Movimentos d(e) Resistência No Espaço Urbano

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Rogério Luid Modesto dos Santos

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    ROGRIO LUID MODESTO DOS SANTOS

    MOVIMENTOS (D)E RESISTNCIA NO ESPAO URBANO

    CAMPINAS,

    2014

  • ii

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM

    ROGRIO LUID MODESTO DOS SANTOS

    MOVIMENTOS (D)E RESISTNCIA NO ESPAO URBANO

    Dissertao de mestrado apresentada

    ao Instituto de Estudos da Linguagem

    da Universidade Estadual de Campinas

    para obteno do ttulo de Mestre em

    Lingustica.

    Orientadora: Profa. Dra. Suzy Maria Lagazzi

    CAMPINAS,

    2014

  • Ficha catalogrficaUniversidade Estadual de Campinas

    Biblioteca do Instituto de Estudos da LinguagemTeresinha de Jesus Jacintho - CRB 8/6879

    Modesto, Rogrio, 1986- M72m ModMovimentos (d)e resistncia no espao urbano / Rogrio Luid Modesto dos

    Santos. Campinas, SP : [s.n.], 2014.

    ModOrientador: Suzy Maria Lagazzi. ModDissertao (mestrado) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de

    Estudos da Linguagem.

    Mod1. Anlise de discurso. 2. Movimentos sociais urbanos. 3. Resistncia cultural.I. Lagazzi, Suzy,1960-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto deEstudos da Linguagem. III. Ttulo.

    Informaes para Biblioteca Digital

    Ttulo em outro idioma: Moviments of/and resistance in the urban spacePalavras-chave em ingls:Discourse analysisUrban social movimentsCultural resistancerea de concentrao: LingusticaTitulao: Mestre em LingusticaBanca examinadora:Suzy Maria Lagazzi [Orientador]Claudia Regina Castellanos PfeifferHelson Flvio da Silva SobrinhoData de defesa: 21-02-2014Programa de Ps-Graduao: Lingustica

    Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)

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    ABSTRAC

    The dissertation aims to question the ways in which social movements, specifically urban

    social movements, situate resistance in the signification of the city and the townspeople.

    Based on the theoretical device of the Discourse Analysis of materialistic orientation, we

    seek to understand what, for this kind of movement, means to resist and how that meaning

    is related to the urban space itself and to the individuals living in it. For the development of

    our work, we focus specifically on the analysis of the functioning of the discourses of the

    Movimento Desocupa (DesOccupy Movement) and the Movimento Ocupa Salvador

    (Occupy Salvador Movement), urban movements of the city of Salvador, Bahia, that mean

    themselves as a popular resistance. Our corpus is composed of the clippings of some texts,

    images and videos provided by the aforementioned movements on their official websites.

    With the analysis, we have come to the conclusion that the game between conflict and

    conciliation is a regularity that structures the discourse of those movements. From that

    conclusion, we could propose what we call "effect of resistance", notion by which we seek

    to delimitate the discursive operation that occurres between the search for the new (from

    the marked antagonism) and the ratification of the same (by the reaffirmation of the

    apparatus that maintains the present social structures).

    Key-words: Discourse Analysis. Resistance. Social Movements. Effect of Resistance.

    RESUMO

    A dissertao se prope a questionar os modos pelos quais os movimentos sociais, mais

    especificamente os movimentos sociais urbanos, situam a resistncia na significao da

    cidade e dos sujeitos citadinos. Com base no dispositivo terico da Anlise do Discurso de

    orientao materialista, buscamos entender o que, para esse tipo de movimento, significa

    resistir e como essa significao est relacionada com o prprio espao urbano e os sujeitos

    que nele vivem. Para o empreendimento de nosso trabalho, focamos especificamente a

    anlise do funcionamento dos discursos do Movimento Desocupa e do Movimento Ocupa

    Salvador, movimentos urbanos da cidade de Salvador-Bahia, os quais se significam como

    de resistncia popular. Nosso corpus foi composto pelo recorte de alguns textos, imagens e

    vdeos que os supracitados movimentos disponibilizaram em seus sites oficiais. Com a

    anlise, chegamos concluso de que o jogo entre conflito e conciliao uma

    regularidade que estrutura o discurso dos movimentos. A partir dessa concluso, pudemos

    propor o que estamos chamando de efeito de resistncia, noo pela qual buscamos

    delimitar o funcionamento discursivo que se d entre a busca pelo novo (a partir do

    antagonismo marcado) e a ratificao do mesmo (pela reafirmao dos aparelhos que

    mantm as estruturas sociais vigentes).

    Palavras-chave: Anlise de discurso. Resistncia. Movimentos Sociais. Efeito de

    Resistncia.

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  • ix

    SUMRIO

    UM LUGAR DE FALA

    UM LUGAR DE ESCUTA

    15

    1 SOBRE OCUPAR E DESOCUPAR 25 1.1 Do(i)s movimentos em Salvador 29

    1.2 Salvador: memria e poltica 35

    1.3 A questo da baianidade 48

    1.4 Condies de Produo discursivizadas: a delimitao do recorte 54

    2 SOBRE MOVIMENTOS E RESISTNCIA 57

    2.1 Movimentos Sociais Urbanos: um percurso conciso pelas cincias sociais 58

    2.2 Vontade, Responsabilidade, Solidariedade: a questo do Sujeito-de-direito 72

    2.3 Contradio e equvoco: os movimentos da resistncia 75

    2.4 Sobre Movimentos e Resistncia: escutando o Ocupa e o Desocupa 82

    2.4.1 Porta-voz e Ns-poltico 94

    3 SOBRE CIDADE E SUJEITOS 103

    3.1 A cidade: uma via para a Anlise de Discurso 104

    3.2 Sentidos para a cidade: entre o conflito e o consenso 108

    3.2.1 A discursivizao do conflito e do consenso no Ocupa e no

    Desocupa

    111

    3.3 Sentidos para a cidade: centro urbano e patrimnio entre a presena e a perda

    139

    3.3.1 Os sentidos de soteropolitano 148

    O EFEITO DE RESISTNCIA E A RESISTNCIA POSSVEL:

    UMA PROPOSTA

    155

    REFERNCIAS 165

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  • xi

    Sobre o vir a ser:

    Eu queria ser uma rosa branca, mas do que

    me adianta ser uma rosa branca que, ao ser

    branca, deixa de ser rosa.

    Jau.

    As coisas que no existem so mais bonitas.

    Manoel de Barros.

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  • xiii

    AGRADECIMENTOS

    , certamente, a busca pela compreenso de algo que nos impulsiona a empreender um

    trabalho como este. No meu caso, a busca pela compreenso do modo como a lngua se

    imbrica com o social nos meandros do que comumente se entende por prtica de

    resistncia.

    O engraado que buscar compreender algo exige do curioso um amadurecimento. E

    amadurecer entender que preciso, de tempos em tempos, compreender a si mesmo.

    Na medida em que busquei compreender meu objeto, fui amadurecendo (fui levado a

    amadurecer), sobretudo porque tive ao meu redor pessoas que me ensinaram os diversos

    sentidos de esperar, refletir, silenciar, formular... compreender.

    A essas pessoas gostaria de dizer meu muito obrigado:

    Profa. Suzy Lagazzi pelo acolhimento, carinho, suporte, firmeza e orientao! Por

    confiar em minha competncia de um jeito desconcertante e motivador. Por me fazer

    compreender que, em meio ao aparente caos, possvel perceber regularidades quando se

    olha/escuta com ateno.

    Ao Prof. Antnio Marcos, amigo querido! Por ser sempre um exemplo de profissional e

    pessoa. Agradeo pelos acarajs em Cira e pelos diversos conselhos decisivos pra mim.

    Profa. Cludia Pfeiffer pelo cuidado e ateno extrema! Pela interlocuo maravilhosa e

    por sempre se mostrar muito disponvel!

    Aos professores Lauro Baldini, Helson Sobrinho e Rodrigo Fonseca. Agradeo pelos

    momentos de interlocuo que me fizeram compreender melhor com o que eu estava

    lidando.

    s professoras Edleise Mendes e Ilza Ribeiro porque, como verdadeiras professoras que

    so, quiseram me ver voar.

  • xiv

    Aos meus amigos-famlia: Alan, Luana e Fbio por todos os momentus!! que me fizeram

    sentir-me em casa! Por serem meus exemplos de fora, coragem e destemor! Por me

    fazerem sorrir em meio dificuldade, justamente porque os via sorrir quando, tambm para

    eles, as coisas no iam bem! Minha baianidade nag em Campinas!

    Aos amigos que fiz em Campinas: Nayara, um presente, uma irm que essas terras

    unicampineiras me deram; Jael, a baiana mais gacha que pude conhecer e uma das

    pessoas mais solcitas e amigveis; LivElena pelo exemplo de foco; Fernandinha, Slvia

    Nunes e Guilherme, irmos mais velhos, que me ajudaram muito aqui na Unicamp.

    Aos meus amigos que ficaram em Salvador: minha comadre, Adriana, luz e sal na minha

    vida, meu exemplo de fora mental e espiritual; a Caren e Juldy(creide) por segurarem a

    barra e, com isso, me deixarem mais tranquilo estando longe; ao meu amigo Victor que

    me ensina constantemente que desacelerar preciso.

    Finalmente, agradeo a minha famlia com quem efetivamente aprendi, nesses dois anos, os

    sentidos de presena-ausente e tambm que saudade forma de ficar. Agradeo

    muitssimo a minha me, minha guerreira, por lutar, rezar, chorar, sorrir por mim e comigo.

    Por ser sempre a primeira a me compreender e me apoiar. Tambm agradeo a meu irmo

    Lucas pelo simples fato de ele ser e estar.

    Ao longo de todo processo pelo qual passei no mestrado, aprendi (ainda mais) a esperar. E

    esse aprendizado passa pelas mos doces e cheirosas de Tamily que espera junto comigo. A

    ela quero agradecer por toda compreenso, apoio e por seu amor e carinho.

    Por fim, agradeo a Capes pelo financiamento recebido no incio da pesquisa e Fapesp

    pela bolsa concedida.

  • 15

    UM LUGAR DE FALA

    UM LUGAR DE ESCUTA

    O discurso assim palavra em movimento.

    Eni Orlandi

    So muitos gritos, pautas e reivindicaes. Cada corpo com o seu cartaz. Vozes

    coincidentes e dissidentes. Uns gritam sem partido! sem bandeira! Os outros, os das

    bandeiras, gritam sem fascismo! em resposta. Todos esto l. Na rua. E clamam: vem pra

    rua! A cidade est tomada porque evidentemente ela o lugar e o motivo da luta. Todos

    querem falar. Mas no s isso: querem ser ouvidos. a voz da rua. Talvez nem sempre

    discernvel em seus quereres. Mas sempre l: legitimando-se porque vem da rua. Isto ,

    porque entende a rua como o mais perfeito lugar para a instituio de uma voz

    igualmente perfeita.

    O mo(vi)mento sumariamente descrito acima representa o que vimos nas

    manifestaes ocorridas em junho de 2013 nas ruas das cidades do Brasil. Evento que pode

    ser um bom exemplo de uma relao que sempre nos inquietou, nos incomodou: a relao

    da discursividade da reivindicao com a cidade. por esse acontecimento que situamos

    preliminarmente o nosso problema: vamos em busca da compreenso de alguns sentidos

    que imbricam a discursividade da reivindicao do/no social com o espao urbano.

    Compreenso discursiva, vale dizer! O que nos leva a buscar um lugar discursivo de fala

    para empreender um gesto discursivo de escuta.

    Um lugar de fala que nos pe em posio de escuta de algo que nos incomoda.

    Incmodo e posio de escuta: um encontro pertinente para o lugar de fala no qual nos

    situamos, pois em nosso trabalho (o do analista de discurso), preciso encontrar textos

    que incomodem (Courtine, 2006, p. 27). assim que buscamos uma escuta do social

    falando de uma perspectiva discursiva. Isso porque, para ns, falar do social falar de

    relaes entre sujeitos de linguagem (Lagazzi, 2013, p. 313).

    Nessa direo, as reflexes tericas e analticas apresentadas nesta dissertao de

    mestrado nos levaram a formular uma compreenso discursiva sobre o modo como a cidade

    e os sujeitos urbanos so significados no escrutnio da reivindicao social. De modo

  • 16

    pontual, nosso olhar, nossa escuta, volta-se para os movimentos sociais contemporneos de

    cunho urbano os quais, num primeiro olhar, mostraram-se para ns como deslizando entre

    relaes de disperso e de concentrao. Ou seja, movimentos que, para ns,

    paradoxalmente, tomavam corpo pela disperso e fragmentao de causas e sujeitos1 ao

    mesmo tempo em que se mostravam pela fora em concentrar e reunir tais causas e tais

    sujeitos.

    Disperso e concentrao: fragmentos de uma resistncia urbana2? Esse foi nosso

    mote inicial, nosso ponto de entrada. O incmodo sobre o qual falamos acima comeou a

    tomar corpo (e desembocar no investimento em um trabalho de mestrado) quando, antes

    mesmo dos acontecimentos que marcaram o Brasil em junho de 2013, deparamo-nos com

    falas que iam desde no precisamos de pauta ou lder, vamos apenas ocupar at vamos

    nos organizar para ocupar . Falas que nos faziam num primeiro momento pensar nessa

    relao que amos postulando entre disperso e concentrao. Falas que nos soavam um

    tanto contraditrias, embora circulassem (e convivessem bem) no mesmo espao, e a partir

    das quais algumas prticas comeavam a acontecer, atribuindo sentidos ao sujeito e ao

    espao por ele ocupado.

    Um primeiro gesto de compreenso nos levou a refletir sobre o papel das redes

    sociais e da internet na cena desse novo tipo de manifestao que separa e une.

    Tomamos, ento, o espao virtual como objeto que possibilitou, de um lado, a concentrao

    de reivindicaes e, por conseguinte, a articulao delas e, do outro lado, a injuno ao

    cada um faz o seu, sem partido e sem bandeira. Diante desse cenrio, nos

    questionvamos: a internet proporciona uma disperso, uma autonomia de aes (qualquer

    um pode criar um evento de manifestao), mas como silenciar os gestos de organizao

    que inevitavelmente acontecem at que tal ao tome corpo? Um sentimento inicial que

    pode ser traduzido na formulao de Katz (2013, n/p) de que a vida online e off-line esto

    borradas parecia indicar o modo pelo qual entraramos em nossa questo.

    1 Espelhados, por exemplo, pelas mais diversas manifestaes nas/das redes sociais.

    2 Aqui, empregamos o termo resistncia urbana como um grande guarda-chuva que abriga as diversas

    formas de manifestao social no espao urbano e que podem comumente ser consideradas como uma prtica

    de resistncia.

  • 17

    Contudo, formulaes3 que construam uma espcie de evidncia sobre a eficcia

    poltica da prtica de ocupao urbana associadas a outras formulaes que celebravam a

    irrupo de modos espontneos de organizao social passaram a nos movimentar em

    outra direo. Assim, nosso investimento se deu em buscar propriamente o funcionamento

    do discurso dos movimentos sociais de ocupao urbana j que era no mbito deles que tais

    formulaes apareciam para ns. A questo da virtualidade no foi em nenhum momento

    descartada, porm no mais foi a que organizou pontualmente nossa problematizao.

    A cidade de Salvador, capital do estado da Bahia, para alm de ser o lugar onde

    nossa inscrio enquanto sujeito urbano se deu e, consequentemente, o lugar que atravessa

    e constitui nosso modo de identificao e subjetivao no/do mundo, apareceu para ns

    como espao de efervescncia dessa discursividade reivindicatria e nos forneceu os

    movimentos sociais sobre os quais aqui nos debruamos. Fomos confrontados com a

    configurao efervescente de condies de produo, em diversas instncias discursivas,

    que naturalizava a necessidade do soteropolitano em se manifestar, lutar, se associar em

    movimento etc. E, com isso, tivemos a oportunidade de perceber que a cidade de Salvador

    passava a ser uma cidade em que todos os dias havia uma manifestao social, desde o

    fechamento das principais vias da cidade por manifestantes que protestavam contra o preo

    dos transportes at a queima de pneus nas ruas de bairros perifricos por conta de suas ms

    condies de vida, passando pela ocupao de praas e demais espaos da cidade por

    movimentos sociais que se manifestavam contra o uso dos espaos pblicos por empresas

    privadas.

    Diante disso, as pginas que seguem concentram nosso esforo de nos colocarmos

    em um lugar de fala discursivo que nos propiciasse a compreenso dos modos pelos quais o

    movimento Ocupa Salvador e o movimento Desocupa significam a cidade e os sujeitos da

    cidade (os soteropolitanos, nesse caso), imprimindo nesse processo de significao uma

    ideia de resistncia4. Esse movimentos se mostraram para ns como protagonistas em meio

    3 Tais como O espao pblico sempre foi um lugar de aprendizado e troca e vivncia urbana ou

    impossvel que exista qualquer instrumento jurdico que impea o cidado livre de viver a experincia que a

    praa proporciona. Ambas retiradas do Jornal A Folha de So Paulo em sua pgina disponvel em < http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/minhahistoria/1231140-ocupar-o-espaco-publico-e-um-

    ato-politico-civico-urbano-e-divertido.shtml>. Acesso 15 fev. 2013. 4 Uma descrio mais apurada sobre os movimentos vir no captulo seguinte. Queremos, porm, chamar

    ateno para o fato de que embora o movimento Desocupa, ao contrrio do movimento Ocupa Salvador, no

  • 18

    ao cenrio da cidade de Salvador que descrevemos acima. Nosso objetivo principal, ento,

    consistiu em empreender um gesto de escuta que nos permitisse analisar o funcionamento

    dos discursos do movimento Ocupa Salvador e do movimento Desocupa, para

    compreender como se produz a resistncia para os sujeitos citadinos e o que se produz

    como resistncia no espao urbano. E esse objetivo nos levou s seguintes perguntas: i)

    como os sentidos de resistncia esto formulados nos discursos desses movimentos?; ii)

    como a imbricao entre os sentidos de resistncia e sujeito citadino, assim como a

    imbricao entre os sentidos de resistncia e espao urbano funcionam?; iii) como esses

    movimentos discursivamente colocam-se como intervindo no social da cidade?; e iv) como

    se d o funcionamento das relaes de determinao que se estabelecem entre o social e o

    urbano no contexto da reivindicao?5

    O lugar discursivo de fala sobre o qual nos referimos, e a partir do qual constitumos

    nosso dispositivo de escuta do social que nos permitiu buscar um entendimento das

    questes acima, o da Anlise de Discurso de orientao materialista. Michel Pcheux, a

    quem atribumos o papel de precursor e articulador desse posicionamento terico, quem vai

    propor, ainda sob o pseudnimo de Thomas Herbert, a escuta social (cf. Herbert, [1966]

    2011) como modo de compreenso de como as prticas sociais funcionam.

    Este o modo pelo qual a Anlise de Discurso vai comeando e tomando corpo: a

    proposta de uma escuta formulada incialmente enquanto crtica s cincias sociais. Cincias

    que, quando da crtica de Herbert, apresentavam-se demandadas pela aplicao de uma

    tcnica a uma ideologia das relaes sociais (Herbert, [1966] 2011, p.43) e no pela

    produo de um conhecimento cientfico propriamente dito. So os primeiros passos da

    Anlise de Discurso os quais, iniciados com a crtica s cincias sociais, vo em direo da

    desautomatizao do conteudismo, do pragmatismo e das leituras hermenuticas.

    Isso implica dizer que a escuta proposta pela Anlise de Discurso sustenta-se no

    descentramento do sujeito, buscando entender sua relao com a histria, com o poltico e

    com a ideologia, no se tratando, dessa forma, em entender o sujeito numa posio de pleno

    empoderamento de modo que escut-lo requeresse buscar o que ele quis dizer, suas

    intenes e entrelinhas de sua fala. Assim, nosso gesto de escuta se ampara na relao que

    se constitua como um movimento de ocupao urbana propriamente dito, tal prtica tambm faz sentido em

    sua produo discursiva e em sua prtica reivindicatria, como poderemos ver ao longo do texto. 5 Voltaremos a essas questes contrapondo-as com as condies de produo que nos fizeram chegar at elas.

  • 19

    se estabelece entre lngua(guem)/sentido, sujeito e ideologia, porque no h sentido sem

    sujeito e no h sujeito sem ideologia (cf. Pcheux, [1975] 2009). Em sntese, somos

    sujeitos. E sujeitos de linguagem.

    H nesse posicionamento terico e, consequentemente no procedimento de escuta

    que ele propicia, duas premissas fundamentais: (i) os sentidos sempre se relacionam s suas

    condies histrico-ideolgicas de produo; (ii) os sujeitos, que colocam esses sentidos

    em circulao, so sujeitos porque so interpelados ideologicamente. Premissas que nos

    levam at a seguinte formulao: na linguagem que o sujeito se constitui, e tambm

    nela que ele deixa marcas desse processo ideolgico (Lagazzi, 1988, 51).

    Linguagem, sujeito e ideologia: imbricao da qual irrompe nosso objeto, o

    discurso. Lingustica, Psicanlise e Materialismo Histrico: relao de entremeio que

    constitui nosso posicionamento sobre o discurso e nos fornece o modo de compreend-lo.

    O discurso no lngua, nem fala, mas, como aqui epigrafamos, palavra em

    movimento (Orlandi, 2001, p. 15). E isso significa, do quadro da Anlise de Discurso,

    entendermos a lngua como um trabalho simblico que s faz sentido em seu

    funcionamento, seu movimento, que no dispensa o sujeito e a histria. No se trata, desse

    modo, da lngua exclusivamente enquanto sistema, mas de produo de sentidos dados em

    sua especificidade prpria que considera o sujeito e sua constituio ideolgica. Trata-se,

    de fato, em conceber a lngua como base sobre a qual processos se constroem (Pcheux

    [1971], 2011, p. 128). Fato que nos direciona ao entendimento da lngua como realidade

    relativamente autnoma sobre a qual o processo discursivo (ou seja, o de produo dos

    discursos) se d sempre em relao s relaes sociais, isto , relaes de fora que

    caracterizam uma formao social dada. E tais relaes acontecem atravs do modo de

    produo que domina tal formao social, bem como atravs da hierarquia das prticas de

    que este modo de produo necessita, alm dos aparelhos pelos quais essas prticas so

    realizadas (cf. Pcheux, [1971], 2011).

    So esses processos discursivos, os quais tm a lngua como base material, e

    tambm as relaes sociais, que chamam ateno da Anlise de Discurso. Entender a lngua

    como base material para os processos discursivos compreender que as regras

    fonolgicas, morfolgicas e sintticas so sempre o objeto de acrscimos, recobrimentos, e

    apagamentos (Lagazzi, 1988, p. 52). Decorre da que no dispensamos a Lingustica como

  • 20

    possibilidade terica de compreenso dessa base material, mas a interrogamos em sua

    concepo de lngua ora extremamente autnoma, fechada e abstrata, ora dependente das

    vontades e desgnios de um sujeito intencional.

    Como dissemos, o sujeito sujeito porque constitudo ideologicamente. o

    indivduo que passa a sujeito no processo de interpelao ideolgica necessrio para poder

    significar. Assim, remetido ideologia, o sujeito (se) significa sempre em relao ao

    funcionamento das condies de produo das quais faz parte. O que significa que, ao

    dizer, o sujeito est mobilizando uma rede de filiaes scio-histricas que no so

    meramente contextuais, mas constitutivas do processo de significao.

    O sujeito fala sempre de uma posio-sujeito que, por sua vez, refere-se sempre a

    uma formao discursiva que disponibiliza o que pode e deve ser dito (Pcheux, [1975],

    2009, p. 147) por ele. E essa condio de fala nos aponta para o fato de que o sentido se

    constitui junto com o sujeito. Isto , no jamais um sentido que existe em si mesmo, mas

    sentido que se constitui segundo as posies nas quais o sujeito est sustentado.

    H de se considerar, porm, que toda formao discursiva dissimula, pela

    transparncia do sentido que nela se constitui, sua dependncia com respeito ao todo

    complexo com dominante das formaes discursivas, intricado no complexo das

    formaes ideolgicas (Pcheux, [1975], 2009, p. 148). O processo pelo qual os

    indivduos passam a sujeitos pela interpelao ideolgica acontece nesse complexo de

    formaes ideolgicas que constituem o interdiscurso e que remete propriamente s

    formaes discursivas. E nesse espao de constituio, o sujeito recebe (da formao

    discursiva em que se processa sua interpelao) sua realidade, isto : o sistema de

    evidncias e significaes percebidas aceitas experimentadas (Pcheux, [1975], 2009,

    p. 149). Em sntese, o sujeito se constitui na evidncia de si mesmo, como sujeito do seu

    discurso, uno e nico.

    a Psicanlise, propondo um sujeito constitudo e atravessado pelo inconsciente e

    que se torna sujeito na sua constante relao com o real, o simblico, o imaginrio, que

    propicia este nosso entendimento discursivo sobre o sujeito. Assim, ao designarmos

    sujeito remetemo-nos a um indivduo determinado ideologicamente que tem seu dizer j-

    l, porque algo fala sempre antes, em outro lugar, independentemente (Pcheux, [1975],

    2009, p. 149). Remetemo-nos tambm a um indivduo que atravessado pelo inconsciente

  • 21

    e por esquecimentos os quais produzem a sua no submisso ao sentido j posto e

    ideologia. O sujeito ento aquele que tem a iluso de ser a origem do que diz (Orlandi,

    2010a, p. 21) e esquece que h outros sentidos possveis (Orlandi, 2010a, p. 21). Esses

    so os esquecimentos nmeros um e dois, respectivamente, que marcam o sujeito. O

    primeiro, da ordem do ideolgico e do inconsciente, marcando a caracterstica prpria da

    constituio do sentido e do sujeito. O segundo, da ordem da formulao, atravessando a

    prpria enunciao do sujeito.

    Sujeito e sentido se constituem ao mesmo tempo, dissemos. E desse processo

    tambm o histrico participa.

    A materialidade dos lugares dispe a vida dos sujeitos e, ao mesmo tempo, a

    resistncia desses sujeitos constitui outras posies que vo materializar

    novos/outros lugares, outras posies. isso que significa a determinao

    histrica dos sujeitos e dos sentidos: nem fixados ad eternum, nem desligados

    como se pudessem ser quaisquer uns. Porque histrico que muda e porque

    histrico que se mantm (Orlandi, 2010a, p. 20).

    essa a relao que demarca a constituio do sujeito e do sentido sempre passando

    pelo histrico que caracteriza a Anlise de Discurso enquanto perspectiva materialista.

    Uma vez que a Anlise de Discurso estabelece-se como uma forma de compreender a

    linguagem enquanto instncia atravessada e constituda pela histria e pela ideologia seu

    desenvolvimento no campo epistemolgico do materialismo irrompe como possibilidade de

    dar consequncia a esse modo de compreenso.

    Retomamos Louis Althusser em seu A corrente subterrnea do materialismo do

    encontro e seu investimento terico-filosfico no desvio e na pega para compreendermos

    melhor o materialismo. Por desvio, Althusser sinaliza o acaso como origem das coisas,

    isto , considera o desvio como originrio e no como derivado. Trata-se do desvio como

    um acontecimento que se d sem se saber onde, como ou quando, mas que, ao proporcionar

    um encontro, permite a irrupo do nascimento de um mundo, de um sentido. Althusser

    remete a realidade das coisas e dos sentidos ao desvio e no propriamente a uma razo ou

    causa. Contudo, um breve encontro provocado por um desvio talvez no fosse

    suficientemente durvel para dar base ao nascimento de qualquer realidade (ou, em

    palavras mais discursivas, para historicizar determinado sentido). ento, a pega que,

  • 22

    tornando duradouro o encontro provocado pelo desvio, entra no funcionamento da

    formulao das realidades.

    Desvio e pega e seus papis na formulao dos encontros e de suas respectivas

    realidades sinalizam para o materialismo do encontro (cf. Althusser, [1982], 2005) que

    materialismo justamente por se opor radicalmente a qualquer forma de idealismo que

    pregue a razo ou a conscincia como origem. Isso porque o que, de direito, constitui o

    materialismo a ideia de que a matria primria (cf. Orlandi, 2007a). Dito de outro

    modo, da posio materialista, o real j est materialmente l, existindo, no se tratando,

    assim, de uma construo da conscincia humana (posio defendida no idealismo).

    Denise Maldidier vai afirmar que Michel Pcheux foi um althusseriano engajado

    na aventura da linguagem (Maldidier, 2003, p. 33). Isso significa dizer que Michel

    Pcheux foi um materialista engajado na aventura da linguagem, pois sua compreenso em

    torno do sujeito, da luta de classes, do ideolgico desemboca propriamente na linguagem,

    ponto de diferena entre Pcheux e Althusser.

    ento tomando o materialismo como base que a Anlise de Discurso vai ressaltar

    a noo de historicidade para propor o sujeito (se constituindo simultaneamente ao sentido,

    porque sujeito de linguagem) como sujeito na histria e no sujeito da histria (aquele que

    faz, por ele mesmo, a histria) como poderia supor uma perspectiva idealista. Trata-se

    assim de, no estudo da linguagem, do sentido, levar s consequncias o entendimento de

    que todo processo histrico , como prope Althusser, um processo sem sujeito nem

    fim(s) (Althusser, 1978, p. 28).

    O que trouxemos at aqui sobre nossa compreenso discursiva que se assenta na

    Anlise de Discurso materialista como lugar de fala a partir do qual podemos empreender

    um gesto de escuta, isto , de anlise discursiva, nos serve para, como dissemos, buscar um

    meio de compreenso da relao que se estabelece com os discursos de reivindicao

    (social/urbana) e a cidade, a rua.

    Nesse processo de compreenso, como dissemos, as condies de produo so

    constitutivas e no meramente contextuais. So, ento, s condies de produo que nos

    dedicamos no primeiro captulo, Sobre Ocupar e Desocupar. Nessa parte do trabalho,

    buscamos reconstruir alguns acontecimentos que marcam o modo como as manifestaes

    sociais (em movimentos ou no) tm acontecido contemporaneamente. De condies de

  • 23

    produo sociais mais amplas, recortamos as que propiciaram o acontecimento dos

    movimentos Ocupa Salvador e Desocupa. Diante disso, apresentamos tambm uma

    reflexo sobre a cidade de Salvador, sua memria, sua poltica, os dizeres que circulam

    sobre ela e sobre os sujeitos que nela moram. Para finalizar esse captulo, delimitamos o

    recorte sobre o qual vamos nos debruar.

    No segundo captulo, Sobre Movimentos e Resistncia, com o objetivo de

    reconstruir o discurso sobre os movimentos sociais, retomamos de forma concisa o que

    algumas disciplinas das cincias sociais falam sobre tais organizaes. Alm disso,

    apresentamos uma reflexo sobre a noo de sujeito-de-direito, bem como sobre as noes

    de contradio, equvoco e resistncia, para desenvolvermos uma maneira discursiva de

    compreendermos os movimentos sociais. Ao final do captulo, iniciamos nosso gesto de

    anlise, buscando compreender os sentidos de resistncia nos dizeres dos movimentos que

    compem nosso objeto.

    Para iniciar o terceiro captulo, Sobre Cidade e Sujeitos, apresentamos a cidade

    como objeto de reflexo da Anlise de Discurso, especialmente a que se desenvolve no

    Brasil. Nessa parte da dissertao, investigamos os sentidos de cidade, tomando como

    regularidade as relaes entre conflito e consenso e entre centro urbano e patrimnio.

    Tambm os sentidos de soteropolitano no discurso dos movimentos so investigados por

    ns nesse captulo.

    Para finalizar a dissertao, propomos a noo de Efeito de Resistncia. A proposta

    feita com base nas reflexes que foram apresentadas nos captulos anteriores e busca

    compreender a maneira como se configura a resistncia na discursividade do antagonismo

    em que se estabelece a relao entre oposio e conciliao.

  • 24

  • 25

    1. SOBRE OCUPAR E DESOCUPAR

    Mas como a cidade poder de um exrcito inimigo

    proteger-se? Sem dvida, com as armas, as quais,

    entretanto, no combatendo por si mesmas,

    necessitam que as manejem homens nos quais se

    encontre a um s tempo a vontade, a coragem e a

    fora para resistir aos inimigos.

    Francesco Cherso

    A chamada Primavera rabe tem sido frequentemente apontada como um

    importante (se no o principal) marco para o sculo XXI no que tange s formas de

    articulao, mobilizao e revolta populares contrrias s organizaes de poder

    democrticas ou no. Iniciada em 2010, mais especificamente em 18 de dezembro do

    supracitado ano, a onda de protestos, manifestaes e greves que se iniciou na Tunsia e

    atingiu todo Oriente Mdio e o Norte da frica, tambm apontada como responsvel por

    conseguir, por exemplo, em menos de um ms, retirar do poder chefes de estado que

    ocupavam o domnio poltico por, pelo menos, trinta anos. Tal sucesso atribudo, para

    alm da evidncia do poder popular, s ferramentas contemporneas utilizadas pelos

    manifestantes, quais sejam: as redes sociais. A internet, desse modo, entra em cena como

    um espao de convvio virtual capaz de rasurar gestos de represso e censura, publicizar

    modos de vida frente a contextos arbitrrios, bem como articular formas de oposio a tais

    contextos.

    Em Rebelies e ocupaes de 2011, texto em que se encontra uma reflexo sobre

    esse momento da histria contempornea, o professor e historiador Henrique Soares

    Carneiro pontua a ocorrncia de um fenmeno sintetizado como uma ecloso simultnea

    e contagiosa de movimentos sociais de protestos com reivindicaes peculiares em cada

    regio, mas com formas de luta muito assemelhadas e conscincia de solidariedade mtua

    (Carneiro, 2012, p. 07). O autor historia o modo como o suicdio do vendedor de frutas,

    Mohamed Bouazizi, que ateou fogo em si mesmo para protestar contra a apreenso de suas

    mercadorias na Tunsia, foi o estopim para um viral de rebelies que, em todos os pases a

    que chegavam, tomavam a mesma faceta no que concerne s formas de ao: ocupaes

  • 26

    de praas, uso de redes de comunicao alternativas e articulaes polticas que recusavam

    o espao institucional tradicional (Carneiro, 2012, p. 08).

    Do ponto de vista do historiador, tais rebelies, protestos e articulaes de greve

    tm como pano de fundo objetivo uma crise que se inicia no ano de 2008 e atinge os nveis

    social, econmico e financeiro, desembocando pontualmente no encarecimento dos

    alimentos e no aumento do desemprego. Porm, , segundo o autor, a existncia de um

    impasse referente ausncia de alternativas polticas organizadas o sintoma que resulta em

    rebelies praticamente espontneas contra as estruturas polticas partidrias e sindicais

    vigentes, mas sem forjar ainda uma nova articulao orgnica e representativa dos anseios

    de transformao e ruptura (Carneiro, 2012, p. 08). Rebelies que, acrescenta o autor, se

    estenderam pelo mundo de forma epidmica (Carneiro, 2012, p. 09).

    Ainda conforme Carneiro (2012), passada a euforia inicial que se sustentava nas

    primeiras interpretaes de que as rebelies certamente dariam fim ao sistema poltico-

    econmico mundial vigente ou que representariam um novo ano de 1968, comeou a se

    firmar o sentimento de que haveria um agravamento significativo da crise e,

    consequentemente, dos conflitos sociais. Esse sentimento tem por base a constatao de

    que se vive um novo momento da poltica global em que a voz das ruas passou a ocupar o

    cenrio, deslocando velhos aparatos polticos e questionando a ordem do capitalismo

    financeirizado (Carneiro, 2012, p. 10).

    Uma ressonncia da Primavera rabe atinge o Ocidente no ano de 2011. Pelo

    mesmo modelo de ao, a valorizao do gesto de ocupar organiza um movimento que

    passa a ser conhecido como Occupy e se espalha por diversos pases nas Amricas e na

    Europa. O ativista Bruno Cava, no texto Occupy: a democracia real como construo da

    indignao, afirma que tal movimento comeou a tomar corpo em setembro do ano de

    2011, com a ocupao do Zuccotti Park, em Nova Iorque, de forma auto-organizada, sem

    lderes anunciados, sem que qualquer bandeira partidria ou eleitoral fosse levantava e

    compartilhando princpios, ideias e formas organizacionais que se adaptariam s

    particularidades de cada lugar (cf. Cava, 2012).

    Consoante o autor, o movimento dos indignados, como tem sido conhecido o

    Occupy nos mais diversos pases, tem buscado pontuar a profunda desigualdade social que

    se d mundialmente. Para o ativista, o slogan do movimento, Ns somos 99% (We are

  • 27

    99%), d visibilidade a esta desigualdade que se caracterizaria pela acumulao de riquezas

    e privilgios por uma minoria e a explorao e escassez de recursos para a maioria. A crise

    econmica iniciada no ano de 2008 , tambm neste autor, um marco para a percepo da

    desigualdade citada e de seus efeitos. Cava (2012) afirma que quando, sob o pretexto de

    evitar uma catstrofe, o governo norte-americano resolveu salvar os bancos e no as

    pessoas (Cava, 2012, n/p) as quais passavam todos os tipos de privaes, desde a

    incapacidade de manter minimamente seu padro de vida at o simples fato de no

    conseguir pagar faturas de carto de crdito, ficou evidente que os governos e o sistema

    financeiro compartilham lenis (Cava, 2012, n/p). O efeito produzido pela percepo

    deste gesto poltico foi, ainda segundo o autor, o entendimento de que havia algo bastante

    equivocado no mago do sistema poltico vigente.

    Esse equvoco do sistema poltico teria a ver com o modo como a culpa pela crise

    financeira teria recado sobre os trabalhadores. O governo norte-americano perdoava dvida

    de bilhes de dlares de grandes organizaes e bancos, mas recusava-se a perdoar dvidas

    menores, afirmando que, se assim o fizesse, poderia cair no risco moral de que as pessoas

    no se vissem mais obrigadas a trabalhar para cumprir seus deveres. Assim, as pessoas

    deveriam trabalhar mais, conseguir mais empregos para honrar seus compromissos. Diante

    desse contexto, Cava (2012, n/p) pontua que no por acaso, quando das primeiras

    ocupaes nos EUA, crticos reacionrios chamaram os manifestantes de fracassados ou

    vagabundos, e recomendaram que arrumassem um emprego [get a job]. e prossegue

    defendendo o movimento Occupy como, de certo modo, responsvel por rejeitar a culpa

    que o prprio sistema atribui, ao propagar a ideia que cada um responsvel

    individualmente por seu prprio sucesso e felicidade.. Por fim, pontua: Da a potncia do

    Occupy como mudana de uma percepo social e poltica: a culpa est mais enraizada

    institucionalmente, culpa de um poder poltico que conserva e reproduz o sistema

    econmico-financeiro, e que nos fabrica como indivduos impotentes e submetidos moral

    das cobranas e obrigaes. (Cava, 2012, n/p).

    Estabelecida essa conscincia poltica, duas prticas foram tomadas/imaginadas

    como exerccios eficazes de resistncia: a divulgao de ideias e articulao de aes na

    internet, e a ocupao de espaos pblicos das grandes cidades. Outro slogan associado ao

    movimento Occupy e movimentos derivados representativo disso: Organizar online,

  • 28

    ocupar off-line! No que se refere relao dos movimentos do tipo ocupa e os espaos

    pblicos escolhidos para o exerccio da ocupao, o filsofo e psicanalista Slavoj Zizek

    defende, no seu texto O violento silncio de um novo comeo, que tal escolha, longe de

    representar uma contingncia, deve representar uma rasura na ordem a que se quer

    alcanar. Ao tratar do Occupy Wall Street, o autor se coloca como contrrio ideia de que

    seria mais eficaz ocupar a Main Street, conhecida avenida de comercio local de pequenos

    investidores, porque tal rua seria o centro representativo do comercio capitalista. Assim,

    para ele: a soluo no Main Street, not Wall Street, mas sim a mudana do sistema em

    que a Main Street no funciona sem Wall Street (Zizek, 2012, p. 16) e, sendo assim, a

    ocupao de Wall Street representaria um confronto direto ao sistema do qual tal rua norte-

    americana smbolo. Em outras palavras, possvel dizer que enquanto materialidade

    simblica, a cidade demanda uma interpretao significativa para a realizao desses

    movimentos de ocupao dos espaos pblicos.

    A injuno a ocupar espaos pblicos para demostrar a insatisfao (global) frente

    aos efeitos da crise mundial ganha visibilidade pelo uso das ferramentas virtuais

    representadas pelas redes sociais. No ano de 2011, a partir da internet, atividades pblicas

    foram agendas para um mesmo dia em todo mundo e tal evento ficou conhecido como o

    15.O (referente a 15 de outubro, data da realizao deste evento). Nessa ocasio, 951

    cidades de 82 pases em todos os continentes tiveram algum espao pblico ocupado e toda

    essa mobilizao teve como ponto de articulao a crtica aos regimes polticos e ao modelo

    econmico atual. No Brasil, cerca de 11 mil pessoas estavam inseridas nas mobilizaes

    em, pelo menos, 41 cidades do pas6. As mobilizaes e ocupaes organizaram-se de

    forma independente uma das outras, mas tinham como ponto em comum a crtica

    desigualdade social produzida pelas formas de governo e padres econmicos vigentes.

    Outro slogan lanado para representar esse aspecto das manifestaes: Pensar

    globalmente, agir localmente!7

    6 Cf. Acesso em 24 mai.

    2013. 7 Vale a pena frisar que este slogan , na verdade, uma retomada dos movimentos sociais e organizaes no

    governamentais dos anos de 1990 os quais passaram a tematizar o desenvolvimento sustentvel ao mesmo

    tempo em que buscavam ampliar o debate com rgos tais como a Organizao Mundial do Comercio

    (OMC), o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetrio Internacional (FMI).

  • 29

    1.1 Do(i)s movimentos em Salvador.

    Esse panorama feito at o momento no serve como condies de produo mais

    amplas dos movimentos sociais de cunho urbano sobre os quais pretendemos nos debruar

    aqui. Seguindo as pegadas desse mo(vi)mento global, duas organizaes sociais surgiram

    em Salvador, capital do estado da Bahia, e justamente a produo discursiva desses

    movimentos o nosso interesse de anlise. Estamos nos referindo pontualmente aos

    movimentos Ocupa Salvador e Desocupa que se referem cidade soteropolitana como

    motivo e lugar de luta.

    O movimento Ocupa Salvador est alinhado aos demais ocupas ao redor do

    mundo. Auto-intitulado movimento livre, tal movimento iniciou a ocupao de uma praa

    da capital baiana, a praa de Ondina, no dia 15 de outubro de 2011, estando, desse modo,

    em sintonia com o chamado 15.O. As informaes disponveis no site oficial do

    movimento8 apresentam-no como movimento poltico, cultural e social, apartidrio e sem

    ligaes com entidades de qualquer natureza. Reafirma-se o carter livre do movimento,

    ressaltando o interesse em manter dilogo com aqueles que se interessem por discutir,

    planejar e propor iniciativas e aes que contestem as injustias e extravios dos modelos

    hegemnicos de organizao social, poltica e econmica, buscando realizar o que se

    chama globalmente de Democracia Real, de lgica participativa e que valoriza o amplo

    sentido Comum. Por fim, acrescente-se a esta descrio, a afirmao de que se trata de

    uma articulao de pessoas as quais buscam construir alternativas para a transformao

    social efetiva de forma pacfica e permanente.

    No que se referem aos seus objetivos, salienta-se a ideia de resgatar a legtima

    funo dos espaos pblicos atravs de discusses, participaes em assembleias, aes

    criativas e articulao de solues alternativas para demandas pblicas da cidade, bem

    como da criao de redes de interao entre os bairros a partir da dinmica de

    assembleias abertas e horizontais, acreditando que estas formas de mobilizao so

    capazes de dinamizar os espaos pblicos. Chama ateno, ainda no mbito da

    apresentao de uma smula que descreva o movimento por ele mesmo, as justificativas

    para a ocupao da praa em questo.

    8 Cf. Acesso em 24 mai. 2013.

  • 30

    Incialmente, o movimento refere-se praa de Ondina como Praa dos Indignados!

    e reitera que a ocupao desta alinha-se ao j citado 15.O. Pontuam-se as caractersticas da

    praa em questo e apresentam-se os objetivos especficos da ocupao deste espao

    pblico especfico. Assim, lemos no site oficial do movimento9:

    A reforma da Praa de Ondina se deu a partir de um processo licitatrio iniciado em 2010,

    que disponibilizou a rea de 9 mil m para concesso at 2015. A empresa Premium

    Produes venceu a disputa e poder usar a rea para implantao do camarote Salvador,

    um dos maiores do circuito Barra/Ondina do carnaval de Salvador, at o fim da concesso.

    A licitao foi feita pela Superintendncia de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do

    Municpio (Sucom).

    A praa no arborizada, no tem bancos com recostos e mantm estruturas removveis

    para facilitar a instalao anual do camarote, no atendendo a conceitos bsicos que

    caracterizam praas pblicas como espaos pblicos de convvio.

    O acampamento comeou na nova praa em Ondina por razes simblicas que envolvem

    ampla discusso sobre a legitimidade da relao entre a esfera pblica e setores

    empresariais privados sob diversos aspectos, iniciando as discusses a partir da questo

    poltica acerca da apropriao e sequestro sistemtico de uma genuna manifestao

    popular o Carnaval baiano em benefcio de grupos empresarias restritos que exploram o carnaval como mero evento comercial de cunho excludente.

    O movimento Ocupa Salvador, enquanto movimento de ocupao simblica, busca

    mobilizar a esfera pblica com toda a sua diversidade para discusses e proposies

    acerca de temas essenciais e das demandas pblicas estruturais da cidade, utilizando a

    questo da praa de Ondina como representao simblica dos extravios polticos e

    sociais de nossos tempos atuais. A ideia resgatar a praa de Ondina, isto , a Praa dos Indignados, para a funo

    legtima dos espaos pblicos: locais de dicusso, interao e mobilizao cidad ativa e

    transformadora.

    No que tange ao movimento Desocupa, embora este no se filie imediatamente

    mobilizao global promovida pelo Occupy, podemos dizer que h, certamente, muitos

    pontos em comum com as ocupaes iniciados com o 15.O. Em sua apresentao, tambm

    em seu site oficial10

    , possvel lermos que tal movimento foi iniciado em janeiro do ano de

    2012, a partir da crescente insatisfao do povo de Salvador com os desmandos e

    desvarios da administrao municipal, sobretudo no que diz respeito venda da cidade

    aos interesses privados. A descrio e os objetivos iniciais seguem na mesma linha do

    Ocupa Salvador. Destaca-se a no vinculao partidria nem o recebimento de apoio

    9 Cf. Acesso em 24 mai. 2013.

    10 Cf. Acesso em 24 mai. 2013.

  • 31

    financeiro de qualquer espcie, afirmando que sua fora emerge diretamente da ao dos

    cidados soteropolitanos que se cansaram de sentir vergonha da cidade que amam.

    Destaca-se, ainda, (em negrito, vale ressaltar) a no existncia de uma liderana ou

    representantes, pela afirmao de que h apenas participantes, j que no quisemos

    reproduzir no DESOCUPA a mesma lgica obtusa de relaes de poder inerentes a este

    sistema, pois o Movimento surgiu justamente por conta da falncia da grande fraude que

    a democracia representativa em nosso pas.

    A indignao apresentada pelo Ocupa Salvador a mesma no movimento

    Desocupa: relata-se que o movimento surge a partir da ocupao da Praa de Ondina

    pelo luxuoso Camarote Salvador, com o aval do poder pblico ante pagamento de R$250

    mil por ano (uma esmola diante do faturamento de cerca de R$66 milhes previstos) e uma

    reforma na Praa. O papel da internet protagoniza a articulao que desembocou na

    formao do movimento:

    O intenso debate sobre o assunto nas redes sociais levou convocao de uma

    manifestao pblica de repdio privatizao dos espaos pblicos pela Prefeitura de

    Salvador. O Camarote acabou se tornando um smbolo da privatizao dos espaos

    pblicos da cidade e da sistemtica promoo da segregao social. O protesto, que foi

    chamado de DESOCUPA Salvador!, foi proibido pela Justia, a partir de uma ao movida pela Premium Produes Criaes Artsticas e Eventos Ltda, que via na

    manifestao risco de depredao de seu patrimnio e preocupao com a integridade

    fsica (!) de seus funcionrios

    Em seguida, historiado o modo como outros acontecimentos se somaram s causas

    que do corpo ao Desocupa:

    A despeito da censura decretada pela Justia, que parece esquecer-se de que vivemos num

    estado democrtico onde a liberdade de expresso garantida na Constituio, ningum

    se intimidou. No dia 14 de janeiro, mais de 500 pessoas foram frente do Camarote gritar

    Desocupa, a praa do povo!, apesar da forte chuva e de a manifestao ter sido oficialmente PROIBIDA. Apenas trs dias depois, a populao de Salvador recebe em

    estado de choque a notcia de que o desprefeito, o Sr. Joo Henrique Barradas Carneiro,

    que estava nos Estados Unidos, havia aterrissado em Salvador e em poucas horas,

    sancionado as alteraes criminosas que foram feitas LOUOS (Lei de Ocupao, Uso e

    Ordenamento do Solo) na Cmara Municipal por uma lamentvel maioria de vereadores

    vendidos ao interesse privado (veja a lista completa dos traidores do povo e seus

    partidos AQUI). O desprefeito ignorou e desrespeitou o Ministrio Pblico, que ameaou

    acion-lo criminalmente caso ele sancionasse a LOUOS, na medida em que as alteraes

    que foram feitas lei no passaram de manobras destes vereadores subservientes aos

  • 32

    interesses do capital privado para viabilizar a qualquer custo emendas polmicas do

    PDDU da Copa, que teve sua tramitao barrada pela Justia por conta do desrespeito

    sistemtico aos mecanismos de participao previstos para uma legislao desta natureza.

    [...]

    Dois dias depois da fuga do desprefeito para a Espanha, mais de 1.000 pessoas (segundo

    clculos da Polcia Militar divulgados pelo Jornal A TARDE) foram Praa Municipal

    mostrar sua indignao em relao ao caos da administrao pblica municipal, cuja

    fragilidade poltica, moral e institucional configuram o ambiente perfeito para a atuao

    predatria do capital privado, sobretudo dos setores imobilirios, e mais recentemente,

    tambm da Indstria do Carnaval, chegando ao ponto em que a Prefeitura se sente dona

    do espao que do Povo e revolve alug-lo para o Camarote sem qualquer tipo de

    consulta. Participao popular, alis, nunca foi o forte desta gesto, apesar do slogan

    cnico Prefeitura de Participao Popular do primeiro mandato. Esta segunda manifestao, que ocorreu numa tarde ensolarada da Velha Bahia, foi uma

    verdadeira declarao de amor cidade de Salvador (veja fotos da manifestao

    AQUI). Estiveram presentes pessoas de todas as classes sociais, jovens, adultos, idosos e

    at mesmo crianas. Subimos a escadaria da Prefeitura para lembrar corja que l est

    confortavelmente instalada que o Poder Pblico Municipal deve representar os NOSSOS

    interesses e no os das empresas. Durante a manifestao, tambm no faltaram

    declaraes de indignao e de amor cidade durante as cinco horas de durao do

    protesto (algumas destas declaraes podem ser assistidas AQUI).

    A vitoriosa manifestao do dia 20.01.2012 foi uma demonstrao de fora da chamada

    Primavera Baiana, e a partir da o Movimento DESOCUPA seguiu em frente,

    conquistando apoios e aumentando a presso sobre o desprefeito, a cmara de vereadores

    e o governador do estado, que faz silncio absoluto sobre o tema.

    Feita esta sumria descrio destes dois movimentos sociais de Salvador, com base

    nos prprios textos utilizados pelos movimentos em pauta, sentimo-nos um pouco mais

    confortveis para apresentar algumas perguntas que, feitas no mbito da Anlise de

    Discurso, nos servem como pontos de entrada para a compreenso de algumas relaes

    discursivas que nos chamaram ateno. Assim, pontualmente, nosso gesto de anlise, a que

    este trabalho busca apresentar, foi demandado basicamente por nosso interesse, frente ao

    que est posto acima, em compreender como discursivamente tais movimentos sociais

    interpretam a cidade (de Salvador) e como interpretam o sujeito-citadino (soteropolitano).

    A relao discursiva entre cidade e sujeito est, dessa maneira, no cerne de nossas questes.

    Embora haja um contexto maior (tal como apresentamos no incio deste captulo) a

    que estes movimentos possam se filiar, nosso interesse a especificidade do trabalho dos

    movimentos sociais em relao a discursividade de uma cidade. Enquanto materialidade

  • 33

    que demanda interpretao, a cidade tem uma memria discursiva que ressoa no discurso

    de quem fala sobre ela. Assim, ainda que haja um panorama geral, um contexto de denncia

    poltico-social mundial, nosso interesse especificamente compreender o batimento entre

    esse contexto de sustentao discursivo global no contraponto com a relao de um

    movimento (em nosso caso, dois) com a memria de uma cidade, representada como lugar

    pelo qual se mobiliza.

    Como a/uma cidade e os seus sujeitos fazem sentido para um movimento social de

    interveno urbana que j vem demandado por uma discursividade global? Que processos

    discursivos sustentariam a construo da categoria cidadania como legitimadora da atuao

    de movimentos sociais que se relacionam com um espao urbano especfico?

    Tais questes podem ser formuladas quando pensamos a cidade de uma perspectiva

    discursiva, gesto que nos coloca frente ao entendimento de que a cidade demanda

    interpretao. Enquanto forma material, ela significa na medida em que se significa e nos

    significa quando a significamos. por isso que, tomados por essa perspectiva, somos

    autorizados a dizer que os sujeitos, ao passo que interpretam a cidade, vo se constituindo

    em sujeitos-urbanos, porque so afetados por ela neste gesto de interpretao. E mais: a

    constituio do sujeito contemporneo passa inevitavelmente pela injuno urbanidade,

    pois o social significado predominantemente pelo imaginrio urbano (Orlandi, 2007b,

    p. 16). Da porque a relao do sujeito com o (espao) urbano, longe de se resumir a uma

    relao de habitao, , principalmente, uma relao de constituio, imbricao,

    corporificao, textualizao... Em sntese, o corpo social e o corpo urbano so um s

    (Orlandi, 2004, p. 11).

    A representao de um sujeito comprometido que deve ser responsvel por defender

    a coisa pblica contra qualquer possvel ataque, tal como idealizado no projeto utpico

    do filsofo quinhentista talo-croata Francesco Cherso, aqui epigrafado, a propsito de uma

    cidade feliz, parece ressoar de algum modo no discurso dos sujeitos que hoje se mobilizam

    em movimentos sociais e se querem numa posio de reivindicao social/urbana em que

    ser cidado estar mobilizado, empenhado numa causa frente realidade dos problemas

    urbanos. No caso especfico dos movimentos que trazemos tona, a descrio que os

    movimentos fazem de si talvez nos possibilite considerar o cruzamento de um imaginrio

    de cidade que vai mal (frente mesmo ao panorama global poltico, econmico e social) com

  • 34

    a construo de uma mobilizao que cada vez mais vai sendo legitimada mundialmente.

    Permitindo, tambm, a idealizao de uma participao popular, respaldada pela ideia de

    cidadania. Esse discurso ou imaginrio que relaciona os movimentos sociais defesa de

    algo, entendendo tais movimentos como propcios para exercer esse papel de defensor, est

    no cerne de nossa investigao. A organizao de sujeitos comuns, urbanos, tomados pelas

    evidncias da mobilizao, cidadania e da distino pblico-privado chamou-nos ateno

    na relao com o contexto especfico do espao urbano da cidade de Salvador.

    De modo geral, podemos dizer que a sociedade soteropolitana11

    tem sido exposta a

    uma srie de debates (na mdia, na poltica... nos movimentos) que localizam a capital

    baiana, grosso modo, frente a uma gama de questes/problemas. Tais questes vo desde a

    insatisfao cotidiana que toma corpo no conjunto de dizeres disponveis sobre o fazer

    poltico no/do Brasil e, consequentemente, atinge a relao do sujeito citadino com a gesto

    municipal que administra sua vida (especificamente representada pela pessoa do

    administrador, o prefeito ou desprefeito, como gosta de afirmar o Desocupa), at o modo

    como o funcionamento estrutural da cidade impe-se em desagrado ao que se considera um

    funcionamento normal, isto , aquele que no rasura a ordem (poltica, cultural, ambiental,

    de mobilidade, de servios etc.). Essas, dentre outras, so questes que estabelecem uma

    tenso entre populao e poder poltico e que reforam a visibilidade dos movimentos

    sociais urbanos que esto presentes na cidade.

    Os movimentos Ocupa Salvador e Desocupa, tal como os descrevemos acima,

    apresentam variadas possibilidades de relaes. No s suas formas de articulao e os

    objetivos se coadunam. H tambm o modo como estes movimentos repercutem na cena de

    que fazem parte. No raro, a mdia local noticia as intervenes destes movimentos seja em

    manifestaes pontuais seja em sesses na Cmara de Vereadores, por exemplo. Alm

    disso, frequentemente alguns intelectuais da cidade ratificam12

    , em textos que em geral so

    11

    Da perspectiva da Anlise de Discurso, no se pode considerar a sociedade como um produto acabado e

    homogneo. Faz-se necessrio, nesse sentido, falarmos em formao social, noo que nos permite uma

    abertura para se falar da sociedade constituda pela diferena. Assim, ao nos referirmos sociedade

    soteropolitana estamos pensando-a considerada em sua heterogeneidade, na diferena de sujeitos que vivem

    (n)a cidade de Salvador e se significam em relao a ela. 12

    Ordep Serra, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), em mais de um momento ressaltou as

    intervenes desses movimentos urbanos em textos publicados na mdia local. Alm disso, Urpi Uriarte,

    tambm professora da UFBA, recentemente organizou um seminrio em homenagem ao socilogo baiano

    Gey Espinheira, cujo tema foi A contestao urbana em Salvador. Nesta ocasio, tanto o Movimento Ocupa quanto o Movimento Desocupa foram convidados a compor mesas-redondas.

  • 35

    publicados nas redes sociais destes movimentos, a importncia da articulao que tais

    organizaes promovem. Por se ocuparem do mesmo espao de luta, tambm retomam uma

    imagem de Salvador que, sendo investida de uma ideia de baianidade13

    , ao mesmo tempo

    representada como bela, mtica, cultural e como mal cuidada, desrespeitada pelo

    o que , denegrida mesmo sendo culturalmente importante e fundamental. Se

    retomarmos o texto descritivo do movimento Desocupa, poderemos ver a enunciao de

    uma tarde ensolarada da Velha Bahia com um indcio dessa representao estereotpica.

    Assim, uma vez que trouxemos as condies de produo globais em que se inserem

    os movimentos Ocupa Salvador e Desocupa, faz-se pertinente trazermos as condies de

    produo mais especficas que inserem tais movimentos no contexto pontual da cidade de

    Salvador. Deste ponto em diante, retomaremos de forma concisa a histria da cidade de

    Salvador, focando especificamente em pontos de cruzamento entre sua conduo poltica e

    sua memria de resistncia. Nesse cruzamento, interessa tambm debruarmo-nos sobre a

    construo de um discurso acerca do baiano e da Bahia (do soteropolitano e de Salvador),

    pois tal discurso est disponvel para a produo dos movimentos em pauta. a partir de

    um discurso j dado sobre a baianidade que os movimentos, mexendo e remexendo com

    est memria (ora confrontando, ora ratificando tal discurso), qualificaro e produziro

    interpretaes sobre o baiano e seu modo (peculiar?) de articulao social. Comecemos,

    ento, por uma retomada das condies de produo relacionadas cidade estabelecida

    como razo e espao de luta dos supracitados movimentos.

    1.2 Salvador: memria e poltica.

    A cidade de Salvador14

    , capital do estado da Bahia, foi a primeira capital do Brasil.

    Ela foi tambm a primeira sede da administrao colonial portuguesa quando da

    colonizao brasileira por Portugal. Atualmente, possui pouco mais de 3,5 milhes de

    habitantes o que a constitui como o municpio mais populoso do nordeste brasileiro e o

    13

    O termo baianidade e os efeitos de sentido produzidos por ele sero, mais para frente, explorados com mais

    propriedade. 14

    Fundada como Cidade do So Salvador da Bahia de Todos os Santos. Por um longo tempo, foi chamada de

    Bahia ou cidade da Bahia. Pelos ndios, ainda no sculo XVI, era chamada Kirymur-Paraguau. (cf. Risrio,

    2004). O termo soteropolitano que nomeia quem nasce na cidade tem origem em outro epteto de Salvador:

    Soterpolis, isto , cidade do Sol. O soteropolitano seria, desse modo, o cidado do sol.

  • 36

    terceiro mais populoso do Brasil. Figura, alm disso, como a cidade mais negra fora da

    frica em virtude do alto nmero de pessoas negras que vivem na cidade e, por tal fato,

    recebeu como apelidos as expresses Roma Negra e Meca da Negritude.

    Embora a data oficial15

    da fundao da cidade do Salvador tenha sido considerada

    29 de maro de 1549, quarenta anos antes, a presena de portugueses j se fazia sentir num

    esboo inicial de formalizao da administrao local. O nufrago portugus, Diogo

    lvares Correia, o famoso Caramuru, aps conseguir se instalar entre os indgenas locais e

    instituir um lugar de liderana, tornou-se um mediador entre o governo portugus e os

    povos indgenas que residiam no Brasil. Conforme aponta o antroplogo e ensasta Antnio

    Risrio (2004), em seu livro Uma histria da cidade da Bahia, foi por intermdio e

    conselho do Caramuru que, o ento governador-geral da colnia, Tom de Sousa, nomeado

    em 1548, escolheu os lugares em que as primeiras edificaes da cidade iriam ser

    construdas. Do que nos aponta o autor, podemos dizer que a figura de Diogo lvares

    Correia representaria um primeiro poder no plano poltico e econmico (oriundo do

    colonizador portugus) que sustentaria a constituio da cidade.

    No artigo A fundao de um Estado: cidade de So Salvador, Brasil, Eni Orlandi

    discute a fora simblica e poltica da cidade na sociedade ocidental. A autora toma a

    fundao da cidade de Salvador como ponto de reflexo da relao cidade-Estado. A

    fundao de Salvador fundamenta sua discusso, pois se trata de uma cidade que j nasce

    cidade e que estabelece um vnculo entre a construo de um Estado (o Brasil) subordinado

    a outro Estado (Portugal, o colonizador) (cf. Orlandi, 2011). , ento, conforme a estudiosa

    que a fundao da cidade de Salvador inaugura, por meio de um documento poltico-

    jurdico administrativo um regimento, o Estado brasileiro enquanto posse e propriedade

    do Estado portugus.

    Ainda no sculo XVI, o contato entre portugueses (que ocupavam o lugar de

    colonizadores, administradores) e ndios (colonizados e administrados) propiciou os

    primeiros embates contra os poderes polticos da cidade da Bahia. Risrio (2004) destaca

    que, embora o primeiro governo geral no tenha instalado um estado de guerra entre

    brancos e ndios, os dois governos seguintes (Duarte da Costa 1553/1558 e Mem de S

    15

    Existe um debate sobre a data real da fundao da cidade. Segundo Cadena (2013), ainda so apontadas 01

    de maio e 13 de junho de 1549 como possveis datas da fundao de Salvador em virtude de documentos

    julgados menos relevantes.

  • 37

    1558/1572) foram marcados por combates intensos em Salvador. Ao contrrio de Tom de

    Sousa, que hesitava em cumprir completamente as ordens provenientes do Regimento da

    Coroa concernentemente ao tratamento que deveria ser dado aos ndios, seus sucessores

    seguiam ao p da letra as instrues da Coroa. Duarte da Costa foi responsvel pelo

    incndio de cinco aldeias indgenas no que hoje se conhece como o bairro do Rio Vermelho

    e de mais treze ao redor das delimitaes da cidade, ao passo que Mem de S queimou mais

    de trinta aldeias em Salvador e Recncavo Baiano. Este cenrio de guerra iniciado com o

    governo de Duarte da Costa em 1553, propiciou a primeira movimentao popular contrria

    ao governo portugus no Brasil que, sendo concebida pela populao indgena, ficou

    conhecida como a Guerra dos Aimors (1555). Uma vez que eram povos nmades, os

    aimors articularam pontos de combate em diversas localidades da Bahia tanto no

    Recncavo quanto no sul do estado. Decorre da o fato de que, conforme apontam diversos

    historiadores, a cidade da Bahia ficou marcada como o primeiro lugar em que houve uma

    articulao popular contrria ao poder que se estabelecia no Brasil. Na viso de Goulart

    (2012), a articulao popular e a formao de movimentos contrrios na Bahia desde a

    poca colonial faz jus caracterizao do povo baiano como um dos mais combativos do

    Brasil, tendo em vista que pelo menos dez das revoltas mais importantes para a histria

    brasileira aconteceram na Bahia.

    No sculo XVIII, especificamente no seu perodo final, Risrio (2004) aponta a

    construo de um contexto relativo insatisfao popular em Salvador. O supracitado

    sculo tinha sido todo ele de declnio para a agroindstria no Brasil, de modo especial para

    a agroindstria baiana, em virtude da produo aucareira despontando nas Antilhas.

    Porm, uma vez que uma rebelio escrava nas Antilhas acabou tomando propores de

    guerra e de movimento de independncia, a produo aucareira da ento colnia francesa

    foi praticamente extinta, fato que alou a produo baiana ao cenrio internacional

    novamente. Alm disso, h de se considerar tambm as guerras napolenicas, que

    proporcionaram boas condies para o comercio brasileiro, e a abertura dos portos, que

    fez cair por terra o intermdio lusitano nas transaes comerciais do Brasil. O

    restabelecimento da agroindstria baiana, entretanto, no representou uma melhoria nas

    condies sociais de Salvador, como se poderia supor.

  • 38

    Existiu tambm uma outra face, nada leve ou ligeira. Foi o duro reverso da

    medalha. que a expanso da indstria do acar nunca chegou a ser sinnimo

    de felicidade geral. Havia o cativeiro, a escassez de alimentos, a pobreza

    generalizada. No eram somente os escravos que penavam. Tambm os que

    podiam usar sapatos [...], mas no possuam maiores riquezas, padeciam e no era pouco. [...] o estrato mdio da populao baiana formava uma congregao de pobres. Da a insatisfao permanente que pairava no ar da cidade e de sua interlndia. As tenses sociais que no raro alcanavam extremos de agudeza. E,

    aqui e ali, explodiam. Na verdade, a placidez jamais foi, antes da chegada do

    sculo XX, uma caracterstica da vida na Cidade da Bahia e seu Recncavo.

    (Risrio, 2004, p. 301).

    Este foi o cenrio para uma das revoltas populares mais importantes para a histria

    de Salvador e da Bahia. Trata-se da Conjurao Baiana de 1798 ou, como ficou mais

    popularmente conhecida, a Revolta dos Alfaiates, j que os lideres revolucionrios eram

    sapateiros, escravos e alfaiates. O movimento de conjurao propunha a formao da

    Repblica Bahiense e acabou por ter uma represso tida como superior Inconfidncia

    Mineira. A escassez de alimentos e falta de produtos foram os motivos iniciais da revolta.

    Desta luta, ficaram conhecidos os lderes, todos negros, os alfaiates, Joo de Deus e Manuel

    Faustino, e os soldados, Lucas Dantas e Lus Gonzaga das Virgens, os quais foram mortos

    na praa que, nos dias de hoje, abriga monumentos em sua homenagem, a Praa da

    Piedade, no centro de Salvador.

    Contudo, certamente, o 2 de julho (de 1823), data da Independncia da Bahia, o

    acontecimento mais marcante da histria baiana em que se pode observar a tenso entre um

    poder poltico colonial e a articulao popular. Embora a proclamao da Independncia do

    Brasil tenha ocorrido no 7 de setembro de 1822, a Bahia continuou sendo ocupada por

    tropas portuguesas at que finalmente fossem expulsas no ano seguinte. O movimento

    ocorrido na Bahia que culminou na batalha do 2 de julho comeou ainda em 1820, mas tem,

    de fato, no movimento de 1798, uma semente que produziu como efeito uma espcie de

    sentimento de independncia do baiano em relao a Portugal. Inmeras figuras populares

    de diversas classes sociais ficaram eternizadas com heris e mrtires da batalha, de modo

    que ainda hoje o 2 de julho responsvel pela produo de uma imagem de articulao

    popular bem sucedida, patriotismo e, sobretudo, de baianidade comprometida. Dos ndios

    caboclos (hoje homenageados em monumentos na Praa do Campo Grande, uma das

    mais tradicionais de Salvador), at a figura da Irm Joana Anglica que se colocou entre os

    portugueses e seu convento na Lapa (e que hoje nomeia uma das avenidas mais

  • 39

    movimentadas da cidade), passando pela figura de Maria Quitria, tida como a Joana DArc

    brasileira (e cuja imagem, por determinao ministerial, est hoje em todos dos quartis e

    reparties militares do Brasil), a representao do 2 de julho como um evento histrico de

    intensa participao popular e que deve dar orgulho a qualquer brasileiro mas,

    principalmente, a qualquer baiano constitui um importante pedao da histria estadual que

    bastante reafirmado seja na educao escolar oferecida no estado da Bahia, seja no

    feriado (mas, sobretudo nas paradas e desfiles) que acontece(m) na referida data em cada

    ano, ou mesmo na execuo do Hino da Independncia da Bahia, ou simplesmente Hino da

    Bahia16

    , at meados do sculo XX, obrigatria nas escolas pblicas de Salvador.

    Na caracterizao das condies de produo, passado este perodo histrico

    imperial, faz-se interessante adentrar no contexto poltico da Segunda Repblica17

    em que

    se comea a delinear uma formao poltica que ainda nos dias de hoje produz efeitos

    sociais (e, evidentemente, discursivos) importantes para a cidade de Salvador. A

    Revoluo de 30 que marcou o processo poltico-militar que impediu a posse do

    presidente eleito Jlio Prestes pela introduo de Getlio Vargas em seu lugar rearranjou o

    panorama oligrquico que se desenvolvia na Bahia. Acontece que, como historia Risrio

    (2004, p. 485), a Bahia no se engajara no processo revolucionrio. A elite poltica baiana

    era, em sua maioria, claramente antialiancista. Anti-Vargas. Os oligarquistas baianos

    ressentiram-se com o fato de que um de seus companheiros, Vital Soares, que renunciou o

    16

    Nasce o sol a 2 de julho

    Brilha mais que no primeiro

    sinal que neste dia

    At o sol brasileiro

    Nunca mais o despotismo

    Reger nossas aes

    Com tiranos no combinam

    Brasileiros coraes

    Cresce, oh! Filho de minha alma

    Para a ptria defender,

    O Brasil j tem jurado

    Independncia ou morrer.

    Nunca mais o despotismo

    Reger nossas aes

    Com tiranos no combinam

    Brasileiros coraes

    Salve, oh! Rei das campinas

    De Cabrito e Piraj

    Nossa ptria, hoje livre,

    Dos tiranos no ser. 17

    Trata-se da Era Vargas ocorrida de 1930 a 1945.

  • 40

    cargo de governador da Bahia para ser o vice-presidente de Jlio Prestes, no pde assumir

    seu posto em virtude da tomada de poder por Getlio Vargas.

    A Bahia continuava politicamente oligarquista, no apoiando, desse modo, o

    governo Vargas. Contudo, os efeitos da revoluo haviam chegado Bahia, pela nomeao

    de Juracy Magalhes como interventor do estado. Note-se que o novo chefe do governo era

    cearense, militar e considerado novo demais (26 anos) para o cargo, fato que tornar ainda

    mais descontentes os coronis baianos. Risrio aponta que o descontentamento da elite

    poltica baiana foi to grande que coronis, at ento em lados politicamente opostos,

    viram-se obrigados a se unirem. Embora tambm o governador tivesse procurado alianas

    locais, as posies antioligrquicas e anticoronelistas, bem como o tenentismo do projeto

    Vargas a que se filiava Juracy Magalhes no foram suficientes para confrontar a coaliso

    formada pelo rearranjo dos oligarquistas baianos. O governador teve de ceder e ele mesmo

    se tornou uma espcie de supercoronel (Risrio, 2004, p. 489). Assim, coube a Juracy

    Magalhes reabsorver politicamente os coronis de modo que, na Bahia, continuou a

    vigorar a prtica conservadora das oligarquias, ainda que de forma rearranjada.

    pela figura de Juracy Magalhes, j absorvido pelo sistema poltico que se

    desenvolvia na Bahia, e exercendo um segundo mandato de governador aps ter sido o

    primeiro presidente da Petrobrs, que Antnio Carlos Peixoto de Magalhes (daqui pra

    frente, ACM), de longe considerado o poltico mais representativo da Bahia, entrou na cena

    poltica. o que apontam os autores Jonas e Almeida (2004), afirmando que a entrada de

    ACM na poltica deu-se na Bahia durante a democracia ps-45 com o apoio do ento

    governador Juracy Magalhes.

    A consolidao da careira poltica de ACM, porm, deu-se quando de sua

    premiao pelo regime militar com a prefeitura da cidade de Salvador no final da dcada de

    sessenta. Em seguida, tendo se destacado na administrao municipal, foi contemplado,

    tambm por nomeao, com o cargo de governador no incio dos anos setenta.

    Foi como governador que ACM construiu o que os autores chamam de corrente

    poltica suprapartidria (Jonas, Almeida, 2004, p. 104) responsvel pela manuteno da

    lgica oligrquica18

    da poltica baiana, mesmo nos anos mais duros da ditadura militar

    18

    Faz-se necessrio esclarecer o que os autores caracterizam por oligarquia. Para eles, trata-se de um sistema

    poltico que depende da proporo da sociedade poltica constituda por eixos como participao e

    elegibilidade. Os autores afirmam que uma poliarquia pode se oligarquizar pela manipulao do eixo da

  • 41

    brasileira. Uma vez que o regime militar no representou uma barreira para tal forma

    regional de fazer poltica, foi possvel a formao, por parte de ACM, de um grupo poltico

    interessado em uma expanso de poder no estado baiano. Como efeito, aps a

    redemocratizao nacional, ACM j configura como um grande lder poltico e estruturador

    de uma corrente forte que conseguiu estabelecer representaes polticas em diversas

    esferas do poder poltico estadual e federal. A esse modo regional de fazer poltica que tem

    a figura de ACM como im central, os autores chamam carlismo.

    Segundo Dantas Neto (2003, p. 213), o carlismo caracterizaria a formao de

    grupo poltico sob o comando de Antnio Carlos Magalhes ou, em termos mais

    precisos:

    Instituio da poltica baiana e nacional, parte constitutiva e constituinte de uma

    situao poltica que, sem reivindicar-se singular, um arranjo regionalmente

    peculiar de elementos presentes na poltica brasileira do ltimo meio sculo e, ao

    mesmo tempo, a projeo nacional dessa sntese poltica regional realizada em contexto poltico autoritrio e de fraca polarizao ideolgica. (Dantas Neto,

    2003, p. 214).

    Jonas e Almeida (2004) buscam mostrar que a constituio, consolidao e

    manuteno da poltica carlista na Bahia, tida como herana do coronelismo oligrquico, s

    foi possvel, de um lado, pelas relaes que ACM buscava instituir e, de outro, pelo aparato

    miditico que sustentou tal modo de produo poltico. Desse modo:

    A transio democrtica pelo alto e as novas alianas firmadas por ACM, permitiram a sua sobrevivncia poltica no novo regime e a sua nomeao para

    um cargo estratgico o Ministrio das Comunicaes. A construo de uma, digamos, rede carlista de televiso, imprensa e rdio, se deu dentro deste novo

    ambiente poltico, o que ensejou no s a sobrevivncia do grupo poltico de

    ACM, como tambm a sua modernizao, do ponto de vista da comunicao

    poltica. (Jonas, Almeida, 2004, p. 104).

    Isto posto, os autores assumem a posio de que o carlismo pde se manter tendo

    em vista uma mutao na estratgia poltica da oligarquia baiana decorrente da guinada

    elegibilidade, isto , por uma mexida nas regras que dizem quem est apto ou no a candidatar-se. Desse

    modo, sem que haja uma ruptura institucional no que se refere participao, poder-se-ia reverter a

    elegibilidade seja por mtodos formais, seja por informais. A barreira educacional era usada como controle

    formal da elegibilidade ao longo da Primeira Repblica. Em contrapartida, salientam os autores, o

    compromisso coronelstico representaria a maneira informal de controlar a participao e a elegibilidade e

    instituir uma oligarquia.

  • 42

    miditica de ACM (Jonas, Almeida, 2004, p. 104). Dado que, conforme os autores, a

    oligarquia baiana recorrente desde a primeira repblica, a entrada de ACM nesse contexto

    poltico, possibilitou uma transformao e renovao deste modo de fazer poltica j que,

    por ele, a preservao da forma oligrquica de poder aliou-se s estratgias miditicas.

    Seria, dito de outro modo, o que os autores denominam carlismo miditico que se resume

    na figura de ACM como entremeio entre oligarquia (preservao de um fazer coronelstico,

    valorizao da prtica de fazer alianas etc.) e a mdia (abertura para novas estratgias,

    controle dos meios de comunicao).

    O que os autores apontam faz-nos remetermo-nos imediatamente para o Vous avez

    bien dit propagande?, texto de Michel Pcheux, publicado em 1979. No texto, Pcheux

    busca mostrar que a evidncia da propaganda, como um instrumento poltico influenciador

    do homem, no est assentada em aspectos bio-psicolgicos do campo do debate cognitivo

    e afetivo19

    , para propor uma histria poltica da propaganda no desenvolvimento do

    capitalismo. Nesse sentido, partindo do modo como o capitalismo desenvolveu-se por duas

    vias (a americana e a prussiana20), o terico mostra que as condies de exerccio das

    propagandas polticas (Pcheux, [1979] 2011, p. 82) formaram-se, entre confluncias e

    contradies, neste duplo espao de desenvolvimento capitalista e tendo por base

    estratgias tais como emprestar, tomar a palavra, desviar, virar, desnaturalizar as bases do

    adversrio de classe. O autor ainda mostra que ao mesmo tempo em que propaganda liberal

    burguesa tinha como base de sustentao a Declarao dos Direitos dos Homens e o Sujeito

    de Direito; o movimento operrio ratifica tal juridismo e desenvolve uma propaganda

    preocupada em educar, instruir, desalienar, isto , fazer acontecer a tomada de

    conscincia.

    19

    O campo afetivo e cognitivo sustentava a ideia de que o homem seria um ser a que se pode influenciar,

    sendo a propaganda um forte instrumento para isso. Essa ideia (ou evidncia) instala-se, para Pcheux, no seio

    de uma reflexo terico-poltica que se sustenta em basicamente trs teses. A primeira diz respeito ao fato de

    que o homem movido por pulses de ordens argumentativas e emocionais. A segunda refere-se a fato de que

    tais pulses, uma vez conhecidas pela cincia moderna, podem ser manipuladas. E a terceira, por seu turno,

    ancora-se no postulado de que, por uma campanha de propaganda que se d pela manipulao das pulses acima apresentadas, seria possvel decidir o destino de milhes de pessoas. 20

    Segundo Fiori (2006) as vias de desenvolvimento do capitalismo j foram explicadas de diferentes modos,

    em diferentes contextos histricos, de modo a no se fechar uma definio nica especificada. Ao tratar estas

    duas vias do desenvolvimento capitalista, Pcheux est se referindo a modo como o produtor torna-se

    progressivamente comerciante capitalista (via americana) e transformao lenta do sistema feudal em

    sistema capitalista (via prussiana). Ainda segundo Pcheux ([1970] 2011, p. 82): a histria dos sculos XIX e XX condensa assim admiravelmente esta luta entre as duas vias do capitalismo e recapitula ao mesmo tempo

    as diversas condies da luta do movimento operrio face ao desenvolvimento capitalista.

  • 43

    A preocupao de Pcheux justamente mostrar como, no desenvolvimento e

    consolidao do capitalismo, por diversos modos, as formas de fazer propaganda do

    movimento operrio e da burguesia, ainda que tenham inicialmente formas e objetivos

    diferentes (e at antagnicos), vo se remetendo e se confundindo. A questo central a

    forma como o assujeitamento ideolgico do capitalismo vai se instituindo e construindo

    determinadas evidncias, dentre as quais a do sujeito individuado (cf. Orlandi, 2012),

    possibilitando a construo de um sujeito bio-psico-social a-histrico, de tal modo que, a

    propaganda pelos performativos, interpelao do sujeito por seu prprio narcisismo,

    universalizaes/individualizaes que se iam construindo pelo emprego de todo, cada um

    e ningum, isto , a lngua de Estado (Pcheux, [1979] 2011, p. 86) que mascara a

    existncia de classes, trabalha evacuando as contradies e instituindo uma prtica de

    silncio/silenciamento se tornasse um instrumento poltico de ordem psicolgica

    facilmente manipulvel. Em sntese, Pcheux mostra que a concepo instrumentalizada da

    propaganda no se fundamenta no fato de que o homem um ser influencivel: trata-se,

    antes de qualquer aspecto, de uma questo poltico-ideolgica que diz respeito forma

    como se d a interpelao do sujeito.

    Feito este adendo, voltamos ao carlismo refletindo sobre o modo como diversos

    autores so consensuais em pontuar que tal sistema poltico de ACM aliava monoplio da

    indstria miditica, prticas polticas conciliatrias e, quando necessrio, truculncia e

    fora bruta. Jonas e Almeida (2004), pela afirmao do que chamam carlismo miditico,

    apresentam uma srie de dados empricos do monoplio miditico exercido por ACM. A

    evidncia da propaganda e de seus efeitos psicolgicos, tal como nos aponta Pcheux,

    ganha, nesse contexto, essencial importncia para a consolidao de ACM. Os autores

    trazem diversas falas deste poltico para mostrar a construo de um comportamento

    autoritrio, por conta de ACM ter adquirido empresas de comunicao. Alm disso, como

    base em anlise de direitos de resposta e da comparao da cobertura de alguns fatos

    relacionados prefeitura de Ldice da Mata21

    , buscam mostrar como os rgos miditicos

    filiados figura de ACM eram parciais e dispostos a por em circulao uma imagem

    desfavorvel de seus opositores. Eles relatam:

    21

    Prefeita de Salvador em 1992, quando ACM era governador.

  • 44

    [...] o grupo poltico de ACM no tinha nas mos apenas a agenda jornalstica da

    TV Bahia, mas tambm a da TV Educativa e a das emissoras de rdios

    pertencentes Rede Bahia e aliados polticos. No dia 20/10/93, a TVE, por

    exemplo, veiculou uma reportagem sobre uma crtica de ACM Ldice da Mata,

    por ela no ter conseguido conduzir as negociaes da greve dos rodovirios,

    sem, no entanto, ter ouvido a Prefeita. Esta emissora pblica se negou a fazer

    imagens de Ldice da Mata chegando para organizar os trabalhos de recuperao

    da encosta da Igreja do Sr. do Bonfim, preferindo enquadrar a chegada de ACM

    ao local. Enfim, os mdias carlistas faziam apenas as notcias que modelassem a imagem da prefeitura de modo negativo. Tudo parece crer que, na prtica

    jornalstica da TV Bahia, a cultura jornalstica com seus smbolos, esteretipos e

    rituais disciplinando o fazer notcias levando em conta a objetividade era somente uma retrica vazia. (Jonas, Almeida, 2004, p. 112)

    Aliado a esse aspecto de monoplio miditico, Dantas Neto (2003) afirma que a

    manuteno do poder por parte do grupo de ACM era feita por diversas alianas muitas

    vezes no imaginadas. Segundo o autor:

    Acirradas rivalidades pessoais passavam a plano secundrio, desautorizando

    interpretaes de que o personalismo impedia o exerccio da grande poltica. Ao contrrio, o poder pessoal a viabilizava em contexto poltico autoritrio,

    garantindo aos interesses baianos, situados nos vrtices entre poltica, administrao pblica e mercado, a continuidade de um tratamento diferenciado,

    por parte do Estado nacional, pacto do qual ACM era o fiador. Aos demais

    grupos polticos da ordem sobrava a partilha de fatia cada vez mais exgua do

    varejo poltico, ou o isolamento, pois na Bahia do exitoso conservantismo

    moderno objees ao carlismo havia apenas em ambientes privados. O espao

    pblico era surdo e quase mudo (Dantas Neto, 2003, p. 228)

    Risrio (2004), por seu turno, descreve a falncia das oposies na Bahia, tanto no

    plano estadual quanto no plano municipal, mesmo quando eram as oposies contrrias a

    ACM que estavam no poder, especificamente Waldir Pires (eleito governador em 1986) e

    Ldice da Mata. Pontualmente, no que se refere cidade de Salvador, o autor defende que a

    m articulao da oposio representada pela ento prefeita foi a responsvel para que a

    cidade de Salvador, tradicionalmente anticarlista, desacreditasse na oposio e perpetuasse

    diversos personagens ligados a ACM na prefeitura da capital do estado. Segundo o autor:

    [...] Ldice da Mata [...] fez uma administrao pfia, deixando a cidade cair aos

    pedaos.