-reira.ecn.br).

O objetivo do paper era expli-car fundamentalmente, como opróprio título já diz, por que aAmérica Latina, que entrou numaprofunda crise no início dos anosoitenta, demorou tanto tempo asair dela, até hoje não saiu e porque então dessa forma permane-ceu praticamente estagnada.

O crescimento da América La-tina nos últimos vinte anos foi de0,5% ao ano de renda per capita,enquanto os países da OCDE con-tinuavam crescendo a 2,5% aoano, cinco vezes mais. Expliqueique isso se devia em grande parteà incompetência dos economistas,e não só incompetência dos eco-nomistas mas também incompe-tência que era técnica, incompe-

tência que era emocional, medo,arrogância, de um lado; e de ou-tro lado era também a prática doConfidence Building, de pensar,imaginar que Washington, NovaIorque tenham o saber universal eadotar as políticas que eles suge-rem sem crítica.

Quando apresentei esse paper— primeiro apresentei para umgrupo de amigos meus na Univer-sidade de Nova Iorque, depois àprópria Oxford — eles me per-

guntaram: “Mas vocês não apren-dem com os seus erros”? Tomeium susto com a primeira vez, coma segunda me deixou um poucoatrapalhado ainda, na terceira co-mecei a pensar numa resposta pa-ra essa pergunta. Porque realmen-te você cometer erros, como porexemplo querer basear o desen-volvimento econômico do país emfinanciamento externo, ou tentarestabilizar a economia mantendo

uma taxa de câmbio completa-mente sobrevalorizada, e repetir oerro, isso é quase incompreensí-vel, quer dizer, realmente vocênão está aprendendo dos seus er-ros. Mas por quê? Burros nós nãosomos. Por que, então, nós nãoaprendemos dos nossos erros? Eeu achei que a explicação funda-mental é que nós não sabemos fa-zer o debate público.

Porque o debate público é im-pressionante num país como a In-glaterra, eu passei lá quatro me-ses, e se debate tudo, o tempo to-do, sistematicamente, não escapanada do debate. Mas é um debatede verdade, porque é um debatesobre questões, jamais sobre pes-soas. Nunca você diz “esse é atra-sado”, “esse é neoliberal”. Não.“Esse é isso, esse é aquilo”. Issonão interessa. O que interessa éaquela questão que você está dis-cutindo. Enquanto aqui no Brasilninguém respeita o outro, nem umlado nem o outro. E isso é um de-sastre, porque quando você nãorespeita você cria ódio e não vaiapreender nada.

O nosso problema aqui é a uni-versidade. E a questão é quais sãoos objetivos da universidade. Acei-tei o convite para participar de umdebate na USP, patrocinado pelosprofessores da Universidade, coma Marilena Chauí, sobre a Univer-sidade. Aí ví que o título é “A Uni-versidade que Queremos, Críticaou Produtiva”. Ou produtivista,não sei. Vou ficar com “produtiva”.Se tivesse que escolher entre umauniversidade produtiva e uma uni-versidade crítica, eu não teria amenor dúvida, prefiro uma crítica.

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Não creio que opor

universidade crítica a

universidade produtiva

seja uma forma feliz de

enfrentar o problema

que estamos

enfrentando. Não

consigo separar esses

dois objetivos, a

universidade deve ser

crítica e produtiva

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Nenhuma dúvida. Agora, a minhaquestão é que não creio que essaantítese seja uma forma feliz deenfrentar o problema que nós esta-mos enfrentando na Universidade.Quer dizer, opor universidade crí-tica a universidade produtiva. Nãocreio que seja por aí.

Porque, em primeiro lugar, auniversidade tem que ser crítica.Se a universidade não for crítica,não é universidade. Ela tem queser crítica em dois níveis: em pri-meiro lugar tem que ser crítica daprópria ciência. Que é ciência? Aciência é a crítica do conhecimen-to atual para você avançar comele. É isto. O velho Marx já diziaque o bom senso é o inimigo daciência. De repente vem um cien-tista e avança, ele vai contra, criti-ca as teorias existentes, critica asidéias existentes e vai adiante. En-tão, esse é o primeiro papel críticoda universidade, que é absoluta-mente fundamental.

O segundo papel é que nãoexistem apenas ciências exatas,existem também ciências sociais,em que há valores, há crenças, háideologias, e trata da gente, ondehá injustiça, e nós vivemos numpaís profundamente injusto, umpaís subdesenvolvido, um paíscheio de problemas. E ao apre-sentar essa sociedade, ao tentaranalisar a sociedade, nos cursosde economia, de sociologia, deciência política, de antropologia,de filosofia, você não ser capaz aomesmo tempo de criticar o quenós temos diante de nossos olhosseria realmente uma negação desi própria da universidade absolu-tamente inaceitável. Não temos

sido muito críticos nem numa coi-sa nem noutra nos últimos anosno Brasil.

Mas que significa ser uma uni-versidade produtiva? Será que vo-cê ser crítico, significa então quevocê não pode ser produtivo? Queé uma universidade produtiva? Nomeu entender, uma universidadeprodutiva é fundamentalmenteuma universidade que produz co-nhecimento. Porque é para issoque a universidade foi criada, fun-

damentalmente para produzir co-nhecimento. Então, se ela não forprodutiva, no sentido de não pro-duzir conhecimento, ela não inte-ressa. Não é universidade. Masnão é só conhecimento: ela produzconhecimento, conhecimento no-vo, mas tem que produzir ensinotambém. Ela tem que ensinar, eensinar com boa qualidade. Se nãoproduzir ensino, não é uma uni-versidade. Se não fizer publica-

ções, também não é universidade.Então, vejo que o problema de serprodutivo e ser crítico são duascoisas que se somam. Uma univer-sidade produtiva é também umauniversidade crítica.

Agora, você precisa produzirconhecimento, ensino, pesquisa,publicações de qualidade, com ex-celência. É isso. Quando você fazisso tem que fazê-lo criticamente:dentro da excelência está a crítica.Na análise dos problemas que vo-cê enfrenta, tem que fazer a análi-se dos problemas mas tem que fa-zer a crítica dos problemas tam-bém. São duas atitudes diferentese que se somam, se interpene-tram, isso é fundamental. Agora,se for uma universidade, porexemplo, que produz só ensino,não produz pesquisa, isso não éuniversidade, é um college. Eu nãoconsigo separar esses dois objeti-vos, para mim universidade deveser crítica e produtiva. E as duascoisas fortemente, para produzirexcelência, criticamente.

Agora, há outras questões quesão mais importantes, mais funda-mentais, e que vão mais ao cerneda nossa crise. Que vão mais aocerne do problema que nós esta-mos vivendo. A universidade deveser pública ou privada? Isso é umaquestão. Eu não tenho a menor dú-vida, a mais longínqua dúvida, deque a universidade deve ser públi-ca. Entendo que a universidade pri-vada, a universidade que visa lucro,é para mim um aborto. É algumacoisa absolutamente inaceitável domeu ponto de vista de valores. Eusei que existe aí na sociedade, seique existe no Brasil, mas em países

A universidade

privada, a universidade

que visa lucro, é

para mim um aborto.

É absolutamente

inaceitável do

meu ponto de vista

de valores. Sei que

existe no Brasil,

mas em países

civilizados não tem

civilizados não tem. Eu não conhe-ço nenhuma universidade privadana França, nos Estados Unidos, naInglaterra, na Alemanha, na Sué-cia. Privada, não conheço. Univer-sidade que visa lucro.

Aí então, “mas o que você estáentendendo por universidade pú-blica, universidade privada?” Issoé importante. Pública é a universi-dade que tem objetivos públicos.Pública é a universidade que exis-te em função do interesse público,e não no interesse dos seus pro-prietários. Uma universidade queé privada é aquela que existe emfunção dos interesses dos seusproprietários. No mundo capita-lista, as empresas são privadas.Elas existem no interesse dos seusproprietários. Para que elas ajamde forma pública, é preciso que amão invisível do Adam Smith fun-cione. É preciso que, cada um de-fendendo seu próprio interesse,através do mercado você possaentão fazer com que os interessesdos demais sejam atingidos. Masuma empresa privada é privada,ponto final.

Tudo muito bem. Agora, trans-formar em empresas coisas que es-tão relacionadas com direitos fun-damentais da humanidade, como éo caso de educação e saúde, trans-formar isso em privado, transfor-mar isso em objeto de lucro, paramim é um escândalo. Para mim éinaceitável, acho que não devíamoster. E nossa sociedade está falhan-do quando isso acontece. Isso emtodos os níveis de ensino, no ensi-no básico, fundamental, no médioe no ensino superior. O ensino de-ve ser público.

Agora, que é universidade pú-blica? Universidade pública é si-nônimo de universidade estatal?Não, de forma nenhuma. Quer di-zer, uma coisa é ser universidadeestatal, outra coisa é ser pública.A estatal em princípio é pública,por definição é pública, emboraela possa ser distorcida muitas ve-zes e deixar de ser tão pública

quanto gostaríamos. Mas não im-porta. Uma estatal é sempre públi-ca. Mas existem muitas institui-ções que são públicas, não esta-tais. A instituição na qual eu tra-balho há quarenta anos, que é aFundação Getúlio Vargas, é assim.Mas não é só isso: a Harvard Uni-versity é assim, a Universidade deChicago é assim, o MIT é assim, aUniversidade de Oxford é assim, aUniversidade de Cambridge é as-

sim. São absolutamente públicas.São públicas, não estatais. Então,meu entendimento é que a univer-sidade deve ser pública, mas podeser pública estatal ou não estatal.

Aí vem mais uma pergunta:por que a universidade brasileiraestá em crise? Não estou falandoda USP, a USP é a melhor univer-sidade do Brasil, é a grande uni-versidade do Brasil, é a minhauniversidade, não onde eu traba-lho, mas onde eu fiz a minha gra-duação, o meu doutorado e a mi-nha livre-docência. Tenho o maiorrespeito por essa universidade, te-nho mais que respeito, tenho omaior amor por essa universida-de. Hoje minha atividade é exclu-sivamente acadêmica, podemimaginar que tenho muitos ami-gos dentro dessa universidade,porque ela é muito importantepara o Brasil e para mim. O siste-ma universitário público estatal,no Brasil, está em crise.

Que crise é essa? Por quê ossalários são tão baixos na univer-sidade pública brasileira? São in-crivelmente baixos. Por quê? Porque a produção acadêmica é rela-tivamente baixa? Muito aquém doque seria razoável. Sei que a USPé melhor, mas pegue a média. Porquê o número de teses de douto-rado é grande, mas a qualidadedas teses de doutorado está longede ser uma maravilha? Por quê?Por que, ao lado de uma elite depesquisadores e professores de al-to nível, você tem, em todas asuniversidades públicas estatais,uma grande quantidade de profes-sores medíocres, e, o que é pior,uma grande quantidade de profes-

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Por que, ao lado

de uma elite de

professores de alto

nível, você tem, em

todas as universidades

públicas estatais,

grande quantidade de

professores medíocres

e, o que é pior,

grande quantidade

de professores

que trabalha

pouquíssimo?

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sores que trabalha muito pouco,pouquíssimo?

Por quê a universidade não estáatraindo, como atraía antes, osmelhores cérebros do país (tem al-guns ainda, graças a Deus, masnão todos, não tantos quanto de-via)? E por que a universidadeperdeu sua capacidade crítica, quevocês querem que tenha e eu tam-bém quero, além de ter perdidosua capacidade, como nós gosta-ríamos, de produção de conheci-mento? Que está acontecendo?

Vou oferecer a vocês duas res-postas a essas questões, duas res-postas que eu entendo encadea-das. Já pensei muito nisso, não es-tou inventando hoje, é um assuntoque me preocupa muito. Pensonisso há muitos anos. Acho queestá acontecendo essa crise por-que a universidade pública estatalbrasileira é ineficiente. Ela é vistacomo não produtiva. Ela tem umcusto para a sociedade que é altodemais em relação àquilo que asociedade está disposta a pagarpor ela. Isto é sério, se isso for ver-dade. Em função disso, a universi-dade pública estatal brasileira viveuma crise de legitimidade. Legiti-midade no sentido weberiano dotermo, quer dizer, ela perdeu oapoio da sociedade. Ou perdeu oapoio que devia ter na sociedade.Ela precisava ter muito mais apoiodo que tem. Esse é o problema.

“Por que você está dizendo is-so? Isso atinge a todos nós, quaissão os sintomas, as demonstraçõesdisso?” A demonstração para mimmais clara é a seguinte: todos osgovernos democráticos do Brasil,no nível federal e estadual, dizem

sempre, desde 1985, uma frase: “Anossa prioridade é o ensino funda-mental”. Depois o ensino médio, oensino profissional, portanto a últi-ma prioridade de todos os gover-nos democráticos é a universidade.Ora, será que esses políticos quefalam isto, de todos os partidos eque estiveram em todos os gover-nos que têm universidades, seráque esses políticos estão falandoisso porque estão insensíveis aopovo, estão ignorando seu eleitora-do? Não creio. Há algo de podreno reino da Dinamarca.

Há uma crise de legitimidade,não tenham dúvida, da universida-de brasileira, que nós precisamostomar conhecimento dela e enfren-tá-la. Agora, será justa a avaliaçãoda sociedade? Porque essa é umaavaliação da sociedade: que a uni-versidade é uma coisa cara e feitapara rico, rico num conceito am-plo, que inclui boa parte da classe

média. Ela é cara e feita para rico,porque os pobres ou não vão paraa universidade coisa nenhuma, ou,quando vão a universidades, vão auniversidades privadas ou públicasnão estatais — mas principalmenteprivadas, com objetivo de lucro,pagam um dinheirão e têm um en-sino de quinta categoria.

Então essa universidade é carapara a sociedade e destinada aosricos. E como político conseguevoto é do povão, fica complicado.Estamos aí com um problema sé-rio que temos que enfrentar. Masserá que essa avaliação é correta?Não vou entrar aqui em número,já vi muito número para lá e paracá, não vou fazer pesquisa de nú-mero agora, não é a minha área.Os números que vi para lá e paracá indicam sempre que a universi-dade brasileira pública estatal épelo menos cara, se não é escan-dalosamente cara é pelo menos

A universidade pública

estatal é ineficiente e

vista como não

produtiva. Tem um

custo alto demais em

relação àquilo que a

sociedade está disposta

a pagar por ela. Em

função disso, vive uma

crise de legitimidade

cara em termos de custo por alu-no. E se for comparar em termosde qualidade é muito cara. Elacusta mais ou menos o que custauma universidade média america-na. Isso a universidade federalbrasileira, não a USP, que é umauniversidade de escol.

Mas o drama também, e esse éum drama que em São Paulo agente sofre menos do que se sofreno nível federal, é que a universi-dade trata todo mundo igual. Se-ja um professorzinho de baixíssi-ma qualidade, com uma titulaçãoda pior qualidade, seja uma Mari-lena Chauí, se for doutor ganha amesma coisa. Ponto. É um escân-dalo isso. Não incentiva ninguém,não ajuda ninguém. É verdadeque você tem uma minoria de tra-balhadores que são excelentes,extraordinários, trabalham muitoetc. Mas você tem essa grandemaioria que não trabalha. E te-mos também um problema muitosério, o problema da aposentado-ria. Todos sabemos que a aposen-tadoria dos professores universi-tários é em idades ridiculamentebaixas.

Salários ridiculamente baixos,aposentadorias muito cedo, semnenhuma correspondência com otempo de trabalho, são essas asavaliações que existem na socieda-de. Certas ou erradas, acho queestão basicamente certas, exigemque nós pensemos no assunto. Te-mos dois paradoxos aqui: primei-ro, o paradoxo de ser um privilé-gio ser professor dela, embora ossalários sejam miseráveis. Estra-nho isso, nada mais difícil do queser professor da universidade pú-

blica estatal brasileira, não só daUSP, precisa anos e anos de gra-duação, mestrado, doutorado edepois se submeter a uma perma-nente presença, e afinal consegueser professor. E há um privilégioaí, porque ele realmente se dife-rencia do resto da humanidadeporque ele é um professor. E de-pois ganha uma miséria. É um pa-radoxo, uma coisa muito estranha.

O outro é o seguinte: como éque se explica uma crise de legiti-midade da universidade brasileiranum momento em que vivemosum desenvolvimento tecnológicoe científico sem precedentes, e noqual então, diante desse desen-volvimento tecnológico e científi-co, que envolve inclusive proble-mas sociais e morais da maior gra-vidade, uma universidade crítica,pensante, produtiva, seria (seria

não: é) absolutamente importantepara o país.

Nunca se precisou mais da uni-versidade do que hoje. No entan-to, esta universidade está numacrise de legitimidade perante asociedade. Como enfrentar essacrise? Eu devo ter sido convidadopara esta palestra porque escrevium artigo que saiu numa colunado Mais! que foi dedicado à uni-versidade. Foi por acaso que es-crevi naquele número, porquemandei o artigo para a página 3da Folha. O editor da página 3viu o artigo, disse: “Você nãoquer concordar que publique noMais!, porque nós estamos publi-cando um número especial sobrea Universidade?” Falei: “Sem dú-vida, com muito prazer”. Entãomeu artigo saiu junto com os dosdemais colegas professores queestavam lá.

O tom dos outros professores,não vou dizer de todos, mas o tomque eu senti lendo os outros arti-gos, foi um tom lamentoso, entrelamentoso e indignado. Mas maislamentoso que indignado, não po-dendo compreender como a uni-versidade chegou a este ponto.Era este mais ou menos o climada coisa. Que é o paradoxo. Masnão diziam o que fazer. Porque al-guma coisa tem que se fazer.

Entendo que para nós enfren-tarmos esta crise de legitimidadeem que a universidade se encon-tra, para termos uma universidadeque seja crítica e produtiva aomesmo tempo, precisamos de umareforma institucional na universi-dade. Esta reforma institucional,no meu entender, envolve cinco

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Seja um professorzinho

de baixíssima

qualidade, seja uma

Marilena Chauí, se for

doutor ganha a mesma

coisa. É um escândalo.

É verdade que há

uma minoria de

trabalhadores

excelentes. Mas há

essa grande maioria

que não trabalha

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objetivos, ou cinco estratégias, e aprópria reforma institucional. E aía resposta: de que universidadenós precisamos.

Em primeiro lugar, precisamosde uma universidade que sejacompetitiva, no nível nacional e nonível internacional. As melhoresuniversidades do mundo são alta-mente competitivas, e são compe-titivas geralmente não no nível deuniversidades, também universi-dade, mas no nível de departa-mento. Os departamentos de eco-nomia, os departamentos de filo-sofia, os departamentos de ciênciapolítica, os departamentos de físi-ca das universidades americanas eeuropéias competem entre si for-temente, pela excelência, porquehá toda uma quantidade de avalia-ções que são feitas, formais e in-formais (a maioria informal, mastem tanto uma quanto a outra), etodo mundo sabe qual é o rankingdos departamentos.

O ranking é mais ou menos es-se e quem está no alto do rankingtem os melhores alunos, tem asmaiores verbas. Quem está lá em-baixo do ranking está mal. Entãoa competição é dura. Não há aidéia de monopólio de jeito ne-nhum. A universidade públicabrasileira está marcada pela idéiado monopólio. Então isto é umacoisa fundamental, você ser com-petitivo, e competitivo não só nonível nacional, no nível interna-cional também.

Quando fizemos a abertura danossa economia, nós estávamosdizendo para os empresários: tra-tem de competir internacional-mente, porque aliás você não tem

outra alternativa, ou você compe-te ou eles liqüidam conosco. Comessa taxa de câmbio quase nos li-qüidaram, a taxa de câmbio valo-rizada que eles fizeram durantecinco anos. Quando você diz isso,por que não dizer a mesma coisapara os intelectuais brasileiros,sejam eles os professores univer-sitários, sejam os artistas? Façamuma produção que seja muito

brasileira, mas seja internacional-mente competitiva, seja de altonível. Esse é nosso desafio. Nin-guém pode fazer uma culturazi-nha de quintal, protegidinha. Issoacabou. Ou somos capazes de sercompetitivos nacionalmente, en-tre nós, e no nível internacional,ou não teremos uma universidadecom legitimidade.

Segundo: precisamos de umauniversidade com autonomia ad-

ministrativa e financeira. Achoum absurdo que uma universidadecomo a USP, como a Federal doRio de Janeiro, ou qualquer outrauniversidade pública estatal, aUniversidade de Brasília, as gran-des universidades, a do Rio Gran-de do Sul, a Unicamp, sejam uni-versidades que não têm nenhumaautonomia administrativa e finan-ceira. Têm ampla autonomia aca-dêmica, mas autonomia financei-ra não têm nenhuma.

Terceiro: precisamos de umEstado que financie a universida-de com recursos adequados, eque esse financiamento seja dadoem três partes — ou três tranches,como gostam de dizer os ban-queiros: o Estado deve transferiro dinheiro para uma agência re-guladora (tipo Fapesp, mas é umaoutra), e essa agência reguladoraentão é que distribui. Aqui emSão Paulo você tem três tranches,uma das quais a Fapesp já realizae o CNPq já realiza bem o papel.A primeira é para pesquisa, dis-tribuída para cada pesquisadorou grupo de pesquisas, isso é oque já tem no Brasil. Tem com aFapesp, tem com o CNPq. A ou-tra é para o ensino, quer dizer,proporcional ao número de alu-nos e à qualidade do ensino, co-mo a das pesquisas é proporcio-nal à qualidade das pesquisas. E aterceira é para pesquisa e a publi-cação mais global, para financiara infra-estrutura, não é para cadapesquisador, vai para a universi-dade. Mas proporcional então àquantidade de pesquisa e à quali-dade da pesquisa e da publicaçãodessa universidade. Estas as três

Ninguém pode fazer

uma culturazinha

de quintal,

protegidinha.

Isso acabou.

Ou somos capazes

de ser competitivos

entre nós, e no nível

internacional, ou

não teremos uma

universidade

com legitimidade

tranches de um financiamentoadequado que deve ter a universi-dade.

E finalmente a agência regula-dora. Agora, como é possível fazerisso? Para fazer essas coisas — auniversidade ser competitiva, au-tônoma financeiramente, bem fi-nanciada, e financiada de acordocom o mérito, de acordo com aqualidade do trabalho que ela rea-liza (porque é competitiva porqueela vai ganhar mais se tiver me-lhor desempenho, óbvio), há umproblema fundamental: há umaincompatibilidade intrínseca, ameu ver, entre a universidade seressas coisas e ser estatal. A univer-sidade deve ser pública mas nãodeve ser estatal.

Nenhuma das universidadesamericanas e inglesas é estatal, nomeu entendimento. As francesas ealemãs continuam estatais. E te-nho impressão de que se vocês fo-rem examinar o desempenho dasuniversidades francesas e alemãs,comparadas às inglesas e america-nas, o desempenho das america-nas e inglesas é bem melhor. Eolha que eles têm uma tradição deuniversidade estatal e de burocra-cia estatal na França e na Alema-nha muito poderosas, e um senti-do de dever cívico muito profun-do. Mas por que a universidadeestatal é incompatível com umauniversidade autônoma e competi-tiva? Porque uma universidade es-tatal é uma universidade de fun-cionários públicos.

Isso… é para rir mesmo. Mas épara rir mesmo, porque isso é in-concebível. Estou aqui para con-versar com vocês e pensar com

vocês. Eu já pensei muito nesseassunto. O serviço público é umacoisa extremamente importante.O Estado é uma coisa fundamen-tal em qualquer nação, você temque ter um Estado que regule in-clusive o mercado. O Estado éfundamental, tem que ser fortale-cido, e no Estado existem servi-dores públicos, que têm um papelfundamental na regulação da eco-nomia. Mas os servidores públi-cos, que são funcionários públi-cos, são aqueles que realizam fun-ções exclusivas de Estado, ou se-ja, as funções em que há poder deEstado.

O juiz, o promotor, o delegadode polícia, o fiscal, esses são ho-mens que recebem um poder doEstado e por isso são funcionáriospúblicos. Agora, para ensinar,

pesquisar, como também ser mé-dico, enfermeiro, professor, nãotem o menor sentido ser funcio-nário público, nesse sentido. Vocêtem que ser funcionário de umainstituição pública não estatal,sem fins lucrativos, com todos osdireitos que for legítimo e possí-vel dar. Mas nunca ser funcioná-rio público.

Porque na hora que você é fun-cionário público, que acontece?Vamos imaginar que eu dê auto-nomia, autonomia de verdade, pa-ra a Universidade de São Paulo.Que quer dizer autonomia de ver-dade? Quer dizer o seguinte: vocêpode contratar os funcionáriosque quiser, professores e funcio-nários, na quantidade que quiser epelo salário que quiser pagar. Istoé autonomia. A Fundação Getúlio

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Por que a

universidade estatal é

incompatível com

uma universidade

autônoma e

competitiva? Porque

uma universidade

estatal é uma

universidade de

funcionários públicos.

Isso… é para rir

mesmo, porque isso é

inconcebível

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Vargas, que é autônoma, ou aPUC, podem fazer isso. Não temnenhuma lei que determine o nú-mero de funcionários, muito me-nos outra lei que diz qual é o salá-rio dessas instituições públicasnão estatais.

Nos Estados Unidos você temdois tipos de universidades: as es-taduais, como a Michigan State, aUniversity of California etc. e asprivadas, como Harvard, MIT,Chicago. Eu digo para os america-nos: “Vocês não têm nem privadanem pública, nem estadual”. Por-que as estaduais não têm nenhumfuncionário público e são perfeita-mente autônomas. E as privadasnão são privadas, são públicas,ninguém fica rico delas, são públi-cas não estatais. Aqui, se eu deressa liberdade ao reitor, que vai

acontecer? Eles aumentam os sa-lários, aumentam o número defuncionários, e quem paga é o Te-souro do Estado? Não faz sentidonenhum isso. Seria uma absolutairresponsabilidade de quem fizes-se uma coisa dessas.

Agora, se você for autônomo,você diz assim: “Está aqui o orça-mento, o orçamento me dá isso”.Esse orçamento vem de uma tra-dição, e se conquista mais valor,mais quantidade de orçamento,porque entendo que a universida-de deve ser fundamentalmente fi-nanciada pelo Estado, muito se-cundariamente por receitas de ou-tra origem. No fundo, estou pro-pondo aos senhores que a univer-sidade brasileira tenha o mesmomodelo mais ou menos que tem auniversidade americana ou a uni-

versidade inglesa. Modelo estru-tural, institucional, que nós mude-mos as nossas instituições aquipara caminharmos nessa direção.Dessa forma entendo que a uni-versidade poderá a médio prazorecuperar a sua legitimidade etornar-se a coisa importante quenós precisamos.

Quando estive no governo,propus um modelo que poderiaservir para a universidade, que é achamada organização social.Aquilo pode servir de base, e eunão tenho tempo para explicaraqui, pode ser nos debates. CadaEstado, e o governo federal espe-cificamente, devia fazer uma leique fosse amplamente discutidapor todos vocês e pela sociedade,em que se criassem as organiza-ções especiais das universidades,que se garantisse a elas o finan-ciamento, a autonomia e a res-ponsabilidade, porque o que sequer é autonomia com responsa-bilidade, não autonomia para quedepois o outro pague.

Se você aumentar o salário edepois não tiver como pagar oproblema é seu, porque está aquio seu orçamento, que vai ser dis-cutido de forma política, respeitá-vel, a partir de todo um processopolítico e democrático que existeno país. Pode ser que haja outroscaminhos. Certamente este cami-nho que estou dizendo permitemuitas alternativas, muitas fórmasde realizar, mas eu realmente pe-ço a vocês que pensem seriamentee debatam seriamente isso que es-tou dizendo, porque por aí há umcaminho para sairmos da crise.Muito obrigado. RA

No fundo, estou

propondo que a

universidade

brasileira tenha o

mesmo modelo que a

universidade

americana ou a

universidade inglesa.

Quando estive no

governo, propus um

modelo que é a

chamada

organização social

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MMAARRIILLEENNAA CCHHAAUUÍÍ

RESISTIR ÀSDETERMINAÇÕES DO

MERCADO, EM BUSCA DAAUTONOMIA DO SABER

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Zé Carlos, deixa eu tedizer uma coisa.Quando se formampequenas coletivida-des, pequenas socie-dades que acabam

operando em conjunto, elas aca-bam produzindo um ideário co-mum, que se exprime numa lingua-gem comum que é reconhecível portodos. O que nós aqui nessa comu-nidade chamamos de universidadeprodutivista é o que você acaboude propor. Então, é um debate deverdade. Vamos ter um debate deverdade, porque quando foi colo-cado pela Adusp o “ou” como al-ternativa, e você ao traduzir produ-tivista por produtiva colocou o “ou”como inclusiva, a intenção era quehouvesse mesmo um debate entreduas concepções de universidade.

Agora, preciso esclarecer umpouco o que eu vou dizer aqui ho-je. Faz uns dois anos que eu venhodizendo qual é a universidade quenós não queremos. Todo um con-junto de debates e discussões quefizemos, textos que acabei produ-zindo tanto para uso interno nossocomo depois para divulgação emjornais e livros, e que fundamental-mente se colocavam como críticada universidade como organizaçãosocial; uma avaliação do percursoque nos levou durante a Ditadura àuniversidade funcional; depois, nocorrer dos anos 80, a universidadefuncional; e depois, no correr dosanos 90, à universidade operacio-nal, à qual eu atribuo uma das cau-sas dessa crise de legitimidade quecorretamente o Bresser apontou.Então, hoje eu preferiria não voltarpor esse caminho.

Sei que fica meio maluco, por-que era hoje que eu tinha que vol-tar. Depois da fala do Bresser, eutinha que voltar a isso. Mas talveza gente possa voltar na hora do de-bate. Porque eu gostaria de ir nu-ma direção mais propositiva, jáque a pergunta é que universidadenós queremos. E, para não parecerque nós só somos capazes de nos

lamentar, e que nós esperamos queas propostas venham do outro ladoe a gente só serve para malhar aproposta vinda do outro lado e nãosomos capazes de fazer uma pro-posta. Eu gostaria de começar to-mando o tema da autonomia. Masfocalizando o tema da autonomiapor outra perspectiva.

Nós sabemos que uma das mar-cas daquilo que se chama a moder-nidade é, no caso das artes e dasciências e da filosofia, a busca da

autonomia, ou seja, o definir-se apartir de suas questões lógicas pró-prias, internas, e não pela sua sub-missão ao poder teológico, ao po-der político, ao poder eclesiástico,ao poder estatal. É óbvio que oprojeto da modernidade, como oprojeto da autonomia, vai esbarrarinevitavelmente no seu grandeobstáculo, porque se as artes, a fi-losofia e as ciências se libertam dasubordinação à teologia e à reli-gião e se libertam da subordinaçãoao poder absoluto ou ao antigo re-gime, elas vão enfrentar um outropoder, mais terrível certamente,porque imperceptível, que é o po-der do mercado.

Portanto, a luta pela autonomiase realiza sob um processo no qualcada passo de afirmação de um sa-ber autônomo implica quase emdois passos atrás, por causa da de-terminação desse saber pelo capi-talismo, pelo capital ou pelo quehoje em dia se chama as leis domercado. Nesse sentido, seria ilu-sório, seria utópico no mau senti-do, nós querermos discutir a ques-tão da autonomia, como autono-mia do saber, fazendo de contaque a determinação do mercadonão existe ou que ela é irrelevante.

No entanto, penso que a posi-ção que se contrapõe à posiçãoque eu estou aqui chamando deutópica no mau sentido — isto é,aquela que a todo custo quer igno-rar a determinação de todas as ins-tituições sociais, no modo de pro-dução capitalista, pelo mercado —é aquela que considera que essadeterminação pelo mercado é a ra-cio ultima das instituições, que eladetermina necessária e verdadeira-

A busca da autonomia

do saber, e portanto

a idéia de uma

universidade crítica, é

aquela que compreende

e interpreta o processo

de determinação

das instituições pelo

mercado — e cria

armas de combate

teórico e prático

contra esse processo

mente a lógica dessas instituições,e que é a adequação dessas insti-tuições à lógica do capital, ou a ló-gica do mercado, que garante a suaexistência e a sua legitimidade.

Ora, penso que a questão que aautonomia, como autonomia dosaber, primeiro de tudo, nos colocaé, diante da necessidade de com-preender que a determinação pelomercado, e portanto a articulaçãointerna que existe entre todas asinstituições sociais na sociedadecapitalista (e portanto entre elas auniversidade) e as condições eco-nômicas, ao não ser ignorada nãosignifica ser tomada como a racio ea determinação em última instân-cia da nossa atividade. Pelo contrá-rio. A busca da autonomia, e por-tanto a idéia de uma universidadecrítica, é aquela que compreendeesse processo, explica esse proces-so, interpreta esse processo, resistea ele e cria armas de combate teó-rico e prático contra isso.

Então, não é dar as costas à de-terminação econômica da institui-ção. Mas é não fazer dessa deter-minação econômica o nosso credo.E é portanto o trabalho pelo qualnós podemos compreender o quese passa, compreender a origem danossa própria instituição, e os pro-blemas e contradições que ela en-frenta na medida em que ela temcomo alvo, como objetivo, a pro-dução autônoma do saber, e temcomo realidade geral e cotidiana obloqueio ao exercício da sua auto-nomia. Ao falar isso, quero dardois exemplos do que significa tra-tar de maneira diversa o problemada determinação pelo mercado.

Uma instituição social não se

define apenas por sua determina-ção econômica. Ela se define tam-bém pelo conjunto de práticas querealiza como instituição social, epelo modo como se articula à açãopolítica. Isso significa, para tomarum exemplo simples, que a univer-sidade pública gratuita — porqueisso é o que o Bresser esqueceu dedizer, pública gratuita, é disso quese trata para nós — se insere numatradição política republicana, ini-cialmente, libertária depois, deafirmação da educação em todosos níveis como um direito. E é aperspectiva política da afirmaçãoda educação como um direito, emtodos os níveis — e portanto a nãoconfusão de um direito com umserviço — que leva, no caso da uni-versidade pública gratuita, à suarelação com os fundos públicos.

Portanto, não é que o Estadocusteia uma universidade cara, ine-ficiente, improdutiva. Isso vamosdiscutir daqui a pouquinho. O quea universidade pública, como o en-sino público gratuito de primeiro esegundo graus, significa é que napartilha republicana democrática,porque é nesse campo que nós te-mos que falar, não dá para ir alémdesse (por enquanto, né), há umaluta política pela distribuição, re-partição e divisão e uso do fundopúblico. Porque se nós deixarmossó por conta do Estado brasileirotal como ele é (e como ele semprefoi: oligárquico, autoritário), é ób-vio que ele dirigirá a totalidade dosfundos públicos para as atividadeseconômicas e políticas da classedominante.

É portanto no interior de umaluta política que a discussão da des-

tinação dos fundos públicos para aeducação, e aí incluída a educaçãono nível universitário, se coloca. Eé portanto, sem desconsiderar todoo problema que a determinação domercado coloca para nós em ter-mos da autonomia do conhecimen-to, que o caráter público, republi-cano e democrático da universida-de pode, pela via da operação polí-tica, assegurar, em grande parte,uma autonomia de conhecimento,de saber e de ação que, considera-da apenas a determinação do mer-cado, ela não poderia ter.

E portanto é nesta corda bambadifícil, neste fio da navalha, nessasituação que não ouso chamar dedialética porque dialética é quandotem contradição — nós aqui nãotemos uma contradição de verda-de, nós temos um problema e umadificuldade —, nesse lugar instávele complicado em que a determina-ção econômica e a ação política seenfrentam, que a questão do cará-ter público, gratuito e autônomoda universidade pode ser discutida.

Ou seja, estou querendo tirar adiscussão da afirmação de que ela émuito cara, de que ela é ineficiente,e de que os ricos devem pagar pe-los pobres, porque na universidadepública estão os ricos. Quero que agente se desloque do senso comumsocial, porque é o senso comum so-cial que colabora para a corrosãoda nossa legitimidade, a partir evi-dentemente de toda uma operaçãosistematicamente realizada por al-guns partidos políticos e pelosmeios de comunicação.

A isso eu queria acrescentaragora, ainda no campo da autono-mia, a questão da autonomia tanto

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do ponto de vista administrativoquanto do ponto de vista financei-ro, porque a primeira referênciaque eu fiz foi à autonomia do co-nhecimento. Aqui nós enfrentamosum problema muito específico,que é o fato de que o governo dauniversidade, estou me referindo anós, o governo da universidade é,no seu cotidiano, como exercício eoperação administrativa, realizadopor uma burocracia estatal. Ora,nós sabemos que a burocracia esta-tal não é um instrumento de admi-nistração, e muito menos de racio-nalização. A burocracia estatal éuma formação social de exercíciodo poder.

Ela é uma forma do exercíciodo poder, baseada na hierarquia,no segredo e na rotina. Não sãopredicados pejorativos, é a formade ser da burocracia. Ela opera se-gundo o princípio da hierarquia,

do segredo e da rotina. É por issoque ela é, enquanto exercício deum poder, a antidemocracia porexcelência. Ela opera com a hierar-quia não com a igualdade; operacom o segredo e não com o direito,a produção, recepção e circulaçãoda informação; opera com a rotinae não com a criação, pelo trabalhodos conflitos.

Onde houver burocracia a lutademocrática é necessária, e umaexistência democrática é impossí-vel, e eu falo por experiência pró-pria. Ora, isso significa que não setrata, para nós, de enxugar a má-quina burocrática. De diminuirquantitativamente a máquina bu-rocrática. Trata-se de tomá-la, semdúvida nenhuma, mexer nela. Massob a perspectiva de exercício docontrole sobre ela. É preciso quehaja um poder universitário quepossa exercer o controle sobre a

burocracia para que ela não serealize como um poder, que é overdadeiro poder que rege a USP.

Ora, há uma peculiaridade naregência burocrática, muito impor-tante para nós, que é a seguinte:um burocrata nunca diz para vocêque pode ou que não pode (em ge-ral ele diz que não pode, raramen-te ele diz que alguma coisa pode)sem um fundamento legal: há sem-pre uma lei, uma norma, uma regraque garante a impossibilidade deuma ação. Sempre. Ora, isso signi-fica que nós daqui por diante va-mos simplesmente ignorar o uni-verso da lei? Não. Mas significa an-tes de mais nada, e isso é um traba-lho teórico que nós como universi-tários temos que fazer, de destruirna área que nos compete uma for-ma do fetichismo, assim como exis-te a mesa dançando sob seus pró-prios pés, existe a lei como fetiche.

A burocracia define a lei comouma entidade transcendente dota-da de asas e um halo e que desceudo empíreo celeste sem que nin-guém saiba como nem por quê,por uma ação miraculosa, inexpli-cável. O que se perde de vista, por-tanto, é: o que é a lei? A lei é a ex-pressão de um conjunto de açõessociais e políticas que exprimem,num dado momento histórico, a ló-gica das forças, a lógica do poder ea forma assumida pela luta de clas-ses e a distribuição do poder na di-visão social. É isso que a lei expri-me. Portanto, embora a lei aspire(e sem isso ela não seria lei) à uni-versalidade, a cada passo a univer-salidade da lei é a universalidadepossível naquele momento, e quese revela praticamente a seguir co-

A burocracia estatal

é uma formação social

de exercício do poder.

É preciso que haja um

poder universitário

que possa exercer

o controle sobre a

burocracia para que

ela não se realize

como um poder, que

é o verdadeiro poder

que rege a USP

mo uma particularidade que impe-de tudo.

É por isso que pouco a pouco alei vai-se tornando, principalmen-te no Brasil, expressão do privilé-gio e forma da repressão. Ora, senós não desmontarmos o fetichis-mo da lei, afirmando a cada passoque a lei é um esforço social e po-lítico de referência à generalidadee à universalidade, de criação egarantia de direitos, e que comotal ela é produto histórico e quecomo tal ela pode ser desfeita erefeita, nós não temos uma armacontra o argumento burocrático.Então, penso que na questão daautonomia nós temos que encon-trar um conjunto de estratégiaspelas quais, por um lado, nós limi-temos a ação da burocracia, e poroutro lado nós quebremos, pelopé, o lugar onde a legitimidade doexercício burocrático se dá, que éa crença fetichista num ícone cha-mado a lei. E operar com a idéiade que a lei é ação social e políti-ca, historicamente determinada,de homens determinados. E queportanto ela foi feita por nós e po-de ser, em condições determina-das, desfeita e refeita por nós emnome, justamente, de uma univer-salidade que a lei presente não ga-rante e não atende.

Ora, mas tudo estaria muitobem se tivéssemos só a burocraciaestatal. Acontece que nós estamosnuma situação em que uma segun-da operação de caráter burocráticose sobrepõe a outra, e que é a du-plicação da burocracia estatal con-vencional com uma burocracia quecopia o modelo de administraçãoempresarial. A primeira é aquela

que, nas nossas afirmações deações universitárias autônomas,nos opõe a cada passo a lei. Estaoutra é aquela que opõe a cadapasso a eficiência.

Portanto, estamos bloqueadospelo discurso ideológico da legali-dade, que é a forma de a burocra-cia estatal exercer poder, e blo-queados pelo discurso da eficiênciada administração de estilo empre-sarial. Elas se cruzaram, se sobre-

determinaram e se sobrepuseram,e regem a Universidade de SãoPaulo. Portanto, trata-se aqui tam-bém de encontrar as estratégias dequebra desse poder. Estou conven-cida de que uma das estratégiasfundamentais de quebra do prestí-gio, do poder e da expansão da bu-rocracia de tipo administrativo em-presarial na USP passa pela recon-sideração, de ponta a ponta, dasfundações.

Portanto, temos caminhos para

trilhar. E temos maneiras de fazê-lo. Porque nós, como universitá-rios, somos capazes de pensar oproblema, de compreendê-lo, au-tonomamente, e de buscar entãoas formas de ação pelas quais nóspossamos quebrar os obstáculos àautonomia. Do mesmo modo quea ação política, se enfrenta o obs-táculo econômico na autonomia doconhecimento, a atividade de de-molição do fetichismo de uma fal-sa legalidade e do fetichismo daeficiência empresarial, particular-mente quebrando o poder das fun-dações, significa para nós uma no-va definição de autonomia admi-nistrativa e de autonomia financei-ra. Essas palavras não são palavrasde ordem, slogans, chavões. Elas sereferem à nossa maneira mesmade ser e de agir e às possibilidadesque estão abertas para nós de mu-dança da universidade no campoda autonomia.

O segundo ponto é a valoriza-ção da docência. Qual é nossa si-tuação hoje? A nossa situação hojeé a da escolarização da universida-de. Que é escolarização? O aumen-to do número de disciplinas, o au-mento das horas-aula, a contagemda atividade estudantil por créditos,a aferição meramente quantitativadesse trabalho, segundo o númerode matriculados, o número de eva-são e o número de formados, e umprocesso pelo qual nós nos torna-mos, pouco a pouco, a substituiçãoprecária do ensino médio, do se-gundo grau. Esta situação, que co-meça lá nos anos setenta, à medidaque foi se institucionalizando setornou, sobretudo para os estudan-tes mais jovens e para os professo-

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Uma das estratégias

fundamentais de

quebra do prestígio,

do poder e da expansão

da burocracia de tipo

administrativo

empresarial na

USP passa pela

reconsideração,

de ponta a ponta,

das fundações

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res mais jovens, algo que faz parteda natureza das coisas.

Costumo dizer: tem o mar, orio, a floresta, o céu, o trovão, oraio, e as horas-aula. Tudo faz par-te da natureza das coisas. Não faz.Isso é uma instituição. Foi instituí-do assim. Foi um processo peloqual o que se deu foi a perda docaráter propriamente universitárioda docência, para dar à docênciauma dimensão de pura escolariza-ção. E a prova disso é simples: asfamosas avaliações avaliam a pro-dução, e a produção é: em quantoscongressos foi, quantos papéis pu-blicou, quantos livros escreveu, emquantas notas de rodapé apare-ceu… A docência não faz parte daavaliação. Ela nem entra no côm-puto da avaliação universitária.Ela não é nada. Deletaram.

Que quer dizer valorizar a do-cência? Em primeiro lugar signifi-ca, em termos mais imediatos, adiminuição do número de discipli-nas, do número de horas-aula, donúmero de créditos, e o remaneja-mento do trabalho do corpo do-cente e do corpo discente, numaredivisão que permita professoressuficientes para poucos alunos emaulas em tempo menor. Uma aulauniversitária, e foi com isso que fuiformada na USP, é preparada. Oprofessor que prepara uma aula lêuma bibliografia, opera com co-mentadores, intérpretes, posiçõesdiferentes, redige a aula, dá a aula,discute. Prepara seminários, discu-te os seminários. Como é possívelum professor dando duas, três, nonosso caso quatro horas de aula,hoje, amanhã, depois, para umaclasse de cem, cento e cinqüenta,

duzentos? Que aula ele prepara? É um escândalo nessa universi-

dade o professor precário. O pro-fessor flexibilizado, não é? E mais:isso coloca, evidentemente, aquestão salarial. Por quê? Porquepara você preparar adequadamen-te o seu trabalho docente, vocênão pode pode fazer dez bicos pa-ra poder fazer a feira, pagar o sa-pato e o dentista dos filhos, e com-prar o arroz e o feijão. Você não

pode fazer isso. Você tem que tercondições. É nisto que somos ser-vidores públicos. Se a nossa do-cência não for uma verdadeira do-cência formadora, a última coisaque somos e seremos é servidorespúblicos. Porque o servidor públi-co é aquele que age a serviço dodireito do cidadão. E não estare-mos realizando esse serviço. Nósnão estaremos verdadeiramentecumprindo a cláusula de respeitoao direito do cidadão. Portanto va-

mos dar prejuízo, sim. E é precisosalário decente.

Então, a docência formadoranão é uma docência simplesmenteinformativa, repetitiva e rotineira.Ora, isso significa que para umaboa parte dos docentes que entra-ram na docência já com essa Uni-versidade dessa maneira vai serpreciso um trabalho político, psico-lógico e intelectual intenso, pararepensar, reconsiderar e reapren-der a preparar e dar aulas. Porqueisso também desapareceu na Uni-versidade. Então a revalorizaçãoda docência e a defesa da docênciasignificam também que nós, en-quanto docentes, temos muito tra-balho pela frente. Porque nós de-saprendemos o que é uma aulauniversitária. O que é preparar, oque é proferir, e o que é avaliaruma aula universitária. É um tra-balho para nós também, se nósqueremos a melhoria.

A revalorização da pesquisa: oque é hoje a pesquisa? Um colegameu lembrava para um grupo deamigos que o que hoje em dia naUniversidade se chama de pesqui-sa é na verdade uma seqüênciaprofissional e de carreira. Ou seja,há uma confusão entre a titulação— e os prazos de titulação, que fa-zem parte da carreira — e a pes-quisa. Essa confusão não é gratui-ta. É que no começo era a pesquisaque fazia de você um doutor. Era apesquisa que fazia de você um li-vre-docente. Hoje é o contrário. Éporque você precisa ser mestre, oué porque você precisa ser doutor,ou é porque você precisa ser livre-docente, ou você precisa ser adjun-to, ou você precisa ser titular, por-

As famosas avaliações

avaliam a produção:

em quantos congressos

foi, quantos livros

escreveu, em

quantas notas de

rodapé apareceu…

A docência nem

entra no cômputo

da avaliação. Ela não

é nada. Deletaram

que você precisa sobreviver — ouporque você quer poder, depende,né? — que você apresenta coisas echama elas de pesquisa. É isso queé avaliado e considerado produti-vo. Não tem pesquisa desse jeito.

Ou seja, a revalorização da pes-quisa significa desvincular a pesqui-sa de um tempo externo ditado pelacarreira acadêmica. Tem que repen-sar a carreira. Você não pode man-ter esse ritmo externo e absurdo dacarreira e a verdadeira idéia de pes-quisa. Você tem que reformular ouo tempo da carreira e a própria car-reira, ou desvincular a carreira e apesquisa. O que nós temos hoje éuma heteronomia que impede apesquisa, a verdadeira pesquisa.

O segundo ponto se refere so-bretudo aos alunos de pós-gradua-ção e aos jovens professores: aconfusão que se estabeleceu nanossa cabeça entre as exigências eprazos das agências financiadorase as exigências e prazos internos àpesquisa. Que as agências finan-ciadoras estabeleçam os seus crité-rios, suas normas, suas regras, suasexigências e seus prazos e digam:um mestrado é financiado por nósno máximo por dois anos, doisanos e meio, um ano, um ano emeio. Um doutorado… tudo bem.As agências têm lá sua lógica pró-pria, e seus motivos para funcionarassim. Podemos depois um dia fa-zer um debate sobre as agências. Éoutro debate. Mas suponhamosque tudo bem. O que não é possí-vel é nós interiorizarmos as regras,normas, prazos e exigências dasagências — que com a pesquisatêm puramente a relação financei-ra, só, não têm mais nenhuma —,

nós tomarmos isto como a maneirapela qual nós vamos agora organi-zar a pesquisa universitária!

E submetemos nossos estudan-tes, e os jovens professores, a pra-zos e trabalhos que deixam a todosinsatisfeitos, aquém de tudo quepoderiam fazer, e que não precisaser assim, se aquilo que você levarem conta for a lógica e a necessi-dade interna da própria pesquisa.Nós estamos numa relação de he-

teronomia naquilo que é a expres-são mais alta da Universidade, queé a sua produção teórica. Estamosdeixando que a nossa produçãoteórica seja determinada de fora, enão pela lógica interna do trabalhointelectual, e das exigências queele faz. Então, revalorizar a pes-quisa e redefinir a pesquisa signifi-ca portanto ou repensar a carreirae o vínculo disso com a pesquisa,ou desvinculá-las, e sobretudo des-vincular a pesquisa das imposições

das agências financeiras. Mas issosignifica também uma mudança nanossa mentalidade, e na nossa prá-tica de orientação.

Vou dizer uma coisa pesada,mas é preciso ser dita: orientandossão pesquisadores, eles não são ser-viçais dos orientadores, nem são avia para receber a reserva técnica.Em segundo lugar, a pesquisa nãopode se subordinar às necessidadesdo mercado. Por que o que são asnecessidades do mercado, sobretu-do neste país, não é? Sobretudoneste país. Se ainda estivesse falan-do do mercado lá em cima, aindapodia ser. Mas aqui? Gente, tenhadó. Tenha a santa paciência. Então,que é exigência do mercado noBrasil? Rotina, repetição, e tudoque é solicitado é aquilo que nãoinclui nem inovação, nem criativi-dade, nem originalidade, nem pro-fundidade. Originalidade e criativi-dade o mercado pede para as agên-cias de publicidade. Para nós, não.

Então, se nós temos razões teó-ricas, práticas, políticas e históri-cas para resistirmos à determina-ção pelo mercado, no caso brasi-leiro nós temos a obrigação de fa-zê-lo, se nós queremos pesquisa.Porque o vínculo que se estabeleceentre o mercado brasileiro e a pes-quisa na Universidade é a ausên-cia da pesquisa. Eu tinha mais doispontos, mas eu vou interromper,que são a nossa relação com asagências de financiamento de pes-quisa, basicamente por quê nãopode ser uma relação de subordi-nação, e depois a questão da ex-tensão universitária. Mas duranteo debate a gente conversa sobre is-so. Tá? Muito obrigada. RA

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Revalorizar a pesquisa

significa desvincular

carreira e pesquisa, e

sobretudo desvincular

a pesquisa das

imposições das

agências financeiras.

Estamos deixando que

a nossa produção

teórica seja

determinada de fora

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SOBRE A PRISÃODE BENEDITO, EDMAR,

ELVIS, ODAIR, ROSALINOE VALQUIMAR

JJoosséé MMoouurraa GGoonnççaallvveess FFiillhhooProfessor do Instituto de Psicologia da USP

O confinamento de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra caracteriza

a existência de prisões políticas no Brasil. A condenação judicial desrespeitou os mais

comezinhos direitos constitucionais dos réus. Grupospoderosos estão mobilizados para transformar a

campanha pela reforma agrária em caso de polícia

Dia 10 de novembrode 1999. Dia nacio-nal de paralisação eprotesto convocadopelo Fórum de Lutaspor Terra, Trabalho

e Cidadania. Houve manifestaçõesem todo o país.

Avizinhando Boituva, cidadezi-nha no interior de São Paulo, umdos protestos desenvolveu-se emplena rodovia Castelo Branco: umato público contra os pedágios,contra a privatização de rodoviasestaduais e interestaduais. Quemcontestaria que a maioria de nósencontrava-se ali, de algum modosimbolizada por aqueles manifes-tantes? Quem contestaria a legiti-midade cívica de um protestocontra o número e aumento abu-sivos das taxas de pedágio? Quemsão de fato os beneficiários destastaxas que mal-e-mal são reverti-das em manutenção e melhorianos serviços viários? As taxas depedágio sobrepõem-se a impostoscomo o IPVA cuja cobrança pesa-da foi justamente já estabelecidapara estes fins.

Ações contra pedágio foram ini-cialmente disparadas por motoris-tas de caminhão: pedágios acarre-tam o encarecimento dos fretes ou,para evitá-lo, arrocham ganhos doscaminhoneiros. Encarecimento dosfretes acarreta encarecimento dosbens transportados, encarecimentopor exemplo de alimentos. Não poracaso, naquele dia 10, outras cate-gorias e também cidadãos comunsuniram-se aos caminhoneiros. Pro-fessores, estudantes, militantes daCentral Única dos Trabalhadores (-CUT), da Central dos Movimentos

Populares (CMP), do Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Ter-ra (MST). Ninguém que imaginas-se o que estava por vir!

A Polícia Militar realizou dis-paros para dissolver o protesto.Prenúncio da violência que estar-receria o país nos meses seguintes(e que envolveu a repressão aosíndios de Porto Seguro, aos pro-fessores e estudantes na AvenidaPaulista, aos moradores de Guaia-

nazes). Houve tumulto e confron-tos. Manifestantes inconformados,contrariando orientações firmadaspara o ato público, danificaram eaté queimaram cabines do pedágiode Boituva. Mais de 100 pessoasforam detidas. Foram quase todosliberados, exceção feita a seis ma-nifestantes: Benedito Ismael AlvesCardoso, Edmar Pereira dos San-tos, Elvis Vieira Ferreira Lima,

Odair Moisés de Rosa, RosalinoBispo de Oliveira e ValquimarReis Fernandes.

A prisão destes seis mostrou-searbitrada por um traço: são todosparticipantes do MST! Não são,portanto, prisões quaisquer. Diga-se o nome: prisões políticas, com oque nunca mais contávamos! Empleno governo Fernando HenriqueCardoso, ele próprio tendo atra-vessado cassações políticas e o be-nefício da anistia, a anistia quetantas lutas nos custou, lutas ope-rárias e universitárias, lutas sindi-cais e partidárias!

Até agora, nenhum protesto deMário Covas, quem no passado as-sistiu à prisão de tantos compa-nheiros seus! Nenhum protesto doministro José Gregori, antigomembro da Comissão Arquidioce-sana de Direitos Humanos em SãoPaulo. Nenhuma palavra de nossoscolegas uspianos Francisco Weffortou José Álvaro Moisés, ministro esecretário federais de Cultura!

Em fevereiro passado estavamcompletos os 81 dias estipuladospor lei para processo (inquérito,investigações, etc.) e não se apre-sentou prova alguma de que os seiscompanheiros, presos em Boituva,tivessem conduzido depredações eo incêndio de cabines. Nenhumadas testemunhas, arroladas paraacusação, reconheceu os acusados.Deviam ter sido soltos. Seguirampresos. Edmar, Elvis, Odair, Rosa-lino e Valquimar foram, afinal, con-denados a oito anos e dez meses deprisão; Benedito foi condenado aonze anos! Todos obrigados aocumprimento de 9/10 da pena emregime fechado.

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O inquérito não

apresentou prova

alguma. Nenhuma das

testemunhas

reconheceu os

acusados. Mas foram

condenados a oito anos

e dez meses de prisão;

Benedito, a onze anos!

Todos obrigados a

cumprir 9/10 da pena

em regime fechado

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Benedito é nascido em MogiMirim, filho de família camponesa.Tem quarenta e nove anos. Era ra-dialista e, nesta condição, sempreacompanhou ações do MST: "Vique era um movimento capaz deelevar a dignidade das pessoas; eeu, com origem na terra, quis en-tão voltar p'ra terra, quis uma roçaonde trabalhar e viver em coopera-tiva, cooperando."

Edmar, quase dezenove anos,não sabe escrever, não sabe ler: foisobre ele que a pressão policial ejudicial caíram mais pesadas. Nu-ma das acareações com testemu-nhas de acusação, sobre a qual osadvogados do MST não haviam si-do advertidos, uma advogada doEstado foi indicada. O rapaz preci-sou deixar impressões digitais nu-ma declaração que não tinha con-dições de decifrar.

Elvis, vinte e um anos, trabalha-va ao lado de um tio na construçãocivil, trabalho muito instável. "So-fria com aquilo: às vezes tinha ser-viço, às vezes não tinha; eu não erao construtor, era o peão." Decidiu-se pelo MST: os assentamentos ru-rais abriram-lhe perspectivas, umaesperança, um sentimento de cres-cimento que a cidade lhe haviadesfeito já antes dos vinte e umanos. "Quero, vou continuar que-rendo depois da prisão, um paísmelhor para todos, sem discrimi-nação, violência, desemprego, faltade moradia, de recursos médicos eonde não haja essa corrupção go-vernamental."

Odair, emotivo e muito combati-vo. A cada visita que lhe fazemos,repete sempre: "Lutar, até o fim dosmeus dias, preso ou em liberdade!"

Rosalino era também radialistae antigo morador urbano: "O MSTé um rumo na vida, é a terra paraplantar e sustentar a família, é otrabalho coletivo!"

Valquimar é universitário da re-gião de Piracicaba. Incorporou-seao movimento na ocupação da No-va Canudos. Tem trinta anos. "So-mente haverá reforma agrária comvontade e força política. E somen-te haverá vontade e força políticaquando as classes populares deremas mãos e exigirem mudança."

Presos comuns ou terroristas?A sentença da juíza de Boituvaopera simultaneamente nos doisregistros e força juízos exagerados,autoritários e alarmistas. Afinal, asinstituições desafiadas foram o pe-dágio rodoviário e o latifúndio

A juíza da Comarca de Boituva,Ana Cristina Paz Néri, quem de-terminou as condenações, argu-menta de maneira contraditória efaz lembrar o tempo em que aação repressiva e os governos mili-tares eram justificados por tribu-nais sem nenhuma independênciae inteiramente comprometidoscom a ideologia de segurança na-cional. Considerem este trecho dasentença judicial:

Os membros do MST demodo criminoso realizarambaderna em nome de umacausa, e como criminosos co-muns devem ser responsabili-zados por seus atos. Pretende-ram fazer justiça com as pró-prias mãos, atitude essa anti-democrática, e que deve serrepelida.

Observa-se que seus mili-tantes querem de fato um pe-

daço de terra, mas são usadoscomo instrumentos pela cú-pula do movimento que cru-zam os limites ideológicos, as-sumindo posições pré-revolu-cionárias, para a prática dadesordem pública, desafiandoas instituições. Presos comuns ou terroristas?

A sentença opera simultaneamen-te nos dois registros e força juízosexagerados, inequivocamente au-toritários e alarmistas. Com quefacilidade e soberba podem ser dis-torcidas as ações populares, as rea-ções populares.

Desafio às instituições? Queinstituição foi desafiada naquele10 de novembro, o pedágio rodo-viário? Sim. Que instituição é con-testada pelo Movimento dos Tra-balhadores Sem Terra, o latifún-dio? Sim. Mas estas instituições deenriquecimento privado, sobre asquais pesam gravíssimas hipotecassociais, não são estas instituiçõesque representam um intolerávelataque ao direitos públicos e à de-mocracia?

Prática da desordem pública?Reações de manifestantes desar-mados aos disparos de policiais mi-litares: de que lado conta a desor-dem pública? Sob licença de seussuperiores, que enorme atração,que poderosa embriaguez para po-liciais militares, investirem sempensar contra protestantes civis co-mo contra inimigos!

Que juízos distorcidos têm sidosustentados por governantes, ma-gistrados e policiais, sempre quealinhados ao governo federal! Deque lado conta o terror? Dadosapresentados pela Comissão Pasto-

ral da Terra (CPT) são de estarre-cer. Em 1999, sabemos de 22 tra-balhadores rurais sem-terra assas-sinados. Neste ano, foram 11 assas-sinatos. Os crimes, impunes, forampraticados por policiais militares,seguranças e jagunços, quase todosa mando de proprietários rurais.

Como lembrou Frei Betto (Fo-lha de S. Paulo, 27/11/00), denún-cias de trabalho escravo no campo,prisões, torturas e ameaças demorte, quando não menospreza-das, não encontram prontamenteuma resposta de juízes, promoto-res públicos ou agentes de segu-rança. Enquanto isso, processoscriminais foram abertos neste anocontra 180 militantes do MST.

A Ordem dos Advogados doBrasil (OAB), a Conferência Na-cional dos Bispos do Brasil(CNBB), o Conselho Nacionaldas Igrejas Cristãs (Conic), quan-do se retiraram das negociaçõesentre o governo federal e o MST,já haviam advertido que a inflexi-bilidade de Fernando HenriqueCardoso e seu ministério induzi-ria a formação, junto à opiniãopública, de um ambiente propícioà violência e à repressão contratrabalhadores sem-terra.

O crédito rural referente à safra2000-2001, pleiteado desde o iníciodo ano, foi liberado pelo governofederal apenas em outubro e se-gundo condições tais que tornou-se inacessível para mais de um mi-lhão de pessoas - foram 250.000 fa-mílias excluídas do crédito agríco-la, lavradores já assentados e, noentanto, impiedosamente conde-nados à miséria.

Benedito, Edmar, Elvis, Odair,

Rosalino e Valquimar são acusadosdo furto de "certa quantia" e de in-cêndio. A primeira forma que aacusação assumiu contrariava osartigos 158 e 172 do Código Penal.Está estabelecido que a coisa quese aponte num furto haverá de sercerta, bem determinada. Para queentão se deteminasse a coisa, o Mi-nistério Público aditou a denúncia:incluiu referência ao desapareci-

mento de um rádio comunicador,com marca, modelo e número, tu-do muito definido. O aditamento,entretanto, tem como referênciaum Boletim de Ocorrência sem as-sinatura de vítimas ou de seuseventuais representantes. Nenhu-ma menção foi feita pelas testemu-nhas de acusação a qualquer rádio,e, durante o seu interrogatório,nem magistrados nem promotoresapresentaram qualquer pergunta a

respeito do objeto. A acusação de incêndio, por

sua vez, apóia-se em laudo, examede corpo de delito, que nada afir-ma acerca de perigo contra a inte-gridade de quem quer que seja.Como se não bastasse, a condena-ção ignora o fato de as testemu-nhas não reconhecerem os seisacusados e afirmarem não incluí-los entre os que estavam próximosàs cabines do pedágio no momen-to do incêndio. Numa palavra: oprocesso penal é todo irregular!

Os seis trabalhadores, até mea-dos de julho, foram mantidos emquatro diferentes presídios, expos-tos ao isolamento e à violência car-cerária: um deles, obrigado a man-ter relações sexuais com um outroprisioneiro, corre risco de se havercontaminado pelo HIV.

Com o concurso de jornalistasprestigiados, imputou-se aos diri-gentes do MST o desvio de recur-sos públicos em proveito próprio:desvios que, ironicamente, foramdesignados e divulgados como "pe-dágio"! A Polícia Federal foi ins-truída a abrir dezenas de inquéri-tos em todo o país. O diário Folhade S. Paulo dedica ao MST um tra-tamento jornalístico que, fingindoimparcialidade, de fato reserva aossem-terra a atenção mais senho-rial, atenção de inquisidores e, afi-nal, atenção nenhuma: as supostasdenúncias são empunhadas comalarde e em longas matérias onderaramente falam os acusados ou osseus defensores.

Numa das vezes em que um di-rigente e defensor foi ouvido, JoãoPedro Stedile, mal notávamos otexto (uns 100 cm2 no canto infe-

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O tal “pedágio”

atribuído ao MST é na

verdade regra legítima,

estabelecida em

assembléia, de que

os agricultores

contribuam com

o sustento de sua

organização. E regra

cuja inobservância

envolve também

soluções democráticas

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rior de uma página com cerca de1.500 cm2 e encabeçada pela man-chete: “ ‘Pedágio’ do MST é alvode 14 inquéritos”). A despeito doespaço insignificante e dos ardis deedição, quem tivesse ouvidos paraouvir, ouviu o que nos disse JoãoPedro Stédile: a expressão "pedá-gio" é inteiramente inadequada pa-ra designar a contribuição de agri-cultores para uma organização cu-jos agentes são eles próprios.

Trata-se de um procedimentolegítimo: uma regra estabelecidaem assembléia, como em qualquersociedade, como em qualquer as-sociação — regra de que osagricultores contribuam na susten-tação material de sua organização.E regra cuja inobservância envolvetambém soluções democráticas.Não há mecanismos coercitivos decobrança: a contribuição é semprepessoal, nunca automática, de-pende de um gesto voluntário erenovado do contribuinte. A de-cisão de não contribuir, neste con-texto, geralmente acompanha adecisão de abandonar a organiza-ção; caso contrário, torna-sematéria de discussão e deliberaçãogrupais, para as quais os interessa-dos são eles próprios convocados.

Uma sugestão implícita ou ex-plícita é reconhecível em artigos eeditoriais da Folha de S. Paulo, asugestão de que o MST pretende-ria pairar acima do bem e do mal;também a sugestão de que enco-briria crimes eventualmente prati-cados no âmbito de sua própria or-ganização (desvio de verbas, este-lionato). Estas sugestões de talmodo ignoram a história e estrutu-ra do MST que parece só poder-

mos atribuí-las ou à má-fé, esta in-tenção bem consciente de nos im-pingir julgamentos grosseiros acer-ca dos outros, ou à ideologia.

Para sermos menos ofensivosmas, ainda assim, bastante seve-ros, deixemos de lado as contro-vérsias em torno do jornal gabolae que se quer pós-moderno (nãoobrigado a nada e a ninguém), edigamos algo acerca do fenômenoideológico. Digamos algo não

acerca dos seus conteúdos diciona-rescos, mas do conceito bem parti-cular que o termo ideologia assu-miu para leitores de Marx e de Lu-kács, para leitores de Claude Le-fort ou, mais perto de nós, paraleitores de Marilena Chauí.

A ideologia abrange imagenspostas em boa ordem pela palavra.A ideologia é discurso. Mas discur-so lacunar: sua coerência, o seu sis-tema, são obtidos pelo que dizmas, muito especialmente, pelo

que não diz, pelo que fica fora deconsideração. Somos conquistadospara ideologias pelo descanso naatenção superficial, pelo apego àexplicação fácil e, para falar à ma-neira dos psicanalistas, por resis-tências: o que não se diz, o que énegado é, muitas vezes, o que é re-cusado, denegado. E esta denega-ção, este indeferimento, nem sem-pre são dirigidos pela má-fé, peladeliberação dolosa do ideólogo eseus sequazes, mas, mais profun-damente, por um desejo.

Toda resistência exprime um de-sejo antagonista: o desejo de prestí-gio e comando, por exemplo, anta-gonista do desejo de comunidade ecolaboração; o desejo de acumula-ção privada e monarquia, antago-nista do desejo de repartição, refor-ma agrária e governo de todos. Re-sistências não são impulsos perfei-tamente endógenos: ligam o resis-tente e seu mundo, são impulsospsicossociais; em nossa sociedade,ligam o resistente e sua classe,quando então resistências serãomelhor designadas como interesses.Quando nos ligam às compulsõesdo mundo capitalista, formandoações e opiniões, então interesses,ações e opiniões devem ser propria-mente chamados de ideológicos.

Os ideólogos são mais ou me-nos inconscientes dos interessesque informam suas ações e opi-niões. No mais das vezes, entretan-to, posições ideológicas são de fatodirigidas pela força de interesses -temos freqüentemente nossa segu-rança psicossocial assentada sobrecontradições e violências que nãopodem aparecer, que evitamos de-clarar e pensar.

No mais das vezes,

posições ideológicas

são de fato dirigidas

pela força de interesses

— freqüentemente

nossa segurança

psicossocial está

assentada sobre

contradições e

violências que evitamos

declarar e pensar

O que, por exemplo, Étiennede La Boétie chamou servidão vo-luntária, o nosso desejo de desi-gualdade, exprime o interesse deenriquecimento privado por meiode cumplicidade com ordens so-ciais tirânicas:

1) O que sustenta o tirano é oanseio de muitos súditos por parti-ciparem da tirania como sócios dotirano, como seus cúmplices na pi-lhagem de bens e no manejo dosdinheiros. O tirano subjuga seussúditos através dos súditos elesmesmos. Aqueles que mendigam ofavor do tirano e ambicionam pri-vilégios, vivem atormentados, bus-cando continuamente agradar epressentir as vontades do tirano.Que condição é mais miserável doque viver assim? Os tiranetes que-rem servir os tiranos para terembens. Esquecem-se de que, destemodo, são eles que fazem a forçado tirano para tirar tudo de todose não deixar nada que se possa di-zer que seja de alguém.

2) O amor de riquezas é o quesujeita os homens à crueldade dotirano e os torna também cruéis.Os favoritos do rei são seduzidospor aquilo que virá consumir suahumanidade. E precisarão nãosentir a humanidade de seus com-panheiros, sempre sentindo a fi-sionomia de seus companheiroscomo quem desconfia de inten-ções interesseiras. Tiranos e tira-netes temem uns aos outros e te-mem o povo: não têm amigos masapenas cúmplices.

3) A amizade é impossível en-tre aqueles que amam acima detudo o favor ou o lugar de seus se-nhores, tornando-se incapazes de

amarem-se uns aos outros. A ami-zade se mantém não através de be-nefícios como através da compa-nhia. Os cúmplices conspiram e seentretemem. Os amigos conviveme se entretêm como companhei-ros. Estando acima de todos e nãotendo companheiro, o tirano, es-tando além da igualdade, fica alémda amizade.

O fenômeno ideológico aparecemuito especialmente vinculado àssociedades modernas: sociedadesque - a despeito de nelas emergir oreconhecimento de sua historicida-de, mediante práticas e mentalida-de que desde o Renascimento tor-nam o homem mais afeito aos po-

deres do próprio homem e menosà influência metafísica de poderestranscendentes - voltam a ocultarpara o homem a história dos mun-dos humanos. Neste sentido, aideologia é como que uma força deracionalização anti-historicizante:um discurso menos debruçado so-bre a história do que sobre as apa-rências da história, debruçado so-bre manifestações imediatas ouabstratas da história.

O discurso ideológico empe-nha manifestações da história masnão o processo da história; con-centra-se no que a história crista-lizou e não interroga o processoda cristalização; opina sobre apa-

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rência e não sobre o aparecimen-to. Pretende explicar aparênciasrecorrendo a idéias arbitrárias;idéias que, assim sendo, tendem aformar-se segundo preconceitosdisponíveis, segundo opiniões ofi-ciais dominantes.

Clássico exemplo disso é que,para os economistas liberais, o ho-mem moderno aparece segundotrês categorias de propriedade.Afirmou-se que encontramos, deum lado, o homem que obtém ren-das da terra: é o proprietário fun-diário. De outro lado, o homemque obtém rendas da fábrica urba-na: é o proprietário industrial. Fi-nalmente, o homem que obtém sa-

lário: o assalariado proposto comomais um homem livre e que obtémrendas mediante livre oferta de seutrabalho em troca de salário, trocaque se daria com eqüidade. Dessehomem, caracteristicamente o ope-rário industrial, desse homem semterra, sem fábrica, diremos que écontudo proprietário de seu corpo,de sua força de trabalho. Tudo en-tão parecerá pacificado: são trêshomens que dispõem de proprie-dade e renda.

Sob o crivo da história, entre-tanto, a conversa pacífica torna-seconversa fiada: aquele que aparececomo proprietário do corpo, reve-la-se afinal como um espoliado;aqueles que aparecem como outrostantos proprietários, proprietáriosda terra e da fábrica, revelam-seafinal como proprietários tambémdo trabalho de seus subalternos.

A formação da era dos burgos,a era das cidades comerciais e in-dustriais, começa pela rejeição doservilismo feudal. Os homens dacidade, diz-se, respiram o ar da li-berdade, livraram-se do jugo e cor-véia sob senhores feudais. Esta dis-tensão urbana, todavia, obtida porgradual extensão da lógica de mer-cados aos interstícios de todas asrelações sociais, vai admitir instau-ração de novas formas de servidão,porém mais ou menos invisíveis ecuja determinação apenas a pes-quisa histórica poderá recuperar.

Os primeiros burgueses que,nas cidades, assumem a proprieda-de dos meios de produção, passama contratar novos indivíduos que,sem terra e sem instrumentos,também egressos da servidão feu-dal, seguem afluindo para as cida-

des e agora deparando-se comchance inédita: ao invés de se dedi-carem à construção ou reconstru-ção de suas posses, a famigeradachance de se oferecerem comomão-de-obra em oficinas e fábri-cas. Estes espoliados da terra e demeios de trabalho vão sofrer cres-cente e radical empobrecimento, oempobrecimento que acompanha adivisão burguesa do trabalho.

As primeiras oficinas e fábricasabrangem trabalhadores assalaria-dos como trabalhadores qualifica-dos que, por assim dizer, aindacontrolam o seu trabalho. Progres-sivamente, os que contratam pas-sam também a concentrar o gover-no do trabalho (o tempo do traba-lho, seu ritmo, os objetivos da pro-dução) e a fazê-lo segundo impe-rativos mais quantitativos quequalitativos, mais mercantis quesociais, os objetivos produtivostornando-se antes econômicos doque ético-políticos.

Os contratados descem sobcontrole cada vez mais generaliza-do, cumprindo planos e não maisparticipando do planejamento dotrabalho. A divisão burguesa dotrabalho torna-se divisão entre pla-nejadores e operários, surgem eaprofundam-se as figuras do pa-trão e do trabalhador braçal. Otrabalho é fragmentado por baixo(admitindo trabalhadores sem qua-lificação e absorvidos na repetição,a todo vapor, de quatro ou cincooperações simples) e é unificadopor cima, mediante gerência e en-genharia de produção, gerentes eengenheiros respondendo com ex-clusividade pela inteligência e fina-lidade do trabalho.

A divisão é cheia de implica-ções sociais e psicológicas - a socie-dade burguesa foi fabricadora demercadorias e de homens moral eintelectualmente rebaixados, foiprodutora de novos espoliados enovos senhores: a espoliação depropriedade renovou-se como es-poliação de subjetividade e a umgrau perfeitamente comparável aodos mais bárbaros episódios em so-ciedades pré-capitalistas.

Há imagens e idéias cuja forçapersuasiva logra torná-las, em to-dos os sentidos da palavra, domi-nantes. Imagens e idéias que, paraa percepção e para o pensamento,tornam-se socialmente dominan-tes porque aderem à ordem apa-rente da vida social, ao modo maissimples de apresentação da ordemsocial: aderem à apresentaçãoimediata e abstrata da vida social,fora de todo recurso à história:"Somos três categorias de proprie-tários: industriais, fazendeiros eassalariados". Operando com ima-gens simples, o ideólogo pensa avida social a partir de sua apresen-tação dominante e, desde então,faz valer universalmente e legiti-ma os interesses da classe que, nadominação, afirma-se em detri-mento de outras classes.

A apresentação imediata e abs-trata da vida social foi o que se tor-nou corriqueiro nas sociedadesmodernas e contemporâneas. Associedades burguesas são erigidassegundo prevalência das relaçõesde mercado sobre quaisquer outrasrelações sociais, fenômeno que fi-cou conhecido como reificação ecujo principal resultado psicosso-cial é o de promover drástico en-

fraquecimento de nossa comunica-ção qualitativa e narrativa com asimagens de coisas e de gente. Aideologia consome a aparência dascoisas e das pessoas, não se ali-menta do tempo e da alteridadedas coisas e das pessoas - não sealimenta de histórias.

O livro Brava Gente, publicadopela Fundação Perseu Abramo,uma entrevista com João Pedro

Stédile e conduzida como umaapresentação da trajetória doMST, é dos mais belos depoimen-tos que conheço sobre luta pelaterra no Brasil: um depoimentomilitante e que deveríamos entre-gar aos nossos filhos quando dese-jássemos transmitir-lhes idéias decoragem verdadeira e tambémidéias de organização igualitáriado trabalho e do poder - tudo issoa partir de exemplos e de alguma

história, não a partir de conceitosgerais e indiferentes, mas a partirde valores concretamente assumi-dos por gente viva, valores encar-nados em pessoas, pessoas humil-des e suas histórias de grande altu-ra, histórias capazes de nos como-ver e interpelar, trazendo vontadede fazer parecido.

Em tempos de desmoralizaçãoé preciso asseverar que o Movi-mento dos Trabalhadores RuraisSem Terra designa: 1) um movi-mento organizado, uma instituiçãopopular, esta sim tão golpeada emnossos dias; 2) um movimento ci-dadão, um movimento aguerridode trabalhadores, não de crimino-sos; 3) um movimento reivindica-tório, exigente de reforma agráriae não de arremedos, exigente deum direito e não de um favor. Tu-do que só podemos compreendernão por aparências mas por con-versas com os seus militantes e porconsideração de suas trajetórias.

O confinamento dos seis traba-lhadores e militantes do Movi-mento dos Trabalhadores RuraisSem Terra caracteriza a persistên-cia de prisões políticas no Brasil.A condenação judicial desrespei-tou os direitos constitucionais dosréus. Nas semanas de novembrode 2000, o Tribunal de Justiça deSão Paulo deveria ter analisadoargumentos apresentados comoapelação pelos advogados de defe-sa: são argumentos que demons-tram as irregularidades cometidasdurante o processo original. Masnada ainda! Grupos poderosos es-tão mobilizados para transformara campanha pela reforma agráriaem caso de polícia. RA

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

Operando com

imagens simples,

o ideólogo pensa a vida

social a partir de

sua apresentação

dominante e, então, faz

valer universalmente

e legitima os interesses

da classe que, na

dominação, afirma-se

em detrimento

de outras classes

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Dezembro 2000RReevviissttaa Adusp

QUAL FOI A VITÓRIADA OPOSIÇÃO NA ÚLTIMA

ELEIÇÃO DO MILÊNIO?AAmméérriiccoo SSaannssiiggoolloo KKeerrrr

Professor do Instituto de Física-USPMMaarrccooss NNaasscciimmeennttoo MMaaggaallhhããeessProfessor do Instituto de Matemática-USP

Após as eleições municipais de 2000, as oposiçõesterão a oportunidade de mostrar que, além da ética e

honestidade, têm propostas para transformar arealidade do país, começando com o espaço ao nossoredor. Se ficarem apenas na gerência bem comportada

dos governos municipais, não contribuirão para asuperação das dificuldades do Brasil

Tornou-se unanimidade aavaliação de que as oposi-ções foram as grandes ven-

cedoras das eleições de 2000.Dentre elas o destaque seria parao PT, conforme vários políticosgovernistas declararam, como porexemplo Jorge Bornhausen e An-tonio Carlos Magalhães.

Mas estarão os corações sentin-do o que os olhos ainda nãovêem? No fundo, observando-sesimplesmente os resultados ofere-cidos pela Tabela 1, diríamos quea vitória pertence à direita gover-nista articulada em torno de Fer-nando Henrique Cardoso. O coor-denador político nacional doPSDB, Pimenta da Veiga, teria en-tão razão quando cantou vitória,mesmo que trouxesse na face uminequívoco ar de derrota.

Dos 5559 munícipios ondeocorreram eleições os governistasganharam em 4291. A oposição,aceitando-se como tal o PDT e oPPS, elegeu prefeitos em apenas775 cidades. Ou seja, os governis-tas fizeram 77% das prefeituras,contra apenas 14% da oposição.

Claro que há uma imprecisãogrosseira neste tipo de compara-ção, uma vez que se igualam muni-cípios com poucos milhares de ha-bitantes a outros com centenas demilhares ou milhões. Mas mesmoquanto ao número de eleitores en-volvidos, a oposição teve 30% devotos, menos que a metade dos62% obtidos pelos governistas. On-de está a vitória da oposição? Teriaa mídia algum interesse particularem “encher a bola” dos opositores?

Há mais de um aspecto a serconsiderado. Comecemos justa-

mente pela questão da mídia, ouseja, da visibilidade junto ao pú-blico. Não há dúvida de que odestaque que uma gestão pode al-cançar é proporcional à importân-cia do município. Neste caso, das62 cidades onde era possível ocor-rer 2º turno (capitais e outras ci-dades com mais de 200 mil habi-tantes), a oposição ganhou em 29,conforme indica a Tabela 2. Dos

109,8 milhões de eleitores brasi-leiros, 33% residem nessas cida-des e mais da metade, cerca de18%, terá governos de oposiçãoem 2001. Até agora esse percen-tual era de aproximadamente 8%.Além disso, dentre as 26 capitaisde estado, o PT ganhou em 6, oPSB em 4 e o PDT em 2.

No que tange à exposição devi-da ao segundo turno, o resultadoé ainda mais expressivo. Nas 31

cidades onde houve disputa, aoposição concorreu em 25 cida-des distintas (em quatro delas adisputa era interna ao bloco),vencendo em 19 delas.

A vitória de maior dimensão,no balanço geral, foi no Estado deSão Paulo, onde produz-se cercade 40% do PIB brasileiro. O PTpassou a ser o partido com maiorvotação, além de ter ganho na ca-pital a prefeitura mais cobiçadado país. Mas outras tantas dispu-tas destacaram-se por seus resul-tados surpreendentes. Em PortoAlegre o PT conseguiu a quartavitória consecutiva, fato inéditoem uma capital de estado brasilei-ra. Também obteve reeleição emBelém e ganhou em Recife, ondeas pesquisas de opinião no iníciodo 1º turno davam apenas 4% deintenção de voto para o petistaJoão Paulo. O PSB se reelegeuem Belo Horizonte.

Não seria exagero dizer que otom de oposição saiu vencedornessas eleições mesmo onde can-didatos oposicionistas perderam.São exemplares os casos de Forta-leza e Curitiba onde, diante de vi-tórias dadas como certas, a direitapassou maus bocados para vencer.

Mas a grande inquietude nocoração dos conservadores temorigem no configurar-se de umnovo quadro para as eleições de2002. Nesse ano estarão em jogo aescolha do presidente do país, go-vernos de estado, representaçãono Congresso Nacional e assem-bléias legislativas.

O potencial multiplicador queo “fator exposição de mídia” pos-sibilita deixa a direita intranqüila.

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

O potencial

multiplicador do “fator

exposição de mídia”

deixa a direita

intranqüila para as

próximas eleições.

Além disso, em 2002 as

candidaturas terão

dimensão estadual e

nacional, penetrando

nos rincões mais

isolados

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Dezembro 2000RReevviissttaa Adusp

Mas esse não é o único elemento.Ocorre que em uma parcela gran-de dos municípios menores nãohavia candidatos da oposição. Por-tanto, essa população não teve apossibilidade plena de expressarsua opção eleitoral. Mas em 2002as candidaturas terão dimensõesestadual e nacional, penetrandonos rincões mais isolados nem queseja de forma capilar.

Por fim, outro tormento paraos conservadores refere-se à qua-lidade da oposição que fortale-ceu-se nestas eleições. Cada umdos partidos deste “ente oposi-ção” tem característica políticadiversa e, também, apresentoudesempenho eleitoral bastantediferenciado.

Olhando-se novamente a Tabe-la 1, na coluna que compara osanos de 1996 e 2000, vemos queentre os partidos maiores destebloco quem cresceu foi o PT (70%em número de prefeituras e 51%em eleitores) e o PPS (403% emnúmero de prefeituras e 607% emeleitores). Os demais decairam, es-pecialmente o PDT (-34% em nú-mero de prefeituras e -19% emeleitores). Em termos absolutos agrande votação foi no PT que ob-teve mais do que o dobro do se-gundo colocado, o PDT, e mais doque o triplo que o PPS.

O PPS é a corrente light origi-nária da fragmentação do velhoPCB. O que alavancou esse seupico de crescimento relativo foi aentrada de Ciro Gomes, que en-controu nele uma legenda parasustentar sua candidatura à Presi-dência da República. Há dúvidassubstanciais quanto ao caráter

oposicionista de Ciro Gomes. Éhistórica sua ligação com o PSDB,particularmente com Tasso Jereis-sati, outra possível candidatura àPresidência da República. Ante-vê-se que até 2002 haverá uma in-tensa simbiose nesta relação.

O traço oposicionista principaldo PDT é o nacionalismo. Mas suachama oposicionista, sustentadapelo brizolismo, perde dia a dia o

vigor, fruto de um pragmatismoeleitoreiro mal sucedido e que en-veredou por alguns acordos bas-tante desgastantes e questionáveis.O pior deles certamente foi oapoio que Brizola, então governa-dor do Rio, emprestou a Collor deMelo quando esse estava sendobombardeado pelo processo deimpeachment.

O PT tem fortes bases no mo-vimento social organizado — sin-

dicatos, MST e movimentos po-pulares. Esses são elementos fun-damentais na sustentação políticado partido. Mas sua base eleitoralvai além deste limite. Para ele sãocanalizados os votos de quem de-seja manifestar claramente umsentimento de oposição ao proje-to neoliberal conduzido pela di-reita organizada em torno de Fer-nando Henrique Cardoso. Tam-bém recebe os votos de uma par-cela mais moderada, mas que de-seja golpear decididamente a co-nivência ou a prática de procedi-mentos corruptos na gestão pú-blica do Estado brasileiro. Porfim há o voto de quem vê no PT apossibilidade de implantação deuma gestão pública participativa,com priorização das políticas so-ciais como educação e saúde.

O Partido dos Trabalhadorestem sido a principal força de opo-sição que vem crescendo progres-sivamente e cujo desempenhoeleitoral não é mais passível deser escondido. Como já analisa-mos, sua vitória não é mensuráveldiretamente pela crueza dos nú-meros mas se expressa no poten-cial que acumulou, capaz de pro-jetá-lo nas eleições gerais de2002. Fortalece-o, também, o fatode abrigar diversos nomes reco-nhecidos nacionalmente, e quepartiriam de um patamar de vota-ção significativo na disputa decargos majoritários. Lula, em es-pecial, tem estado na frente naspesquisas de intenção de voto pa-ra presidente.

Um elemento novo nesta elei-ção foi a cobertura de imprensaaparentemente favorável às oposi-

A cobertura da mídia

aparentemente

favorável às oposições

reflete a necessidade de

manter a ligação com

seu público. A parcela

da mídia que colocou

em evidência as

vitórias petistas o fez

propagandeando o

papel que ela pretende

para o PT

ções ou, mais claramente, ao PT.Convém, portanto, analisar e inter-pretar tal fato. Ele contrasta com otratamento geralmente hostil que éreservado a esse partido, fruto doscompromissos notoriamente con-servadores que permeiam os meiosde comunicação.

Em primeiro lugar, registre-sea necessidade que os meios decomunicação têm de manter a li-gação com o seu público. Paraboa parte deles, concentrados nosgrandes centros urbanos, isso sig-nifica acompanhar as esperançasque a maioria do eleitorado aca-bou de depositar em um projetopolítico. Isso é simpático e atraiaudiência. Estabelece uma pontecom o público cliente, sendo umelemento tático importante paradar base de apoio às críticas pos-teriores. Elas são razoavelmenteprevisíveis, frente aos compro-missos ideológicos históricos quepermeiam majoritariamente osmeios de comunicação. Espera-semarcação cerrada sobre projetosque avancem na participação po-pular ou que sejam radicais na co-brança fiscal e no atendimentofrancamente prioritário das de-mandas sociais.

A parcela da grande mídia quecolocou em evidência as vitóriaspetistas, na verdade o fez propa-gandeando o papel que pretendepara esse partido. Atrelada que éa interesses de grandes gruposeconômicos, nacionais e ou inter-nacionais, seu sonho é ver um PTdócil, fazendo um discurso socialmas de pouco resultado prático,pois sujeito ao pragmatismo deuma convivência pacífica com as

forças do capital. O referencialpretendido é a social-democraciaeuropéia. São ilustrativos, nessesentido, alguns trechos de artigode Otavio Frias Filho, editorialis-ta e proprietário de um grandejornal (Folha de S . Paulo ,5/10/2000, p. A2):

“Demorou, mas as ‘elites’começam a perceber que overdadeiro partido da social-democracia brasileira não éaquele que ostenta esse no-me e está no poder há seteanos, mas sim o PT”;

“O PT vem repetindo,com regularidade impressio-nante, o percurso da verda-deira matriz, a social-demo-cracia européia. Esta come-çou como movimento operá-rio no fim do século passa-

do, tornou-se radical e pa-trocinou confrontos até seintegrar, desde a PrimeiraGuerra, ao sistema capitalis-ta, criticando alguns de seusefeitos, não mais seus fun-damentos”;

“Estamos assistindo, as-sim, à reprodução, com dé-cadas de atraso, do cenárioevolutivo da esquerda euro-péia. Claro que a periferiaapenas finge repetir o cen-tro, pois a repetição, ocor-rendo em condições dife-rentes, também se presta aoutros usos, que nada têm aver com o original. Em ou-tras palavras, a social-de-mocracia aqui não gorjeiacomo lá”;

“O novíssimo PT nãoveio para dividir, mas parasomar, e as ‘elites’ já lhe di-rigem lânguidos olhares desereia.”

Não tem sido comum, nemmesmo para membros intelectual-mente articulados da burguesianacional, expressar-se de formaassim clara e sintética sobre o quevai pelos seus corações e mentes.Mas, como ressalta esse editoria-lista, “a social-democracia aquinão gorjeia como lá”. Mais que is-so. A trajetória que ele descrevepara o PT ainda é mero desejo,alimentado por semelhanças histó-ricas com a evolução da social-de-mocracia européia.

Se na composição do PT certa-mente há correntes de perfil so-

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

Cor de rosa, lilás ou

vermelho, de que cor

é o PT afinal?

Aliciamento e

cooptação de lideranças

são uma constante

em sociedades baseadas

na exploração de

classe, mas isso não

quer dizer que haja

uma direção inexorável

a ser seguida

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Dezembro 2000RReevviissttaa Adusp

cial-democrata, também há expres-sivas tendências radicais de es-querda. E o partido abriga tal di-versidade desde a sua fundação!Carregam na tinta rosa para falarsobre Marta Suplicy, mas ignoramo tom vermelho de Edmilson Ro-drigues, prefeito reeleito de Be-lém, ou de Olívio Dutra, governa-dor do Rio Grande do Sul. Amaior parte dos militantes do PTorigina-se do movimento social or-ganizado, são combativos mas nãonecessariamente têm um perfilideológico bem definido.

O aliciamento, a sedução e acooptação de lideranças políticase do movimento social são umaconstante dentro de sociedadesbaseadas na exploração de umaclasse sobre outra. Mas isso nãoquer dizer que haja uma direçãoinexorável a ser seguida. Equivo-caram-se Marx e Engels (Marx,K.; Engels, F., Manifesto Comunis-ta, 1850) ao vaticinar ser inexorá-vel o futuro socialista da socieda-de. Erra a burguesia quando apre-senta o capitalismo como “o fimda história” nas relações sociais.

O desenvolvimento das rela-ções humanas é um processo dia-lético e conflituoso. Seu resultadodepende da combinação de umsem número de fatores onde sãofundamentais o estágio de organi-zação e o acúmulo de forças con-seguido pelos movimentos sociais.Até mesmo o imponderável vindode alguma catástrofe natural podeser determinante nos rumos queuma sociedade tome.

Mas serão sinceras essas loasda imprensa burguesa ao tom so-cial- democrata dos programas de

governo petistas? Estaria a bur-guesia brasileira e o capital mono-polista internacional dispostos abancar programas de governo quepatrocinem honestamente o bemestar da maioria de excluídos nasociedade brasileira? Estariam osenaltecedores do PT rosa concor-

dando, então, com um salário mí-nimo que dê condições dignas devida, com a reforma agrária, sub-sídio para os pequenos agricul-tores, serviços públicos gratuitos ede qualidade em áreas como edu-cação e saúde? Quanto lhes custa-ria a efetiva implantação de umapolítica de desenvolvimento auto-sustentável, que não dilapidassenossos recursos minerais, energé-ticos e outros tantos recursos na-turais brasileiros?

Nada disso questiona formal-mente o princípio da propriedade

privada dos meios de produçãoque determina o modelo capitalis-ta. Mas afetaria sim, profunda-mente, a enorme margem de lucroque alimenta os interesses capita-listas no Brasil. O custo que re-presentaria tal salto de qualidadede vida para a maioria da popula-ção contraria profundamente osinteresses de uma burguesia, nati-va ou importada, que no terceiromundo ainda desfruta de privilé-gios medievais.

Para conseguirmos implantarefetivamente as políticas sociaisque ainda sobrevivem em algunsestados social-democratas euro-peus, será necessário um esforçorevolucionário. A maioria da po-pulação brasileira terá que se en-gajar em um grande processo demobilização, contrapondo-se aocarater fortemente reacionáriodo capitalismo brasileiro, profun-damente subordinado aos inte-resses do capital monopolista in-ternacional.

O que vem caracterizando amaior parte da social-democraciaeuropéia hoje não é a defesa dosdireitos sociais do welfare state,mas a sua função de mediadorados interesses do capital junto aosmovimentos sociais. É isso, ao quenos parece, que propõem que oPT importe para cá. Querem queele assuma a domesticação do mo-vimento social brasileiro.

Esse processo dialético, confli-tuoso, está armado. Quem temcompromisso com a construção deuma sociedade democrática, so-cialmente justa, deve comemoraro grande acúmulo de forças con-seguido com essas eleições e que

O que caracteriza a

maior parte da social-

democracia européia

hoje não é a defesa do

Welfare State, mas a

função de mediadora

dos interesses do

capital. É isso que

propõem ao PT:

a domesticação do

movimento social

brasileiro

pode prenunciar vitórias mais sig-nificativas nos próximos anos.Nesse sentido, precisamos daratenção a uma crescente despoliti-zação dos processos eleitorais.

Exemplo disso ocorreu na cida-de de São Paulo. A urna eletrôni-ca tornou a eleição rápida. Mas,infelizmente, não foi só o ato devotar que foi sumarizado. A dis-cussão eleitoral adquiriu o ritmodo e-mail e de toda a parafernáliaeletrônica dos tempos atuais.Quem viu ou solicitou do seu can-didato o programa e as propostas?O material de campanha principalpassou a ser o adereço no estilocarnavalesco. A estrelinha verme-lha, a bandeira, a estrela douradade xerife e os adesivos de carrossubstituiram em mui-tos lugares a boa dis-cussão de idéias epropostas. O eleitorparecia querer so-mente o resumode tudo, desdeo horárioe l e i t o r a laté o pro-grama degoverno. Nestesentido, a supervalori-zação da manchete eda frase de efeitocontribuiu para a des-politização. Tambémnão significa necessa-riamente grande enga-jamento político estardisposto a passear decarro pela cidade com abandeira e o adesivo deseu candidato. Ques-tões de marketing e

propaganda são importantes, masnuma cidade como São Pauloqualquer mudança social relevanteserá disputada e precisa acima detudo de um profundo e amplo de-bate político.

Pois bem, ganhou uma candida-ta de esquerda que a direita e agrande imprensa querem que pas-se a ser de centro-esquerda e depreferência brigue muito com opartido. Mas propostas do PT paraa cidade precisarão mais do que osvotos que receberam das urnas. In-teresses serão contrariados e deque lado ficará agrande im-prensa? Deque lado fica-

remos nós?A leitura de

textos alternati-vos está se reduzin-

do cada vez mais ecom a ausência de dis-

cussão parece que cor-remos o sério risco de fi-

carmos reféns da grandeimprensa, da televisão eda revista semanal!

Reverter tal ten-dência exige tam-bém o fortalecimen-to das organizaçõesde um movimento

social que saiba so-mar nas horas devidas,

mas mantendo autonomia em re-lação ao poder estatal, partidos ereligiões.

É claro, por fim, que estamosdiante de um momento em que asoposições terão a oportunidade demostrar que, além da ética e hones-tidade, têm propostas para transfor-mar a realidade do país, começandocom o espaço ao nosso redor.

Se ficarem apenas na gerênciabem comportada dos governosmunicipais poderão até receberboa aprovação e serem reeleitos,mas não contribuirão para a supe-ração das dificuldades do nossopaís. A maior parte dos nossosproblemas tem raízes na opção depolítica econômica e social do go-verno federal. Dessa forma, proje-tos municipais têm que se contra-por às intenções federais de deso-brigação do estado e propiciaruma discussão no município queconduza à ampla politização.Grandes mudanças nas cidadesdependem, cada vez mais, da in-tervenção federal, pois o modeloeconômico hegemônico não temseus reflexos no país em abstratomas sim nas cidades e, em espe-cial, nas grandes capitais.

É importante não desprezarque, para o governo federal, pre-feitos honestos que amenizem acrise social são elementos impor-tantes para consolidar o modeloneoliberal em curso. Atenuar cri-ses e evitar explosões de uma mas-sa de miseráveis faz parte das tare-fas atribuídas aos prefeitos pro-gressistas. A questão é saber sealém disso eles contribuirão para aefetiva modificação das causas detoda essa infelicidade. RA

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

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TABELA 1

ELEIÇÕES PARA PREFEITO - 2000DADOS FINAIS E COMPARAÇÃO COM 19961

Partidos Prefeitos eleitos Votos recebidos para prefeito no 1º turnoValor Valor Relativo Variação Valor Absoluto Valor Relativo ao Variação

Absoluto ao total de prefeituras 2000/1996 (milhões de votos) total de votos válidos 2000/1996Ano 1996 2000 1996 2000 (%) 1996 2000 1996 2000 (%)

Governistas PPSSDDBB 921 990 17% 18% 7,5% 13,1 13,5 18% 16% 3,5%PPMMDDBB 1.295 1.257 24% 23% -2,9% 12,7 13,3 17% 16% 4,3%PPFFLL 934 1.028 17% 18% 10% 10,1 13,0 14% 15% 29%PPPPBB 625 618 12% 11% -1,1% 9,8 6,8 13% 8,1% -30%PPTTBB 382 398 7,1% 7,2% 4,2% 4,4 5,8 5,9% 6,9% 33%ssuubbttoottaall 4.157 4.291 77% 77% 3,2% 50,0 52,4 67% 62% 4,8%OposiçãoPPTT 110 187 2,0% 3,4% 70% 7,9 11,9 11% 14% 51%PPDDTT 436 288 8,1% 5,2% -34% 7,0 5,6 9,4% 6,6% -19%PPSSBB 150 133 2,8% 2,4% -11% 2,8 3,9 3,8% 4,6% 37%PPPPSS 33 166 0,6% 3,0% 403% 0,5 3,5 0,7% 4,2% 607%PPCC ddoo BB 0 1 0,0% 0,02% — 0,2 0,4 0,3% 0,5% 100%ssuubbttoottaall 729 775 14% 14% 6,3% 18,4 25,3 25% 30% 38%OutrosPPLL 222 234 4,1% 4,2% 5,4% 2,0 2,5 2,7% 3,0% 29%PPSSDD 116 111 2,2% 2,0% -4,3% 1,2 1,3 1,6% 1,5% 9,3%ppeeqquueennooss22 154 148 2,9% 2,7% -3,9% 2,6 3,0 3,6% 3,6% 15%ssuubbttoottaall 449922 449933 99%% 99%% 00,,22%% 55,,88 66,,88 88%% 88%% 1177,,22%%TToottaall33 55..337788 55..555599 110000%% 110000%% 33,,44%% 7744,,11 8844,,55 110000%% 110000%% 1144%%

Obs.1: os números para 2000 se referem à totalização de 100% dos votos na eleição do primeiro turno para as 5.559 prefeituras.Para o número de prefeituras conquistadas, considerou-se os resultados do 1º e do 2º turnos.Obs.2: os partidos pequenos são os seguintes: PSC, PRP, PMN, PSL, PV, Prona, PT do B, PST, PSDC, PSTU, PSN, PRN, PTN, PRTB, PAN, PCB, PGT, PHS e PCO.Obs.3: o número total de eleitores do Brasil é 109.826.263

TABELA 2

RESUMO DA ELEIÇÃO EM 62 CIDADES*(ELEITORADO EM MILHÕES)

Partido Eleições 1996 Eleições 2000Cidades Eleitorado (base 2000) Cidades Eleitorado (base 2000)

GovernistasPSDB 14 4,57 12 3,57PMDB 13 4,60 10 4,06PFL 6 7,91 4 2,85PPB 4 1,49 2 0,56PTB 2 0,54 3 4,89ssuubbttoottaall 39 19,11 31 15,93OposiçãoPT 5 2,69 17 14,42PDT 7 2,31 4 1,32PSB 5 2,88 4 2,48PPS 1 0,44 3 0,91PC do B 0 0 1 0,26ssuubbttoottaall 18 8,33 29 19,39OutrosPL 2 0,96 1 0,76PV 1 0,55 0 0PTN 1 7,13 0 0PSC 1 0,32 1 0,32ssuubbttoottaall 5 8,96 2 1,08TTOOTTAALL 6622 3366,,4400 6622 3366,,4400* 26 capitais e todas as cidades com mais de 200 mil eleitores no país

FFoonnttee ddee aammbbaass aass ttaabbeellaass:: Página de Fernando Rodrigues, no site UOL na Internet, credenciado pelo TSE para fornecer resultados das eleições (atualizadoem 28/11/2000). Os dados de 1996 são baseados no livro “Dados Eleitorais do Brasil (1982-1996)”. Os dados de 2000 foram extraídos do TSE.

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Dezembro 2000 RReevviissttaa Adusp

Cartas“Seriedade”

À Revista Adusp, Agradecemos o envio da edição nº 20 (setembro)

da Revista Adusp, que contém entrevista com a depu-tada federal Luiza Erundina. A seriedade e objetivida-de do conteúdo das matérias desta revista refletemsempre a grandeza da USP e de seu corpo docente.

Cordialmente,Assessoria de Imprensa - Campanha Luiza Erundina

São Paulo-SP

“Grande valia”

Ficaríamos agradecidos se nos fosse enviada a Re-vista Adusp. Ela será de grande valia para os alunos eprofessores desta Faculdade.

Professora Liomar Maria de SouzaCoordenadora dos Cursos de Especialização

Faculdades Integradas Maria ImaculadaMogi Guaçu-SP

Pedimos desculpas ao professorPaulo Eduardo Mangeon Elias,membro do Conselho Editorial,por vir grafando erradamente oseu nome. Na edição anterior, esteerro ocorreu no expediente e naspáginas 38, 39 (legenda) e 45.

Na p. 35, em legenda fotográfica,ao invés de “Lizete” leia-se LiseteArelaro. Na p. 71, ao invés de “Er-mínia” leia-se Erminia Maricato.

Na reportagem “Municipaliza-ção agrava crise do ensino”, página34, item 5, está dito que “40% dosrecursos do Fundef” deveriam seraplicados na valorização do magis-tério. O percentual correto é 60%dos recursos.

Embora somente Jô Amado,autor da reportagem sobre o trans-porte coletivo, tenha sido identifi-cado como jornalista, também são

jornalistas os seguintes autores detextos do “Dossiê São Paulo”: Ha-milton Octavio de Souza, Eliza-beth Lorenzotti, Rita Freire, AliceCastanheira e Pedro Estevam daRocha Pomar. Almir Teixeira eAntonio Biondi são estudantes dejornalismo.

O texto “Calvário hospitalar”(p. 41) é de autoria de Alice Casta-nheira; o texto “Pedestres têmvez?” (p. 51) é de Jô Amado; otexto “Calçadas para o convívio so-cial” (p. 73) é de Almir Teixeira.

A fotografia dos pesquisadoresdo Labur (FFLCH), à p. 70, bemcomo as fotografias de Luiza Erun-dina (p. 74) e Marta Suplicy (p. 89)são de autoria de Daniel Garcia.

As fotografias de Fábio Bosco(p. 84) e Marcos Cintra (p. 94) sãode autoria de Carlos Geller.

A fotografia de Romeu Tuma(p. 89) é de autoria de Milton Mi-chida (Agência Estado).

A imagem publicada na p. 46 éum trabalho gráfico de Luís Ricar-do Câmara, sobre fotografia deDaniel Garcia. As imagens das p.25 e 56 são trabalhos gráficos deLuís Ricardo Câmara sobre foto-grafias da Agência Estado.

CORREÇÕES DA EDIÇÃO 20